a jornada de um herdeiro adaga de dois gumes · não apresentava más-formações era um menino...
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Copyright © Vanessa Nilo, 2014 Registrado no Escritório de Direitos Autorais
Primeira Edição
Revisão: Vanessa Nilo
Capa: Vivian Belinelli
Mapa: João Marcos Oliveira
Revisão de paginação: André Mattana
“A máscara e o arco constituem os
poderes que o levarão adiante. Um o mistério,
o outro o dom.”
1374 Vilarejo de Vougan
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CAPÍTULO UM
hálito de Iknoa abarcava toda a terra trazendo os
frios ventos da gélida estação. O prelúdio para o
inverno já começara mais rigoroso e breve estaria nevando. Era
tarde e a chuva que estivera fina durante a tarde tomava grandes
proporções agora. Numa casa aos pés da colina um homem
fitava pela janela o vilarejo logo abaixo, a testa franzida,
mastigando vagarosamente um pedaço de pão meio endurecido.
Alguns transeuntes lá longe corriam para o abrigo de suas casas
de teto de palha e paredes de pedras; os carneiros aqui e ali eram
arrebanhados em direção aos estábulos ou coxias. Galinhas
procuravam abrigo debaixo de carroças cobertas de feno que em
breve estaria encharcado.
Temístocles Magnos Belfut observava uma casa em
especial do vilarejo – seu único olho bom encarava com
insistência a casa que mal podia ser vista àquela distância. Nos
últimos meses conhecera Crekis e sua mulher Inanna bem como
sua jovem filha, Jasle, que breve ganharia seu primogênito. Eles
haviam chegado à Vougan no último verão, e os pais da menina
logo trataram de procurarem-no a fim de auxílio medicinal à sua
menina. Temístocles não hesitou em oferecer-lhes o que tinha
conhecimento, logo tornou-se amigo estimado pela família.
Durante aquela tarde os gritos de Jasle podiam ser
escutados ao longe encharcando, assim como a água, toda a
extensão do vilarejo e mais além. Quando a escuridão
tempestuosa desceu sobre os bosques os gritos da jovem mãe
cessaram abruptamente. Temístocles esperava em sua casa ao
sopé da colina. Mas esperava pelo o quê? Obviamente pelo
nascimento da criança, mas não era por isto realmente que
esperava... era como se estivesse aguardando uma consequência
de outro episódio. Ele não conseguia explicar nem para si
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mesmo. Levantou pesadamente e andou pela casa. Conjecturava
se deveria descer até Vougan, procurar Jasle, falar com ela e,
talvez, livrar-se da sensação negativa que sentia; mas Calamissa
iria ajudá-la, ela era parteira, então do que adiantaria estar
presente? Ele auxiliara a jovem o tanto quanto pudera e ainda
assim não chegara à conclusão sobre a aparente doença que a
acometeu logo depois de um suposto assalto. Imaginava que o
trauma pudera adoecê-la, mas a vinda de sua criança abafaria
qualquer pesadelo passado, a nova vida viria fluir e semear boas
novas. Tais pensamentos, no entanto, não serviam para
apaziguar seu coração. Sem motivo aparente apagou o único
archote que iluminava a residência que caiu em trevas. O
homem ficou parado junto a uma parede; a respiração lenta e
superficial. Caminhou até a porta e escancarou-a para o vento e
a chuva, viu ao longe, a lua emprestava um brilho tênue sobre a
cena, um homem a cavalgar na direção da plantação de trigo e
para a estrada que levava até Freneto. Imaginou ser Crekis indo
levar a Nassara a boa notícia. Temístocles suspirou aliviado.
Algo mais estava por vir, insistia a sensação dentro dele, a
questão era: o quê? Cansado voltou ao banquinho que estivera
próximo da lareira apagada e ainda nas trevas pegou o alaúde
que descansava no chão, dedilhou o instrumento solenemente.
Estivera triste e o sentimento permanecia. Uma tristeza
agourenta que ele não sabia de sua procedência. Esticou as
pernas e sentiu os pés tocarem a cesta que lhe fora presenteada
na manhã do dia anterior. Ouviu o pequeno pote de barro
queimado quebrar e logo sentiu o cheiro adocicado do mel
vazando pelo chão. Puxou os pés para si, limpando a ponta dos
dedos do líquido viscoso. Respirou fundo e largou o alaúde com
um baque fraco no chão. Fechou os olhos e seus braços
penderam molemente ao redor do corpo.
Uma batida forte na porta indicou que alguém o visitava
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despertando-o de seu cochilo. Levantou novamente de modo
pesado e sem ânimo foi arrastando os pés descalços até a
entrada. Puxou a porta para si destrancando um discreto ferrolho
e imediatamente o chão de terra batida foi respingado de água.
Os crisântemos trançados como uma grande guirlanda e presos
na porta balançaram com a força do vento. Ele encarou os olhos
dela, eram grandes e castanhos, com cílios longos e negros. Ele
logo reconheceu Inanna apesar do grosso e atípico manto preto
que usava em torno da cabeça como um capuz. Trazia nos
braços uma criança. Sem cabelos, sem dentes, que chorava
amargamente um choro sem lágrimas, mas de poder sonoro
indiscutível.
A mulher empurrou o cesto contra o peito de Temístocles
com brusquidão, encarava-o com algo que se aproximava a ódio.
O velho segurou o fardo que lhe era imposto tão logo a mulher
fez menção de soltá-lo no chão. Sem dizer palavra foi-se virando
para a noite tempestuosa ignorando os chamados do homem,
voltou-se para ele apenas quando o aperto doloroso em seu
braço informou que ela não iria embora tão rápido assim.
– Que isto significa? – inquiriu-a rispidamente.
– Se semeastes o mal em meu neto, Temístocles, tens
agora a sina de tomar conta dele. Não mancharei o nome de
minha família com este rejeitado! – berrou Inanna enlouquecida,
olhava desvairada por sobre os ombros e então para o fardo nos
braços do velho, voltava ainda os olhos para o céu como se
temesse uma retaliação dos deuses.
Antes que Temístocles pudesse retorquir algo Inanna já
se lançara para a noite tempestuosa escorregando no chão
enlameado, sumindo de vista rapidamente. E o homem
permaneceu onde estava pasmo com o que acabara de acontecer.
Fechou a porta com estrépito, o choro do menino coalhou seu
sangue: nunca estivera com uma cria tão pequena! Acendeu o
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fogo e sentou-se no chão com o cesto a fim de procurar o que
assustara a mulher que era um poço de dedicação com a filha...
Observou que a criança não era aleijada tampouco corcunda;
não apresentava más-formações era um menino perfeitamente
proporcional. Enquanto observava a criança ocorreram-lhe os
dizeres de Inanna. Como ele teria influenciado o que quer que
fosse se nem laços de sangue possuía com o menino? Do
contrário, ela era quem devia respostas!
O menino abriu os olhos choramingando com fome. Com
os olhos arregalados postos em Temístocles a criança
presenteou-lhe com um sorriso desdentado. Um sorriso normal,
naturalmente, para um recém-nascido. Contudo, aquela a criança
possuía dois pares de olhos nunca vistos por Temístocles.
Desacreditou do que via. Como poderia?
Já era mais de meia noite quando Temístocles vestiu uma
capa e com o cesto ainda com seu conteúdo choroso desceu o
caminho tortuoso até Vougan. A chuva dera trégua mas o vento
não. Irado descia rumo à casa da família de Jasle. Pediria
esclarecimentos, que ele poderia fazer pela criança? Nada!
– Abra! – gritou quando não obteve resposta para as
batidas – Abra Inanna!
Quem abriu a porta fora uma mulher que Temístocles
não conhecia.
– Ora, que queríeis?
– Chame Inanna.
– Ela não está, meu senhor. Ninguém está nesta casa.
– Como não? Onde estão os donos dessa residência? – o
menino gritou com a voz aguda e começou a chorar com
escândalo.
A mulher aparentemente desconfortável balançou a
cabeça. Temístocles insistiu, contudo não obteve nenhuma
resposta. Tornou a deixar Vougan ainda com o fardo em seus
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braços. Sua vida tomaria rumos que ele nunca imaginara. E
duvidou que no dia seguinte encontrasse mais respostas do que
naquela madrugada.
O dia raiou com a promessa de muito frio, porém sem
chuva. Temístocles despertou com os berros do menino, dentro
de seu cesto, que estava vermelho de tanto gritar. Sem saber
como proceder Temístocles foi-se até onde estocava suas
inúmeras garrafas de vinho, cerveja – ainda guardava algumas
garrafas de naran das Terras Goldeans – e trouxe um pote de
mel que ele mesmo recolhera de uma colmeia fazia algum
tempo. Molhou o dedo indicador no líquido espesso e colocou-o
na boca do pequenino que o chupou agradecido. Mas sua fome
não seria tão facilmente atenuada. Temístocles precisava
arrumar-lhe uma ama de leite. Levando-o consigo desceu o
caminho tortuoso até o vilarejo uma segunda vez e ali procurou
por alguns conhecidos na esperança de uma recente mãe poder
emprestar-lhe o seio.
– É o homem que amaldiçoou o neto de Crekis?
– Sim... soube que suas infusões tornaram a criança...
– Olhos do próprio Iknoa, tão gélidos quanto o espírito!
– Matou a mãe e sumiu com seu corpo, a família foi-se
embora de tamanho pesar...
– A menina, Jasle, fugiu com outro homem! Sim, e
levando o filho recém-nascido.
– Que desonra, que desonra!
Tais comentários eram sussurrados de ouvido em ouvido
e em menos de um dia o boato que Temístocles fizera mal à
família de Crekis já rodeava todo o povoado. O homem era
evitado enquanto descia pelas ruelas de Vougan e ninguém lhe
dizia palavra. Mães lançavam-lhe olhares chorosos e escondiam
suas crianças como se temessem que ele os amaldiçoasse.
– Estão todos loucos! – gritou com ferocidade quando se
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encontrava perto da taberna de Eric. – Como podem falar desta
criança como se fosse um mau espírito? – puxou as vestes de
uma mulher muito gorda e de pele parda fê-la olhar para dentro
de seu cesto e bradou – Vês algo realmente terrível nesta
criança? Talvez seja apenas cega!
Nada que dissesse convencia as mulheres esquivas.
– Irão deixar esta criança morrer de fome? Ele não é
amaldiçoado, só teve a má sorte de nascer diferente.
Amaldiçoadas sois vós!
– Temístocles – chamou uma mulher baixa de cabelos
loiros – Venha.
A mulher tomou o cesto dos braços trêmulos de raiva do
homem e fê-lo segui-la até sua casa. Caminharam rapidamente
através algumas de ruelas e logo estavam subindo pelo pequeno
lance de escadas que levava para dentro de uma casa espaçosa e
atulhada de bugigangas.
– Marlo! Marlo!– gritou ela e um homem ruivo que
estava do lado exterior da casa enfiou a cabeça por uma janela.
– Não terminei de cortar a lenha ainda co... –
interrompeu-se quando viu Temístocles – Que queríeis aqui?
– Marlo, este homem precisa de ajuda, chama a filha
mais velha de Críton e peça-lhe que, por favor, corra até aqui. –
Sou Ura – apresentou-se a mulher enquanto embalava o menino
fora do cesto e observava o marido sair – E sei quem és.
Temístocles Belfut.
– Agradeço a ajuda, Ura...
– Arre! Conheci a mãe desta criança... Pobre criança... –
ela fitava o menino com os olhos lacrimosos – Cego, imagino...
Mas seus olhos não parecem mortos, têm algum brilho, não é?
A filha do homem chamado Críton chegou, manchas
vermelhas em suas bochechas confirmavam que viera correndo.
– Marlo mandou-me vir até aqui, que se passa Ura?
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– Menina, podes fazer uma bondade a esta criança? Sei
que não faz muito que uma criança saiu de seu ventre e duvido
que teu leite tenha secado. Eu mesma daria alimento a este
menino, porém não sou mais tão jovem quanto tu, querida.
Desconfiada e olhando feio para Temístocles a moça
pegou a cadeira que Ura oferecia e sentou-se virando as costas
para o homem.
– Que ele faz aqui, Ura? Ouvistes os boatos que...
– Bobagem, menina, tudo bobagem. – virou-se para
Temístocles e chamou-o para fora onde um vento cortante
levantou suas vestes. Ela guiou-o até os fundos da casa onde
Marlo havia pouco cortava um enorme tronco de abeto, várias
pinhas pululavam no chão e Temístocles desconfiou que logo
mais virariam munição para uma guerra de crianças –
Temístocles, não posso dizer-te o motivo de dispensar-lhe tantas
ajudas, mas... Acreditas se te disser que a menina Jasle foi
levada à altura da meia-noite da noite passada?
– Estás dizendo que Jasle foi raptada? – inquiriu
Temístocles cravando o olho bom na mulher.
– Não sei... Mas é o que parece. Receio que além de mim
e Marlo, meu esposo, ninguém mais viu o que julgamos ter
presenciado. Os boatos crescem com rapidez por aqui, porém
afirmam que Inanna e outra mulher partiram a pé,
embrenharam-se pelo mato como fugitivas, somente deram-se
ao trabalho de trancar a casa... Nunca tive muito apreço por
Inanna, mas a menina Jasle... – a mulher soluçou baixinho – Irei
pedir para que Lilá amamente o menino por algum tempo, se
puderdes pagá-la...
– Assim o farei.
– Certo. Temístocles, este segredo, meu e de Marlo, só
será compartido por vós. Não nos coloque em maus lençóis, não
diga a ninguém do que nós sabemos ou julgamos saber... Se a