a legtimação do direito penal - origem político-axiológica do sistema penal

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i A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL: origem político-axiológica do sistema penal Antonio Eduardo Ramires Santoro Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Fernando Rodrigues Rio de Janeiro Agosto de 2005

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O objetivo desta dissertação é procurar os fundamentos do direito penal. Para tornar à origem deste se fez necessário perquirir seu objeto, sem descurar do ser que o investiga, bem como de sua atitude metodológica. Desta forma, valemo-nos do estudo da visão juspositivista do direito, portanto avalorativa, para romper com seus paradigmas e encontrar na origem do direito positivado uma tarefa política que externa valores arraigados no exercente do poder. O direito penal se funda sobre três institutos jurídicos decorrentes de três direitos políticos estatais (direito de punir, proibir e julgar) e que, portanto, constituem os três pontos fundamentais do sistema punitivo: a pena, o bem jurídico e o processo. Assim, cediço que a atividade legiferante delineia a base do direito penal e que esta externa uma atitude axiológica, buscou-se, com base na teoria dos valores, a origem fundante do Sistema Penal, perquirindo os valores que devem nortear o legislador, enquanto exercente do poder político, ao dispor sobre os três pontos fundamentais do sistema punitivo. Desta forma, verificou-se que o embate entre a ordem pública e o direito de liberdade do cidadão é a origem das teorias que buscam a legitimação da pena, do bem jurídico e do processo. Não por outro motivo, as teorias que pretendem obter da Constituição a carta de valores a serem utilizados como fundamentos axiológicos pelo legislador, ganha relevo no cenário do pensamento democrático mundial.Este documento é licenciado pela CC BY: A obra A Legitimação do Direito Penal: origem político-axiológica do sistema penal de Antonio Eduardo Ramires Santoro foi licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição - Uso Não-Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0 Não Adaptada.

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Page 1: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

i

A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL: origem político-axiológica do sistema penal

Antonio Eduardo Ramires Santoro

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Filosofia

(PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas, da Universidade Federal do Rio

de Janeiro, como parte dos requisitos para

a obtenção do título de Mestre em

Filosofia.

Orientador: Fernando Rodrigues

Rio de Janeiro

Agosto de 2005

Page 2: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

ii

A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO PENAL: origem político-axiológica do sistema penal

Antonio Eduardo Ramires Santoro

Orientador: Fernando Rodrigues

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia

(PPGF), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Aprovada por:

Prof. Fernando Augusto da Rocha Rodrigues - Orientador

Doutor

Prof. Aquiles Côrtes Guimarães

Doutor

Prof. Sandro Figueiredo Reis

Doutor

Rio de Janeiro

Agosto de 2005

Page 3: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

iii

Santoro, Antonio Eduardo Ramires

A legitimação do direito penal: origem político-axiológica

do sistema penal / Antonio Eduardo Ramires Santoro – Rio de

Janeiro, 2005.

xi, 124fl: il.

Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade

Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais – IFCS, 2005.

Orientador: Fernando Augusto da Rocha Rodrigues

1. Filosofia Política. 2. Filosofia do Direito. 3. Direito

Penal. I. Rodrigues, Fernando Augusto da Rocha (Orient.). II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais. III. Título.

Page 4: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

iv

Dedico esta dissertação à Maria Antônia,

que há sete meses passou a ser a razão da

minha vida.

Page 5: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

v

Devo agradecimentos a muitas pessoas,

mas nesta etapa da minha vida o farei a

três: Fernando, meu orientador, Rodrigo,

meu amigo e Maria da Penha.

Page 6: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

vi

RESUMO

SANTORO, Antonio Eduardo Ramires Santoro, A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO

PENAL: origem político-axiológica do sistema penal; Orientador Fernando Augusto

da Rocha Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; 2005. Dissertação (Mestrado em

Filosofia)

O objetivo desta dissertação é procurar os fundamentos do direito penal. Para tornar à

origem deste se fez necessário perquirir seu objeto, sem descurar do ser que o investiga,

bem como de sua atitude metodológica. Desta forma, valemo-nos do estudo da visão

juspositivista do direito, portanto avalorativa, para romper com seus paradigmas e

encontrar na origem do direito positivado uma tarefa política que externa valores

arraigados no exercente do poder. O direito penal se funda sobre três institutos jurídicos

decorrentes de três direitos políticos estatais (direito de punir, proibir e julgar) e que,

portanto, constituem os três pontos fundamentais do sistema punitivo: a pena, o bem

jurídico e o processo. Assim, cediço que a atividade legiferante delineia a base do

direito penal e que esta externa uma atitude axiológica, buscou-se, com base na teoria

dos valores, a origem fundante do Sistema Penal, perquirindo os valores que devem

nortear o legislador, enquanto exercente do poder político, ao dispor sobre os três

pontos fundamentais do sistema punitivo. Desta forma, verificou-se que o embate entre

a ordem pública e o direito de liberdade do cidadão é a origem das teorias que buscam a

legitimação da pena, do bem jurídico e do processo. Não por outro motivo, as teorias

que pretendem obter da Constituição a carta de valores a serem utilizados como

fundamentos axiológicos pelo legislador, ganha relevo no cenário do pensamento

democrático mundial.

Palavras-Chave: Filosofia Política; Filosofia do Direito; Direito Penal; Axiologia.

Page 7: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

vii

ABSTRACTC

SANTORO, Antonio Eduardo Ramires Santoro, A LEGITIMAÇÃO DO DIREITO

PENAL: origem político-axiológica do sistema penal; Orientador Fernando Augusto

da Rocha Rodrigues. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS; 2005. Dissertação (Mestrado em

Filosofia)

The aim of this dissertation is to research the fundamentals of the criminal law.

Revisiting the starting point of criminal law practice demanded the research of its

object, without neglecting the author of the investigation, as well as his methodological

approach. In this fashion, we relied upon the reading of the juspositivist view of the law,

thus a validating view, in order to break through its paradigms and find within the

source of positivated law a political task that expresses the ruler’s deep-set morals.

Criminal law is based on three juridical fundamentals derived from these three State

rights (rights of punishing, of prohibiting and of judging) and that, as a result, constitute

the three focal points of the repression system: the punishment, the juridical asset and

the procedure. Therefore, once established that the legislative activity outlines the

foundation of criminal law which expresses an axiological viewpoint, the founding

source of the Criminal Law System was then searched for, investigating the values that

must guide the legislator, as an agent of political power, when acting upon the three

fundamental guidelines of the repression system. It was thus perceived that the never-

ending conflict between public order and the citizen’s freedom right is the source of all

theories that strive after punishment, juridical asset and process validation. There is no

other reason for the expansion in the international democratic scenario of theories

aiming on obtaining from the Constitution a bill of values which will be the lawmaker

axiological fundamentals.

Keywords: Political Philosophy; Law Philosophy; Criminal Law; Axiology.

Page 8: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

viii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – PARA UMA FILOSOFIA DO DIREITO PENAL.....................12

1ª PARTE – ONTOGNOSEOLOGIA – NA BUSCA DO SER COGNOSCENTE E

DO OBJETO COGNOSCÍVEL DO SISTEMA PENAL..........................................16

1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................16

2. O DIREITO POSITIVADO E O JUSPOSITIVISMO...............................................18

2.1. ORIGEM DA MODERNA POSITIVAÇÃO DO DIREITO.......................18

2.2. ORIGEM DO JUSPOSITIVISMO MODERNO..........................................20

2.3. JUSPOSITIVISMO: MÉTODO, TEORIA E IDEOLOGIA........................21

a) QUANTO AO MODO DE ABORDAR:...........................................21

1º PONTO) PARA O POSITIVISTA JURÍDICO O DIREITO DEVE

SER CONSIDERADO COMO UM FATO, NÃO COMO UM

VALOR..............................................................................................21

b) QUANTO À TEORIA DO DIREITO:..............................................22

2º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA DA COATIVIDADE DO

DIREITO............................................................................................22

3º PONTO) DIZ RESPEITO ÀS FONTES DO DIREITO................22

4º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA IMPERATIVISTA DA

NORMA JURÍDICA..........................................................................23

5º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA DO ORDENAMENTO

JURÍDICO..........................................................................................23

6º PONTO) DIZ RESPEITO AO PROBLEMA DA

INTERPRETAÇÃO DO DIREITO...................................................26

c) QUANTO À IDEOLOGIA DO DIREITO:.......................................27

7º PONTO) DIZ RESPEITO À TEORIA DA OBEDIÊNCIA..........27

2.4. RELAÇÃO ENTRE O DIREITO POSITIVADO E O

JUSPOSITIVISMO.........................................................................................................28

2.5. O JUSPOSITIVISMO NO DIREITO PENAL E AS ESCOLAS

PENAIS...........................................................................................................................28

3. CIÊNCIA DO DIREITO E FILOSOFIA DO DIREITO.............................................32

4. LACUNAS VALORATIVAS NA TEORIA JUSPOSITIVISTA...............................33

4.1. COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO......................................34

Page 9: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

ix

4.2. A COMPLETUDE DO ORDENAMENTO JURÍDICO..............................36

4.3. HERMENÊUTICA: MEIOS DE INTERPRETAÇÃO

DECLARATIVA.............................................................................................................37

5. A VALORAÇÃO NA TEORIA JURÍDICA PENAL.................................................39

6. A MOTIVAÇÃO DA NORMA..................................................................................43

7. O SISTEMA PENAL..................................................................................................45

8. PONTOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL E A ATIVIDADE

VALORATIVA DE CRIAÇÃO DO SISTEMA.............................................................47

9. ANTINOMIAS DO SISTEMA...................................................................................48

10. ELIMINAÇÃO DAS ANTINOMIAS DE PRINCÍPIO DO SISTEMA PENAL.....49

11. CONCLUSÃO...........................................................................................................51

2ª PARTE – AXIOLOGIA – AS IDEOLOGIAS PENAIS........................................53

12. O VALOR..................................................................................................................53

13. TEORIAS SOBRE O VALOR..................................................................................53

14. CARACTERÍSTICAS DO VALOR.........................................................................55

15. ORDENAÇÃO DOS VALORES..............................................................................56

16. CLASSIFICAÇÃO DOS VALORES.......................................................................57

17. A ORIGEM FUNDANTE DO SISTEMA PENAL..................................................58

18. AS IDEOLOGIAS PENAIS:.....................................................................................59

18.1. A AXIOLOGIA DA PENA........................................................................59

18.1.1. DESLEGITIMAÇÃO:.................................................................59

18.1.1.a. ABOLICIONISMO.......................................................60

18.1.1.b. MINIMALISMO RADICAL OU ABOLICIONISMO

MEDIATO...............................................................................................62

18.1.2. LEGITIMAÇÃO OU JUSTIFICAÇÃO:.....................................63

18.1.2.a. TEORIAS RETRIBUTIVISTAS:.................................64

18.1.2.a.I. RETRIBUTIVISMO ÉTICO..........................65

18.1.2.a.II. RETRIBUTIVISMO JURÍDICO...................65

18.1.2.b. TEORIAS UTILITARISTAS:......................................66

18.1.2.b.I. PREVENÇÃO ESPECIAL:............................67

. PREVENÇÃO ESPECIAL POSITIVA.............68

. PREVENÇÃO ESPECIAL NEGATIVA...........68

. DOUTRINAS CORREICIONALISTAS...........69

Page 10: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

x

18.1.2.b.II. PREVENÇÃO GERAL:................................70

. PREVENÇÃO GERAL POSITIVA OU

INTEGRADORA............................................................................................................71

. PREVENÇÃO GERAL NEGATIVA................72

18.1.2.c. TEORIAS MISTAS OU ECLÉTICAS:........................72

18.1.2.c.I. TEORIA DIALÉTICA UNIFICADORA.......73

18.1.2.c.II. TEORIA DE DIREITO PENAL MÍNIMO OU

GARANTISMO...................................................................................................74

18.1.3. CONSEQÜÊNCIAS DAS IDEOLOGIAS PENAIS...................75

18.2. A AXIOLOGIA DO BEM JURÍDICO......................................................78

18.2.1. O DIREITO ESTATAL DE PROIBIR (PRINCÍPIO DA

PROPORCIONALIDADE).............................................................................................78

18.2.2. VARIAÇÃO DA ORDENAÇÃO DE VALORES (DO DIREITO

PENAL MÁXIMO AO PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMO).........................80

18.2.3. OS BENS JURÍDICOS COMO PROJEÇÃO DOS VALORES

(PRINCÍPIO DA EXCLUSIVA PROTEÇÃO DE BENS JURÍDICOS).......................80

18.2.4. A ELEVAÇÃO VALORATIVA DO BEM JURÍDICO A BEM

JURÍDICO-PENAL (PRINCÍPIOS DA FRAGMENTARIEDADE E DA

SUBSIDIARIEDADE)....................................................................................................82

18.2.5. A VULNERAÇÃO CONCRETA DO BEM JURÍDICO-PENAL

EM SENTIDO VALORATIVO E NORMATIVO (PRINCÍPIO DA

OFENSIVIDADE)...........................................................................................................84

18.2.6. BREVE RELATO DA EVOLUÇÃO HISTÓRICO-

CONCEITUAL DO BEM JURÍDICO............................................................................86

18.2.6.a. CONCEPÇÃO PRÉ-ILUMINISTA..............................86

18.2.6. b. CONCEPÇÃO ILUMINISTA.....................................88

18.2.6. c. CONCEPÇÃO POSITIVISTA.....................................89

. CONCEPÇÃO DE BINDING............................89

. CONCEPÇÕES NATURALÍSTICAS...............90

. CONCEPÇÃO NORMATIVISTA PURA.........91

18.2.6. d. CONCEPÇÃO SOCIOLÓGICA..................................92

18.2.7. TEORIAS DE FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL DO

BEM JURÍDICO.............................................................................................................94

18.2.7.a. CONCEPÇÕES DE CARÁTER GERAL.....................95

Page 11: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

xi

18.2.7.b. CONCEPÇÕES DE CARÁTER ESTRITO.................97

18.2.8. LEGITIMAÇÃO E DESLEGITIMAÇÃO AXIOLÓGICA DA

PROTEÇÃO AOS BENS JURÍDICOS (CRITÉRIOS DE LIMITAÇÃO DO

EXERCÍCIO DO PODER POLÍTICO)..........................................................................98

18.3. A AXIOLOGIA DO PROCESSO..............................................................99

18.3.1. A(S) FUNÇÃO(ÕES), A(S) FINALIDADE(S) E O(S)

FUNDAMENTO(S) DO PROCESSO PENAL..............................................................99

18.3.2. LEGITIMAÇÃO DO DIREITO ESTATAL DE JULGAR:......101

18.3.2.a. TEORIAS DESLEGITIMADORAS DO

PROCESSO...................................................................................................................102

18.3.2.b. TEORIAS LEGITIMADORAS OU

JUSTIFICACIONISTAS DO PROCESSO:..................................................................104

18.3.2.b.I. UTILITARISMO:.........................................105

. REPRESSIVISTA............................................106

. GARANTISTA.................................................109

. PACIFISTA......................................................110

18.3.2.b.II. AUTO-JUSTIFICANTE OU

UTILITARISMO AVALORATIVO.............................................................................112

18.3.2.c. (DES)LEGITIMAÇÃO DO DIREITO DE

JULGAR COM LEGITIMAÇÃO DO PROCESSO.....................................................114

18.3.3. A CONFORMAÇÃO DAS REGRAS PROCESSUAIS AOS

VALORES CONSTITUCIONAIS................................................................................114

18.3.4. (RE)PENSANDO A EPISTEMOLOGIA DO PROCESSO

PENAL..........................................................................................................................116

CONCLUSÃO..............................................................................................................118

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................121

Page 12: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

12

Introdução – Para uma Filosofia do Direito Penal

“Se onde está o homem aí está o Direito, não é menos

certo que onde está o Direito se põe sempre o homem com a sua

inquietação filosófica, atraído pelo propósito de perquirir o

fundamento das expressões permanentes de sua vida ou de sua

convivência.” 1

Não resta dúvida quanto à existência de inquietações filosóficas inerentes

ao Direito, mormente no que concerne à perquirição de seus fundamentos, seu conceito,

sua vigência, sua eficácia.

O problema está na existência ou não de uma Filosofia do Direito, ou

seja, será que podemos considerar Filosofia este estudo concernente às perquirições

supra aludidas? Miguel Reale nos responde:

“Trata-se, a meu ver, de um pseudoproblema,

porquanto a Filosofia do Direito é a Filosofia mesma quando seu

objeto é a experiência do Direito, por sua validade universal, como se

dá, também, com a Filosofia da Arte, da Linguagem etc.” 2

Verifica-se, desta forma, que o Direito, enquanto Ciência Cultural é

objeto de experiências e indagações, porquanto não podemos negar a natureza filosófica

de tais investigações apenas por se tratar de um dos muitos ramos do saber científico.

O mesmo ocorre com cada uma das áreas de afetação jurídica, sobretudo

o Direito Penal cuja tensão entre valores e suas implicações, o que será melhor

abordado mais a frente, além de sua vasta realização empiricamente observável no curso

da História da cultura Humana, fazem inerente que sobre ele recaia o pensamento

filosófico.

No entanto, cabe, neste momento, volver nosso foco para a Filosofia do

Direito, para após nos debruçarmos sobre o interesse filosófico penal.

Assim é que nunca se olvidou na História, onde houvesse pensamento

filosófico, das indagações sobre uma realidade social como é o Direito.

Na linha deste pensamento, Miguel Reale vislumbra, anteriormente a

Kant, a existência de uma Filosofia do Direito que termina por chamá-la Filosofia

Jurídica implícita, período que, segundo o jusfilósofo brasileiro remonta aos pré-

socráticos. Por outro lado, encontra uma Filosofia Jurídica explícita, a qual “...cuida de

1 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 285/286.

2 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 288.

Page 13: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

13

estabelecer as fronteiras de seu objeto próprio nos domínios do discurso filosófico”3 na

época em que se deu a terceira fundação4 da Ciência Jurídica ocidental, nos séculos

XVIII e XIX.

Assente a existência de uma Filosofia do Direito, enquanto disciplina

autônoma, o problema se converte para a temática a ser estudada.

Há diversas concepções empiricistas, reduzindo a Filosofia do Direito a

modelos hermenêuticos e normativos concebidos em função do ordenamento jurídico,

tal como logicamente se apresenta, ou, sua variação como “Teoria da linguagem

jurídica” de Norberto Bobbio.

Outras correntes há que assentam no fato o horizonte da normatividade

jurídica. Não se confundem, por óbvio com a teoria da normatividade pura, gravitando

em função da norma fundamental, como é o pensamento de Hans Kelsen na teoria pura

do Direito.

Fato é que falta a estas concepções a investigação do elemento

axiológico. Nas palavras de Miguel Reale:

“Assim é que vemos o espectro das opiniões alargar-se,

a partir de disposições de aberto negativismo, que convertem a

Filosofia do Direito em simples “visão unitária” da Ciência Jurídica

mesma (o que, a rigor, não tem sentido) ou no exame de sua

metodologia, ou, então, como é mais freqüente, em mera Teoria Geral

do Direito, de caráter puramente empírico, isto é, como conjunto

sistemático dos modelos hermenêuticos e normativos concebidos em

função do ordenamento jurídico, tal como este logicamente se

apresenta, sem qualquer indagação sobre seus fundamentos

axiológicos, ou sobre a natureza da experiência jurídica como algo de

distinto do corpo das regras jurídicas positivas.”5

Desta forma, à luz da crítica formulada às visões avalorativas e

reducionistas, o citado filósofo define o objeto da Filosofia do Direito como sendo o

3 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 286.

4 Para o referido jusfilósofo, os romanos constituem pela primeira vez o Direito como Ciência, com a

esquematização predeterminada e institucional das classes de comportamento possíveis; no século XIV

uma nova consciência jurídica se funda com o estudo sistemático de uma ordem normativa autônoma pela

chamada “Jurisprudência Culta”; e, por fim, a terceira fundação ocorre com a elaboração do Código Civil

de Napoleão, com contribuições da Escola exegética e da Escola Histórica. 5 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 289.

Page 14: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

14

“estudo crítico-sistemático dos pressupostos lógicos, axiológicos e históricos da

experiência jurídica”6.

Em que pese a posição pessoal do citado jusfilósofo, não resta dúvida,

como se verá durante o desenvolvimento deste estudo, que a posição avalorativa será

objeto de duras críticas.

Diversas são as posições dos jusfilósofos sobre quantas são as partes

fundamentais da Filosofia do Direito e quais seus conteúdos7, todavia, o que se buscará

neste estudo é traçar uma visão filosófica do Direito Penal, sobretudo como resposta a

duas indagações: Qual o objeto cognoscitivo e o ser cognoscente do Direito Penal?

Quais os valores que norteiam o Direito Penal?

O pensamento filosófico do Direito Penal transita entre o valor da

liberdade humana e o do poder punitivo, é a tensão sempre presente nos modelos

punitivos.

Assim é que deve ser assentado neste momento que o sistema punitivo

estatal se baseia em três pontos fundamentais, a saber: o bem jurídico protegido, a pena,

e o processo, porquanto, representam na esfera da ciência penal os institutos

correspondentes na esfera política aos direitos estatais de proibir, punir e julgar,

respectivamente. Todos os questionamentos filosóficos sobre o Direito Penal devem

dizer respeito a estes temas.

A previsão da conduta criminosa punível, o Tatbestand, não é legiferado

aleatoriamente, tem invariavelmente como objeto a proteção a um bem jurídico. Assim,

ao tutelar penalmente um bem jurídico, espécie de bem cultural como se verá no

decorrer deste estudo, o legislador levará em consideração uma ordem de valores.

A pena, sanção própria do Direito Penal, deve ser prevista pelo

legislador igualmente conforme sua ordem de valores, porquanto a finalidade da pena

será a própria finalidade do Direito Penal em si.

6 Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 290.

7 Miguel Reale expõe a divisão tripartida de Giorgio Del Vecchio: Gnoseologia Jurídica – o

conhecimento do Direito; Deontologia Jurídica – o estudo dos deveres; Fenomenologia Jurídica – o

estudo do Direito como fenômeno ou fato social. Em seguida expõe a divisão de Rudolf Stammler em

duas partes principais e três complementares, sendo os principais: o conceito de Direito e a idéia de

Direito, por fim, os três complementares são: a Origem do Direito, Técnica Jurídica e a Prática do

Direito. Já o próprio Miguel Reale encontra quatro partes: a Ontognoseologia Jurídica – parte geral da

Filosofia do Direito destinada a determinar em que consiste a experiência jurídica, indagando de suas

estruturas objetivas, bem como saber como tais estruturas são pensadas; e a parte Especial subdividida

em: Epistemologia Jurídica – dedicada ao problema da vigência e dos valores lógicos do Direito;

Deontologia Jurídica – dedicada ao problema dos fundamentos ou valores éticos do Direito; Culturologia

Jurídica – dedicada ao problema da eficácia social do Direito. (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª

ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 305).

Page 15: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

15

O processo penal encerra em si toda a relação jurídica que permitirá ao

Estado reconhecer ou não prática de um crime e a necessidade de imposição de sanção

em razão deste fato. Porém, a forma como o Estado-Juiz alcançará o resultado, ou seja,

a conferência de direitos ao cidadão, em sua defesa, e ao Estado, para sancionar ou não

o infrator, dependerá, outrossim, da ordem de valores que orienta o legislador.

O Direito Penal é realizado nos moldes em que o legislador o formata? A

resposta a esta pergunta não é objeto deste estudo, uma vez que aqui não se ocupará de

verificar a realizabilidade do sistema punitivo ideal. De outro lado, se perquirirá qual é

o sistema punitivo institucionalizado pelo legislador.

Porquanto, o verdadeiro objeto deste estudo é a indagação filosófica

sobre o exercício do poder político que delineia o sistema punitivo por meio da

legislação que constitui o sistema penal.

Assim é que a primeira parte se ocupará de traçar um estudo crítico da

doutrina juspositivista com o objetivo de buscar o objeto do conhecimento do Sistema

Penal, bem como a atividade do ser que o conhece, a qual chamaremos de

ontognoseologia.

Por fim, na segunda parte teremos o cuidado de perquirir os valores que

norteiam o Direito Penal, sem perder de vista uma teoria geral dos valores, pois que

seus elementos, sua ordem, suas características e as teorias que perseguem seu conceito

são vitais para a compreensão setorizada que se fará nesta mesma parte e que diz

respeito a um breve apanhado histórico das concepções axiológicas do Direito Penal,

tendo por base seus três elementos básicos constituidores.

Page 16: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

16

1ª Parte – Ontognoseologia – Na busca do ser cognoscente e do objeto cognoscível

do Sistema Penal

1. Introdução

A vertiginosa escalada de violência nos centros urbanos traz à discussão

as formas para eliminá-la, diminuí-la, ou, ao menos, obstar seu crescimento.

É muito comum buscar a solução para estes males sociais no

ordenamento jurídico penal, assim entendido o conjunto de normas que regulamentam o

Direito Penal, o Direito Processual Penal e os órgãos administrativos de segurança

pública, mormente a polícia.

Aliado isto ao voraz interesse da opinião pública de infligir punição aos

criminosos, incentivada pela mídia com mensagens subliminares e até ostensivas (como

é o caso de programas televisivos em que a população toma conhecimento de um caso

particular e é chamada a delatar o autor de um crime), o aumento do número de normas

penais, sobretudo casuísticas, é inegável8. Sobre este aspecto do Direito Penal já vem

nossos juristas se opondo:

“Em grave equívoco incorrem, freqüentemente, a

opinião pública, os responsáveis pela Administração e o próprio

legislador, quando supõem que, com a edição de novas leis penais,

mais abrangentes ou mais severas, será possível resolver-se o

problema da criminalidade crescente. Essa concepção do direito penal

é falsa porque o toma como uma espécie de panacéia que logo se

revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da

estatística criminal, apesar do delírio legiferante dos nossos dias”9

No entanto, não se pode olvidar a influência de tendências

descriminalizadoras e despenalizantes, que, outrossim, se fazem presentes no sistema

penal brasileiro com a produção de normas tendentes a trazer para o nosso ordenamento

novos institutos e experiências vividas em outros países, inserindo-os sem maiores

investigações sobre as peculiaridades de suas aplicações práticas10

.

Todas as exemplificações acima, por motivos absolutamente diferentes,

seja, respectivamente, por interesse preventivista, retributivista ou minimalista, que não

8 A este respeito vide artigo de nossa autoria:

9 Francisco de Assis Toledo, Princípios Básicos de Direito Penal, 5ª ed., 10ª tiragem, Saraiva, São Paulo,

1994, pág. 5. 10

Podemos tomar como exemplo a transação penal introduzida no ordenamento brasileiro pela Lei nº

9.009 de 1995, cuja origem se encontra no Plea Bargaining norte americano.

Page 17: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

17

são os únicos, se trata de um rol exemplificativo, incham o ordenamento jurídico penal

de forma a torná-lo incoerente sob o ponto de vista da justificação das normas.

É este o objetivo do presente trabalho, identificar axiologicamente o

fundamento das normas penais para encontrar e apontar as incoerências valorativas do

sistema penal.

O trabalho de natureza filosófica assim se configura:

“A Filosofia busca, por conseguinte, atingir respostas de

valor universal, não redutíveis a contingências de espaço e de tempo,

porque relativa à essência mesma dos problemas. É isto que distingue,

de certa forma, o saber científico do saber filosófico, o que não

significa, é claro, que a Filosofia se desenvolva com abstração dos

dados da experiência, que ela, ao contrário, necessariamente envolve e

compreende...” 11

Na busca dos fundamentos se procedeu à investigação dos motivos

declarados diretamente pelo legislador ao propor cada projeto de lei penal ao

parlamento brasileiro, assim como da exposição de motivos de cada codificação de

natureza penal.

Importa frisar que, ao buscar o valor da norma e questionar a coerência

do sistema penal, especificamente sob o aspecto positivo, ou seja, o Direito Penal

positivado, estarão sendo utilizados conceitos da teoria juspositivista, segundo a visão

de Norberto Bobbio12

, para, em seguida, romper com a sua ideologia.

Tomamos, neste sentido a definição de crítica filosófica de Miguel Reale:

“Quando fazemos crítica filosófica, em suma, o que

procuramos conseguir são as condições primeiras, sem as quais a

realidade não teria significação ou validade. Fazer crítica, portanto, é

descer à raiz condicionante do problema, para atingir o plano ou

estrato do qual emana a explicação possível. Criticar é penetrar na

essência de algo, nos seus antecedentes de existência (pressupostos

11

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 66. 12

Diversos são os autores e as teorias juspositivistas, no entanto Norberto Bobbio foi escolhido por fazer

referência aos diversos autores e às várias teorias, expondo didaticamente os aspectos históricos e os

principais pontos da teoria juspositivista em várias de suas obras, mormente em O Positivismo Jurídico:

Lições de Filosofia do Direito.

Desta forma, o que se fará é uma crítica ao juspositivismo, sobretudo na visão de Norberto Bobbio, sem,

todavia, postar-se distante dos demais teóricos desta corrente filosófica.

Page 18: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

18

ônticos) ou então nos seus precedentes lógicos de compreensão

(pressupostos gnoseológicos).” 13

Por estas razões, esta primeira parte se ocupará de esclarecer os conceitos

utilizados, tomados da teoria juspositivista, e realizar uma ruptura crítica com esta teoria

para proceder à investigação, de natureza filosófica, da coerência dos fundamentos da

legislação, bem como a identificação das antinomias ideológicas do Ordenamento

Jurídico Penal.

2. O direito positivado e o juspositivismo

Cumpre, ab initio, deixar clara a existência de relação entre o direito

positivado e o juspositivismo.

É inegável a ligação entre o direito positivado e o juspositivismo, o que

será abordado mais detalhadamente ao final deste parágrafo, todavia, a idéia de

positivação não nasceu com a ideologia juspositivista, ao contrário, a produção

legislativa é o fato histórico que dá origem ao pensamento juspositivista.

A doutrina juspositivista sequer é anterior aos embates entre direito

positivo e direito natural nos pensamentos clássico e medieval14

, mesmo porque o

juspositivismo encontra seu nascedouro no surgimento do Estado moderno com a crítica

à concepção racionalista de orientação filosófica jusnaturalista.

O que não significa que o impulso legislativo não tenha encontrado

amparo na concepção filosófica iluminista jusnaturalista do século XVIII, como se verá

a seguir.

2.1. Origem da moderna positivação do Direito

13

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 67. 14

Segundo Norberto Bobbio em seu livro O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, Ícone,

São Paulo, 1995, pág. 16, já no pensamento de Platão e Aristóteles se encontrava a distinção conceitual

entre direito natural e direito positivo. Malgrado aduzisse a lex aeterna e a lex divina, Santo Tomás

também distinguia o direito natural (lex naturalis) e a o direito positivo (lex humana). O autor aponta seis

critérios de distinção entre o direito natural e o direito positivo: 1º) a universalidade do direito natural em

contraposição à particularidade do direito positivo; 2º) a imutabilidade do direito natural em

contraposição à mutabilidade do direito positivo; 3º) o direito natural é posto por algo (a natureza ou

Deus), enquanto o direito positivo é posto pelos homens; 4º) o direito natural é conhecido através da

nossa razão, enquanto o direito positivo é conhecido através de uma declaração de vontade alheia; 5º) os

comportamentos regulados pelo direito natural são bons ou maus em si mesmos, enquanto os

comportamentos regulados pelo direito positivo só ganham relevância porque foram disciplinados pelo

direito positivo; 6º) o direito natural estabelece aquilo que é bom, enquanto o direito positivo estabelece

aquilo que é útil.

Page 19: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

19

Quanto à expressão “moderna positivação do Direito”, devemos entender

a produção legislativa que se seguiu ao surgimento dos Estados modernos, máxime os

movimentos codificadores dos séculos XVIII e XIX.

No que concerne à justificativa filosófica da positivação do direito do

Estado, tanto as concepções de caráter absolutista, como as de natureza liberal, levaram

à estatização.

Para Thomas Hobbes, em sua concepção contratualista de formação do

Estado, no estado de natureza o homem é levado a respeitar as leis (naturais,

evidentemente) em consciência, isto é, sem imposição externa. Ao sair do estado de

natureza para o estado civil por meio do contrato social, os súditos conferem toda força

ao soberano, que passa a monopolizar o poder coercitivo de observância das leis por ele

próprio impostas, visto que o poder absoluto engloba o poder de regulamentar as

relações sociais: o poder normativo.

As concepções liberais também seguem a linha da positivação do direito

do Estado. Veja-se, por exemplo, que Montesquieu no Espírito das Leis traça a

separação entre a tarefa do Estado deixada ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo,

restando àquele julgar de acordo com o texto preciso da lei, tarefa específica deste.

Especificamente no campo penal, Cesare Beccaria, enuncia a máxima

nullum crimen, nulla poena sine lege e nega ao Poder Judiciário mais do que a

possibilidade de normatizar, mas em sua tarefa sequer está contida a possibilidade de

interpretar as leis:

“Nem mesmo a autoridade de interpretar as leis penais

pode caber aos juízes criminais, pela própria razão de não serem eles

legisladores.”15

Factualmente, o movimento de codificação na França revolucionária, de

inspiração, portanto, claramente iluminista, demonstra que o fundamento do direito

positivo estatal que se colocava à época tinha natureza claramente jusnaturalista.

Ilustra bem esta constatação o discurso de Cambacérès, jurista e político

que apresentou três projetos de código civil, proferido em 4 de junho de 1793 ao

apresentar um projeto de lei seu pela equiparação dos filhos naturais e legítimos:

15

Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, Tradução: Lucia Guidicini e Alessandro Berti Contessa, 2ª

ed., 6ª tiragem, Martins Fontes, São Paulo, 2002, pág. 45.

Page 20: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

20

“Existe uma lei superior a todas as outras, uma lei

eterna, inalterável, própria a todos os povos, conveniente a todos os

climas: a lei da natureza.

Eis aqui o código das nações, que os séculos não

puderam alterar, nem os comentadores desfigurar. É a ele apenas que

é necessário consultar.”16

Não resta dúvida que a inspiração iluminista retratada neste discurso

fundamenta o direito a ser positivado nas leis naturais, qual seja, é a idéia de positivação

do direito natural.

Resta claro, portanto, que o movimento moderno positivador do direito

não encontra origem na doutrina juspositivista.

2.2. Origem do Juspositivismo moderno

Malgrado fosse jusnaturalista, podemos encontrar em Thomas Hobbes,

no Diálogo entre um filósofo e um estudioso do direito comum da Inglaterra17

, o

embrião do juspositivismo ao negar legitimidade à common law por ser obra da razão

dos juízes, em confronto com sua concepção do direito como obra da vontade do

soberano, ao qual é atribuído com exclusividade o poder legislativo.

No entanto, foi com a crítica à filosofia jusnaturalista que o

juspositivismo encontrou campo fértil para seu nascimento enquanto doutrina.

A “Escola histórica do direito” nascida na Alemanha com Gustavo Hugo

com a obra Filosofia do direito positivo, teve em Savigny seu maior expoente. O

historicismo se caracteriza, fundamentalmente, pela oposição à filosofia iluminista.

Porquanto, ao passo que o juspositivismo preconizava a existência de caracteres

essenciais do Homem, o historicismo encontrava a variedade da história em virtude da

variedade do próprio homem; enquanto a interpretação da história pelos iluministas é

estritamente racional, o historicismo encontra irracionalidade na história exatamente em

razão de o homem não agir com a razão, e sim com a emoção, a paixão, o impulso;

enquanto os iluministas exaltavam as “luzes” da Idade Racionalista, os historicistas

exaltavam o passado, interessando-se pelas origens da civilização.

16

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, Ícone, São Paulo, 1995, pág.

69. 17

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 35.

Page 21: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

21

No entanto, Savigny não encontrava naquela época as condições

históricas para a codificação, pugnando que a única forma de reverter o que acreditava

ser a decadência jurídica alemã era o desenvolvimento de uma ciência do direito

uniforme em seu país. Contrastando, claramente com os pontos fundamentais do

juspositivismo, que a seguir melhor abordaremos.

Conquanto o movimento codificador francês, como visto, tenha tido

origem no pensamento racionalista, de caráter jusnaturalista, a escola da exegese

francesa, que se seguiu à Codificação Napoleônica, trouxe em si elementos que,

posteriormente, constituíram pontos do pensamento juspositivista.

Segundo a escola da exegese, que não nega a existência do direito natural

– aí um elemento diferenciador do juspositivismo –, este só tem aplicação quando

positivado e o juiz tem a possibilidade, portanto, de criar regra, haja vista a onipotência

do legislador, em cuja vontade deve o juiz se basear para interpretar a lei.

O utilitarismo inglês, exponenciado por Bentham, malgrado de

inspiração iluminista, dada a convicção da possibilidade de se estabelecer uma ética

objetiva, difere do jusnaturalismo por não localizar esta ética na natureza do homem,

mas na verificação empírica do fato de que cada homem busca a própria utilidade.

Aproxima-se do juspositivismo por ter criticado a concepção inglesa da common law,

preconizando uma codificação completa e universal (neste último ponto aproxima-se

das concepções de direito natural).

2.3. Juspositivismo: método, teoria e ideologia

Neste contexto histórico, com o advento das codificações, com as

ideologias contrapostas ao jusnaturalismo, o juspositivismo se desenvolveu no século

XIX e XX, sendo tratado por diversos autores.

Norberto Bobbio18

identifica, entre as várias teorias juspositivistas, sete

pontos fundamentais do positivismo jurídico, que assim classificou:

a) quanto ao modo de abordar:

1º ponto) para o positivista jurídico o direito deve ser considerado

como um fato, não como um valor.

O jurista desta escola estuda o direito assim como o cientista estuda a

realidade da natureza, observando os fatos e se abstendo de formular juízos de valor.

18

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 131.

Page 22: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

22

Deste comportamento nasce a teoria da validade do direito ou teoria do

formalismo jurídico, na qual a validade do direito está vinculada à sua estrutura formal,

independente do seu conteúdo.

Uma norma é valida conforme ela faça parte de um ordenamento jurídico

real, ao passo que o valor é a qualidade que se diz da norma jurídica adequada ao direito

ideal, qual seja, como ele deve ser de acordo com valores fundamentais nos quais ele

deve se inspirar.

Validade e valor, portanto, restam diferenciados, interessando ao jurista

juspositivista apenas a validade.

b) quanto à teoria do direito:

2º ponto) diz respeito à teoria da coatividade do direito.

De acordo com a teoria clássica da coação, esta caracteriza o direito, na

visão de Emmanuel Kant exposta na Metafísica dos Costumes, e o difere da moral, visto

que esta não é coercitiva.

Na concepção moderna da teoria da coação, preconiza Hans Kelsen, o

direito não se faz valer pela coação, mas é um meio de regulamentar a coação. Ademais,

o destinatário da norma se desloca do cidadão para os órgãos judiciários, pois as normas

jurídicas regulam o modo pelo qual os juízes irão fazer valer o uso da força do Estado

em relação aos cidadãos. O direito estabelece quem, quando, como e quanto deve o

Estado usar a força.

3º ponto) diz respeito às fontes do direito.

A lei é a fonte do direito prevalente sobre todas as outras de acordo com

a doutrina juspositivista. Tal afirmação só é possível diante de duas condições:

ordenamento complexo, caso contrário, ou seja, se o ordenamento for simples, não

haverá prevalência de fonte, pois seria única; ordenamento hierarquicamente

estruturado, pois se as fontes estiverem no plano paritário não haverá prevalência de

fonte.

O detentor do poder produz fontes de qualificação jurídica, caso produza

diretamente as regras, ou fontes de conhecimento jurídico, quando o poder supremo

Page 23: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

23

reconhece ou recepciona uma regra decorrente de um fato social precedente ao Estado19

,

ou quando delega poder a outro órgão diverso do portador da soberania para estabelecer

normas jurídicas para certas matérias e dentro de certos limites. A fonte de qualificação

é a lei.

O costume só é reconhecido como fonte de direito secundum legem ou,

no máximo, praeter legem, o mesmo ocorrendo com o juízo. Já à eqüidade e à natureza

das coisas não se confere o status de fontes, malgrado grande parte das legislações

confiram ao juiz a possibilidade de decidir com base nelas, mas neste caso a fonte,

segundo o citado autor é o próprio juízo.

4º ponto) diz respeito à teoria imperativista da norma jurídica.

Distinguem-se duas fases do imperativismo jurídico: o imperativismo

ingênuo e o imperativismo crítico. O primeiro considera o direito como um comando

dirigido pelo soberano aos cidadãos, enquanto o segundo precisa os caracteres do

imperativo jurídico.

Kant, em Fundamentação à Metafísica dos Costumes, formula a

distinção entre imperativo categórico e imperativo hipotético. O primeiro diz respeito

aos imperativos morais, que são categóricos porque comandam uma ação que é boa em

si mesma, sem o fim que ela possa atingir. O imperativo hipotético, por sua vez,

prescreve uma ação que é boa condicionadamente ao fim que pretende alcançar. As

normas jurídicas são um imperativo hipotético, pois o cidadão só deve atuar de acordo

com a prescrição, caso pretenda alcançar determinado objetivo.

Kelsen, por sua vez, em Teoria Geral das Normas, critica a formulação

do imperativo e o reconstrói. Sua concepção é que o imperativo é hipotético, mas a

norma tem duas formulações, uma dirigida aos cidadãos, outra dirigida aos juízes. Na

primeira, a qual chama de norma secundária, se o cidadão quer algo (ou evitar algo),

deve realizar uma ação. Na segunda formulação, a qual chama de norma principal,

dirigida ao juiz, se o cidadão pratica determinada ação, o juiz deve realizar o

consectário.

5º ponto) diz respeito à teoria do ordenamento jurídico.

19

Reconhece quando o portador do poder soberano confere caráter de juridicidade a posteriori a um fato

social precedente e recepciona quando o acolhe este fato no ordenamento sem contribuir para sua

formação.

Page 24: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

24

O Ordenamento Jurídico é um conjunto de normas20

. Esta genérica

definição não permite uma melhor compreensão, sem o conhecimento da formulação da

teoria do ordenamento jurídico, formulada por Norberto Bobbio, que veremos

posteriormente com maiores detalhes, mas que se pode adiantar basear-se em três

caracteres fundamentais: a unidade, a coerência e a completude.

Para o autor Italiano, a Teoria do Ordenamento Jurídico é a contribuição

original do positivismo jurídico e é através dela que se chega ao coração desta corrente

jurídica21

. Particularmente, para o nosso estudo, a Teoria do Ordenamento Jurídico

ganha especial relevo, porquanto trataremos dos fundamentos de sua formação.

Entende-se por unidade, na concepção jusnaturalista, como unidade

material, relativa ao conteúdo das normas, ao passo que, para o juspositivismo, a

unidade de que trata o ordenamento é formal, diz respeito ao modo pelo qual as normas

são postas.

Para Kelsen22

, o que caracteriza a unidade do ordenamento não é a

origem única da fonte, posto que compreender a unidade de um ordenamento simples é

fácil. Porém, a unidade de um ordenamento complexo está na norma fundamental, que

se põe no ápice do sistema23

e, segundo a qual, os órgãos constitucionais têm o poder de

fixar normas válidas dirigidas a todos aqueles que tem o dever de obedecê-las.

No que concerne à coerência do ordenamento jurídico, entende Norberto

Bobbio24

que seja necessário que os entes que constituem um ordenamento estejam em

relacionamento de coerência com o todo e entre si.

Para explicar o que entende por coerência, Norberto Bobbio esclarece, ab

initio, o que Kelsen entende por sistema, classificando-o como sistema estático e

sistema dinâmico.

No primeiro sistema, todas as normas derivam de uma norma originária,

uma regra fundamental. Este sistema, portanto, que encontra relação entre as normas no

conteúdo é dedutivo.

20

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos,

10ª edição, UnB, Brasília, 1999, pág. 31. 21

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 197. 22

Citado por Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 59. 23

Por diversas vezes Norberto Bobbio trata em suas obras, mormente a já citada Teoria do Ordenamento

Jurídico, de ordenamento como sistema, como sinônimos que seriam na sua visão. Esta questão que diz

respeito ao significado do termo sistema será melhor discutida no item 6 desta primeira parte deste

estudo. 24

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 71.

Page 25: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

25

No segundo sistema, as normas derivam umas das outras através das

sucessivas delegações de poder, portanto, estão ligadas não pelo conteúdo, mas pela

autoridade. A relação entre as normas deste sistema não é, destarte, material, e sim

formal.

Norberto Bobbio25

identifica, no uso histórico da filosofia do Direito,

três significados para o termo sistema:

a) sistema dedutivo: um ordenamento é um sistema enquanto todas as

normas jurídicas daquele ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais,

definição própria do Direito Natural;

b) sistema indutivo: não se trata da tarefa de deduzir, mas de classificar o

sistema cientificamente, partindo do próprio conjunto de normas para a construção,

empiricamente, de conceitos gerais, próprio da escola pandectista alemã (Savigny);

c) sistema compatível: um ordenamento deve ter somente normas

compatíveis entre si para que seja considerado sistema, daí resulta que se duas normas

forem incompatíveis entre si, uma ou duas delas deverá deixar de existir para que o

sistema continue existindo; para Norberto Bobbio26

, este sistema se diferencia do

dedutivo porque neste a contradição implica na ruína do sistema como um todo,

enquanto no sistema que propõe, ao qual denomina jurídico, apenas a norma

incompatível, ou as duas, sejam excluídas27

.

Neste exercício de exclusão de antinomias se mantém a coerência do

sistema assim concebido.

No que concerne à completude, identifica-se um ordenamento completo

quando o juiz pode encontrar no próprio ordenamento uma norma para regular qualquer

caso, entendendo por dogma da completude o princípio segundo o qual o ordenamento

fornece ao juiz, em qualquer caso, uma solução sem recorrer à eqüidade.

De acordo com a teoria do espaço jurídico vazio, um ordenamento seria

sempre completo e aquilo que não fosse regulamentado não faria parte do mundo

jurídico, seria o espaço onde falta o próprio Direito. Para a teoria da norma geral

exclusiva, ao contrário, entende que o Direito nunca falta, porquanto uma norma que

regulamenta um fato regulamenta automaticamente todos os outros, já que uma norma

25

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 77. 26

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 80. 27

Não é demais identificar o claro interesse do filósofo italiano em desmerecer o sistema dedutivo,

quando, em verdade, para o sistema próprio do Direito Natural a norma incompatível com o sistema, ou

seja, em confronto com o valor norteador não fará ruir o sistema, mas sim a própria norma.

Page 26: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

26

que proíbe fumar, permite, conseqüentemente, todos os outros comportamentos não

compreendidos na norma.

Norberto Bobbio, entretanto, não comunga desta opinião, senão vejamos:

“Entre os casos inclusos expressamente e os casos

exclusos há, em cada ordenamento, uma zona incerta de casos não-

regulamentados mas potencialmente colocáveis na esfera de influência

dos casos expressamente regulamentados.” 28

Esses casos não regulamentados são evidentemente as lacunas próprias,

visto que para o filósofo italiano29

podemos falar de dois tipos de lacuna: a ideológica

ou imprópria e a real ou própria. A primeira resulta da comparação do sistema

existente com o sistema ideal, enquanto a segunda é a que ocorre dentro do próprio

sistema. A primeira só pode ser eliminada através da formulação de novas normas, ao

passo que a segunda pode ser completada pela lei vigente (pela auto-integração ou pela

heterointegração)30

. A primeira é completável pelo legislador, a segunda pelo intérprete.

Para o filósofo italiano, somente a lacuna própria interessa ao jurista.

6º ponto) diz respeito ao problema da interpretação do direito.

O juspositivismo concebe a atividade relativa ao direito em dois

momentos: o criativo, tarefa do legislador na criação da legislação; o cognoscitivo,

manifestação encontrada na jurisprudência (ou ciência jurídica31

).

A jurisprudência para o juspositivismo, ao contrário das correntes

filosóficas antipositivistas, tem uma tarefa meramente declarativa ou reprodutiva de um

direito preexistente, isto é, sua tarefa é explicitar por meios puramente lógico-racionais

o conteúdo das normas dadas anteriormente por um legislador.

O juspositivismo encontra dois meios hermenêuticos consistentes na

interpretação declarativa e na interpretação integrativa. O primeiro diz respeito à

interpretação textual. O segundo diz respeito à interpretação extratextual (nunca

antitextual), e deve ser buscada dentro do próprio ordenamento, podendo ser

28

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 146. 29

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 143. 30

Na heterointegração se recorre a ordenamentos diversos ou a fontes diversas daquela dominante (se

recorre normalmente ao costume, tendo em vista ser a lei a fonte dominante nos ordenamentos); e auto-

integração é o recurso à mesma fonte dominante, pela analogia legis e pela analogia juris, que melhor se

exporá no item “e” deste 5º ponto da primeira parte (Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico,

idem , pág. 146/147). 31

Termo do qual Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág.

211, se utiliza reconhecendo o comprometimento do seu emprego.

Page 27: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

27

interpretação extensiva, analogia legis e analogia juris. Na interpretação extensiva se

estende o sentido do texto, na analogia legis se busca em norma semelhante a solução

para um fato não regulado (sendo impedido para normas penais incriminadoras), na

analogia juris se recorre aos princípios gerais do ordenamento jurídico.

A concepção juspositivista da ciência jurídica, conhecida como

“formalismo científico” e que recebeu o nome de dogmática do direito, é uma ciência

construtiva e dedutiva. Consiste na elaboração de conceitos fundamentais extraídos da

base do próprio ordenamento jurídico, não sujeitos à revisão ou discussão. Com base

nestes conceitos o jurista deve, por dedução lógica, extrair as normas que servem para

solução de todos os casos. Esta concepção se opõe ao realismo jurídico (movimento

antipositivista) que retira da realidade (fato sociológico) proposições empiricamente

verificáveis.

c) quanto à ideologia do direito:

7º ponto) diz respeito à teoria da obediência.

Para Norberto Bobbio32

teoria e ideologia diferem pelo fato de a primeira

ser a expressão de uma atitude cognoscitiva que o homem assume perante certa

realidade, enquanto a segunda é a expressão avaliativa que o homem assume face à

realidade. A teoria tem a finalidade de informar os outros acerca de tal realidade,

enquanto a ideologia pretende influir sobre tal realidade.

O juspositivismo, não obstante tenha se pretendido uma teoria, não

conseguiu seu intento, pois, ao querer o direito de certo modo, manifestou sua

avaliação, tornando-se, outrossim, uma ideologia.

Para o autor33

deve-se falar em positivismo ético ao se referir à ideologia

juspositivista. O positivismo ético apresenta uma versão extremista e uma versão

moderada.

O positivismo ético em sua versão extremista consiste em afirmar no

dever absoluto ou incondicional de obedecer à lei enquanto tal. O autor34

encontra

quatro justificações diferentes para a concepção da obediência absoluta à lei, no entanto,

apenas a quarta é peculiar do positivismo, visto que a primeira que denominou

concepção cética ou realista da justiça é encontrada no pensamento de Trasímaco, livro

32

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 223/224. 33

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 229. 34

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem , pág. 227.

Page 28: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

28

I da República de Platão, segundo a qual a justiça é a expressão da vontade do mais

forte; a segunda denominou concepção convencionalista da justiça, presente no

pensamento de Hobbes, segundo a qual justiça é o que os homens concordam em

considerar justiça; a terceira denominou concepção sagrada da autoridade, segundo a

qual o poder decorre de uma investidura sagrada; e a quarta, denominada concepção do

Estado ético, presente no pensamento de Gentile, baseado em Hegel, segundo a qual o

Estado é a manifestação de Deus na História, sendo portador da missão de realizar a

eticidade, que é a manifestação do espírito superior não só para o direito, como também

para a moral.

O positivismo ético em sua versão moderada afirma que o direito tem um

valor enquanto tal, mas não porque seja por si mesmo justo, mas porque é o meio

necessário para realizar um certo valor que é a ordem, que não é um valor supremo, daí

porque se um certo valor, num dado momento histórico, parecer superior à ordem, esta

pode ser rompida para realizar tal valor.

2.4. Relação entre o direito positivado e o juspositivismo

Verifica-se, estreme de dúvidas, que o juspositivismo e o direito

positivado não se confundem. Toda teoria aqui sumariamente exposta se baseia na

positivação do direito como pressuposto para compreensão de cada ponto fundamental,

daí porque a relação existente entre ambos está no fato de que a produção deste é

fundamento daquele.

2.5. O juspositivismo no direito penal e as Escolas penais35

Cabe, apenas à guisa de exposição da extensão da ideologia e do método

juspositivista, ressaltar a expressão do juspositivismo no direito penal.

Assim, resta impossível apresentar ao leitor, de forma sumária, a

existência de escolas penais, tal como as concebeu Enrico Ferri, juspositivista penal

italiano, completando-a com o que lecionam os modernos juristas penais.

Enrico Ferri36

designou “Escola Clássica” uma corrente científica nascida

com a clássica obra de Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, no século XVIII e

seguiu-se até o século XIX.

35

Malgrado existam diversas Escolas penais (Eclética, Terza Scuola, Neoclássicos, Moderna Alemã,

Técnico-Jurídica, Correcionalista, Defesa Social, ou outra classificação que se dê aos movimentos de

pensamento penal), enfocaremos apenas a “Escola Clássica” e a “Escola Positiva”.

Page 29: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

29

Esta corrente seguia uma orientação político-social que, como reação à

justiça penal medieval, expôs e estabeleceu a razão e os limites do direito de punir

estatal, opôs-se á ferocidade da pena e reivindicou garantias para o indivíduo, quer

durante o processo, quer na aplicação da lei punitiva37

.

A “Escola Clássica” como sistematização filosófico-jurídica foi inspirada

pela doutrina do direito natural, “que foi um dos confluentes ideais na Revolução

Francesa e valeu-se do método dedutivo, então imperante sem contraste nas ciências

morais e sociais”38

.

Para Ferri, a “Escola Clássica” bifurcou-se, de um lado com as obras dos

grandes criminalistas e traziam o estudo teórico da justiça penal, à luz das doutrinas

filosófico-jurídicas sem apego às legislações existentes, utilizadas apenas como

exemplos. Elencou Romagnosi, Filangieri, Mário Pagano, Pellegrino Rossi, Franceso

Carrara, Ellero, Pessina, Feuerbach e Bentham, entre outros como os grandes

criminalistas da “Escola Clássica”.

Por outro lado, esta mesma Escola apresentou uma corrente crítico-

forense, “destinada somente a ilustrar e a interpretar, com maior ou menor amplitude

sistemática de critérios, os códigos penais vigentes em alguns países”39

. Apresentou

Renazzi, Cremani, Paoletti, Nani, Alberici, Liberatore, Poggi, Niccolini, Armelini,

Roberti, Albertini, Giuliani, Mori, Puccioni, entre outros, como autores de obras com

estas características.

Ferri atribuiu ao glorioso período de pujança intelectual com reflexos

diretos na legislação e na justiça penal prática dos pensamentos da “Escola Clássica” “o

contínuo aumento da criminalidade e da recidiva, em evidente e quotidiano contraste

com a necessidade da defesa social contra a delinqüência”40

.

Para o jurista penal iltaliano, isto ocorreu por duas razões: uma, o

excesso da reação contra os abusos da justiça penal antes de Beccaria, tendo, no seu

ponto de vista, a reação ultrapassado a ação; duas, o método dedutivo ou de lógica

abstrata fez perder de vista o criminoso, que “é o protagonista vivo e presente”41

na

justiça penal.

36

Princípios de Direito Criminal – o criminoso e o crime, 1927, Traduzido por Luiz de Lemos D´Oliveira

em 1931, Russel, 2003, Campinas, pág. 45. 37

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 46/47. 38

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 46. 39

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 48. 40

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49. 41

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49.

Page 30: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

30

Esta situação prática, somada ao alargamento da aplicação do método

indutivo ou positivo, estendido das ciências físicas e naturais para as “morais e

sociais”42

, criou as condições para o desenvolvimento do juspositivismo entre os

juristas penais no final do século XIX, tendo se afirmado, assim, a “Escola Criminal

Positiva”.

Ferri expôs a grande e pontual diferença entre as duas Escolas: o método,

malgrado outras diferenças pudessem ser encontradas, evidentemente. Para a “Escola

Clássica” o método utilizado era o dedutivo ou de lógica abstrata e tinha por objeto o

“crime” como entidade jurídica, enquanto para a “Escola Positiva” o método utilizado

era o indutivo e de observação dos fatos, tendo como objeto o “delinqüente” como

pessoa.

Além de Enrico Ferri, foram expoentes da Scuola Positiva Italiana

Puglia, Majuo, De Luca, Florian, Vallardi, entre outros.

No campo político-social, a “Escola Positiva” afirmou a necessidade de

“restabelecer o equilíbrio entre os direitos do indivíduo e os do Estado”43

, chegando a

afirmar que “se a Idade Média tinha visto somente o delinqüente e a Escola Clássica

tão somente o homem, a realidade impunha ter em conta o homem delinqüente”44

. A

“Escola Positiva” ainda se opôs à pena como “remédio”45

eficaz contra o crime,

procurando e criando substitutivos penais que consistiam em recuperar ou educar o

delinqüente, ou seja, tratá-lo, visto que se tratava de um criminoso por característica

própria, tendo sua própria periculosidade.

Esta característica própria, ora buscada na biologia do indivíduo, ora no

ambiente social, gerou concepções diversas do positivismo criminal.

Uma corrente positivista de caráter antropológico, cujo maior expoente

era Cesare Lombroso, estudava o “Homem delinqüente”46

na sua vida e nos seus traços

anatômicos, classificando os delinqüentes conforme sua natural estrutura orgânica e

psicológica. Criou-se, assim, a antropologia criminal.

Ferri entendia que o crime não poderia ser estudado sem antes perquirir

suas causas, o que para ele reside em três fatores: individuais, físicos e sociais. Desta

forma, classificou os criminosos em criminoso nato, louco, habitual, ocasional e

42

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49. 43

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 52. 44

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 52/53. 45

Vale frisar a utilização da expressão remédio, pois esta era a busca da “Escola Positiva”, de um remédio

para o delinqüente, tratado como doente. 46

Título do mais famoso livro de Lombroso.

Page 31: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

31

passional. Com a realização de estudos estatísticos sobre a criminalidade na França, e

constando a existência de causas sociais da delinqüência, juntamente com Rafael

Garofalo, fez nascer a sociologia criminal.

Podemos afirmar que a “Escola Positiva” se subdividiu, conforme o

enfoque que prevalecia em uma corrente antropológica, outra sociológica, outra

jurídica, mas tendo em comum a utilização do método positivo de apreciação dos dados

empíricos e enfocando o deliqüente como objeto do estudo penal, e não o crime,

gerando, via de conseqüência, necessidades de aplicação preventiva do direito penal e

reeducadora.

Fato é que o positivismo criminal nega o pensamento filosófico,

acreditando apenas no método científico como essencial ao direito penal. Nas palavras

de Ferri:

“Mas o que importa salientar é sobretudo isto que a

escola criminal positiva não perfilha nem modela nenhum sistema

filosófico ou social, a começar pela “filosofia positiva” (Comte,

Spencer, Ardigó etc.), nem nenhuma doutrina biológica (Darwin,

Lamarck, Molleschott etc.)

Ela apareceu quando as doutrinas desses grandes

pensadores estavam em pleno apogeu e por isso, como todas as

ciências biológicas e sociais, não deixou de lhes sentir o reflexo. É

certo que desses sistemas filosóficos e doutrinas biológicas ne tudo

morreu e que contrariamente – além dos inumeráveis dados

particulares da biologia, psicologia, sociologia, agora tornados

patrimônio comum – permanece o seu princípio fundamental da

“evolução natural” contraposto ao imobilismo absolutista da

metafísica. Mas o fato decisivo é que a escola criminal positiva se

caracteriza essencialmente pelo método científico.” 47

Verifica-se, com clareza, que a “Escola Criminal Positiva” nega o

próprio positivismo enquanto sistema filosófico, abeberando-se apenas do seu método

como para criação e estudo do direito penal enquanto ciência.

Daí decorrem duas questões: ao direito penal sob o enfoque juspositivista

não resta o estudo filosófico; mesmo admitindo-se tal assertiva, os positivistas penais

47

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 51.

Page 32: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

32

foram se abeberar do método criado pelos filósofos positivistas, o que impõe, de toda

sorte a sua compreensão.

3. Ciência do Direito e Filosofia do Direito

Ao jurista, sob o enfoque juspositivista, resta apenas o estudo da validade

do direito, não se perquire seu valor.

Assim, nesta ótica, a investigação sobre o fundamento, a justificação do

direito é deixada exclusivamente à filosofia do direito.

Norberto Bobbio, ao tratar do positivismo jurídico, afirma, em relação à

filosofia do direito, o seguinte:

“A filosofia do direito pode, conseqüentemente, ser

definida como o estudo do direito do ponto de vista de um determinado

valor, com base no qual se julga o direito passado e se procura influir

no direito vigente.”48

A ciência do direito, neste prisma, se vale de definições fatuais,

avalorativas, ontológicas, já a filosofia do direito tem por objeto definições do direito

que são ideológicas, valorativas ou deontológicas.

Malgrado o valor varie de filósofo para filósofo, um ponto de extrema

relevância para nosso estudo é o fato de que as definições valorativas do direito se

caracterizam pelo fato de possuírem uma estrutura teleológica, sistemática do

ordenamento jurídico, em que as normas que o compõem devem alcançar determinado

valor, ou seja, as definições filosóficas procuram conferir coerência valorativa à

legislação, apresentando as bases do dever ser do ordenamento.

Enquanto orientação do dever ser, na busca de sistematização valorativa

do ordenamento, a filosofia do direito incide sobre o fundamento da norma, porquanto a

atividade legislativa deve ser orientada deontologicamente, ao passo que a atividade da

ciência do direito por incidir sobre o ordenamento jurídico já posto, incide sobre a

norma como é, portanto, após a atividade legislativa. Na visão de Miguel Reale, a

filosofia é situada no problema dos pressupostos:

“A Filosofia é, assim, conhecimento que converte em

problema os pressupostos das ciências...”49

48

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 138. 49

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 12.

Page 33: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

33

Cronologicamente as investigações filosóficas têm aplicação ao

ordenamento em momento anterior à sua formação, enquanto a ciência do direito é

posterior a este momento. Isso não significa que a filosofia do direito não possa (na

verdade deve) pesquisar o ordenamento existente para reconstruí-lo sob a égide do valor

eleito, em outras palavras, que não se faça incidir no momento posterior à constituição

do ordenamento. Vale observar a lição de Miguel Reale:

“Isso porque o cientista do Direito já pressupõe a

vigência de regras jurídicas. O jurista, enquanto jurista, não pode dar

uma definição do Direito, porque, no instante em que o faz, já se

coloca em momento logicamente anterior à sua própria ciência.

Há, portanto, um objeto que as ciências não estudam, e

são as próprias ciências postas como objeto.

A Filosofia apresenta-se, pois, como o exame crítico das

condições de certeza das próprias ciências: das ciências, em sua

universalidade, como produtos do espírito, o que constitui a precípua

razão de ser da Gnoseologia, ou, mais genericamente, da

Ontognoseologia...” 50

O que se pretende é deixar claro que, ainda que se utilize a teoria

juspositivista extremada, não haverá que se falar em inexistência de campo de

incidência filosófica, o que ocorrerá na busca do conhecimento dos pressupostos do

direito penal. Malgrado neste estudo se dará prevalência ao fundamento da norma como

seu elemento constituidor, não se descurará da identificação do valor da norma já posta,

ainda que na teoria juspositivista, como se verá a seguir.

4. Lacunas valorativas na teoria juspositivista

A despeito da completa desvinculação do juspositivismo em relação ao

valor do direito, sua teoria não exclui por completo a necessidade de incursão sobre as

questões ideológicas em determinados pontos fundamentais.

Podem ser identificados, com clareza três pontos em que a avaliação

valorativa se faz presente na estrutura teórica positivista: a coerência do ordenamento

jurídico; a completude do ordenamento jurídico e a interpretação do direito.

50

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 34.

Page 34: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

34

4.1. Coerência do Ordenamento Jurídico

Como visto anteriormente, o Ordenamento Jurídico se compõe de três

caracteres fundamentais: a unidade, a coerência e a completude. Particularmente quanto

à coerência, podemos identificar, ainda que não explicitamente, uma necessidade da

busca de valores para tornar o ordenamento coerente quando se apresente alguma

antinomia.

Cabe verificar que, ao abordar, em sua teoria, o significado do termo

“sistema” e seu relacionamento com o conceito de ordenamento jurídico, Norberto

Bobbio reconhece que aquilo que denominou “sistema jurídico” está entre o sistema

dedutivo, próprio do direito natural em que o norte formador do sistema é derivado de

princípios gerais, e o sistema dinâmico de Kelsen, próprio do juspositivismo que vê o

direito como normativo puro e encontra coerência no sistema enquanto derivado da

autoridade única:

“Por outro lado, confrontando com um sistema dedutivo,

o sistema jurídico é alguma coisa de menos; confrontando com o

sistema dinâmico, do qual falamos no parágrafo anterior, é algo de

mais: de fato, se se admitir o princípio de compatibilidade, para se

considerar o enquadramento de uma norma no sistema não bastará

mostrar a sua derivação de uma das fontes autorizadas, mas será

necessário também mostrar que ela não é incompatível com outras

normas. Nesse sentido nem todas as normas produzidas pelas fontes

autorizadas seriam válidas, mas somente aquelas compatíveis com as

outras.”51

Caso o sistema apresente normas incompatíveis, três são os critérios para

eliminar as antinomias52

: critério cronológico, o critério hierárquico e o critério da

especialidade.

O problema está em verificar que nem sempre um dos três critérios é

capaz de eliminar as antinomias, como, por exemplo, duas normas de um mesmo código

incompatíveis entre si. Neste caso, abre-se uma lacuna na própria teoria juspositivista,

senão vejamos:

“Isso significa, em outras palavras, que, no caso de um

conflito no qual não se possa aplicar nenhum dos três critérios, a

51

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 80/81. 52

O que se entende por antinomia será melhor abordado no item 7 desta primeira parte.

Page 35: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

35

solução do conflito é confiada à liberdade do intérprete; poderíamos

quase falar de um autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual

cabe resolver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de todas

as técnicas hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e

consolidada tradição e não se limitando a aplicar uma só regra.

Digamos então de uma maneira mais geral que, no caso de conflito

entre duas normas, para o qual não valha o critério cronológico, nem

o hierárquico, nem o da especialidade, o intérprete, seja ele o juiz ou o

jurista, tem à sua frente três possibilidades:

1) eliminar uma;

2) eliminar as duas;

3) conservar as duas”53

A primeira possibilidade chama de interpretação ab-rogante, porém em

sentido impróprio, pois que o intérprete ab-roga uma das normas, mas como não tem

poder normativo o faz apenas para o caso concreto, não expelindo a norma incompatível

do sistema.

Na segunda possibilidade o intérprete elimina ambas as normas, o que só

seria possível para o caso de contrariedade54

, trata-se de dupla ab-rogação que Norberto

Bobbio55

continua chamando de imprópria.

Na terceira possibilidade, que segundo o filósofo italiano56

é a mais

comum entre os intérpretes, não se fará a eliminação da norma, mas da

incompatibilidade. Para tanto o juiz ou jurista procederá a uma “leve ou parcial

modificação no texto”57

para tornar as normas compatíveis e conservá-las no sistema.

Aqui se verifica uma abertura na rígida teoria juspositivista para alçar o

trabalho do juiz em fonte, ainda que indireta, visto que, malgrado baseado na lei, o

filósofo autoriza-o, em tese, a criar uma norma nova, que acaba por chamar de

interpretação corretiva. Ora, não se pode corrigir a lei sem alterá-la, pelo menos no

sentido que lhe pretendeu dar o criador da norma.

53

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 100. 54

O filósofo italiano diferencia contrariedade e contradição (Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento

Jurídico, idem , pág. 85). Entre uma norma que ordena fazer algo e uma outra que proíbe fazê-lo existe

contrariedade; entre uma norma que ordena fazer algo e uma que permite não fazer existe

contraditoriedade; entre uma norma que proíbe fazer e uma que permite fazer existe contraditoriedade. 55

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 102. 56

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 102. 57

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 103.

Page 36: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

36

O impulso do intérprete deixa assim, claramente, de ser interpretativo,

passando de intérprete a criador. Enquanto criador exercerá um juízo sobre o sistema

para adequar as normas contraditórias, o mesmo que o faz o legislador ao criar, no

exercício do poder político, as normas que compõem o sistema.

É neste ponto que sua função deixará de se resumir a perquirir a validade

da norma e sua eficiência, para escolher58

o valor que prevalecerá na criação que

reconhecidamente lhe cabe.

4.2. Completude do Ordenamento Jurídico

Como dito anteriormente, no 5º ponto da letra “b” do item 2.3 desta

primeira parte, a norma geral exclusiva não se aplica à teoria por Norberto Bobbio

formulada, segundo a qual entre os casos inclusos e os exclusos pela norma, há uma

zona incerta de casos não-regulamentados59

. Estes casos são as lacunas próprias.

No entanto, esse não é o único caso de lacuna do ordenamento. Um

ordenamento pode ter lacunas impróprias ou ideológicas e lacunas próprias ou reais. A

primeira resulta da comparação do sistema existente com o sistema ideal, enquanto a

segunda é a que ocorre dentro do próprio sistema. A primeira só pode ser eliminada

através da formulação de novas normas, ao passo que a segunda pode ser completada

pela lei vigente (pela auto-integração ou pela heterointegração). A primeira é

completável pelo legislador, a segunda pelo intérprete.

Malgrado o filosófo italiano afirme que a completude do ordenamento,

no que se refere ao interesse do jurista juspositivista, diz-se em relação às lacunas

próprias, há uma questão de extrema relevância: Norberto Bobbio afirma que em todo

ordenamento há lacuna ideológica, acabando por valorar o ordenamento jurídico. Senão

vejamos:

Norberto Bobbio traça mais detalhadamente as características da lacuna

ideológica da seguinte forma:

“Entende-se também por “lacuna” a falta não já de uma

solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou, em

outras palavras, não já a falta de uma norma, mas a falta de uma

norma justa, isto é, de uma norma que se desejaria que existisse, mas

58

Foi o próprio Norberto Bobbio quem identificou, na passagem supra transcrita, a discricionariedade que

caberá ao intérprete. 59

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 146.

Page 37: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

37

que não existe. Uma vez que essas lacunas derivam não da

consideração do ordenamento jurídico como ele é, mas da comparação

entre ordenamento jurídico como ele é e como ele deveria ser, foram

chamadas de “ideológicas”, para distingui-las daquelas que

eventualmente se encontrassem no ordenamento jurídico como ele é, e

que se podem chamar de “reais”. Podemos também enunciar a

diferença deste modo: as lacunas ideológicas são lacunas de iure

condendo (de direito a ser estabelecido), as lacunas reais são de iure

condito (do direito já estabelecido).”60

Resta certa a valoração reconhecida pelo filósofo em relação ao fim

almejado pelo Direito. E vai mais além. Como já dito, ele reconhece que em todo

ordenamento jurídico existe lacuna ideológica, ou seja, não há ordenamento legislativo

que se complete na busca de seu fim:

“Que existe lacunas ideológicas em cada sistema

jurídico é tão óbvio que não precisamos nem insistir. Nenhum

ordenamento jurídico é perfeito, pelo menos nenhum ordenamento

jurídico positivo.”61

Não poderia, de outro modo, negar as lacunas ideológicas, pois estaria

preconizando a imutabilidade de um ordenamento, o que o tornaria perfeito, ideologia

própria do Direito Natural.

Porém, ao afirmar que existem lacunas ideológicas em todo sistema,

deixa clara sua valoração do próprio ordenamento. Em outras palavras, ao criticar o

ordenamento jurídico e reconhecer que não existe ordenamento positivo perfeito sob o

ponto de vista ideológico, está o filósofo rompendo com a preconizada avaliação

avalorativa do sistema, para depois reafirmá-la, como um caminho necessário a seguir

para desenvolver sua teoria.

4.3. Hermenêutica: meios de interpretação declarativa

Como último ponto da teoria do juspositivismo, Norberto Bobbio trata da

jurisprudência. Neste particular nega qualquer capacidade criativa ou produtiva a esta,

afirmando que a atividade da jurisprudência é estritamente declarativa ou reprodutiva

de um direito preexistente, nascido com a legislação.

60

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 140. 61

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 140.

Page 38: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

38

Assim, verifica que o direito tem dois momentos de atividade: o ativo ou

criativo e o teórico ou cognoscitivo. O primeiro deixado ao legislador; o segundo ao

jurista. O primeiro se manifesta na legislação, o segundo na ciência jurídica ou na

jurisprudência.

Concluindo, a tarefa da jurisprudência não é criar, mas interpretar o

direito62

.

Continua, portanto, expondo os meios hermenêuticos do positivismo a

serem utilizados pela jurisprudência em sua tarefa interpretativa do direito.

Especificamente no que concerne à interpretação declarativa63

, o juspositivismo se serve

de quatro meios hermenêuticos, dos quais dois chamam atenção: o meio teleológico e o

meio sistemático. Senão vejamos:

“b) O meio teleológico, chamado comumente de

interpretação lógica, expressão imprópria, visto que se trata de um

meio interpretativo baseado na ratio legis, isto é, no motivo ou

finalidade para os quais a norma foi posta. Partindo do duplo

pressuposto de que o legislador, como ser razoável, se coloque fins e

estabeleça meios idôneos a serem atingidos, uma vez individualizado o

fim do legislador, este pode dar aqui esclarecimentos sobre as

modalidades de sua consecução, isto é, sobre o conteúdo da lei.

c) O meio sistemático, que implica não só no

pressuposto da racionalidade do legislador, como também no

pressuposto de que a vontade do legislador seja unitária e coerente.

Com base em tal pressuposto pode-se procurar esclarecer o conteúdo

de uma norma, considerando-a em relação a todas as outras.” 64

Neste ponto encontram-se claramente expostas as tarefas valorativas

deixadas ao jurista. Ora, se o jurista deve se ater à validade e não ao valor das normas,

de acordo com a teoria juspositivista, como explicar que, na atividade desenvolvida pela

jurisprudência ou pela ciência do direito, o intérprete deve perquirir a finalidade da

norma para melhor compreendê-la?

Está exposto, às escâncaras, a tarefa valorativa do jurista juspositivista.

62

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 211/212. 63

A interpretação pode ser declarativa ou integrativa. A este respeito vide 6º ponto da letra “b” do item

2.3 desta primeira parte. 64

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 214.

Page 39: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

39

E mais, ao procurar estabelecer uma coerência sob o ponto de vista do

conteúdo da norma para possibilitar uma interpretação sistemática da norma está o

filósofo juspositivista se baseando, a toda evidência, no sistema estático ou dedutivo do

ordenamento exposto por Kelsen como próprio do Direito Natural.

Há, destarte, em todos os pontos abordados neste item, sobretudo neste

referente à hermenêutica, uma identificação valorativa na tarefa do jurista.

5. A valoração na teoria jurídica penal

Já se deixou claro que a tarefa da filosofia do direito decerto imprescinde

da investigação valorativa. Fato que, é bem verdade, sequer se questionou. A questão

que se pretende desconstruir, com a crítica ao juspositivismo, é a avaloratividade da

jurisprudência.

A busca dos fundamentos, como se expôs no item 3 desta primeira parte,

é fora de dúvida tarefa da filosofia do direito. No entanto, quis se demonstrar com as

linhas críticas subseqüentes àquelas, que à ciência do direito não é estranha à

investigação dos fundamentos, o que se logrou realizar no item 4 desta primeira parte.

Especificamente na seara criminal, vale transcrever a enfática observação

de Nilo Batista:

“Conhecer as finalidades do direito penal, que é

conhecer os objetivos da criminalização de determinadas condutas

praticadas por determinadas pessoas, e os objetivos das penas e outras

medidas jurídicas de reação ao crime, não é tarefa que ultrapasse a

área do jurista, como às vezes se insinua. (...) Aliás, a indagação sobre

fins, que comparece em vários momentos particulares (interpretação

da lei, na teoria do bem jurídico, no debate sobre a pena, etc), não

poderia deixar de dirigir-se ao direito penal como um todo.”65

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangelli, ao abordarem o

tema sobre o objeto do direito penal, visualizam duas respostas comuns das quais

passam a fazer uma análise crítica:

“À pergunta sobre o objeto do direito (entendido como

legislação penal) costumam-se dar duas respostas distintas, contrárias

e excludentes: para uns, o direito penal tem por meta a segurança

65

Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, 9ª ed., Revan, Rio de Janeiro, 2004, pág

23.

Page 40: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

40

jurídica; para outros, seu objetivo é a proteção da sociedade, expressão

que se costuma substituir por “defesa social”.”66

Esclarecem os juristas que os que se filiam à meta de segurança jurídica

vêem na pena uma função de prevenção geral, sendo, portanto, retributiva, ao passo que

para aqueles que entendem o objeto do direito penal como a defesa social, enxergam na

pena a finalidade de prevenção especial, tendo caráter reeducador e ressocializador.

Continuam argumentando que alguns daqueles que se filiam à corrente

da segurança jurídica como objeto do direito penal, sustentam que se deve provê-la

tutelando bens jurídicos, enquanto outros acreditam que a tutela penal deve ser a tutela

de valores éticos.

Os próprios juristas afirmam se filiarem à opinião que sustenta a

segurança jurídica como objeto do direito penal, mas esclarecem que a “...segurança

jurídica não pode ser entendida, pois, em outro sentido que não o da proteção de bens

jurídicos (direitos), como forma de assegurar a coexistência.”67

Heleno Cláudio Fragoso sustenta posição contrária, para ele “A função

básica do Direito Penal é a defesa social.”68

Juarez Tavarez, por sua vez, entende que, no que concerne às correntes

sobre as funções do direito penal, é possível classificá-las em três grupos:

“a) dos que entendem que sua tarefa consiste,

primeiramente, em proteger os valores ético-sociais do ânimo (ação) e

só secundariamente os bens jurídicos concretos (...);

b) dos que se fixam exclusivamente (ou quase

exclusivamente) na proteção de bens jurídicos (...);

c) dos que vinculam a proteção dos bens jurídicos com

outros fins ou mais propriamente com a paz jurídica ou social (...).”69

Na primeira corrente referida por Juarez Tavarez encontramos Hans

Welzel, teórico do finalismo. In verbis:

66

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,

3ª ed., Revista dos Tribunais, 2001, São Paulo, pág. 92. 67

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,

idem, pág. 94. 68

Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, Parte Geral, atualizado por Fernando Fragoso, 16ª

ed., Forense, Rio de Janeiro, 2004, pág 4. Deve-se sobrelevar que efetivamente o autor não se restringe a

enxergar no direito penal apenas a função de prevenção especial, que de fato ocorre, mas expõe a

destinação da ameaça de sanção ao todos os destinatários da norma e encontra no direito penal a

finalidade de proteger os bens jurídicos para assegurar a vida em comum, a existência da sociedade. 69

Nota do tradutor ao § 1 I 2 de Joohannes Wessels, Direito Penal, parte geral, Aspectos Fundamentais,

tradução Juarez Tavares, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1976, pág 3.

Page 41: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

41

“Un Derecho Penal de gran eficacia es de doble vía:

por una parte, respecto al autor ocasional es un Derecho Penal

retributivo de fundamento ético-social y delimitado por tipos estrictos,

y, por la otra, respecto al delincuente por estado, un derecho de

seguridad – que combate peligros sociales de gravedad.”70

Na linha de pensamento exposta na segunda corrente podemos identificar

Julio Fabbrini Mirabete, para quem o direito penal serve para proteger os bens jurídicos

fundamentais:

“Pode-se dizer, assim, que o fim do Direito Penal é a

proteção da sociedade e, mais precisamente, a defesa dos bens

jurídicos fundamentais.”71

No âmbito de pensamento da terceira corrente encontramos Johannes

Wessels, para quem a proteção ao bem jurídico está aliada à manutenção da paz

jurídica:

“A tarefa do Direito Penal consiste em proteger os

valores elementares da vida comunitária no âmbito da ordem social e

garantir a manutenção da paz jurídica. Como ordenação protetiva e

pacificadora serve o Direito Penal à proteção dos bens jurídicos e à

manutenção da paz jurídica.”72

Diversos juristas penais hodiernos encontram na proteção ao bem

jurídico a função ao direito penal, mas fazem o adendo de que estes bens jurídicos

devem ter função de garantia da vida em sociedade. Esta é a posição de Damásio

Evangelista de Jesus e René Ariel Dotti, cuja lição vale ser transcrita:

“São fins imediatos do Direito Penal a proteção de bens

jurídicos do homem e da comunidade. (...) O Direito Penal é o conjunto

de normas jurídicas nas quais se manifesta o interesse dos cidadãos,

interpretado pelo Estado, (...) bem como na aplicação de princípios e

regras de proteção aos bens jurídicos fundamentais à convivência

social .”73

70

Hans Welzel, Derecho Penal Aleman, Parte General, 11ª ed., 4ª ed. Castellana, Tradução Juan Bustos

Ramírez e Sergio Yáñez Pérez, Jurídica del Chile, 1969, Bonn, pág. 10. 71

Julio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, Parte Geral, atalizado por Renato N. Fabbrini, 21ª

ed., Atlas, São Paulo, 2004, pág 23. 72

Joohannes Wessels, Direito Penal, parte geral, Aspectos Fundamentais, tradução Juarez Tavares,

Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1976, pág 3. 73

René Ariel Dotti, Curso de Direito Penal, Parte Geral, 1ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2002, pág 48.

Page 42: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

42

Decerto esta linha de pensamento se enquadra perfeitamente na linha

exposta por Juarez Tavares como sendo a terceira linha de entendimento das funções do

direito penal.

Uma compreensão da função do direito penal como protetor dos bens

jurídicos fundamentais que tenham natureza constitucional é amplamente defendida por

modernos juristas penais, como é o caso de Luiz Régis Prado:

“O pensamento jurídico moderno reconhece que o

escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de

bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade -, dentro do

quadro axiológico constitucional ou decorrente da concepção de

Estado de Direito democrático (teoria constitucional eclética).”74

Verifica-se, com clareza ímpar, independente da existência constatada de

diversas correntes, a busca de todos os juristas penais pelos fins do direito penal.

Decerto do que os juristas citados tratam é a finalidade do direito penal,

não dos fundamentos. Porém, os fundamentos de caráter axiológicos do direito penal

estão presentes e se realizam em duas ordens de valores: particulares e gerais.

A necessidade de proteção penal a valores particulares decorre da

necessidade da proteção de um valor maior, geral, que é a própria finalidade do direito

penal, na ordem do entendimento de cada jurista.

Luiz Luisi leciona:

“...no direito Penal duas ordens de valores que podemos

denominar, de um lado, valores particulares e específicos e, doutro

lado, de valores gerais presentes e orientadores de toda legislação

criminal.(...).

No entanto, como já assinalamos, a indispensabilidade

da proteção desses valores especiais obedece à necessidade de

proteção de uma (sic) valor maior e geral que é o da própria

segurança da ordem social.”75

A perseguição do axioma, ou postulado original, do qual todas as normas

do ordenamento punitivo derivam e pretendem convergir se coloca muito mais próximo

do sistema estático de que trata Kelsen, no qual as normas estão relacionadas pelo seu

74

Luiz Regis Prado, Comentários ao Código Penal, 2ª ed., Revista dos Tribunais, 2003, São Paulo, pág

25. 75

Luiz Luisi, Filosofia do Direito - Ensaios, “Aspectos da Presença Axiológica no Direito Penal”, Sergio

Antonio Fabris Editor, 1993, Porto Alegre, pág 136/137.

Page 43: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

43

conteúdo, do que do sistema dinâmico (defendido pelo pensador), que não tem unidade

material, mas apenas formal.

Neste diapasão, o direito penal persegue um fim e baseia-se nos

fundamentos axiológicos que pretendem alcançar a finalidade como valor último e

primeiro.

A valoração do direito penal, enquanto ciência, é defendida pela obra

filosófica de Luiz Luisi:

“A ciência jurídico-penal é, pois, ciência valorativa no

sentido de que ela não pode deixar de considerar como elementos

integrantes do Direito Penal, e particularmente da norma penal que é

o objeto da ciência do Direito Penal propriamente dito, os valores que

são objeto da proteção penal.”76

6. A motivação da norma

Inúmeras legislações têm historicamente origem em pensamento diverso

do juspositivismo, demonstrando que nem mesmo a postura científica avalorativa desta

teoria, que pode até se aplicar na atividade jurisprudencial (com o quê não

concordamos, como já se viu), se realiza no momento de criação da lei, qual seja, na

atividade legislativa.

O próprio Norberto Bobbio expõe que o direito tem um momento criativo

e que este se manifesta na legislação:

“Na atividade relativa ao direito podemos distinguir

dois momentos: o momento ativo ou criativo do direito e o momento

teórico ou cognoscitivo do próprio direito; o primeiro momento

encontra a sua manifestação mais típica na legislação, o segundo na

ciência jurídica ou (para usar um termo menos comprometedor) na

jurisprudência.” 77

Na realidade, o momento de criação da norma, é o momento do exercício

do poder político, o que não desloca a perquirição do fundamento do ordenamento

jurídico para o do poder político, pois que a existência deste, conquanto possa

76

Luiz Luisi, Filosofia do Direito - Ensaios, “Aspectos da Presença Axiológica no Direito Penal”, Sergio

Antonio Fabris Editor, 1993, Porto Alegre, pág 142. 77

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 211.

Page 44: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

44

determinar (e determina) a finalidade da legislação, não se confunde com os fins dela

própria.

O fundamento do poder político explica sua própria origem, enquanto o

exercício do poder político, baseado na liberdade de consciência criadora daquele que

exerce o poder, é que determina a finalidade da criação. Em outras palavras, o legislador

exerce o poder político que livremente (no mais das vezes intuitivamente) decidirá qual

a finalidade a ser alcançada com aquela legislação que pretende criar.

Para Nilo Batista o direito penal tem uma função política:

“Afirmamos, portanto, que o direito penal é disposto

pelo estado para a concreta realização de fins; toca-lhe, portanto, uma

missão política....”78

Evidentemente não se pretende inverter a afirmação do jurista penal. Ele

não afirmou que a atividade do legislador, ao definir as bases do sistema penal pela

elaboração de normas jurídicas, é o exercício do poder político, mas sim que o direito

penal tem uma missão política.

No entanto, é importante observar que esta missão política deriva do fato

de que o órgão definidor das bases do sistema é político e é através do exercício do seu

poder que realizará sua missão.

Ao exercer o seu poder, o legislador necessariamente dará preferência à

determinada ordem de valores que constituem as bases de sua ideologia que se encerrará

no sistema legislativo. Vale transcrever a lição de Miguel Reale:

“No momento, pois, da elaboração das normas

jurídicas, no processo de legiferação ou de positivação do direito, a

indução desempenha papel relevante: - esse é, no entanto, o momento

em que a Ciência Jurídica se insere no “processo político” da escolha

dos meios adequados à consecução de fins considerados apetecíveis,

convenientes ou essenciais à convivência ordenada.”79

O jurista pátrio René Ariel Dotti observa que o legislador, ao definir a

conduta criminosa, deverá se pautar em algum bem jurídico que pretenda proteger e que

este interesse cuja proteção se proverá será o objeto da sua escolha:

“Na acepção filosófica, o valor significa a indicação de

qualquer objeto (pessoa ou coisa), que merece preferência ou escolha.

78

Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 20. 79

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 151.

Page 45: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

45

Ao proteger determinados bens, através do sistema de

normas de incriminação e da sanção, o Direito Penal os está

destacando perante uma ordem de interesses e, conseqüentemente,

valorando-os. Com muita propriedade já foi dito que “o bem jurídico-

criminal é a luz que ilumina o legislador ao delinear os diversos

tatbestand80

” (Correia, Direito Criminal, vol. I, p. 277).”81

Obviamente, que, ao escolher determinado bem em detrimento de outros

e, assim, definir as condutas criminosas, o legislador está valorando, conforme sua

ideologia, o direito cujas bases está a definir na elaboração das leis penais, como, de

resto, ocorre na criação de leis de qualquer natureza.

Assim, resta clara a existência de motivação ideológica das normas

jurídicas, inerente ao exercício do poder político que as elabora.

7. O Sistema Penal

Cumpre neste ponto investigar e definir a expressão “sistema penal” que

será utilizado doravante, uma vez que é a pesquisa fenomenológica sobre os seus

fundamentos que configuram o objeto deste estudo.

Na lição de Norberto Bobbio, o termo “sistema” tem muitos significados

a serem utilizados na forma da conveniência:

“O termo “sistema” é um daqueles termos de muitos

significados, que cada um usa conforme suas próprias

conveniências.”82

O filósofo italiano encontra no termo “sistema” uma redução da

expressão “sistema normativo”, o qual se utiliza para designar ordenamento jurídico:

“Na linguagem jurídica o uso do termo “sistema” para

indicar o ordenamento jurídico é comum. Nós mesmos, nos capítulos

anteriores, usamos às vezes a expressão “sistema normativo” em vez

de “ordenamento jurídico”, que é mais freqüentemente usada.”83

Vai, todavia, mais além, para esclarecer, na sua concepção, que nem todo

ordenamento jurídico é um “sistema”. Para que um ordenamento jurídico possa ser

80

A despeito das diversas significações do termo germânico tatbestand, o jurista lusitano Eduardo

Correia, citado por René Ariel Dotti, certamente não tomou como base o conceito de Beling, o qual

excluía-lhe qualquer valoração, tornando-o, assim, estritamente objetivo. 81

René Ariel Dotti, Curso de Direito Penal, Parte Geral, 1ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 2002, pág 52. 82

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 76. 83

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 75.

Page 46: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

46

considerado um “sistema” é necessário que as normas que o compõem tenham

coerência entre si. In verbis:

“O próximo problema que se nos apresenta é se um

ordenamento jurídico, além de uma unidade, constitui também um

sistema. Em poucas palavras, se é uma unidade sistemática.

Entendemos por “sistema” uma totalidade ordenada, um conjunto de

entes entre os quais existe uma certa ordem.(...) Quando nos

perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos

perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento

de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação”84

Por outro lado, para os juristas penais, o termo sistema penal tem

significado diferente. Senão vejamos o que sustenta Nilo Batista:

“Vimos a sucessiva intervenção, em três nítidos

estágios, de três instituições: a instituição policial, a instituição

judiciária e a instituição penitenciária. A esse grupo de instituições

que, segundo as regras jurídicas pertinentes, se incumbe de realizar o

direito penal, chamamos sistema penal.”85

O sistema penal, na visão de Zaffaroni86

, pode ser entendido em sentido

mais estrito, como o controle social punititvo institucionalizado (que abarca desde

quando se supõe detectar a prática de um delito, até a execução da pena), ou em sentido

mais amplo, abarcando as ações supostamente terapêuticas ou assistenciais (instituição

psiquiátrica, asilos, etc.).

Nilo Batista diferencia a expressão “sistema penal” do sistema jurídico

que queremos precisar:

“O sistema penal a ser conhecido e estudado é uma

realidade, e não aquela abstração dedutível das normas jurídicas que o

delineiam.”87

Sem dúvida, Nilo Batista limita o objeto do seu estudo, deixando claro

que não pretende estudar as normas jurídicas, mas a realidade do sistema penal, como

ele se afigura fenomenalmente.

84

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 71. 85

Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 25. 86

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,

3ª ed., Revista dos Tribunais, 2001, São Paulo, pág. . 87

Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 25.

Page 47: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

47

Para ele esta é a função do jurista, qual seja, concentrar seus esforços na

investigação da realização do funcionamento prático das instituições abstratamente

previstas.

“Não pode o jurista encerrar-se no estudo – necessário,

importante e específico, sem dúvida – de um mundo normativo,

ignorando a contradição entre as linhas programáticas legais e o real

funcionamento das instituições que as executam.”88

No entanto, mesmo negando as normas jurídicas como único objeto de

seu estudo, afirma que elas delineiam o sistema penal e é, portanto, neste ponto que

queremos depositar nossos esforços para compreender quais valores norteiam o

legislador que cria as normas jurídicas que constroem o sistema penal, mesmo porque o

que se procura neste estudo não é realizar a tarefa do jurista, mas sim do filósofo do

direito.

É assim, que, como dito no item 1 desta primeira parte, iremos nos

abeberar de determinados conceitos da teoria juspositivista de Norberto Bobbio para

com ela romper de forma crítica.

Desta sorte, chamaremos de sistema penal não a realidade do

funcionamento das instituições que se incumbem de realizar o direito penal, mas sim o

sistema normativo penal ou sistema penal legislativo, assim entendido como o conjunto

coerente de normas jurídicas que delineiam o controle social punitivo

institucionalizado, ao qual chamaremos apenas de sistema penal.

8. Pontos fundamentais do direito penal e a atividade valorativa de criação do sistema

Uma vez definido o significado do termo sistema penal para o nosso

estudo, cumpre perquirir os pontos fundamentais do direito penal.

Neste momento cabe enfatizar que o direito penal a que nos referimos é o

ramo do Direito, enquanto ciência, que tem por objeto o sistema repressivo estatal, em

todas as suas fases.

Porquanto, o direito penal de que tratamos é o ramo do direito que

encerra o controle social punitivo institucionalizado pelo Estado e que é delineado pelo

sistema penal legislativo.

88

Nilo Batista, Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, idem, pág 26.

Page 48: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

48

Em outras palavras, o sistema penal legislativo deita as bases normativas

do direito penal, este compreendido como o ramo do Direito que tem por objeto desde a

atividade policial até a aplicação da pena, passando pela prestação jurisdicional.

Por definirmos o direito penal como o ramo do Direito que tem por

objeto o controle social punitivo institucionalizado pelo Estado, a legitimação do direito

penal decorre da legitimação do direito estatal de punir, de proibir e de julgar, porquanto

o controle social decorre da possibilidade de o Estado se autorizar no caso concreto

(exercício do direito estatal de julgar) a punir (exercício do direito de punir) uma

conduta proibida (exercício do direito estatal de proibir).

Ao falarmos do direito do Estado punir, estamos tratando da pena. Ao

falarmos do direito do Estado proibir, estamos tratando dos bens jurídicos protegidos

pela norma penal. Ao falarmos do direito do Estado de julgar, estamos tratando do

processo.

Assim é que devemos compreender que o direito penal tem como pontos

fundamentais: o bem jurídico protegido, a pena, e o processo.

Destarte, o sistema legislativo penal é definido pelo legislador que exerce

o poder político e define a configuração do direito penal projetando seus valores sobre

os pontos fundamentais que o compõem.

Daí porque o direito penal é construído pelo sistema penal, à luz do

fundamento axiológico norteador da disposição legal sobre o bem jurídico protegido, a

pena, e o processo.

9. Antinomias do sistema

Antinomia é incompatibilidade. No entendimento de Norberto Bobbio89

,

para que exista antinomia jurídica, não basta existir incompatibilidade entre duas

normas jurídicas, é necessário ainda que concorram duas condições: as duas normas

devem pertencer ao mesmo ordenamento jurídico; as duas normas devem ter o mesmo

âmbito de validade, sendo que o filósofo encontra quatro âmbitos de validade: temporal,

especial, pessoal e material.

Esclarece, ademais, que existem antinomias que, segundo K. Engish, não

são propriamente jurídicas, às quais denomina antinomias impróprias.

89

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 86.

Page 49: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

49

Classifica estas antinomias impróprias em antinomias de princípio;

antinomias de avaliação; e antinomias teleológicas.

Define a antinomia teleológica como a incompatibilidade entre duas

normas, uma que prescreve o meio para alcançar um fim, outra que prescreve o fim,

mas se verifica a incompatibilidade porque realizando o meio prescrito na primeira, não

se alcança o fim prescrito na segunda90

.

Entende que a antinomia de avaliação se verifica no caso em que uma

norma pune um delito menor com uma pena mais grave do que a infligida a um delito

maior91

.

Por último, vale adentrar mais a fundo no que Norberto Bobbio chama de

antinomias de princípio, uma vez que interessa diretamente ao nosso estudo. Senão

vejamos:

“Fala-se de antinomia no Direito com referência ao fato

de que um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores

contrapostos (em opostas ideologias): consideram-se, por exemplo, o

valor da liberdade e o da segurança como valores antinômicos, no

sentido de que a garantia da liberdade causa dano, comumente, à

segurança, e a garantia da segurança tende a restringir a liberdade;

em conseqüência, um ordenamento inspirado em ambos os valores se

diz que descansa sobre princípios antinômicos. Nesse caso, pode-se

falar de antinomias de princípio.”92

Uma vez que, como visto, o direito penal encerra uma finalidade, que o

sistema penal é o conjunto de normas jurídicas que delineiam o controle social punitivo

institucionalizado e que as normas jurídicas são resultados do exercício do poder

político, que se fulcra na valoração dos interesses escolhidos, o objeto deste estudo se

realiza pela investigação fenomenológica das antinomias de princípio, buscando, assim,

identificar as incompatibilidades ideológicas na elaboração do direito penal.

10. Eliminação das antinomias de princípio do sistema penal

Uma vez definido o objeto da investigação filosófica, cumpre expor os

métodos concebidos para eliminação das antinomias de princípio do sistema penal.

90

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 91. 91

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 90. 92

Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurídico, idem , pág. 90.

Page 50: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

50

Eliminar as antinomias de princípio é uma necessidade para que o

sistema penal exista enquanto sistema, pois que a coerência ideológica é um de seus

elementos definidores.

Cumpre esclarecer que não se objetiva, com isto, propor um sistema

penal ideal neste estudo, mas identificar as antinomias e expor os métodos elaborados

para eliminá-las.

Os juspositivistas, ao não verificarem interesse jurídico no estudo do

valor da norma, bem como na ideologia fundante do sistema, afastam-se da solução das

antinomias de princípio.

Norberto Bobbio deixa claro que não pretende ocupar a ciência do direito

da comparação da adequação ideológica das normas que compõem o ordenamento

jurídico com o valor escolhido como axioma do sistema ideal:

“O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que

efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista

estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um

direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro

corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a

validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal;”93

Assim, ao expor a existência de lacunas ideológicas, esclarece que não

cabe ao jurista se ocupar de sua eliminação, esta tarefa é própria e exclusiva do

legislador com a formulação de novas normas94

.

É evidente que lacunas ideológicas não se confundem com antinomias

de princípio, porquanto a primeira se diz dos espaços normativos não preenchidos pela

ideologia fundante do sistema, ao passo que a segunda se refere à incompatibilidade

entre as ideologias que norteiam o sistema e que geraram duas normas ideologicamente

antinômicas.

No entanto, decerto, a solução, nesta linha de pensamento, para a

eliminação de uma lacuna ideológica para o pensador juspositivista será a mesma que a

utilizada para a eliminação das antinomias de princípio, qual seja, a atividade

legislativa, estranha a do jurista.

93

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 136. 94

Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, idem, pág 144.

Page 51: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

51

Esta não é, todavia, a solução encontrada por Eugenio Raul Zaffaroni e

José Henrique Pierangelli, para quem as antinomias de princípio devem ser objeto tanto

daquele que exerce o poder político, como do jurista:

“Sem embargo, é lícito e necessário que tanto o político

como o jurista, se perguntem quais devem ser as metas ou objetivo da

legislação penal, pois destas perguntas dependerá que, tomando em

conta a informação procedente da realidade, o político criticará a lei e

indicará as reformas legislativas que aproximem a lei positiva a seus

objetivos, enquanto o jurista, também tomando em conta a informação

real, buscará pela interpretação o sentido e os limites das disposições

legais, de maneira compatível com o objetivo geral.

(...) Somente respondendo à interrogação acerca do

objeto que se deve atribuir à legislação penal, dentro de nosso Estado

de direito, no marco dos princípios constitucionais e internacionais,

será possível criticar a lei positiva e indicar como se poderia adequá-

la melhor a este objetivo e também interpretar esta lei de forma

coerente com tal objetivo (afastando, por inconstitucionais, os

extremos de absoluta incompatibilidade, ou com efeitos

paradoxais).”95

Verifica-se, estreme de dúvidas, que para os citados juristas, o objetivo

do direito penal deve nortear a coerência do sistema, devendo ser expurgadas as

antinomias valorativas.

Assim, podemos identificar dois modos de eliminar as antinomias de

princípio, a realizada exclusivamente pelo legislador, pelo do exercício do poder

político, ou a realizada tanto pelo legislador como pelo jurista, com a eliminação

decorrente da incompatibilidade com os princípios constitucionais, próprio do sistema

complexo hierárquico de normas, exponenciado pela Constituição.

11. Conclusão

Ao fim desta primeira parte se verifica que restam certas algumas

exposições fundamentais no desenvolvimento do nosso estudo:

95

Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral,

3ª ed., Revista dos Tribunais, 2001, São Paulo, pág. 91.

Page 52: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

52

1) O juspositivismo não se confunde com o direito positivado, nem este é

exclusividade daquele;

2) O juspositivismo é um método, uma teoria e uma ideologia;

3) O juspositivismo concebe a tarefa do jurista sem qualquer atividade

valorativa;

4) A Escola Criminal Positiva utiliza-se do método positivo e não da ideologia,

negando atitude filosófica à ciência do direito penal;

5) O direito penal tem uma finalidade;

6) As normas jurídicas são fundadas em determinado valor escolhido pelo

órgão que exerce o poder político, para alcançar a finalidade que ele próprio

encontra para direito penal;

7) O sistema penal de que tratamos neste estudo de natureza filosófica não se

confunde com a definição dos juristas penais, posto que o consideramos

como o conjunto coerente de normas jurídicas que delineiam o controle

social punitivo institucionalizado;

8) O direito penal é entendido como o ramo do Direito que tem por objeto o

controle social punitivo institucionalizado e tem três pontos fundamentais

que o caracterizam: o bem jurídico protegido, a pena e o processo;

9) O sistema penal é o resultado do exercício do poder político, que define a

configuração do direito penal, à luz dos fundamentos axiológicos que

legitimam os direitos estatais de punir, de proibir e de julgar.

10) A existência de antinomias de princípio decorre da elaboração de normas

dentro de um mesmo ordenamento que tenham inspiração em valores

incompatíveis;

11) A eliminação de antinomias de princípio é uma necessidade do sistema

penal, sob pena de se desnaturar como sistema pela incoerência de algumas

de suas normas.

Page 53: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

53

2ª Parte – Axiologia – As ideologias penais

12. O Valor

Vimos, até o momento, que o direito penal tem uma finalidade. Vimos,

ademais, que o legislador, ao delinear o sistema penal por meio da elaboração de

normas jurídicas, o faz na perseguição de um valor por ele eleito, enquanto exerce seu

poder político.

Faz-se necessário entender de forma mais profunda o que vem a ser o

Valor, objeto de escolha e meta do legislador.

Há entre o valor e o objeto uma ligação intrínseca, indissociável,

porquanto não é possível conceber um valor abstraindo-se do objeto a que se relaciona.

Existe, inclusive, quem veja no valor uma esfera de objeto, ao lado dos

objetos naturais e dos objetos ideais96

.

Certo é, todavia, que valor não se confunde com objetos materiais nem,

tampouco, com objetos ideais. Com efeito, Miguel Reale aponta a atemporalidade e a-

espacialidade como os traços distintivos entre os valores e os objetos materiais e,

conquanto isto os aproxime dos objetos ideais, sua impossibilidade de mensuração e a

necessidade de ser concebido em função de algo, e não independentemente, os

diferenciam97

.

Fato é que valor e ser são categorias fundamentais. No dizer de Miguel

Reale:

“Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou vemos as

coisas enquanto elas valem; e, porque valem, devem ser.”98

Mas o estudo sobre o valor, não é simples, não se limita a diferenciá-lo

dos objetos, o que reduziria a tarefa da axiologia à sua diferenciação da ontologia, ao

contrário, sua investigação encerra a necessidade de resposta a algumas perguntas,

sendo a principal como e por que os valores valem? A estas perguntas, na busca de uma

melhor compreensão sobre o valor, diversas teorias foram desenvolvidas, sobre as quais

passaremos a um breve sumário.

13. Teorias sobre o Valor

96

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 188. 97

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 187. 98

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 188.

Page 54: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

54

Diversas são as teorias sobre o valor. Podemos tomá-las em duas ordens

fundamentais: as que procuram explicá-lo de modo subjetivo e as que o estudam sob o

prisma objetivo.

As correntes de estudo de natureza subjetiva do valor, a que podemos

chamar de “teorias psicológicas da valoração”, tem como tese nuclear a “...afirmação

de que os valores existem como resultado ou reflexo de motivos psíquicos, de desejos e

inclinações, de sentimento de agrado ou desagrado. As coisas valem em razão de algo

que em nós mesmos se põe como desejável ou apetecível, ou capaz de dar-nos prazer;

porque existe, em suma, como fenômeno de consciência e como “vivência estimativa”,

algo que marca a razão da preferência exteriorizada.”99

Sobressaem, todavia, as correntes objetivistas, dentre as quais

destacaremos a sociológica, a ontológica e a histórico-cultural.

Para os estudiosos da corrente sociológica, os valores devem ser

estudados como fato da sociedade, como expressão de crenças ou desejos sociais, ou

como produtos da consciência coletiva. Neste particular merece relevo a concepção de

Émile Duekheim sobre a consciência coletiva, para quem esta não representa o

resultado do mero ajuntamento das consciências individuais, mas uma unidade

autônoma a qual se subordinam os membros da sociedade, daí porque muitas vezes os

valores se impõem aos indivíduos contrariando frontalmente seus desejos.

Entre os pensadores do que podemos chamar de ontologismo axiológico,

destacam-se Max Scheler e Nicolai Hartmann. Para esta corrente, os valores constituem

um mundo de per se, que pode ser alcançado, e não constituídos, pelo espiríto humano

através da História.

Diversas são as correntes e os pensadores que enxergam os valores sob o

prisma histórico-cultural, como a realização dos valores no projetar do espírito humano

sobre a História. Vale trazer a lição de Miguel Reale:

“Não é demais esclarecer, desde logo, que sob a rubrica

genérica de “doutrinas histórico-culturais” enfeixamos várias

tendências, como, por exemplo, a de tipo hegeliano, a de tipo

diltheyano ou de inspiração heideggeriana ou marxista, para não

lembrarmos senão algumas das orientações de maior projeção em

nossos dias. O que as unifica é a convicção da impossibilidade de

99

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 196.

Page 55: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

55

compreender-se o problema do valor fora do âmbito da História,

entendida esta como realização de valores ou como projeção do

espírito sobre a natureza, visto dever-se procurar a universalidade do

ideal ético com base na experiência histórica e não com abstração

dela.”100

14. Características do Valor

Miguel Reale101

elenca nove, porém explica dez, características do valor:

bipolaridade, implicação, referibilidade, preferibilidade, incomensurabilidade,

graduação hierárquica, objetividade, historicidade, realizabilidade e inexauribilidade.

A primeira das características do valor, e a que o diferencia

definitivamente dos objetos ideais por ser possível a estes, mas essencial ao valor, é a

bipolaridade. Ao passo que em relação aos objetos, por serem, nada se contrapõe,

como, por exemplo, uma esfera que não existe uma contra-esfera, ao valor existe

sempre um contraponto, um desvalor. Ao bom se contrapõe o mau, ao belo se contrapõe

o feio, ao nobre o vil, etecetera.

Ademais, os valores se implicam reciprocamente, na medida em que a

realização de um valor implica necessariamente, direta ou indiretamente, na realização

dos demais. Para o citado filósofo, há uma força expansiva e absorvente nos valores.

Acrescente-se, quanto ao significado da terceira característica,

denominada referibilidade ou necessidade de sentido, que os valores só se realizam na

tomada de consciência do espírito que se inclina a ser como dever ser, é na objetivação

do espírito sobre algo que o valor se realiza.

O valor tem uma orientação, daí sua quarta característica, a

preferibilidade, ou seja, a teoria do valor é uma teleologia, encerra uma finalidade.

Miguel Reale diz que “...fim não é senão um valor enquanto racionalmente

reconhecido como motivo de conduta”102

.

Quando se fala de valores, é inevitável falar-se de ordenação ou

graduação hierárquica, pois que toda civilização obedece a uma tábua de valores que,

evidentemente não é rígida absolutamente, mas relativamente à época histórica em que

se insere determinada sociedade, revelando seu traço cultural.

100

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 204. 101

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 191. 102

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 191.

Page 56: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

56

Quanto à característica da objetividade, vale lembrar ser um contraponto

às teorias subjetivistas dos valores. Para Miguel Reale103

, as explicações subjetivas

deixam de explicar as preferências coletivas, na medida em que se resumem à satisfação

de desejos individuais. Ademais, inexistiriam valores após cessados os desejos, o que

não ocorre, sobressaltando, assim, o aspecto objetivo dos valores.

Ressalta o filósofo brasileiro, para a compreensão do valor não basta uma

explicação genérica do mundo estimativo, se faz necessária uma referência à História,

daí sua historicidade.

Isto ocorre porque os valores não são modelos estáticos, eles se realizam

na História, “...de tal modo que a História não teria sentido sem o valor: um “dado” ao

qual não fosse atribuído nenhum valor, seria como inexistente; um “valor” que jamais

se convertesse em momento da realidade, seria algo de abstrato ou de quimérico”, daí

sua realizabilidade.

No entanto, o valor não se exaure no fato a que se vincula, posto que com

ele não se confunde, não coincide, daí sua inexauribilidade.

15. Ordenação dos Valores

Como visto, diversas são as teorias sobre os valores, como muitas são

suas características. Cabe, neste momento, trazer à exposição ponto de extrema

relevância para o nosso estudo que é a explanação sobre a possibilidade de ordenação

dos valores e de que modo isto se realiza.

As civilizações são unidades históricas da espécie humana no seu fluxo

existencial que encerram sistemas de culturas diferentes.

Neste processo, o que diferenciam as civilizações e suas culturas é

exatamente a tábua de valores que são tomadas. Em outras palavras, as expressões

culturais são diferentes porque determinados valores são dominantes em relação a

outros.

Isto implica dizer que existem valores subordinantes e valores

subordinados, ou valores fundamentais e valores secundários, mas não de forma

absoluta. Na verdade as diversidades de focos são as determinantes do valor-fonte ou

valor fundamental, de sorte que somente podemos falar de valor subordinante e valor

103

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 196.

Page 57: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

57

subordinado de forma relativa. Relativa, leia-se, em relação à determinada civilização

de acordo com sua concepção do universo.

Esta diversidade de focos levou Eduardo Spranger104

a correlacionar

valores dominantes com determinada forma de vida, assim, “...o homem teorético,

dominado pelo valor da verdade; o homem econômico, absorvido pela estimativa do

útil; o homem estético atraído pelo valor do belo; o homem social conduzido pelo valor

do amor; o homem político determinado pelo valor do poder; e, por fim, o homem

religioso embebido do valor do santo”.

16. Classificação dos valores

Não resta dúvida que, tal como concebemos, a ordenação de valores

existe e é variável em relação ao ciclo de cultura em que se insere. No entanto, até para

que exista a aludida ordenação, forçoso concluir a existência de distinção entre os

valores, capaz de dar azo a uma classificação.

Miguel Reale105

expõe a possibilidade de realizar uma classificação do

ponto de vista formal, bem como do ponto de vista material, mas termina por preferir

uma classificação quanto ao conteúdo.

Sob o ponto de vista formal, pode-se admitir a distinção entre valores

subordinantes e valores subordinados, ou valores-fim e valores-meio, ou valores

autônomos e derivados. Distinguem-se por serem os primeiros valiosos por si mesmos,

ao passo que os segundos valem em função daqueles. No entanto, há valores que podem

ser fins em um sentido e meios em outro, sendo impossível traçar esta classificação de

forma absoluta, apenas relativa.

Do ponto de vista material, classifica os valores como sensoriais,

concernentes ao sujeito enquanto ser dotado de sensibilidade, abrangendo os valores

hedonísticos, os vitais e os econômicos; e como espirituais, concernentes ao homem

enquanto ser capaz de ideal, compreendendo os valores teoréticos, estéticos, éticos e

religiosos.

Quanto ao conteúdo, o autor elenca: o verdadeiro, expressão espiritual da

verdade, que condiciona estudos sobre o conhecimento, quer na sua estrutura (Lógica),

quer na sua funcionalidade (ontognoseologia); o belo, “...valor fundante das artes e dá

104

Formas de Vida, Rev. Do Occidente, Buenos Aires, 1948, apud Miguel Reale, Filosofia do Direito,

20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 229. 105

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 235.

Page 58: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

58

lugar à Estética”106

; o útil, o valor fundante da atividade econômica, comercial,

industrial ou agrícola e dá lugar à Filosofia econômica; o santo, o valor fundante das

religiões e dá lugar à Filosofia das religiões; o bem, o valor fundante da moral, do

Direito, dos costumes e dá lugar à Filosofia do Direito.

17. A origem fundante do Sistema Penal

Como visto anteriormente, o direito penal assenta suas bases sobre três

pontos fundamentais, a saber: o bem jurídico protegido, a pena, e o processo.

Já dissemos que o legislador exerce o poder político que define as bases

do sistema penal por meio da elaboração do ordenamento positivo.

Outrossim, indissociável a submissão do legislador a determinados

valores, ainda que intuitivamente, ao exercer o poder político e definir o norte do

sistema penal.

Desta forma, exposta a teoria sobre os valores, cumpre-nos a missão de

perquirir as ideologias penais que legitimam o poder punitivo estatal com base na

investigação axiológica da origem dos três pontos fundamentais do direito penal.

Em outras palavras, quais os valores que norteiam o legislador ao

elaborar o ordenamento jurídico penal?

A resposta a esta pergunta deve partir da indagação sobre a legitimação

do Estado para punir seu cidadão. Assim, cabe questionar que valores justificam o

emprego institucionalizado de violência contra o cidadão.

A resposta a este questionamento será prejudicial aos demais, o que se

exporá mais percucientemente a seguir, mas que vale, ab initio, afirmar que não

havendo legitimação axiológica para o exercício da violência do Estado para com o

cidadão não há que se falar em proteção de bem jurídico.

De outro lado, justificado o direito estatal de punir e definidos os valores

que se pretende proteger por meio dos bens jurídicos, deve o Estado definir o método

que legitimará a imposição prática da violência, com base, outrossim, nos valores

eleitos.

Assim, estará o sistema legislativo penal plenamente justificado sob o

ponto de vista axiológico.

106

Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 238.

Page 59: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

59

Nesta ordem de idéias, passaremos ao estudo da legitimação ou não do

poder punitivo do Estado como condição de existência do direito penal.

18. As ideologias penais:

18.1. A axiologia da pena

Diversas são as ideologias penais. Algumas justificam, outras não

legitimam a imposição de violência por parte do Estado. As correntes que vêem

finalidade na pena terão maior importância para este estudo, haja vista ter por finalidade

buscar a legitimação do poder estatal de punir.

De todo evidente que esta parte do estudo trata da axiologia do sistema

penal. Este item, especificamente, sobre a axiologia do poder do Estado impor uma

pena. No entanto, a terceira e última parte visa, com base no estudo teórico traçado nas

duas primeiras partes deste trabalho, traçar um perfil axiológico da fenomenologia do

direito penal brasileiro.

Desta forma, malgrado seja o estudo das duas primeiras partes

meramente teórico, a importância das ideologias que enxergam justificação para o

direito penal e para a pena têm maior relevância, posto que empiricamente o direito

penal no Brasil existe e seus fundamentos são o objeto maior deste estudo.

Não há, outrossim, qualquer interesse em criticar cada uma das

ideologias existentes. Esta tarefa já foi e vem sendo desempenhada por diversos

filósofos e juristas107

. No entanto, no mais das vezes o que se questiona é a finalidade da

pena, ao passo que o que faremos é buscar a origem, ou seja, o fundamento axiológico

das ideologias que estudam a finalidade da pena.

O interesse é perquirir as conseqüências de cada ideologia sobre os

demais fundamentos do direito penal, para em seguida, no estudo fenomenológico,

investigar, aí sim de forma crítica, a coerência ou as antinomias ideológicas existentes

empiricamente no sistema penal brasileiro sob o ponto de vista axiológico desenvolvido.

18.1.1. Deslegitimação:

107

vide Luigi Ferrajoli, Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, tradução Ana Paula Zomer, Fauzi

Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes, Editora Revista dos Tribunais, 2002, São Paulo e

Paulo de Souza Queiroz, Funções do Direito Penal – Legitimação versus Deslegitimação do Sistema

Penal, Del Rey, 2001, Belo Horizonte.

Page 60: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

60

Pretendemos iniciar o estudo sobre a legitimação do poder estatal de

punir expondo as ideologias que não enxergam qualquer valor na pena, deslegitimando

o poder estatal de impor violência contra seu cidadão.

Paulo de Souza Queiroz expõe que as correntes deslegitimadoras “...são

movimentos de política criminal, vertentes da assim chamada nova criminologia ou

criminologia crítica surgida nos Estados Unidos por volta dos anos 60 e 70, que,

rompendo com a criminologia tradicional ( a criminologia positiva), e sob o influxo de

teorias sociológicas principalmente (das mais diversas tendências), contrapõem ao

paradigma etiológico, próprio da criminologia positiva, um novo paradigma, o

paradigma do controle.”108

Duas são as correntes que exporemos neste sentido: o abolicionismo e o

minimalismo radical ou abolicionismo mediato. Senão vejamos:

18.1.1.a. Abolicionismo

Os principais expoentes desta corrente109

são Louk Hulsman, Nils

Christie, Henry Bianchi, Thomas Mathiensen, Heinz Steinert, Max Stirner.

Para os abolicionistas o direito penal não se justifica. Defendem a

completa deslegitimação não apenas da pena, mas também do direito penal. Daí porque,

de antemão, se deve frisar que a principal conseqüência desta corrente é a infirmação de

todos os fundamentos do sistema penal110

.

Seus argumentos assentam sobre diversas críticas tecidas às premissas do

sistema penal que, didaticamente, Paulo de Souza Queiroz111

identificou doze

principais, a saber:

1. O sistema penal não tem idoneidade funcional. Afirmam os

abolicionistas que o direito penal não é capaz de prevenir, quer de forma geral, quer

especial, por meio da cominação das penas, a prática de delitos. Em outras palavras, o

direito penal não é meio apto a motivar comportamentos, uma vez que a prática do

delito tem diversas causas motivacionais, sejam psicológicas, sociais, culturais, etc.,

incapazes de serem afastadas pelo mero temor da pena.

108

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 90/91. 109

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 93, afirma que o abolicionismo não se filia a uma corrente

ideológica, já que sua formação e princípios são muito variados, indo desde o neomarxismo ao

liberalismo, porquanto temos o cuidado de tratá-la como corrente de pensamento mas não ideológica. 110

Para Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 203, o abolicionismo perseguem modelos de sociedades pouco

atraentes: ou um sociedade selvagem, sem qualquer ordem e abandonada à lei natural do mais forte, ou

uma sociedade disciplinar, pacificada e totalizante. 111

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 93.

Page 61: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

61

2. O sistema penal é arbitrariamente seletivo. Parte da afirmação de que o

direito penal assenta suas bases sobre uma sociedade profundamente desigual e,

portanto, recruta sua clientela entre os grupos mais vulneráveis. Desta forma, a

igualdade formal é meio para legitimar a desigualdade material, sendo, destarte, o

direito penal um produtor e reprodutor de desigualdades sociais.

3. O direito penal é violador dos direito humanos. O discurso do direito

penal é desproporcional à capacidade de operação dos órgãos de aplicação da lei penal.

Assim, há uma “disparidade entre a programação discursiva e a realidade operativa

do sistema”112

, gerando atos de violação dos direitos humanos, tais como duração

extraordinária de processos criminais, prisões provisórias e que de tão duradouras

acabam se transformando em definitivas, etc.

4. Intervenção em situações excepcionais. A criminalidade registrada é o

objeto de intervenção do direito penal. A criminalidade registrada, investigada,

processada e objeto de condenação é tão pequena que chega a ser irrisória, desprezível.

A criminalidade desconhecida, ou cujos autores não são identificados, ou que são

alcançados pela prescrição, ou objeto de composição, ou não provados, etc. (são as

chamadas “cifras ocultas”) se mostram em número tão maior que as objeto de registro

que se pode concluir que de um sistema ocupado de casos esporádicos é prescindível.

5. O sistema penal neutraliza a vítima. O tratamento dado pelo direito

penal coisifica a vítima ao tratá-la como se todos os que sofressem um crime tivessem

as mesmas reações e necessidades. O direito penal exclui a vítima, toma-lhe o conflito,

e lhe confere uma solução alheia à sua vontade, portanto, insatisfatória e irracional.

6. Inexistência de consistência ontológica do crime. O crime é uma

situação assim definida, donde se verifica a existência de vários comportamentos

considerados “delitos” que nada têm em comum a não ser terem sido definidos pelo

poder político como tal. Daí porque o crime não é uma realidade social, mas uma

criação conforme as conveniências políticas, carecendo de consistência ontológica.

7. O sistema penal intervém sobre as pessoas e não sobre as situações.

Afirma-se com isto que o sistema penal é baseado na culpabilidade pessoal individual,

se abstraindo das variáveis sociais que permeiam as condutas humanas. Seria um

sistema de responsabilidade biológica e não de responsabilidade social.

112

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 98.

Page 62: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

62

8. O sistema penal intervém de maneira reativa e não preventiva. O

controle penal se realiza após a produção das conseqüências do delito praticado, não

sendo capaz de eliminá-las. Outrossim, não atua preventivamente, como já visto

anteriormente. Assim, teria uma função de vingança, meramente simbólica e não

compensatória materialmente.

9. O sistema penal atua tardiamente. Há um lapso temporal grande entre

o momento do delito e o da intervenção penal em razão da demora no processo penal.

Assim, afirmando que o acusado não é a mesma pessoa em momentos tão díspares, não

há sentido na intervenção.

10. O sistema penal concebe uma sociedade falsa. Afirma-se que o

sistema penal pressupõe uma sociedade plenamente consensual, em que todos, de forma

unânime, reprovariam comportamentos tidos como delituosos, negando o pluralismo

nas sociedades heterogêneas.

11. A lei penal não é inerente à sociedade. É uma negativa de

naturalidade ao direito penal, afirmando-se que antes da sua criação a sociedade resolvia

seus conflitos por outros meios, como o direito civil.

12. O sistema penal atua sobre efeitos e não sobre as causas da violência,

porquanto os comportamentos tidos como delituosos são as conseqüências de problemas

que não são objetos da intervenção penal.

18.1.1.b. Minimalismo radical ou abolicionismo mediato

Os principais pensadores desta corrente são Alessandro Baratta, Eugênio

Raul Zaffaroni, Sebastian Sheerer.

O minismalismo radical consiste no reconhecimento de que todas as

justificações para o direito penal são improcedentes, portanto, todas as críticas expostas

como de pensamento abolicionista são compartilhadas por esta corrente que, não por

outro motivo, também se classificou como deslegitimadoras.

Todavia, só é possível abolir completamente o direito penal com a

implementação prévia de mudanças sociais que possibilitem a supressão do sistema

repressivo estatal.

Desta forma, o direito penal se mantém como meio para alcançar a sua

própria supressão, daí porque podemos classificar este pensamento como abolicionismo

mediato, a longo prazo.

Page 63: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

63

Há um ponto importante a ser ressaltado. Para os minimalistas o direito

penal é de fato um subsistema de controle social e, como tal, por ser necessária sua

manutenção enquanto não se criam condições sociais para sua abolição, o mesmo pode

ser até mesmo ampliado nos casos em que a nova intervenção seja absolutamente

necessária, como para proteção de interesses sociais fundamentais, tais como a saúde

pública e o meio ambiente.

Frise-se, outrossim, que esta corrente não defende a mera despenalização

ou diversificação de penas, mas a renúncia ao poder punitivo estatal onticamente

considerado, sob pena de se legitimar um aumento real do poder do sistema com uma

redução meramente aparente dos recursos do sistema punitivo.

18.1.2. Legitimação ou Justificação:

Numa perspectiva histórica, como de resto o mesmo ocorre no plano

teórico, as ideologias justificacionistas do direito estatal de punir prevaleceram sobre as

teorias deslegitimadoras.

Esta parte do trabalho se dedica a ordenar e explicar de forma sucinta as

diversas doutrinas a respeito das justificações do direito do Estado impor sanção penal.

A classificação aqui exposta, de fato, não é nova, mas tem a importância

de imprimir ao tema uma conotação axiológica, portanto, menos dogmática, mais

filosófica.

A priori a classificação se fará conforme o valor que se empresta à

punição, sem descurar das conseqüências desta valoração, porquanto, como dito, isto

implicará na legitimação ou não dos demais pontos fundamentais que compõem o

direito penal.

Luigi Ferrajoli, baseado em Sêneca, expõe que a diferença entre as

justificações retributivistas e utilitaristas é que “...as justificações do primeiro tipo são

quia peccatum, ou seja, dizem respeito ao passado; aquelas do segundo, ao contrário,

são ne peccetur, ou seja, referem-se ao futuro”113

.

De fato. No entanto, devem ser acrescentadas a estas doutrinas

retributivistas e utilitaristas, as doutrinas mistas, que encerram uma síntese das demais

doutrinas elaborada por determinados pensadores, aí incluindo o próprio Luigi Ferrajoli,

teórico do garantismo penal.

113

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 205.

Page 64: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

64

18.1.2.a. Teorias retributivistas:

As doutrinas chamadas absolutas ou retributivistas baseiam-se na

máxima de que é justo “pagar o mal com o mal”.

De antemão cumpre ressaltar a divergência de visão destas doutrinas que

fazem os estudiosos e o que se exporá neste trabalho. É que estas doutrinas são

chamadas de absolutas uma vez que enxergam a pena como um fim ou um valor em si

mesma114

.

Não é o que pensamos. Fato é que uma vez aplicada a pena, sob o ponto

de vista destas doutrinas, o valor almejado estaria realizado, pois o mesmo é alcançado

com a retribuição do mal. Estas doutrinas seriam melhor chamadas de retributivistas, e

não absolutas, porquanto pretendem seja a pena uma forma de “pagar o mal com o mal”

para alcançar um determinador valor: o justo.

Na ordem da citada tábua de valores trata-se da prevalência da busca do

valor do justo para justificar a imposição da punição.

Todavia, deve-se relevar que, na ordem da teoria dos valores

anteriormente exposta, os valores se implicam, e como tal não necessariamente apenas

um valor existe na formulação desta doutrina.

Ao contrário, conquanto na origem desta doutrina encontremos, de fato, o

valor do justo, haja vista ordenamentos primitivos cuja base é a “vingança de sangue”,

ou a máxima “olho por olho, dente por dente”, como a Lei de Talião, o valor do santo se

apresenta como início da busca religiosa pela legitimação do poder de punir que se

assenta, entre outros valores, em parte sobre as bases do justo, em parte sobre idéias

fundamentais de caráter religioso, que encontramos principalmente nos pensamentos da

idade medieval. Vale trazer a colação as lições de Luigi Ferrajoli:

“Presente na tradição hebraica sob a forma de preceito

divino, incorporada inobstante o preceito evangélico do perdão na

tradição cristiana e católica – de São Paulo, Santo Agostinho e Santo

Tomás até Pio XII tal concepção gira em torno de três idéias

fundamentais de caráter religioso, vale dizer, aquelas da “vingança”

(ex parte agentis), da “expiação” (ex parte patientis) e do

“reequilíbrio” entre pena e delito.”115

114

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 208. 115

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 205.

Page 65: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

65

O mesmo autor esclarece que estas idéias sempre exerceram fascínio

sobre o pensamento político reacionário e, malgrado tenham passado por uma crise

durante o iluminismo, foram relançadas no século XIX por pensadores laicos e que

passaremos a expor.

18.1.2.a.I. Retributivismo Ético

Esta teoria foi formulada por Emmanuel Kant se baseia no fato de que a

pena se justifica por ser uma sanção à violação da norma penal que encerra um valor

moral. Daí porque a pena deriva de um imperativo categórico, ou seja, moral, portanto

incondicional.

Neste ponto vale lembrar a distinção kantiana entre imperativo

categórico e imperativo hipotético. O primeiro diz respeito aos imperativos morais, que

são categóricos porque comandam uma ação que é boa em si mesma, sem o fim que ela

possa atingir. O imperativo hipotético, por sua vez, prescreve uma ação que é boa

condicionadamente ao fim que pretende alcançar.

Assim, como a norma penal é regida por princípios morais, as penas são

imperativos categóricos que não tem uma finalidade utilitárias, mas realizam um fim em

si mesmo, o fim de alcançar a justiça. Daí porque o princípio talional é plenamente

aceito por Kant como o paradigma da verdadeira justiça116

.

Kant, inegavelmente, vislumbra o valor do justo como aquele a ser

alcançado pela pena e que se realiza por completo com a aplicação da pena.

18.1.2.a.II. Retributivismo Jurídico

Para Hegel, a pena é a afirmação do direito. Isto porque o delito é uma

violência contra o direito e a pena é também uma violência, só que contra o delito, por

isso tem por finalidade anular a primeira violência. In verbis:

“O princípio conceitual de que toda violência destrói a

si mesma possui a real manifestação no fato de uma violência se

anular com outra violência.”117

116

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 20. 117

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Princípio da Filosofia do Direito, tradução Orlando Vitorino, São

Paulo Martins Fontes, 1997, pág. 84.

Page 66: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

66

Desta forma, conquanto a violência seja injusta em si mesma, a violência

da pena, como negação do ato de negação da liberdade consistente no ato criminoso faz

restaurar o próprio direito em si.

Nesta medida a pena é uma violência que suprime o crime e restaura o

direito e, no conceito de moralidade subjetiva reside a aspiração da pena como

realização da justiça e não como vingança.

Neste aspecto a pena realizaria a justiça, porquanto seria um direito até

mesmo do próprio criminoso afirmar o seu direito por meio da negação do crime que ele

próprio cometeu, com a aplicação da pena. E neste passo realizaria o valor do justo que

é, embora sob fundamentação diversa de Kant118

, o mesmo valor perseguido por Hegel:

“A pena com que se aflige o criminoso não é apenas

justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade do criminoso,

uma maneira da sua liberdade existir, o seu direito.”119

18.1.2.b. Teorias utilitaristas:

Ultrapassadas as doutrinas que justificam a pena como uma resposta ao

passado, passemos ao estudo das legitimações da pena para períodos futuros. Como já

dito anteriormente a visão retributivista entrou em claro declínio no período iluminista,

época de fértil influxo das idéias utilitaristas da pena.

Ao passo que as doutrinas retributivistas enxergam um fim para a pena

que se realiza em si mesma, não que a pena seja um valor em si mesmo120

, mas sim que

ao aplicar a pena o mal se paga e alcançada está a justiça, as doutrinas utilitaristas

podem ser assim denominadas porque se fazem necessárias como meio para alcançar

algo (um valor) que vai além delas próprias, portanto se voltam ao futuro.

O valor da pena na visão utilitarista é o útil, na medida em que ela é

utilizada como um meio para alcançar um outro valor no futuro, conforme o objetivo de

sua aplicação.

Estas doutrinas têm em comum exatamente o fato de vislumbrarem a

pena como um meio para o alcance de algo mais valioso.

118

Segundo Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 205, as duas teses retributivas de Hegel e Kant são apenas

aparentemente distintas, “...pelo menos no que tange a Hegel, vez que concebendo o Estado enquanto

„espírito ético‟ ou „substância ética‟, ou, ainda, simplesmente ethos, também a idéia de retribuição

„jurídica‟ baseia-se em última análise, a bem da verdade, no valor moral atrelado ao ordenamento

jurídico lesado, para não dizer no imperativo penal individualmente considerado.” 119

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ob. cit., pág. 89. 120

Para Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 208, estas doutrinas olham a pena “...como se ela própria fosse um

fim ou um valor”.

Page 67: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

67

Faremos uma primeira classificação conforme o destinatário da utilidade

da pena. Não se deve confundir com o destinatário da pena em si, posto que este será,

via de regra, o condenado121

.

A finalidade utilitarista ne peccetur será preventiva, na medida em que se

volta para o futuro. Será especial ou geral caso se destine ao próprio condenado ou aos

cidadãos em geral, respectivamente.

Uma segunda classificação se fulcrará na prestação da pena, podendo,

portanto, ser positiva ou negativa.

Vejamos cada uma destas doutrinas.

18.1.2.b.I. Prevenção Especial:

Como dito anteriormente estas ideologias têm por característica comum

buscar um outro fim além da pena, voltando o resultado da sanção penal para o futuro, e

utilizando-a como um meio e não um fim realizável com sua aplicação.

Luigi Ferrajoli122

verifica que os primórdios do pensamento penal que

justificam a pena pela função de prevenção especial remontam ao tempo clássico, tal

como elaborada por Platão a idéia da poena medicinalis.

Malgrado tenha encontrado sua reelaboração na Idade Média por Santo

Tomás, como se verá a seguir, teve próspero desenvolvimento na época iluminista,

contrariamente às teorias contratualistas e jusnaturalistas prevalecentes no pensamento

daquele tempo e que expressavam o apelo liberal e revolucionário da tutela do indivíduo

contra o despotismo do velho Estado absolutista, pois que a correição expressava a

vocação autoritária do novo Estado liberal e dos regimes totalitários que a este

sucederam com sua crise.

Ainda na visão do pensador italiano, as “...doutrinas e legislações penais

de tipo propriamente correicional desenvolveram-se, por sua vez, somente na segunda

metade do século XIX, paralelamente à difusão de concepções organicistas do corpo

social, são ou doente, sobre o qual são chamadas a exercitar o olho clínico e os

experimentos terapêuticos do poder.”123

121

Será via de regra o condenado, mas nem sempre, basta ver que o princípio da intranscendência ou da

pessoalidade da pena não existiu sempre na História do direito penal. A aplicação da pena imposta a

Tiradentes, por exemplo, surtiu efeitos às suas gerações descendentes. 122

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 213. 123

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 213.

Page 68: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

68

Chamamos de prevenção especial a corrente de pensamento que vê na

pena uma finalidade que se destina ao futuro e que objetiva alcançar um valor do

próprio condenado.

. Prevenção Especial Positiva

Há doutrinas que vislumbram a possibilidade de utilizar a pena para

corrigir ou tratar o condenado. Não por outro motivo estas doutrinas são chamadas

também de correicionalistas.

Não há uma única doutrina correicionalista, mas diversas que partem do

mesmo objetivo e verificam na pena uma finalidade utilitarista voltada à pessoa do

condenado.

Não é difícil verificar que estas doutrinas que atribuem à pena a

finalidade de corrigir, tratar, reeducar o condenado, partem do pressuposto de que este

é, em si, errado, desviado ou doente, porquanto não têm por objetivo a penalização de

condutas e sim de pessoas.

No entanto, as correntes de pensamento dos diversos matizes que

justificam a concepção utilitarista especial positiva, em geral, como se verá a seguir,

também legitimam a pena para uma utilidade preventiva negativa.

. Prevenção Especial Negativa

As mesmas doutrinas que vêem na pena um tratamento para ressocializar,

reeducar, tratar o condenado, também vislumbram a necessidade de eliminá-lo em

determinados casos.

Isso ocorreria sempre que o tratamento não fosse adequado, ou não

houvesse tratamento para determinado sujeito, que, por ser irrecuperável, seria

merecedor da prevenção negativa, com a sua retirada do convívio social, para o qual não

se mostra apto.

Mesmo nesta hipótese em que se pode estar mitigando valores

primordiais na tábua social, qual seja, a liberdade e a igualdade, a utilidade ainda é o

que se busca com a pena. Em outras palavras, para a realização do valor do útil, na

medida em que a pena é aplicada para alcançar um outro objetivo que vem após, são

tornados irrelevantes a liberdade, uma vez que por esta finalidade da prevenção especial

negativa pode se estar encarcerando indefinidamente ou matando o condenado, e a

igualdade, pois se acredita que o condenado é diferente, tem algum tipo de problema.

Page 69: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

69

. Doutrinas correicionalistas

Todas as doutrinas correicionalistas legitimam o poder de punir do

Estado com base na finalidade do alcance de um outro valor, o que é próprio das

correntes utilitaristas em geral.

A peculiaridade é que para as correntes correicionalistas, a finalidade é

dirigida ao próprio delinqüente e não ao corpo social.

Assim, tem em comum o fato de considerar não o delito, mas o indivíduo

como objetivo da pena, e o tomam em conta como um ser patológico, cujo defeito pode

ser moral, social ou natural, conforme a orientação ideológica da corrente

correicionalista.

Desta forma, na esteira do pensamento de Luigi Ferrajoli124

, podemos

identificar três doutrinas correicionalistas:

Doutrinas pedagógicas da emenda. Para o pensador italiano esta é a

corrente doutrinária mais remota e inspira-se numa concepção espiritualista do homem e

se fulcram na idéia de que os homens que delinqüem podem não apenas serem punidos,

mas também serem obrigados pelo Estado a tornarem-se bons. É poena medicinalis

elaborada por Platão e desenvolvida por Santo Tomás.

Esclarece, ademais, que a idéia da pena como resgate deita raízes na

concepção bíblica da pena como sofrimento, como preço ou forma de sacrifício para

expiação dos pecados e da reconciliação do homem com Deus.

Não sendo alcançados efeitos positivos com a “medicina da alma”, cabe

a intervenção negativa com o afastamento do convívio social, seja por eliminação ou

privação do convívio.

Mais uma vez, verifica-se que o valor do santo está presente nesta

corrente doutrinária e desta vez se alia ao valor do útil, próprio das correntes

correicionalistas em geral, para ser alcançado

Estas correntes antigas inspiraram as diversas versões do pedagogismo

penal moderno sustentada por diversos pensadores, tais como Karl Roeder, Vicenzo

Garelli, Francesco Filomusi Guelfi, Vicenzo Lanza e Francisco Carnelutti, bem como as

correntes idealistas sustentadas por Ugo Spirito na Itália.

124

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 214.

Page 70: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

70

Doutrinas terapêuticas da defesa social. Para esta corrente o delinqüente

é um ser antropologicamente inferior e apresenta uma periculosidade social a ser

eliminada pela pena. Porquanto esta variará conforme o grau de periculosidade do

delinqüente: curar o condenado ou, de outro lado, segregá-lo ou neutralizá-lo.

Verifica-se, sem muita dificuldade tratar-se da versão penal e

criminológica do determinismo positivista, de origem na idéia de “delinqüente nato” de

Lombroso.

Na perspectiva de conceber a pena como terapia para o tratamento do

delinqüente que é naturalmente doente, são justificadas penas de segregação por tempo

indeterminado, revisão periódica do “tratamento” penal, etc., o que acaba por legitimar,

ao mesmo argumento, o tratamento e a segregação.

Malgrado elaboradas, sobretudo na Itália, pela Escola positiva, por

Enrico Ferri, Raffaele Garofalo, Eugenio Florian e Filippo Grispigni, teve grande

repercussão e aceitação na França, Espanha, América Latina, em ambientes anglo-

saxões e na União Soviética.

Doutrina eclética da “pena-defesa”. Elaborada por Franz Von Liszt no

seu Programa de Marburgo de 1882, se baseia na flexibilidade e funcionalidade do

direito penal, consubstanciado na individualização da pena conforme os diversos “tipos”

de delinqüentes a serem tratados.

Verifica que os tipos de delinqüentes podem ser “adaptáveis”,

“inadaptáveis” ou “ocasionais”, para os quais caberá respectivamente a

“ressocialização”, a “neutralização” ou a “intimidação”. Verifica-se que para os

ocasionais há em sentido nesta última finalidade que é de certo modo a base da

prevenção geral.

Por sinal é chamada de eclética porque, embora tenha por finalidade

precípua a prevenção especial, não descura, inclusive da retributividade da pena, posto

que para Liszt “„a pena-defesa é a pena retributiva comprendida em seu sentido justo‟,

ou seja, „justa no caso concreto‟.”125

18.1.2.b.II. Prevenção Geral:

A corrente de pensamento que vê na pena a finalidade da prevenção geral

encerra diversas doutrinas que justificam o poder estatal de punir pelo valor do útil. A

125

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 216.

Page 71: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

71

peculiaridade desta corrente é a pessoa para quem se volta a pena enquanto meio para o

alcance de determinado fim.

Isso porque a prevenção geral legitima a pena enquanto mecanismo

direcionado para os cidadãos em geral, para dissuadi-los da vontade de praticar atos

delituosos.

A classificação enquanto positiva ou negativa da prevenção geral como

finalidade da pena, deve-se à natureza da prestação que se pretende do destinatário do

valor da pena, que no caso é o cidadão em geral, como já dito.

Isto não deve ser confundido com o destinatário da pena em si, porquanto

este será sempre o delinqüente condenado, obviamente, pois não seria admissível

justificar a aplicação da pena à generalidade dos cidadãos.

No entanto, malgrado a aplicação da pena se dirija ao condenado, seus

efeitos úteis se irradiam, para os defensores da prevenção geral, para a coletividade que

passa a ter que respeitar a ordem.

. Prevenção Geral Positiva ou Integradora

O objetivo, na visão dos adeptos desta corrente de pensamento, da pena é

não propriamente dissuadir os potenciais delinqüentes de praticarem uma infração

penal, mas de infundir na consciência geral a necessidade de respeito a determinados

valores, promovendo a estabilização social.

Focaremos, na esteira do lecionado por Paulo de Souza Queiroz126

, duas

reelaborações desta perspectiva da pena. Senão vejamos:

Para Hans Welzel, o direito penal tem por função precípua a defesa de

valores ético-sociais. Argumenta que, como o direito penal intervém tardiamente, sem a

possibilidade de recuperar o bem jurídico perdido ou violado, o essencial, não é,

destarte, a proteção dos bens jurídicos, mas dos valores ético-sociais que se pretende

assegurar com a proteção penal.

Desta forma a pena seria uma afirmação dos valores ético-sociais,

infundindo-os e reafirmando-os na consciência coletiva.

Para Günther Jakobs, que tem sua teoria funcional baseada nas idéias

sistêmicas de Niklas Luhmann, justifica-se “...a pena enquanto fator de coesão do

sistema político-social em razão da sua capacidade de reestabelecer a confiança

126

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 41.

Page 72: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

72

coletiva abalada pelas transgressões, a estabilidade do ordenamento e, portanto, de

renovar a fidelidade dos cidadãos no que tange às instituições.”127128

Desta forma, assim como Welzel, Jakobs não vê no direito penal a

finalidade direta ou principal de proteção de bens jurídicos, mas, enquanto para aquele a

finalidade é a proteção de valores ético-sociais, para este a finalidade é a proteção de

funções sistêmicas.

. Prevenção Geral Negativa

Luigi Ferrajoli expõe a existência de dois sub-grupos de pensamento que

vêem na pena a finalidade de prevenção geral negativa:

O primeiro que o pensador italiano aborda são as doutrinas da

intimidação exercida sobre a generalidade dos associados pelo exemplo fornecido pela

aplicação da pena e que se verifica nos pensadores jusnaturalistas dos séculos XVII e

XVIII, como Grócio, Hobbes, Locke, Pufendorf, Thomasius, Beccaria, Bentham,

Filangieri.

O segundo sub-grupo reúne as doutrinas da intimidação voltadas para a

generalidade por meio da ameaça contida na pena. Esta doutrina defendida por Anselm

Feuerbach, Giandomenico Romagnosi, Francesco Maria Pagano, Arthur Schopenhauer,

Carmignani, Carrara, como é evidente, não se baseia no exemplo que a pena representa,

mas na ameaça que abstratamente exerce sobre os cidadãos em geral, partindo do

pressuposto que a ameaça de punição tem o poder de dissuadir o delinqüente de ter o

comportamento proibido pela norma.

18.1.2.c. Teorias mistas ou ecléticas:

As teorias mistas ou ecléticas são dominantes hodiernamente e tem por

características superar as antinomias das correntes monistas, combinando-as ou

unificando-as sistematicamente.

Axiologicamente tem por objeto realizar diversos valores que se

implicam. Paulo de Souza Queiroz leciona, expondo, malgrado seu tema não tenha por

escopo uma investigação axiológica, os valores a serem alcançados nas concepções

mistas ou ecléticas da finalidade da pena:

127

Luigi Ferrajoli, ob. cit., pág. 222. 128

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 49, expõe que diversos pensadores como Arthur Kaufmann e

Muñoz Conde o vêem como “neo-retribucionista”.

Page 73: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

73

“Para essa teoria, a justificação da pena depende, a um

tempo, da justiça de seus preceitos e da sua necessidade para a

preservação das condições essenciais da vida em sociedade (proteção

de bens jurídicos). Busca-se, assim, unir justiça e utilidade, razão pela

qual a pena somente será legítima na medida em que seja

contemporaneamente justa e útil. Por conseguinte, a pena, ainda que

justa, não será legítima, se for desnecessária (inútil), tanto quanto se,

embora necessária (útil), não for justa.”129

Desta forma, vê-se com clareza que os diversos valores identificados em

cada uma das doutrinas monistas expostas anteriormente são buscados conjuntamente

pelas doutrinas ecléticas.

Exporemos, a seguir, duas das principais doutrinas ecléticas

justificadoras do poder estatal de punir: a teoria dialética unificadora e a teoria do

direito penal mínimo ou garantismo.

18.1.2.c.I. Teoria dialética unificadora

Trata-se, na realidade, da exposição do pensamento sobre a justificação

do poder estatal punitivo de um dos maiores juristas penais hodiernos, Claus Roxin.

Para o pensador germânico, a busca da finalidade da pena passa pela

análise dos momentos da pena, a saber: a cominação, a aplicação e a execução. Cada um

desses momentos merece uma justificação particular.

Na primeira fase do exercício do jus puniendi, qual seja, a cominação

abstrata da sanção penal para determinado delito, entende Roxin que é necessário saber

os fins do próprio Estado enquanto titular do direito de punir.

Assim, é de se frisar que neste ponto a tarefa legislativa de cominação da

pena é um exercício do poder político e, como tal, o direito penal deverá ter seu

conteúdo e limites definidos de acordo com a conformação política que se assinale ao

Estado130

. Desta forma, conclui Roxin que o direito penal é de natureza subsidiária (só

podendo se ocupar de lesões de bens jurídicos que não podem ser protegidos por outros

meios, como o direito civil) e que o direito penal não pode se ocupar de condutas

imorais ou que não lesem bens jurídicos.

129

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, ob. cit., pág. 89. 130

Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 69.

Page 74: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

74

Logo, à luz da exposição supra, neste momento (cominatório) da pena, a

função de proteger os bens jurídicos justifica a finalidade preventiva geral positiva

subsidiária, porquanto visa levar o cidadão a não violar os bens jurídicos e, assim,

conformar a conduta do cidadão à ordem social.

No segundo momento da pena, qual seja, sua aplicação por meio da

sentença penal condenatória, estamos tratando do exercício do poder do Estado punir,

mas não no que concerne à natureza política de sua atuação, mas sim no que respeita à

sua atuação técnico-jurídica, realizada pelo Poder Judiciário.

Aqui se verifica não apenas a finalidade preventiva geral negativa, posto

que a aplicação da pena confirma a sua ameaça que é dirigida a todos, mas também a

finalidade preventiva geral positiva de fortalecimento da consciência jurídica da

generalidade dos destinatários da norma penal.

Neste momento (aplicação) da pena, Roxin verifica a finalidade da

prevenção especial positiva e negativa, porquanto “...intimidará o delinqüente face a

uma possível reincidência e manterá a sociedade segura deste, pelo menos durante o

cumprimento da pena.”131

Ressalta Roxin que culpabilidade funciona neste momento da pena, mas

não como seu fundamento, e sim como limite desta.

Quanto ao terceiro momento da pena, qual seja, a execução, o jurista

germânico vislumbra, sem prejuízo da prevenção geral, ser finalidade da execução a

reintegração do delinqüente à sociedade, à sua ressocialização, sem que em nome desta

finalidade possa se legitimar afrontas à personalidade do ser humano, como é o caso de

uma inadmissível castração de um delinqüente sexual.

18.1.2.c.II. Teoria de direito penal mínimo ou garantismo

Trata-se do pensamento de Luigi Ferrajoli sobre a finalidade do poder

estatal de punir.

Expõe como única finalidade legítima da pena a prevenção geral

negativa. No entanto, relê esta finalidade sob dois prismas: a prevenção geral negativa

tradicional direcionada aos cidadãos em geral para evitar a prática de futuros delitos e a

prevenção geral negativa direcionada aos cidadãos em geral para evitar a prática de

possíveis violências arbitrárias em reação aos delitos.

131

Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, 2ªed., Belo Horizonte, Veja, 1993, pág.

33/34 apud Paulo de Souza Queiroz, ob. cit., pág. 70.

Page 75: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

75

Para Ferrajoli a pena serve para prevenir delitos injustos, mas, sobretudo,

para prevenir punições injustas. É uma prevenção que se direciona à pessoa ofendida e

também ao delinqüente.

A finalidade de prevenir delitos determina o limite mínimo da pena, ao

passo que a finalidade de prevenir a imposição de castigos arbitrários ou

desproporcionais determinam o limite máximo da pena.

Ferrajoli não encontra justificação para a pena na idéia de ressocialização

ou de reeducação, porquanto o direito de punir do Estado não está legitimado a forçar os

cidadãos a se tornarem bons e deixarem de ser malvados, nem tampouco a moldar suas

personalidades, haja vista que a obrigação do cidadão é não cometer delitos, apenas,

preservando-lhe o direito de ser interiormente malvado, separando-se, claramente,

direito e moral.

18.1.3. Conseqüências das ideologias penais

Neste ponto do estudo se faz necessário uma avaliação das conseqüências

das ideologias da axiologia da pena sobre os demais pontos fundamentais que compõem

o direito penal.

Porquanto, a perquirição necessária, ab initio, é se existe legitimação

para a proteção de bens jurídicos à luz dos fundamentos axiológicos das penas ou que

correntes ideológicas penais legitimam o direito estatal de proibir.

Isso porque, não é correto afirmar, muito pelo contrário, que a

legitimação do direito de punir implica na legitimação do direito de proibir.

É bem verdade que as ideologias deslegitimadoras não deslegitimam

apenas a pena em si, mas como já se viu, deslegitimam o próprio sistema penal como

um todo, retirando justificativa do direito de proibir.

No entanto, isto não é uma decorrência lógica imediata, isto é, não se

pode dizer que o direito do Estado proibir não encontra legitimação pelo só fato de o

direito do Estado de punir, porquanto seria o mesmo que afirmar que ninguém pode

proibir sem punir.

Evidente que se pode proibir sem punir. Se esta proibição será aceita e

terá efetividade prática é um problema subseqüente.

No entanto, as correntes deslegitimadoras do direito estatal de punir,

pelos seus próprios argumentos já expostos deslegitimam, outrossim, o direito estatal de

proibir.

Page 76: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

76

Outro ponto importante é que determinadas ideologias legitimam o

direito estatal de punir, deslegitimando o direito estatal de proibir.

O que parece ser um contra-senso se mostra óbvio na medida em que

relembramos que as ideologias que justificam a pena, enxergando nas mesmas a

finalidade utilitária preventiva especial, se ocupam mais do delinqüente que do próprio

comportamento.

Em outras palavras, as correntes utilitárias de prevenção especial, seja

positiva, seja negativa, fundamentam o poder estatal de punir na necessidade de

recuperar e ressocializar o cidadão desviante, ou mesmo excluí-lo do convívio social.

Daí porque o poder de punir está baseado nos problemas pessoais do delinqüente, qual

seja, em suas características pessoais, que denotam um problema patológico de caráter

social ou até mesmo biológico, merecedor de uma reparação.

Não há, destarte, para esta corrente de pensamento qualquer interesse no

fato delituoso132

, mas sim no delinqüente com sua patologia a ser sanada pela pena,

prevenindo o delito. É o direito penal do delinqüente e não do delito.

Para esta ideologia do direito de punir do Estado, não há legitimação para

o poder estatal de proibir, pois o que se proíbe não é o comportamento, e sim a pessoa.

A proteção penal recai sobre o indivíduo, e não sobre as ações desviadas que atingem

bens jurídicos penais.

Não há legitimação axiológica a ser perquirida no que concerne à

proteção dos bens jurídicos, porquanto não é a violação destes que importa ao direito

penal e sim a pessoa desviada.

No que respeita à corrente retributivista a legitimação do direito de

proibir é inerente ao seu fundamento axiológico.

Como visto anteriormente, o valor fundante desta corrente de

pensamento legitimador do direito estatal de punir é a justiça. A lógica, básica desta

ideologia é a de retribuir o mal, o que sob qualquer ponto de vista pressupõe tenha sido

praticado um mal por quem está a merecer a imposição do mal pelo Estado.

Assim, cabe ao Estado buscar a legitimação para cada proibição a que se

pretende cominar uma pena. Isso porque, como se está fundando o direito de punir na

violação de algo, sem dúvida só pode haver violação do que é proibido, legitimando

132

Francesco Carnelutti, As Funções do Processo Penal, 1ª Edição, apta edições, Campinas, 2004,

tradução de Rolando Maria da Luz, pág. 36, afirma que “se as medidas de segurança tendem a excluir ou

pelo menos a atenuar o perigo do delito, logicamente o pressuposto delas deveria ser não tanto o delito

quanto o perigo do delito.”

Page 77: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

77

assim o direito do Estado de proibir, e, em conseqüência, protegendo bens que se

afiguram importantes para o Estado.

Desta forma, as correntes retributivistas legitimam o direito estatal de

proibir a violação de determinados bens jurídicos, conforme a tábua de valores que o

exercente do poder político estatal escolher133

.

As correntes utilitaristas que vêem a pena como meio para prevenir de

forma geral os delitos, devem ser analisadas conforme seja a prevenção geral positiva

ou negativa.

Isso porque, a prevenção geral negativa, como visto, se subdivide na

corrente que encontra na pena a finalidade de dissuasão dos cidadãos em geral de ter o

comportamento proibido pela norma; e a corrente que acredita dever ser a pena utilizada

como um exemplo a ser dado para os cidadãos em geral.

Para os que verificam na pena a finalidade de dissuasão dos cidadãos de

terem o comportamento proibido pela norma, evidentemente que a legitimação do poder

de proibir é inerente à própria explicação da finalidade da pena, posto que o objetivo da

pena é evitar a conduta proibida, ensejando a perquirição da legitimação de cada

proibição, mas, de toda sorte, justificando o poder de proibir.

No que respeita a corrente da prevenção geral negativa que verifica na

pena um exemplo a ser dado para os demais cidadãos que não sofreram a pena, há

igualmente uma legitimação do poder estatal de proibir, visto que o objetivo é dar

exemplo para evitar que outros tenham o mesmo comportamento que o delinqüente, daí

porque a proibição daquele comportamento se faz necessário, legitimando o poder

estatal de proibir.

O que esta corrente implica é na completa desnecessidade e até

inutilidade dos sistemas de garantias de julgamento, posto que o direito de defesa torna-

se inócuo na medida em que o que interessa não é se o delito foi praticado, mas o

exemplo que será dado com a imposição da pena.

Para a corrente que vê na pena a finalidade de prevenção geral positiva,

uma vez que o objetivo é menos punir uma conduta criminosa e mais de infundir na

consciência geral a necessidade de respeito a determinados valores, promovendo a

estabilização social, o direito estatal de punir é meramente instrumental.

133

Se esta escolhe será feita livremente ou à luz de determinados limites veremos mais a frente.

Page 78: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

78

Não está o direito penal, à luz desta corrente, legitimado na perquirição

do fundamento de cada proibição em si, mas na consecução de um objetivo maior. Isso

não significa dizer que não se está legitimando o direto estatal de proibir, mas que isto é

instrumental e vinculado a uma finalidade maior. Luiz Flávio Gomes leciona:

“Uma teoria positivista com uma dimentsão tão

“neutra” (funcionalista), ao não definir previamente a forma

específica de seu funcionamento nem o sistema social ao qual será útil,

não somente pode permitir o arbítrio punitivo, senão que, tal como

assinalou com grande propriedade Muñoz Conde, “conduz à

substituição do conceito de bem jurídico pelo de „funcionalidade do

sistema social‟, perdendo assim a Ciência do Direito penal o último

apoio que fica para a crítica do Direito penal positivo”.”134

No que concerne às correntes mistas ou ecléticas, até mesmo por

reunirem algumas das correntes acima citadas, podemos verificar que não apenas

legitimam o poder estatal de proibir, como há imperiosa necessidade de se perquirir os

fundamentos do poder de proibir, para que se determinem as limitações do exercício de

todos os poderes.

18.2. A axiologia do bem jurídico

18.2.1. O Direito estatal de proibir (princípio da proporcionalidade)

Como abordado acima, há legitimações do ius puniendi que implicam na

necessidade de busca da justificação do direito de proibir do Estado e que será

percucientemente estudado neste ponto.

Por outro lado, as teorias que deslegitimam o direito de proibir podem ser

divididas em duas: as que deslegitimam o direito estatal de punir e as que legitimam o

direito estatal de punir.

Quanto às primeiras o direito estatal de proibir sequer deveria existir

(abolicionismo e minimalismo radical), já o segundo grupo apresenta uma

peculiaridade, pois podem se utilizar do direito de proibir apenas como forma, porém

valorativamente inócua, posto que o verdadeiro fundamento do sistema penal é punir o

delinqüente pelo que ele é, não pelo que fez (prevenção especial). Por esta razão, nestes

134

Norma e Bem Jurídico no Direito Penal, série as ciências criminais no século XXI, volume 5, Revista

dos Tribunais, 2002, São Paulo, pág. 84.

Page 79: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

79

casos a resposta à fundamentação do direito estatal de proibir é vazia, sem conteúdo

fundante valorativo, embora a proibição possa na prática existir.

Todavia, como o interesse deste trabalho é perquirir a fundamentação

axiológica do sistema penal, mais especificamente neste ponto do direito de proibir,

somente as correntes que pelos fundamentos do direito de punir se infere a necessidade

de buscar a fundamentação do direito de proibir interessar-nos-ão.

É possível verificar que o direito penal simboliza, no plano axiológico, o

embate entre o valor da liberdade humana e o direito do Estado tolher esta liberdade em

nome de algum outro valor135

.

As correntes que legitimam o direito do Estado punir verificam que nos

casos em que se possibilita a aplicação de pena, o valor da liberdade sucumbe.

Nesta linha de idéias, duas hipóteses devem ser tratadas: (1) se a

legitimação da pena se dá pelo ser e não pelo fazer (prevenção especial) a prevalência

do direito estatal de punir sobre a liberdade ocorrerá invariavelmente pelo fato de a

ordem pública, abalada ou em perigo meramente pela liberdade do sócio ou psico-

patológico cidadão, preceder, na tábua de valores daquele Estado, à liberdade; e (2) se a

legitimação da pena precisa da violação da proibição, o direito de proibir do Estado

deve estar calcado em um valor prevalente sobre a liberdade.

Assim é que na primeira hipótese estaremos diante de um Estado

totalitário, em que as liberdades individuais não prevalecem sobre o interesse de ordem

do Estado.

Na segunda hipótese, por outro lado, como o direito de punir do Estado

se funda no direito estatal de proibir comportamentos que violem um valor maior que a

liberdade, a cada caso deverá ser definido o valor que se repute maior que a liberdade

para, com sua violação, legitimar o direito estatal de punir.

Certo é que nesta ordem de idéias, a proporcionalidade (entre o valor de

vulneração proibida e a liberdade do cidadão136

) enceta o estudo sobre o fundamento da

135

Neste contexto está se tomando como linha de estudo o direito penal do ius libertatis, que, na visão de

Silva Sánchez apud Luiz Flávio Gomes (ob. cit., pág. 51), deve ser entendido como o conjunto de normas

jurídico-penais (na nossa visão o campo dogmático da ciência do Direito) que têm como conseqüência a

imposição (direta ou indireta) de pena privativa de liberdade. Não deve ser olvidado que na doutrina penal

já se fala em outro tipo de Direito Penal, que teria como conseqüência outros tipos de sanção distintas da

privação de liberdade. Este direito penal de penas diferentes das privativas de liberdade não invalidam o

que se afirmará neste estudo. 136

Ao se falar em liberdade do cidadão, estamos tratando da privação da liberdade como a pena. No

entanto, como dito na nota de rodapé anterior, não significa dizer que não podemos ter outras penas como

ponto comparativo ao valor da vulneração proibida. Se, por exemplo, a pena for multa, deveremos utilizar

o valor do econômico como ponto comparativo à legitimar a imposição de pena.

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80

proibição de condutas, servindo, destarte, de paradigma o valor de justiça como o

primeiro a ser perseguido pelo exercente do poder político configurador do sistema

penal sob o prisma proibitivo.

18.2.2. Variação da ordenação de valores (do direito penal máximo ao

princípio da intervenção mínima)

A premissa do direito de proibir estatal na observância da

proporcionalidade entre o valor de vulneração proibida e a liberdade do cidadão

encerrará uma configuração do sistema penal maximizado ou reduzido, o que dependerá

da tábua de valores definida para determinada sociedade e por ela própria.

Isso porque, como foi visto no item 15, para cada sociedade existe uma

determinada ordenação de valores que variará conforme seu traço cultural.

Assim, para sociedades em que a liberdade não está em primeiro plano,

os diversos valores que a antecedem na escala de prioridades merecerão tutela do poder

político que delineará o direito penal, criando modelos de direito penal máximo, qual

seja, com número exacerbado de proibições de conduta, próprio dos Estados totalitários.

De outro lado, nas sociedades liberais, nas quais o valor da liberdade do

cidadão é tomado como prioridade, os demais valores sucumbirão e não serão

merecedores de tutela estatal no âmbito penal, de sorte que veremos assim configurado

um modelo de direito penal calcado no princípio da intervenção mínima do Estado na

esfera de conduta do cidadão, com reduzido número de comportamentos proibidos.

18.2.3. Os bens jurídicos como projeção dos valores (princípio da

exclusiva proteção de bens jurídicos)

Como dito anteriormente, nos itens 15 e 16, os valores podem ser

ordenados e classificados, sendo certo que sua ordenação e classificação derivam da

objetivação do espírito humano projetado sobre a História.

Assim, para cada civilização, determinada tábua de valores é escolhida

para dar lugar à realização dos valores mais importantes.

É neste passo que a sociedade cria e desenvolve seus bens culturais, que

nada mais são do que expressões, ou tentativas de expressões, dos valores escolhidos

pelo exercente do poder político.

Para Miguel Reale, os bens culturais têm dois elementos: o “suporte” e o

“significado”. É o caso, por exemplo, de uma escultura que tem o suporte no mármore

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81

em que se esculpe, mas revela o significado do belo. O suporte pode, por seu turno, ser

físico, psíquico ou ideal, como é o caso dos bens jurídicos, que têm suporte nas

proposições lógicas da própria norma, ao passo que enunciam um juízo de valor137

.

Conclui que entre o suporte e o significado dos bens jurídicos há uma correlação

essencial.

Os bens jurídicos são, destarte, espécies de bens culturais, na medida em

que resultam da tentativa do legislador, no exercício do seu poder político, de realização

de determinados valores eleitos, através das normas jurídicas por ele elaboradas.

Os bens jurídico-penais, por sua vez, ganham maior relevo na medida em

que o arcabouço do ordenamento punitivo pode vir a orbitar em torno deste conceito

para os casos em que o direito de punir pressupõe a existência de uma violação de fato

de um valor maior que a liberdade, como visto acima. Com efeito, todo tatbestand138

tem por finalidade a proteção de um determinado bem jurídico.

Porquanto, ao elaborar a norma jurídica penal punitiva, tratada

tecnicamente como “tipo penal”, o legislador legitima o direito de punir e, conforme sua

justificativa axiológica para a punição, protegerá determinado bem jurídico que somente

será por ele tutelado na medida em que o valor nele contido, qual seja, o seu

“significado”, esteja na ordem dos valores a serem protegidos em detrimento da

liberdade.

Vale a transcrição da lição do renomado jurista penal brasileiro,

Magalhães Noronha:

“Exato é, outrossim, que não se pode elaborar o

preceito penal, sem prévio juízo de valor – e por isso já se apontou

também o caráter valorativo do direito penal – o que é operação ética,

prendendo-se ele, igualmente, à filosofia moral.”139

Desta forma, não resta dúvida que o estudo dos bens jurídicos eleitos

pelo legislador penal traduzem a objetivação do espírito humano sobre aquele momento

histórico, sendo com isto possível captar a essência cultural de uma determinada

civilização.

De todo evidente que isto só é possível na medida em que a elaboração

das normas jurídicas penais punitivas, nas quais restam eleitos os bens jurídicos

137

Filosofia do Direito, 20ª ed., 2ª tiragem, Saraiva, 2002, São Paulo, pág 226/227. 138

Vide item 6 da 1ª Parte “A motivação da norma”, mormente a nota 55. 139

E. Magalhães Noronha, Direito Penal, volume 1, atualizado por Adalberto José Q. T. de Camargo

Aranha, 32ª ed., Saraiva, 1997, São Paulo, pág 11.

Page 82: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

82

penalmente relevantes, que nada mais são do que espécies de bens culturais que revelam

os seus significados valorativos, é a própria realização da cultura de determinada

civilização.

Portanto, a proibição é mais que um traço cultural de uma sociedade

historicamente situada, pois revela os valores daquela sociedade e, desta forma, sua

própria cultura.

Esta característica reveladora da proibição estatal é verificável nas

sociedades em que se pune o comportamento desviado (é o caso das teorias de

legitimação punitiva retributiva e de prevenção geral) e não a pessoa desviada (é o caso

das teorias de legitimação punitiva de prevenção especial).

De toda sorte, somente um direito penal configurado por um sistema

legislativo penal protetivo de bens jurídicos (princípio da exclusiva proteção de bens

jurídicos), se realiza axiologicamente sobre a cultura da sociedade em que se insere,

posto que os bens jurídicos, enquanto bens culturais que traduzem a objetivação do

espírito humano sobre a História, são capazes de salvaguardar os valores de uma

civilização.

Caso contrário, ou seja, um direito penal que negue a legitimação das

proibições de comportamentos na proteção de bens jurídicos, será inócuo, vazio, carente

de fundamento axiológico e, assim, puramente impositivo, pois não emana das relações

sociais que encetam e encerram os valores daquela civilização.

18.2.4. A elevação valorativa do bem jurídico a bem jurídico-penal

(princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade)

Cediço que os bens jurídico-penais são espécies de bens jurídicos, que

por sua vez são bens culturais, cumpre alcançar o(s) traço(s) distintivo(s) que

caracteriza(m) os bens jurídico-penais.

É que diversos são os valores de uma sociedade e, portanto, diversos são

os bens culturais da mesma. Bem assim, diversas são as normas jurídicas que pretendem

realizar valores, destarte, diversos são os bens jurídicos.

A questão está exatamente no conflito entre a liberdade do cidadão e o

valor protegido que se pretende seja realizado pela norma jurídica.

Neste ponto cumpre traçar uma distinção entre a norma penal primária e

a norma penal secundária. A primeira realiza um valor pela proteção de um bem

Page 83: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

83

jurídico, por meio da proibição de determinado comportamento que o viole. A segunda

impõe a sanção para a realização do comportamento proibido pela norma primária.

Assim, a proporção entre a norma secundária e a norma primária deve

existir, promovendo a proporcionalidade dos valores em embate.

Como a intervenção do Estado na esfera privada é a máxima possível no

direito penal, somente os valores mais importantes na ordem de valores daquela

sociedade politicamente organizada podem ser objeto de tutela penal.

Senão vejamos a lição de Luiz Flávio Gomes:

“A construção de um Direito penal regido pelo

paradigma da ofensividade, de cunho constitucional, material e

garantista, de qualquer modo, parte da premissa básica de que a

norma penal (primária) possui um caráter (acentuada e

prioritariamente) valorativo, isto é, ela existe para a tutela de alguns

bens ou interesses (de especial relevância) consubstanciados em

relações sociais valoradas positivamente pelo legislador para

constituir o objeto de uma especial e qualificada proteção, como é a

penal.”140

Os bens jurídicos objetos de escolha pelo legislador penal, portanto,

devem passar por um critério de ordenação axiológica dos valores que realiza, para que

sejam tutelados apenas os bens jurídicos de maior relevância. Esta seleção de bens

jurídicos de suma relevância deve ser realizada pelo exercente do poder político.

Portanto, é correto afirmar que somente estará legitimado o direito estatal

de proibir condutas que lesem os bens jurídicos que realizam os valores mais

importantes de determinada sociedade. É o princípio da fragmentariedade do direito

penal.

De outro lado, pela mesma ordem de idéias, caso as proteções de outros

ramos do Direito (civil, trabalhista, tributário, administrativo, etc.) sirvam para

promover a proteção de determinados bens jurídicos, por mais importantes que sejam os

valores por eles realizados, é porque estes não têm relevância penal. É o princípio da

subsidiariedade.

Portanto, são bens jurídico-penais, aqueles cujo valor somente a norma

jurídica penal pode realizar, pela sua relevância (fragmentariedade) e impossibilidade de

140

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 17/18.

Page 84: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

84

ser tutelado por norma de outra natureza (subsidiariedade ou ultima ratio). Tomemos a

lição do citado jurista:

“O Direito penal só protege os bens mais valiosos para

a convivência; o faz, ademais, exclusivamente frente aos ataques mais

intoleráveis de que possam ser objeto (natureza „fragmentária‟ da

intervenção penal); e mesmo assim quando não existem outros meios

eficazes, de natureza não penal, para salvaguardar aqueles (natureza

„subsidiária‟ do Direito penal).”141

Nesta ordem de idéias, o direito penal que proteja bens jurídicos de todo

tipo de relevância, ou que repita a proteção (já efetiva) de outro ramo do Direito,

expande seu universo de aplicação para limites que ultrapassam o da necessidade de

proteção das relações sociais, e passam a determinar as relações sociais, sendo

impensável para Estados liberais e democráticos.

A escolha dos valores mais relevantes e, via de conseqüência, dos bens

jurídico de natureza penal, cabe ao legislador. Em última análise, é este quem vai definir

quais são os valores penalmente relevantes e que merecerão tutela do sistema penal,

configurando, de forma política, o direito penal pelo seu objeto axiológico de proibição.

18.2.5. A vulneração concreta do bem jurídico-penal em sentido

valorativo e normativo (princípio da ofensividade)

É impensável, sob o prisma axiológico, conferir direito ao Estado de

punir pelo simples fato de ter sido transgredida uma norma jurídica.

Malgrado se possa afirmar que formalmente o princípio da legalidade

encerra uma garantia ao cidadão consistente no fato de que ninguém poderá ser

considerado criminoso sem que a proibição esteja expressa em norma jurídica, este

princípio não se subsume ao seu aspecto formal.

Isto significa dizer que o crime não é uma mera desobediência da

imperatividade contida na norma. Esta avaloração é própria do positivismo em sua

vertente normativista pura, como se verá a seguir.

Isto significa dizer que uma norma jurídica proibitiva não pode prescindir

de um conceito anterior material de bem jurídico-penal, dirigido ao legislador que criará

o sistema penal.

141

Luiz Flávio Gomes citando García-Pablos de Molina, ob. cit., pág. 135/136.

Page 85: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

85

Daí porque o bem jurídico-penal deve se subsumir à proteção dos valores

mais importantes de determinada sociedade. A esta tábua de valores deve se ater o

legislador ao criar o sistema penal.

Bem assim, é impensável que o bem jurídico-penal goze de proteção sem

que se perquira sobre sua afetação lesiva, qual seja, o simples fato de se escolher

politicamente os bens jurídico-penais (os valores neles representados) aos quais será

conferida proteção estatal, não basta para legitimar a intervenção punitiva. É preciso que

os bens jurídico-penais sejam efetivamente afetados, ofendidos, senão com sua

violação, pelo menos com a exposição a perigo concreto.

A esta necessidade de afetação material se dá o nome de princípio da

ofensividade.

“Para justificar a intervenção penal (que é a mais

severa das intervenções), será imprescindível, em conseqüência, que a

conduta externa praticada (formalmente típica e subjetiva ou

normativamente imputável ao agente) não só concretize a descrição

legal (típica), senão também que ofenda concretamente (lesão ou

perigo) o bem jurídico protegido, que, no caso, é a vida, sob

determinadas condições ou circunstâncias (i. e., consubstanciada numa

relação social).

A fundamentação do princípio da ofensividade (do qual,

segundo nossa perspectiva, não podemos abrir mão se não desejamos

correr o risco de que o Direito penal do bem jurídico seja liberal em

suas formulações e autoritário em seu conteúdo ou em suas

conclusões) tem, desse modo, que partir do reconhecimento de que o

delito (o injusto penal) não se esgota na violação do aspecto

imperativo da norma (antinormatividade), senão na infração do Direito

(é dizer, na antijuridicidade em sentido material, que significa afetação

inarredável do bem jurídico).

Com isso fica claro que o crime (o injusto penal) é uma

conduta antinormativa (é um comportamento que não respeita a pauta

de conduta estabelecida pela norma), porém não no sentido “formal”

(como concebida, v. g., o finalismo de Welzel), senão “material”,

porque a norma sempre deve ser entendida como referência primordial

Page 86: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

86

de uma valoração, que se expressa num conceito de Direito, ou seja,

num conceito de bem jurídico.”142

Não for assim, ou seja, merecendo punição mesmo quem não atinja um

bem jurídico-penal, estar-se-á legitimando a intervenção punitiva do Estado mesmo sem

observância do princípio da proporcionalidade (portanto, inobservando o valor justiça),

pois que o valor atingido pela pena sucumbirá ao capricho do detentor do poder político,

sem que um valor (maior que a liberdade) tenha sido lesado para legitimar a imposição

da punição pelo Estado.

Estaremos falando de um Estado totalitário, em que aquele que exerce o

poder político pode intervir na liberdade do cidadão pelo seu ato arbitrário de vontade,

mas sem legitimação axiológica.

Um Estado de natureza liberal deve proteger seus valores sem olvidar da

liberdade de seus cidadãos, portanto, a proteção axiológica encerrada pelos bens

jurídico-penais somente será legitimadora da intervenção punitiva estatal em caso de

violação efetivamente afetadora do bem jurídico-penal, seja por lesão ou exposição a

perigo concreto (este restritamente nos casos necessários).

18.2.6. Breve relato da evolução histórico-conceitual do bem jurídico

18.2.6.a. Concepção Pré-Iluminista

A concepção iluminista transformou o direito penal, fazendo nascer entre

outros, o conceito de bem jurídico-penal143

a legitimar e limitar a intervenção punitiva

estatal.

Fato é que antes do pensamento iluminista a justificação do direito penal

encontrava-se no direito natural, o quê, por sinal, ressalte-se, também se encontrava no

movimento iluminista, porém a matriz antropológica da Ilustração diferenciava do

fundamento em que se fulcrava o direito natural em momento histórico anterior.

É que antes do Iluminismo, com sua concepção do ser humano como

centro do pensamento, temos a base teológica do fundamento do direito natural,

sobretudo no período medieval.

142

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 17/18. 143

Também introduziu o princípio da legalidade, da não criação de normas pelos juízes, entre outras

garantias do cidadão.

Page 87: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

87

Antes ainda, a natureza das coisas determinava a justificação

cosmológica do direito natural, que, no pensamento helênico, pugnava, em decorrência,

pela imutabilidade do direito natural, mesmo porque a natureza seria inalterável.

Nesta concepção de direito, o homem é considerado como o componente

do cosmos, de um todo, e não em sua individualidade.

Todavia, não seria demais ressaltarmos que haveria uma incongruência

impor, cronologicamente, uma ordem de justificação cosmológica, teológica,

antropológica para o direito natural.

É que, malgrado o poder absolutista fulcrado no poder divino conferido

ao monarca pudesse remeter o fundamento teológico do direito natural à época medieval

e posterior constituição dos Estados nacionais, fato é que muito antes de Cristo o

fundamento teológico já se fazia presente em diversos Direitos nacionais.

À guisa de exemplo, vale tomar o caso do povo judeu, que muito antes de

ter um território nacional, portanto, ainda povo Hebreu, no século XII a.C., ou mesmo

ao se instalar em Canaã (já com território, portanto), tinham um Tribunal ou assembléia

constituído por setenta e um juízes com a função de interpretar as Leis e conduzir a vida

do povo. Terminaram por elaborar a jurisprudência com base numa “Teocracia

democrática”144

.

Mesmo quando Canaã se dividiu em reino de Israel ou Samaria e reino de

Judá ou Judéia, restou clara a legitimação do direito do povo judeu (povo do reino da

Judéia) com contornos absolutamente sagrados e, portanto, teológicos, ao passo que o

povo samaritano (povo do reino da Samaria), que se fundamentavam, principalmente,

nos valores da justiça e proteção aos pobres (humanidade), e, com isso, chegaram a ser

considerados pagãos pelos judeus145

.

Não é difícil perceber, portanto, que mais de 1.200 anos antes de Cristo,

o fundamento do Direito de algumas nações ou mesmo Estados146

era o teológico,

portanto, o valor fundante era o religioso.

O valor religioso legitimava um direito eterno, posto que baseado em

normas divinas e apenas interpretados pelos intérpretes autorizados. Via de regra, não

144

Jaques Attali, Os judeus, o dinheiro e o mundo, Futura, São Paulo, 2003, pág. 48. 145

Jaques Attali, Ob. cit., pág. 58/59. 146

Vale notar que os judeus oscilaram entre povo e nação, na concepção de Teoria do Estado

compreendido este como a nação com território. O povo judeu, mesmo na diáspora conseguiu manter a

uniformidade de sua cultura, baseada, sobretudo, no valor religioso.

Page 88: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

88

continham em si qualquer debate axiológico além da vontade de Deus, servindo a pena

para pagar o pecado cometido.

18.2.6. b. Concepção Iluminista

Não resta dúvida que a concepção teológica vigente até então, fundada

no valor religioso, não continha em si qualquer racionalidade e, portanto, não impunha

limites ao poder punitivo e proibitivo estatal, ora justificado pela palavra divina.

A concepção Iluminista deslocou a matriz fundante do Direito para o

Homem. O conteúdo antropológico do pensamento da Ilustração impôs a necessidade de

uma construção jurídica que importasse na imposição de limites formais e materiais ao

poder estatal de punir e de proibir.

Assim é que o princípio da legalidade passou a ser uma imposição

iluminista contra os desmandos autoritários do Estado e representou o maior avanço já

registrado na História no que concerne à limitação formal do poder estatal de punir (vale

citar a célebre obra Dos Delitos e das Penas de Cesare Beccaria) e de proibir.

Nesta mesma ordem de idéias, passou a ser inaceitável, para os

pensadores liberais, qualquer punição para “...condutas moralmente reprováveis ou

contrárias à religião, mas que não causassem um dano concreto a uma pessoa ou à

própria república”147

. Nasceu, assim, ainda que não com concreção jurídica, nem

tampouco com este nomen juris, a concepção do bem jurídico como fundamento do

direito de proibir.

A primeira concepção que mais se aproxima do bem jurídico-penal foi

desenvolvida por Feuerbach. Fundamenta-se na idéia de que o delito decorre da

violação de um direito subjetivo. Mas não é só isso, como bem esclarece Heloisa

Estellita Salomão:

“...a tutela penal fundamentar-se-ia em três pressupotos:

existência de um direito subjetivo, danosidade social da conduta e

necessidade de pena.”148

Portanto, a idéia de delito como violação (danosa) de um direito

subjetivo é própria do período Iluminista e, segundo Hormazábal Malarée “...não é mais

que a expressão da teoria do contrato social no direito penal: os homens diante da

147

Evandro Pelarin, Bem Jurídico-Penal – Um Debate sobre a Descriminalização, IBCRIM, São Paulo,

2002, pág. 39. 148

Heloisa Estellita Salomão, A Tutela Penal e as Obrigações Tributárias na Constituição Federal,

Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, pág. 26.

Page 89: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

89

insegurança que supõe viverem isolados, decidem organizar-se em sociedade e confiar

ao Estado a conservação da nova ordem criada. O Estado surge como garante das

condições de vida em comum.”149

Desta forma, a limitação material do poder proibitivo do Estado nasceu

com esta concepção de Feuerbach e veio a somar-se com o princípio da legalidade

(limitação formal) razão pela qual é possível afirmar que o período da Ilustração fundou

o Direito Penal moderno e plantou, em fortes bases, uma concepção garantista.

Assim, o valor da liberdade do ser humano, matriz da visão antropológica

iluminista, se sobrepôs aos demais valores outrora prevalentes (sagrado, por exemplo)

no cenário axiológico fundante do Direito Penal.

18.2.6. c. Concepção Positivista

. Concepção de Birnbaum

Cumpre, ab intio, trazer a concepção de Birnbaum de bem jurídico-penal.

Em primeiro lugar porque a ele é atribuída a paternidade do conceito de bem jurídico-

penal. Em segundo lugar porque classificar o conceito de Birnbaum como positivista é

inseguro, pois que, no dizer de Evandro Pelarin o pensamento deste jurista “...para

alguns autores, enquadrava-se no direito natural antropológico do iluminismo; para

outros, já estava no positivismo incipiente, ou, ainda, transitava entre os dois

pensamentos.”150

O fato é que para Birnbaum o delito lesionaria “bens” e não direitos

subjetivos, o que legitimaria a proibição de condutas que ofendessem não apenas

direitos subjetivos pessoais, mas também bens sociais.

Em verdade, Birnbaum concebe o bem a ser protegido, em última

análise, como um valor hierarquizado politicamente pelo Estado. Nas palavras de

Heloisa Estellita Salomão:

“Sendo o bem portador de um valor, determinar quando

um objeto merece tutela penal, ou seja, quando é elevado à categoria

de bem, depende do sujeito que o valora e, pois, de uma decisão de

caráter político, devendo-se considerar que o sujeito valorante é o

próprio Estado.”151

149

Hormazábal Malarée citado por Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 27. 150

Evandro Pelarin, ob. cit., pág. 54. 151

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 28.

Page 90: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

90

Verifica-se, em que pesem as opiniões em contrário, que o conceito de

Birnbaum se afasta do positivismo na medida em que há um conteúdo claramente

valorativo, embora não se resuma, como no pensamento positivista, às violações aos

direitos subjetivos pessoais e, portanto, não se limita a uma visão antropológica

meramente individualista.

. Concepções Naturalísticas

As concepções naturalísticas se caracterizam pela utilização do método

positivista, próprio das ciências naturais, portanto indutivo. É um pensamento

avalorativo de observação da realidade.

Neste ambiente destacam-se as concepções de Von Liszt e de Binding.

Este de caráter legalista, aquele sociológico.

Para Binding, o delito é a violação do dever de obediência que o cidadão

tem frente ao Estado. É o Estado quem valora o que deve ser protegido, sem que

materialmente se saiba, por falta de uma concepção conceitual axiológica, o que deve

nortear a conduta do legislador. Comentando criticamente esta concepção de bem

jurídico-penal, Heloisa Estellita Salomão assevera:

“Para essa concepção, além de o indivíduo encontrar-se

diante do Estado, em total estado de submissão, o bem jurídico não

possui conteúdo tal que possa limitar o direito de punir ou criticar o

ordenamento penal posto; assim, parece-nos válida a assertiva de que

a norma e o bem jurídico, na concepção de Binding, cumprem a função

de “legitimação do poder coativo, podendo a chegar a cobrir com um

manto de legalidade a arbitrariedade estatal”.”152

Von Liszt se contrapôs à concepção legalista avalorativa de Binding, por

entender que os interesses (valores) a serem protegidos pelo legislador eram pré-

existentes à atividade legiferante.

Daí, para Von Liszt, existe uma limitação à atividade do legislador,

consistente no fato de que os bens jurídicos são uma criação da vida, da experiência,

decorrente da realidade social, e que devem ser traduzidos pelo legislador em bens

jurídicos.

152

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 30, citando Hormanazábal Malarée.

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91

Isso não significa que para Von Liszt o bem jurídico decorra de uma

atividade valorativa do legislador. Não. Para este pensador o bem jurídico decorre

diretamente da realidade social, sem que o legislador valore aquele fato social, pois o

valor se contém no próprio fato social que o legislador transformou em bem jurídico e

que já era pré-existente a esta tarefa legiferante.

As duas concepções são naturalísticas e se aproximam porque, embora

uma tenha cunho meramente legalista (Binding) e a outra na realidade social (Von

Liszt), ambas são avalorativas. Citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Evandro

Pelarin esclarece:

“Tal coincidência revela o distanciamento deles do

objeto do estudo, retirando-lhes a responsabilidade (também) pela

construção do conceito, pois os métodos respectivos de conhecimento,

social e legal, não autorizam a inflexão crítico-valorativa do agente.

Em suma, para os dois, o bem jurídico é algo que se cria,

naturalmente, ou da sociedade ou da norma.”153

. Concepção normativista pura

Neste ambiente avalorativo do Direito sob a concepção positivista,

ampliado ao normativismo puro de Kelsen, aliado às concepções evolucionistas e

deterministas do início do século XX, foi conseqüência o desinteresse pelas causas

sociais do delito, concentrando-se o Estado no controle das patologias individuais, bem

assim o corolário esvaziamento do conceito de bem jurídico.

Sob o prisma axiológico, como já visto, a deslegitimação do direito

estatal de proibir em decorrência da justificação do direito estatal de punir pela

prevenção especial, aliada ao normativismo puro positivista daquele momento histórico,

resultou nos conceitos de bens jurídico-penais inferidos da própria norma.

Heloisa Estellita Salomão, baseada nas lições de Maria da Conceição

Ferreira da Cunha, esclarece que “o primeiro representante dessa corrente

(normativista pura) é Honig que, em 1919, identificou o bem jurídico com a ratio da

norma.”154

Explica Maria da Conceição Ferreira da Cunha citada por Evandro

Pelarin:

153

Evandro Pelarin, ob. cit., pág. 69, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha. 154

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 31, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha.

Page 92: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

92

“o conceito de bem jurídico não tem existência prévia à

das próprias prescrições penais, não se confundindo com os substratos

da realidade em que os valores poderão assentar; a sua origem é

normativa.”155

É facilmente verificável que o conceito de bem jurídico foi esvaziado de

qualquer conteúdo conceitual axiológico pré-existente à atividade legiferante. O bem

jurídico passou a ser inferido da própria norma, portanto, sua existência é posterior à

criação da regra proibitiva.

Assim, o bem jurídico não apresenta nenhum conceito material

vinculante, se distanciando totalmente do ambiente Iluminista garantidor, outrora

abordado.

Esta concepção de bem jurídico-penal, como se vê, não impõe qualquer

limite à atividade legiferante, propiciando o ambiente adequado para a construção de

sistemas autoritários, como foi o caso do nazismo, na Alemanha, e do fascismo, na

Itália.

Como verificado na exposição da justificação axiológica para o direito do

Estado de punir, não há qualquer base valorativa para a legitimação do direito de proibir

do Estado para teoria da finalidade de prevenção especial da pena, o que confirma a

conceituação positivista normativa pura do bem jurídico-penal, segundo a qual este é o

que da norma se pode concluir, utilizando para o Direito penal o caminho puro da lógica

do sistema legislativo, limitação da explicação axiológica de sua constituição política.

Como dito anteriormente, a proibição é livre, mesmo porque o que se

quer punir não é a conduta, mas o delinqüente, portanto a conceituação de bem jurídico,

que funda o direito estatal de proibir, acompanha o pensamento fundante do direito

estatal de punir. Em outras palavras as proibições são livres, e a conceituação de bem

jurídico é meramente formal, sem qualquer conteúdo material vinculante. É um cheque

em branco passado ao legislador.

18.2.6. d. Concepção Sociológica

Heloisa Estellita Salomão156

encontra em Amelung, Habermas, Jakobs e

Hassemer os representantes da conceituação do bem jurídico sob o prisma sociológico.

155

Evandro Pelarin, ob. cit., pág. 79, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha. 156

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 33.

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93

Amelung “...pretende encontrar um conceito de danosidade social que

seja pré-jurídico com capacidade, portanto, para servir de orientação ao

legislador”157

.

É uma substituição do conceito de bem jurídico pelo de danosidade

social, sendo possível sob este ângulo criminalizar condutas que não atendam à

funcionalidade do sistema.

É a prevalência do valor da sociedade (ordem) sobre o da pessoa humana

(liberdade), sem, contudo, definir qual seja o parâmetro criminalizante, servindo este

conceito de fundamentação do direito de proibir do Estado na danosidade social a

qualquer ideologia política, pois o que se protege é a ordem constituída.

Para Habermas o consenso social é o que legitima a criminalização das

condutas, cabendo ao Estado garantir os pressupostos para a realização do “diálogo

isento de dominação”158

.

O racional consenso intersubjetivo que indicaria os valores individuais e

coletivos a proteger, na visão de Habermas, realizaria o valor da verdade.

Citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, Heloisa Estellita

Salomão critica o conceito de Habermas porque não seria “...correto dizer que é no

consenso racional que se baseia a Verdade, mas sim que o consenso racional é uma (ou

é a) via legítima para se atingir a Verdade”.”159

Já Jakobs normativisa o direito de proibir do Estado sob o fundamento de

que a norma realiza as expectativas e garante a unidade funcional do sistema, sendo o

direito penal a forma de garantir a vigência da norma e, conseqüentemente, a coesão do

sistema.

A citada jurista assevera que “seu conceito de bem jurídico, portanto,

não tem qualquer conotação axiológica, não possuindo função crítica e sequer

limitadora do poder punitivo estatal.”160

Hassemer, por sua vez, busca um conceito pré-jurídico, no intuito de

limitar o arbítrio do legislador, o que não ocorre com os outros pensadores, na medida

em que suas explicações legitimadoras do poder de punir não limitam a atividade

legiferante com um conceito material orientador.

157

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 33. 158

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 35. 159

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 35. 160

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 36.

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94

Para Hassemer, “...a questão pode ser respondida desde que se analise a

valoração a valoração que a sociedade dá aos objetos que pela conduta a incriminar

podem ser lesados ou expostos a perigo; valoração esta que depende de três fatores: a)

freqüência dessas condutas; b) intensidade da demanda do objeto em questão; e c)

medida da ameaça. Esses fatores, porém, „não operam em nível da sua consistência

objetiva; ao contrário, os fatos sociais da criminalização seriam diversamente

percebidos em função dos contextos culturais e sociais de referência e de seu histórico

evolver‟.”161

Segundo Hormazábal Malarée, citado por Heloisa Estellita Salomão,

Hassemer coloca “o conceito de bem jurídico no contexto histórico-cultural em que se

faz a valoração, circunstância que não pode ser ignorada pela política criminal.”162

Na busca do conceito pré-jurídico orientador e limitador do legislador ao

definir os bens jurídico-penais a serem protegidos, acaba por plantar a semente da

constitucionalização deste conceito ao destacar que a política criminal definidora dos

bens a serem tutelados deve ter em vista a importância da “experiência social dos

valores orientados segundo a Constituição”163

.

18.2.7. Teorias de fundamentação constitucional do bem jurídico

A necessidade de um conceito material de bem jurídico-penal que

orientasse e limitasse a atividade legiferante do Estado é uma necessidade de um Direito

penal que, sob o prisma axiológico, buscasse legitimar o direito de proibir estatal.

Fato é que nem mesmo as demais regras jurídicas prescindem da

justificação axiológica pré-jurídica. Em um Estado Democrático de Direito orientado

por uma norma magna programática e principiológica que é a Constituição, estes

valores a serem protegidos devem ser realizados pelas normas jurídicas constitucionais,

que funcionariam, destarte, como oráculo orientador de todas as normas, de todas as

naturezas:

“As regras jurídicas, incluindo evidentemente as penais,

somente podem existir enquanto realização dos valores básicos

(liberdade, justiça, igualdade, pluralismo, dignidade) contemplados em

161

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 36. 162

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 36. 163

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 37.

Page 95: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

95

cada Constituição, que consubstanciam um conjunto normativo de

respeito à liberdade alheia.”164

No que concerne aos bens jurídico-penais, de todo evidente, e com muito

mais razão, a norma constitucional deve ser entendida como limite ao legislador para

conhecimento e adequação da norma penal, na medida em que a Constituição realiza os

bens mais valiosos:

“No âmbito político-criminal (de lege ferenda) se

questiona qual bem jurídico pode legitimamente ser objeto da tutela

penal, é dizer, tendo em conta exigências ético-políticas (metajurídicas,

derivadas do modelo de Estado Social e Demoncrático de Direito) e

constitucionais, quais bens seriam merecedores de tutela (desde logo

se sabe que valores puramente morais ou religiosos ou ideológicos não

constituem objeto de tutela e, por conseguinte, de ofensa).”165

Este entendimento de que a Constituição é a norma orientadora dos

valores a serem tutelados pelo Estado ao elaborar o Sistema Penal é amplamente

majoritário no pensamento penalístico. Porém, diversas são as vertentes sobre este

paradigma constitucional do bem jurídico-penal, senão vejamos:

18.2.7.a. Concepções de caráter geral

Esta é concepção que enxerga materialmente o bem jurídico-penal como

a realização de valores adequados à ordem constitucional.

Heloisa Estellita Salomão166

apresenta os seguintes juristas expoentes

desta concepção: Walter von Sax, Klaus Roxin, Jorge Figueiredo Dias, Hans Joachim

Rudolphi, Michael MarxMir Puig, Polaino Navarrete, Emilio Dolcini, Giorgio

Marinucci e Giovanni Fiandaca.

De todo evidente que nem todas as concepções coincidem, mas se

aproximam na medida em que verificam ser a Constituição um ponto de orientação

axiológica do legislador ao exercer o poder político-criminal e elaborar o sistema penal,

delineando o direito penal.

164

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 24. 165

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 137. 166

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38 usque 59.

Page 96: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

96

A referida jurista, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, aduz

que “esta é a posição assumida pela maioria da doutrina alemã”167

.

Vale trazer à colação a lição de Figueiredo Dias, citado por Heloisa

Estellita Salomão, sobre o papel orientador dos valores constitucionais, dirigidos ao

legislador:

“os bens do sistema social preexistem à tutela penal,

porém, „os bens do sistema social se transformam e se concretizam em

bens jurídicos dignos de tutela penal (em bens jurídico-penais) através

da ordenação axiológica jurídico-constitucional’.”168

Este mesmo jurista lusitano deixa claro o papel da Constituição não

impondo uma identidade entre os valores constitucionais e os valores político-penais,

mas uma relação de essência:

“Logo, por aqui se deve concluir que um bem jurídico

político-criminalmente vinculante existe ali – e só ali – onde se

encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido

em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que

„preexiste‟ ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez significa

que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal –

jurídico-penal – dos bens jurídicos tem por força de se verificar uma

qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de

„identidade‟, ou mesmo de „recíproca cobertura‟, mas de analogia

material, fundada numa essencial correspondência de sentido e – do

ponto de vista de sua tutela – de fins. Correspondência que deriva ,

ainda ela, de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro

obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da

atividade punitiva do Estado. É nesta acepção, e só nela, que os bens

jurídicos protegidos pelo direito penal se dêem considerar

concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente

ligados aos direitos e deveres fundamentais. É por esta via – e só por

ela em definitivo – que os bens jurídicos se „transformam‟ em bens

jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal.”169

167

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38. 168

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43 169

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 43/44.

Page 97: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

97

Desta lição decorrem três corolários: 1) não há identificação absoluta dos

valores constitucionais e aqueles protegidos pelo sistema penal; 2) podem ser

contemplados outros valores que não aqueles contemplados literalmente na

Constituição; 3) a Constituição não impõe ao legislador penal a tutela de determinado

valor.

Quanto ao primeiro corolário, Luiz Flávio Gomes o explica ao esclarecer

que “o conceito material de bem jurídico vincula-se aos valores superiores assumidos

pelo Estado Constitucional e Democrático de Direito, mas não segundo a perspectiva

de uma relação de “identificação absoluta”, senão de mera referência axiológica ou de

analogia substancial.”170

Quanto à segunda conseqüência, duas questões são levantadas: em

primeiro lugar as Constituições podem não contemplar um determinado valor em

determinado momento histórico que, posteriormente, pode vir a ser considerado

penalmente relevante; em segundo lugar as Constituições podem não contemplar todos

os valores relevantes, em sua integralidade, de uma determinada sociedade. Nestes

casos, o valor a que se pretende conferir proteção penal e que não está expressamente

previsto na Constituição, dês que não seja incompatível com os demais valores

constitucionais essenciais, não terá sua proteção defesa ao legislador penal.

Quanto à terceira decorrência, argumenta Luiz Flávio Gomes que “não

existe, portanto, uma obrigação de criminalização ou penalização automática, senão só

uma indicação do valor do bem jurídico referido. Elevado „merecimento de pena‟ não

significa automaticamente „necessidade‟ de pena”, daí porque “...o não cumprimento

pelo legislador das obrigações de criminalização não está sancionado com nenhuma

conseqüência jurídica.” 171

18.2.7. b. Concepções de caráter estrito

Esta é concepção que enxerga materialmente o bem jurídico-penal como

a realização dos valores da ordem constitucional.

Heloisa Estellita Salomão172

apresenta os seguintes juristas expoentes

desta concepção: Franco Bricola, Francesco Angioni, Luigi Ferrajoli e Maria da

170

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 92. 171

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 106/107. 172

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 38 usque 59.

Page 98: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

98

Conceição Ferreira da Cunha. Para Luiz Flavio Gomes173

, Franco Bricola é o principal

expoente.

Mais uma vez, é evidente que nem todas as concepções coincidem, mas

verificam a necessidade de harmonização dos valores penais com os valores

constitucionais, proibindo a penalização de valores que não lesem ou coloquem em

perigo concreto os valores constitucionais.

Esta doutrina tenta deduzir diretamente da Constituição os valores

objetos de proteção penal. Nas palavras de Heloisa Estellita Salomão, “...somente

poderia haver criminalização na hipótese de tutela de valores constitucionalmente

reconhecidos, ainda que de forma implícita.”174

A referida jurista, citando Maria da Conceição Ferreira da Cunha, aduz

que esta é a posição assumida “por parte da doutrina italiana e portuguesa”175

. No

entanto, cabe ressaltar que, segundo Luiz Flávio Gomes “...esta formulação mereceu

uma especial consideração das doutrinas alemã e italiana”176

.

De toda sorte, esclarece o jurista brasileiro que “...a verdade é que a

doutrina constitucionalista inflexível não assegurou grande ressonância na praxis”177

.

18.2.6. Legitimação e Deslegitimação axiológica da proteção aos bens

jurídicos (critérios de limitação do legislador)

Como visto, desde o nascimento do bem jurídico, não com este nomen

juris, como já dito, na época Iluminista, o objetivo dos pensadores era impor um

conceito material que orientasse e limitasse o poder legislativo de proibição de

condutas.

Historicamente este conceito se desvirtuou a ponto de, no extremo

normativismo positivista, carecer por completo de conteúdo axiológico pré-jurídico,

inferindo-se o bem protegido da própria norma.

Todavia, o caminho da garantia do cidadão em relação ao poder punitivo

e proibitivo do Estado, rumou para a busca de uma justificação que, malgrado não se

pudesse ignorar a diversidade cultural de uma civilização, pudesse impor uma

orientação e limitação ao poder legiferante de caráter geral e axiológico.

173

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89. 174

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 59/60. 175

Heloisa Estellita Salomão, ob. cit., pág. 60. 176

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 89. 177

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 91.

Page 99: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

99

Daí porque a limitação do poder político delineador do direito penal pelo

sistema legislativo pelos valores insertos na Constituição, ou não incompatíveis com

ela, foi, na esteira da melhor doutrina atual, o conceito encontrado como limite e

orientação material do legislador.

Desrespeitada a orientação e vulnerados os limites axiológico-

constitucionais, estaremos diante do que a doutrina chama de função crítica do bem

jurídico, que podemos chamar de deslegitimação do direito de proibir do Estado:

“Quando utilizamos o conceito político-criminal para

constatar em cada norma penal concreta se há ou não correspondência

entre o conceito ideal e o real, então se fala da função crítica do bem

jurídico, que questiona a legitimação do bem protegido, é dizer, do

próprio Direito penal.”178

Respeitados estes limites de conformação ao quadro de valores

constitucional, teremos uma realização do direito de proibição estatal legítimo, sob o

prisma axiológico.

Assim, uma vez construído o sistema de proibições estatal legitimado do

ponto de vista axiológico-constitucional, respeitado o embate entre o valor liberdade e o

valor cuja vulneração se pretende proibir, ter-se-á realizado o valor da justiça:

“Com o novo método de ponderação, o Direito penal

torna-se mais complexo, perde a simplicidade e a linearidade do

método da subsunção (do positivismo legalista e formalista), mas

ganha em razoabilidade, equilíbrio e proporcionalidade, em suma,

eleva-se (a patamares notáveis) o valor justiça, que é o valor-meta do

Estado Constitucional e Democrático de Direito.”179

18.3. A axiologia do processo

18.3.1. A(s) função(ões), a(s) finalidade(s) e o(s) fundamento(s) do

processo penal

A questão que se coloca logo de início diz respeito à função ou às

funções do processo penal. Para que serve o processo penal? Qual sua finalidade?

178

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 137. 179

Luiz Flávio Gomes, ob. cit., pág. 146.

Page 100: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

100

As respostas a estas indagações não podem deixar de passar pela clara

afirmação de que o processo penal é o meio pelo qual o Estado reconhecerá ou não a

existência de seu direito de punir em razão da violação ou não do seu direito de proibir.

E neste ponto discordamos claramente das lições de Francesco Carnelutti

quando expõe que a função do processo penal é a pena. Para Carnelutti o processo penal

é a segunda fase do fenômeno penal, o qual é constituído pela combinação do delito e

da pena. Assim, ao abordar a função do processo penal, Carnelutti esclarece que “o

direito penal material tem, portanto, por objeto o delito; o direito penal processual tem,

em troca, como objeto a pena”180

.

Carnelutti continua sua lição apontando que a finalidade do direito penal

(que não se confunde com a função do direito penal) é a mesma do processo penal,

asseverando que a “razão pela qual o delito se faz seguir a pena, se distingue em duas

fases ou setores, aos quais convêm os nomes de prevenção e de repressão do delito”181

.

Como dito anteriormente não comungamos com a opinião do jurista

italiano. Porém, para que reste claro o motivo da discordância, cumpre, de antemão,

neste ponto, distinguir função, finalidade e fundamento. Finalidade é o fim, o objetivo a

ser alcançado pelo Estado ao exercer o seu direito de julgar. A função é o papel que

desempenha esta atividade estatal no sistema penal. E o fundamento é a razão de

natureza axiológica que legitima o direito do Estado de julgar, utilizando-se de

determinado mecanismo.

Neste passo, entendemos que a finalidade do exercício do direito de

julgar pelo Estado é verificar a existência ou não da violação do próprio direito estatal

de proibir e a incidência ou não do próprio direito estatal de punir. Cumpre, destarte,

uma dupla finalidade.

A função desempenhada pelo Estado ao exercer o seu direito de julgar é

promover a realização da sua finalidade, criando mecanismos de busca da verificação da

existência ou não da violação do direito estatal de proibir e da incidência ou não do

direito estatal de punir.

O fundamento do direito estatal de julgar, por sua vez, é a origem

político-axiológica legitimadora da atuação do Estado na busca da constatação da

existência ou não da violação do seu próprio direito de proibir e da incidência ou não do

180

As Funções do Processo Penal, 1959, 1ª edição, Apta, Tradução Rolando Maria da Luz, 2004, pág. 21. 181

Ob. cit., pág. 29.

Page 101: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

101

seu próprio direito de punir. Em outras palavras, são os valores que legitimam o Estado

a julgar a existência ou não do seu direito (de proibir e de punir).

18.3.2. Legitimação do direito estatal de julgar:

Qualquer seja a origem axiológica fundante do sistema penal, haverá,

necessariamente, que se perquirir a legitimação do direito estatal de julgar.

Como visto, o exercício do direito estatal de julgar tem por finalidade

verificar a existência ou não da violação do direito estatal de proibir e a incidência ou

não do direito estatal de punir. Por conta disto, podemos afirmar que é possível haver

punição imposta pelo Estado sem processo, mas nunca sem julgamento.

Caso um soberano resolvesse punir seu súdito sem lhe dar a oportunidade

de defender-se, sem necessidade de produzir prova, sem qualquer formalidade ou

acusação, sem justificar a razão da punição, ainda assim terá havido um julgamento por

parte deste soberano que resolveu punir seu súdito, ainda que seja meramente porque o

soberano quis. O simples ato de querer pressupõe a formação de uma opinião que é a

essência do ato de julgar, ainda que não seja com base em fatos.

Daí porque a aplicação de uma punição, ou seja, o exercício do direito

estatal de punir pressupõe um ato de julgamento, razão pela qual haverá que se perquirir

a legitimação do direito do Estado julgar.

É óbvio que os casos de auto-tutela punitiva (vingança privada)182

estão

excluídos da necessária perquirição da legitimação do direito estatal de julgar, uma vez

que não pressupõem exercício do direito do Estado de punir, pois é o cidadão e não o

Estado que o faz.

De outro lado, os casos de auto-tutela defensiva, como a legítima defesa

por exemplo, não estão excluídos da apreciação do Estado, posto que, ainda que a

posteriori, o julgamento realizado pelo particular ao se entender legitimado para se

auto-tutelar deverá ser submetido ao julgamento do Estado que poderá ratificá-lo ou

não.

Desta forma, toda e qualquer punição aplicada ou ratificada pelo Estado

deverá, antes, se submeter a um ato de julgamento pelo Estado, razão pela qual o direito

182

Geraldo Prado, Sistema Acusatório – A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais, 3ª

edição, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, pág. 78, assinala que logo em seguida à superação da confusão

entre ilícitos civis e criminais “...toda infração passou a ser considerada como rompimento da paz

(Friedensbruch), autorizando, conseqüentemente, a guerra e a vingança familiar (Blutrache e Fedhe ou

Faida), de tal sorte que perdia o ofensor e sua família a proteção comunitária.”

Page 102: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

102

estatal de punir, para ser aplicado, deverá passar antes pelo crivo do próprio Estado, eis

o motivo por quê devemos buscar os fundamentos do direito estatal de julgar.

Cumpre, assim, frisar que a legitimação do processo não se confunde

com a legitimação do direito estatal de julgar. Pode se buscar a legitimação do direito

estatal de julgar e, nem assim, legitimar o processo. O contrário, todavia, não é

verdadeiro.

Isso porque o direito estatal de julgar pode ser realizado sem processo,

daí porque suas origens fundantes não se confundem. No entanto, não há que se falar

em legitimação do processo sem antes investigar a legitimação do direito do Estado

julgar, daí porque a legitimação do direito estatal de julgar é pressuposto do estudo

sobre a legitimação do processo.

Podemos afirmar, neste passo, que a justificação do direito estatal de

julgar e do processo não se confundem, mas, por outro lado, não se separam.

A investigação sobre a relação da legitimação do direito estatal de julgar

e a legitimação do processo depende exatamente da combinação do que se entende por

finalidade, função e fundamento do direito estatal de julgar.

Cediço que a finalidade do direito estatal de julgar está assentada sobre a

necessidade de se verificar a existência ou não da violação do próprio direito estatal de

proibir e a incidência ou não do próprio direito estatal de punir, cumpre pesquisar a

função e o fundamento da atividade julgadora.

Como dito anteriormente, a atividade julgadora será decorrência da

ideologia político-axiológica fundante do governo.

Apenas à guisa de esclarecimento, se a ideologia política dominante for

democrática e os valores do ser humano prevalecerem, a dignidade e a liberdade irão

nortear a função a ser desempenhada pelo Estado ao exercer o seu direito de julgar.

Estaremos diante de um Estado-Julgador de matiz garantista.

De outro lado, em uma autocracia absoluta, a ordem imposta

unilateralmente faz sucumbir a liberdade, dando azo a um sistema de julgamento que

não verifica qualquer importância na condição e nos interesses do destinatário do

exercício do poder estatal.

18.3.2.a. Teorias deslegitimadoras do processo

Como antes observado, não se deve confundir deslegitimação do direito

estatal de julgar com deslegitimação do processo. Aquela se verifica na auto-tutela

Page 103: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

103

punitiva ou na hipótese de não haver Estado183

(caso em que não havendo sujeito de

direito, não há direito a se legitimar). Já a deslegitimação do processo se verifica na

hipótese específica de autocracia absoluta, em que o Estado não separa o exercício dos

Poderes. Deve ser frisado que neste último caso está legitimado o direito estatal de

julgar, mas não o processo.

Daí se verifica que, atualmente, com extrema dificuldade se encontrará

um país ou uma nação cuja forma de governo deslegitime o processo, haja vista a quase

totalidade dos países e nações separarem os Poderes do Estado.

Todavia, soera ocorrer, antes que Rousseau teorizasse sobre a festejada

Separação de Poderes, com freqüência184

, o exercício do direito estatal de julgar sem

qualquer interferência ou limitações de mecanismos de qualquer ordem sobre o poder

do soberano ou do senhor feudal185

.

Não que não existisse uma função de julgador nesse ou naquele Estado

absolutista ou em determinado Feudo, mas, sem qualquer independência da função de

julgador em relação ao soberano ou senhor feudal, não havia que se falar em

legitimação do processo, pois que a legitimação do direito de julgar estava no poder

absoluto conferido ao detentor do poder, ao sabor de que ideologia fosse (teocrática ou

não).

Daí porque antes mesmo da teorização sobre a Separação dos Poderes,

falar em julgamento não implicava falar em processo. O mecanismo de julgamento era

embalado pela vontade do autocrata.

Vale, neste sentido, transcrever as palavras de J. Goldschmidt:

“Por que supõe a imposição da pena a existência de um

processo? Se o jus puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder

soberano sobre seus súditos, que acusa e também julga por meio de

183

Estado está aqui colocado em sentido amplo, não apenas no sentido de Estados Nacionais, porquanto

antes mesmo da formação destes, quando o método de solução dos conflitos (o quê não podemos chamar

de violação do direito de proibir do Estado, pois estes conflitos são atos de violação da paz comunitária)

era o entendimento, mas, mesmo assim, era possível “...se socorrer dos Conselhos (Placita), assembléias

que ministravam justiça, começando aí o verdadeiro processo judicial de corte acusatório” (vide Helio

Tornaghi, Instituições de Processo Penal, vol. II, pág. 66 e Geraldo Prado, ob. cit., pág. 79). 184

Vale ressaltar que o termo “freqüência” foi utilizado tendo em vista a que o processo acusatório foi

utilizado pelos povos germânicos na área antes dominada pelo Império Romano, que passou a ser

dominada pelos germânicos após a invasão bárbara, bem como pela utilização do sistema inquisitorial

como foi o caso do processo português em que a dominação visigótica teve clara influência do Direito

Canônico, que, com aplicação do Fuero Juzgo, gerou a aplicação de um processo acusatório, com alguns

delitos perseguidos ex officio, nos moldes inquisitoriais, adotado posteriormente com a outorga da Lei das

Sete Partidas. (neste sentido vide José Henrique Pierangeli, Processo Penal – Evolução Histórica e

Fontes Legislativas, 2ª edição, IOB Thomson, 2004, pág. 28 e seguintes) 185

Helio Tornaghi, Instituições de Processo Penal, vol. II, pág. 26.

Page 104: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

104

distintos órgãos, pergunta-se: por que necessita que prove seu direito

em um processo?”186

Não é demais ressaltar que os distintos órgãos a que se refere

Goldschmidt não se apresentavam nos Feudos nem em todos os Estados anteriormente à

teorização e a adoção em maior escala da Separação de Poderes.

Isto não implica dizer que não houvesse legitimação do direito estatal (ou

feudal) de julgar, mas sim que este se confunde, in casu, com a legitimação do próprio

poder estatal (ou feudal).

A conclusão óbvia a que se chega é que, no caso das autocracias

absolutas, a existência de processo para julgar a existência ou não da violação do direito

de proibir e a incidência ou não do direito de punir é casuística, depende da vontade de

cada soberano e dos valores que traz consigo ao governar o Estado. O direito de julgar

está, desta forma, legitimado pelo só fato de estar legitimado o poder soberano. Já o

processo, se existir, está legitimado na vontade do exercício do poder soberano,

podendo ser meramente formal ou derivado de valores inerentes ao próprio autocrata.

18.3.2.b. Teorias Legitimadoras ou Justificacionistas do processo:

De outro lado, com a racionalização do pensamento, mormente sob o

ponto de vista político-filosófico, no período das luzes, a Separação dos Poderes levou

(ou deveria levar) ao divórcio entre o exercício do direito de julgar, do direito de proibir

e do direito de punir, e fez nascer a necessária perquirição da legitimação de cada um

desses direitos.

A questão que se coloca é do por quê julgar? O quê justifica, o quê dá

origem, sob o ponto de vista político-axiológico, ao direito do Estado julgar?

Para responder a esta indagação, cumpre retornar à questão anteriormente

colocada e que diz respeito à relação entre a finalidade, a função e o fundamento do

direito de julgar do Estado, porquanto o fundamento político-axiológico do direito de

julgar dará origem a um mecanismo a ele adequado para alcançar o seu fim, qual seja,

verificar a existência ou não da violação do próprio direito estatal de proibir e a

incidência ou não do próprio direito estatal de punir.

186

J. Goldschmidt, Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal, p. 7, apud Aury Lopes Jr.,

Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista), Lumen Juris, Rio

de Janeiro, 2004, pág. 1.

Page 105: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

105

Assim é que o processo existirá como mecanismo apto a realizar a função

que o fundamento do poder pretenda lhe conferir. A função poderá ser instrumental,

qual seja, criar mecanismos para verificar a existência ou não da violação do próprio

direito estatal de proibir e a incidência ou não do próprio direito estatal de punir. Como

a função poderá ser realizada pelo próprio processo como um fim em si mesmo ou um

instrumento de realização de “não valores”.

Em qualquer caso (que veremos abaixo), o processo estará legitimado

pela existência de uma Separação de Poderes, ainda que mitigada pela teoria do check

and balances.

18.3.2.b.I. Utilitarismo:

Neste ponto devemos compreender que estamos tratando do processo

enquanto meio para realização de determinados fins. Assim, cumpre ao processo a

realização do valor do útil. O processo realizará o útil, na medida em que a ele seja

atribuída uma finalidade dentro do sistema penal.

Mas não é só, porquanto ao direito estatal de julgar também é atribuída

uma finalidade, que é a mesma do processo. No entanto, como visto, nas autocracias

esta finalidade é realizada pela simples vontade do soberano, não havendo nenhum

mecanismo para atingir a finalidade pré-determinada. O processo, ao contrário é um

mecanismo para atingir esta finalidade.

Porquanto, conforme a tábua de valores que se apresenta como

fundamento político-axiológico do exercício do poder estatal, o processo cumprirá uma

função de utilidade repressivista ou garantista.

Assim, em um Estado cujo fundamento do exercício do poder seja a

prevalência da ordem pública (em outras palavras, do direito estatal de punir) no

clássico embate com a liberdade do ser humano, teremos um processo repressivista, que

cria mecanismos para atingir sua finalidade (existência ou não da violação do direito

estatal de proibir e a incidência ou não do direito estatal de punir), cumprindo uma

função de alcance da realização do direito do Estado.

Por outro lado, em um Estado humanista, cujo fundamento político-

axiológico do poder faça prevalecer a dignidade do ser humano sobre a ordem pública,

o processo cumprirá uma função de garantia dos direitos fundamentais do cidadão em

busca da verificação da existência ou não da violação do direito estatal de proibir e a

incidência ou não do direito estatal de punir, que é sua finalidade.

Page 106: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

106

De todo evidente, que entre o extremo do repressivismo e o do

garantismo puro muito se encontra e seria demasiado estabelecer classificações

intermediárias, sendo suficiente estabelecer a tendência repressivista ou garantista do

processo, de acordo com sua conformação político-axiológica.

. Repressivista

O sistema inquisitorial de processo é a configuração, por excelência, de

processo de função repressivista.

O processo sob o sistema inquisitorial não tem outra finalidade senão a

mesma do processo com os contornos de qualquer outro sistema: verificar a existência

ou não da violação do direito estatal de proibir e a incidência ou não do direito estatal de

punir.

No entanto, a função que lhe cumpre é encontrar a verdade para realizar e

restabelecer a ordem violada com a aplicação da punição. O que, em princípio, hoje

possa parecer opressivo, cumpriu à época (séculos XIII em diante, até o século XIX ou

até hoje no caso do Direito Canônico187

) sua função político-filosófica, como leciona

Geraldo Prado:

“Embora hoje a Inquisição seja vista com todas as

reservas, cumpre remarcar que na sua época o discurso dominante a

apresentava como produto da racionalidade, confrontada com a

suposta irracionalidade das ordálias ou juízos de Deus, que substituiu,

enquanto sistema de perseguição da verdade, pela busca da

reconstituição histórica, procurando, tanto quanto possível, reduzir os

privilégios que frutificavam na justiça feudal, fundada quase

exclusivamente na força e no poder de opressão dos senhores feudais

sobre as demais, pessoas que a rigor estavam sujeitas a medidas

punitivas discricionárias, impostas pelos mencionados senhores

feudais.”188

Todavia, a constituição política de matiz autoritário (mesmo quando

teocrático), entregava ao julgador um instrumento de manutenção da ordem, que na

realidade não era exatamente a ordem pública, mas a ordem constituída politicamente.

187

Aury Lopes Jr., ob. cit., pág.156, nota 351. 188

Geraldo Prado, ob. cit., pág. 82.

Page 107: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

107

Geraldo Prado esclarece que Michel Foucault enxergava no sistema

inquisitorial “um eficaz instrumento de gestão à disposição da nova estrutura de poder

que se formava na Europa Continental”, afirmando que o inquérito era “sobretudo um

processo de governo, uma técnica de administração, uma modalidade de gestão; em

outras palavras, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer”189

.

Não que discordemos de Foucault, mas que o processo, como visto antes,

seja sob que sistema for (não apenas o inquisitorial) é uma forma de exercício do poder,

não há dúvida. O processo sob o sistema inquisitorial não poderia ser diferente.

Fato é que sua função repressivista era decorrência da inspiração política

autoritária do Estado. Porquanto, o fundamento político-axiológico dos governos da

Europa Medieval e mesmo posterior, de inspiração não humanística, impunha um papel

ao processo penal com características capazes de realizar a ordem constituída.

Neste passo, o processo tinha a função de criar condições para que o

direito do Estado fosse realizado.

Assim é que podemos verificar serem as principais características do

sistema inquisitorial a confusão entre o sujeito processual com função acusatória e o

sujeito processual com função julgadora; a iniciativa investigatória e processante ex

officio; a busca da verdade real; a admissão de qualquer prova capaz de buscar a

verdade, mesmo a tortura; a preferência da confissão a qualquer outro meio de prova; o

processo escrito, secreto e não contraditório; quanto à valoração da prova vigorava o

sistema da prova legal ou prova tarifária ou hierarquia das provas; a inexistência de

direito de defesa; o acusado como mero objeto e não sujeito processual; a prisão como

regra, pois permitia que o julgador tivesse o objeto de investigação a seu dispor para

obter a confissão; e as decisões não precisavam ser fundamentadas.

Outros sistemas processuais, de natureza prevalecentemente inquisitorial,

tem caráter repressivista, ou, ao menos, mais se aproximam do processo de mecanismo

repressivista do que garantista.

Casos peculiares são os processos nazista e fascista (inspiração do

vigente Código de Processo Penal brasileiro190

), bem como os movimentos de “Lei e

Ordem” e “Tolerância Zero” norte-americanos. Todos, sob diversos fundamentos, além

189

Geraldo Prado, ob. cit., pág. 81. 190

O atual Código de Processo Penal brasileiro, promulgado em 1941 em plena ditadura do Estado Novo,

foi inspirado no Código Rocco, da Itália fascista.

Page 108: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

108

de repressivistas apresentam sistemas penais e práticas de natureza processual

preventivas.

Os sistemas nazistas e fascistas partem do pressuposto, já abordado, de

que o crime é decorrência das condições antropológicas, chegando Lombroso (em “O

Homem Deliqüente”) a classificar o homem delinqüente conforme suas características

biológicas. Assim, as práticas de eliminação dos delinqüentes natos eram uma

decorrência da ideologia política.

Já a política da “Lei e Ordem” e “Tolerância Zero” são decorrentes da

cruzada do Manhattan Institute contra o Estado-providência norte-americano de Ronald

Reagan, e atribuem a escalada da criminalidade ao “bom tratamento” das classes pobres.

Vale transcrever a lição de Wacquant, citado por Aury Lopes Jr.:

“[a] excessiva generosidade das políticas de ajuda aos

mais pobres seria responsável pela escalada da pobreza

nos Estados Unidos: ela recompensa a inatividade e

induz à degenerescência moral das classes populares,

sobretudo essas uniões ilegítimas que são a causa última

de todos os males das sociedades modernas – entre os

quais a violência urbana.”191

Este discurso, que elegeu o promotor Rudolph Giuliani prefeito de Nova

York em 1993 e tornou a cidade “vitrina mundial dessa política repressivista”192

,

implantou um modelo de detenções arbitrárias, medidas cruéis, desumanas e

absolutamente aéticas.

Não por coincidência, discurso muito semelhante ao norte-americano da

década de 1990, foi adotado pelos teóricos da “Escola Positiva Italiana” na década de

1920 que acabou por legitimar as ideologias nazista e fascista, senão vejamos:

“De fato, em face da excelência teórica reunida pela

Escola Clássica tanto jurídica como penitenciária, advieram (conforme

foi referido no nº 19) como resultados práticos o contínuo aumento da

criminalidade e da recidiva, em evidente e quotidiano contraste com a

necessidade da defesa social contra a delinqüência, que é a razão de

ser da justiça penal.” 193

191

Aury Lopes Jr., ob. cit., pág. 12. 192

Aury Lopes Jr., ob. cit., pág. 12. 193

Enrico Ferri, ob. cit., pág. 49.

Page 109: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

109

De fato, o fundamento do discurso nazista e fascista é antropológico, ao

passo que o discurso da política da “Lei e Ordem” e “Tolerância Zero” é econômico,

porém, o repressivismo do sistema penal, mormente das práticas processuais (mesmo

que preventivistas), decorrem do fundamento autoritário do poder político.

Desta forma, resta clara a função repressivista e preventivo-repressivista

desempenhada pelo processo nos Estados de conformação política autoritária,

consistente na realização do modelo político estatal.

. Garantista

O processo de conformação garantista decorre do fundamento político

humanista do Estado. Em outras palavras, o processo de função garantidora dos direitos

fundamentais do homem é reflexo da prevalência do valor liberdade sobre a ordem

constituída.

Vale dizer, por oportuno, que ao se falar de processo de função

garantista, não devemos confundir com o Garantismo, teoria formulada por Luigi

Ferrajoli em 1989 na Itália194

.

O garantismo de Luigi Ferrajoli é uma teoria completa sobre o Direito

Penal de cariz humano e democrático, esposada com base em sólidos fundamentos

filosóficos e científicos, não se limitando apenas ao estudo do processo penal, seu

fundamento e sua função garantista, objeto desta parte da exposição neste trabalho.

É de todo evidente, todavia, que o garantismo de Ferrajoli aplicado ao

processo penal é uma teoria que fundamenta o exercício do direito estatal de julgar nos

moldes garantistas de que trata este trabalho.

Porquanto, uma das principais fontes de desenvolvimento dos

paradigmas processuais de função garantista é o pensamento de Ferrajoli.

Vale, no entanto, dizer que um processo de matiz garantista é, por

excelência, aquele que se conforma ao sistema acusatório.

Aury Lopes Jr. expõe as principais características do processo acusatório

hodiernamente:

“Na atualidade, a forma acusatória caracteriza-se pela:

a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;

b) A iniciativa probatória deve ser das partes;

194

Luigi Ferrajoli, Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal, tradução Ana Paula Zomer, Fauzi

Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes, Editora Revista dos Tribunais, 2002, São Paulo.

Page 110: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

110

c) Mantém-se o juiz como um terceiro imparcial, alheio

a labor de investigação e passivo no que se refere à

coleta da prova, tanto de imputação como de

descargo;

d) Tratamento igualitário das partes (igualdade de

oportunidades no processo);

e) Procedimento é em regra oral (ou

predominantemente);

f) Plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua

maior parte);

g) Ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a

sentença pelo livre convencimento motivado do

órgão jurisdicional;

h) Instituição, atendendo a critérios de segurança

jurídica (e social) da coisa julgada;

i) Possibilidade de impugnar as decisões e o duplo

grau de jurisdição.”195

Estas características do sistema acusatório criam mecanismos para

garantir os direitos fundamentais dos cidadãos acusados de violarem o direito estatal de

proibir.

Neste passo, o processo atende à função axiológica utilitarista, só que sob

fundamento político humanista e democrático.

. Pacifista

Não se pode deixar de falar dos processos com função meramente

pacifista. Em outras palavras, são mecanismos criados para pôr fim a um conflito social

em início ou em curso, mas que não se atém à prevalência do direito de punir do Estado,

nem tampouco aos direitos fundamentais do cidadão.

É um processo que realiza apenas o valor do útil, na medida em que faz

do processo um instrumento para a obtenção da paz social, ainda que sacrifique a

justiça, a verdade, o bem, a liberdade, a ordem, e outros valores.

195

Aury Lopes Jr., ob. cit., pág. 154.

Page 111: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

111

Um processo de cariz meramente pacifista dificilmente é encontrado

como o modelo adotado por um Estado. De outro lado, facilmente encontramos

mecanismos pacifistas encartados em processos de modelo ora repressivista, ora

garantista.

É o caso da justiça consensual, hoje em voga inclusive no Brasil e cuja

origem norte americana não se pode negar. E não confundamos o que se tem no Brasil

como transação penal com a justiça consensual a que nos referimos. Estamos nos

referindo à justiça consensual entre as partes. A chamada composição como forma de

solução dos conflitos transposta para o campo penal.

Geraldo Prado destaca que o sistema de justiça consensual já era

encontrado como evolução da vingança privada. In verbis:

“Tal sistema progrediu até que fosse permitido o

pagamento do preço da paz à comunidade (Friedensgeld), por meio de

convênios reparatórios, e uma indenização ao ofendido ou sua família

(Busse), o que era possível em se tratando de infrações menores. Nilo

Batista ressalta que a existência da capitular de Carlos Magno, de 802,

que recomendava às famílias evitar acrescentar uma inimizade ao mal

já feito, destacando, porém, que durante extenso período “a anuência a

uma composição ultrajava o sentimento coletivo da honra familiar e só

mais tarde o ressarcimento assumiria um papel central na superação de

tais litígios”.

A partir de um determinado momento o entendimento

privado constitui-se no método predominante de solução dos conflitos

de interesses de natureza penal...” 196

O modelo de justiça penal consensual hoje se apresenta no direito pátrio,

introduzido pela Lei que instituiu os Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), tratada como

instituto jurídico da Conciliação, que confere solução aos litígios criminais e civis ao

mesmo tempo nos casos de infrações de menor potencial ofensivo e cuja iniciativa

dependa, de alguma forma, da vontade potestativa do ofendido197

.

Em casos de composição, sem perquirição da culpa, sem produção de

prova exaustiva, sem direito de defesa, sem cumprimento de pena (entendida como

196

Geraldo Prado, ob. cit., pág. 79. 197

Isso porque a solução compositiva entre vítima e autor do fato só gera efeitos criminais nos casos das

ações de iniciativa privada ou na ação de iniciativa pública condicionada a representação do ofendido.

Page 112: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

112

sanção punitiva imposta pelo Estado), tão somente composição de danos (ainda que

morais), não há que se falar em processo garantista ou repressivista, mas apenas

pacifista, posto que o mesmo é tomado apenas como instrumento de pacificação dos

conflitos sociais.

18.3.2.b.II. Auto-justificante ou utilitarismo avalorativo

Há casos, outrossim, que o processo é tratado como um fim em si mesmo

ou como instrumento para realização de “não valores”. Senão vejamos:

Hodiernamente, diversos mecanismos processuais são criados para

cumprir uma função avalorativa, que termina por fazer confundir a função do processo

com a finalidade da pena.

Isso ocorre nos casos em que a celeridade e a desobstrução dos serviços

prestados pelo Poder Judiciário são “não valores” elevados a “valores” para servirem de

fundamento axiológico para fazer incidir o direito estatal de punir sem a verificação da

violação do direito estatal de proibir.

Em outras palavras, é o Estado aplicando a pena, ou seja, exercendo seu

direito de punir sem que se saiba se foi violado seu direito de proibir, isto é, se foi

cometido um crime, sob o fundamento de desafogar os serviços judiciários.

O instrumento (processo) se torna fim.

Basta ver que o processo é o mecanismo para que o Estado verifique se o

cidadão violou ou não o direito estatal de proibir e se, em conseqüência, deve incidir o

direito estatal de punir. No entanto, neste modelo de processo, é preferível que seja

aplicada a pena para que o processo não demore.

O fim (pena) se torna meio para que o meio (processo) possa terminar

mais rápido.

Deve ser ressaltado que este modelo não pode ser chamado de Justiça

consensual. Por mais que a pena a ser aplicada sem processo, nos países em que se

admite este tipo de mecanismo, dependa de uma manifestação da vontade do increpado,

não se está transigindo com direitos disponíveis. É uma imposição velada.

Vale, para esclarecer, um exemplo pontual. Vejamos o quê ocorre no

Brasil198

. Alguém acusado de praticar uma infração de menor potencial ofensivo, que

198

No Brasil o artigo 76 da Lei nº 9.099/95 instituiu a Transação Penal para as infrações de menor

potencial ofensivo, em que o Ministério Público propõe a aplicação imediata de pena de multa ou

restritiva de direito sem que o autor do fato se submeta a um processo criminal. Este instituto é

Page 113: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

113

seja primário e de bons antecedentes terá “direito” a cumprir uma pena sem responder a

processo criminal. Esta pena é determinada pelo Ministério Público, sob a fiscalização

do juiz. Pergunta-se, o quê leva o acusado (tratado eufemisticamente como “autor do

fato”) a aceitar esta proposição e cumprir uma pena sem ter direito de se defender e

produzir provas de sua inocência?

Quiçá a resposta dos conhecedores da Lei seja a de quê a pena proposta

pelo Ministério Público será uma alternativa à prisão, consistente, portanto, numa multa

ou pena restritiva de direitos.

A dúvida, todavia, continua, pois que se a infração é de menor potencial

ofensivo e o acusado é primário e de bons antecedentes (caso contrário não faria “jus” à

pena antecipada), mesmo que fosse condenado dificilmente lhe seria aplicada uma pena

de prisão. Então, por quê aceitar o cumprimento de uma pena antecipada sem direito de

se defender e de produzir provas a seu favor?

A questão poderia ser contra-argumentada com a alegação de que os

culpados aceitariam a pena e os inocentes não. Um perfunctório estudo fenomenológico

mostraria que a assertiva é falaciosa e que se quem o fizesse conhece a prática

processual criminal estaria sendo hipócrita.

Isso porque mesmo (e principalmente) os inocentes aceitam a pena

antecipada para se verem livres do processo. Ou seja, ser processado é punição mais

grave que a própria pena. O estigma de um processo criminal faz com que um acusado

prefira cumprir uma pena, que com pequenas variações terá a mesma gravidade da que

seria aplicada se ele perdesse o processo criminal, abrindo mão de seus direitos

fundamentais de contraditar a prova existente contra ele e defender-se.

Nesta ordem de idéias não resta dúvida que a aplicação antecipada de

pena é um mecanismo processual que torna o processo mais grave do que a própria

pena, donde podemos concluir com segurança que a função do processo passa a ser a

finalidade da pena, tornando-se um fim em si mesmo. Tudo isto para imprimir

celeridade ao processo e tornar o Poder Judiciário mais eficiente (aos olhos de quem

enxerga o processo como fim e não como meio, pois a eficiência aos olhos de quem

enxerga o processo como meio só pode estar na realização da sua finalidade de verificar

a violação ou não do direito estatal de proibir e a incidência do direito estatal de punir).

claramente inspirado no Plea Bargaining do direito norte-americano, aplicado de forma mais extensa na

medida em que o acusado aceita se submeter a uma pena de prisão.

Page 114: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

114

18.3.2. c. (Des)legitimação do direito de julgar com

legitimação do processo

Importa neste tópico implementar um debate sobre os dois últimos casos

de função legitimadora do processo, quais sejam, a legitimação do processo de função

pacifista e a legitimação do processo de função auto-justificante ou utilitária avalorativa.

É que a priori pode parecer que o Estado não tem seu direito de julgar

legitimado, uma vez que o Estado não julga, vez que as partes entram em acordo ou é

aplicada uma pena sem julgamento.

Isto não é verdade. O direito do Estado julgar está plenamente

legitimado. O quê ocorre é que o Estado abre mão de realizar o julgamento para o qual

está legitimado, em nome da adoção de um mecanismo que realize a função almejada

para o processo.

Assim, no caso do processo de matiz pacifista, o processo é um

mecanismo encontrado para o alcance da paz social, sem que o Estado necessite exercer

o seu direito de julgar que, no entanto, está plenamente legitimado. Basta verificar que

não havendo composição haverá julgamento.

No caso do processo de função auto-justificante ou utilitária avalorativa o

Estado prefere a celeridade e a desobstruição do serviço prestado pelo Poder Judiciário

do que exercer o seu direito de julgar. No entanto, a pena sem o exercício dos direitos

do cidadão não é uma imposição, razão pela qual não aceita implicará no exercício do

direito do Estado julgar.

Daí porque deve ser frisado que em ambos os casos o direito de julgar

não foi deslegitimado.

18.3.3. A conformação das regras processuais aos valores constitucionais

É fato que a Constituição delineia o modelo político adotado pelo Estado.

Nesta ordem, os valores prevalentes são abrigados pela Carta que os materializa em

princípios a serem seguidos pelo legislador ordinário.

Na atividade legiferante, destarte, a tábua axiológica contemplada pela

Constituição deve servir de paradigma para criação do sistema penal, bem assim dos

mecanismos processuais de que se valerá o Estado ao exercer o seu direito de julgar.

Devemos aqui, com um breve sumário, expor os princípios que norteiam

o direito processual penal pátrio, para que nos utilizemos de seus valores na

compreensão do fundamento político-axiológico legitimador do processo brasileiro.

Page 115: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

115

Não seria demasiado simplificador elencar cinco princípios e uma regra

constitucional capazes de demarcar com exatidão a função do processo no sistema penal

brasileiro.

O primeiro deles é o princípio da dignidade da pessoa humana199

que

demanda uma prevalência dos direitos do Homem sobre a ordem constituída. Deste

princípio decorrem os demais que a seguir veremos.

O princípio da presunção de inocência200

assegura a todos os cidadãos o

direito de serem julgados, ou seja, não é cabível a aplicação de pena sem julgamento.

Ninguém pode ser considerado culpado sem que tal fato seja reconhecido por sentença

condenatória plenamente fundamentada201

transitada em julgado.

Esta sentença condenatória deve ser prolatada por juízo competente202

,

imparcial203

em decorrência de processo público204

de acordo com as normas legais

estabelecidas pelo legislador ordinário. É o que se chama princípio do devido processo

legal205

.

Não se pode falar em devido processo legal sem que este permita ao

acusado contraditar todas as provas lícitas206

apresentadas pela acusação (princípio do

contraditório207

) e conferindo ao mesmo o direito de se defender amplamente,

produzindo toda e qualquer prova obtida ou a ser obtida por meios lícitos208

(princípio

da ampla defesa209

).

As ações penais só poderão ser iniciadas pelo Ministério Público210

ou

pelo ofendido, nunca ex officio pelo juiz.

Resta certo, destarte, que o legislador constituinte, em coerência à opção

feita por um modelo de Estado Democrático de Direito211

, que tem, portanto,

conformação político-axiológica garantista, delineou claramente um sistema acusatório

de processo penal.

199

Artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 200

Artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 201

Artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 202

Artigo 5º, inciso LIII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 203

Artigo 5º, inciso XXXVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 204

Artigo 93, inciso IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 205

Artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 206

Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 207

Artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 208

Artigo 5º, inciso LVI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 209

Artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 210

Artigo 129, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 211

Artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Page 116: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

116

O problema está menos na Constituição e mais nas leis de processo,

mormente o Código de Processo Penal elaborado no rumo dos ventos políticos que

sopravam na época do Estado Novo.

Malgrado em diversos pontos claramente inquisitoriais o Código já tenha

sido alterado, como é o caso do interrogatório sem a presença de um advogado, a

interpretação do silêncio em desfavor do réu212

e a iniciativa ex officio nos processos de

contravenção, homicídio culposo e lesão corporal culposa213

, restam em vigência214

diversos pontos de cariz inquisitorial como a iniciativa probatória e a iniciativa da

mutatio libelli, ambas ex officio pelo juiz, a requisição de instauração de inquérito pelo

juiz, a busca da verdade real, entre outras.

Não por outro motivo expôs Geraldo Prado:

“Muitos dos princípios opostos ao acusatório

verdadeiramente são implementados todo dia. Tem razão o mestre

Frederico Marques ao assinalar que a Constituição preconiza a

adoção e efetivação do sistema acusatório. Também tem razão Hélio

Tornaghi, ao acentuar que há formas inquisitórias vivendo de

contrabando no processo brasileiro, o que melhor implica em

considera-lo, na prática, misto. O princípio e o sistema acusatórios

são, por isso, pelo menos por enquanto, meras promessas, que um novo

Código de Processo Penal e um novo fundo cultural, consentâneo com

os princípios democráticos, devem tornar realidade.” 215

18.3.4. (re)pensando a epistemologia do processo penal

À luz dos paradigmas constitucionais apresentados, os valores eleitos

pelo legislador constituinte delineiam um processo garantista que deve criar

mecanismos para permitir ao cidadão o pleno exercício de seus direitos fundamentais.

Desta forma, cediço que o processo penal brasileiro tem fundamento

democrático e humanista, e função garantista, sua finalidade deve ser observada na

construção epistemológica do sistema processual.

212

Pontos alterados pela Lei nº 10.792/03. 213

Pontos revogados pela Lei nº 9.099/95. 214

Embora devamos, pelos motivos expostos, considerá-los inconstitucionais. 215

Geraldo Prado, ob. cit., pág. 195.

Page 117: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

117

Isto significa dizer que não se pode perder de vista que o objetivo do

processo é verificar a existência da violação ou não do direito de proibir do Estado e a

incidência ou não do direito de punir do Estado.

Assim, as regras de processo, de conformidade às suas finalidades e à

tabua de valores constitucionais, devem ser elaboradas em duas partes estanques,

porquanto a lógica do processo deve ser a criação de mecanismos para a verificação da

prática do crime (violação ou não do direito de proibir do Estado), para só então criar

mecanismos para verificar a necessidade de aplicação da pena (incidência do direito de

punir do Estado).

O quê se verifica hoje é uma confusão dos mecanismos de verificação da

prática do crime e da necessidade de aplicação da pena. Pior, no mais das vezes, os

mecanismos de verificação da necessidade e da metodologia de aplicação da pena são

utilizados, inexplicavelmente no momento de julgamento da prática do crime, como é o

caso da prática usual entre os juízes brasileiros de se buscar a verificação dos

antecedentes e da primariedade do acusado para formar um juízo sobre a violação do

direito de proibir do Estado216

.

Fato é que uma nova epistemologia para o processo penal precisa

urgentemente ser pensada, antes de se realizar a renovação da legislação infra-

constitucional para adaptar o sistema legislativo à nova (nem tão nova, porquanto já tem

mais de 17 (dezessete) anos de existência) ordem instituída pelo Poder Constituinte de

1988.

Para tanto, é impositiva uma divisão do processo sistematicamente em

duas fases conforme as duas finalidades que lhe cabem, a saber: (1) verificar a

existência da violação ou não do direito estatal de proibir, ou seja, da prática do crime; e

(2) verificar a necessidade de incidência ou não do direito estatal de punir, ou seja,

aplicação da pena na medida de sua necessidade.

Evidente, de outro ponto, que estas regras consistam em mecanismos que

estejam em perfeita consonância com o sistema político-axiológico traçado pela

Constituição de 1988, traçado sumariamente neste trabalho.

216

Vale quanto a este particular esclarecer que a utilização da reincidência e dos antecedentes na

verificação da violação ou não do direito de proibir do Estado é ilegal, pois a lei prevê estes elementos,

com raras exceções, para o momento de aplicação da pena, o quê, todavia, é inconstitucional, pois

aumentar a pena pela reincidência é aplicar nova pena por crime anterior, violando o princípio do non bis

in idem.

Page 118: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

118

Conclusão

O direito penal é o ramo do Direito, de natureza pública, que realiza a

maior invasão na esfera da individualidade do cidadão por parte do Estado. Trata-se de

uma mitigação dos direitos fundamentais do ser humano, mormente o da liberdade.

Por conta disso, ao se admitir esta ingerência do Estado na vida de cada

pessoa, deve ser ter em vista o quê o legitima a fazê-lo.

O pensamento filosófico do Direito Penal, como já dito na introdução,

transita entre o valor da liberdade humana e o do poder punitivo, é a tensão sempre

presente nos modelos punitivos.

Buscar a legitimação do exercício ou não do jus puniendi do Estado à

vista desta tensão é o objetivo deste estudo.

A primeira indagação que foi alvo da abordagem diz respeito ao objeto

de conhecimento e do ser cognoscente (especificamente no que diz respeito à sua tarefa)

do direito penal. A este tópico denominamos ontognoseologia.

O enfoque dado à questão disse respeito à gênese do sistema legislativo

que delineia o direito penal. Desta forma, o direito positivado teve especial relevância

para o desenvolvimento do estudo.

Porquanto, se fez necessário abordar o método, a teoria e a ideologia do

direito para estabelecer, de forma crítica, os paradigmas deste ramo específico do

direito.

Assim, fixar a origem da moderna positivação do direito, bem como

realizar um breve relato histórico-filosófico sobre o juspositivismo, se mostraram

absolutamente necessários até para romper com as amarras do possível pré-conceito que

atrela de forma rígida o direito positivado e o juspositivismo, como relação de causa e

efeito mútua.

Porquanto, o iluminismo teve papel preponderante na ruptura com o

antigo sistema feudal no que diz respeito ao direito penal e estabeleceu os novos

paradigmas que até hoje norteiam o direito penal, ressalvadas as diversas concepções

dogmáticas que se sucederam e ainda o fazem.

O princípio da legalidade foi e é o maior dos paradigmas que a época da

ilustração estabeleceu e, por conta disso, o especial interesse do direito penal no sistema

legislativo é inexorável.

De outro lado, procurou se estabelecer as contribuições irrefutáveis do

juspositivismo (como é o caso da teoria do Ordenamento Jurídico), mostrar sua

Page 119: A Legtimação do Direito Penal - origem político-axiológica do sistema penal

119

aplicação ao direito penal e as deficiências de sua teoria e ideologia (mormente sua

avaloratividade), foram ponto fundamental para o avanço das conclusões a que se

chegou na primeira parte do trabalho, qual seja, o direito penal é valorativo,

principalmente quando de sua legiferação.

Em outras palavras, o sistema penal, enquanto sistema legislativo

(ordenamento jurídico) teleologicamente construído, é elaborado por um legislador que

expõe e impõe, ao criar as leis penais, os valores que habitam sua consciência (ou

mesmo seu inconsciente).

Ocorre que o ato de legislar é um ato político, daí porque a criação do

sistema penal é tarefa política.

Estabelecida a atividade legislativa como política e o ato do legislador

como valorativo, a criação do sistema penal é uma atividade político-axiológica e, não

por outro motivo, a segunda parte do trabalho foi dedicada à axiologia do direito penal.

Cumpriu a tarefa primeira de estabelecer uma teoria dos valores, como

passo necessário para determinação da premissa do estudo que se propunha.

Em seguida foi necessário estabelecer uma lógica simples do direito

penal para continuação do estudo axiológico. É que o direito penal se baseia em três

pontos fundamentais, a saber: o bem jurídico protegido, a pena, e o processo,

porquanto, representam na esfera da ciência penal os institutos correspondentes na

esfera política aos direitos estatais de proibir, punir e julgar, respectivamente.

Por esta razão, o trabalho foi desenvolvido na perquirição da legitimação

axiológica de cada ponto fundamental do direito penal.

A ordem seguida foi o estudo sobre a axiologia da pena, depois do bem

jurídico protegido e, por último, do processo. Explica-se. É que, conquanto possa

parecer que a ordem lógica seria estudar a violação da lei com a prática do crime, depois

da pena que será imposta em razão da ação criminosa, para, por fim, estudarmos o

processo que terá a finalidade de verificar a pr´tica do crime e a necessidade de

imposição da pena, vale dizer que esta lógica é verdadeira apenas quanto à aplicação do

direito penal ao caso concreto.

Isso porque, não estamos partindo da lógica da aplicação da lei, mesmo

porque ao crime se segue a pena, e não o contrário. No entanto, nosso estudo diz

respeito à legitimação do direito do Estado. Daí porque a primeira pergunta que deve ser

formulada é quanto à justificativa do Estado para aplicar violência contra o seu cidadão.

Mesmo porque, se o Estado se arrogar no direito se penalizar as pessoas, por exemplo,

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pelo que elas são e não pelo que fizeram, a perquirição quanto à prática do crime é

despicienda. Por este motivo, malgrado a pena deva seguir ao crime na lógica de sua

aplicação, este deve seguir aquela na lógica de sua legitimação.

Então foi estabelecida a legitimação axiológica para cada ponto

fundamental do direito penal tomando por base a teoria dos valores anteriormente

exposta.

E nesta ordem de idéias foi impossível dissociar a tarefa política da

axiológica. Isso porque restou claro que as Constituições são instrumentos legislativos

políticos que fixam a tábua de valores que a cultura que determinada civilização

pretende realizar.

Assim, restou claro que entre as diversas concepções ideológicas que

justificam o direito penal por cada um de seus pontos fundamentais, o sistema

legislativo deve ser criado ou interpretado com base no quadro axiológico constitucional

que se apresenta.

Por fim, só podemos acreditar na existência de um ordenamento jurídico-

penal legítimo, assegurando sua teleologia sem a existência de lacunas ideológicas,

quando as normas penais que compõem o sistema legislativo forem elaboradas com

base nos preceitos político-axiológicos fixados na Constituição.

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