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1 MARIA, A MULHER SIMPLES DE NAZARÉ, PEREGRINA NA FÉ A intuição mariana de Teresa de Lisieux Meditando a tua vida no santo Evangelho Ouso olhar-te e aproximar-me de ti Acreditar que sou tua filha não me é difícil Pois vejo-te mortal e sofrendo como eu... 1 Na Carta Circular que os Superiores Gerais O. Carm. e OCD enviaram a todos os irmãos e irmãs do Carmelo, por ocasião da celebração do Centenário da morte de Santa Tere- sa do Menino Jesus e da Santa Face, ou Teresinha 2 como é mais conhecida entre nós, lemos: «A leitura das obras da nossa irmã Teresa, feita no contexto social e eclesial do nosso tempo e a partir da nossa cultura, ajudar-nos-á a centrarmo-nos no essencial» 3 . É, pois, nosso intuito neste artigo relermos, hoje, aquilo que a mais jovem Doutora da Igreja Universal 4 escreveu e nos legou a respeito de Maria, apesar de, como notam os seus estudiosos, ela não ter exposto, nem podemos encontrar em qualquer escrito seu, uma doutri- na ou uma exposição sistemática de qualquer teoria mariana. Tudo o que ela nos diz a respeito de Maria é, e quer ser, uma partilha daquilo que experimentou e vivenciou da sua “Mãe que- rida” 5 . 1 PN 54. Seguimos para as citações dos escritos de Teresa de Lisieux: SANTA TERESA DO MENINO JESUS E DA SANTA FACE – Obras completas: Textos e Últimas Palavras. Paço de Arcos: Edições Carmelo, 1996 (= Obras). Siglas (referentes à mesma obra): CT: Carta; Ima: Imagens bíblicas (Escritos vários); Ms: Manuscrito A, B, C; PN: Poesia; UCR: Últimos Conselhos e Recordações. 2 «Chamem-me Teresinha», foi como respondeu a própria Teresa quando lhe perguntaram como queria ser invocada quando esti- vesse no Céu (cf. UCR, Outras palavras de Teresa. In Obras, p. 1304). Como Teresinha também assinou a sua última poesia (cf. PN 54, fim). 3 Joseph CHALMERS; Camilo MACCISE – Voltar ao Evangelho. A mensagem de Teresa de Lisieux. Roma, 16 de Julho 1996, n. 5. 4 João Paulo II, no dia 19 de Outubro de 1997, Dia Mundial das Missões, proclamou Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, uma mulher, uma jovem, uma contemplativa», Doutora da Igreja Universal. Para um aprofundamento da relação dos Papas do séc. XX com Teresa de Lisieux, cf. M. CAPRIOLI – I Papi del secolo XX e S. Teresa di Lisieux. Teresianum. 46 (1995) 323-366. Sobre o sentido deste doutoramento de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face cf. Servais-Th. PINCKAERS – Thérèse de l’Enfant-Jésus, docteur de l’Église. Revue Thomiste. 97 (1997) 512-524. 5 Não abordaremos aqui o tema de Maria na vida, na experiência e na doutrina da jovem Santa de Lisieux, nem o seu “marianis- mo” carmelita. Neste sentido ver os artigos de Ismael BENGOECHEA – La Virgen María y Teresa de Lisieux según los textos auténticos: (Confrontación y análisis de variantes). Monte Carmelo. 81 (1973) 211-246; Vicente María BLAT – La espiritualidad mariana de Teresa de Lisieux. Ephemerides Mariologicae. 33 (1983) 6-93; Franco CANDELORI – Santa Teresa di Gesù Bambino e la Madonna. Carmelus. 20 (1973) 94-145; Eamon CARROLL – Thérèse and the Mother of God. Carmelite Studies. 5 (1990) 82-96; André COMBES – Marie pour Sainte Thérèse de Lisieux. Divinitas. 14 (1970) 75-124; Jean GUITTON – El genio de Teresa de Lisieux. México; Santo Domingo; Valencia: Edicep, p. 69-90; Mauricio MARTÍN DEL BLANCO – «Por qué te amo, Maria»: Su marianismo carmelitano. Monte Carmelo. 105 (1997)

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MARIA, A MULHER SIMPLES DE NAZARÉ, PEREGRINA NA FÉ. A intuição mariana de Teresa de Lisieux Publicado em Carmelo Lusitano. 15-16 (1997-1998) 239-251

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    MARIA, A MULHER SIMPLES DE NAZAR, PEREGRINA NA F

    A intuio mariana de Teresa de Lisieux

    Meditando a tua vida no santo Evangelho Ouso olhar-te e aproximar-me de ti Acreditar que sou tua filha no me difcil Pois vejo-te mortal e sofrendo como eu...1

    Na Carta Circular que os Superiores Gerais O. Carm. e OCD enviaram a todos os

    irmos e irms do Carmelo, por ocasio da celebrao do Centenrio da morte de Santa Tere-

    sa do Menino Jesus e da Santa Face, ou Teresinha2 como mais conhecida entre ns, lemos:

    A leitura das obras da nossa irm Teresa, feita no contexto social e eclesial do nosso tempo e a partir da nossa cultura, ajudar-nos- a centrarmo-nos no essencial3.

    , pois, nosso intuito neste artigo relermos, hoje, aquilo que a mais jovem Doutora da

    Igreja Universal4 escreveu e nos legou a respeito de Maria, apesar de, como notam os seus

    estudiosos, ela no ter exposto, nem podemos encontrar em qualquer escrito seu, uma doutri-

    na ou uma exposio sistemtica de qualquer teoria mariana. Tudo o que ela nos diz a respeito

    de Maria , e quer ser, uma partilha daquilo que experimentou e vivenciou da sua Me que-

    rida5.

    1 PN 54. Seguimos para as citaes dos escritos de Teresa de Lisieux: SANTA TERESA DO MENINO JESUS E DA SANTA FACE Obras completas: Textos e ltimas Palavras. Pao de Arcos: Edies Carmelo, 1996 (= Obras).

    Siglas (referentes mesma obra): CT: Carta; Ima: Imagens bblicas (Escritos vrios); Ms: Manuscrito A, B, C; PN: Poesia; UCR: ltimos Conselhos e Recordaes.

    2 Chamem-me Teresinha, foi como respondeu a prpria Teresa quando lhe perguntaram como queria ser invocada quando esti-vesse no Cu (cf. UCR, Outras palavras de Teresa. In Obras, p. 1304). Como Teresinha tambm assinou a sua ltima poesia (cf. PN 54, fim).

    3 Joseph CHALMERS; Camilo MACCISE Voltar ao Evangelho. A mensagem de Teresa de Lisieux. Roma, 16 de Julho 1996, n. 5.

    4 Joo Paulo II, no dia 19 de Outubro de 1997, Dia Mundial das Misses, proclamou Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face, uma mulher, uma jovem, uma contemplativa, Doutora da Igreja Universal. Para um aprofundamento da relao dos Papas do sc. XX com Teresa de Lisieux, cf. M. CAPRIOLI I Papi del secolo XX e S. Teresa di Lisieux. Teresianum. 46 (1995) 323-366. Sobre o sentido deste doutoramento de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face cf. Servais-Th. PINCKAERS Thrse de lEnfant-Jsus, docteur de lglise. Revue Thomiste. 97 (1997) 512-524.

    5 No abordaremos aqui o tema de Maria na vida, na experincia e na doutrina da jovem Santa de Lisieux, nem o seu marianis-mo carmelita. Neste sentido ver os artigos de Ismael BENGOECHEA La Virgen Mara y Teresa de Lisieux segn los textos autnticos: (Confrontacin y anlisis de variantes). Monte Carmelo. 81 (1973) 211-246; Vicente Mara BLAT La espiritualidad mariana de Teresa de Lisieux. Ephemerides Mariologicae. 33 (1983) 6-93; Franco CANDELORI Santa Teresa di Ges Bambino e la Madonna. Carmelus. 20 (1973) 94-145; Eamon CARROLL Thrse and the Mother of God. Carmelite Studies. 5 (1990) 82-96; Andr COMBES Marie pour Sainte Thrse de Lisieux. Divinitas. 14 (1970) 75-124; Jean GUITTON El genio de Teresa de Lisieux. Mxico; Santo Domingo; Valencia: Edicep, p. 69-90; Mauricio MARTN DEL BLANCO Por qu te amo, Maria: Su marianismo carmelitano. Monte Carmelo. 105 (1997)

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    O nosso objectivo centrar-nos num dos escritos a que se chamou a obra-prima6 de

    Teresa, o poema Porque te amo, Maria. Tal interesse da nossa parte advm do facto de,

    como a prpria Santa de Lisieux afirma, ele conter tudo o que ela diria sobre a Virgem Maria:

    No meu Cntico Porque te amo, Maria! disse tudo o que pregaria sobre ela7.

    1. O testamento mariano de Santa Teresinha8

    Porque te amo, Maria9, um longo poema, espcie de hino litrgico de duzentos

    [versos] alexandrinos muito regulares10, divididos por vinte e cinco estrofes, a ltima poe-

    sia de Teresa, que com uma mo desfalecida assina A Teresinha: um humilde e comovente

    ponto final a toda a sua obra potica11.

    159-181; Redemptus M. VALABECK More Mother than Queen: Our Lady of Mt Carmel and St Thrse of Lisieux. In IDEM Mary Mother of Carmel. Our Lady and the Saints of Carmel. Vol. 2. Rome: 1988, p. 75-100. Para uma bibliografia sobre o tema, at 1973, cf. Ismael BENGOECHEA La Virgen Mara y Teresa de Lisieux, p. 211-213, nota 1. Interessante a entrevista, imaginria, do P. Agostinho Leal, OCD, a Santa Teresinha na seco Consultrio espiritual de Santa Teresinha do Mensageiro do Menino Jesus de Praga. 14: 86 (1997) 8-9.

    6 Eamon CARROLL Thrse and the Mother of God, p. 88. 7 UCR, Caderno Amarelo, 21.8.3*. 8 Para a elaborao deste ponto, servimo-nos sobretudo do artigo de Eamon CARROLL Thrse and the Mother of God, p. 88-

    95. 9 Com o n. 54, na edio das Obras, este poema apareceu apenso s primeiras edies da autobiografia de Santa Teresinha, Hist-

    ria de uma Alma, comeadas em 1898 (at 1953), mas, assim como outros, numa verso retocada pela Irm Ins de Jesus (Paulina). Muitas vezes essas alteraes modificavam o pensamento de Teresa. Somente em 1979, no mbito da edio crtica das Obras da jovem santa, come-ada em 1973, que o poema foi finalmente publicado completo e na sua forma original autntica. Sobre este assunto, cf. o artigo de D. Andr COMBES Marie pour Sainte Thrse de Lisieux, onde estuda exaustivamente esta poesia e, com minuciosa escrupulosidade, assina-la as variantes.

    10 Obras, p. 819. 11 Ibidem. A obra potica de Teresa de Lisieux, fundamental para o conhecimento e interpretao da sua mensagem, consta de 54

    poesias, algumas das quais de grande dimenso teolgica e espiritual, inspiradas na Sagrada Escritura (Joo Paulo II Divini amoris scientia, n. 6). Ao escrev-las confessa ela ao P. Bellire preocupei-me mais com o fundo do que com a forma, por isso as regras de versificao no foram sempre respeitadas, o meu objectivo era expressar os meus sentimentos (ou melhor, os sentimentos da carmelita) para corresponder aos desejos das minhas Irms (CT 220).

    Alm destas 54, compostas entre 2 de Fevereiro de 1893 (PN1) e Maio de 1897 (PN 54), h ainda a registar 8 poesias chamadas suplementares, curtas e mesmo incompletas. Com raras excepes, a poesia de Teresa de contedo religioso e nela encontramos os temas fundamentais dos seus escritos. Para um maior aprofundamento, cf. Maria da Piedade de Pdua URBANO As poesias de Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face. Revista de Espiritualidade. 16 (1996) 309-320, que afirma: As Poesias de Teresa so [...] uma obra dos ltimos tempos da sua vida, uma obra da maturidade, quando a doena a minava irreversivelmente, e as trevas da f se adensavam cada vez mais. Importa no esquecer estas circunstncias para mais profundamente se mergulhar na obra potica de Teresa de Lisieux, onde ela retoma e reala tantos dos seus temas preferidos, onde se revela num despojamento e nudez de esprito a que a morte prxima imprime uma autenti-cidade e uma fora irresistveis. S nesta perspectiva se poder captar a mensagem de Teresa nas poesias, ultrapassando as imperfeies formais que porventura a possam diminuir, e verificar como o conhecimento da poesia teresiana constitui um complemento diria indispen-svel das outras obras que nos deixou, nomeadamente os Manuscritos Autobiogrficos e as Cartas (p. 310). Cf. tambm a introduo s Poesias em Obras, p. 653-659 e 830.

    Das 54 poesias 8 so dedicadas a Maria (PN 1, 7, 11, 12, 12, 35, 49, 54) e outras 16 citam-na uma ou vrias vezes. Entre estas, a PN 7, datada de 16 de Julho de 1894, dedicada Senhora do Carmo e intitula-se: Canto de reconhecimento a Nossa Senhora do Carmo. Esta poesia segundo o carmelita Redemptus M. VALABECK importante porque revela no pensamento mariano de Teresa muitas caracters-ticas da devoo Senhora do Carmo (More Mother than Queen, p. 77; cf. comentrio poesia nas p. 77-79).

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    Composto em Maio de 1897, no crepsculo da curta vida de Teresa (2 de Janeiro de

    1873 30 de Setembro de 1897), quando j estava gravemente doente, este poema como

    que o testamento mariano sobre o seu amor e compreenso evanglica da vida de Maria12,

    o seu canto do cisne. Assim no-lo testemunha a sua irm Celina:

    A nossa querida Mestrazinha j estava muito doente quando comps o seu cntico: Porque te amo, Maria. Nesse cntico ps todo o seu corao. Ainda a ouo dizer-me: que queria, antes de morrer, exprimir, numa poesia, tudo o que pensava sobre a Santssima Virgem13.

    Motivado pelo pedido da Irm Maria do Sagrado Corao14, este poema compndio da

    sua experincia mariana15, no seu ttulo traduz j a inteno de Santa Teresinha: quer dizer

    porque ama tanto Maria. A experincia que fez do seu amor materno foi to profundo na sua

    vida, que nem mesmo a prova de f que estava a viver, desde Abril de 1896, pde fazer

    esquecer essa recordao16. Trs coisas, em particular, fascinaram a jovem santa na vida de

    Maria e tornaram-se o fio condutor do seu poema: 1) Maria conhece o sofrimento por expe-

    rincia pessoal; 2) Maria ama-nos como Jesus nos ama; 3) Maria, provada na noite da f, pre-

    feriu viver em silncio.

    A poesia comea pela enunciao, na primeira estrofe, de um triplo porque, ilustrati-

    vo do ttulo do poema17:

    Oh! quisera cantar, Maria, porque te amo Porque que o teu nome to doce me faz vibrar o corao. E porque que o pensamento da tua grandeza suprema No poderia inspirar minha alma o sentimento do temor.

    No incio da segunda estrofe, Teresa traa o rumo do seu poema:

    preciso que uma filha possa amar a sua me Que esta chore com ela, partilhe as suas dores.

    12 Mauricio MARTN DEL BLANCO Por qu te amo, Maria, p. 183. 13 Conselhos e lembranas. Livraria Apostolado da Imprensa, 1955, p. 97. Cf. Processo Apostlico. Roma: Teresianum, 1976, p.

    268. 14 Para esta sua irm, Maria Martin, Teresa j tinha escrito em Novembro de 1886, portanto no muitos meses antes, o seu 2

    Manuscrito Autobiogrfico, o chamado Manuscrito B. 15 Jean GUITTON El genio de Teresa de Lisieux, p. 73. Cf. tambm Manuel F. dos REIS Actualidade de Santa Teresa de

    Lisieux. Revista de Espiritualidade. 16 (1996) 282. 16 Esta provao de f, ou este martrio, como diz Teresa, por ela narrada no Manuscrito C, dedicado Madre Maria de Gonza-

    ga: cf. Ms C,4v-7v. Sobre esta prova na noite da f, cf. Guy GAUCHER La Passion de Thrse de Lisieux. Paris: Cerf; DBB, 1972; Jean-Franois SIX Lumire de la nuit. Les 18 derniers mois de Thrse de Lisieux. Paris: Editions du Seuil, 1995.

    17 O resumo que aqui apresentamos da poesia 54, no exclui, de modo nenhum, a sua leitura integral. S assim cada um(a) poder fruir esta bela e notvel poesia e deixar-se interpelar pelos sentimentos que Maria provoca em Santa Teresinha, nela expressos.

  • 4

    As estrofes seguintes traam a vida de Maria segundo o Evangelho, apresentando-nos a

    Virgem Maria como a grandiosa mulher de f do Evangelho, nosso modelo no sofrimento e

    na vida comum18.

    Partindo da Anunciao, Teresa considera a morada da Santssima Trindade em Maria,

    e a sua maternidade espiritual, pelo facto de o seu Filho divino ser o primognito do grande

    nmero dos seus irmos e irms pecadores (est. 4-5). A visita a Isabel ensina Teresa a prati-

    car a ardente caridade (est. 6), e do Magnificat de Maria aprende a glorificar Deus o Salva-

    dor (est. 7). A estrofe 8 considera a perplexidade de Jos perante a gravidez de Maria, e o

    silncio eloquente19 dela para Teresa um concerto doce e melodioso da grandeza da

    confiana unicamente em Deus.

    Nas estrofes 9 a 12 Teresa descreve o nascimento de Jesus na pobreza de Belm, onde

    Maria, aquando da visita dos pastores e dos magos, escuta o que estes lhe dizem e guarda

    todas as coisas no seu corao. A apresentao de Jesus no Templo move-se entre a alegria e

    a tristeza, quando o velho Simeo apresenta a Maria uma espada de dores, que trespassar o

    seu corao at ao fim da vida, a qual surge rapidamente quando a Rainha dos mrtires tem

    de deixar o solo da sua ptria para fugir para o Egipto.

    As estrofes 13 a 16, escritas no estado mais doloroso do sofrimento de Teresa, quando a

    sua prova de f estava no ponto mais angustiante, em meados de Maio de 189720, so o ponto

    alto do poema. O mistrio do templo, a que so dedicados vinte e quatro versos, ocupa o

    centro da meditao destas quatro estrofes, no fim da qual, Teresa escreve:

    Agora compreendo o mistrio do templo, As palavras ocultas de um Amvel Rei. Me, o teu doce Filho quer que sejas o exemplo Da alma que O procura na noite da f (est. 15).

    18 Meditando a tua vida no santo Evangelho / Ouso olhar-te e aproximar-me de ti / Acreditar que sou tua filha no me difcil / Pois vejo-te mortal e sofrendo como eu.... (PN 54,2)

    19 Sobre esta admirao de Teresa pelo silncio de Maria, testemunha a Irm Genoveva: Ela admirava principalmente o seu siln-cio, uma vez que a Virgem preferiu estar sob suspeita do que desculpar-se junto de S. Jos revelando-lhe o mistrio da Encarnao. Dizia-mo frequentemente para me fazer apreciar esta conduta to simples e, portanto, to herica (Processo Apostlico, 959. Apud M. M. PHILIPON Sainte Thrse de Lisieux: Une voie toute nouvelle. Paris: Descle, de Brouwer et Cie, 1946, p. 172, nota 2).

    20 Sobre esta sua experincia angustiante escreve Teresa Madre Maria de Gonzaga: Minha carssima Madre, parece-vos talvez que exagero a angstia da minha alma. De facto, se ajuizardes a partir dos sentimentos que exprimo nas pequenas poesias que compus duran-te este ano, devo parecer-vos uma alma cheia de consolaes, para a qual o vu da f quase se rompeu... Porm, para mim j no um vu: um muro que se ergue at aos cus e cobre o firmamento estrelado... Quando canto a felicidade do Cu, a posse eterna de Deus, no sinto nenhuma alegria, porque canto simplesmente o que quero acreditar. s vezes, verdade, um pequenssimo raio de sol vem iluminar as minhas trevas; ento a provao cessa por um instante. Mas depois, a recordao desse raio, em vez de me causar alegria, torna as minhas trevas ainda mais densas (Ms C,7v).

  • 5

    E continua, na estrofe 16:

    J que o Rei dos Cus quis que a sua Me Mergulhasse na noite, na angstia do corao, Maria, ento um bem sofrer na terra? Sim, sofrer amando, a felicidade mais pura!21.

    E termina esta estrofe com um testemunho muito pessoal sobre os terrveis dias daquele

    Maio de 1897:

    Tudo o que Ele me deu Jesus pode tom-lo Diz-lhe que nunca se constranja comigo... 22 Ele pode esconder-Se, eu consinto em esper-l'O At ao dia sem ocaso em que se extinguir a f...

    A estrofe 17 observa que na vida diria de Maria em Nazar no h nem arroubamen-

    tos, nem milagres, nem xtases. E continua: os pequenos podem sem receio erguer os

    olhos para Maria, pois pela via comum, incomparvel Me / Que te apraz caminhar

    guiando-os para o Cu. No corao da Me querida, Teresa descobre novos abismos de

    amor; o seu olhar maternal desvanece-lhe todos os seus receios e ensina-a tanto a chorar

    como a regozijar-se (est. 18). Na estrofe 19, seguindo de perto o Evangelho, Teresa narra as

    bodas de Can, mas acrescenta uma interpretao pessoal: ainda que Jesus parea, a princpio,

    recusar o pedido compassivo de sua Me, no fundo do corao, chama-te sua Me / E o seu

    primeiro milagre, realiza-o por ti23.

    As estrofes 20 a 22 so dedicadas ao episdio da vida pblica de Jesus em que, estando

    Ele a falar s multides, chegaram Maria e os parentes dEle, e procuravam falar-lhe. So

    estrofes em que Teresa oferece uma preciosa exegese da resposta de Jesus24: Aquele que

    faz a vontade do meu Pai, esse minha Me, meu irmo e minha irm (Mt 12,50)25. A Me

    de Jesus em vez de se entristecer pela resposta do seu Divino Filho diante da multido, alegra-

    21 Esta alegria no sofrimento est bem comprovada nesta poca da vida de Teresa: cf. Ms C, 7r; CT 253 (ao P. Bellire, 13 Julho 1897); PN 47,3; UCR.

    22 No mesmo sentido dizia ela a 10 de Junho de 1897: Repito-lhe [ Santssima Virgem] com frequncia: Diz-lhe que nunca se constranja comigo. Ele ouviu, e o que faz (UCR, Caderno Amarelo, 10.6; cf. tambm 11.7.1; 23.8.2).

    23 Na poesia Jesus meu Bem-amado, lembra-Te, composta em 21 de Outubro de 1895, Teresa voltando-se para Jesus, apresenta-lhe o episdio de Can e recorda-lhe a interveno de sua Me: Lembra-Te de que a tua divina Me / Tem sobre o teu Corao um poder maravilhoso / Lembra-Te de que um dia a seu pedido / Mudaste a gua em vinho delicioso (PN 24,13)

    24 Redemptus M. VALABECK More Mother than Queen, p. 98. 25 Esta passagem evanglica (Mt 12,50) era uma das favoritas de Teresa, aparecendo nos seus escritos seis vezes: alm desta, cf.

    CT 130, 142, 172; Ima 3 e 7.

  • 6

    se (cf. est. 21) e, amando-nos como Jesus nos ama, por ns, consente em afastar-se do seu

    Filho, porque amar tudo dar e dar-se a si mesmo (est. 22,3). Por isso, o Salvador que

    conhecia a imensa ternura de sua Me e sabia os segredos do seu corao maternal, a ela,

    Refgio dos pecadores, que Ele nos deixa / Quando abandona a Cruz para nos esperar no

    Cu (est. 22,7-8).

    A estrofe 23 fala da agonia de Maria no Calvrio, Rainha dos Mrtires, que, como um

    padre no altar, oferece o seu Bem-amado Jesus, o doce Emanuel para desagravar a justia

    do Pai.

    Na estrofe 24 o vu cai de novo sobre a existncia de Maria. Teresa limita-se ao que

    refere o evangelista Joo e no vai mais alm, no imaginrio: Maria fica ao cuidado de Joo,

    filho de Zebedeu, que ter de substituir Jesus. Sendo esta a ltima informao que d o

    Evangelho sobre Maria, Teresa pergunta:

    Mas o seu profundo silncio, minha Me querida No revela porventura que o Verbo eterno Quer Ele prprio cantar os segredos da tua vida Para gozo dos teus filhos, todos os Eleitos do Cu?

    Com uma estrofe admirvel (25), na qual visa a companhia de Maria na alegria do Cu,

    Teresa encerra o poema:

    Em breve eu ouvirei esta doce harmonia [de Jesus a cantar os segredos da vida de sua Me] Em breve no Cu formoso eu irei ver-Te Tu que vieste sorrir-me na manh da minha vida26 Vem sorrir-me de novo... Me... chegou a tarde!... J no temo o esplendor da tua glria suprema. Contigo eu sofri e desejo agora Cantar nos teus joelhos, Maria, por que te amo E repetir para sempre que sou tua filha!

    O poema volta ao ponto de partida. O arco fecha-se com o verso 5 que retoma a estrofe

    1.

    26 Aluso ao encantador sorriso da Santssima Virgem nos Buissonnets, no dia 13 de Maio de 1883, quando Teresa, com 10 anos, estando muito doente h quarenta e nove dias, ficou subitamente curada, como conta em Ms A, 29v-31r.

  • 7

    2. Maria de Nazar, mulher simples peregrina na f27

    O poema que acabamos de resumir constitui, nas palavras do papa Joo Paulo II, uma

    sntese original do caminho de Maria segundo o Evangelho28.

    O evangelho e a sua prpria experincia, so as suas fontes de inspirao: o evangelho

    descobre-lhe quem Maria e o seu corao, na experincia de cada dia em comunho com a

    Virgem, revela-lhe a sua verdadeira personalidade29.

    Como eu teria gostado de ser sacerdote para pregar sobre a Santssima Virgem! Ter-me-ia bastado uma nica vez para dizer tudo o que penso sobre este assunto. Primeiro, teria feito compreender como se conhece pouco a sua vida. No precisaria de dizer coisas inverosmeis ou que no se sabem [..]. Para que um sermo sobre a SSma Virgem me d gosto e proveito, necessrio que eu veja a sua vida real, no a sua vida imaginada; e tenho a certeza de que a sua vida real devia ser extremamente simples. Apresentam-na inacessvel; deviam mostr-la imitvel, fazer sobressair as suas virtudes, dizer que vivia da f como ns, apresentar provas disso pelo Evangelho [...]. Sabemos muito bem que a Santssima Virgem a Rainha do Cu e da terra, mas ela mais me do que rainha, e no se deve dizer, por causa dos seus privilgios, que ela eclipsa a glria dos santos todos, como o sol, ao surgir, faz desaparecer as estrelas. Meu Deus! que estranho! Uma Me que faz desaparecer a glria dos filhos! Eu, por mim, penso absolutamente o contrrio; acredito que ela engrandecer muito o esplendor dos eleitos. Est certo falar dos seus privilgios, mas no se deve dizer apenas isso e se, num sermo, somos obriga-dos do princpio ao fim, a exclamar Ah! Ah!, j chega! Quem sabe se alguma alma no ir sentir at um certo afastamento em relao a uma criatura de tal maneira superior, e no pensar: Se assim, mais vale ir brilhar conforme se puder em qualquer outro cantinho!. O que a Santssima Virgem tem a mais do que ns, que no podia pecar, estava isenta do pecado origi-nal30; mas, por outro lado, teve muito menos sorte do que ns, porque no teve uma Santssima Virgem para amar31. uma doce consolao a mais para ns, e a menos para ela! Enfim, no meu Cntico Porque te amo, Maria! disse tudo o que pregaria sobre ela32.

    O que que nos diz, ento, Santa Teresinha sobre Maria o dom precioso de Cristo cru-

    cificado33 (cf. Jo 19,25-27)?

    27 Cf. Marie-Joseph NICOLAS La Vierge Marie dans lvangile et dans lglise daprs sainte Thrse de Lisieux. Revue Thomiste. 1952, 52, p. 508-527; Redemptus M. VALABECK More Mother than Queen, p. 86-100.

    28 JOO PAULO II Carta Apostlica Divini amoris scientia: Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face proclamada Doutora da Igreja. LOsservatore Romano: Ed. semanal em portugus. (25 Out. 1997) 6.

    29 Joseph CHALMERS; Camilo MACCISE Voltar ao Evangelho. A mensagem de Teresa de Lisieux. Roma, 16 de Julho 1996,, n. 53; cf. PN 54,2 e 15.

    30 Cf. CT 226, 9 de Maio de 1897, onde escreve ao P. Roulland,: certo que nenhuma vida humana est isenta de pecados, s a Virgem Imaculada se apresenta absolutamente pura diante da Majestade Divina.

    31 Cf. tambm UCR, Caderno Amarelo, 11.8.4: ...A Santssima Virgem no tem outra Santssima Virgem para amar; menos feliz do que ns; e CT 137.

    32 UCR, Caderno Amarelo, 21.8.3*. Cf. UCR, Caderno Amarelo, 23.8.9: Madre Ins de Jesus dizia que tudo o que tinha ouvido pregar sobre a Virgem Maria no a tinha impressionado: Que os sacerdotes nos apresentem virtudes praticveis! Est certo falar das suas prerrogarivas, mas importa sobretudo que a possamos imitar. ela prefere a imitao admirao, e a sua vida foi to simples! Por muito belo que seja um sermo sobre a Santssima Virgem, se nos sentimos obrigados todo o tempo a dizer: Ah!... Ah!... ficamos fartos. Gosto muito de lhe cantar: Torna-nos visvel (Ela dizia: fcil) o estreito caminho do Cu / Praticando sempre as mais humildes virtudes [Cf. PN 54,6].

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    Tentaremos esboar a imagem de Maria que Teresa nos legou no seu poema, tendo

    em considerao as atitudes da Virgem de Nazar, porque so exactamente as atitudes, ou

    dito de outro modo, a vida de Maria que atraem e fascinam Santa Teresinha. o que ela pedia

    que contivesse um sermo sobre Nossa Senhora: fazer sobressair as suas virtudes.

    E f-lo-emos realando dois pontos importantes, na mariologia actual: 1) a figura hist-

    rico-evanglica de Maria e 2) a peregrinao na f de Maria.

    2.1. Maria, uma mulher como ns

    Meditando sobre a vida de Maria, sobriamente delineada nos evangelhos, Teresa revela-

    nos que a sua vida, em Nazar, foi pautada pela via comum. Nela no h nem arroubamen-

    tos, nem milagres, nem xtases34. A Teresa agradava-lhe imaginar Maria simples e pobre,

    que se confundia com as outras mulheres e que vivia da f como ns, como confidencia, um

    ms antes de morrer (20 de Agosto de 1897), Madre Ins de Jesus (sua irm Paulina):

    Como ser belo conhecer no Cu tudo o que se passou na Sagrada Famlia! Quando o Menino Jesus comeou a crescer, ao ver jejuar a Santssima Virgem, talvez lhe dissesse: Eu tambm queria jejuar. E a Santssima Virgem respondia: No, meu Menino Jesus, s ainda muito pequenino, no tens foras. Ou ento talvez no se atrevesse a impedi-l'O. [...] As mulheres da aldeia vinham falar familiarmente com a Santssima Virgem. Por vezes pediam-lhe que lhes confiasse o seu Filhinho Jesus, para ir brincar com os delas. E Jesus olhava para a Santssima Vir-gem para saber se podia ir. [...] Que bem me faz pensar que a vida da Sagrada Famlia era uma vida vulgar. No era como tudo o que nos contam, tudo o que se supe. [...] Tudo na vida deles se passou como na nossa.35

    Teresa sabe que Maria vive gloriosa no cu, mas prescinde deste dado e percorrendo as

    pginas do Evangelho, seu livro favorito Basta-me esse livro, diz ela36 , encontra a uma

    Maria mortal e capaz de sofrer, que tinha vivido na senda do sofrimento, do exlio, das lgri-

    mas37.

    33 Stefano DE FIORES Palingenesi della Marialogia. Marianum. 52 (1990) 208. Cf. IDEM La presenza di Maria nella vita della Chiesa alla luce dellEnciclica Redemptoris Mater. Marianum. 51 (1989) 135.

    34 PN 54,17 35 UCR, Caderno Amarelo, 20.8.14; cf. 23.8.9. 36 UCR, Caderno Amarelo, 15.5.3. Cf. Ms A, 83v; Ms C, 36v; CT 226 (ao P. Roulland, 9/5/1897); PN 24,12 (1895). Da predilec-

    o de Santa Teresinha pelo Evangelho falam bem alto as mais de 500 citaes, que se encontram nos seus escritos: cf. Roman LLAMAS Santa Teresita y su experiencia de la Palabra de Dios. Revista de Espiritualidad. 55 (1996) 267-324; e o artigo do P. Armindo VAZ neste nmero de Carmelo Lusitano.

    37 Cf. PN 54,2. Ao tema do sofrimento de Maria, Teresa volta de novo, no ms anterior sua morte, numa conversa com a Madre Ins de Jesus. Falando sobre uma carta de um sacerdote que dizia que Maria no tinha experimentado os sofrimentos fsicos, comentava assim: Ao olhar esta noite para a Santssima Virgem, compreendi que no era verdade; compreendi que ela tinha sofrido no s na alma,

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    Ao tema do sofrimento de Maria, Teresa volta de novo, no ms anterior sua morte,

    numa conversa com a Madre Ins de Jesus. Falando sobre uma carta de um sacerdote que

    dizia que Maria no tinha experimentado os sofrimentos fsicos, comentava assim:

    Ao olhar esta noite para a Santssima Virgem, compreendi que no era verdade; compreendi que ela tinha sofrido no s na alma, mas tambm no corpo. Sofreu muito nas viagens, com o frio, o calor, o can-sao. Jejuou muitas vezes. ... Sim, ela sabe o que sofrer. [Depois, delicadamente, continuou:] Mas talvez seja errado querer que a Santssima Virgem tenha sofrido! Logo eu que a amo tanto!38.

    Maria , por isso, modelo para Teresa na vida de sofrimento39. A semelhana da sua

    vida com a da sua Me bem-amada fascina a nossa santa, que vendo aproximar-se o seu fim

    pode exclamar:

    Contigo eu sofri e desejo agora Cantar nos teus joelhos, Maria, por que te amo E repetir para sempre que sou tua filha!......40.

    Um outro aspecto que, na vida de Maria, fascina Teresa a sua humildade, a qual uma

    prova viva da validade e confirmao do seu caminho espiritual da humildade oculta41:

    Oh! amo-te, Maria, quando te dizes a serva Do Deus que tu deslumbras com a tua humildade Esta virtude oculta torna-te omnipotente Atrai ao teu corao a Santssima Trindade42

    E ainda:

    Fazes-me sentir que no impossvel Seguir os teus passos, Rainha dos eleitos, O estreito caminho do Cu, tornaste-o visvel Praticando sempre as mais humildes virtudes43.

    mas tambm no corpo. Sofreu muito nas viagens, com o frio, o calor, o cansao. Jejuou muitas vezes. ... Sim, ela sabe o que sofrer. [Depois, delicadamente, continuou:] Mas talvez seja errado querer que a Santssima Virgem tenha sofrido! Logo eu que a amo tanto! (UCR, Caderno Amarelo, 20.8.11).

    38 UCR, Caderno Amarelo, 20.8.11. 39 Cf. PN 54,16. 40 PN 54,25. 41 Sobre o seu caminhito (Ms C,2v), na descoberta do qual a Palavra de Deus jogou um papel fundamental (cf. Ms C,3r), e em rela-

    o ao qual diz ao P. Roulland: o meu caminho todo de confiana e de amor [...] A perfeio parece-me fcil, vejo que basta reconhecer o prprio nada e abandonar-se como uma criana nos braos de Deus [...] Regozijo-me por ser pequenina visto que s as crianas e os que se assemelharem a elas sero admitidas ao banquete celestial (CT 226), cf. Francisco IBARNIA El caminito de Teresa de Lisieux. Revista de Espiritualidad. 55 (1996) 217-266; Roman LLAMAS Santa Teresita y su experiencia de la Palabra de Dios, p. 302-306.

    42 PN 54,4. 43 PN 54,6.

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    A grandeza de Maria consiste exactamente na sua simplicidade. Ter reconhecido isto,

    t-lo compreendido e aprofundado um mrito de Teresa.

    2.2. Maria, peregrina na f, com Cristo

    Maria, para Santa Teresinha, vivia da f como ns, no entendendo muitas vezes

    muitas coisas no seu itinerrio de f. Diz-nos ela, a propsito dos sermes sobre Maria:

    [Os sacerdotes] deviam [...] dizer que vivia da f como ns, apresentar provas disso pelo Evangelho onde lemos: Eles no entenderam o que lhes disse [Lc 2,50]. E esta outra frase no menos misteriosa: E seu pai e sua me estavam admirados das coisas que d'Ele se diziam [Lc 2,33]. Esta admirao pres-supe um certo espanto, no acha, minha querida Madre? 44.

    Este aspecto da peregrinatio fidei de Maria, j recordado pelo Conclio Vaticano II na

    Constituio Dogmtica sobre a Igreja45, foi realado pelo Papa Joo Paulo II na sua encclica

    mariana, de 1987, Redemptoris Mater (nn. 12-20). E foi-o de tal modo que constitui o seu

    verdadeiro leit-motiv e fio condutor46. Nela o Papa acentuou os carcteres de noite e de

    knose / despojamento (n. 17 e 18).

    Para Maria, como para ns, a f era obscura e, s vezes, dolorosa, provada pelo prprio

    Jesus. Teresa afirma-o a propsito do episdio do Menino Jesus perdido e achado no Templo:

    Me, o teu doce Filho quer que sejas o exemplo Da alma que O procura na noite da f47.

    A vida de Maria, em Nazar, foi toda ela, entre alegrias e dores, um caminho de f, des-

    pojada de todas as graas extraordinrias, que est na base da confiana e do amor que se tor-

    na abandono no Amor Misericordioso, que o Pai, manifestado em Cristo.

    A prpria unio de Maria a Cristo no seu despojamento48, no cimo do Calvrio, quan-

    do aos ps da Cruz, Maria testemunha, humanamente falando, do desmentido cabal das

    palavras49 do Anjo no momento da Anunciao: ser grande..., o Senhor Deus dar-lhe- o

    44 UCR, Caderno Amarelo, 21.8.3*. 45 LG 58: A Virgem [Maria] avanou pelo caminho da f, mantendo fielmente a unio com o seu Filho at cruz. 46 Sobre esta temtica cf., entre outros, Stefano DE FIORES Mara en la teologa contempornea, p. 577-579; Luigi GAMBERO

    Itinerario di fede della Madre del Signore (R. M. nn. 12-19). Seminarium. 38 (1987) 498-513; Jean GALLOT Litinraire de foi de Marie selon lencyclique Redemptoris Mater. Marianum. 51 (1989) 33-55.

    47 PN 54,15. 48 RM 18. 49 RM 18.

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    trono de seu pai David..., reinar eternamente na casa de Jacob e o seu reinado no ter fim

    (Lc 1,32-33), caracteriza-se por aquela profundssima prova de f, que Joo Paulo II chama de

    knose da f50.

    Este peregrinar na f de Maria cristocntrico: Cristo est sempre presente nos epi-

    sdios da vida de Maria.

    Concluso

    Santa Teresinha, contrastando profundamente com a falsa exagerao dos pregadores

    do seu tempo (e do nosso?), que se dedicam a exaltar a sua grandeza, sem ter em conta a sua

    vida real, e opondo-se a uma pregao triunfalista dos privilgios e glrias de Maria, apre-

    senta-nos uma doutrina mariana baseada no nos dogmas marianos, mas exclusivamente no

    Evangelho, sua nica fonte de inspirao que nos apresenta uma Maria de Nazar simples,

    humilde, caritativa, disponvel, cheia de f e de amor, muito prxima e imitvel.

    Este o caminho trilhado tanto pela Mariologia como pela espiritualidade mariana dos

    nossos dias, se quer fiel ao desafio da ps-modernidade e s suas exigncias de retorno ao

    concreto, como salienta o telogo italiano Bruno Forte:

    Interessar-se por Maria significa tratar da humildade de serva do Altssimo, da ferialidade da existncia dessa mulher pobre da terra de Israel, da qual o Novo Testamento nos fala, o mais das vezes, na forma de narrao (dos evangelhos da infncia s npcias de Can, dos episdios da vida pblica de Jesus nos quais Maria est presente cena da me e do discpulo aos ps da cruz). As grandes coisas que acontece-ram na jovem mulher de Nazar no revelam processos universais nem leis csmicas, mas apresentam o carcter de eventos de graa e de histrias de salvao marcados pela obscuridade, antes de tudo, para aquela que os viveu: Como ser isso, se eu no conheo homem algum? (Lc 1,34). Maria conservava cuidadosamente todos esses acontecimentos e os meditava em seu corao (Lc 2,19.51). Eles, porm, no compreenderam a palavra que ele [Jesus] lhes dissera (Lc 2,50). Por mais que se desenvolva a argumentao do pensamento crente em relao ao mistrio da Me do Redentor, ele permanecer sem-pre, necessariamente, ligado concretude do testemunho evanglico e medido pela sobriedade da narra-o. [Citando o telogo alemo Karl Rahner, prossegue] Maria deve aparecer como a mulher do povo, como a pobre, a discente, como a que vive alimentando-se da situao histrica, social e religiosa de seu tempo e de sua gente. Ela no deve ser vista como ser celeste, mas como criatura humana que aceitou activa e passivamente para si e para os outros, pela e na ordinariedade de sua situao, a sua funo hist-rico-salvfica, aprendendo entre muitas incertezas, com f, esperana e amor, e que, precisamente por isso, o modelo e a me dos crentes 51.

    50 RM 18. 51 Maria, a mulher cone do Mistrio: Ensaio de mariologia simblico-narrativa. S. Paulo: Edies Paulinas, 1991, p. 14-15. Cf. En-

    rique LLAMAS Algunas corrientes actuales en la mariologa. Revista de Espiritualidad. 55 (1996) 9-44.

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    Foi precisamente esta a herana que Santa Teresinha nos legou no seu testamento

    mariano.

    E terminamos com um repto para reflexo:

    Nos ensinamentos de Teresa de Lisieux encontramos um caminho para aprofundar e renovar a nossa vida mariana, luz do evangelho e da intimidade com Maria. A nossa devoo, testemunho e pregao encontram uma base slida na redescoberta de Maria dentro do mistrio de Cristo e da Igreja52.

    Manuel Gomes Quintos

    [Publicado em Carmelo Lusitano. 15-16 (1997-1998) 239-251]

    52 Joseph CHALMERS; Camilo MACCISE Voltar ao Evangelho, n. 54. Itlico da nossa responsabilidade.

    1. O testamento mariano de Santa Teresinha 2. Maria de Nazar, mulher simples peregrina na f 2.1. Maria, uma mulher como ns 2.2. Maria, peregrina na f, com Cristo Concluso