a ldb e as instituições de educação infantil

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A LDB e as Instituições de Educação Infantil

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  • Rev. paul. Educ. Fs., So Paulo, supl.4, p.7-14, 2001

    CDD. 20.ed. 613.707

    A LDB E AS INSTITUIES DE EDUCAO INFANTIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS1

    Tizuko Morchida KISHIMOTO*

    *Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo.

    A Educao infantil, primeira etapa da educao bsica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criana at seis anos de idade, em seus aspectos fsico, psicolgico, intelectual e social, complementando a ao da famlia e da comunidade (art.2. LDB).

    Se a legislao prope o desenvolvimento integrado da criana como objetivo a alcanar, como afirmar que na sala de aula se aprende e no ptio se recreia? Qual a participao do corpo e do movimento na educao? A fragmentao e compartimentalizao de aspectos do desenvolvimento infantil (fsico, intelectual, psicolgico, social) espelham-se nas concepes dos profissionais, na organizao do espao fsico, materiais e prticas pedaggicas. Na sala de aula ocorre o desenvolvimento intelectual e psicolgico, no ptio, o fsico e social.

    Como justificar o controle do corpo, salas de aulas e atividades concebidas na perspectiva do adulto, em que no h espao para aes autnomas da criana? Os materiais mais presentes, so os grficos, que no privilegiam o corpo e o movimento. As prticas pedaggicas atribuem maior tempo para atividades intelectuais voltadas para aquisio das letras e nmeros. Brinquedos e brincadeiras aparecem no discurso, mas na prtica restringem-se ao recreio e momentos de transgresso das normas.

    O trabalho com a famlia e a comunidade no pode ser ocasional, mas complementar do pedaggico para desenvolver a criana integralmente. Como isso possvel em agrupamentos infantis que chegam a ter 30 a 40 crianas, com profissionais sem formao, tempo e materiais?

    Na base desses problemas encontram-se concepes de criana e de

    educao, fatores de ordem conjuntural e inadequao de processos de formao que precisam ser explicitados.

    Um dos grandes desafios ultrapassar a retrica da infncia (Becchi & Julia, 1998), slogans e modismos, aprender a olhar a criana e dar-lhe espao de expresso. A valorizao da infncia como categoria social, apesar de presente no discurso, no encontra espao no cotidiano infantil.

    A criana concebida como ser humano em desenvolvimento, dotado de competncias, saberes e direitos, situada em um contexto histrico e social, contrape-se s experincias de excluso, que separa crianas pobres e ricas, meninos de rua, crianas com famlias de outras abandonadas, exploradas e violentadas (Pinto & Sarmento, 1997).

    Valorizar a identidade de cada criana exige reflexo sobre sua identidade e como constru-la (Haddad, 1991). Essa uma das indicaes das Diretrizes Curriculares da Educao Infantil, aprovada em 1999, que constitui um desafio.

    As creches e pr-escolas existentes ou que venham a ser criadas devero, no prazo de trs anos, a contar da publicao desta Lei, integrar-se ao respectivo sistema de ensino (LDB, Ttulo IX, Das Disposies Transitrias, art. 89). Tal determinao desnudou concepes, prticas e polticas pblicas.

    No basta transferir creches para o mbito da educao. Outros aspectos precisam ser considerados: concepes de criana e de educao, nveis de formao e funes dos profissionais, diferenas salariais, estrutura e funcionamento dos equipamentos infantis, financiamento, formao.

    Muitos privilegiam o educar e o cuidar apenas na dimenso pedaggica.

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    necessrio conceb-los em perspectiva mais ampla, de um desenvolvimento que se processa num plano, como diria Bronfrenbrenner (1996), ecolgico, em vrios nveis que se relacionam. Desde o berrio, em todas aes do cotidiano, preciso integrar aes de cuidado e educao. Outras formas de integrao: pr-escola e ensino fundamental, creche e famlia, creche e pr-escola. Estruturas contnuas possibilitam melhor atendimento criana .

    Integrar significa centralizar e aproximar servios, buscando acomodaes, reconciliaes e ajustamentos. Para o Programa Early Excellence Centre, uma poltica governamental valoriza a integrao, quando h investimentos em todos os setores educacionais e sociais, nutrio, sade, competncias familiares, igualdade de oportunidades de acesso e formao, respeito aos problemas de gnero incluindo educadores do sexo masculino e correspondente valorizao da profisso, cuidado e desenvolvimento de recursos humanos e ateno para as potencialidades das crianas (Pascal, Bertram, Gasper, Mould, Ransden & Saunder, 1999, p.11-3).

    A construo da proposta pedaggica o aspecto mais relevante da dimenso cuidar-educar. Conceber um projeto pedaggico no tarefa solitria do profissional encerrado nas quatro paredes de sua sala. No um documento exgeno que deve ser aplicado pela instituio. fruto de trabalho coletivo, de todos os profissionais, equipe da escola, gestores, pais e comunidade. Essa tarefa demanda um diagnstico da realidade escolar, a identificao do sujeito da educao, de concepes sobre a educao que se deseja oferecer, a definio e detalhamento de aes, a curto, mdio e longo prazos, a seleo e organizao dos recursos humanos e materiais. A avaliao deve acompanhar todas as etapas do trabalho. No a avaliao de resultados, mas a avaliao do processo de trabalho, na acepo de Perrenoud (1999), que parte dos interesses, necessidades, saberes e competncias das crianas. Avalia-se no s o percurso da criana, mas o caminhar da equipe, contemplando acertos e desacertos em busca das metas traadas.

    Em tempos passados, concepes de criana e educao propunham retirar as crianas das ruas para encerr-las entre quatro paredes, com cuidados mnimos de sade, higiene, alimentao e vigilncia total (Foucault 1977). Hoje, reproduzem-se quadros similares: disciplinar por meio de oraes e tempo de espera, exerccios

    grficos e contedos escolares, atividades fragmentadas ou pouco relevantes para a educao e o desenvolvimento infantil.

    Como no ensino fundamental, h filas para entrar, carteiras alinhadas, nucas atrs de nucas, mesinhas de quatro a seis lugares, onde apenas a proximidade fsica une as crianas. No h cooperao, expresso de necessidades individuais e coletivas. Prevalecem atividades iguais para todas as crianas, contrariando as propostas de autonomia, expresso e identidade infantis.

    O espao para aprender restrito sala de atividades, decorrente das concepes de educao (Nvoa, 1992). O ambiente de aprendizagem deve abranger todo o contexto, avanar nos espaos pblicos e privados, envolvendo pais, comunidade e outros agentes, o que parece no ocorrer.

    Na interao adulto-criana prevalece a viso adultocntrica. No se valoriza a aprendizagem decorrente das relaes entre crianas de diferentes idades, de adultos de diversos meios, espontnea, construda pelas prprias crianas em contato com seu meio, com objetos e situaes diversas. Grandes agrupamentos, com muitas crianas, inviabilizam o trabalho com qualidade. Em decorrncia, os profissionais esto sempre muito ocupados, dirigindo as atividades, distribuindo materiais, chamando a ateno das crianas, no dispondo de tempo para observar ou interagir com elas.

    necessrio pensar em formas de organizao do tempo e do espao, que evitem a rotinizao (Barbosa, 2000), que contemplem momentos individuais, em grupo, que valorizem ora a ao livre e deliberada da criana, ora a orientao do profissional, que incluam espaos internos e externos, o contato com mltiplos personagens da instituio, da famlia e da comunidade.

    O modelo de escolarizao, hegemnico, expande suas ramificaes nos cursos de formao de professores, em nvel superior, Pedagogia e, em nvel mdio, habilitao de Magistrio, com um currculo de orientao disciplinar carregado de metodologias para o ensino de Portugus, Matemtica, Cincias, Histria, Geografia, Educao Fsica e Artes (Kishimoto, 1999). As creches, destinadas a crianas de zero a trs anos ou at seis anos, reproduzem, em sua grande maioria, a perspectiva assistencialista, de maternagem (Rayna & Brougre, 2000). A falta de especificidade da

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    educao da criana continua nas formas de gesto, em que um mesmo supervisor responsvel pela faixa etria de zero a dez anos.

    A cultura que prevalece nas escolas infantis (Forquin, 1996) reflete valores cristalizados nos modelos de escolarizao.2 A desigualdade social e econmica trouxe a ansiedade na populao em busca da ascenso social via escolarizao, ocasionando a acelerao do aprendizado j na fase infantil. Nessa busca esquece-se a criana, sua forma especfica de aprendizagem e desenvolvimento. Toma-se a criana como pequeno adulto, com potencialidades para crescer rpido e aprender ainda mais depressa. Escolas infantis repletas de materiais grficos e computadores evidenciam essa pressa. A entrada no mundo tecnolgico, o domnio dos processos informatizados, antes mesmo da construo de processos de representao do mundo da criana, acaba invalidando o esforo para desenvolver a criana. Antes da palavra escrita, ocorre a representao, que simblica, motora, expressiva. preciso respeitar as caractersticas do desenvolvimento infantil. O letramento e a aquisio da linguagem requerem a construo de representaes mentais, de significaes para os cdigos escritos. No pelo ensino mecnico de smbolos escritos que se chega linguagem. preciso que a atividade simblica, responsvel pelas representaes construdas nas brincadeiras e atividades, seja experimentada para que a criana possa construir sua linguagem.

    Brincadeiras so formas de comunicao que permitem partilhar significados e conceber regras (Bateson, 1977; Bruner, 1996) para desenvolver e educar as crianas. Pelo brincar se pode compartilhar valores culturais e significaes, expressar idias, compartilhar emoes, aprender a tomar decises, cooperar, socializar e utilizar a motricidade.

    O direito educao infantil no respeitado no s pela taxa de demanda que, segundo o censo de 2000, gira em torno de 54% para crianas de quatro a seis anos e 10% para as de zero a trs anos. Na rede de educao infantil nos municpios de So Paulo e Grande So Paulo, as creches que atendiam crianas de zero a seis anos, em tempo integral, passam a oferecer, s de zero a trs anos, perodo parcial ou integral; crianas de quatro a seis anos passam a ser atendidas prioritariamente em tempo parcial; as crianas de seis anos so absorvidas no ensino fundamental sem adequaes no projeto pedaggico; as indefinies da integrao entre o

    cuidado e a educao levam suspenso de recursos destinados s creches atravs das SMAS; em muitos municpios o atendimento restringe-se prioritariamente faixa etria de cindo a seis anos; em decorrncia de falta de financiamento prprio para educao infantil a oferta de perodo integral reduzida; a ampliao do atendimento sofre reduo ou paralisao. So desafios que precisam ser enfrentados.

    A LDB determina a transferncia das creches para o mbito educacional e exige a formao em nvel superior de todos os profissionais. Tais medidas tm criado impasses e distrbios que redundam em maior discriminao: leigos so demitidos, h reduo ou paralisao do atendimento, preconceitos relacionados s funes e equiparao de cargos, convnios diferenciados entre SMAS e SME dificultam a integrao. Prticas centralizadas de aquisio de material prejudicam a disponibilidade e adequao dos recursos no cotidiano; projetos sobre a prtica pedaggica definidos de modo exgeno, em desrespeito ao profissional como ator do processo; predomnio de concepes de educao infantil fragmentadas, voltada para a escolarizao ou apenas para o cuidado; precariedade de infra-estrutura dos equipamentos, especialmente das entidades conveniadas; complexidade e diversidade na estrutura, no funcionamento e no tamanho das redes que, se, em Limeira, conta com 13 creches, na cidade de So Paulo, ultrapassa 700 unidades. A formao profissional constitui a principal ao capaz de enfrentar a maioria dos problemas da educao infantil.

    Outro desafio a implementao do complexo e polissmico conceito de qualidade na educao infantil (Dahberg, Oliveira-Formosinho & Formosinho, 2001; Moss & Pence, 1999). Quer se trate de produtos (leis e normas sobre a estrutura e funcionamento da educao infantil, financiamento, etc.), processos (formao profissional, elaborao de propostas pedaggicas, inovaes, pesquisa, etc.) ou concepes, necessrio um esforo para que cada segmento da sociedade cumpra sua funo para melhorar processos, produtos e concepes que beneficiem a educao de crianas pequenas.

    No se pode pensar em desenvolvimento integral da criana sem incorporar o corpo. A educao infantil esqueceu que o corpo o primeiro brinquedo. No s na perspectiva de jogo de exerccio, mas de representao de brincadeiras pelo movimento. Rodar como pio, cantando parlendas e msicas

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    que falam sobre a alegria de rodopiar, expressa o prazer anunciado por Caillois (1967), no ato da vertigem. Unir a representao pelo gesto da palavra cantada e recriada ser criana, deixar que o corpo se una ao ldico e expresse os cdigos da cultura em que a criana vive.

    Um dedo que se transforma em personagem da histria, que encanta qualquer criana, inclusive no recinto frio e ameaador do hospital, que a faz esquecer a dor fsica, a violncia que est submetida, quando afastada de seus familiares, amigos, brinquedos, traz o equilbrio necessrio para superar as dificuldades (Lindquist, 1993). como uma resilincia para a criana (Kotiarenco, 1997). Torna o hospital e as condies hospitalares mais humanas. No anula a infncia. Permite que a criana seja criana, no importa o lugar em que esteja.

    O corpo carrega a dimenso de integrar emoes, contatos sociais e relaes (Wallon, 1966). O cotidiano de nossas prticas tende a separar o corpo de outras dimenses. mais uma vez a violncia simblica (Biarns, 1999) de construes sociais que esquecem a criana, o brincar, o prazer, a emoo, a parceria, a socializao e a recriao.

    A Educao Fsica, no processo de construo de seu campo disciplinar, prioriza a ginstica e o esporte. Despreza a singeleza da natureza que criou o ser humano dotado de dimenses que se integram. Separou o homem em biolgico, social, emocional e cognitivo. Criou esferas de estimulao para cada dimenso e esqueceu-se de que o ser humano o conjunto delas. A nova taxionomia criada pelas reas do conhecimento desintegrou o ser humano, impediu o brincar, emoes que conduzem aes, possibilitam relaes e representaes.

    O corpo se integra na representao e no brincar, quando o faz-de-conta acontece em ambiente dotado de materiais e brinquedos, similares ao ambiente natural em que vivem as crianas. Uma cozinha, na dimenso da criana, possibilita andar, abaixar, esticar, movimentos que se integram representao de ser cozinheiro, dona de casa, me, que possibilitam a socializao, a explorao. No a ao que dirige a representao, mas a representao que dirige a ao (Vygotski, 1988, 1982). Nesse espao, a criana se curva para pegar um beb, fica de p para preparar a comida no fogo, d uma volta para chegar ao bero, anda em direo ao amigo que desempenha o papel de motorista. A integrao entre o corpo, o movimento e os objetos chamados

    brinquedos ou brincadeiras que movimentam o corpo fundamental para a educao da criana pequena.

    No mundo das miniaturas se brinca sozinho, sentado, com pequenos brinquedos. Mesmo que a representao esteja presente, no ocorre a ampla motricidade, os amigos para dividir brincadeiras. O brincar solitrio explica-se pelo novo modo de vida da famlia que se reduz, s vezes, me, que trabalha e deixa a criana, em recintos pequenos, com a TV ou com seus brinquedos.

    Num mundo violento em que novas configuraes inauguram o novo milnio, com o terrorismo, a intolerncia, o radicalismo, preciso recuperar as cem linguagens da criana (Edwards, Gandini & Forman, 1999), lendas da Amaznia (Faria, 1999), os muiraquits, os contos e mitos indgenas, o velho Chico , o rio da integrao nacional, que corta inmeros Estados, trazendo a me dgua, o nego do rio, o cachorro do mato, o barco fantasma, o boto cor de rosa que mergulha nas guas claras dos rios amaznicos e carrega moas bonitas para dentro do rio.

    Nas cidades do interior, a mula sem cabea assombrava crianas, nas noites escuras de Brodsqui, nas lembranas de Portinari. Nos tempos da escravido, meninos de engenho, da Casa Grande, brincavam, com seus irmos e primos, de ser dono de engenho de acar, de construir um capa-bode, uma engenhoca para obter o caldo da cana. As brincadeiras do moleque sapeca, o menino-diabo, que, na descrio de Machado de Assis, batia no lombo do negrinho da senzala, seu companheiro de brincadeira, com uma vara de laranjeira, transformando-o em burro de carga ou, ainda, o capito do mato ou capito do campo, o caador de negros, o cangaceiro, com chapu e espada formando o batalho do serto nordestino so as marcas do imaginrio infantil, personagens construdas nos contextos sociais da escravido, do canavial, do incio da industrializao, compartilhadas pelo mundo infantil, na forma de faz-de-conta.

    O brincar era possvel nas ruas, quintais, nas casas espaosas que abrigavam uma famlia ampliada com avs, tios, amigos. Nesse locus, a socializao e o aprender novas modalidades de brincadeiras eram o ofcio da criana. Construam-se pies de madeira, cascas, sementes de frutas e legumes; bonecas de espigas de milho e palha, acompanhadas de histrias dos tempos passados.

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    Hoje, os pais no tm tempo. Guardaram nas gavetas do passado seus sonhos, sua histria, brinquedos e brincadeiras e compram brinquedos para os filhos. a rotinizao da infncia (Barbosa, 2000) em ambientes fechados, em salas de aulas com crianas apenas da mesma idade, nos cursos extracurriculares que se multiplicam para o desespero dos pequenos. Tais prticas, homogeneizadoras, liberam os pais e ocupam a criana, eliminando o tempo da infncia.

    Fala-se da importncia da infncia, mas so poucos os projetos com sua participao. Os adultos falam pelas crianas, que no tm voz, no so ouvidas.

    Com a urbanizao, industrializao e novos modos de vida, esqueceu-se a criana, encurtou-se a infncia, a criana tornou-se um precoce aprendiz.

    Em 1840, Froebel (1913) introduziu o ldico nos jardins de infncia. Nas Cartas s Mes (Froebel, 1912), orientava-as para brincar com seus filhos, estimular a representao simblica, utilizando msicas, danas, movimento e o corpo. Sua proposta inclua a formao das jardineiras, o uso de brinquedos (de construo) para ensinar nmeros, formas, conceitos.

    Ao propor movimentos associados representao, o psiclogo da infncia deixou seu legado educao infantil (Kishimoto, 1996). Mas a apropriao de teorias nem sempre caminha conforme os pressupostos do criador. Da teoria froebeliana foram mais divulgados os dons que serviram para ensinar por meio dos jogos. a pedagogia dos jogos dirigidos, que prevaleceu na expanso dos jogos froebelianos e conquistou o espao da educao infantil. Nesse caminho, Dewey introduziu o faz-de-conta na escola, trouxe os brinquedos na dimenso da criana, evidenciou a importncia da representao dos problemas da sociedade nas brincadeiras infantis. Outros, como Montessori, continuaram a enfatizar jogos para encaixar, seriar, somar... (Kishimoto, 1998). No longo caminho percorrido pela constituio do campo da educao infantil, entre a assistncia e a educao, a maternagem e a profissionalizao, a escolarizao e a vivncia de experincias significativas, o brincar foi sendo marginalizado.

    A escola fechou as portas para a cultura, tirou as brincadeiras, privilegiou o conhecimento sistematizado (Bruner, 1996). A educao para o brincar deu lugar educao pelo brincar e educao para outras finalidades.

    Surge a violncia simblica (Biarns, 1997) na forma de organizar o ambiente da escola,

    com salas abarrotadas de mesas e cadeiras, no quadro para o reproduo da escrita, em armrios que impedem a autonomia e a escolha de materiais, que fecham as portas para o imaginrio, na repetio de montonos exerccios motores ou na proibio da motricidade inerente s crianas pequenas. Multiplicam-se atividades repetitivas e fragmentadas com materiais, como papel e lpis, que poucas oportunidades oferecem s crianas de se engajar na explorao de seu ambiente. Estruturas inadequadas no disponibilizam profissionais em tempo e em nmero suficientes para o desenvolvimento de propostas das crianas. semelhana dos orfanatos e asilos (Foucault, 1977), a escola fechou as portas para a expresso e a explorao da criana.

    O censo de educao infantil (2000) aponta a existncia de brinquedos em 84% das escolas, jogos didticos, em 74%, material para expresso artstica, em 62%, sucata, 83% e livros de literatura em 58% dos estabelecimentos (INEP, Censo 2000).

    Tais diagnsticos, tipo surveys, no explicitam a adequao dos materiais e brinquedos nem seus usos. Geralmente, mesmo disponveis nas escolas, ficam guardados, so utilizados de vez em quando ou so insuficientes para o nmero de crianas ou inadequados para a faixa etria. Para Machado (2001) pesquisas similares indicam que os materiais tecnolgicos encontram-se em quase todas as escolas paulistas, mas 54% esto sem condies de uso, a maioria no conhece os programas da TV Escola (66%) e apenas 32% conhecem algumas programaes.

    Kishimoto (1998), ao pesquisar os brinquedos e materiais pedaggicos na rede municipal de So Paulo, no perodo de 1996-1998, aponta a relevncia da pesquisa quantitativa complementada pela qualitativa. Enquanto os dados quantitativos evidenciam a pouca disponibilidade de brinquedos de faz-de-conta, construo e socializao e um alto percentual de recursos que favorecem a escolarizao, a pesquisa qualitativa indica que tais materiais, mesmo disponveis, so pouco utilizados em decorrncia de concepes de criana e de educao associados a fatores estruturais.

    Em Braga, Portugal, uma criana de quatro anos dizia professora que gostaria de brincar sem ter que planejar, executar e avaliar no momento dos pequenos grupos.

    No bojo da questo est a concepo de brincar como ao livre, iniciada, motivada e mantida pela criana. Como admitir a descrio

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    prvia de uma ao que nasce das motivaes da criana, no tem rumo, no pode ser antecipada? O High-Scope3 cria um ambiente propcio ao ldico, quando usado conforme as intenes da criana, em um tempo e espao que fazem parte do ato ldico. Se o modelo obriga a planejar a atividade que a criana escolhe livremente, antes da ao de brincar, h uma incoerncia que precisa ser explicitada. Descrever a atividade antes no substituir o ldico pelo no brincar? O ldico imprevisvel. Os temas e processos do brincar nascem e se desenvolvem no contexto ldico e mudam por razes que, s vezes, nem o sujeito que brinca pode explicar. Narrar o resultado da brincadeira ato pedaggico relevante para a aquisio da oralidade, mas descrever o que se pretende fazer descontextualizado do processo de brincar , em muitos casos, prender o ldico ao quadro dirigido das prticas pedaggicas. A rotina do High-Scope4 de planejar, executar e rever ope-se ao ato ldico que prescinde da reviso. O brincar se esgota no prprio processo de brincar. Por seu carter improdutivo, no h um produto para ser avaliado. Seria mais coerente deixar a criana escolher a rea, brincar no tempo de atividade livre, sem exigir explicaes (Brougre ,1995; Caillois, 1967; Huizinga, 1951; Kishimoto, 1995).

    Para Buges (2000), citando Foucault (1988), o currculo, em geral, instrumento de poder sobre a criana. J outras propostas como as escolas italianas, as do norte da Europa e os jardins de infncia japoneses disponibilizam brinquedos e materiais para uso independente (Kishimoto, 1995, 1997, 1998). Cabe analisar se estruturas dirigidas, livres ou ambas possibilitam uma melhor organizao das atividades infantis.

    Pouco se sabe se o jogo livre ou a atividade dirigida contribui para a qualidade da educao infantil. A educao para o brincar5, pelo brincar6 e para outras finalidades7 tema que exige pesquisa. Leavers (2000), prope uma escala para avaliar o envolvimento da criana, incluindo o brincar, com 10 princpios8. 1 repartir o espao da classe em cantos atrativos; 2 controlar equipamento de cantos e substituir os materiais pouco interessantes pelos mais interessantes; 3 introduzir novos materiais e atividades no-convencionais; 4 observar as crianas, sondar seus interesses, conceber e oferecer atividades relacionadas; 5 sustentar as atividades por meio de impulsos estimulantes e intervenes enriquecedoras;

    6 estimular a iniciativa das crianas e sustent-la por meio de regras e acordos; 7 examinar sua relao com cada criana e a das crianas entre si e procurar melhor-las; 8 oferecer atividades que auxiliem as crianas a explorarem o mundo dos sentimentos, valores e experincias; 9 reconhecer as crianas que tm problemas socioemocionais e ajudar por meio de intervenes que resultem em seu bem-estar e 10 reconhecer as crianas que tm necessidades particulares no plano do desenvolvimento e ajud-las por meio de intervenes que visem aumentar sua implicao nos domnios ameaados (Leavers, 2000, p.311).

    Tais princpios focalizam espaos e materiais para brincar e podem dar ao profissional melhores condies para avaliar e decidir sobre alternativas que ofeream equilbrio entre a orientao e a livre ao da criana de acordo com suas possibilidades e necessidades.

    O brincar o caminho que possibilita a flexibilidade, a recriao, as relaes e a comunicao entre os homens (Bateson, 1977).

    Brincam apenas as pessoas que se comunicam, que decodificam a linguagem, os gestos, as significaes de cada cultura. O autor aponta que os loucos no conseguem se comunicar por meio de brincadeiras. Na demncia, as vises se misturam realidade. A representao da perseguio leva o sujeito a pensar que est sendo perseguido. O sujeito no discrimina o sonho da realidade, o imaginrio do real. No se pode misturar o real com o imaginrio. Afirmar que os brinquedos de guerra podem tornar a criana violenta considerar que a criana tem psicose, confunde o real e o imaginrio. Se consideramos a educao como a busca de finalidade, pode-se admitir a interdio de brinquedos de guerra na educao das crianas pequenas assim como se escolhe uma religio, uma atividade ou curso de lngua estrangeira. No se trata de misturar a realidade com a fantasia.

    Se a Constituio de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional de 1996 so marcos histricos, conceituais e simblicos, por verem a criana de zero a seis anos como sujeito de direitos e proporem a igualdade de oportunidades para uma educao de qualidade, preciso analisar como tais significados so transformados em aes. Subterfgios retricos criam instrumentos de poder sobre a criana como os currculos e orientaes exgenos (Buges, 2000). Para ultrapassar posturas que no chegam a

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    uma Pedagogia da Transformao, preciso eliminar o isolamento, valorizar os saberes profissionais (Nvoa, 1992), caminhar em direo s comunidades educativas (Machado, 1999), construir, em parceria com a universidade, os centros de formao, a escola, a famlia, a comunidade e as crianas, um processo de formao inicial que se integre continuada, que melhore a qualidade da educao das crianas e de suas famlias (Oliveira-Formosinho & Formosinho, 2001), superando os desencontros na formao dos profissionais de educao infantil (Kishimoto, 1999).

    NOTAS

    1. Conferncia de abertura. 2. Na educao infantil o termo escolarizao

    utilizado como inadequao de prticas de leitura, escrita e clculo, desrespeitando a aquisio de experincias significativas da criana.

    3. um modelo curricular para a infncia que prioriza reas do conhecimento e formas de organizao da rotina. Ver Oliveira Formosinho (1998) e Holmann & Weikart (1997).

    4. O High-Scope, embora com rotina e reas fixas, distancia-se do modelo escolarizado.

    5. Respeita-se a iniciativa e os interesses das crianas no processo de brincar.

    6. O brinquedo instrumento da educao. um jogo educativo.

    7. A educao infantil deve prever experincias estruturadas que possibilitem a aquisio de experincias significativas, mas que no podem ser classificadas como ldicas.

    8. Leavers (Blgica) construiu uma escala de envolvimento com trs nveis: nvel 1: criana ausente, ao estereotipada e repetio de gestos elementares; nvel 3: a criana tenta fazer uma construo, escutar uma histria, mas no h sinais que mostram motivao, concentrao; e nvel 5: a criana est absorvida na atividade.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BARBOSA, M.C. Fragmentos sobre a rotinizao da infncia. Revista Educao & Sociedade, v.25, n.1 p.93-114, 2000.

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    BIARNS, J. Universalit, diversit, sujet dans lespace pdagogique. Paris, Harmattan, 1999.

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