intuição categorial

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Intuição categorial: um estudo a partir de Heidegger Marco Aurélio Fernandes 1 Resumo: A descoberta da “intuição categorial” atesta que há um apreender simples não só do que se dá na percepção sensorial, mas também há, junto com essa, um apreender simples do “categorial”. Com outras palavras, a descoberta da “intuição categorial” atesta que, na percepção cotidiana, ou seja, na percepção concreta da coisa, em toda experiência, se dá também uma percepção do que na filosofia se costumou chamar de “categoria”. Isso significa, ainda, que há atos em que consistências ideais se mostram a si mesmas, sem que sejam criações destes atos, funções de pensamento, produtos do sujeito. Entretanto, é preciso explicitar melhor o que é apreendido nessa intuição e como algo deste modo de ser é intuído. O que se pretende com esta exposição é realizar tal explicitação no horizonte de pensamento de Heidegger, em que fenomenologia se mostra como ontologia. Isso implica discutir também importantes temas, como “intencionalidade”, “intuição e expressão”, “verdade e ser”. Palavras-chave: intuição, percepção, representação, intencionalidade, expressão, intuição categorial. Riassunto : La scoperta della “intuizione categoriale” testimonia che c’è un cogliere semplice non solo di ciò che si dona nella percezione sensoriale, ma c’è anche, insiemme ad essa, un cogliere semplice del “categoriale”. La scoperta della “intuizione categoriale” testimonia che, nella pecezione quotidiana, cioè, nella percezione concreta della cosa, in ogni esperienza, accade una percezione di ciò che nella filosofia di solito si chiama “categoria”. Questo vuol dire, ancora, che ci sono atti nei quali le consistenze ideali si mostrano in se stesse, senza essere creazioni di questi atti, funzioni di pensiero, del soggetto. Intanto, bisogna spiegare meglio ciò che è colto nella intuizione e come qualcosa del genere é intuito. Ciò che se pretende in questa esposizione é compiere tale spiegazione nell’orizzonte di pensiero di Heidegger, in cui la fenomenologia si mostra come ontologia. Questo implica discutere anche importanti argomenti come “intenzionalità”, “intuizione ed espressione”, “verità ed essere”. Parole-Chiave : Intuizione, percezione, rappresentazione, intenzionalità, “intuizione ed espressione”, “verità ed essere”. 1 Professor adjunto de Filosofia na UnB.

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intuição

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  • Intuio categorial: um estudo a partir de Heidegger Marco Aurlio Fernandes1

    Resumo: A descoberta da intuio categorial atesta que h um apreender simples no s do que se d na percepo sensorial, mas tambm h, junto com essa, um apreender simples do categorial. Com outras palavras, a descoberta da intuio categorial atesta que, na percepo cotidiana, ou seja, na percepo concreta da coisa, em toda experincia, se d tambm uma percepo do que na filosofia se costumou chamar de categoria. Isso significa, ainda, que h atos em que consistncias ideais se mostram a si mesmas, sem que sejam criaes destes atos, funes de pensamento, produtos do sujeito. Entretanto, preciso explicitar melhor o que apreendido nessa intuio e como algo deste modo de ser intudo. O que se pretende com esta exposio realizar tal explicitao no horizonte de pensamento de Heidegger, em que fenomenologia se mostra como ontologia. Isso implica discutir tambm importantes temas, como intencionalidade, intuio e expresso, verdade e ser. Palavras-chave: intuio, percepo, representao, intencionalidade, expresso, intuio categorial. Riassunto : La scoperta della intuizione categoriale testimonia che c un cogliere semplice non solo di ci che si dona nella percezione sensoriale, ma c anche, insiemme ad essa, un cogliere semplice del categoriale. La scoperta della intuizione categoriale testimonia che, nella pecezione quotidiana, cio, nella percezione concreta della cosa, in ogni esperienza, accade una percezione di ci che nella filosofia di solito si chiama categoria. Questo vuol dire, ancora, che ci sono atti nei quali le consistenze ideali si mostrano in se stesse, senza essere creazioni di questi atti, funzioni di pensiero, del soggetto. Intanto, bisogna spiegare meglio ci che colto nella intuizione e come qualcosa del genere intuito. Ci che se pretende in questa esposizione compiere tale spiegazione nellorizzonte di pensiero di Heidegger, in cui la fenomenologia si mostra come ontologia. Questo implica discutere anche importanti argomenti come intenzionalit, intuizione ed espressione, verit ed essere. Paro le -Chiave : Intuizione, percezione, rappresentazione, intenzionalit, intuizione ed espressione, verit ed essere.

    1 Professor adjunto de Filosofia na UnB.

  • Marco Aurlio Fernandes

    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea

    Braslia, n 2, ano 1, 2013.

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    No semestre de vero de 1925, na Universidade de Marburgo,

    Heidegger ministrou uma preleo que tinha sido anunciada com o ttulo

    Histria do Conceito de Tempo. Com o ttulo, foi anunciado um subttulo,

    que soava assim: Prolegmenos para uma fenomenologia da Histria e da

    Natureza. A questo perseguida por Heidegger nesta preleo aquela que

    constitui o interesse fundamental de seu pensamento: a pergunta pelo ser em

    geral. S que, concretamente, neste momento, Heidegger pretendia tematizar

    tambm a pergunta pelo ser da histria e da natureza em especial. Por sua vez,

    a pergunta pelo ser efetivo de histria e natureza uma pergunta de ontologia

    regional, ou seja, ela pergunta, a cada vez, pelo ser de uma determinada regio

    do ser. Entretanto, observa Heidegger (1925/1994: 10), para a posio da

    pergunta pelo ser de um ente, o fio condutor dado pelo conceito de tempo.

    O mesmo ser afirmado por Heidegger em sua obra prima, Sein und Zeit (Ser e

    Tempo), quando, no promio declarado:

    A elaborao concreta da questo sobre o sentido do ser o propsito do presente tratado. A interpretao do tempo como o horizonte possvel de toda e qualquer compreenso do ser em geral sua meta provisria. (HEIDEGGER, 1927/1988: 24: grifo de Heidegger)

    Deste modo, no somente a pergunta pelo ser de um ente no domnio

    de uma ontologia regional, quer se trate da regio do ser chamada natureza,

    quer daquela que chamada histria, mas tambm a pergunta pelo ser de todo

    e qualquer ente, pelo ser do ente em geral, no domnio da ontologia

    fundamental, esto vinculadas discusso sobre o fenmeno do tempo. O

    conceito de tempo, assim, fundamental no somente para se discutir o ser da

  • Intuio categorial: um estudo a partir de Heidegger

    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea Braslia, n 2, ano 1, 2013.

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    natureza ou da histria, mas tambm para se discutir o ser como tal, tomado

    em sua referncia e diferena para com o ente na sua totalidade.

    A preleo de que aqui se trata estava planejada para se articular em trs

    partes: primeiro, a anlise do fenmeno do tempo e a obteno do conceito

    de tempo; segundo, a abertura da histria do conceito de tempo; terceiro, a

    partir das duas primeiras partes, a elaborao do horizonte para a pergunta

    pelo ser em geral e pelo ser de histria e natureza em especial. A estas trs

    partes, porm, Heidegger fez preceder uma parte preparatria, que envolvia

    trs captulos: primeiramente, o surgimento e a primeira irrupo da pesquisa

    fenomenolgica; segundo, as descobertas fundamentais da fenomenologia, seu

    princpio e o esclarecimento de seu nome; terceiro, a primeira formao da

    pesquisa fenomenolgica e a necessidade de uma meditao radical in ihr

    selbst und aus ihr selbst heraus nela mesma e, a partir dela, para fora dela.

    (HEIDEGGER, 1925/1994: 11)

    Heidegger no conseguiu chegar ao tratamento propriamente dito da

    Histria do Conceito de Tempo 2. Ele apenas desenvolveu a primeira parte,

    2 No 8 de Ser e Tempo, Heidegger apresentou um sumrio do tratado (HEIDEGGER, 1927/ 1986: 39-40; (1927/1988: 70-71). Ali Heidegger afirma que a questo do sentido do ser mais universal e a mais vazia, no entanto, nela reside, ao mesmo tempo, a possibilidade de sua mais prpria singularizao ou individuao no tocante ao respectivo Dasein (auf das jeweilige Dasein). Podemos, por sua vez, recordar este respectivo Dasein o Dasein que questiona, o qual, em sua singularidade ou individualidade, a cada vez (jeweilig), tem o carter da Jemeinigkeit (do ser-cada-vez-meu). Numa nota marginal (n. 22) escrita no exemplar de Heidegger est anotado: eigentlich: Vollzug der Instndigkeit im Da (HEIDEGGER, 1927/1986: 440) propriamente: realizao da insistncia no pr (HEIDEGGER, 1927/ 1988: 303). Para poder questionar o sentido do ser em sua universalidade, pois, Heidegger no v como incompatvel a possibilidade de desenvolver um interrogatrio no mbito de uma investigao especial, a saber, aquela que avana no caminho de uma interpretao especial de um ente determinado, que o Dasein; podemos dizer: aquele ente que somos ns mesmos e que tem como possibilidade fundamental questionar o sentido do ser, compreender e interpretar

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    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea

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    que tinha como tema a anlise do fenmeno do tempo e a obteno de seu

    conceito, tendo desenvolvido bastante, porm, a primeira seo, que foi

    intitulada como a descrio preparatria do campo, no qual o fenmeno do

    tempo se torna visvel; e deixou sem maior desenvolvimento a segunda

    seo, intitulada de a liberao (Freilegung) do tempo mesmo

    (HEIDEGGER, 1925/1994: 11). Como Heidegger tinha em mente o tempo

    da temporalidade do Dasein, o que resultou nesta parte foi, na verdade, uma

    analtica da existncia, entendida como preparatria para a tematizao da

    temporalidade do Dasein como tal. Pode-se, pois, considerar esta preleo

    como uma primeira verso daquilo que viria a ser, em 1927, Ser e Tempo. Por

    causa destes inacabamentos, os textos desta preleo foram publicados no

    ser. Como efeito, no Dasein que se encontra o horizonte para a compreenso e interpretao de ser. Contudo, sendo este ente em si mesmo histrico (geschichtlich), ento a interpretao deve se tornar histrica (historisch). A dupla tarefa da elaborao da questo do ser, portanto, impe duas partes ao tratado: a interpretao do Dasein em referncia temporalidade e a explicao do tempo como o horizonte transcendental da pergunta pelo ser; e a destruio fenomenolgica da histria da ontologia seguindo o fio condutor da problemtica da temporalidade. No 6 Heidegger j havia exposto em que consiste o mtodo da destruio fenomenolgica da ontologia, necessrio para a realizao da tarefa de uma repetio (Wiederholung) da questo do sentido do ser. Trata-se, propriamente, no de arrasar e aniquilar a ontologia, mas de desfazer o carter bvio da tradio e de investigar a ontologia na historicidade de sua tradio, buscando o retorno e o acesso s suas fontes (cf HEIDEGGER, 1927/1986: 19-27;1927/ 1988: 47-56). Nos pargrafos 6 e 8 Heidegger prev trs estgios da destruio da ontologia seguindo o fio condutor da problemtica da temporalidade: a doutrina do esquematismo de Kant e o tempo como fase ou degrau preliminar de uma problemtica da temporalidade; o fundamento ontolgico do cogito sum de Descartes e a recepo da ontologia medieval na problemtica da res cogitans; e, enfim, o tratado de Aristteles sobre o tempo como critrio diferenciador da base fenomenal e dos limites da ontologia antiga. Mesmo depois de 1927, Heidegger no completou, propriamente, o tratado. Ser e Tempo permaneceu um torso. Numa observao preliminar stima edio, de 1953, Heidegger apresenta esta advertncia: A indicao primeira metade contida nas edies at aqui, foi suprimida. A ps um quarto de sculo, no se pode acrescentar a segunda metade sem se expor de maneira nova a primeira. Entretanto, o seu caminho permanece ainda hoje um caminho necessrio sempre que a questo do ser tiver que mobilizar a nossa pre-sena. (HEIDEGGER, 1927/1988: 23)

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    volume 20 das suas obras completas com o ttulo de Prolegmenos

    Histria do Conceito de Tempo (HEIDEGGER, 1925/1994: passim).

    A parte desta preleo que aqui interessa a que est posta como

    preparatria, e que se intitula sentido e tarefa da pesquisa fenomenolgica.

    O primeiro captulo desta parte intitula-se O surgimento e a primeira

    irrupo da pesquisa fenomenolgica 3. J o segundo captulo intitula-se As

    descobertas fundamentais da fenomenologia, seu princpio e o esclarecimento

    de seu nome. Do 5 ao 7 Heidegger trata das trs principais descobertas da

    fenomenologia, que, segundo ele, so: a intencionalidade, a intuio categorial

    e o sentido do a priori4. Este artigo tem como propsito comear a tratar

    daquela que considerada por Heidegger como a segunda descoberta decisiva

    da fenomenologia, a saber, da intuio categorial.

    Entretanto, entre as trs decisivas descobertas da fenomenologia h um

    ntimo nexo. S se pode compreender o significado do a priori e da intuio

    categorial na fenomenologia se se compreende o significado da

    intencionalidade. Vice-versa, s se compreende em toda a sua envergadura e

    desdobramentos a intencionalidade se se compreende o significado da

    intuio categorial e do sentido do a priori na fenomenologia.

    Como o propsito deste artigo realizar uma primeira aproximao ao

    tema da intuio categorial, o tema da intencionalidade ser retomado apenas

    3 Foi o ponto de partida da tese de mestrado do autor do presente artigo, concluda no ano 2000, que se intitulou A Gnese Histrica da Fenomenologia, defendida junto Pontificia Universit Antonianum (Roma), ainda indita. 4 A parte que trata da intencionalidade foi o ponto de partida da tese de doutorado do autor do presente artigo, concluda em 2003, e, posteriormente, de seu livro Clareira do ser: da fenomenologia da intencionalidade abertura da existncia (FERNANDES, 2011: passim).

  • Marco Aurlio Fernandes

    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea

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    como recurso para se compreender a intuio categorial. Ao tratarmos do

    tema da intuio categorial, vamos necessariamente fazer o percurso da

    passagem da fenomenologia de Husserl, especialmente aquela que emerge nas

    Investigaes Lgicas, para a fenomenologia de Heidegger, ou melhor, vamos

    fazer a retomada da fenomenologia de Husserl, medida que a exposio de

    Heidegger sobre a intuio categorial assim o exigir. Nunca demais lembrar

    que Heidegger, nesta preleo, tem em mente no s uma exposio histrica

    da fenomenologia, de sua primeira formao a partir de Husserl e de Scheler,

    como tambm e, acima de tudo, tem em mente uma (para recorrer

    expresso que ele usa) meditao radical, que permanea na sua esfera, mas

    que tambm, de modo decisivo, partindo dela, vai para fora dela, dando incio,

    assim, ao que ele, no ttulo do primeiro captulo da primeira seo da parte

    principal, chama de a fenomenologia fundada sobre a questo do ser.

    (HEIDEGGER, 1925/1994: 183)

    Na tematizao da intuio categorial preciso compreender, antes

    de tudo, o que significa intuio; depois, se e como possvel que haja uma

    intuio chamada de categorial. Com a palavra portuguesa intuio

    traduz-se, aqui, a palavra alem Anschauung. Em alemo, o verbo schauen

    significa ver, olhar, contemplar, mirar; o substantivo Schau, por sua vez,

    significa vista, viso, intuio; j o verbo anschauen tem o significado de

    dirigir o olhar atenciosamente a alguma coisa, contemplar; e o substantivo

    Anschauung, significa viso, contemplao, intuio, mas pode tambm

    significar parecer, ideia e concepo. Optamos por traduzir por intuio.

    Aqui, contudo, a palavra intuio no tem o significado usual de

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    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea Braslia, n 2, ano 1, 2013.

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    pressentimento, mas sim o significado mais preciso e filosfico de uma

    viso direta e imediata de algo. Heidegger afirma que Anschauung, intuio,

    corresponde a Sehen, ver. E define intuio assim: schlichtes Erfassen von

    leibhafitig Gegebenem, wie es sich zeigt simples colher o que se encontra j dado

    ele mesmo em carne e osso, assim como ele se mostra (HEIDEGGER,

    1925/1994: 64). Intuio seria, assim, um ver simples do que se d a

    encontrar direta e imediatamente, do que se d a encontrar a si mesmo, nele

    mesmo; um colher, agarrar e atingir, que apreende o que se d, tal como ele se

    mostra5. Veremos que este simples ver no fcil de ser determinado. O

    5 Em Ser e Tempo, no 7, Heidegger define assim o fenmeno: das Sich-an-sich-selbst-zeigende, das Offenbare (HEIDEGGER, 1927/1986: 28, grifo de Heidegger) numa traduo livre e literal: o se-mostrando-em-si-mesmo, o patente, e, na traduo de Mrcia C. Schuback, o que se revela, o que se mostra em si mesmo (HEIDEGGER, 1927/1988: 58, grifo de Heidegger). importante entender o sentido da expresso se-mostrando-em-si-mesmo que, no obstante a eventual deselegncia, mantm a ambivalncia da forma participial: quer como forma verbal, quer como forma nominal. Um pouco mais adiante, ainda no mesmo 7, Heidegger usa simplesmente a forma verbal no infinitivo: Phnomen das Sich-an-ihm-selbst-zeigen (HEIDEGGER, 1927/1986: 31, grifo de Heidegger) e, na traduo brasileira aqui usada: O fenmeno, o mostrar-se em si mesmo (HEIDEGGER, 1927/1988: 61, grifo de Heidegger). Este uso do particpio talvez possa remeter ao uso do particpio em grego, em sua mesma ambiguidade: como, em grego, o particpio (n), que particpio presente neutro de (eim: sou). A expresso (n) pode ser entendida como forma participial em que soa o verbo ser: (enai), e, neste caso, (n) significa ser, sendo, ou ainda, ser sendo; mas pode ser tambm entendida no sentido nominal, vindo a se constituir como (t on), com o artigo neutro (t), e, neste caso, significa o ser, ou o sendo, ou tambm, o ser-sendo, ou ainda, como se diz tradicionalmente, a partir do latim (esse: ens, entis), o ente. Ora, com a palavra grega (phainmenon) acontece a mesma ambivalncia do particpio: entre a forma verbal, que remete ao verbo medial (phainesthai: mostrar-se) ou ao verbo ativo (phan: trazer para a luz do dia, pr no claro), e a forma nominal. Esta indicao pode ser de importncia, uma vez que Heidegger anota o seguinte no mesmo 7 de Ser e Tempo: Die [phainmena], Phnomene, sind die Gesammtheit dessen, was am Tage liegt oder ans Licht gebracht werden kann, was die Griechen zuweilen einfach mit [t nta] (das Seiende) identifizierten. Numa traduo livre: Os [phainmena], fenmenos, so a totalidade disso que jaz ou que pode ser trazido luz, o que os gregos algumas vezes simplesmente identificavam com [t nta] (o ente). Note-se que Heidegger no traduz

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    fato de ele ser simples no significa que seja fcil de ser descrito; nem significa

    que no seja rico em seu teor fenomenal. Pelo contrrio, a simplicidade deste

    ver, que a intuio, bastante difcil de ser estudada, pois ela abriga em si

    uma riqueza em seu teor fenomenal.

    Tanto para Husserl como para Heidegger o mtodo fenomenolgico

    tem o seu princpio na intuio. No segundo volume das suas Investigaes

    Lgicas, no 2, Husserl caracteriza a anlise fenomenolgica ao dizer assim:

    ns no queremos absolutamente nos dar por satisfeitos com meras palavras, ou seja, com uma compreenso de palavras meramente simblica [...]. Ns queremos retornar s coisas mesmas. Com o desenvolvimento completo das intuies queremos chegar evidncia; aquilo que aqui se d numa abstrao completa e atual corresponda verdadeira e realmente quilo que as significaes das palavras intencionam. (HUSSERL, 1900/1993: 5-6)

    Esclarecendo, o discurso fenomenolgico busca no deixar no seu

    curso expresses com significados vazios, sem evidncia. Pelo contrrio, ele

    exige que os significados sejam conferidos a partir de uma intuio plena, isto

    , de um ver imediato, daquilo a que eles se referem. O discurso

    literalmente o plural [t nta], a saber, como die Seiende (os entes), mas usa o singular das Seiende (o ente). Assim, [phainmena] e [t nta] dizem o mesmo: tudo aquilo que est patente, desvelado, jacente de modo prvio, trazido luz ou posto no claro; o ser-sendo, o sendo de tudo aquilo que , seja l o que for, numa palavra, o ente como um todo. Tal identificao deixa entender, pois, a identidade de ser e aparecer. De fato, na preleo de 1935, Introduo Metafsica, Heidegger diz que a referncia recproca de emergir e submergir, de surgir e ocultar-se o aparecer, o Ser mesmo. E sintetiza: Como o vir a ser a aparncia do Ser, assim tambm a aparncia, como aparecer, o vir a ser do Ser (HEIDEGGER, 1953/1987: 141).

  • Intuio categorial: um estudo a partir de Heidegger

    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea Braslia, n 2, ano 1, 2013.

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    fenomenolgico reclama sempre um preenchimento (Erfllung)6 dos

    significados apresentados pelas expresses da linguagem com as evidncias

    colhidas a partir das intuies. Ainda nas Investigaes Lgicas, nos

    Prolegmenos para a Lgica Pura, no 41, em que discute um primeiro

    prejulgamento ou preconceito (Vorurteil) do psicologismo, Husserl introduz

    uma observao importante: a iluso (Tuschung) desaparece assim que, em

    vez de se argumentar genericamente, se dirige s coisas mesmas (an die Sachen

    selbst) (HURSSEL, 1900/1993: 155). Faz apario, assim, aquela expresso

    que deveria se tornar a mxima da prpria investigao fenomenolgica: zu

    den Sachen selbst! (s coisas mesmas!). Tal mxima solicita de quem investiga o

    abandono de construes tericas cujas bases so pressupostos injustificveis,

    cujas teses de fundo so prejulgamentos (Vorurteilen) no verificados, ou seja,

    no confrontados com e no fundados em intuies. Este princpio da

    evidncia da coisa mesma reafirmado por Husserl nas Ideias I, de 1913.

    No princpio de todos os princpios: que toda viso originariamente

    doadora uma fonte justa do conhecimento; que tudo aquilo que se nos

    6 A traduo de Erfllung por preenchimento literal e usual. Entretanto, no faz jus amplido do uso desta expresso alem. Erfllung diz algo de um torna-se pleno, cheio, no somente no sentido de preencher um vazio, mas tambm no sentido de cumprir uma inteno. Poder-se-ia traduzir tambm por cumprimento, realizao, verificao, anuncia, satisfao (de uma meta), etc. Husserl fala de um preenchimento negativo, que aquele da desiluso, quando pergunta assim ou no ? d-se uma resposta que expressa a deciso: nem a, nem b, nem c, etc. (cf. HUSSERL, 1900/1993: 449). Isto quer dizer que o cheio ou pleno da Erfllung tem a ver com o preenchimento de uma inteno, no caso, da inteno de uma pergunta, que, se referindo a um estado de coisas ou conjuntura (Sachverhalt), espera confirmao, uma confirmao que se d na verificao, uma verificao que acontece, quando se d a realizao ou o cumprimento do que era esperado. O preenchimento negativo de uma pergunta, pois, o fato de a pergunta receber como resposta um no assim, nem deste, nem daquele modo.

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    oferece originariamente numa intuio (por assim dizer em sua realidade

    efetiva, em carne e osso), h de ser tomado simplesmente como aquilo que se

    mostra, mas tambm s nos limites em que se d a assim, nenhuma teoria

    pensvel pode nos induzir a erro (HUSSERL, 1913/1993: 43-44, traduo

    livre).

    Este princpio da evidncia, ou seja, da intuio, da viso

    originariamente doadora retomado por Heidegger no 7 de Ser e Tempo, em

    que ele, a partir de uma interpretao das palavras gregas

    (phainmenon) e (lgos), conclui que fenomenologia deixar e

    fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si

    mesmo (HEIDEGGER, 1927/1988: 65). No comeo deste pargrafo, com

    efeito, Heidegger diz que fenomenologia no um ponto de vista ou uma

    corrente, mas um conceito de mtodo; que a fenomenologia designa o

    modo de tratamento da questo filosfica, a saber, uma discusso com as

    coisas mesmas, bem como o modo como os objetos da investigao filosfica

    so e se do (cf. HEIDEGGER, 1927/1988: 57). Ali Heidegger apresenta o

    significado da expresso fenmeno como sendo o que se revela, o que se

    mostra em si mesmo (HEIDEGGER, 1927/1988: 58, grifo de Heidegger)

    ou o mostrar-se-em-si-mesmo (HEIDEGGER 1927/1988; 61). Heidegger

    identifica o fenmeno com das Offenbare, o que est aberto, o manifesto, o

    evidente, o patente (HEIDEGGER, 1927/1988: 58). E diz que o fenmeno

    um modo privilegiado de encontro (HEIDEGGER, 1927/1988: 61). Este ,

    no entanto, o conceito formal de fenmeno: se, nesta apreenso do conceito

  • Intuio categorial: um estudo a partir de Heidegger

    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea Braslia, n 2, ano 1, 2013.

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    de fenmeno, ficar indeterminado que ente est sendo interpelado como

    fenmeno e se ficar em aberto se o que se mostra um ente ou um carter

    ontolgico de um ente, ento ter-se- apenas um conceito formal de

    fenmeno. (HEIDEGGER, 1927/1988: 61)

    Do mesmo modo, na preleo de 1925, Heidegger determina a

    intuio como simples colher o que se encontra j dado ele mesmo em

    carne e osso, assim como ele se mostra (HEIDEGGER, 1925/1994: 64).

    Ele adverte, porm, que no se deve meter na significao de intuio mais do

    que o uso fenomenolgico da expresso permite, ou seja, o simples colher o

    que dado em carne e osso, como este se mostra (1925/1994: 64). Isto quer

    dizer que no se deve confundir o uso fenomenolgico do termo intuio

    com outros usos, ou seja, que

    com o termo de intuio em sentido fenomenolgico no se intenciona alguma faculdade particular, algum modo excepcional de transferir-se em territrios e profundidades do mundo de outro modo fechadas, e nem mesmo algum modo de intuio como a entendeu e usou Bergson. (HEIDEGGER, 1925/1994: 64).

    Alm disso, o que aqui para ns mais importante, Heidegger anota

    que: neste conceito primeiramente no est prejulgado, se a intuio sensvel

    (sinnliche Wahrnehmung) o nico e o mais originrio modo de intuir, ou se h

    ulteriores possibilidades de intuio, em vista de outros campos de coisas e

    consistncias (HEIDEGGER, 1925/1994: 64).

    Tanto o conceito formal de fenmeno quanto o conceito aberto de

    intuio abrem espao para que a fenomenologia d passos decisivos que

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    Revista de Filosofia Moderna e Contempornea

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    ampliam a sua envergadura. No conceito formal de fenmeno, apresentado

    por Heidegger no 7 de Ser e Tempo, no est decidido de antemo o que

    que se mostra a si mesmo a partir de si mesmo. Pode ser, diz Heidegger, um

    ente (ein Seiendes) ou um carter ontolgico (Seinscharakter) do ente

    (HEIDEGGER, 1927/1988: 61). Esta abertura do conceito de fenmeno na

    fenomenologia possibilita a superao do conceito vulgar de fenmeno,

    presente na concepo de Kant, que identifica o fenmeno com o ente que se

    torna acessvel por meio da intuio emprica (durch empirische Anschauung)

    (HEIDEGGER, 1927/1988: 61). Ou seja, o conceito fenomenolgico de

    fenmeno vai alm do conceito vulgar de fenmeno, quer dizer, mesmo

    aquilo que Kant chamou de formas da intuio (Formen der Anschauungen)

    so fenmenos no sentido da fenomenologia:

    O que j sempre se mostra nas manifestaes, no fenmeno em sentido

    vulgar, de maneira prvia e concomitante, embora no temtica, pode-se

    mostrar tematicamente. O que assim se mostra em si mesmo (formas da

    intuio) so fenmenos da fenomenologia. Pois evidente que, se Kant, ao

    afirmar que o espao o continente a priori de uma ordem, pretende fazer

    uma afirmao transcendental fundamentada, espao e tempo devem poder

    mostrar-se assim, ou seja, devem poder tornar-se fenmenos.

    (HEIDEGGER, 1927/1988: 61)

    Numa preleo do semestre de inverno de 1925/1926, pronunciada

    tambm em Marburgo e publicada no volume 21 das obras completas sob o

    ttulo de Lgica: A pergunta pela verdade, Heidegger expe a definio

    fenomenolgica de intuio evidenciando sua abertura, ou melhor, sua

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    grande envergadura (HEIDEGGER, 1925-1926/1995: 103). No obstante

    esta grande envergadura, a definio de intuio (Anschauung), no entanto,

    no vaga e difusa, mas sim precisa. Heidegger apresenta esta definio no

    contexto da discusso sobre o que seja o conhecimento, ou melhor, o que

    conhecer (Erkennen). Ele diz que conhecimento, enquanto comportamento

    fenomenolgico, intencional (HEIDEGGER, 1925-1926/1995: 100).

    Intencionalidade significa, aqui, um dirigir-se a alguma coisa. A questo : a

    que se dirige, em sua intencionalidade, o comportamento chamado de

    conhecimento e qual o carter deste dirigir-se mesmo? Ele observa que, se

    eu conheo uma parede, meu ato de conhecer se dirige para a parede mesma.

    Isto parece bvio. Mas este bvio parece ser o que, s vezes, prejulgamentos

    tirados da teoria do conhecimento no nos deixam ver. Precisamos, pois,

    considerar melhor este fenmeno. Isto quer dizer que quando eu conheo

    alguma coisa meu conhecer se dirige para o ente mesmo que conhecido, no

    para contedos da conscincia (Bewusstseinsinhalte). Assim, se eu vejo uma

    parede, meu conhecer no se volta para um contedo de minha conscincia,

    algo como uma imagem que eu tenho da parede na minha mente, mas se volta

    para a parede mesma, se dirige, isto , para ela mesma em concreto, em carne

    e osso. Do mesmo modo, se eu vejo diretamente um ip amarelo, meu

    conhecer no se dirige s sensaes do ip amarelo em minha mente, mas para

    o ip amarelo mesmo, para ele em carne e osso, em pessoa (leibhaftig). O

    a-qu do dirigir-se que o ato de conhecer , portanto, o ente mesmo

    (HEIDEGGER, 1925-1926/1995: 101), e, no caso de uma percepo, este

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    ente mesmo em carne e osso (leibhaftig). O ver de um ip amarelo um ver

    simples (schlichtes Sehen). O fenomenlogo, fiel ao princpio dos princpios,

    deve tomar em considerao isto que simplesmente visto (das Schlicht-gesehene)

    tal como ele visto, ou melhor, tal como ele se mostra. O olhar

    fenomenolgico , pois, um ver simples daquilo que acontece e se d de modo

    simples. Ora, o simples, justamente por causa de sua singeleza ou

    simplicidade, o que, de incio e na maior parte das vezes, nos passa batido, o

    que no percebemos e o que fica esquecido, velado.

    Falamos do conhecer no sentido da percepo de alguma coisa, de uma

    parede, de um ip amarelo. Outro caso, porm, o da mera representao

    (Vorstellung) no sentido da simples presentificao (schlichte Vergegenwrtigung).

    Se eu, por exemplo, de costas para um quadro, falo do quadro, o que que

    acontece, em termos de intencionalidade? Agora eu no mais vejo o quadro,

    eu no mais percebo o quadro. Costuma-se dizer que, neste caso, eu tenho

    uma representao (Vorstellung) do quadro de que eu falo. O que acontece

    com a representao, em termos de anlise da intencionalidade? Seguindo o

    modo de dizer de Brentano, ns poderamos dizer: na representao algo

    representado7. Isto parece bvio, mas, de novo, aqui se inserem muitas vezes

    7 Faz-se, aqui, uma rpida aluso passagem em que Brentano anuncia a intencionalidade: todo fenmeno psquico caracterizado por aquilo que os escolsticos medievais chamaram de in-existncia intencional (ou seja, mental) de um objeto, e que ns gostaramos de chamar, mesmo se com expresses no de todo privas de ambiguidade, de referncia (Beziehung) a um contedo, de orientao (Richtung) rumo a um objeto (que, neste contexto, no h de ser entendido como alguma coisa real), ou de objetividade imanente (immanente Gegestndlichkeit). Todo fenmeno psquico contm em si algo como objeto, mesmo se cada um no do mesmo modo. Na representao algo representado, no juzo alguma coisa aceita ou rejeitada, no amor algo amado, no dio odiado, no desejo, desejado, etc. Esta in-existncia intencional peculiar somente aos fenmenos psquicos. Nenhum fenmeno fsico mostra alguma coisa deste gnero. E, portanto, ns podemos definir os fenmenos psquicos,

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    prejulgamentos da teoria do conhecimento. Por exemplo, pode-se alegar que,

    num caso como este, meu comportamento se volta para uma representao

    do quadro e no para o quadro mesmo.

    J falamos da percepo, que tem presente o percebido ele mesmo em

    carne e osso, e da representao que torna presente o ente mesmo, mas que

    no o tem presente em carne e osso. H, porm, um terceiro caso de

    comportamento cognoscitivo, que o intencionar vazio (Leermeinen). Neste

    caso, o intencionado do comportamento, o que ele tem em mira, aquilo a que

    ele se dirige, tambm o ente mesmo, s que ele dado sem evidncia

    intuitiva. Heidegger observa que

    o ente que se faz presente como percebido, tem o carter de a-em-carne-e-osso (Leibhaft-da). Ele no somente dado como ele mesmo, mas dado como ele mesmo (als es selbst gegeben) em sua presena em carne e osso (es selbst in seiner Leibhaftigkeit) (...) A presena em carne e osso um modo privilegiado de autodatidade (Selbstgegebenheit). (HEIDEGGER, 1925/1994: 53-54)

    No caso de uma ponte, por exemplo, na percepo, ela mesma me

    dada em carne e osso; j na representao eu a torno presente para mim

    mesmo e ela me dada como ela mesma, mas no em carne e osso. E no

    intencionar vazio? O que, em termos de anlise intencional, acontece?

    O intencionar vazio um tipo de representao de algo no modo do

    pensar em alguma coisa, do recordar (HEIDEGGER, 1925/1994: 54).

    Suponhamos uma conversa sobre a ponte. Eu intenciono a ponte mesma, sem dizendo que eles so tais fenmenos que contm objetos em si mesmos no modo intencional (intentional). (BRENTANO, 1874/1989: 175).

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    que eu, com isso, simplesmente a veja em seu aspecto, como dada em carne e

    osso. Neste caso, eu viso, tenho em mente, a ponte mesma, mas num

    intencionar vazio. Diz Heidegger que neste tipo de discurso se move uma

    grande parte de nosso discurso natural (HEIDEGGER, 1925/1994: 54).

    Tambm neste caso do intencionar vazio ns temos em mente as coisas

    mesmas e no imagens ou representaes delas, ainda que ns no as

    tenhamos presentes em carne e osso. O intencionado (Gemeinte) visado

    diretamente (direkt), simplesmente (schicht) como ele mesmo (selbst) , s que

    de maneira vazia, isto , sem preenchimento intuitivo (anschauliche Erfllung).

    A intuio (Anschauung) se define como um ter que apreende o ente

    mesmo na sua presena em carne e osso (1925-1926/1995: 102-103).

    Partindo deste conceito fenomenolgico de intuio, pode-se dizer que no h

    apenas uma intuio sensvel. Vejamos como Heidegger expe esta

    possibilidade:

    Por conseguinte, conhecimento o ter que apreende o ente mesmo em

    sua presena em carne e osso. Este ter que apreende o ente mesmo em carne

    e osso designado na fenomenologia como intuio (Anschauung): esta a

    definio fenomenolgica da intuio. E a intuio no limitada s queles

    modos de colher o ente em que se trata de ver, no sentido estrito, de ver com

    os olhos, mas compreende tambm a escuta de uma pea musical; quando esta

    mesma escutada, caracterizada fenomenologicamente como intuio,

    enquanto o colher um colher o ente mesmo na sua presena em carne e

    osso. Do mesmo modo, dizemos que, quando pronunciamos o juzo 2 x 2 =

    4, executando assim expressamente esta proposio com base nas suas

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    posies singulares, que compreendemos em si mesmo aquilo que dizemos,

    duas vezes dois igual a quatro, dizemos ento que esta enunciao uma

    enunciao intuitiva (anschauliche), uma enunciao que intui (anschauende), ou

    seja, que a coisa intencionada se faz presente ela mesma. Aqui a coisa

    intencionada no certamente uma coisa que se possa perceber com os

    sentidos, que se possa ver com os olhos ou escutar com os ouvidos; todavia,

    se deve apreend-la naquilo que ela mesma e se deve t-la para a

    compreenso. O conceito de intuio deve ser tomado aqui em sentido

    amplssimo, num sentido que, no obstante a sua amplido, bem definido.

    H intuio toda vez que a coisa intencionada no comportamento presente

    em carne e osso (leibhaftig anwesend). A percepo apenas um modo de

    intuio, ou seja, aquele para o qual a sensibilidade (Sinnlichkeit)

    constitutiva. (HEIDEGGER. 1925-1926/1995: 102-103)

    Uma proposio como 1 + 2 igual a 2 + 1 pode ser pronunciada s

    cegas, sem pensar, ou pode, por outro lado, ser dita de modo que, a cada

    passo, se faa uma presentificao (Vergegenwrtigung) do que nela visado

    (Gemeinte). O que importa como a proposio enunciada, ou seja, como

    executado ou realizado (vollzogen) o intencionar do juzo: se executado sem

    pensar, sem evidncia, ou se realizado de modo a ver, a ter evidncia do que

    se trata a cada passo, isto quer dizer, se cada determinao da proposio

    presente ao que julga em seu significado originrio, por meio de uma

    originria, intuitiva, presentificao. Entretanto, Heidegger anota que no

    modo do pensar intuitivo, isto , do pensar que mostra as coisas (an den Sachen

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    ausweisenden) ns nos movemos s raramente, a maioria das vezes, ao

    contrrio, ns nos movemos em um pensar abreviado e cego (in verkrzten und

    blinden Denken) (HEIDEGGER, 1925/1994: 55). Decisivo aqui o fato de

    que o que torna o pensamento, ou melhor, o juzo ou o discurso pleno de

    evidncia, preenchido, a intuio. a intuio que mostra, ou seja, que faz

    ver aquilo de que se est falando ou em que se est pensando. ela que

    preenche o intencionar vazio. ela que d o preenchimento intencional ao

    presumir (vermeinen) atuante no nosso falar sobre as coisas.

    A diferena entre percepo, representao e intencionar vazio no se

    decide com base naquilo que o contedo coisal (o o qu) do ato

    intencional, mas sim com base no como se d a intencionalidade do ato em

    questo. o que nos esclarece Cheung:

    Estes trs modos de relacionamento, a percepo no sentido de presentificao em carne e osso, a representao no sentido de uma simples presentificao e o intencionar vazio, formam uma conexo estrutural, em que todos os trs modos so direcionados para o como da datidade do ente. A diferena entre eles no concernente ao contedo coisal dos diversos modos, mas se refere unicamente intencionalidade de seu respectivo ser-intencionado (CHEUNG, 1983: 57-58).

    A estes trs modos de intencionar alguma coisa num comportamento

    cognoscitivo pode se acrescentar um quarto modo, que o da percepo por

    imagem (Bildwahrnehmung). Aquilo que percebido por imagem tem uma

    estrutura totalmente diversa do que percebido por uma simples percepo e

    do que representado por uma simples presentificao. Se, por exemplo, eu

    olho um carto postal de alguma paisagem (digamos, da Foz do Iguau, por

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    exemplo), o que me dado em forma direta, corprea, em carne e osso, o

    carto postal ele mesmo. Mas, o carto-postal uma coisa-imagem (Bildding).

    Por meio desta coisa-imagem eu vejo o que nela retratado. Meu intencionar

    se volta para a coisa retratada e no propriamente para a coisa-imagem. Se

    vejo um carto postal de Foz do Iguau meu intencionar se volta para a Foz

    do Iguau e no para o carto postal. Na conscincia da imagem

    (Bildbewusstsein) h a coisa-imagem (Bildding) e aquilo que retratado (das

    Abgebildete), no caso de nosso exemplo, o carto postal e a Foz do Iguau. A

    conscincia perceptiva de alguma coisa bem diversa, em sua estrutura, da

    conscincia da imagem. Naquela, eu vejo a coisa mesma, diretamente. Nesta,

    eu vejo o que retratado por meio de uma coisa-imagem. Uma confuso se

    instala quando, por exemplo, se interpreta a percepo como se no ato

    perceptivo o percebido fosse uma imagem da coisa e no a coisa mesma, em

    carne e osso: como se fosse dada uma imagem da coisa como um retrato da

    coisa que existe l fora, ou seja, como se dentro (da conscincia) houvesse

    uma imagem subjetiva da coisa e fora, em sentido transcendente, houvesse o

    que retratado por esta imagem. Esta concepo, no entanto, no aceitvel,

    pelo simples fato de que ela no corresponde ao que se pode encontrar no

    prprio fenmeno. (HEIDEGGER, 1925/1994: 55-57)

    Heidegger afirma que h uma conexo funcional entre os quatro modos

    do ter presente alguma coisa:

    Ns temos dentro da multiplicidade dos modos do representar (des Vorstellens) ao mesmo tempo uma determinada conexo: intencionar vazio, presentificao, apreenso por imagem e simples perceber no so simplesmente postos um ao lado do

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    outro, mas tm em si uma determinada conexo estrutural. Um intencionar vazio pode se preencher intuitivamente, por exemplo, na presentificao intuitiva. O que intencionado na inteno vazia, no pensar sem ideias (im gedankenlosen Denken), intuitivamente no pleno, falta-lhe a plenitude da intuio (die Flle der Anschauung). A presentificao tem a possibilidade do preenchimento intuitivo (der anschaulichen Erfllung) at um certo grau, medida que presentificao nunca pode dar a coisa mesma (die Sache selbst) em sua datidade em carne e osso (in ihrer leibhaftigen Gegenbenheit), (HEIDEGGER, 1925/1994: 59).

    Vimos, entretanto, que a intuio no se restringe intuio sensvel,

    quela que se d numa percepo sensorial. o caso, por exemplo, da

    intuio que acompanha o juzo 2 x 2 =4 ou ainda 1+2 = 2 + 1. Isto quer

    dizer que pode haver uma intuio no sensvel. A esta intuio Husserl

    chamou de categorial. Tentemos, primeiramente, ao menos uma

    compreenso verbal desta expresso: intuio categorial. Primeiramente,

    significa que uma intuio de categorias. Ora, o problema da constituio

    das categorias, na filosofia, um difcil problema. O que so categorias? Qual

    o seu estatuto? No contexto deste problema se formulou, desde Porfrio e

    Bocio, e se discutiu amplamente na Idade Mdia, o problema dos universais.

    No podemos seguir, neste artigo, esta via histrica. Tentemos, antes, buscar

    uma compreenso do que a fenomenologia chama de intuio categorial e

    apenas deixamos como uma aluso a afirmao de que a doutrina da intuio

    categorial vem ao encontro do problema das categorias em geral e do

    problema dos universais em particular, problemas dos mais difceis e

    debatidos na histria da filosofia.

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    Para se entender o que chamado de intuio categorial na

    fenomenologia preciso pressupor o entendimento do que o

    preenchimento intencional. O preenchimento (Erfllung) mesmo tem um

    carter intencional. Preenchimento significa:

    Ter presente (Gegenwrtighaben) o ente em seu teor intuitivo, de tal modo que nele se demonstre (ausweist) como fundado nas coisas mesmas (in den Sachen selbst) o que antes era s algo presumido vazio. A percepo, respectivamente, o que ela d, demonstra (weis aus). A inteno vazia se demonstra na conjuntura (Sachverhalt) dada na intuio (Anschauung); a percepo originria d a demonstrao (Ausweisung). (HEIDEGGER, 1925/1994: 66)

    Com a intuio, atos significantes (signitiven Akten) atuados no modo de

    um intencionar vazio (leermeinen), de um simples presumir (vermeinen), se

    transformam em atos pregnantes de evidncia intuitiva8. Isso nos leva

    questo da relao entre evidncia e verdade. No fim do primeiro volume das

    Investigaes Lgicas, em que Husserl combate o psicologismo em suas

    consequncias e em suas pressuposies, ele estabelece a relao de evidncia

    e verdade. A evidncia no outra coisa que a vivncia da verdade ( das

    Erlebnis der Wahrheit). Com outras palavras, a verdade uma idia, cujo

    caso singular est na vivncia atual no juzo evidente (Wahrheit ist eine Idee, deren

    8 H que se observar que a presentificao intuitiva no d a plenitude que d a percepo, que oferece o ente mesmo em carne e osso. Mas, mesmo a percepo sensvel das coisas materiais no total: ela doa o ente mesmo de uma maneira originria, mas sempre, todavia, desde um lado. Por mais adequada que possa ser uma percepo, o ente percebido se mostra sempre cada vez somente em um determinado sombreamento (Abschattung). No tocante ao carter definitivo e completeza da plenitude (Flle), que uma intuio preenchedora pode dar, h uma diferena. Ns falamos de um preenchimento definitivo e total quando, do lado do intencionar, todas as intenes parciais so preenchidas, e, do lado do intuir que d o preenchimento, este apresenta a coisa inteira em sua totalidade (HEIDEGGER, 1925/1994: 65-66).

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    Einzelfall im evidenten Urteil aktuelles Erlebnis ist) (HUSSERL, 1900/1993: 190).

    No caso de um juzo evidente, a intencionalidade do ato de julgar no se

    efetua de um modo vazio ou cego, mas dirige-se ao intencionado como a um

    estado de coisas que se faz presente (gegenwrtig), que se doa atualmente com

    base em uma apreenso originria. Dito brevemente: O juzo evidente

    conscincia de uma datidade originria (Das evidente Urteil ist ein Bewusstsein

    originrer Gegebenheit) (HUSSERL, 1900/1993: 190). A verdade, porm, mais

    do que a evidncia:

    A vivncia da concordncia (das Erlebnis der Zusammenstimmung) entre a inteno (der Meinung) e aquilo que presente em si mesmo (dem selbst Gegenwrtigen), aquilo que esta intenciona, ou seja, entre o sentido atual do enunciado (dem aktuellen Sinn der Aussage) e o estado de coisas autodoado (dem selbst gegebenen Sachverhalt) a evidncia, e a idia desta concordncia a verdade. (HUSSERL, 1900/1993: 190-191 itlico de Husserl)

    Outro tema preliminar importante para se entender a intuio categorial

    o da intuio e expresso. O intencionar vazio e o preenchimento intuitivo

    se do no medium, isto , no elemento da linguagem, ou seja, do falar, do

    discorrer sobre, e, mais estritamente, do julgar. Heidegger observa que, via de

    regra,

    Nossos comportamentos, nossas vivncias, falando em sentido amplo, so vivncias expressadas, ainda que no por palavras, mas expressadas em uma determinada articulao graas a uma compreenso que eu tenho delas, medida que eu simplesmente vivo nelas, sem que eu as considere de modo temtico. (HEIDEGGER, 1925/1994: 65)

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    Para ns, viver compreender, ou seja, articular significados. Mesmo

    quando no falamos em voz alta para os outros ou para ns mesmos, ns, em

    todas as nossas vivncias, estamos articulando significados, ou melhor,

    estamos articulando as significncias (Bedeutsamkeiten) do mundo. O mundo

    no , para ns, uma totalidade de objetos, mas uma totalidade de

    significncias, uma totalidade significativa. Viver, ser-no-mundo, significa,

    fundamentalmente, compreender, articular significncias. , por isso mesmo,

    tambm interpretar: apropriar-nos das significncias do mundo, a partir de

    determinados horizontes de compreensibilidade, de sentido. As expresses se

    do j neste nvel mais profundo do compreender e interpretar e somente a

    partir da que possvel todo pronunciamento e comunicao, bem como

    toda enunciao:

    Enunciados so atos de significado (Bedeutungsakte), e enunciados no sentido da proposio formulada so somente determinadas formas de expressividade no sentido de expressar vivncias ou comportamentos atravs do significado. um mrito essencial das investigaes fenomenolgicas, que este sentido prprio do expressar e do ser-expresso de todos os comportamentos fundamentalmente tenha sido colocado no primeiro plano da questo sobre a estrutura do lgico. Isto no de se admirar, se se pensa que, facticamente, nossos comportamentos via de regra so impregnados por enunciados, que eles de vez em vez so realizados em determinada expressividade. Facticamente tambm assim que nossas mais simples percepes e disposies so j expressadas, mais ainda, so interpretadas de determinada maneira. Ns no vemos tanto nem primordialmente nem originariamente os objetos e as coisas, mas ns, de incio, falamos sobre, mais exatamente, ns no falamos do que vemos, mas, ao contrrio, ns vemos aquilo que se fala sobre a coisa.

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    Esta peculiar determinao do mundo e sua possvel apreenso e colhimento atravs da expressividade, atravs do j-ser-falado-e-discutido, deve agora ser fundamentalmente trazida ao olhar na pergunta sobre a estrutura da intuio categorial. (HEIDEGGER, 1925/1994: 75)

    Para mostrar o significado e a estrutura da intuio categorial,

    Heidegger d um exemplo de enunciado: esta cadeira amarela e

    almofadada. Este um enunciado bastante simples. Ns o escutamos e o

    compreendemos. Mas, vamos agora refletir sobre ela, retomando a questo do

    preenchimento (Erfllung). Podemos observar que este enunciado no

    informe. Ele tem a forma este S p e q. A questo agora : este enunciado

    encontra pleno preenchimento naquilo que ou pode ser percebido?

    Certamente eu posso perceber uma cadeira; posso perceber tambm o

    amarelo; como posso perceber ainda uma almofada. Mas, pode-se perceber o

    esta? Ou: o ? Ou ainda: o e? Husserl, nas Investigaes Lgicas, mais

    exatamente no incio de sua Sexta investigao, levanta o problema do

    preenchimento dos momentos significativos de um enunciado. A todas as

    partes e a todas as formas do significado correspondem tambm partes e

    formas da percepo? (HUSSERL, 1901/1993: 129). Husserl mostra que

    mesmo num enunciado simples como esta folha branca h uma

    excedncia de significado que no pode ser preenchida com uma intuio

    sensvel, ou seja, com uma percepo, entendendo-se percepo em sentido

    estrito, como percepo sensorial. J o verbo ser da cpula uma

    excedncia de significado (HUSSERL, 1901/1993: 130-131). Heidegger, do

    mesmo modo, no exemplo do enunciado esta cadeira amarela e

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    almofadada, observa como o este, o e o e no podem ser vistos, no

    sentido da intuio sensvel. Ele constata: no completo enunciado de

    percepo reside uma excedncia em intenes (berschuss an Intentionen), cuja

    demonstrao (Ausweisung) no pode ser sustentada atravs da simples

    percepo da coisa. (HEIDEGGER, 1925/1994: 77)

    Suponhamos que tomemos em considerao no um enunciado, mas

    uma tese nominal, quer dizer, que tomemos em considerao no a expresso

    esta cadeira amarela, mas a expresso a cadeira amarela; neste caso,

    haveria um preenchimento pleno? Heidegger responde que no. que, ao

    nomear a cadeira amarela, eu no fundo intenciono no a cadeira pura e

    simples, mas a cadeira como sendo amarela. Eu posso ver a cadeira, posso ver

    a cor amarela, mas no posso ver o ser-amarelo da cadeira. O ser , pois,

    um excedente. O ser no de fato um momento real da cadeira, como a

    madeira de que ela feita, o seu peso, a sua dureza, a sua cor, sua almofada ou

    suas costas.

    Ser dizia j Kant e intenciona com isso o ser-real (das Real-sein) no um predicado real do objeto. Isso vale tambm para o ser no sentido da cpula. Claramente no h nem mesmo alguma adequao entre enunciado e percebido; este ltimo permanece, no contedo coisal, atrs daquilo que o enunciado diz dele. O enunciado expressa aquilo que no absolutamente encontrvel em um modo conforme percepo. Ento no deve talvez ser abandonada a ideia de um preenchimento adequado dos enunciados em geral e com isso a ideia da verdade? (HEIDEGGER, 1925/1994: 78)

    Antes, porm, de tirar concluses apressadas e de desistir da ideia da

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    verdade, preciso olhar com mais ateno para toda esta situao, to difcil

    de ser percebida, quanto simples e cotidiana. Em nosso expressar mesmo

    nas expresses mais elementares estamos sempre trazendo fala algo mais

    do que aquilo que percebemos, do que aquilo que conhecemos por meio de

    uma intuio sensvel. Como possvel que algo assim acontea?

    Posso ver a cadeira, posso ver a cor-amarela, mas no posso ver o ser-

    colorido, o ser-amarelo, no posso ver o ser-amarelo da cadeira. O ser no

    nada de real (realis), no sentido de ser um predicado da coisa (res). O ser no-

    sensvel, no-real. O mesmo vale para momentos significativos como a

    unidade, a pluralidade, o e, o ou. A filosofia moderna, Descartes,

    Locke, Kant e de certa maneira ainda o idealismo alemo, dizia que a origem

    do no-sensvel na expresso reside na percepo imanente, na reflexo da

    conscincia. Ora, a fenomenologia discorda desta tese. Se observarmos o que

    nos dado por meio da percepo interior, da percepo imanente, ou por

    meio do sentido interno, o que encontramos somente processos psquicos

    reais, por exemplo, os atos de julgar, desejar, representar, perceber, recordar

    etc. Podemos dizer at mesmo que o que se d por a uma percepo

    imanente, como fenmeno psquico, ainda sensvel, entendendo agora a

    sensibilidade num sentido mais amplo, que envolve no somente o fsico, mas

    tambm o psquico. Husserl contestou, pois, esta concepo da filosofia

    moderna. Ele diz nas Investigaes Lgicas:

    No na reflexo sobre os juzos, ou melhor, sobre os preenchimentos judicativos, mas nos preenchimentos judicativos mesmos reside verdadeiramente a origem dos conceitos de estados de coisa e de ser (no sentido da cpula); no nestes atos enquanto objetos, mas nos objetos destes atos encontramos o

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    fundamento da abstrao para a realizao destes conceitos (HUSSERL, 1901/1993: 141).

    um prejulgamento injustificvel a identificao de no-sensvel, no-

    real, com subjetivo, imanente. Se contedos significativos no sensveis, no

    reais, como ser, e, ou, um, muitos, todos, mas, no so nem

    fsicos, nem psquicos, mas so objetos de expresso, ento a pergunta que

    segue : de que tipo de objetualidade se trata? Heidegger diz:

    Estes momentos no so demonstrveis mediante percepo sensvel, mas so demonstrveis todavia no modo de um preenchimento essencial do mesmo tipo, isto , da autodoao originria nos correspondentes atos doadores (...). Os momentos do enunciado pleno, para os quais no h preenchimento na percepo sensvel, conservam este preenchimento por meio da percepo no-sensvel por meio da intuio categorial. O categorial constitudo pelos momentos, at agora no esclarecidos no seu preenchimento, do enunciado pleno. (HEIDEGGER, 1925/1994: 80-81)

    Com isso, os conceitos de percepo e de intuio so ampliados. Eles

    transcendem o sensvel. Transcendem tanto o fsico quanto o psquico.

    Transcendem o real.

    A percepo sensorial simples, no sentido de ser inteiria, sem nveis,

    ou melhor, ela de um s nvel. No entanto, ela pode ser constituda em

    diversas fases, de diversas intenes parciais, cada uma abrangendo um

    aspecto, uma nuance, da coisa. Por ser assim simples e inteiria, a percepo

    sensvel fundante de toda percepo. Husserl chama os atos de percepo

    sensvel de fundantes, e os atos de percepo ou intuio categorial de

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    fundados. Cada tipo destes atos possui a sua prpria intencionalidade. Isso

    significa: atos de percepo sensvel, fundantes, e atos de intuio categorial,

    fundados, cada qual tem o seu modo de intencionar e cada qual tem o seu

    intencionado, ou seja, cada qual tem o seu modo de se dirigir ao que intudo

    e cada um tem o modo prprio de se constituir a objetualidade do que em

    seu intuir intudo. Os atos categoriais no so uma mera repetio dos atos

    fundantes simples. Nisso reside o fato que os atos fundados abrem de modo

    novo os objetos simplesmente j dados, de tal modo que eles vm a um

    colhimento explcito justamente naquilo que eles so. (HEIDEGGER,

    1925/1994: 84)

    Mas quais os tipos de atos fundados, de atos de percepo no-sensvel,

    de intuio categorial? Heidegger fala de dois tipos de atos de intuio

    categorial: os atos de sntese e os atos de ideao. Os atos de sntese tm

    como correlatos as categorias lgicas. Os atos de ideao tm como correlatos

    os universais. Ao expressar o enunciado a cadeira amarela e almofadada

    ns ressaltamos um estado de coisas, uma conjuntura (Sachverhalt): o ser

    amarelo e almofadado da cadeira. A conjuntura no uma parte real da coisa.

    Ela de natureza ideal (HEIDEGGER, 1925/1994: 86). Este ressaltar tem

    o carter de uma sntese em sentido intencional. Nesta sntese, o p (ser-

    amarelo) e o q (ser-almofadado) se mostram como pertencentes a S (o

    ente cadeira). O ressaltar do ato categorial produz, pois, uma nova

    objetualidade que torna mais explcito, que descobre, o que j era dado na

    percepo sensvel. Isso nos leva a ampliar tambm o conceito de

    objetividade.

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    No caminho da compreenso daquilo que presente na intuio categorial, se pode aprender a ver que a objetividade de um ente no se exaure justamente naquilo que, enquanto realidade, determinado neste sentido to estreitamente definido; se pode ver que a objetividade ou objetualidade no sentido mais amplo muito mais rica do que a realidade de uma coisa; ainda mais, se pode ver que a realidade de uma coisa compreensvel na sua estrutura s a partir da plena objetividade do ente simplesmente experimentado. (HEIDEGGER, 1925/1994: 89).

    Este aprender a ver adquire agora uma nova amplido se considerarmos

    os atos de ideao. Trata-se da intuio do universal. Enquanto os atos de

    sntese tornam objetivas as conjunturas ou estados de coisa, os atos de ideao

    doam, de modo simples, um objeto no individual, ou seja, doam um objeto

    universal, com outras palavras, doam a ideia, o eidos, a espcie. Ao ver uma ou

    muitas esferas eu tambm intuo a espcie esfera. Ora, a espcie chamada

    esfera no nenhuma esfera individual. Mas, para que eu possa perceber

    uma esfera como esfera preciso que eu j intua tambm, previa e

    concomitantemente, embora de modo no temtico, o significado da espcie

    esfera. A espcie, porm, no nada de real, nem na coisa nem na

    conscincia. A ideia ou espcie , pois, de outra objetualidade. Entretanto, o

    ato categorial de ideao no pode se dar sem estar fundado no ato de

    intuio sensvel. Conclui-se que:

    A intuio concreta, que oferece de modo explcito o objeto no uma percepo isolada, uma percepo sensvel monogradual, mas uma percepo graduada, ou seja, determinada em sentido categorial. S esta plena percepo graduada, categorialmente determinada, o preenchimento possvel do enunciado que lhe oferece a prpria expresso. (HEIDEGGER, 1925/1994: 93)

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    O que se pode concluir de tudo isso que: a descoberta da intuio

    categorial atesta que h um apreender simples no s do que se d na

    percepo sensorial, mas tambm h, junto com essa, um apreender simples

    do categorial. Com outras palavras, a descoberta da intuio categorial

    atesta que, na percepo cotidiana, ou seja, na percepo concreta da coisa,

    em toda experincia, se d tambm uma percepo do estado de coisas e do

    ideal. Isso significa, ainda, que h atos em que consistncias ideais se mostram

    a si mesmas, sem que sejam criaes destes atos, funes de pensamento,

    produtos do sujeito. Com outras palavras, ns j sempre vemos o visvel no

    invisvel. Sem ver o invisvel, jamais poderamos ver nem mesmo o visvel.

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