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    A Invenção da Moda  Massimo Baldini 

    Introdução

    «Durante milhões de anos, vestuário e ornamentos foram

    usados de modo a que pudessem comunicar as suas maiores

    necessidades. As pessoas. A tradição. O progresso. O novo

    tribalismo. A autenticidade. No meio de tudo isso apenas um

    único factor permaneceu idêntico: a extraordinária capacidade

    semiótica do corpo humano, do vestuário e dos ornamentos».

    Ted Polhemus

    No seu interessante ensaio de meados dos anos noventa do século XX, o

    antropólogo Ted Polhemus, autor de estudos sobre movimentos e sobre  street styles,

    observou: «Somos a única criatura que muda intencionalmente o seu aspecto. O

    leopardo não pode mudar as suas manchas e o camaleão, apesar de poder mudar de

    cor, não se pergunta todas as manhãs: “De que cor quero ser hoje?” A realidade sócio-

    cultural condiciona, sem dúvida, todos os seres humanos a fazer essas escolhas, mas

    isso não nega os determinismos não-biológicos e não-genéticos do aspecto do   homo

    sapiens»1.

    A moda joga um papel central nesta mudança intencional. É a moda que nos

    convida a escolher entre a sedução e a elegância, entre o conformismo e a contestação,

    entre a juventude (cada vez mais  in) e a maturidade (cada vez mais  out). Com efeito,

    nos dias de hoje, a moda tornou-se um fenómeno social de difícil definição dada a sua

    amplitude e a diversidade de opiniões de que tem sido objecto.

    A moda, escreveu Sapir, para alguns é “uma espécie de capricho”, ao passo que

    para outros é apenas «uma nova e incompreensível forma de tirania social»2. Para

    Stoetzel, a moda é «a mudança gratuita, a mudança por amor à mudança»3. E há ainda

    quem considere que é um fenómeno essencialmente irracional e moralmente 

    1 Ted Pplhemus,  Scampling & Mixing , in AAVV,  Moda: regole e rappresentazioni, organização de

    Giulia Ceriani e Roberto Grandi, Angeli, Milão, 19952

    , p. 109.2

    Edward Sapir,  Fashion, in “Encyclopaedia of the Social Sciences”, Collier-McMillan, Nova Iorque,1935, vol. VI, p. 140.3 Jean Stoetzel, Psicologia sociale, Armando, Roma, 1964, p. 278.

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    condenável. Por sua vez, Barber e Lobel entendem que «a moda é como o crime, tem

    muitos referentes, ou seja, abrange tipos extremamente diferentes de comportamento

    social»4. Por isso, quando se deseja falar sobre ela, convém sempre, de modo a evitar

    generalizações ilegítimas, delimitar muito bem as coordenadas espácio-temporais eadoptar a máxima áurea dos lógicos medievais: «distingue frequenter ». 

    1. Da estética de George Brummel à dos “vendedores de rua” 

    Como acabámos de referir, deram-se inúmeras definições de moda mas uma

    coisa é certa: é um fenómeno social bastante complexo e volúvel, sobretudo a partir da

    segunda metade do século XX. «Outrora – escreve Volli –, nos tempos felizes em que a

    burguesia era a Burguesia e a moda era a Moda, vigorava o modelo gotejante»5, isto é,

    a moda difundia-se descendo das classes altas para as mais baixas. Nessa época, tudo

    era muito mais simples no campo da moda. Mas desses tempos, dos quais se podem ler

    as crónicas sobre as histórias da moda, resta muito pouco.

    Quando se concretizaram as consequências implícitas nas premissas, definidas

    entre o fim do século XVIII e meados do século XX, o império da moda fragmentou-se

    em mil cidades-estado. E, assim, em pouco mais de 150 anos, passou-se da estética de

    George Brummel para a estética dos “vendedores de rua”. Actualmente, os seguidores

    da moda já não são peregrinos, como acontecia nos anos cinquenta do século XX, isto é,

    não perseguem uma meta precisa, um cânone estético bem delineado, uma gramática

    de regras mutáveis mas temporariamente adequadas. Agora são nómadas, sem uma

    meta, sem um único caminho diante dos olhos e prosseguem, no mundo da moda, aos

    ziguezagues como quem vai colhendo ervinhas pelo campo.

    Vivemos numa sociedade de modas, onde as únicas coisas sem marca [ griffe]são as embalagens de sal de cozinha. E vendo as prateleiras das boutiques ou entrando

    no supermercado, cada vez mais nos ocorre a interrogação: quais foram os factores que

    levaram à universalização da aposição da  griffe  (dos  slips  aos azulejos da casa de

    banho) e à estetização até das fraldas? Quais são as causas, próximas ou remotas, da

    atmosfera vagamente anárquica da moda dos dias de hoje e dos seus ritmos frenéticos,  

    4

    Bernard Barber, Lyle S. Lobel, “ Fashion” in women’s Clothes and the American Social System, in“Social Forces”, vol. 31, p. 124.5 Ugo Volli, Contro la moda, Feltrinelli, Milão, 1988, p. 103.

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    evocando a palavra de ordem dos Guardas Vermelhos de Mao, de “revolução

    permanente”?

    Em síntese, eis os dez factores que, em nosso entender, criaram as premissas da

    situação actual: 

    a. A Revolução Francesa e a abolição das leis sumptuárias 

    Durante séculos, as leis sumptuárias6 regulamentaram minuciosamente as roupas,

    as cores, os tecidos que cada categoria social devia usar. As leis sumptuárias do século

    XIV, que vigoravam em inúmeras cidades italianas, previam geralmente a isenção das

    proibições apenas «às mulheres e filhas de nobres, de cavaleiros e de doutores em

    direito e medicina»7. Em Milão, em 1565, as leis sumptuárias proibiam os “artífices e

    vendedores” de usar roupas de seda, que eram de uso exclusivo dos nobres. Os

    camponeses «estavam proibidos de ostentar o mínimo vestígio de ouro, de prata ou de

    seda»8. Obviamente, além dos vestidos para raparigas solteiras, para mulheres casadas

    ou para viúvas, também estavam regulamentados os que deviam usar as prostitutas

    (malae mulieres). Por exemplo, em Pádua deviam usar um capuz vermelho, em Milão

    não podiam usar roupas pretas, em Dijon estavam proibidas de usar a touca e o véu.

    Estas leis foram totalmente abolidas – embora não fossem aplicadas de modo

    rigoroso há já muito tempo – pela primeira vez num país europeu, apenas em 1793.

    Com efeito, nesse ano, em França, a Convenção aprovou um decreto que permitia a

    todos os cidadãos vestirem-se livremente consoante os seus gostos. Este decreto

    afirmou o princípio democrático da liberdade de vestuário, mas, em contrapartida, deu

    menos liberdade à moda. 

    b. Com a revolução têxtil a moda pode tornar-se uma indústria 

    6  Leis sumptuárias: leis que se destinavam a limitar os excessos do luxo (do lat.   Sumptuaris, der. de 

     sumptus  = despesa), a regulamentar os sinais exteriores do prestígio e a «radicar uma consciência do

    significado e do valor das aparências».7

    Maria Giuseppina Muzzarelli,  Le leggi suntuarie, in AAVV,  Storia d’Italia. La moda, (Annali 19),organização de Carlo Marco Belfanti e Fabio Giusberti, Einaudi, Turim, Turim, 2003, p. 192.8  Ibidem, p. 200.

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    Durante o século XVIII, houve um grande número de inovações técnicas que

    fizeram aumentar significativamente a produção no sector da manufactura têxtil. Tudo

    começou em 1721, quando Henry Browne patenteou uma máquina capaz de separar as

    fibras de cânhamo das partes lenhosas. Mas a viragem decisiva deu-se em 1764, com ainvenção de um carpinteiro e tecelão, James Hargreaves, da Spinning Jenny, uma

    máquina de fiar tão simples e tão económica que foi adquirida por muitos camponeses

    e artesãos, o que lhes permitiu fiar e enrolar seis fios de cada vez. «No espaço de

    algumas décadas – escreveram Bailleux e Remaury –, novas máquinas como a máquina

    de fiar (a famosa Spinning Jenny), o tear de malha, o tear Jacquard e as primeiras

    tipografias revolucionaram os métodos de trabalho tradicionais. Ao eliminar

    radicalmente o estrangulamento produtivo representado pela fabricação dos tecidos, a

    Revolução Industrial desbrava o caminho à moda moderna»9. 

    c. A afirmação da burguesia 

    No fim do século XVII, a burguesia rica começou a transgredir cada vez mais as

    regras sumptuárias e a apropriar-se de peças de vestuário aristocrático. O início da

    democratização da moda, da igualdade das aparências que caracteriza a moda

    contemporânea, deve-se à burguesia. «Só com a ascensão da burguesia – observa

    Squicciarino –, com a possibilidade real de classes inferiores substituírem a aristocracia

    parasitária da época, é que a moda, enquanto expressão de uma atitude de

    competitividade, se tornou um fenómeno socialmente relevante»10.

    Além do mais, os burgueses, ao terem feito a “grande renúncia” aquando da

    Revolução Francesa – foi neste período, sublinha Flügel, que «o homem abandonou a

    pretensão de ser belo e se preocupou unicamente em ser prático»11–, confiaram àsmulheres a tarefa de serem as sentinelas da vanguarda da moda. 

    d. A invenção da máquina de costura 

    9 Nathalie Bailleux, Bruno Remaury, Moda. Usi e costumi del vestire, Electa/Gallimard, Trieste, 1996, p.

    42.10  Nicola Squicciarino,  Il vestito parla. Considerazioni psicosociologiche sull’abbigliamento, Armando,Roma, 1986, p. 129.

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    A primeira tentativa de construir máquinas de coser remonta a 1755 pela mão

    de Karl Wiesenthall. Nas décadas seguintes, foi a vez do francês Krems e do austríaco

    Madersperger, até que, em 1830, o costureiro francês, Barthélemy Thimonnier,

    construiu a primeira máquina de costura. Nasceu assim a primeira sociedade e aprimeira oficina para a construção em série dessas máquinas. Mas os costureiros

    parisienses consideraram que estas eram concorrentes demasiado perigosas e em 1831

    destruíram o estabelecimento que as fabricava. Em meados do século XIX, Isaac Singer,

    um industrial estadunidense, deu à máquina de costura a sua forma moderna e em

    1856 adoptou um sistema de vendas baseado em pagamentos a prestações que lhe

    permitiu distribuí-la por todo o mundo.

    A máquina de costura possibilitou que as classes populares e a pequena

    burguesia confeccionassem em casa as suas roupas, e, desse modo, exprimissem as

    suas preferências de vestuário com maior liberdade. Por outras palavras, a máquina de

    costura foi o instrumento através do qual muitas mulheres deram largas à sua própria

    subjectividade estética, o instrumento, por excelência, de libertação do seu narcisismo.

    Em suma, para muitos essa foi a única e a mais económica via para entrar no mundo

    da moda. Além do mais, a máquina de costura, como escreve Marshall McLuhan,

    «criou a longa linha direita do vestuário, assim como o linótipo nivelou o estilo do

    discurso». 

    e. O aparecimento das revistas de moda 

    Em 1797, saiu em França a primeira revista de moda. Intitulava-se «Les Journal

    des Dames et des Modes». O nascimento da imprensa do sector contribuiu para a

    divulgação dos modelos que as senhoras da alta-roda vestiam. As revistas, que muitasvezes ofereciam modelos em papel ou figurinos a cores, permitiram, como escreve

    Mallarmé na revista de moda por ele dirigida, «a aproximação dos membros da high-

    life, quer os que pertencem à fina flor de toda a elegância, Paris, quer os que estão

    disseminados pelos diferentes centros da vida fashionable»12. 

    11John Carl Flügel, Psicologia dell’abbigliamento, Angeli, Milão, 1982

    3, pp. 123-124.

    12

    Stéphane Mallarmé, La dernière mode. Gazzetta del Bel Mondo e della Famiglia, introdução e notas deAnne Marie Boetti, Edizioni delle donne, Milão, 1979, p. 88. O artigo é parte integrante do quartofascículo de 18 de Outubro de 1874.

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    Mas essas revistas levaram também as informações da última moda parisiense

    aos alfaiates de província e às leitoras mais isoladas, contagiando-os. Ainda no início

    dos anos sessenta do século XX, Alberoni escreveu: «a moda, no que diz respeito ao

    vestuário feminino, não provém das imitações das “senhoras” in loco ou alhures, masdas revistas de moda directamente para as costureiras e para as jovens que, ao

    seguirem a moda, participam no novo mundo»13.

    Com o advento dos  media  eléctricos e electrónicos (pense-se no cinema, mas

    sobretudo na televisão), as possibilidades de sermos contagiados pela última moda

    através do contacto visual – como se pode facilmente perceber – aumentaram

    exponencialmente. 

     f. Os grandes armazéns 

    Os primeiros grandes empórios comerciais surgiram em Paris e em Londres no

    século XIX. O primeiro grande armazém abriu em Paris, em 1824, e chamava-se A la

    belle jardinière. Mas foi só entre 1850 e 1860, graças à introdução dos primeiros eléctricos

    de tracção animal, que puderam alargar a sua zona de atracção a todos os bairros da

    cidade e, portanto, evoluir economicamente. O fundador dos grandes armazéns

    modernos foi Aristide Boucicaut que, em 1852, ampliando uma pequena loja de

    retrosaria, a que chamara Bon Marché, introduziu novas modalidades de venda (por

    exemplo o preço fixo e a presença de vendedores em cada sector) e em poucos anos

    conseguiu um enorme sucesso. A este primeiro grande armazém seguiram-se outros

    em Paris: em 1855 foi inaugurado o Louvre, em 1865 o Printemps e em 1869 La

    Samaritaine.

    Os primeiros grandes armazéns do século XIX educaram os consumidores aadquirir produtos fabricados em série. 

     g. Le Gros e a ascensão social dos coiffeurs 

    Na segunda metade do século XVIII apareceram novos protagonistas no mundo

    da moda: os  coiffeurs. Eles, escreve Marie de Villermont, eram uma “raça singular”:  

    13 Francesco Alberoni, Consumi e società, Il Mulino, Bolonha, 1964, p. 29.

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    vestiam-se de modo elegante com casacos vermelhos, calções pretos, meias de seda

    cinzenta, de espadim à cintura e «intitulavam-se orgulhosamente os primeiros oficiais

    da  toilette  feminina»14. Os  coiffeurs  tinham também lindas casas e, como os nobres,

    criadagem. Em suma, eram muito bem pagos pelos serviços prestados. Conseguiram,uma centena de anos antes dos costureiros, conquistar uma autonomia criativa em

    relação aos seus clientes e foram os primeiros, no mundo da moda, a declarar-se

    artistas a par dos pintores e dos escultores.

    Entre os  coiffeurs daquele século, Le Gros ocupa um lugar de primeiro plano.

    Com efeito, abriu em Paris uma Academia do Penteado, onde ensinava a arte de

    pentear a criados (valets) e criadas de quarto ( femmes de chambre). Inúmeras raparigas

    serviam de modelo, disponibilizando as suas cabeças – de facto chamavam-se  pretêuses

    de têtes – em troca de 20 tostões por dia para se deixaram pentear. Nos dias em que a

    alta-roda enchia as ruas de Paris, Le Gros punha estas modelos a passear pelas

    avenidas mais bem frequentadas com a finalidade de mostrar as suas novas criações.

    Ainda com objectivo de se publicitar, Le Gros participava assiduamente na

    famosa feira de Santo Ovídio, feira essa que tinha lugar uma vez por ano e onde iam os

    vendedores de maior renome de Paris e da província. Começou por mostrar 30 bonecas

    com os penteados das suas criações, mas nos anos seguintes foi aumentando

    progressivamente o seu número até atingir uma centena em 1785.

    Na capa de uma obra que publicou em Paris, em 1768 – L’art de la coeffure des

    dames  –, Le Gros apresentava-se como um “coiffeur expert en se genre” e dizia ter

    penteado, com sucesso absoluto (“bien aplaudi”), as cabeças das “senhoras de bom

    gosto” com 42 coiffures diferentes e de ser perfeitamente capaz de pentear consoante a

    moda da época “para a Corte, para a Cidade e para o Teatro”15. 

    h. Charles-Frédérick Worth transforma o alfaiate num artista 

    No Outono de 1857, Charles-Frédérick Worth inaugurou na rue de la Paix, em

    Paris, uma loja-laboratório em cujo letreiro se lia: “Robes et manteaux confectionnés,

    soieries, hautes nouveautés”. Ao abrir a sua loja, Worth inventou a  Haute Couture  e 

    14 Marie di Villermont, Histoire de la coiffure féminine, Ad. Mertens, Bruxelles, 1891, p. 681.15 Le Gros, L’art de la coeffure des dames, à Paris, s. n. [1768].

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    transformou, de repente, o alfaiate, «artesão “repetitivo” e tradicional, num criador,

    “génio” artístico moderno»16.

    Pôs à venda na sua loja – evento inédito – alguns vestidos já confeccionados. Ao

    fazer isso, pretendia afirmar «o princípio de que o alfaiate, e não quem veste o vestido,é o verdadeiro senhor da Moda e, portanto, não trabalha à ordem de um cliente, por mais

    ilustre que seja, satisfazendo sobretudo os desejos, os gostos e as idiossincrasias

    desse»17. Fez com que, pela primeira vez, o alfaiate não fosse o servo da casa, mas

    «uma espécie de artista, um empresário autónomo que pode negociar com quem quer

    que seja no mercado e que não precisa de agradar a ninguém, pois  decide ele o que irá

    agradar a todos»18.

    Worth criou o conceito de estação e foi o primeiro a mandar as chamadas

    raparigas “sósia”, as modernas manequins, vestir os seus modelos. Com ele a moda do

    vestuário transformou-se num espectáculo. A sua loja obteve um sucesso mundial

    incrível, tornando-se uma paragem obrigatória do mundo da moda. Em 1874,

    Mallarmé indica-o como um dos que se tem absolutamente de visitar. «Observando –

    escreve ele – todas as pessoas que se juntam, neste momento, nas galerias do Louvre e

    do Bon Marché da rue de Sévres, dir-se-ia que Paris inteira passou a palavra para

    enriquecer as casas com novidades. Cada um executa esta tarefa na perfeição, não

    deixando nada ao acaso. Quer se vá ao Worth numa carruagem de dois cavalos , atraído

    por três vestidos novos do famoso criador, quer se vá à Mala das Índias, pelas

    caxemiras, de cor timo, lontra e garça-real, o espectáculo é o mesmo: um imenso desejo

    de gastar»19. 

    i. As mulheres e a sua paixão pela moda 

    O sucesso da moda é um sucesso no feminino. Foram as mulheres que

    favoreceram o  ethos  da mudança, o culto do novo, a paixão pela obsolescência

    programada. Elas, mais do que os homens, adoraram a mania do vestuário, quiseram

    aparecer, como diz Poiret, ora como “beques de barcos”, ora como “pequenas dos 

    16Gilles Lipovetsky,  L’impero dell’effimero. La moda nelle società moderne, Garzanti, Milão, 1989, p.

    80.17

    Ugo Volli, Contro la moda, p. 94.18 

     Ibidem, pp. 94-95.19 Stéphane Mallarmé,  La dernière Mode.  Gazzetta del Mondo e della Famiglia, p. 105. O artigo foi publicado no quinto fascículo de 1 de Novembro de 1874.

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    correios desnutridas”20. Quiseram ser desportivas e sexy, mulheres executivas e pobres

    esfarrapadas, ninfas e estrelas, vampes e primitivas exóticas. Com a Revolução

    Francesa, os burgueses, ao contrário dos aristocratas que cultivavam a moda na

    primeira pessoa e possuíam roupas mais ricas, coloridas e vistosas do que as dasmulheres, depositaram nas mãos do sexo feminino a liderança da moda. Mas só na

    Primeira Guerra Mundial, com a generalização do trabalho feminino, é que as

    mulheres tiveram a possibilidade de poder gerir tal liderança com plena autonomia

    económica. E, desde então, a moda desenvolveu-se vertiginosamente. 

    l. A revolução do prêt-à-porter  [pronto-a-vestir]

    Nos finais dos anos sessenta do século XX teve lugar a revolução democrática

    da moda designada por prêt-à-porter . Em 1957, realizou-se em Paris o primeiro salão do 

     prêt-à-porter   feminino, ao passo que o masculino viria a realizar-se alguns anos mais

    tarde. Até então, o mercado caracterizara-se pela Alta Moda (apanágio de muito

    poucos), por um lado, e por roupas fabricadas em série e de baixo custo, por outro. O

    efeito mais gritante do prêt-à-porter  é o de ter estetizado a moda industrial e de ter feito

    oscilar o pêndulo da moda de elite para a moda de massa.

    O prêt-à-porter  favoreceu a democratização da griffe, a multiplicação das marcas,

    mas também o fetichismo e a sua banalização e, por conseguinte, o nascimento da

    contrafacção, isto é, o aparecimento da estética dos “vendedores de rua”, versão

    populista da democracia da moda. 

    2. As roupas, a moda e a semiótica 

    A sociologia e a psicologia dedicaram-se ao estudo da moda muito antes da

    semiótica. Os psicólogos, pense-se por exemplo nas investigações de Flügel, mostraram

    que as roupas são fruto de um compromisso perene entre o pudor e a decoração (o

    ornamento). Na verdade, a decoração visa atrair a atenção dos outros, enquanto o

    pudor tende a ocultar as qualidades do corpo e fazê-las passar inobservadas; a

    decoração anda  pari passu  com o exibicionismo, enquanto o pudor anda a par da 

    20Cit. in Gilles Lipovetsky, L’impero dell’effimero.  La moda nelle società moderne, pp. 75-76.

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    modéstia; a decoração gosta de revelar, o pudor tende a esconder; a decoração é busca

    de originalidade e o pudor de conformismo. Em suma, entre a decoração (o

    ornamento) e o pudor existe um conflito perene que dá origem a uma série de

    compromissos cujo conteúdo muda continuamente ao longo da vida21

    . A mulher,afirma Flügel, é «o mais pudico e, ao mesmo tempo, o mais exibicionista dos sexos»22.

    Outros autores, entre os quais Paul K. Lazarsfeld, demonstraram, com base em

    investigações empíricas concluídas nos anos trinta do século XX, que as pessoas com

    baixos rendimentos preferiam os tecidos lisos (conjuntamente ao chocolate e aos

    perfumes fortes), enquanto as pessoas com rendimentos mais elevados preferiam os

    tecidos mais irregulares (assim como substâncias amargas e perfumes suaves)23. Por

    seu turno, as pesquisas de Lewis Aiken sobre as estudantes dos colégios universitários

    dos Estados Unidos revelaram a relação que existe entre determinadas características

    das roupas e a personalidade. Por exemplo, mostrou que quem escolhe a roupa pelo

    seu conforto é, geralmente, uma pessoa com autocontrolo, precisa, deferente com a

    autoridade e socialmente cooperante24.

    Nos anos trinta do século XX, Nicolai Trubetskoi, em Fundamentos de Fonologia,

    adiantou teses sobre a natureza linguística da roupa. Desde então, numerosos

    semiólogos, de Jakobson a Barthes, de Bogatyrëv a Eco, se têm dedicado à linguagem

    do vestuário. No início dos anos setenta, num seu pequeno ensaio, intitulado O Hábito

    Fala pelo Monge, Umberto Eco disse: «Quem se familiarizou com os actuais problemas

    da semiologia já não pode apertar a gravata, de manhã em frente ao espelho, sem ter a

    nítida sensação de fazer uma escolha ideológica; ou, pelo menos, de passar uma

    mensagem, numa carta aberta, aos transeuntes e àqueles que encontrará durante o

    dia»25.

    Ora, dado que os códigos relativos às roupas, assim como o dos penteados,

    existem mas «na maioria das vezes são fracos»26, isto é, «mudam com uma certarapidez, o que dificulta o alargamento dos respectivos “dicionários” e faz com que o

    código seja muitas vezes reconstruído no momento, numa situação concreta, inferido a  

    21 John Carl Flügel, Psicologia dell’abbigliamento, passim.22 

     Ibidem, pp. 119-20.23

    Paul F. Lazarsfeld,  The Psychological Aspect of Market Research, in “Harvard Business Review”,1934, 13, pp. 54-57.24

    Lewis R. Aiken,  The Relationships of Dress to Selected Measures of Personality in Undergraduate

    Women, in “The Journal of Social Psychology”, 1963, 59, p. 125.25 Umberto Eco, L’abito parla il monaco, in AAVV, Psicologia del vestire, Bompiani, Milão, 1972, p. 7.26  Ibidem, p. 22.

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    partir das próprias mensagens»27, em primeiro lugar importa dar a máxima atenção às

    coordenadas espácio-temporais para descodificar correctamente as mensagens que são

    enviadas pelas roupas.

    Por outras palavras, nunca podemos esquecer que a relação significante-significado nos signos do vestuário é nitidamente instável, para não dizer fluida. Com

    efeito, os signos da moda estão sujeitos a variações de estação para estação e, além

    disso, são gratuitos e sem motivação. Em síntese, o léxico da moda é, no tempo,

    ilusório, evanescente e efémero. A moda, escreve Roland Barthes, tende a perder

    efectivamente «a memória dos seus signos. É como se a Moda produzisse, ao nível dos

    seus enunciados, signos fortes, numerosos, definidos e duradouros, mas os esquecesse

    imediatamente ao confiá-los a uma memória volúvel»28.

    A linguagem do vestuário transmite informações geralmente ambíguas, salvo

    no caso muito particular dos uniformes – que aliás são os mais simétricos de todo o

    vestuário – e das roupas que se veste num único dia – como o vestido de noiva. A

    roupa fala, mas às vezes fá-lo como a Pítia, sacerdotisa que, no santuário de Delfos

    sobre um precipício de onde exalavam vapores, emitia – ao que parece em estado de

    êxtase – as respostas do deus Apolo às perguntas que lhe eram feitas pelos peregrinos.

    E, sobretudo, mesmo nos casos em que a linguagem do vestuário29 envia mensagens

    substancialmente claras, nunca nos devemos esquecer do que Herbert Blumer pensava

    a propósito das suas capacidades de comunicação: «A roupa pode “falar”, mas

    dificilmente poderá estabelecer um diálogo. Os compromissos na adaptação do

    significado – característica típica do diálogo – não parecem verificar-se nas

    representações da roupa: a roupa pode dizer alguma coisa, mas raramente trava uma

    conversa»2. 

    27  Ibidem, p. 22.

    28Roland Barthes, Sistema della Moda, Einaudi, Turim, 1970

    3, p. 212 [Sistema da Moda, Lisboa, Edições

    70, 1981].29 «O que a roupa põe em causa – escreve Barthes – é uma determinada significação do corpo, da pessoa.

    Já Hegel dizia que a roupa torna o corpo significante e, por consequência, permite passar do puro sensívelà significação. Os psicanalistas também se preocuparam com o sentido do vestuário. Flügel levou a cabouma análise do vestuário mostrando que, a partir de pressupostos freudianos, a roupa funcionava para ohomem como uma espécie de neurose, na medida em que esconde e mostra o corpo, assim como aneurose mascara e descobre – elaborando sintomas e símbolos – o que uma pessoa não quer dizer. Aroupa seria, de qualquer modo, análoga ao fenómeno que revela os nossos sentimentos quando

    ruborescemos por pudor; o nosso rosto cora, escondemos o nosso embaraço no próprio momento em que

    o mostramos». Roland Barthes,  Tempo e ritmi dell’abbigliamento  in  idem,  Scritti. Società, testo,comunicazione, introdução e notas de Gianfranco Marone, Einaudi, Turim, 1998, pp. 116-117.2 Cit. em Fred Davis, Moda, cultura, identitá, linguaggio, Baskerville, Bolonha, 1992, p. 8.

  • 8/20/2019 A Invenção Da Moda _ Ver Esse Tbm

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    A Invenção da Moda  Massimo Baldini 

    Todavia, também há casos em que ao vestirmo-nos não estamos apenas a dizer

    – ou a procurar dizer – alguma coisa, na medida em que equivale também a fazer

    alguma coisa, em geral, aos outros, mas às vezes a nós próprios. Em relação aos outros,

    as roupas podem servir para seduzi-los ou, por vezes, muito simplesmente parasurpreendê-los. Porém, as roupas podem ser um viagra do ego: para fortalecer as

    evanescentes individualidades sociais ou pessoais, ou, apenas, para dar prazer estético.

    A moda não é diabólica e os estilistas não têm pés de cabra. Como veremos, a

    moda é um fenómeno muito antigo e menos irracional do que comummente se pensa.

    O único elemento novo é que se tornou, recentemente, um fenómeno ao alcance de

    todas as bolsas, tal como os futuristas, ignorados, haviam preconizado muito antes.

    Aliás, no  Manifesto da Moda Feminina Futurista, queriam «decotes em ziguezague,

    mangas diferentes uma da outra, sapatos de forma, cor e altura várias» e proclamavam

    que o reinado da seda deveria «acabar na história do vestuário feminino, assim como o

    reinado do mármore» estava «para desaparecer nas construções arquitectónicas. Uma

    centena de novas matérias revolucionárias agitam-se na praça, exigindo que as aceitem

    na confecção do vestuário feminino. Escancararemos as portas dos  ateliers de moda ao

    papel, ao cartão, ao vidro, ao estanho, ao alumínio, à maiólica, ao catechu, à pele de

    peixe, à serapilheira, à estopa, ao cânhamo, aos gases, às plantas e aos animais vivos»31.

    Em poucas palavras, queriam uma moda de linhas agressivas, de cores nitidamente

    vivas, de geometria exacerbada. A moda e a antimoda destas últimas décadas

    concretizaram, feliz e fielmente, os seus vaticínios sobre o vestuário. 

    31

    O “Manifesto futurista da moda feminina” foi publicado em 29 de Fevereiro de 1920. O interessefuturista pela reforma do vestuário iniciou-se com Giacomo Balla e o “Manifesto futurista do vestuáriomasculino” em 1914.