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_____________________________________________ EVANDRO LUCAS PATSKO A LEGITIMIDADE DO PROBLEMA DA EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA NO DE MOTU DE BERKELEY ___________________________________________________________________ Londrina 2009

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_____________________________________________

EVANDRO LUCAS PATSKO

A LEGITIMIDADE DO PROBLEMA DA EXPLICAÇÃO

CIENTÍFICA NO DE MOTU DE BERKELEY

___________________________________________________________________

Londrina

2009

EVANDRO LUCAS PATSKO

A LEGITIMIDADE DO PROBLEMA DA EXPLICAÇÃO

CIENTÍFICA NO DE MOTU DE BERKELEY

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Rodrigues da Silva

Londrina

2009

EVANDRO LUCAS PATSKO

A LEGITIMIDADE DO PROBLEMA DA EXPLICAÇÃO

CIENTÍFICA NO DE MOTU DE BERKELEY

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em Filosofia.

COMISSÃO EXAMINADORA

______________________________________ Prof. Dr. Marcos Rodrigues da Silva. Universidade Estadual de Londrina

______________________________________

Prof. Ms. Claudiney José de Souza Universidade Estadual de Londrina

______________________________________

Prof. Dr. Gelson Liston Universidade Estadual de Londrina

Londrina, ____ de____________ de 2009.

RESUMO

Concorda-se, em geral, que George Berkeley foi um filósofo anti-realista, no que diz

respeito à sua filosofia da ciência; esse anti-realismo, analisado a partir do texto do

De Motu, seria caracterizado por um instrumentalismo, que foi chamado por

Newton-Smith de instrumentalismo semântico. De acordo com Newton-Smith, uma

das implicações desse modelo é que Berkeley negou significatividade aos

enunciados teóricos da ciência, que tais enunciados não diriam nada a respeito do

mundo, e, como consequência, Berkeley não teria se preocupado com o problema

da explicação científica, não valorizando devidamente o empreendimento científico.

Entretando, neste ensaio, pretende-se mostrar que Berkeley valorizava o

empreendimento científico de seu tempo, notadamente a mecânica newtoniana,

ainda que defendesse uma interpretação instrumentalista; argumentar-se-á que é

possível encontrar no De Motu uma interpretação alternativa ao modelo explicativista

causal, esposado por Newton-Smith. Dessa forma, procurar-se-á evidenciar que o

problema da explicação científica foi um problema legítimo na filosofia da ciência de

Berkeley.

Palavras-chave: filosofia da ciência, realismo, anti-realismo, problema da explicação

científica, George Berkeley.

ABSTRACT

It agrees, in general, that George Berkeley was an anti-realistic philosopher, in what

concerns about philosophy of science; that anti-realism from the text of De Motu,

would be characterized by an instrumentalism, that was called by Newton-Smith of

semantic instrumentalism. According to Newton-Smith, one of the implications of that

model is Berkeley that denied significantly to the enunciated theoreticians of the

science, that such enunciated would say nothing to the world and as consequence,

Berkeley would not have worried about the problem of the scientific explanation, not

valuing properly the scientific undertaking. However, in this assignment, it is intended

to show that Berkeley valued the scientific undertaking of his time, in particular to

newtonian mechanical, even if defended an instrumentalist interpretation; it will be

argued that is possible to find in the De Motu an alternative interpretation to the

causal explanatory model, displayed by Newton-Smith. In this way, it is wanted to

show up that the problem of the scientific explanation it was a legitimate problem in

the philosophy of the science of Berkeley.

Keywords: philosophy of the science, realism, anti-realism, problem of the scientific

explanation, George Berkeley.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6

1 AS TRÊS PARTES DO DE MOTU ......................................................................... 15

1.1 O PRINCÍPIO DO MOVIMENTO (§§ 1-42) ......................................................... 15

1.1.1 PRINCÍPIO DO MOVIMENTO NOS INOBSERVÁVEIS ................................... 16

1.1.2 PRINCÍPIO DO MOVIMENTO NOS OBSERVÁVEIS ...................................... 18

1.1.3 A SOLUÇÃO DE BERKELEY ........................................................................... 20

1.2 A NATUREZA DO MOVIMENTO (§§ 43-66) ....................................................... 23

1.3 A CAUSA DA COMUNICAÇÃO DO MOVIMENTO (§§ 67-72) ............................ 25

2 A INTERPRETAÇÃO INSTRUMENTALISTA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA DE BERKELEY ............................................................................................................... 27

2.1 POPPER E O INSTRUMENTALISMO EM BERKELEY ...................................... 28

2.2 NEWTON-SMITH E O INSTRUMENTALISMO EM BERKELEY ......................... 31

3 A EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA NO DE MOTU ........................................................ 37

3.1 A EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA SEGUNDO NEWTON-SMITH ............................. 37

3.2 EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA SEGUNDO BERKELEY .......................................... 39

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 45 REFERÊNCIAS..........................................................................................................47

6

INTRODUÇÃO

Ernest Nagel, num artigo intitulado Ciência: Natureza e Objetivo, faz a

seguinte afirmação: “[...] a Ciência busca tornar inteligível o mundo; e sempre que o

alcança, em alguma área de investigação, satisfaz o anseio de saber e compreender

que é, talvez, o impulso mais poderoso a levar o homem a empenhar-se em estudos

metódicos” (NAGEL, in MORGENBESSER, 1971, p. 15). O mundo moderno foi

moldado também sob a influência da ciência; tido em alta consideração, o

conhecimento científico é o resultado de determinada prática, normalmente restrita a

um determinado grupo de pessoas chamados de cientistas, e essa prática se

encontra consolidada para uma grande quantidade de pessoas, sejam pessoas

instruídas ou não, acarretando a visão de que a ciência é o próprio paradigma da

racionalidade. Apesar dessa ampla aceitação, fez e continua fazendo parte da

Filosofia questionar esse “sucesso”. Assim, no âmbito filosófico, a Filosofia da

Ciência tem se ocupado com questões relativas ao conhecimento científico;

questões sobre a formação de idéias científicas, os problemas abordados pela

ciência, a explicação científica, leis, teorias, experimentos, observações, método

científico, todos estes itens, entre outros ainda, são abordados pela Filosofia da

Ciência.

Embora como disciplina filosófica específica (como no caso da Ética, da

Política, da Teoria do Conhecimento, por exemplo) a Filosofia da Ciência seja

relativamente recente, a preocupação com o conhecimento humano esteve presente

desde o início da Filosofia (cf. DÍEZ E MOULINES, 1999). Desde os antigos gregos

coube à Filosofia tentar explicar a natureza do conhecimento, da razão, das crenças

justificadas e injustificadas. Segundo Larry Laudan, “se é legítimo dizer que a ciência

e a filosofia modernas encontram suas raízes na Antiguidade, não é de surpreender

que a Grécia também tenha produzido as primeiras teorias coerentes sobre o

método científico” (LAUDAN, 2000, p. 26). Entretanto, reconhece o próprio Laudan,

foi somente a partir do século XVI que “ [...] tentou-se seriamente adotar uma atitude

mais consistente em relação às ciências naturais” (LAUDAN, 2000, p. 34).

De importância para o presente ensaio monográfico são justamente os

desdobramentos dessa “atitude mais consistente”, que culminaram na obra

monumental de Isaac Newton (1642-1727), Philosophiae naturalis principia

7

mathematica (Princípios naturais da filosofia natural). Nesse trabalho de 1687,

Newton havia reunido as principais teorias científicas até então existentes. Pessoa

Jr., comentando sobre a obra de Newton, afirma:

O trabalho de Isaac Newton (1642-1727) pode ser visto, por um lado, como a culminação da tradição de pesquisa da filosofia mecânica, ao enunciar suas três leis da mecânica (princípio de inércia, definição de força e princípio de ação e reação) (PESSOA JR, 2008, p.21).

A obra de Newton1 foi recebida com entusiasmo por uma ampla maioria de

seus comtemporâneos2. O grande sucesso da mecânica newtoniana3 se devia ao

fato de que ela propiciava uma compreensão acerca de muitos fenômenos naturais;

ela se baseava nos conceitos de espaço, tempo, velocidade, aceleração, peso,

massa, força, etc4. A mecânica newtoniana se consolidou em um curto espaço de

tempo, e passou a ser o modelo de conhecimento a ser imitado pelos demais

saberes, isto é, tornou-se um padrão a ser seguido por todos aqueles que visavam

alcançar algum tipo de conhecimento verdadeiro; isso acarretou o prestígio quase

absoluto de Newton.

Entretanto, em que pese esse sucesso e essa influência, isso não impediu

que surgissem críticas contra alguns aspectos da concepção de filosofia natural

proposta por Newton e seus seguidores (filosofia natural era o nome dado ao que

hoje chamamos de ciências naturais; naquele período não havia uma separação

nítida entre filosofia e ciências naturais); neste ensaio monográfico pretende-se

explorar uma dessas críticas, surgidas no seio da filosofia empirista britânica: trata-

se das críticas de George Berkeley.5

_____________ 1 Não é propósito desse trabalho apresentar e avaliar a obra de Newton, seus antecedentes ou seus desdobramentos, a não ser no sentido em que tenha estreita relação com o objetivo do ensaio. Para uma apreciação abrangente do trabalho de Newton, sugerimos as obras de Assis (1998) e Cohen, I.B.; Westfall, R.S. (orgs.) Newton: textos, antecedentes, comentários. Rio de Janeiro: Contraponto/Eduerj, 2002.

2 Para uma apreciação do significado da obra newtoniana, cf. o artigo de Alexandre Koyre intitulado O siginificado da síntese newtoniana, in Cohen e Westfall, 2002, 84-100.

3 “O ramo do conhecimento que trata do equilíbrio e do movimento dos corpos é chamado mecânica” (ASSIS, 1998, p.3).

4 Para a compreensão do significado desses termos no âmbito da mecânica newtoniana, cf. Mecânica Newtoniana, in Assis, 1998, p. 3-20.

5 Sobre esse episódio, Koyre faz a seguinte observação: “O ataque de Berkeley, conquanto certamente não afetasse Newton tanto quanto julgaram alguns de seus historiadores, parece, entretanto, ter sido o motivo, ou pelo menos um dos motivos [...] que induziu Newton a acrescentar

8

George Berkeley (1685-1753), bispo de Cloyne, nasceu em Kilkenny, Irlanda

do Sul e seu nascimento coincide com o período em que as idéias propostas por

Newton estavam se estabelecendo. De acordo com Downing, ele “foi um dos

grandes filósofos do início do período moderno. Ele foi um brilhante crítico de seus

predecessores, particularmente Descartes, Malebranche e Locke. Ele era um

metafísico talentoso e famoso por defender o idealismo, isto é, o ponto de vista que

a realidade consiste exclusivamente de mentes e suas idéias” (DOWNING, 2004).

Ao lado de John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), ele se coloca como

um dos três principais nomes do empirismo clássico. Para a tradição empirista, a

origem do conhecimento estava circunscrita ao âmbito da experiência sensível.

“Concorda-se, em geral, que George Berkeley foi um filósofo empirista, ou seja, um

filosófo para quem a experiência forma a base de todo o conhecimento humano”

(BERMAN, 2000, p. 9). Segundo Downing (2004), o trabalho de Berkeley mais lido e

estudado é intitulado Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano; ele foi

escrito em 1710 e apresenta as bases empiristas da filosofia berkeleiana.

A filosofia de Berkeley, como apresentada no Tratado sobre os Princípios do

Conhecimento Humano (doravante Princípios), é normalmente entendida a partir de

seu princípio geral: “Ser é ser percebido” (cf. Princípios, §3); isso significa que existir

é ser percebido ou percebível e daquilo que, sob quaisquer circunstância, não se

pode perceber, não poderá afirmar-se-lhe a existência. Tudo aquilo que é percebido

Berkeley chama de idéias, e estas idéias são dependentes de uma mente que as

percebe. Além disso, nessa obra ele expõe sua tese de que a matéria não existe.

Por isso sua posição ser mais conhecida como imaterialismo. Ao negar a existência

da matéria, o objetivo de Berkeley não é negar a existência física dos objetos, mas

ressaltar que são dependentes de uma mente ativa que os percebe: “De tudo isto

se segue que só há uma substância, o espírito, o percipiente” ( Princípios, §7). De

acordo com Russell, Berkeley teria sido o primeiro filósofo a negar a existência

independente de objetos à parte de uma mente percipiente, além do fato de que “[...]

empreende a demonstração de que não há matéria, e de que o mundo consta

exclusivamente dos espíritos e das suas idéias” (RUSSELL, 1980, p. 36). A filosofia

proposta por Berkeley foi alvo de muitas críticas, oriundas tanto de filósofos

na segunda edição de seus Princípios o famoso Scholium Geral [...]” (KOYRE, 1979, p. 209-210).

9

contemporâneos seus bem como de pensadores que viveram em períodos

posteriores.6

Uma das preocupações de Berkeley ao redigir o Princípios é com a ciência,

como testifica o subtítulo dessa obra: “As causas do erro e das dificuldades nas

ciências e os fundamentos do ceticismo, do ateísmo e da irreligião”; contudo, essa

não foi a única obra em que ele apresentou tal preocupação. Em 1720, ele escreveu

um trabalho não muito extenso em que trata do movimento; a obra foi chamada De

Motu (Sobre o movimento). O subtítulo do De Motu apresenta as três partes em que

a obra está dividida: “Sobre o movimento ou sobre o princípio, a natureza e a causa

da comunicação dos movimentos”.7

Conforme já foi mencionado acima, a mecânica newtoniana tornara-se o

padrão do conhecimento, padrão este que todos os demais saberes deveriam

alcançar. Isso se comprova pela repercussão e desdobramento cujos reflexos foram

sentidos em outras áreas do conhecimento humano, não somente no âmbito da

filosofia natural. Berkeley era um apreciador da obra de Newton e demonstrou, em

algumas passagens de seus escritos, essa admiração (cf. Princípios, 110); no

entanto, ele não a interpretava da mesma maneira que muitos seguidores de

Newton nem aceitava todas as conclusões anunciadas pela mecânica newtoniana.

Por esse motivo, no De Motu, Berkeley se propôs, a partir de uma reflexão crítica

sobre a mecânica newtoniana e sua linguagem, proporcionar uma interpretação

alternativa a esse modelo, e dessa forma, as críticas e objeções levantadas por

Berkeley, podem, pelas suas características, ser inseridas numa discussão bastante

atual e que tem mobilizado filósofos da ciência em todo o mundo: trata-se do debate

realismo/anti-realismo.

Como observa Bueno, "O debate entre interpretações realistas e anti-

realistas do conhecimento possui uma longa e, muito provavelmente, interminável

_____________ 6 Para uma apreciação das críticas dirigidas à Berkeley, cf. Charles, S. Berkeley no país das Luzes: ceticismo e solipsismo no século XVIII. Dois Pontos, Curitiba, v. 1, n. 2, p. 11-33, jan-jun 2005.

7 O De Motu é um texto que pode ser explorado para mais de uma finalidade em Filosofia da Ciência; de acordo com Silva (2006), ao menos sete possibilidades de leitura e interpretação podem ser encontradas no De Motu: (i) comentário sobre a ciência de sua época; (ii) qual o papel da religião na concepção de ciência adotada por Berkeley; (iii) a relação do De Motu com o Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano; (iv) as inter-relações entre John Locke e Berkeley; (v) Berkeley e sua relação com a matemática; (vi) a relação do De Motu com as outras obras de Berkeley e, finalmente, (vii) discussões acerca do estatuto cognitivo da ciência.

10

história, cujos primórdios se confundem com a própria emergência de uma reflexão

filosófica sistemática" (BUENO, 1999, p. 1). Não que a discussão estivesse presente

à época de Berkeley nos contornos que possui atualmente; mas o tratamento dado

por Berkeley aos problemas surgidos no âmbito da mecânica newtoniana, com

respeito ao estatuto cognitivo da ciência, é bastante semelhante à forma como os

anti-realistas se posicionam frente aos realistas quando têm em vista essa

discussão.

Quando se faz referência ao realismo, em Filosofia, trata-se de uma alusão,

entre outras coisas, a um determinado posicionamento acerca da existência de

determinadas entidades. Já o anti-realismo, por sua vez, entre outras coisas,

questiona a possibilidade de existência dessas entidades. Ambas as posições

possuem subdivisões, que são defendidas de acordo com o tipo de tese negada

pela posição contrária. No âmbito da Filosofia da Ciência, o realismo científico é a

ideia de que a ciência assegura progressivamente teorias verdadeiras ou

aproximadamente verdadeiras8 sobre o mundo e essa garantia seria justificável

epistemologicamente (racionalmente). Além disso, as entidades não-observadas que

fazem parte de uma teoria científica existem realmente. Apresentar uma definição

precisa para o realismo científico (doravante realismo) não é uma tarefa fácil; mas é

possível enunciar pelo menos três teses que fazem parte de uma compreensão

realista a respeito da ciência. Adota-se a caracterização sugerida por Plastino;

segundo essa caracterização, as teses realistas seriam as seguintes:

1. há um mundo exterior definido (constituído de entidades com propriedades e relações) que em grande parte é independente de nosso conhecimento e experiência; 2. a ciência busca alcançar informação substancial e correta dos aspectos do mundo, ou seja, apresentar teorias verdadeiras que representem os elementos e a estrutura do mundo; e 3. é possível o acesso epistêmico ao mundo e se espera que a ciência, em seu progressivo desenvolvimento, permita aperfeiçoar nossa capacidade de obter conhecimento (pelo menos aproximado) do

_____________ 8 Normalmente, no realismo científico, a verdade é entendida a partir da teoria correspondencial da verdade (cf. Newton-Smith, 1981, p. 29). Nessa teoria, a verdade é definida como “a correspondência de uma proposição com o fato” (HAACK, 2002, p.133), ou seja, uma afirmação acerca de algo feita por uma teoria é verdadeira se corresponde a um fato do mundo ou a um estado de coisas. Discussões acerca da distinção entre definição e critério de verdade bem como sobre as teorias da verdade extrapolam os objetivos do ensaio; para um tratamento mais pormenorizado dessas discussões, sugere-se Haack, 2002, capítulo 7.

11

mundo (PLASTINO, 1995, p. 11).

Quando afirma-se que o mundo possui uma existência à parte de nossa

experiência, isso implica uma questão metafísica9; entretanto, em Filosofia da

Ciência, a tese 1 assume um caráter diferente, pois o que está em discussão é se

aqueles termos presentes num determinado discurso científico podem ser reduzidos

a entidades realmente existentes, independentemente da teoria. Nesse sentido, a

tese 1 é uma tese ontológica (cf. NEWTON-SMITH, 1981, p. 29). Para a maioria dos

realistas, os termos constituintes das teorias científicas dizem respeito a entidades

reais existentes no mundo. E a conseqüência desse compromisso por parte do

realista é que os termos referentes a inobserváveis, dentro de sua concepção,

passam a denotar entidades que supostamente existem no mundo.

A tese 2 é uma tese semântica, e faz referência acerca da natureza da

linguagem, sobre como os termos que são utilizados em uma teoria científica se

referem ao mundo; diz respeito ao significado cognitivo das teorias científicas.

Além da questão ontológica e da questão semântica, evidencia-se a partir

da tese 3 a questão epistemológica; de acordo com o realista, temos razões

objetivas ou garantias justificadas para acreditarmos na verdade das teorias

científicas.

Embora foram mencionadas as 3 teses que estariam presentes numa

caracterização do realismo, é importante salientar que um defensor de uma

interpretação realista da ciência pode se comportar de forma a não abarcar em sua

cosmovisão uma ou duas das três teses descritas acima, acarretando dessa forma

um realismo parcial (cf. SILVA, 2006, p. 105).

Assim como o realismo, uma definição precisa de anti-realismo possui

dificuldades; Silva faz a seguinte afirmação acerca de uma caracterização do anti-

realismo:

Filósofos anti-realistas, naturalmente, irão negar uma ou mais das teses acima; porém eles não costumam primar, como amiúde fazem os realistas, pela aceitação uniforme de um conjunto de teses; pois é comum, na literatura anti-realista, detectar-mos a aceitação de (i)

_____________ 9 “Metafísica pode ser caracterizada como o estudo filosófico da natureza do ser, ou da realidade, e das categorias últimas, ou tipos de coisas que são reais” (MORELAND e CRAIG, 2005, p. 222).

12

[tese 1] e simultaneamente a negação de (iii) [tese 2] (SILVA, 2005, p. 32).

Como já foi mencionado acima, dada a maneira como Berkeley procura se

posicionar diante do sucesso da ciência de seu tempo (mecânica newtoniana) e para

os propósitos deste ensaio, a partir do texto do De Motu, foi dito que seria possível

inserí-lo no interior do debate realismo/anti-realismo; isso porque tal inserção já foi

realizada e ela é encontrada na literatura contemporânea, entre outras discussões,

àquelas referentes ao problema da explicação científica. Nesse sentido, de

importância para os objetivos deste trabalho, é a relação do De Motu com

discussões envolvendo a problemática da explicação científica. Mas o que está em

discussão quando se fala em explicação científica? Plastino apresenta assim o

problema:

O que é uma explicação científica? Que tipo de compreensão do mundo ela nos traz? Podemos dizer, em muitos casos, que uma explicação consiste em uma resposta à questão “por quê?”. No caso da explicação científica, essa resposta baseia-se no conhecimento científico disponível. Queremos descrever adequadamente fatos ou regularidades da natureza (por exemplo, o movimento das marés), mas também queremos saber por que ocorrem e esperamos da ciência uma resposta satisfatória (PLASTINO, 2004).

Num sentido amplo e comum, uma explicação é uma resposta às perguntas

do tipo “por quê?”, “o que?” ou “como?” e nessa perspectiva, praticamente todos os

seres humanos normais dispõem de uma noção do que significa “dar uma

explicação”, pois em diversas ocasiões do cotidiano são levados a explicar certas

ocorrências (p. ex: Por que aquele jovem foi preso? O que aconteceu com seu

carro? Como os ladrões fugiram da cadeia?). Em Filosofia da Ciência, entretanto,

explicação tem um sentido específico: “[...] é, basicamente, uma resposta à

pergunta sobre como certo acontecimento se deu ou sobre o porquê de certo

estado de coisas” (HEMPEL, in MORGENBESSER, 1971, p. 160). Explicar tem o

sentido de elucidar o motivo de determinada ocorrência, dando um retrato

suficientemente claro dos acontecimentos que presenciamos no mundo; trata-se de

elucidar a causa de determinada ocorrência e a mecânica newtoniana

aparentemente propiciava uma explicação para diversas ocorrências, ou seja, ela

13

propunha demonstrar as causas dos fenômenos.

Mas a estrutura da mecânica newtoniana continha um discurso permeado

por termos que não possuíam nenhum referencial na realidade ou natureza (termos

teóricos ou inobserváveis, como são chamados atualmente); além disso, tais termos

eram entendidos como sendo a causa dos fenômenos: força, gravidade, atração,

entre outros termos. Dessa forma, muitos seguidores de Newton interpretavam-na

como reveladora dos processos causais do mundo, isto é, ela descreveria as causas

dos diversos fenômenos; em decorrência disso, surge a questão de saber se ela

poderia ser considerada verdadeira, reveladora da estrutura do mundo e das causas

dos fenômenos. Assim, evidencia-se o problema da explicação científica, pois que

tipo de explicação oferece determinada teoria: deve ser tomada como verdadeira,

ser caracterizada como uma explicação causal, revelando a estrutura do mundo, ou

seja, ser assumida nos moldes realistas? Ou, ao invés disso, deve-se assumir uma

determinada teoria da maneira como faz um anti-realista, sem se comprometer com

uma ou mais das teses realistas? Diante desse quadro Berkeley buscou responder a

essas perguntas e o fez de forma anti-realista.

Para uma grande parte dos comentadores de Berkeley, quando se referem à

sua concepção anti-realista a respeito da ciência, costumam caracterizá-lo como um

nominalista (ou ficcionalista) quanto aos termos constituintes de uma teoria, e como

um instrumentalista, quanto às próprias teorias (cf. Silva, 2008). De acordo com essa

forma de interpretação, os termos empregados numa determinada teoria científica

não denotariam nenhuma entidade e deveriam ser considerados como ficções

(Berkeley os denominava hipóteses matemáticas)10; quanto a teoria, sua finalidade

seria apresentar predições corretas acerca de determinados fenômenos, não sendo

seu objetivo proporcionar uma compreensão acerca das possíveis causas dos vários

fenômenos presentes na natureza.

Uma consequência desse modelo (para alguns comentadores) seria que o

mesmo não ofereceria uma interpretação atraente a respeito do sucesso da ciência,

pois não estaria no escopo de um instrumentalista como Berkeley a preocupação

_____________ 10

É conveniente antecipar uma distinção feita por Berkeley e que tornar-se-á mais evidente nas próximas seções: no De Motu, ele chama os termos teóricos de “qualidades ocultas”, quando tais termos eram entendidos como a causa do movimento (conforme o modelo realista); entretanto, depois de mostrar como deveriam ser entendidos tais termos, ele os designa por hipóteses matemáticas com o mesmo sentido de ficções.

14

com a verdade acerca da descrição do mundo proporcionada por uma teoria; essa

última consequência é defendida por W. H. Newton-Smith. Segundo ele, o objetivo

da ciência é fornecer explicações e estas somente a partir do modelo realista de

explicação causal. Diante desse quadro, o objetivo deste trabalho é evidenciar que

Berkeley, a partir do De Motu, mesmo assumindo o instrumentalismo acerca da

mecânica newtoniana, não deixou de revelar uma preocupação em propor um

modelo alternativo de explicação científica, que levasse em conta o sucesso da

mecânica newtoniana.

Na sequência do trabalho, será apresentada uma reconstrução das

principais ideias envolvidas no De Motu (Capítulo 1); logo após, mostrar-se-á a

interpretação instrumentalista da filosofia da ciência de Berkeley, a partir de Karl

Popper e Newton-Smith (Capítulo 2). Em seguida, analisar-se-á a interpretação de

Newton-Smith, a qual pretende mostrar que a filosofia da ciência de Berkeley não

legitimaria o problema da explicação científica; entretanto, mostrar-se-á que

Berkeley de fato se preocupou com o problema da explicação científica (Capítulo 3).

15

1 AS TRÊS PARTES DO DE MOTU

O De Motu, obra escrita por Berkeley em 1720, está dividida em três partes:

o princípio, a natureza e a causa da comunicação dos movimentos. De acordo com

Downing (2005, p. 237), o De Motu chegou a ser inscrito para participar de um

concurso oferecido pela Academia de Ciências de Paris, onde trabalhos que

discorressem sobre o movimento seriam julgados e, se vencedores, poderiam ser

agraciados com uma premiação; não se sabe se Berkeley venceu o concurso. Trata-

se de um texto onde Berkeley procura evidenciar sua compreensão anti-realista

acerca da mecânica newtoniana. Conforme mencionado acima, Berkeley foi um

grande admirador de Newton, e não estava disposto a rejeitar a mecânica

newtoniana. Por isso o objetivo de Berkeley no De Motu é, a partir de uma reflexão

crítica sobre a mecânica e sua linguagem, proporcionar uma interpretação

alternativa da mesma que não significasse um compromisso com a concepção

explicativista causal.

1.1 O PRINCÍPIO DO MOVIMENTO (§§ 1-42)

A primeira parte do De Motu aborda o princípio do movimento. Antes de

adentrar-se nas questões suscitadas por Berkeley, convém esclarecer o que este

filósofo entende por princípio; essa definição é encontrada já no final da primeira

parte, mas tendo em vista o objetivo e o encaminhamento dado por Berkeley quando

da sua abordagem acerca das discussões sobre a mecânica no De Motu, torna-se

importante compreender seu significado logo no início dessa apresentação. Para

Berkeley, princípio deve ser entendido como causa; dessa forma, estaria sendo

discutida qual seria a causa do movimento. Veja-se como ele se expressa a esse

respeito:

Seria muito importante considerar o que é propriamente um princípio, e como esse termo dever ser compreendido pelos filósofos. A causa verdadeira, eficiente e conservadora de todas as coisas é denominada adequadamente sua fonte e princípio (De Motu, 36).

16

Logo no início do texto Berkeley já delineia a discussão e chama atenção

para o problema ao qual pretende dedicar as páginas seguintes: “Na busca da

verdade, nada é tão importante quanto o cuidado de não sermos enganados por

termos que não compreendemos corretamente” (De Motu, 1). Logo depois de

chamar a atenção para os termos, restringe essa questão às considerações acerca

do movimento e salienta que o debate levará em conta principalmente as obras “[...]

dos pensadores mais recentes e sensatos de nossa época [...] (De Motu, 2). A partir

do §3 Berkeley passa a tratar especificamente dos termos utilizados na mecânica.

De forma a proporcionar uma melhor compreensão dessa primeira parte do texto,

abordar-se-á esta seção em três partes: num primeiro momento, tratar-se-á da

suposição de que a causa do movimento esteja nos inobserváveis (o que Berkeley

chama de “qualidades ocultas”); num segundo momento, será suposto que a causa

esteja nos observáveis, e, por fim, apresentar-se-á a interpretação do próprio

Berkeley no que diz respeito a busca pela causa do movimento.11

1.1.1 PRINCÍPIO DO MOVIMENTO NOS INOBSERVÁVEIS

Berkeley procura deixar claro que os termos empregados pela linguagem da

mecânica não possuíam um significado estabelecido, quando tomados isoladamente

(abstraídos); os termos atração, esforço ou conatus, frisa Berkeley, “[...] não têm

significado claro e distinto quando separados de toda afecção da mente e do

movimento do corpo” (De motu, 3). O mesmo ocorre com os termos gravidade e

força; de acordo com Berkeley, tudo aquilo a que temos acesso são informações que

chegam pelos sentidos, e dessa forma o que conseguimos perceber são os efeitos

sensíveis. Quando suportamos um corpo pesado ou quando sentimos um

movimento corporal, quando observamos um corpo em queda livre ou um corpo em

movimento, estamos diante de efeitos sensíveis; o que acontece, diz Berkeley, é que

inferimos pela razão que há uma causa ou princípio subjacente a tais fenômenos e

_____________ 11

Esta distinção é proposta por Silva: “[...] Berkeley rejeitou as explicações que remetiam a inobserváveis; em segundo lugar rejeitou também explicações por observáveis, seja por deficiências epistemológicas (para o caso dos corpos), seja por preferências axiológicas (para o caso do espírito); por fim alterou a discussão, insistindo na concepção metodológica de que uma investigação dos princípios do movimento não deveria ser conduzida de modo a se investigar os princípios da existência, e sim do nosso conhecimento” (SILVA, 2008, p. 5).

17

que dá-se o nome de gravidade e força. Contudo, não temos acesso a nada além do

efeito sensível, portanto, os termos utilizados para representar a causa do

movimento dizem respeito a qualidades desconhecidas ou ocultas. Assim, conclui

Berkeley: “Obviamente, então, é inútil estabelecer a gravidade ou a força como

princípio do movimento, pois como esse princípio poderia ser mais claramente

conhecido, se é caracterizado como uma qualidade oculta? O que é oculto nada

explica” (De Motu, 6).12 Tudo que se faz é nomear algo desconhecido, sem nenhum

significado (quando tomado isoladamente) ou sem relação com algum

correspondente no mundo.

Berkeley chama atenção ainda para o fato de que quando se utiliza os

termos força e gravidade abstraídos (separados) dos efeitos sensíveis, como que

significando certas naturezas realmente existentes, “[...] extraem-se dessa fonte

muitos absurdos [...] (De Motu, 9). Veja-se as considerações de Berkeley:

Além disso, força, gravidade e os termos dessa espécie são utilizados amiúde de forma concreta (e, desse modo, são utilizados corretamente) para conotar o corpo em movimento, o esforço de resistência etc. Mas quando eles são empregados pelos filósofos para exprimir certas natureza talhadas e abstraídas de todas essas coisas, naturezas que não são objetos dos sentidos, elas não podem ser compreendidas por qualquer poder do intelecto e nem concebidos pelo imaginação e, assim, originam o equívoco e a perplexidade (De Motu, 6).

De acordo com Berkeley, não seria possível considerar os termos gerais

empregados pelos filósofos como que significando algo diferente dos efeitos

sensíveis. Tudo que percebemos ao atribuírmos a causa do movimento à força ou à

gravidade é um efeito sensível, “[...] pois não somos capazes de separar a ação de

um corpo de seu movimento (De Motu, 11), isto é, o que vemos ou sentimos é um

corpo em movimento.13 Assim, para explicar àquilo que se quer saber, a causa do

movimento, utiliza-se o que se quer explicar, o próprio movimento. Do que foi

exposto acima, podemos concluir que para Berkeley a causa do movimento não está

_____________ 12

A palavra “explica” aqui é tomada num sentido realista. 13

Para alguns comentadores, Berkeley visa especificamente Leibniz (Gottfried Wilhelm von Leibniz 1646-1716) ao tecer as críticas presentes nos §§8-16 (entre outros). Para uma apreciação dessa posição, cf. Peterschmitt, Luc. La critique du realisme leibnizien dans le De Motu de Berkeley. Astérion, Lyon, n.1, juin-2003. Disponível em: <http://asterion.revues.org>

18

nos inobserváveis.

1.1.2 PRINCÍPIO DO MOVIMENTO NOS OBSERVÁVEIS

Uma vez descartada a possibilidade de encontrar nas qualidades ocultas (os

inobserváveis) o princípio do movimento (ou causa), Berkeley passa a conjecturar

sobre a possiblidade de encontrá-lo nos observáveis. Assim se manifesta Berkeley

acerca dessa suposição:

Para lançar luz na natureza disso, é inútil mencionar coisas que não são nem evidentes aos sentidos nem inteligíveis à razão. Vejamos, então, o que o sentido e a experiência nos dizem, bem como a razão que neles se sustenta. Existem duas classes supremas de coisas, corpo e alma (De Motu, 21).

Ele apresenta essas “duas classes supremas de coisas” como sendo

totalmente distintas e considera tanto o corpo quanto a alma como observáveis (cf.

também De Motu 25). Parece inegável o acento cartesiano14 na seguinte passagem:

Uma coisa ativa e pensante é dada a nós de tal forma que a experimentamos como o princípio do movimento. A isso chamamos alma, mente e espírito. A coisa extensa também é dada a nós, como inerte, impenetrável, móvel, totalmente diferente da primeira e constituindo um novo gênero (De Motu, 30).

Na consideração sobre o corpo, deve-se levar em conta que aquilo que

conhecemos acerca de um corpo é sua “impenetrabilidade, a extensão e a figura” e

nessas qualidades sensíveis não se encontra nada que pudesse produzir algum tipo

de movimento (cf. De Motu, 29). Um corpo não altera seu estado de movimento ou

de repouso, a não ser que seja impelido do exterior: sua marca é a passividade. O

que é passivo não pode ser um princípio do movimento. Além disso, Berkeley critica

_____________ 14

Downing interpreta esse fato devido a defesa por parte de Rene Descartes (1596-1650) da ausência de atividade nos corpos, e por isso Berkeley acentuar esse cartesianismo, de forma a fortalecer sua interpretação; cf. Dowing, 2005, p. 241.

19

aqueles que atribuem um princípio vital aos corpos, princípio este que seria capaz

de gerar o movimento; a resposta de Berkeley é exibida da seguinte forma: “[..] o

que significa ser dotado de um princípio vital exceto viver? E o que é viver, além de

se mover, parar e mudar seu próprio estado?” (De Motu, 33). Portanto, de acordo

com Berkeley, o princípio do movimento não está no corpo, pois este não apresenta

nenhuma característica de atividade, sendo totalmente passivo.

Resta discutir a atribuição de princípio do movimento à alma; ao tratar da

alma, que Berkeley chama também de mente ou espírito (cf. De Motu, 30) ele

reconhece que é possível chamá-la de princípio do movimento, pois ela, ao

contrário do corpo, é ativa, e isso sabemos por “experiência própria”. A alma pode,

ainda, ser considerada como portadora de um princípio vital, no que novamente se

difere do corpo, caracterizado por uma completa ausência de vitalidade. De acordo

com Berkeley,

[...] nossa mente poderia provocar e suspender o movimento de nossos membros, qualquer que fosse a explicação definitiva desse fato. É inegável que os corpos são movidos pela vontade da mente e, portanto, a mente pode ser chamada, de modo satisfatoriamente correto, um princípio do movimento; com efeito, um princípio particular e secundário tal que depende, por sua vez, de um princípio primeiro e universal (De motu, 25).

Entretanto, a alma é um princípio secundário, dependente de um outro

princípio, o qual, na concepção de Berkeley, é Deus; seria ele a verdadeira causa

ou princípio do movimento15. Ao postular Deus como aquele que é a causa do

movimento, Berkeley o coloca também como a causa do movimento das almas dos

homens; ele se apóia em uma série de filósofos que anteriormente também

sustentaram que Deus seria a causa do movimento, entre os quais Anaxágoras,

Platão, Aristóteles, Descartes e Newton (cf. De Motu, 30 e 32).

A partir do que foi afirmado acima, o assunto poderia estar encerrado. Se

assim ocorresse, Berkeley teria muito pouco a contribuir para uma interpretação do

_____________ 15

Parece haver uma contradição, pois já ficara estabelecido que a causa do movimento não poderia estar nos inobserváveis, sendo este o caso de Deus; porém, cabe salientar que Berkeley proporá uma demarcação entre a Metafísica (ou Teologia) e a Mecânica (ou Física), como ver-se-á adiante: na primeira é possível estabelecer causas eficientes (que no caso seria Deus), enquanto que na segunda as causas devem ser buscadas no âmbito dos corpos (cf. De Motu 34).

20

sucesso da mecânica. Mas Berkeley tem mais a dizer a respeito dessa discussão.

Segundo Berkeley, o domínio da filosofia natural (física) está limitada aos

experimentos e também pela mecânica; incluir nesse domínio discussões acerca

“da alma, da mente ou do princípio vital” seria entrar no domínio da “filosofia

primeira ou metafísica ou da teologia”. Para Berkeley estes dois domínios são

autonômos, tendo cada um objetos e princípios que lhes dizem respeito. Berkeley

propõe uma demarcação entre esses dois domínios, que seja estabelecido um

limite entre ambas:

Mas especular acerca do bom e grande Deus - criador e preservador de todas as coisas - e mostrar como todas as coisas dependem do ser supremo e verdadeiro, embora seja a parte mais excelente do conhecimento humano, está, entretanto, antes no domínio da filosofia primeira ou metafísica e da teologia do que no domínio da filosofia natural, atualmente quase inteiramente confinada aos experimentos e à mecânica (De Motu, 34).

Dessa maneira, a filosofia natural deve confinar-se aos experimentos e aos

corpos, enquanto à filosofia primeira ou teologia caberia expressar concepções

acerca da alma (ou espírito), ou seja, expressar-se acerca do princípio (causa) do

movimento (cf. também De Motu, 42). Do que foi exposto acima, é possível concluir

que o princípio do movimento ou causa não está na alma ou mente.

Logo, à guisa de conclusão, podemos enunciar que o princípio do

movimento não está nos inobserváveis e nem nos observáveis.

1.1.3 A SOLUÇÃO DE BERKELEY

De acordo com a exposição acima, Berkeley mostrou que a busca do

princípio ou causa do movimento não deve fazer parte dos objetivos da filosofia

natural (mais precisamente da mecânica):

No entanto, seria mais conveniente seguir o uso consagrado e distinguir, assim, as ciências enquanto confinadas cada uma delas aos seus próprios limites; portanto, o filósofo natural deve interessar-se pelos experimentos, leis do movimento, princípios da mecânica e

21

raciocínios dali deduzidos (De Motu, 42).

Mas como compreender então o sucesso da mecânica? Se ela não propicia

uma descrição verdadeira do mundo, o que ela faz então? Para jogar luz nessa

discussão, Downing nos lembra que um dos objetivos de Berkeley no De Motu é

advogar a favor de uma interpretação anti-realista da mecânica newtoniana (cf.

DOWNING, 2005, p. 247). Para Berkeley, o fato da mecânica não apresentar uma

descrição verdadeira do mundo não seria motivo para seu abandono, já que não

está no escopo da mecânica tal finalidade.

De acordo com Berkeley, os termos utilizados no interior do discurso

mecânico devem ser compreendidos como hipóteses matemáticas, e não como que

existindo realmente, possuidores de uma natureza abstraída das coisas sensíveis.

Veja-se algumas passagens que evidenciam essa interpretação:

Força, gravidade, atração e termos desse tipo são úteis para o raciocínio e o cálculo sobre o movimento e sobre os corpos em movimento, mas não para o entendimento da natureza simples do próprio movimento ou para enunciar tantas qualidades distintas. Com efeito, a atração não foi introduzida por Newton como uma qualidade física, verdadeira, mas apenas como uma hipótese matemática (De Motu, 17, grifos do autor).

Afirma-se que a ação e a reação estão nos corpos, e esse modo de expressão satisfaz os propósitos das demonstrações da mecânica; mas não devemos supor a partir disso que exista nos corpos algum poder real que é a causa ou o princípio do movimento. Pois estes termos devem ser compreendidos da mesma forma que o termo atração; e assim como a atração não é uma qualidade física, mas apenas uma hipótese matemática, o mesmo, e pela mesma razão, também deve ser compreendido acerca da ação e reação (De Motu, 28, grifo do autor).

Nessas passagens Berkeley enfatiza que a função dos termos teóricos ou

inobserváveis é serem utilizados como hipóteses matemáticas, as quais não passam

de ficções que, além de serem úteis para “abreviar a fala” (cf. De Motu, 7), auxiliam

no cálculo e nos raciocínos utilizados pelo físico para calcular a trajetória dos corpos,

bem como para predizer determinados fenômenos. Dessa forma, importa para

Berkeley que não se entenda a mecânica como descobridora de princípios que

determinariam as “causas eficientes das coisas”; ao contrário disso, ela visa oferecer

22

uma explicação (num sentido não-causal) a partir das leis gerais primárias do

movimento. Veja-se como Berkeley se pronuncia a esse respeito:

O entendimento imperfeito dessa situação tem levado alguns ao equívoco da rejeição dos princípios matemáticos da física, pois estes não determinariam as causas eficientes das coisas. Não obstante, não é função da física ou mecânica estabelecer causas eficientes, mas apenas as regras da impulsão ou da atração e, numa palavra, as leis do movimento, e a partir de leis estabelecidas fornecer uma explicação e não a causa eficente dos fenômenos particulares (De Motu, 35).

Berkeley chama a atenção para o fato de que, na física e na mecânica,

explicar um fenômeno é reduzí-lo a leis gerais; note-se que ele propõe uma

compreensão de explicação que Downing esclarece da seguinte maneira:

a posição de Berkeley [...] é que a ciência não almeja à explicação (a qual se refere a causas), mas no lugar disso a um certo tipo de entendimento da natureza (que ele se alegra em chamar de „explicação‟), semelhante ao tipo de entendimento da linguagem que adquirimos através do estudo da gramática (DOWNING, 2005, p. 252, grifo do autor, tradução nossa)16.

Assim, “pode-se, então, dizer que um fato é explicado mecanicamente

quando é reduzido àqueles princípios mais simples e universais e quando se

demonstra, por raciocínio adequado, que está de acordo e em conexão com eles”

(De Motu, 37). A mecânica não visa estabelecer a causa eficiente do movimento,

pois esse tipo de explicação (causal) remete à filosofia primeira; a explicação dos

fenômenos sensíveis deve se dar em termos mecânicos e, nesse sentido, Berkeley

mostrou que a explicação na mecânica consiste no estabelecimento de princípios a

partir das leis primárias do movimento. E essa é a maneira que, pode-se dizer, há

explicação na mecânica.17

_____________ 16

“Berkeley‟s position [...] is that science does not aim at explanation (which makes reference to causes) but rather at a certain sort of useful understanding of nature (which he is happy to call „explanation‟), akin to the sort of understanding of a language that we gain from studying its grammar”.

17 A questão da explicação científica no De Motu será novamente tratada e ampliada no capítulo 3.

23

1.2 A NATUREZA DO MOVIMENTO (§§ 43-66)

A segunda parte do De Motu trata da questão sobre a natureza do

movimento, ou mais propriamente, o que é o movimento? Novamente Berkeley

chama a atenção para o fato de que os mesmos problemas já tratados por ele na

primeira parte se fazem presentes nas discussões sobre a natureza do movimento;

por isso, Berkeley retoma brevemente dois pontos já esclarecidos anteriormente, a

saber, o fato de que o movimento sempre se apresenta a nós pelos sentidos e a

incapacidade de abstrair o movimento, quer dizer, ele nunca se apresenta separado

dos corpos ou de outras noções já estabelecidas . Veja-se o que Berkeley afirma:

O movimento nunca se apresenta aos sentidos separado da massa corpórea, do espaço e do tempo. Existem aqueles que desejam considerar o movimento como uma idéia simples e abstrata, separada de todas as outras coisas. Mas mesmo idéia sutil e sofisticada escapa ao intelecto perspicaz, como qualquer um pode descobrir pela meditação (De Motu, 43, grifo nosso).

A crítica de Berkeley se dirige especificamente àqueles que imaginam

existir a capacidade de abstrair “[...] coisas verdadeiramente inseparáveis”; para ele,

não é possível conceber o movimento como que existindo isoladamente, à parte de

toda percepção, percepção esta que se dá a partir dos sentidos e se refere a

corpos sensíveis: “Pois nada que não possa ser percebido pelos sentidos entra na

imaginação, uma vez a imaginação nada mais é que a faculdade que representa as

coisas sensíves, sejam existentes, sejam ao menos possíveis” (De Motu, 53).

Berkeley lembra ainda que não se deve confundir o movimento com a causa do

movimento. Conforme mencionado na seção anterior a causa verdadeira do

movimento é Deus, mas os estudos acerca das coisas incorpóreas (Deus, alma,

mente) dizem respeito à metafísica, enquanto que o estudo acerca das coisas

corpóreas se restringe à filosofia natural (física/mecânica). Como esta lida com os

efeitos sensíveis, e o movimento é um efeito sensível dos corpos, então discussões

acerca do movimento devem ser restritas à mecânica.

A ênfase dada por Berkeley em algumas passagens dessa segunda parte

recai na impossibilidade de se considerar o movimento separado de outras noções,

24

como por exemplo espaço, tempo, velocidade, lugar; ele acusa ainda alguns de

tentarem separar o próprio movimento, como se fosse possível formar ideias

distintas: “[...] eles [os filósofos] entendem velocidade, conatus, força e ímpeto como

várias coisas que diferem em essência, cada qual sendo apresentada ao intelecto

através de sua própria idéia abstrata, separada de todas as demais idéias” (De

motu, 44, grifo do autor). Para Berkeley, não há essa possibilidade, uma vez que

essas noções são interdependentes: “Porém, o movimento local não pode ser

pensado sem que se compreenda o significado de lugar (locus)” (De motu, 52, grifo

do autor) e “[...] o movimento sem o espaço não pode ser concebido” (De Motu, 55).

Além disso, Berkeley enfatiza outro aspecto do movimento: ele é sempre

relativo; de acordo com Berkeley o movimento é uma relação entre dois ou mais

corpos, não podendo ser concebido de outra forma. Segundo ele, sempre que

percebemos um movimento, ele é, primeiramente, o movimento de um corpo

sensível que segue para uma determinada direção, e esta direção que o corpo

possui deve ser levada em conta tendo como referência ou nosso próprio corpo ou

outro corpo qualquer; em decorrência disso, um corpo nunca podreria estar em

movimento absoluto ou puro, separado de qualquer corpo sensível, pois é sempre

necessário uma referência para que ele ocorra18. Isso era inaceitável para Berkeley,

pois “[...] a determinação ou direção é essencial ao movimento; mas ela consiste

numa relação. Portanto, é impossível que o movimento absoluto seja concebido”

(De Motu, 63). Assim, conclui Berkeley,

Do que foi afirmado está claro que as regras seguintes serão de grande auxílio para determinar a verdadeira natureza do movimento: (1) distinguir entre as hipóteses matemáticas e a natureza das coisas; (2) ser cauteloso com as abstrações; (3) considerar o movimento como algo sensível ou, pelo menos, imaginável e contentar-se com medidas relativas (De motu, 66)

Observe-se que Berkeley repete aqui algumas conclusões já estabelecidas

na primeira parte, quando discutiu sobre o princípio do movimento.

_____________ 18

De acordo com Assis, Berkeley, ao defender que o movimento é sempre relativo nas passagens 52 a 65 do De Motu, tem em vista o conceito de movimento absoluto postulado por Newton; para uma visão geral dessa crítica, cf. Assis, 1998, cap. 5.

25

1.3 A CAUSA DA COMUNICAÇÃO DO MOVIMENTO (§§ 67-72)

A terceira e última parte do De Motu apresenta uma discussão sobre a

comunicação dos movimentos; nessa parte, Berkeley enfatiza que os termos que

são utilizados pela mecânica não “possuem essência estável na natureza das

coisas”, e dessa forma, reafirma que as hipóteses matemáticas “dependem de quem

as define”. O caráter hipotético dos termos seria confirmado pelo fato de que,

independente da definição que se dê à hipótese matemática, ela poderia, de

maneira razoável, ser utilizada para explicar determinado fenômeno. Berkeley tem

em mente as diferentes definições de força utilizadas por Newton e Torricelli;

segundo ele,

[...] embora Newton e Torricelli pareçam discordar entre si, eles desenvolvem perspectivas consistentes, e o fato é suficientemente bem explicado por ambos, pois todas as forças atribuídas aos corpos são hipóteses matemáticas, tanto quanto o são as forças de atração nos planetas e no Sol (De Motu, 67).

Não haveria diferença se utilizássemos a definição de Newton ou a de

Torricelli, pois ambas explicam (no sentido entendido por Berkeley, conforme

esclarecido acima) determinado acontecimento baseadas no efeito sensível e em

determinadas noções anteriormente estabelecidas:

E, portanto, dá no mesmo dizer que o movimento passa do corpo que atinge para o atingido ou dizer que o movimento é produzido de novo no corpo atingido e destruído no corpo que atinge. Em ambos os casos, entende-se que um corpo perde movimento, que outro o adquire, e nada além disso (De Motu, 68).

De acordo com Berkeley, Deus poderia ser considerado como a causa da

comunicação do movimento. Contudo, continua ele, “[...] devemos procurar causas e

razões dos fenômenos entre os princípios mecânicos” (De Motu, 69). Dessa forma,

novamente ele enfatiza que no âmbito dos corpos sensíveis e dos fenômenos não

devemos postular causas (eficientes), pois a filosofia física (da qual a mecânica faz

parte) tem como tarefa reduzir os vários fenômenos a regras gerais, através de leis.

26

Essas leis, baseadas nos efeitos sensíveis, poderiam utilizar hipóteses matemáticas;

essas leis fariam a ligação entre “[...] o que precede como causa e o que se segue

como efeito” (De Motu, 71), em certo acontecimento envolvendo dois ou mais

objetos sensíveis. As hipóteses matemáticas são úteis para o cálculo, mas não

podem revelar a causa da comunicação dos movimentos:

Na física, o sentido e a experiência estendem-se apenas aos efeitos aparentes que eles controlam; na mecância, são admitidas as noções abstratas do matemático. Na filosofia primeira ou metafísica, estamos interessados nos objetos incorpóreos, nas causas, na verdade e na existência de objetos (De Motu, 71).

Como conclusão, Berkeley apresenta sua sugestão deixando clara a

necessidade de uma demarcação, evitando assim que haja uma contaminação

entre a filosofia primeira e a filosofia natural (cf. De Motu, 72).

27

2 A INTERPRETAÇÃO INSTRUMENTALISTA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA

DE BERKELEY

Em Filosofia da Ciência instrumentalismo diz respeito a uma determinada

posição anti-realista acerca das teorias científicas, defendendo que as mesmas não

proporcionam uma descrição verdadeira a respeito do mundo natural, mas são

ferramentas ou instrumentos úteis para realizar predições sobre fenômenos

empíricos e para outros fins práticos. Silva apresenta da seguinte forma o

instrumentalismo:

Sintetizado na divisa “salvar os fenômenos”, a filosofia instrumentalista nega que as teorias científicas forneçam conhecimento genuíno acerca do mundo, uma vez que tudo que elas oferecem é um cálculo que nos permite predizer os fenômenos futuros: as teorias são apenas bons instrumentos de predição; nesse contexto as teorias não revelam as causas subjacentes aos fenômenos e nem deveria ser seu propósito fazê-lo (SILVA, 2005, p. 32, grifo do autor).

De acordo com Popper, o instrumentalismo remonta ao período da

Revolução Científica do século XVI, onde estaria ligado aos nomes de Andreas

Osiander (1498-1552) e Roberto Bellarmino (1542-1621), além do próprio Berkeley:

Hoje em dia, a concepção de ciência física fundada por Osiander, pelo cardeal Bellarmino e pelo bispo Berkeley, venceu a batalha sem disparar um só tiro. Sem nenhum debate ulterior acerca do problema filosófico subjacente, sem produzir nenhum novo argumento, a concepção instrumentalista (como a chamei) tornou-se um dogma aceito. Pode-se perfeitamente chamá-la agora de concepção oficial da teoria física, uma vez que é aceita pela maioria dos nossos principais teóricos da física (embora não por Einstein nem por Schödinger). E constitui-se na parte integrante do ensino habitual da física (POPPER, apud LOPARIC, 1980, p. 46).

Embora Popper especifique que o instrumentalismo foi “fundado” no século

XVI, época em que viveram Osiander e Bellarmino, cabe mencionar que não é uma

opinião consensual entre os historiadores e filósofos da ciência; para alguns deles

há indícios que desde entre os astrônomos gregos já havia a utilização de certos

28

mecanismos matemáticos que serviam como instrumentos para facilitar o cálculo

das trajetórias dos planetas.19

Uma grande parte dos comentadores de Berkeley enquadram-no como

instrumentalista quando se referem à sua concepção acerca da ciência. Segundo

Silva, para tais intérpretes, o instrumentalismo se revelaria como uma posição

conveniente para um empirista como Berkeley: uma vez que para ele os termos que

não são obervacionais (num sentido empírico) são destituídos de significado, ao

assumir uma posição instrumentalista acerca das teorias ele não estaria assumindo

a inexistência de tais termos e sim os considerando como “[...] ferramentas úteis

para a predição de fenômenos pelas teorias das quais eles fazem parte” (SILVA,

2006, p. 104). A interpretação instrumentalista da filosofia da ciência de Berkeley

alcançou ampla aceitação20 na Filosofia da Ciência principalmente graças aos

trabalhos de dois filósofos: Karl Popper e Newton-Smith. Ambos apresentaram uma

interpretação instrumentalista a partir do De Motu. Na sequência, serão

apresentadas essas duas interpretações.

2.1 POPPER E O INSTRUMENTALISMO EM BERKELEY

Popper escreveu um artigo21 em que apresenta Berkeley como um precursor

de Ernst Mach (1838-1916) e Albert Einstein (1879-1955), ambos físicos que

desenvolveram importantes trabalhos e que apresentaram algumas críticas à

mecânica newtoniana. De acordo com Popper, Berkeley, no De Motu, focaliza sua

crítica à mecânica newtoniana: “O mais notável talvez seja o fato de que tanto

Berkeley quanto Mach - ambos grandes admiradores de Newton - criticam as idéias

de tempo, espaço e movimento absolutos de forma muito semelhante” (POPPER,

1972, p. 199).

No texto, Popper interpreta Berkeley propondo duas linhas argumentativas:

primeiro, chama atenção para o fato de que Berkeley nega significado às palavras

(termos) desprovidas de qualidades sensoriais; segundo, afirma que Berkeley nega

_____________ 19

Para uma abordagem sobre o instrumentalismo entre os astrônomos, cf. Laudan, 2000. 20

Entretanto, existem interpretações que destoam desse aparente consenso; cf. Peterschmitt, Luc. Can Berkeley be na Instrumentalist? Towards a reappraisal of Berkeley‟s philosophy of science. Berkeley Studies, n. 19, 2008. Disponível em: http://people.hsc.edu/berkeleystudies/.

21 O artigo foi publicado pela primeira vez em 1953.

29

a possibilidade de que haja explicação causal em física (filosofia mecânica).

A linguagem da mecânica newtoniana era constituída por alguns termos que

tinham como objetivo proporcionar uma explicação acerca de uma ampla variedade

de fenômenos; essa explicação era uma explicação causal, uma vez que os termos

que constituíam a mecânica eram considerados como que se referindo à causa de

tais fenômenos. Por exemplo: à queda de um corpo pesado, atribuía-se como causa

da queda a ação da gravidade. Entretanto, esse termo não possuía referencial na

realidade; o primeiro argumento de Popper vai tentar mostrar que alguns termos

utilizados na “doutrina de Newton” não possuem nenhum constituinte empírico (e por

isso não tinham nenhum significado). Termos como espaço absoluto, tempo

absoluto, movimento absoluto, bem como gravidade e força, não devem ser

compreendidos como termos referenciais, uma vez que não são percebidos pelos

sentidos (cf. POPPER, 1972, p. 198). Todo significado de uma palavra qualquer está

relacionado com sua ideia ou qualidade sensorial (efeitos sensíveis)22. Popper cita

algumas passagens em que Berkeley enfatiza esse aspecto de sua doutrina, como

por exemplo: “[...] aqueles que afirmam que a força ativa, a ação e o princípio do

movimento encontram-se realmente nos corpos estão adotando uma opinião que

não está baseada na experiência e sustentam-na com termos obscuros e gerais” (De

Motu, 31). Uma vez que tais termos seriam desprovidos de significado, pois não

seria possível encontrar no mundo nenhum correspondente para eles, tais termos

não passam de “qualidades ocultas”:

Com mais precisão, deveríamos dizer “uma substância metafísica oculta” pois o termo “qualidade oculta” é empregado erroneamente, uma vez que “qualidade” deveria ser reservado, mais apropriadamente, para as qualidades observáveis ou observadas - qualidades atribuídas aos nossos sentidos e que, como é natural, nunca são “ocultas” (POPPER, 1972, p. 194).

Como essas “qualidades ocultas” são desconhecidas, desprovidas de

significado, não se pode dizer que nelas há algum poder explicativo. Segundo

_____________ 22

Entretanto, para alguns comentadores, Popper (e também Newton-Smith adiante) parece não levar em conta a parte 2 do De Motu, onde, para Berkeley, o significado de um termo nunca pode ser apreendido isoladamente. Veja-se acima a seção 1.2; cf. Silva, 2006 e Silva, 2008. No capítulo 3 tratar-se-á novamente desse aspecto da filosofia da ciência de Berkeley.

30

Popper, “Não há nada físico por trás dos corpos físicos. Não existe uma realidade

física oculta. Por assim dizer, tudo é superfície; os corpos físicos nada são além das

suas qualidades. Sua aparência é sua realidade” (POPPER, 1972, p.195, grifo do

autor). Mas as predições da mecânica eram corretas. Berkeley sabia disso, e não

estava disposto a desconsiderar a importância de tal empreendimento. De acordo

com a interpretação de Popper, Berkeley propôs que os termos da mecânica

deveriam ser compreendidos como hipóteses matemáticas; essas hipóteses não

possuíriam referência na natureza, sendo sua função auxiliar no cálculo e nas

predições de fenômenos: “[...] a questão da veracidade de uma hipótese matemática

não surge - só nos interessa sua utilidade como instrumento de cálculo” (POPPER,

1972, p.196, grifo do autor). Essas hipóteses não existiriam na realidade, seriam

“ficções” elaboradas para faciliar o trabalho do “cientista (filósofo mecânico)”. Para

Berkeley, de acordo com Popper, duas ou mais hipóteses matemáticas poderiam

satisfatoriamente fornecer resultados corretos para determinadas observações: “[...]

o mesmo fato pode ser explicado de maneiras diferentes” (De Motu, 67) e “[...] não

haveria diferença alguma, exceto nominal” (De Motu, 68).

De acordo com essa posição, os termos utilizados na mecânica não

possuíriam poder explicativo causal: “Tendo em vista essas considerações, a teoria

de Newton não pode ser aceita como uma explicação genuinamente causal, isto é,

baseada em causas verdadeiramente naturais” (POPPER, 1972, p.195, grifo do

autor). Ao tratar do problema da explicação, Popper menciona a existência de três

tipos de explicação no De Motu: essencialista, descritiva e por hipóteses

matemáticas. Uma explicação essencialista diria respeito à metafísica; no domínio

da metafísica encontra-se a “[...] explicação verdadeiramente causal (ou metafísica),

baseada na natureza ou essência verdadeira das coisas” (POPPER,1972, p. 196).

Popper a chama de explicação essencialista e nesse âmbito é possível falar em

causas, que, segundo Popper, Berkeley considerava como “eficientes e finais”, ou

seja, espirituais (cf. POPPER, 1972, p. 200). Entretanto, “Na física (filosofia

mecânica), não há explicação causal” (POPPER, 1972, p. 195). A função do físico é

(através da experiência e da razão) descobrir as leis da natureza, ou seja, “[...] as

regularidades e uniformidades dos fenômenos naturais” (POPPER, 1972, p. 195). A

partir de tais leis, formadas “[...] pela descrição de uma regularidade observada”

(POPPER, 1972, p.196), o físico reduz os fenômenos à regras gerais, relacionando-

os reciprocamente. Popper denomina esse tipo de explicação de explicação

31

descritiva, e é correto denominá-la explicação, desde que se esclareça a diferença

com a explicação causal (metafísica). A explicação proporcionada pelas hipóteses

matemáticas também não cumprem um papel explicativo causal, sendo utilizadas

como um artifício, “[...] um utensílio ou instrumento matemático, comparável a uma

máquina de calcular” (POPPER, 1972, p. 196). Tal artifício não deveria ser

considerado “ciência”. Essas hipóteses matemáticas não poderiam ser confundidas

com alguma “essência da natureza”; discussões acerca de essências não estariam

no domínio da física (filosofia mecânica). Popper faz a seguinte observação:

Os princípios da teoria de Newton que “provados pela experiênica” - os princípios das leis de movimento que descrevem simplesmente as regularidades observáveis nos movimentos dos corpos - são verdadeiros. Mas a parte da teoria que envolve os conceitos criticados acima [...] não é verdadeira, pois consiste em hipóteses matemáticas (POPPER, 1972, p. 196).

Respeitando-se essa distinção proposta por Berkeley no De Motu (de acordo

com Popper), a “teoria de Newton” poderia continuar a ser utilizada com sucesso

para explicar os fenômenos.

2.2 NEWTON-SMITH E O INSTRUMENTALISMO EM BERKELEY

Outra interpretação bastante influente acerca da filosofia da ciência de

Berkeley é aquela desenvolvida por Newton-Smith; de acordo esse modelo Berkeley

assume o instrumentalismo, mais especificamente o que Newton-Smith chamou de

instrumentalismo semântico23:

Em uma forma de instrumentalismo, chamado instrumentalismo semântico, as sentenças teóricas são consideradas como não portadoras do tipo de significado que lhes forneceria valores de

_____________ 23

Pode-se distinguir o instrumentalismo em duas variações: epistemológico, onde adota-se uma interpretação literal da linguagem científica e o semântico, onde tal linguagem não é entendida literalmente. Mas essa distinção é um refinamento contemporâneo, não estando presente nas discussões de Berkeley acerca do conhecimento científico; dados os propósitos deste ensaio, essa distinção não será levada em conta nem aprofundada. Para maiores detalhes, cf. Newton-Smith, 1981 e Newton-Smith, 1985.

32

verdade. Sentenças teóricas não são hipóteses que são verdadeiras ou falsas. Sua função não é expressar fatos sobre o mundo, mas facilitar o trabalho de tornar corretas as predições observacionais (NEWTON-SMITH, 1985).

Newton-Smith apóia sua interpretação instrumentalista de Berkeley

chamando a atenção para a contexto histórico do século XVI, onde as

transformações na cosmovisão de mundo geraram debates acerca do estatuto

cognitivo da “nova ciência”; ele também apresenta passagens que comprovariam

que Berkeley sustentou o instrumentalismo no De Motu (citando especialmente o

§67).

De acordo com Newton-Smith, o instrumentalismo era uma perspectiva

acerca da astronomia que predominava “antes de Galileu”; assim procura dar

plausibilidade histórica à sua interpretação ligando o nome de Berkeley aos nomes

de Osiander e Bellarmino, que tiveram participação nos desdobramentos que se

seguiram à publicação da obra A revolução dos orbes celestes, de Nicolau

Copérnico (1473-1543), onde nesta obra este último afirmava o heliocentrismo,

assinalando que a Terra girava em torno do Sol, e essa concepção acerca do

universo era revolucionária à época. De forma a evitar problemas com a Igreja, uma

vez que a idéia da centralidade do Sol e não da Terra poderia conflitar com as

Escrituras Sagradas, Osiander (1543) escreveu um prefácio não autorizado (e não

assinado) à obra de Copérnico onde defende uma concepção instrumentalista

acerca das propostas deste último:

Com efeito, não é necessário que essas hipóteses sejam verdadeiras, e nem mesmo verossímeis, bastando apenas que forneçam cálculos que concordem com as observações: a não ser que se seja tão ignorante em geometria e em ótica a ponto de tomar por verossímil o epiciclo de Vênus ou de acreditar ser essa a causa pela qual Vênus ora precede o Sol ora a ele sucede por quarenta ou até mais partes [do círculo] (OSIANDER, in LOPARIC, 1980, p.58).

Osiander, nessa passagem, chama a atenção para o caráter hipotético da

teoria copernicana bem como salienta que o importante é que essas hipóteses

forneçam cálculos e predições corretos. Enquanto Osiander anteviu um risco de

conflito com a Igreja e procurou escapar dele através do instrumentalismo, com

33

Bellarmino já havia um conflito estabelecido e que envolvia Galileu Galilei (1564-

1642);24 este último assumia de maneira realista o heliocentrismo, o que contrariava

a recomendação da Igreja:

O que a Igreja, por intermédio do Cardeal Bellarmino, recomendava era justamente uma postura operacionalista ou instrumentalista, que considerasse as hipóteses astronômicas, não como tradução do ser das coisas, mas pura e simplesmente como artifícios de que os astrônomos se serviriam para correlacionar dados de observação, nada dizendo sobre como as coisas são em si mesmas (NASCIMENTO, 1999, p. 650).

Na concepção de Newton-Smith, a interpretação proposta por Berkeley

apresenta as mesmas características dos discursos de Osiander e Bellarmino;

Newton Smith apresenta uma série de argumentos para confirmar essa sua

interpretação a respeito de Berkeley. Ele começa frisando que “Berkeley também

tinha que resistir à estratégia realista” (NEWTON-SMITH, 1985); a estratégia

realista era a de atribuir significado a termos que não denotavam entidades no

mundo. Dessa forma, termos como gravidade, força, espaço absoluto, entre outros,

poderiam servir para explicar de maneira causal as ocorrências de fenômenos e as

observações. Esses termos seriam apropriadamente chamados de causas ou

princípios por aqueles que advogavam uma interpretação realista da mecânica

newtoniana. Isso não era aceitável para Berkeley, pois, de acordo com Newton-

Smith, ele entendia que “[...] a ciência não pode, de qualquer modo, fornecer

explicações. A ciência pode apenas descobrir quais coisas são sinais de outras

coisas” (NEWTON-SMITH, 1985); somente espíritos (ou mente, alma) têm poder

causal, mas esse tipo de explicação pertence à filosofia primeira ou metafísica, que

lida com as coisas incorpóreas, e não à ciência, “[...] confinada aos experimentos e

à mecânica” (De Motu, 34) e, consequentemente, às coisas corpóreas, inanimadas.

Contudo, Berkeley era um apreciador da mecânica newtoniana e estava disposto a

apresentar uma estratégia para “resistir” às investidas realistas e salvaguardar a

importância do empreendimento científico, sem necessidade de assumir um

_____________ 24

Para uma apreciação das discussões sobre Galileu e a intervenção do cardeal Bellarmino, cf. Mariconda, P.R. O diálogo de Galileu e a condenação. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Campinas, s. 03, v. 10, n. 01, p. 77-160, jan-jun 2000.

34

compromisso com a concepção explicativista causal.

Para Newton-Smith, Berkeley possuia duas filosofias da ciência para resistir

ao realismo, sendo uma delas o redutivismo e a outra o instrumentalismo. O modelo

redutivista é interpretado por Newton-Smith como próximo à concepção filosófica

geral de Berkeley, conforme esboçada no Princípios; nesse modelo, havia a

necessidade de reduzir os termos teóricos de uma teoria em termos observacionais,

a fim de de que pudessem ter um significado. Qualquer termo teórico que não

pudesse ser traduzido ou reduzido às experiências sensoriais seria desprovido de

significado. Como exemplo, veja-se o caso do elétron: de acordo com Newton-

Smith, ao se adotar o reducionismo, “num exemplo contemporâneo a sentença „um

elétron está presente‟ tornar-se-ia uma disjunção complexa „existe uma cintilação no

tubo de raio catódico ou ...‟ na qual o disjunto compreende o outro fenômeno

observável associado com a presença de um elétron” (NEWTON-SMITH, 1985).

Dessa maneira o reducionismo não possui nenhum poder explicativo (causal), pois

o que a redução faz é uma descrição de determinado acontecimento, simplificando-

o. E de acordo com Newton-Smith, a introdução de termos teóricos visa justamente

fornecer uma explicação para determinada ocorrência (não somente descrever), e

em termos causais: “O termo funcionou simplesmente como um designador da

causa, ao mesmo tempo que investigações conduziram à atribuição de

propriedades adicionais para a causa” (NEWTON-SMITH, 1985). Mas Berkeley

estava ciente de que um discurso reducionista não poderia ser a alternativa à

concepção explicativista causal, uma vez que negaria legitimidade aos termos

teóricos presentes na mecânica bem como não proporcionaria uma interpretação

que fizesse jus ao grande sucesso dessa teoria. Não era isso que Berkeley

almejava. Por isso, a alternativa de Berkeley é o instrumentalismo, assevera

Newton-Smith.

O instrumentalismo mantém uma certa tensão com sua filosofia geral pois

não seria possível reduzir os termos teóricos contituintes de determinadas teorias

em termos observacionais. Mas a proposta de Berkeley enquanto instrumentalista é

que tais termos teóricos são hipóteses matemáticas cuja finalidade é facilitar os

cálculos, não estando em discussão sua veracidade. Isso se evidenciaria a partir de

passagens como o §17:

35

Força, gravidade, atração e termos desse tipo são úteis para o raciocínio e o cálculo sobre o movimento e sobre os corpos em movimento, mas não para o entendimento da natureza simples do próprio movimento ou para enunciar tantas qualidades distintas. Com efeito, a atração não foi introduzida por Newton como uma qualidade física, verdadeira, mas apenas como uma hipótese matemática (De Motu, 17, grifo do autor).

Newton-Smith afirma que, citando ainda Berkeley, não é o objetivo da

ciência o estabelecimento de causas eficientes, “mas as regras da impulsão ou da

atração e, numa palavra, as leis do movimento, e a partir de leis estabelecidas

fornecer uma explicação e não a causa eficiente dos fenômenos particulares” (De

Motu, 35). De acordo com Newton-Smith, Berkeley adota o instrumentalismo pois

não estaria levando em conta a verdade ou a falsidade de uma determinada teoria;

os termos utilizados pela mecânica newtoniana devem ser compreendidos como

hipóteses matemáticas, ferramentas que ajudam a prever certas ocorrências bem

como explicar os efeitos sensíveis percebidos. Mas não devem de forma alguma ser

interpretados como que descrevendo algo acerca da verdadeira natureza do

mundo. Há um outra passagem que é muito citada e que corroboraria a

interpretação instrumentalista atrituída a Berkeley:

É evidente, além disso, que a força não é uma coisa certa e determinada, pois grandes homens desenvolveram sobre ela muitas opiniões diferentes, por vezes contrárias, e mesmo assim seus resultados alcançaram a verdade. Pois Newton afirma que a força aplicada consiste apenas na ação, e é a ação exercida sobre um corpo que muda seu estado e não permanece após a ação. Torricelli argumenta que certa quantidade ou agregado de forças impressas por percussão é recebido em um corpo móvel e ali permanece e constitui o ímpeto. Borelli e outros dizem quase o mesmo. Mas, embora Newton e Torricelli pareçam discordar entre si, eles desenvolvem perspectivas consistentes, e o fato é suficientemente bem explicado por ambos, pois todas as forças atribuídas aos corpos são hipóteses matemáticas, tanto quanto o são as forças de atração nos planetas e no Sol (De Motu, 67).

A interpretação de Newton-Smith, acerca desse parágrafo, se assenta

sobre o fato de que, para Berkeley, tanto Newton e Torricelli, embora ambos

apresentem definições diferentes acerca do que entendem pelo termo força, ambos

explicam determinado acontecimento relativamente com sucesso. Como assevera

36

Berkeley, esse termo é usado como uma hipótese matemática e no que diz respeito

à explicação “[...] não haveria diferença alguma, exceto nominal” (De Motu, 68).

Ambas as definições facilitam o cálculo. Dessa maneira, é possível salvaguardar a

utilidade e o sucesso da mecânica newtoniana, sem se comprometer com os

pressupostos realistas: “[...] uma vez que retiramos a pressuposição realista, as

teorias são em algum sentido consistentes simplesmente porque nenhuma das

duas foi construída como tendo valor de verdade” (NEWTON-SMITH, 1985)25.

_____________ 25

Newton-Smith entende que sua interpretação acerca do instrumentalismo de Berkeley se sustenta ainda a partir da Subdeterminação da Teoria pelos Dados (UTD, underdetermination of theory by data, em inglês). “A tese da subdeterminação da teoria pelos dados [...] é a reivindicação de que para qualquer assunto existiria um par de teorias evidencialmente equivalentes que são logicamente incompatíveis” (NEWTON-SMITH, 1985). A Subdeterminação refere-se ao fato de que dados da experiência não possibilitam a adoção de uma teoria científica como verdadeira, pois diante de duas teorias que predizem os mesmos acontecimentos, e na impossibilidade de confirmação ou refutação dessas teorias, não faz sentido falar em vedade. Para um tratamento pormenorizado, cf. Newton-Smith, 1981. Lisa Downing não compartilha dessa visão, afirmando que em Berkeley a Subdeterminação não possui nenhum papel importante e que seu instrumentalismo independe dela (cf. Downing, 1995).

37

3 A EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA NO DE MOTU

A partir da apresentação dos dois modelos interpretativos a respeito da

filosofia da ciência de Berkeley, a partir do De Motu, verificou-se que tanto Popper

quanto Newton-Smith consideram Berkeley um instrumentalista. Entretanto, esses

autores não compartilham da mesma compreensão acerca da explicação científica

no De Motu; para Popper, é possível encontrar no texto um modelo explicativo (não-

causal), desde que se faça uma distinção entre a explicação essencialista

(metafísica e causal) e a explicação descritivista (filosofia natural). Assim, com base

no §37 do De Motu, onde Berkeley menciona que “[...] é tarefa do filósofo mostrar

que cada fenômeno está em constante conformidade com essas leis [leis da

natureza], isto é, que ele necessariamente se segue desses princípios” , Popper faz

uma observação:

Esse processo pode ser denominado, se quisermos, de “explicação” (e mesmo “explicação causal”), desde que se faça uma distinção clara entre ele e a explicação verdadeiramente causal (ou metafísica), baseada na natureza ou essência verdadeira das coisas (POPPER, 1972, p. 196).

Já para Newton-Smith não há essa possibilidade em Berkeley, pois de

acordo com sua interpretação acerca da filosofia deste último, não caberia à filosofia

natural (ciência) fornecer explicações e sim somente à metafísica ou filosofia

primeira: “Pois para Berkeley a ciência não pode, de qualquer modo, fornecer

explicações” (NEWTON-SMITH, 1985) e, mais adiante, “[...] para alguém como

Berkeley, que não vê o objetivo do empreendimento científico como o da produção

de explicações [...]” (NEWTON-SMITH, 1985). De forma a tornar mais clara a

concepção esposada por Newton-Smith, faz-se necessário um exame mais

detalhado sobre o que esse autor entende por explicação científica.

3.1 A EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA SEGUNDO NEWTON-SMITH

De acordo com Newton-Smith, uma das consequências do grande sucesso

da “nova ciência” era a crença de que haveria a possibilidade de desvendar os

38

segredos da natureza, durante tanto tempo ocultos à mente humana. Isso seria

possível devido ao comprometimento do filósofo natural com pelo menos uma das

teses realistas (conforme explicitadas na introdução deste trabalho); Newton-Smith

se concentra na tese 2 (tese semântica), que ele chama de “componente explicativo”

de uma determinada teoria: “[...] o objetivo da ciência é a descoberta de verdades

que podem ser utilizadas para explicar observações e [...] esta finalidade explicativa

deve ser alcançada na física por intermédio de itens teóricos postulados” (NEWTON-

SMITH, 1985). De acordo com essa interpretação, o objetivo do empreendimento

científico é fornecer explicações acerca dos fenômenos naturais e a partir dessa

explicação, oferecer um relato verdadeiro acerca de como o mundo é; isso seria

possível somente com a utilização de termos teóricos. Estes termos inobserváveis

seriam indispensáveis para se compreender a estrutura do mundo. Como exemplo,

Newton-Smith cita o caso do termo elétron:

O termo eletrón foi introduzido, por exemplo, para referir a algum constituinte da matéria que causa um fenômeno particular observável (cintilações num tubo de raio catódico). O termo funcionou simplesmente como um designador da causa, ao mesmo tempo em que investigações conduziam à atribuição de propriedades adicionais para a causa (NEWTON-SMITH, 1985, grifo nosso).

Para Newton-Smith só seria possível a explicação na ciência a partir do

compromisso com um modelo causal de explicação. A consequência da

interpretação de Newton-Smith é que ele nega a existência de uma preocupação em

Berkeley, a partir do De Motu, com o problema da explicação científica, pois uma

vez que Berkeley assume o instrumentalismo da mecânica newtoniana, e, para ele,

os termos teóricos não tinham um significado claro, ele não aceita uma

compreensão acerca da ciência que seja baseada na busca pelas causas dos

fenômenos e por isso sua concepção não faria justiça ao empreendimento científico.

Em que pesem as observações de Newton-Smith, algumas passagens do De Motu

parecem contradizer essas afirmações, pois mostram que Berkeley, um apreciador

da mecânica newtoniana, tinha em vista não somente evidenciar como

desnecessária e contraditória uma explicação baseada em “qualidade ocultas”, ou

seja, uma explicação baseada num modelo realista, mas também procura oferecer

uma alternativa a esse modelo. Essa alternativa foi uma alternativa instrumentalista,

39

mas isso não implica a conclusão mencionada por Newton-Smith de que Berkeley

não se preocupou com o problema da explicação científica.

3.2 EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA SEGUNDO BERKELEY

“A investigação que conduz ao problema da explicação científica poderia

ser sintetizada na procura pela causa dos fenômenos aparentes e perceptíves”

(SILVA, 2003, p. 54). Foi visto nas seções anteriores que Berkeley propôs uma

demarcação entre a mecânica e a metafísica, sendo que à esta última caberia a

busca pela causa (eficiente) do movimento, uma vez que para Berkeley a

verdadeira causa do movimento era “espiritual”. Entretanto, no domínio dos objetos

sensíveis caberia à mecânica estabelecer qual era a causa do movimento; nesse

sentido, faz-se necessário retomar e esclarecer o que Berkeley entende por causa

no âmbito da mecânica. No capítulo 1 deste ensaio, quando tratou-se do princípio

do movimento (seção 1.1), foi mencionado que princípio deveria ser entendido

como causa, sendo esta “verdadeira, eficiente e conservadora de todas as coisas”;

contudo, no decorrer da exposição das principais ideias do De Motu, constatou-se

que Berkeley propôs uma alteração do sentido de princípio (cf. seção 1.1.3, onde já

tratou-se de forma preliminar essa alteração). Veja-se como Berkeley apresenta sua

proposta:

[...] os princípios da filosofia experimental devem ser propriamente denominados fundamentos e fontes de nosso conhecimento (fundamentos sobre os quais esse conhecimento repousa e fontes a partir das quais o conhecimento emerge) - tanto pelos sentidos quanto da experiência - não da existência, mas de nosso conhecimento das coisas corpóreas. Do mesmo modo, na filosofia mecânica, as leis primárias do movimento - provadas por meio de experimentos, elaboradas pela razão e tornadas universais - devem ser chamadas de princípios, nos quais se fundamenta e se encerra a disciplina como um todo. Essas leis do movimento são convenientemente denominadas de princípios, pois delas são derivados tanto teoremas gerais da mecânica quanto explicações particulares dos fenômenos (De Motu, 36).

A proposta berkeleiana acerca da correta interpretação da mecânica não se

apresenta de forma encadeada no De Motu; isso é provado pelo fato de que

40

Berkeley esclarece o que ele entende por princípio já no final da primeira parte do

De Motu. A partir da passagem acima, é possível perceber que Berkeley propõe

uma alteração da maneira de interpretar o significado de princípio, quando aplicado

às coisas sensíveis . Para isso, em primeiro lugar, Berkeley chama a atenção para o

fato de que a procura por princípios deveria levar em conta os “fundamentos e

fontes de nosso conhecimento [...] - não da existência, mas de nosso conhecimento

das coisas corpóreas”. Depreende-se dessa afirmação que não se deveria

compreender princípio como causa da existência dos corpos (cf. também De Motu,

71), e sim como o “fundamento do nosso conhecimento sobre a existência dos

corpos” (SILVA, 2008, p. 4). A alteração proposta por Berkeley tem como

consequência uma mudança no que diz respeito a discussão sobre o movimento,

pois trata-se agora do “nosso conhecimento” do movimento dos corpos. Nesse

sentido, é preciso investigar o princípio do movimento a partir do modo como se

entende a realidade e a partir dessa investigação estabelecer uma base para o

entendimento das relações entre os corpos. A esse respeito, Berkeley faz a

seguinte afirmação:

A mente humana sente prazer em estender e desenvolver seu conhecimento; e, para isso, devem ser produzidas noções e proposições gerais, nas quais cognições e proposições particulares estão de algum modo incluídas depois, e não antes, como normalmente se compreende (De Motu, 38).

Da afirmação acima, é possível concluir que para Berkeley há a

necessidade de determinados pressupostos para se chegar ao conhecimento das

“coisas corpóreas”; da mesma forma, para uma correta compreensão sobre o

movimento, certas “noções e proposições gerais” têm de ser previamente

estabelecidas. Essas noções, que são chamadas de leis, podem convenientemente

ser designadas como princípios ou causas; para o movimento, é correto dizer que

as “leis primárias do movimento” são a causa do movimento dos corpos. De acordo

com Berkeley, essas leis são estabelecidas da mesma maneira que as noções da

geometria, pois nesse domínio, primeiro se formula concepções gerais que são,

posteriormente, aplicadas aos casos particulares; ele transfere essa maneira de

medir os corpos para a questão do movimento deles. Dessa forma, há a

necessidade de partir de “noções e proposições gerais” para somente depois aplicá-

41

los aos casos particulares:

Os geômetras sabem disso muito bem [da necessidade das noções]. Também na mecânica, noções são pressupostas, isto é, definições e enunciados elementares e gerais acerca do movimento, a partir das quais são posteriormente deduzidas, pelo método matemático, as conclusões mais remotas e menos gerais. E, assim como as dimensões dos corpos particulares são medidas por meio da aplicação de teoremas geométricos, também os movimentos de quaisquer partes do sistema de mundo e dos fenômenos a ele subordinados tornam-se conhecidos e são determinados pela aplicação de teoremas universais da mecânica. Eis o único objetivo ao qual o físico deve ater-se (De Motu, 38).

A respeito desse procedimento na Geometria, Kneale e Kneale assim se

manifestam:

Em primeiro lugar certas proposições têm que ser tomadas como verdadeiras sem demonstração; em segundo lugar, todas as outras proposições têm que ser derivadas destas; em terceiro lugar, a derivação tem que ser feita sem recorrer a conceitos geométricos que não figurem nas proposições primitivas; por outras palavras, a derivação tem que ser formal ou independente do tópico particular discutido em geometria (KNEALE E KNEALE, 1991, p. 06).

Berkeley propõe então que o conhecimento acerca das “coisas corpóreas”

bem como do movimento é dependente de noções previamente estabelecidas, da

mesma maneira como ocorre na geometria. Assim sendo, a utilização de certas leis

é indispensável para que o homem atinja o objetivo de “estender e desenvolver seu

conhecimento”; essas leis podem ser constituídas por termos que não “possuam

uma essência estável na natureza”:

E assim como os geômetras, em função de seu ofício, fazem uso de muitos esquemas que eles próprios não podem representar, nem descobrir na natureza das coisas, também o mecânico faz uso de alguns termos abstratos gerais e imagina nos corpos força, ação, atração, etc., que são de utilidade essencial para as teorias, para as fórmulas e para os cálculos acerca do movimento, ainda que - como ocorre com as ficções dos geômetras produzidas por abstração matemática - sejam procurados em vão nos objetos e corpos que

42

realmente existem (De Motu, 39)26.

Da exposição acima, vê-se que, “[...] com efeito, para Berkeley, explicar um

fenômeno é apresentar a conexão entre o próprio fenômeno e as leis que o regem”

(SILVA, 2007, p. 62). Não se trata, então, de buscar causas eficientes na mecânica;

ao contrário, quem estivesse interessado na “verdadeira causa” do movimento

deveria se voltar à metafísica ou à teologia: nesse domínio se encontra a verdade

(cf. De Motu, 71). Porém, na mecânica, o físico não deveria voltar-se à causa

(espiritual), mas, a partir da formulação de leis gerais, ele deveria sistematizá-las e

depois aplicá-las aos casos particulares, buscando assim fornecer uma explicação

da causa do movimento nos corpos (cf. seção 1.1.3 acima); pode-se dizer que essa

sistematização consiste na elaboração de uma teoria:

No entanto, na filosofia física, devemos procurar causas e razões dos fenômenos entre os princípios mecânicos. Fisicamente, portanto, um fato está explicado não pela atribuição de sua causa ativa e incorpórea, mas pela exibição de sua conexão com os princípios mecânicos, tais como: ação e reação são sempre opostas e iguais (De Motu, 69, grifo do autor).

A partir da exposição acima, onde Berkeley promoveu um deslocamento

acerca de como deveria ser entendido princípio, tornou-se possível compreender

que Berkeley revelou uma preocupação com a explicação científica, propondo uma

forma de interpretar a mecânica; entretanto, há um outro aspecto que pode

contribuir para mostrar o quanto Berkeley tinha uma preocupação em oferecer uma

interpretação da mecânica que não se comprometesse com as teses realistas

(conforme explicitadas na introdução deste ensaio).

Na exposição das interpretações instrumentalistas da filosofia da ciência de

Berkeley, observou-se que tanto Popper quanto Newton-Smith defendiam a

ausência de um significado para os termos teóricos da mecânica newtoniana,

_____________ 26

É importante observar que no De Motu, encontramos dois tipos de abstração: uma metafísica e a outra matemática; à primeira, Berkeley lança várias críticas, pois não teríamos a capacidade de abstrair nesse sentido (cf. De Motu, 11; 16 - entre outras passagens). Já a abstração matemática Berkeley menciona como necessária para o desenvolvimento do conhecimento e ela parece ter o sentido de imaginar certas ocorrências nos corpos (cf. De Motu, 17; 39).

43

segundo a visão de Berkeley. Para Newton-Smith a consequência disso é que

Berkeley não pode apresentar nenhuma contribuição para o problema da explicação

científica. Contudo, é possível encontrar no De Motu, em algumas passagens,

advertências de Berkeley contra a abstração metafísica que sugerem uma

compreensão diferente daquela normalmente atribuída a ele, quando está em

discussão a questão do significado dos termos inobserváveis. Veja-se as seguintes

passagens:

A força de gravitação não deve ser separada do momento (momentum); mas o momento não existe sem velocidade, pois a massa é multiplicada pela velocidade; além disso, a velocidade não pode ser compreendida sem o movimento e, portanto, o mesmo se aplica à força de gravitação (De Motu. 11).

O movimento nunca se apresenta aos sentidos separados da massa corpórea, do espaço e do tempo. Existem aqueles que desejam considerar o movimento como uma idéia simples e abstrata, separada de todas as outras coisas (De Motu, 43).

Sobre as passagens acima, Silva faz a seguinte observação: “[...] pois,

dadas essas passagens, o que se quer compreender, na concepção

instrumentalista de Berkeley, é o significado de um termo em relação com outros

termos, o que só é possível na medida em que se considera, em última análise, a

própria teoria” (SILVA, 2006, p. 108, grifo do autor). Não é possível compreender de

maneira isolada certas noções, inclusive o próprio movimento, pois é necessário a

noção de tempo e espaço. O mesmo se dá com as hipóteses matemáticas; elas

adquirem um sentido quando assentadas numa teoria mais ampla. De acordo com a

exposição anterior, Berkeley afirma que a explicação do movimento consiste em

mostrar que o movimento está em conformidade com as “leis primárias do

movimento”, bem como que ocorrem certas relações entre os fenômenos e as leis

(cf. De Motu, 37); além disso, a partir da negação, por parte de Berkeley, da

possibilidade de abstrair (dividir) “coisas verdadeiramente inseparáveis” (cf. De

Motu, 47), ele parece querer com isso mostrar que os termos teóricos de uma

determinada teoria não são desprovidos de significado, como Popper e Newton-

Smith afirmaram; ao contrário, pois é justamente enquanto integrantes de uma

44

determinada teoria que adquirem significado, ainda que “sejam procurados em vão

nos objetos e corpos que realmente existem” (cf. De Motu, 39).

A partir da compreensão de que as leis do movimento deveriam ser

entendidas como os princípios do movimento e de que tais leis se ligam a uma

teoria (que no caso era a mecânica newtoniana), constituída por termos teóricos

que adquirem um significado quando assimiladas na teoria, torna-se legítima a

afirmação de que Berkeley procurou interpretar a mecânica newtoniana, revelando

assim que estava no escopo de sua crítica uma preocupação com a explicação

científica.

45

CONCLUSÃO

O percurso feito até aqui procurou mostrar que Berkeley, embora um

admirador de Newton e alguém que valorizava o empreendimento científico, não

estava de acordo com a interpretação realista que a mecânica newtoniana recebia;

dessa forma, procurou fornecer uma interpretação alternativa que não acarretasse o

compromisso com uma explicação baseada em causas (eficientes) bem como

propôs uma demarcação entre filosofia primeira ou metafisica e filosofia natural ou

mecânica. Berkeley entendia que a verdadeira causa eficiente era espiritual mas isso

remetia a discussões sobre alma e Deus, em consequência, eram discussões que

caberiam à filosofia primeira ou metafísica e à teologia. Discussões sobre os corpos

se restringiam à filosofia natural e nesse domínio, Berkeley afirma que há uma

dependência de certas noções pré-estabelecidas, isto é, no que diz respeito às

fontes do conhecimento dos corpos, havia necessidade da precedência das “noções

e proposições gerais”. Da mesma maneira acontecia com a capacidade de

conhecimento do movimento dos corpos: as noções viriam primeiro e depois as

proposições particulares. Essas noções foram identificadas por Berkeley como as

leis do movimento. Dessa maneira, para que haja explicação na mecânica, as leis do

movimento devem sem elaboradas primeiro para que depois os fenômenos sejam

incluídos, isto é, sejam assimilados pelas leis. Nesse sentido, pode-se dizer que os

fenômenos particulares são assimilados pela teoria. Assim procedendo, pode-se

falar em princípios (ou causas) na filosofia natural, entretanto eles se referem às leis

do movimento.

Buscou-se mostrar que as interpretações instrumentalistas de Popper e

Newton-Smith concluíam que Berkeley negava significatividade aos termos teóricos

da mecânica bem como negavam uma preocupação com a interpretação da

mecânica newtoniana. Entretanto, mostrou-se que, pelo fato de Berkeley ser

interpretado como um instrumentalista, disso não se seguiriam as conclusões

anteriormente citadas, pois Berkeley não negou significativade aos termos teóricos

nem tampouco deixou de propor uma interpretação sobre a mecânica. É claro que

pode ser reivindicado que a explicação conforme entendida por Berkeley seria

relativamente pobre para estar à altura do sucesso alcançado pela mecânica

newtoniana; mas ao menos deve-se reconhecer a existência de uma tal

46

preocupação em Berkeley em proporcionar uma compreensão sobre a mecânica.

É importante mencionar também que não somente as conclusões das

interpretações de Popper e Newton-Smith acerca do instrumentalismo de Berkeley

têm sido criticadas, mas também as próprias bases em que se assenta tal

interpretação27. Além disso, alguns comentadores começam a questionar a própria

interpretação instrumentalista, sugerindo a necessidade de uma outra interpretação

acerca da filosofia da ciência de Berkeley, que não o instrumentalismo28.

_____________ 27

Cf. Downing, 1995; Downing, 2005. 28

Cf. Peterschmitt, Luc. Can Berkeley be na instrumentalist? Toward a reappraisal of Berkeley‟s philosophy of science. Berkeley Studies, n. 19, 2008. Disponível em http://people.hsc.edu/berkeleystudies. Acesso em: 26 fev. 2009.

47

REFERÊNCIAS:

ASSIS, A.K.T. Mecânica Relacional. Campinas: CLE, 1998.

BERKELEY, G. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. Coleção Os

Pensadores. São Paulo: Abril, 1980.

______ . De Motu. Scientia Studia, São Paulo, v. 4, n. 1, 2006

BERMAN, David. Berkeley. São Paulo: Edunesp, 2000.

BUENO, Octávio. O empirismo construtivo: uma reformulação e defesa. Campinas:

Unicamp, 1999.

DÍEZ, J.A.; MOULINES, C.U. Fundamentos de Filosofía de la Ciencia. Barcelona:

Ariel, 1999.

DOWNING, Lisa. Berkeley‟s case against realism about dynamics. In:

MUEHLMANN, R. (ed.). Berkeley’s Metaphysics. Penn State Press: 1995. Disponível

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