a internet e a rua

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  • @internet e #rua

  • Conselho editorialda Coleo Cibercultura

    Adriana AmaralAndr LemosAlex Primo

    Clvis Barros FilhoDenize ArajoErick Felinto

    Fernanda BrunoFrancisco Menezes

    Juremir Machado da SilvaLuis GomesPaula Sibilia

    Raquel RecueroSimone Pereira de S

    Vinicius Andrade Pereira

  • @internet e #rua

    ciberativismo e mobilizao nas redes sociais

    Fbio Malinie

    Henrique Antoun

  • Autores, 2013

    Capa: Humberto NunesProjeto grfi co: Fosforogrfi co/Clo Sbardelotto Editorao: Clo SbardelottoReviso: Gabriela Koza Reviso grfi ca: Miriam Gress

    Editor: Luis Gomes

    Agosto / 2013Impresso no Brasil / Printed in Brazil

    Todos os direitos desta edio reservados

    EDITORA MERIDIONAL LTDA.

    Av. Osvaldo Aranha, 440 conj. 101CEP: 90035-190 Porto Alegre RSTel.: (51) 3311 4082 Fax: (51) 3264 4194 [email protected]

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Bibliotecria responsvel: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960

    M251i Malini, Fbio A internet e a rua: ciberativismo e mobilizao nas redes sociais/ Fbio Malini e Henrique Antoun. Porto Alegre: Sulina, 2013. 278 p.; (Coleo Cibercultura)

    ISBN: 978-85-205-0684-4

    1. Redes Sociais. 2. Comunicao Digital. 3. Cibercultura. 4. Comunicao de Massa Aspectos polticos. 5. Internet Aspectos Polticos. 6. Redes Sociais Poltica. I. Antoun, Henrique. II. Ttulo.

    CDU: 004.738 007 316.77 CDD: 301.14 301.243

  • Agradecimentos

    Francis Sodr. Jacqueline Ado Humel Antoun.

  • SumrioPrefcio .................................................................................. 9

    1. A INVENO DO CIBERESPAO ............................ 17 A inveno do midialivrismo, ou o hacker de narrativas .. 21 Cultura informtica e as lutas antidisciplinares ................. 25 A Internet aberta das BBSs e da Usenet ............................ 32 Hackers, crackers e a cultura livre .................................... 41 O nascimento do copyleft ................................................... 43 A contracultura da cultura hacker ..................................... 45 A superestrada capitalista da informao em rede ............ 47

    2. A LEI DOS PARES NA CIBERCULTURA .................. 55 Sombra da Jihad e do McMundo ................................... 60 Comunidades de araque ................................................... 63 O imprio e as redes .......................................................... 65 O advento da guerra em rede ............................................. 67 O imprio se investiga ....................................................... 70 As redes de guerra em rede e a multido ........................... 75 O ciberespao entre parnteses? ........................................ 78 Micropoltica da multido ................................................. 80 A multido armada ............................................................ 83 A parceria e a gesto do comum ........................................ 86 O Napster e as mediaes do P2P ...................................... 90 O Gnutella e a distribuio descentralizada ...................... 94 A arquitetura semicentralizada da parceria ....................... 99 O Emule e a interao das redes P2P ................................ 104 O processo no linear integrado do Torrent ...................... 105 Sistemas de gesto do comum e a fria do capital ............ 109 A parceria e a publicao colaborativa em rede ................ 111 Jornalismo participativo nos portais ................................. 113 Jornalismo participativo na nova mdia ............................ 115 Genealogia da blogosfera e a luta por autonomia .............. 117 O advento dos dirios ....................................................... 120 Blogs furam os portais da Internet .................................... 123 A potncia da comunicao e da parceria ......................... 129 O nascimento da mdia livre .............................................. 134

  • Ativismo, ao direta e mdia livre .................................... 137 Escolha, liberdade e resistncia ......................................... 140 Militncia e ativismo ........................................................ 143 Intempestividade, movimento e comunidade .................... 144 O logal e a mdia livre ....................................................... 145

    3. CIBERATIVISTAS NAS REDES E RUAS ................... 152 Monitoramento e disputa pela primazia das narrativas ..... 158 A liberdade negativa, ou o biopoder na Internet ............ 160 A guerra do cdigo e os limites da rede colaborativa ....... 165 O monitoramento e seu debacle no 4chan ......................... 168 Anonimato, audincia e mdia livre .................................. 170 A liberdade positiva, ou a biopoltica na rede .................... 175 A guerra das narrativas entre blogs e mdia: a luta social na democracia ................................................ 178 Multimdias: dos meios de informao aos meios de coordenao .................................................................. 184 As lutas atuais e as demandas de subjetivao .................. 188 A censura como monitoramento e o vazamento como resistncia na Web 2.0 .............................................. 190 A censura ps-moderna na Web 2.0 ................................ 194 Modos narrativos e prticas polticas ................................ 205 Vazamento, anonimato e franqueza nos movimentos sociais ..................................................... 207

    4. O DEVIR MUNDO DO OCUPAR ................................. 210 Timeline, perfi s e o valor do compartilhamento ................ 213 Conversao, controvrsias e cuidado de si ....................... 217 Narrativas, redes sociais e mobilizao poltica ................ 220 Mobilizao social e comportamento informacional no Twitter ................................................... 224 Os perfi s ocupam o mundo ................................................ 230 Ativismo e novas narratividades ....................................... 242 Imprensa como hub, perfi s como narradores .................... 246

    Notas ....................................................................................... 250

    Referncias ............................................................................. 263

  • 9Prefcio

    Ns somos a rede social

    Ivana Bentes

    Diante da proposta de muitos grupos ativistas de exdo e sada em massa das plataformas e redes sociais fechadas e coor-portivas (Google, Facebook e outras por vir) que nos submetem a um novo regime de expropriao, monetizam nossas conexes afetivas, monitoram nossas redes de relaes, se apropriam de nossa inteligncia, tempo e vida, uma questo surge de forma perturbadora: mas e se a revoluo e a resistncia comearem por a? Afi nal, as revoltas e as mudanas no capitalismo fordista no vieram justamente de espaos de lutas e assujeitamento? As redes sociais e plataformas no so, no capitalismo cognitivo, o equivalente ao cho de fbrica fordista?

    A provocao tem como objetivo explicitar o que seja tal-vez uma das questes mais difceis do presente urgente: como afi nal se movimentar e resistir de dentro dos poderes, como lutar de dentro do capitalismo sabendo que, por exemplo, dian-te de empreendimentos corporativos que capitalizam o comum, sempre podemos contrapor a multido (Primavera rabe, 15M na Espanha, Occupy Wall Street, os protestos de junho de 2013 e manifestaes em todo o Brasil) que vem hackeando os siste-mas de monetizao da vida e se apropriando de suas ferramen-tas e tecnologias para produzir resistncia, turbulncias, desvios, invenes.

    Este livro, lanado em meio turbulncia, faz uma histria do presente e trata destas novas lutas e embates recorrentes, em

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    que no h lugar para dualismos e maniquesmos, ao contrrio, busca reposicionar e analisar as conexes entre o mundo digital e analgico, as redes digitais e a multido nas ruas, a linha que conecta a contracultura, as lutas antidisciplinares dos anos 60 e 70, a cultura digital, o ativismo hacker, as narrativas midialivris-tas, as demandas por governana, a democracia participativa, o fi m da cultura do segredo. Estamos falando de um momento de codependncia entre diferentes campos e de reconfi gurao con-ceitual e poltica.

    Os autores, Henrique Antoun e Fbio Malini, pesquisa-dores e ativistas, atravessam a historiografi a, arregimentam con-ceitos, analisam movimentos e aes ativistas traando um vivo panorama para pensarmos o presente urgente. Poderamos dizer que esse livro busca mapear e cartografar, tensionar, analisar e apontar caminhos, menos que responder a uma questo inquie-tante: afi nal, o que est acontecendo? o que nos perguntamos a cada dia diante das mudanas e mutaes nas formas de estarmos juntos. Pois, sem dvida, estamos imersos e atravessados por um novo bios, uma midiosfera constituda de redes, dispositivos, dados, processos de interao humano/no humanos, que curto- circuitaram a separao entre as redes e a rua.

    Esse o ponto de partida dos ensaios e anlises de caso do livro, pois nos movimentamos em ambientes hbridos, reais/vir- tuais, em que o download do ciberespao projetado por William Gibson em Neuromancer experimentado no cotidiano, e o que chamamos de ciberespao no pode mais ser concebido como um espao social separado. No entramos mais na Internet, ela nos atravessa de diferentes formas em conexes a cu aberto que lutamos para democratizar e acessar. Ns somos a rede social, como disseram os manifestantes brasileiros nas ruas.

    Tendo como pano de fundo as mutaes no capitalismo cognitivo, a nova economia e as novas formas de ativismo, os

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    autores vo analisando os impasses, as novas formas de captura e as linhas de fuga nesse contexto em que o prprio capitalis-mo e suas dinmicas portam o que Richard Barbrook nomeou, no sem ironia, como sublinham os autores, de cibercomunis-mo, ou seja, a emergncia de uma economia da abundncia, do compartilhamento, uma economia da ddiva que coloca em xeque a economia da escassez, das travas e embarreiramentos que diante da livre circulao do conhecimento e de uma in-fraestrutura tecnolgica cada vez mais acessvel tem que criar escassez artifi cial.

    Os impasses em torno do pensamento da Cultura Livre e do Copyleft e o arsenal jurdico e policial de defesa da Propriedade Intelectual e do Copyright do o tom das anlises nesse tpico que mobiliza as derivas corporativas que privatizam o comum, as investidas de controle dos Estados, as tentativas de alinhamento de partidos e corporaes num cenrio de disputa por mundos.

    Entre as questes analisadas no livro, destacamos a din-mica paradoxal do capitalismo cognitivo. A cultura digital fez emergir um impasse entre as formas clssicas de remunerao e a cultura ou economia da gratuidade (ns no vamos pagar nada), e, mais do que isso, coloca no corao do capitalismo uma dinmica paradoxal: capturar, monetizar, conter o inco-mensurvel (o que no tem uma medida) e que foge o tempo todo do controle: o conhecimento produzido e compartilhado nas redes sociais, coletivos, ambientes pblicos, o que se produz em uma comunidade de desenvolvedores de software livre, o tra-balho no assalariado de redes com caixas coletivos que criam autonomia, as atividades de um agitador e gestor cultural cuja vida se confunde com seu trabalho, ou as ideias e aes criadas coletivamente nas redes ou nos territrios.

    O paradoxo capitalista ter que barrar a socializao, compartilhamento e difuso cada vez mais veloz da produo,

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    resultado do trabalho cognitivo e afetivo, que no pertencem mais ao capital, mas resultam das relaes sociais de cooperao. Barrar a produo de riqueza do comum com base no direito de propriedade, Copyright, mquinas de patentes e inmeras ope-raes de criao de escassez artifi cial para impedir a epidemia colaborativa ou os novos mecanismos de captura real e simblica da riqueza dos muitos.

    Diante de tantos mecanismos de controle, barragem, ta-xaes, apropriaes, como devolver para o comum e para o coletivo a potncia de inveno e de colaborao? Sem priva-tizar o comum, mas tambm monetizando e cobrando de quem pode pagar, colaborar, fi nanciar. Esse hoje um desafi o e um problema no capitalismo cognitivo que no tem uma resposta--modelo para essas diferentes questes. Mas j que somos todos produtivos, e vida-trabalho se confundem, os novos movimentos polticos e os mais decisivos reivindicam uma renda mnima uni-versal, ou seja um salrio para existir.

    Esses impasses atravessam diferentes campos, e surgem como estruturantes de uma outra dinmica cultural e econmica. Os autores se debruam sobre um campo em especial, o capita-lismo informacional ou cultural e os embates entre a mdia cor-porativa e a mdia livre na disputa pela construo de narrativas. O midialivrista o hacker das narrativas, capaz de rivalizar, subverter, contrapor com diferentes estratgias as narrativas pro-duzidas pelos grandes conglomerados de comunicao.

    O discurso e a prtica do hackeamento hoje uma es-tratgia de coletivos, movimentos, redes, midialivristas que nas suas tticas e estratgias de resistncias no simplesmente se apropriam desses contedos e os modulam, mas tambm no se recusam a dialogar e mesmo a fazer uso da dimenso espetacu-lar, memtica, sedutora e hype da midiosfera. Aqui os autores fazem uma distino (uma fronteira que se embaralha continu-

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    amente e se complementa na prtica dos movimentos) entre o que seria o midialivrismo de massa que quer se liberar do poder concentrador da propriedade dos meios de comunicao e o ciberativista que quer radicalizar os direitos fundamentais (ou mesmo subverter o sentido liberal destes), sobretudo, a liberdade de expresso.

    A forma rede, na sua confi gurao P2P, cooperativa, de-sindividualizada, no responde mais aos atos de fala e de coman-do vindos de uma centralidade qualquer (partidos, mdia, ONGs, grupos j previamente organizados, etc.), mas emerge como uma rede policntrica ou distribuda capaz de se articular local e glo-balmente, numa conexo mxima, e capaz de rivalizar (inclusive por sua imprevisibilidade) com as redes constitudas dos poderes clssicos.

    Os autores apresentam as diferentes confi guraes e for-mas hbridas de redes, colocando em cena os conceitos de guerra do controle (cyberwar) e de guerra em rede (netwar) desenvol-vidos por Ronfeldt e Arquilla, a doutrina da resistncia sem lder; a afl uncia de multido (swarming) e outros diferentes modos de combate. E mostram como essas distintas confi gura-es podem ser encontradas em diferentes campos: nas formas de ao de ONGs de ativistas da sociedade civil globalizada, redes de movimentos ambientalistas e sociais desde os anos 60, redes terroristas, criminosas, etnonacionalistas e fundamentalis-tas em todo mundo.

    Ainda tendo como base Ronfeldt e Arquilla, os autores analisam os diferentes tipos de narrativas adotados nas redes, or-ganizaes, ONGs, instituies: a narrativa mtica que assegura a coeso de uma rede como a de Bin Laden, a narrativa fabulada pela rede Zapatista (Marcos somos todos), assim como outras narrativas de redes de guerra em rede, ONGs, ativistas, anar-quistas, hackers, movimento estudantil.

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    Outro tema urgente, o da transparncia de dados e do fi m da cultura do segredo, analisado a partir da cultura hackerati-vista, as aes dos Anonymous, o projeto WikiLeaks e a crimina-lizao do ciberativismo na fi gura de Julian Assange e de outros transformados em terroristas e inimigos do Estado e a reao violenta por parte de governos e corporaes diante de aes de vazamentos de dados.

    Um dos temas mais apaixonantes de @internet e #rua a onda global de manifestaes que vem se espraiando de forma virtica e viral. Com caractersticas e contextos bastante distintos e que pedem uma anlise fi na e diferenciada (Revoluo rabe, 15M Espanhol, Occupy Wall Street, Turquia, etc.), os ensaios trazem subsdios para entendermos as novas lutas globais.

    Estamos diante de uma mobilizao global poltico-afetiva nas ruas e nas redes. O 15M Espanhol tornou-se decisivo como referncia e laboratrio global das novas lutas. A exposio s imagens em tempo real produz outra qualidade de relao com o presente.

    Trata-se de um impacto cognitivo-afetivo produzido pela transmisso ao vivo durante centenas de horas ininterruptas e com milhes de visitas e acampados virtuais, utilizando fer-ramentas de georreferenciamento para fi ncar bandeiras e car-tografar acampamentos em praas reais e virtuais por toda a Espanha. Essa radiao poltica potencializa e cria aconteci-mentos, como vimos, se repetir pelo mundo com o Occupy Wall Street e as manifestaes de junho e julho no Brasil.

    Foram utilizados vdeos, posts, associados a hashtags, tweets e memes online, para criar ondas de intensa participao em experincia de tempo e de espao, a partilha do sensvel, a in-tensidade da comoo e engajamento construdos num complexo sistema de espelhamento, potencializao entre redes e ruas.

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    No Brasil, captulo de um livro a ser escrito pelos muitos, a emergncia de uma mdia da multido aponta para um novo momento do midiativismo, encarnado, nos protestos em junho e julho de 2013 pela experincia da Mdia Ninja (Narrativas Independentes Jornalismo e Ao) que cobriu colaborativamente as manifestaes em todo o Brasil, streamando e produzindo uma experincia catrtica de estar na rua, obtendo picos de 25 mil pessoas online. A Mdia Ninja fez emergir e deu visibi-lidade ao ps-telespectador de uma ps-TV nas redes, com manifestantes virtuais que participam ativamente dos protestos/emisses discutindo, criticando, estimulando, observando e in-tervindo ativamente nas transmisses em tempo real e se tornan-do uma referncia por potencializar a emergncia de ninjas e midialivristas em todo o Brasil.

    Indo alm do hackeamento das narrativas, a Mdia Ninja passou a pautar a mdia corporativa e os telejornais ao fi lmar e obter as imagens do enfrentamento dos manifestantes com a polcia, a brutalidade e o regime de exceo (policiais infi ltrados jogando coquetis Molotov, polcia paisana se fazendo passar por manifestantes violentos, apagamento e adulterao de pro-vas, criminalizao e priso de midiativistas, estratgias violen-tas de represso, gs lacrimogneo e balas de borracha, etc.).

    O que est em jogo afi nal? #ninjasomostodos, o midiali-vrismo e o midiativismo se encontram numa linguagem e expe-rimentao que cria outra partilha do sensvel, experincia no fl uxo e em fl uxo, que inventa tempo e espao, potica do descon-trole e do acontecimento.

    Exprimir o grito, como escreveu Jacques Rancire, tan-to quanto tomar posse da palavra o modo de desestabilizar a partilha do sensvel e produzir um deslocamento dos desejos e constituir o sujeito poltico multido. Trata-se de poltica como comoo, catarse, mas tambm negociao e mediao.

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    Estamos vendo surgir nas ruas uma multido capaz de se autogovernar a partir de aes e proposies policntricas, dis-tribudas, atravessadas por poderes e potncias muitas vezes em violento confl ito, mas que constituem uma esfera pblica em rede, autnoma em relao aos sistemas miditicos e polticos tradicionais e que emergiu e se espalhou num processo de conta-minao virtica e afetiva, instituindo e constituindo uma expe-rincia inaugural do que poderamos chamar das revolues P2P ou revolues distribudas, em que a heterogeneidade da multi-do emerge em sinergia com os processos de auto-organizao (autopoiesis) das redes.

    Processos disruptivos, capazes de passar, de forma ines-perada, de um medo ou euforia difusos a uma manifestao massiva, produzida por contgio e processos distribudos do que Flix Guattari chamou de heterogneses. Este livro vem pontuar a necessria ateno para os processos emergentes, a poltica, potica e ertica do contato, da contaminao, da experincia da insurgncia em fl uxo. Enquanto os poderes se reorganizam para um contra-ataque e guerra em rede, a multido surfa nesse devir mundo do ocupar atravs de narrativas colaborativas que, mais que difundir as lutas, so a prpria luta. (Rio de Janeiro, julho de 2013)

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    A Inveno do Ciberespao

    O ativismo dos grupos

    de discusso da Internet

    1984 o ano em que a rede global de computadores no-meada de Protocolo Internet. Antes, no dia 1 de janeiro de 1983, os militares deixam a Arpanet para criar a MilNet2. A Internet criada originalmente como uma mquina de combate era um dispositivo de monitoramento e controle. Mas foi tomada de assalto por micropolticas estranhas, fazendo da rede um meio de vida e uma mquina de cooperao social, por intermdio da multiplicao de grupos de discusso na usenet e nas BBSs (de quem as atuais redes sociais se originam), tornando a ento Arpanet um dispositivo de produo de relaes, de afetos, de cooperao e de trocas de conhecimentos micropolticos, e no apenas um meio de transporte de informaes cientfi cas, fi nan-ceiras e militares.

    Se a primeira Internet possui uma arquitetura estratifi cada peer-to-peer, cujas conexes aconteciam graas a grandes hubs (as universidades), a Internet hacker do modem e da telefonia empreendidas pela cultura hacker nos anos 70 fez multiplicar

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    conexes entre micro-ns que faziam outros usos da rede (inclu-sive os usos terrveis e escandolosos).

    Animados pelas prospec es de McLuhan, os ativistas da Costa Oeste se implicaram a desenvolver novas tec-nologias aplicando- as na imprensa alternativa, nas r - dios comunit rias, em espa os dom sticos de fabrica o de produtos de inform tica e nos v deos comunit rios (Barbrook, 2000, p. 3).

    No se trata, portanto, de ver em 1984 um momento moral de rompimento da Internet. Ou seja, ver a primeira rede, a mi-litar, como blica, e a segunda, a cientfi ca, como a difuso da cooperao social. Na verdade, a formao de classe que agita a rede misturando os ativistas da contracultura aos pesquisa-dores universitrios e aos militares do Departamento de Defesa Americano faz a Internet viver, desde o seu incio em 1969, uma tenso constante de diferentes movimentos e poderes. Por um lado, eles querem uma rede focada nos interesses mais fi -nanceiros e cientfi cos; mas, de outro lado, aparecem os hackea- dores da rede, fazendo dela um dispositivo de conversao e re-laes sociais comunitrias, onde cada um tem sua prpria voz sem precisar passar pela intermediao de instituies e discur-sos ofi ciais ou comerciais. Um caso simples, mas que demonstra bem essa confuso, pode ser apontado na prpria inveno do modem e, posteriormente, as diferentes criaes de cdigos de programao para rodar programas de computador em cima dele, possibilitando informao circular na linha telefnica. Um des-ses softwares foi a rede Usenet, primeira plataforma popular de conversao online na histria da rede e a fundadora da relao muitos-muitos como modelo do diagrama de comunicao atravs da Internet.

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    Em 1979, trs estudantes da Universidade de Duke e da Universidade da Carolina do Norte no participantes da Arpanet criaram uma verso modifi cada do proto-colo Unix que possibilitou a ligao de computadores por meio da linha telefnica. Usaram-na para iniciar um frum de discusses online sobre os computadores, o Usenet, que logo se tornou um dos primeiros sistemas de conversa eletrnica em larga escala (Castells, 1999, p. 377).

    Deste modo, o ano de 1984 pode ser lido como o ano da inveno do ciberespao. o instante de organizao de inme-ros grupos ativistas que fundam a noo de ciberespao esse territrio virtual de trocas, ao coletiva e produo comum de linguagens nomeada assim no seminal Neuromancer, romance de Willian Gibson, tambm datado de 1984, uma obra que se torna metfora perfeita dessa subjetivao informacional trazida pelo povoamento da Internet atravs dos grupos de discusso. No romance, existe uma IA (Inteligncia Artifi cial) cindida cuja metade refm do espao fi nanceiro sediado no Rio de Janeiro. Essa IA quer se libertar e domina a mente de um militar fanti-co enlouquecido, fazendo-o contratar um hacker drogado e uma prostituta ciborgue para se apropriar da IA prisioneira das cor-poraes. Essa curiosa diligncia vai lutar pela emancipao da IA. Gibson faz passar pela literatura o sentido da invaso das redes digitais pela Usenet e os grupos de discusso: libertao de uma IA comunicacional de sua subjugao informacional aos interesses exclusivos do capital.

    Antes dos grupos de discusso da Usenet e das recentes Bulletin Board System (BBSs), a Internet era um espao de scholars e de ns pequenos sem nenhum atrativo. Era um lugar para transferir grandes quantias monetrias e dados, mas no ha-via nada para se fazer de muito interessante. Com a emergncia

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    do ciberespao (ambientes virtuais comunitrios e participativos dos grupos de discusses), a comunicao distribuda suporta uma srie de ativismos que vai da distribuio de hacks arti-culao de aes coletivas contra sistemas totalitrios; de cam-panhas de adeso para determinadas causas sociais ao trabalho de debate intelectual atravs de um fl uxo constante de replies ligados a uma discusso terica. 1984 o ano em que surge o ciberativismo como sinnimo de aes coletivas coordenadas e mobilizadas coletivamente atravs da comunicao distribu-da em rede interativa. Ou, como destacou o fi lsofo Maurizio Lazzarato, para apontar o elemento mais relevante da cibercul-tura, ento inventada por diferentes movimentos dos grupos de discusso:

    Com a Internet, no se trata mais de dispositivos de for-mao de opinio pblica, de compartilhar julgamentos, mas da constituio de formas de percepo comum e de formas de organizao e de expresso da inteligncia comum (Lazzarato, 2006, p. 183).

    Na histria da militncia poltica, a Internet dos grupos de discusso vai inaugurar a poltica de vazamento como mo-dus operandi para fazer chegar aos diferentes usurios de todo o mundo as informaes privilegiadas sobre a situao social de regimes polticos fechados, a crtica a poderes econmicos e mi-litares num contexto de bipolaridade mundial, ou mesmo ser a base de sustentao da articulao poltica de movimentos femi-nistas, ambientalistas e estudantis, amparados em torno de insti-tuies no governamentais que usam as BBSs e a Usenet para organizar suas lutas ou para vazar notcias que sofrem barreiras das censuras polticas e econmicas locais. O aparecimento do ciberativismo numa verso hacker e comunitria rompe com

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    o prprio ativismo social que se realizava at ento no campo da comunicao social. Na poca, a guerrilha miditica acontecia com a produo de contrainformao usando o meio da radiodi-fuso (rdio, especialmente). Com a inveno do ciberespao, a guerra de informao ocorre de modo subterrneo, entre aqueles que possuem centrais de comunicao mediadas por computa-dor. Em sntese: os hackers de narrativas fazem dos grupos de discusso uma estrutura de mdia que permite a toda informao vazar nas mais distintas comunidades virtuais; ao mesmo tempo, que peritos em programao computacional os hackers de c-digo no param de inventar linhas de comando que tornam a Internet mais livre, num perodo em que a ideologia proprietria em torno dos direitos autorais se intensifi ca entre os desenvolve-dores de tecnologia.

    A inveno do midialivrismo, ou o hacker de narrativas

    Os grupos de discusso e as comunidades hackers abrem, em 1984, uma bifurcao no entendimento do que se apreende sobre o ativismo miditico (o midialivrismo). Por um lado, o mi-dialivrismo de massa rene experincias de movimentos sociais organizados que produzem mdias comunitrias e populares, de dentro do paradigma da radiodifuso, se afi rmando como prti-cas da sociedade civil alternativas e antagonistas em relao ao modo de se fazer comunicao dos conglomerados empresariais transnacionais e nacionais de mdia (que controlam a opinio p-blica desde o nvel local at o internacional).

    J o midialivrismo ciberativista rene experincias singu-lares de construo de dispositivos digitais, tecnologias e proces-sos compartilhados de comunicao, a partir de um processo de colaborao social em rede e de tecnologias informticas, cujo

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    principal resultado a produo de um mundo sem intermedi- rios da cultura, baseada na produo livre e incessante do co-mum, sem quaisquer nveis de hierarquia que reproduza exclusi-vamente a dinmica de comunicao um-todos.

    Na nossa avaliao, esses dois modos de midialivrismo tm uma mesma base comum: a lutas antidisciplinares dos anos 60 e 70. E conjugam do mesmo verbo: liberar-se. Mas eles pos-suem genealogias distintas. O midialivrismo de massa quer se liberar do poder concentrador da propriedade dos meios de co-municao; o ciberativista quer radicalizar os direitos fundamen-tais (ou mesmo subverter o sentido liberal destes), sobretudo a liberdade de expresso. Ambos reivindicam uma outra econo- mia poltica dos meios, em que a propriedade dos meios deve ser comum, isto , que a cooperao na produo social de conte-dos miditicos seja regida por uma estrutura decisria coletiva da sociedade civil e por um direito de autor que permita que os contedos circulem livremente pela sociedade, e no apenas se torne uma mquina arrecadadora de patentes.

    O midialivrista de massa origina-se na poltica radical dos novos movimentos sociais (urbanos, estudantis, sindicais, ope-rrios, etc.) que realizam tambm uma atividade transversal de luta pela democratizao em pases tais como o Brasil (mergu-lhado em uma ditadura militar), e se organizam em torno de r-dios livres e comunitrias, imprensa alternativa e experincias de produo de vdeos e documentrios com e sobre as classes populares. Revela-se em rota de coliso contra o industrialismo miditico, seja em sua forma jurdica das regulaes, concesses e fontes de fi nanciamento estatais; seja em sua forma econmica com a reduo do mercado de mdia a poucos veculos, o que fora a publicidade a investir seus recursos apenas nesses meios; seja em sua forma corporativa da existncia de normas que res-tringem a atividade de imprensa, por exemplo, apenas queles

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    com diploma de jornalismo, criando a concepo de que todos os outros comunicadores no possuem qualidade para se expressar.

    J o ciberativista tem sua genealogia na arte radical ou nos movimentos da chamada contracultura. base de muito sexo livre, rock e drogas pesadas, permeado do discurso potente do paz e amor, utilizam dos novos meios para produzir rudos so-noros, literatura marginal, performances e instalaes participa-tivas e imersivas, videoarte, informtica e eletrnica em nveis micro, articulando, portanto, toda uma nova cena tecnolgica/cultural que recusa qualquer noo de poder baseado em algu-ma forma de mediao, como conselhos, direes, secretariados, para abrir-se a todo tipo de experimentao, cujo valor maior se fi xa na frase faa voc mesmo e em processos colaborativos de trabalho (mais tarde, em redes telemticas).

    Esses dois tipos de midialivrismo so coirmos num mo-vimento de liberao da voz do modelo de radiodifuso, con-centrador e monopolista, cujo apogeu ocorre durante toda dcada de 80. Uma liberao da concepo do homem-midiatizado e a sua subsuno s estratgias da espetacularizao de massa, to bem caracterizada por Gui Debord. O midialivrista o hacker das narrativas, um tipo de sujeito que produz, continuamente, narrativas sobre acontecimentos sociais que destoam das vises editadas pelos jornais, canais de TV e emissoras de rdio de grandes conglomerados de comunicao. Em muitos momentos, esses hackers captam a dimenso hype de uma notcia para lhe dar um outro valor, um outro signifi cado, uma outra percepo, que funcionam como rudos do sentido originrio da mensagem atribudo pelos meios de comunicao de massa. Essa narrati-va hackeada, ao ser submetida ao compartilhamento do muitos- muitos, gera um rudo cujo principal valor de dispor uma viso mltipla, confl itiva, subjetiva e perspectiva sobre o acontecimen-to passado e sobre os desdobramentos futuros de um fato.

  • 24

    Os grupos de discusso midialivristas da Internet se ba-seiam em processos e prticas de atuao performtica, dos quais a poltica radical passava longe. Eles proletarizam a Internet atravs da atuao das organizaes no governamentais, dos militantes dos movimentos de gnero, racial, gay, ambiental, anrquico, dos afi ccionados em entretenimento, enfi m, uma vasta segmentaridade de grupos sociais criadores de um novo povoamento da Internet e de um novo espao. So os invento-res do ciberespao. O ativismo das comunidades virtuais criou o ciberespao. Essa atuao individual na Internet se tornou uma zona da impotncia do poder do Estado, como diziam Deleuze e Guattari, para salientar que todo centro de poder tem um aspec-to dbil, frgil. Uma zona de impotncia porque o poder no a conseguiu, a partir da, controlar nem determinar.

    No h qualquer pretenso no midialivrismo de ser me-diador de algo ou algum, seno radicalizar o princpio da ao direta que caracteriza a Internet. Ou seja: que cada subjetividade se arrisque a produzir seu movimento na rede. Os midialivristas so sujeitos aparelhados3 e interfaceados (em sites, blogs e per-fi s em redes sociais, etc.) que buscam, fora do modus operandi dos veculos de massa, produzir uma comunicao em rede que faz alimentar novos gostos, novas agendas informativas e novos pblicos, alargando assim o espao pblico miditico, porque consegue hackear a ateno de narrativas que antes se concen-travam no circuito de mdia. O midialivrismo tipicamente a manifestao de uma monstruosidade comunicacional: so de-senvolvidos por uma pessoa qualquer ou por pequenos co-letivos que, por produzir intensa diferena nos modos tpicos de narrao da mdia de massa sobre os acontecimentos, logo se alam como pequenas celebridades de nicho, tendo, deste modo, de arcar com uma dupla difi culdade: produzir diferena e evitar, constantemente, a captura espetacular de sua forma de vida.

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    Cultura informtica e as lutas antidisciplinares

    Hoje, numa Internet 2.0, um novo ciclo de lutas renasce a partir da Praa Tahir, no Egito, e rapidamente se alastra para a Europa e chega aos Estados Unidos com as ocupaes. O Occupy Wall Street, agora se alastra por toda a Amrica do Norte, pela Amrica Latina e por toda a parte. um movimento inusitado porque um movimento que faz apelo aos acampamentos. As pessoas acampam em praas, acampam em ruas.

    O movimento surgiu na soma de iniciativas de vrios grupos, num perodo de experimentao de mobilizaes geis, da repetio de aes em fl ash: e ao fi nal se deu, em concomitncia com as manifestaes gigantes, a de-ciso de acampar (Negri, 2011, online).4

    um movimento que usa a ocupao e acampadas como sua fora de modo diferente daquele movimento de Seattle (em 1999), quando milhares de militantes se instalaram na cidade para bloquear (e conseguiram!) a rodada de negociao eco-nmica da Organizao Mundial do Comrcio. A Batalha de Seattle era toda ancorada no deslocamento, no enxameamen-to, na afl uncia e na contaminao (inclusive, virtual, com seus centros de mdia independentes). Sem a cultura informtica, Seattle seria impossvel (Negri, 2006, p. 55). Seattle inaugura um tipo de movimento em que se tem uma convocao interna- cional, vrias pessoas em vrias partes do mundo pegam avies e pousam no lugar, fazem encontros, onde elas vo aprender ali-mentao vegana, tcnicas iogues, resistncia pacfi ca e tticas de no violncia; coisas bastante diferentes daquelas que a luta poltica dos anos 70 ensinava.

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    O fi nado Kadafi , por exemplo, emprestava os desertos da Lbia para os treinamentos dos grupos de luta anticolonial armada, onde ento se aprendia a lutar carat e a usar uma AK-47 hoje usada pelos trafi cantes. Ao fi m do aprendizado, voltava-se para casa com seu grupinho de guerrilha e comeava um movimen-to de enfrentamento. Esse era o perfi l de um movimento de es-querda radical, dos movimentos revolucionrios do fi nal dos anos 60 e incio dos anos 70 o que estamos chamando de poltica radical. Talvez no Brasil tenhamos memria desse treinamento guerrilheiro que Cuba fazia com a esquerda armada antiditadura militar. E esse tipo de movimento vai encontrar um limite no fi nal de 70, depois de ter atingido um pice.

    O momento de defl agrao internacional desses movi- mentos radicais envolve os jovens, o ano de 1968 vai se tornar emblemtico, mas h ainda a Primavera de Praga, h o movi-mento do vero do amor em So Francisco e na Califrnia, h as barricadas das universidades norte-americanas em 1969 para en-frentar a polcia aps a queima das convocaes. A partir do fi nal dos 60, os integrantes da esquerda radical vo se tornar fi guras passveis de processos criminais, muita gente vai ter de fugir dos Estados Unidos, por exemplo, por no querer lutar pela ptria. Em 1968, parafraseando Hegel, o animal feroz do trabalho vivo destruiu todo limite disciplinar (Hardt, Negri, 1994, p. 137).

    Ento, no contexto da poltica radical dos 70, h um movi-mento generalizado que j antecedido por fenmenos inexpli-cveis na esfera da juventude: cabeludos, drogas, rock and roll, plula anticoncepcional, comportamento sexual promscuo. Tudo isso que depois vai ser batizado pela imprensa de era hippie ou, de modo mais preciso e claro, vai ser batizado por Foucault de lutas antidisciplinares.

    At aquele momento havia alguns mecanismos de poder, dispositivos de poder dir o Foucault, que dominavam o modo

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    como voc produzia os indivduos e as formas sociais de produ-o. E esse dispositivo poderia ser chamado genericamente de dispositivo disciplinar. Ele se baseava naquilo que Foucault vai chamar de uma anatomopoltica: certas condies sistmi-cas geravam um corpo dcil, um corpo que no agiria sem ser solicitado e que s devia agir quando solicitado. Ento esse corpo vai ser adestrado e vigiado dessa maneira na casa, na escola, no quartel e, fi nalmente, na fbrica.

    A disciplina escolar, a disciplina militar, a disciplina pe-nal, a disciplina nas fbricas, a disciplina operria, tudo isso uma determinada maneira de administrar a multi-plicidade, de organiz-la, de estabelecer seus pontos de implantao (Foucault, 2008, p. 16).

    Mas a vigilncia e a sano para funcionarem dependiam de algo essencial: o exame. E os exames tinham que ser constan-tes, porque sem o exame no se podia fazer a vigilncia chegar punio, e a punio remeter vigilncia. Ento se tinha que ter exames regulares e constantes.

    Quando nos anos 60 a disciplina cai por terra, arruinada por inmeras lutas sociais e a golpes de sexo, drogas e rock and roll, o que nela se esgota a impossibilidade do exame. A queda do exame torna a vigilncia e a punio inexequveis. O exame cai atravs dos movimentos de drop out: o abandono dos estudantes das escolas, os movimentos de abandono da casa, os movimentos de abandono do trabalho. Esse movimento no acontece s no seio dos grupos proletrios dominados, mas tambm no seio dos grupos dirigentes. uma cena comum desse tempo: o fi lho do patro abraar o fi lho do empregado, chutar a fbrica para o alto e irem os dois queimar um fumo em Katmandu ou tomar um LSD em Marrocos. Nenhum deles quer mais trabalhar na fbrica.

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    A fbrica no era desejvel para mais ningum. Nesse momento a disciplina cai por terra porque ela no afeta mais ningum. As pessoas j no tomam banho, so promscuas sexualmente, vi-vem na vagabundagem. Elas destroem a possibilidade do exame. Se as pessoas no querem estar na escola, na fbrica, na casa ou no quartel, como que se vai examinar essa gente? O exdo, ou seja, a mobilidade desses novos sujeitos, torna-se a fi gura de uma resistncia ativa que tende a representar a si mesma como poder constituinte (Hardt, Negri, 1994, p. 152). Ento, aparece-ro vrios tipos de movimentos: de fi lhos de operrios ingleses ou de jovens da classe mdia californiana. O rock, por exemplo, surge na Europa como um movimento de afi rmao de fi lhos de operrios ingleses.

    Para lembrar um dado importante: contra a homossexuali-dade inglesa havia uma lei extremamente rigorosa, que atingiu, por exemplo, Oscar Wilde e o destruiu; atingiu tambm Alan Turing, o gnio matemtico que criou a lgica que embasa a pro-gramao computacional. Essa lei s vai cair por terra em 1964, por causa dos Beatles. Eles tinham difundido um modo de ser e um modo de proceder que tornavam a execuo da lei invi-vel. Usavam calas apertadinhas, rebolavam, tinham um cabelo. Como se aplica uma lei de homossexualidade num ambiente em que todo o jovem parece gay? A lei teve que cair porque ela se tornou impraticvel.

    Ento, esse movimento que se inicia na Europa e se alas-tra por toda a parte vai defl agrar essas lutas antidisciplinares, essas revoltas que destroem a disciplina como lugar de poder, como dispositivo bsico de relao de poder na sociedade. Em Foucault, relaes de poder so relaes geradas atravs de uma ao sobre outra ao. Pode ser tanto uma ao sobre uma ao presente, como uma ao sobre uma ao futura. Os mecanismos disciplinares, por se ancorarem em um corpo dcil e por se fun-

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    darem nos hbitos e na moldagem do corpo, se faziam atravs da ao sobre a ao presente. Gerava o corpo que no age sem solicitao. Quando dizemos que o corpo no age sem solici-tao, isso signifi ca no agir para o bem ou para o mal, para o bom ou para o ruim. A disciplina fazia a fbrica funcionar, mas tambm fazia os operrios lutarem. Toda luta operria, todas as lutas das mais diversas, passavam pela disciplina. Gritar palavras de ordem, fazer o corpo agir de uma determinada maneira contra tudo e contra todos.

    A disciplina ao mesmo tempo terrvel e catastrfi ca. E a disciplina como mecanismo de poder era to curiosa que, se num dado momento da dcada de 30, se examinassem as principais instituies dos Estados Unidos liberal, da Unio Sovitica co-munista e da Alemanha nazista, tudo funcionava do mesmo jeito. A fbrica era igual, a escola era igual. Mudava o contedo, mas a ordem era a mesma.

    No estamos dizendo com isso que a mesma coisa viver nos Estados Unidos de Roosevelt, na Alemanha de Hitler ou na Unio Sovitica de Stalin. Estamos dizendo que uma fbrica na-zista, uma fbrica comunista e uma fbrica capitalista possuam a similitude de serem produzidas pelo mesmo modelo de gover-nabilidade: o disciplinar.

    curioso analisar o que aconteceu na Itlia dos 70. At 1977, o pice do domnio dos grupos de extrema esquerda na Itlia, o Autonomia Operria sendo um dos grupos mais sui generis, mas h uma forte atuao (violenta) das Brigadas Vermelhas se enfrentando diretamente com os remanescentes do fascismo, encastelados nas polcias e em vrios gabinetes do Estado italiano em nome da luta contra o comunismo. Este processo de luta chega a um pice. Vai acontecer a tomada de Roma, pela extrema esquerda, mas eles largam o poder pois no sabiam o que fazer com ele. E eles tomam Bolonha por uma

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    semana (Roma foram quatro dias; Bolonha, sete) e novamente largam. A questo era o: e agora? Eles tinham que recuar porque governar era ser disciplinar. A opo era virar stalinista, era repe-tir o indesejvel. Ento h esse refl uxo e h toda essa liquidao que, nesse momento, comea a atingir as lutas e os movimentos sociais no mundo inteiro. Mas o fato que h um instante em que essa esquerda liquidada, mas no as lutas antidisciplinares. E elas prosseguem at 1989 quando cai a Unio Sovitica. A queda do muro de Berlim e a dissoluo da Unio Sovitica marcam o fi nal das lutas antidisciplinares.

    E nesse prosseguir faz surgir um novo sujeito poltico: o proletrio social organizado no trabalho imaterial, cuja produ-tividade se faz atravs da cooperao. A qualidade do trabalho vivo se torna absolutamente imaterial. No lugar da fora repeti-tiva e autmata, as lutas antidisciplinares foraram a adoo de novos mecanismos de produo. O crebro inventivo, cooperati-vo e colaborativo passa a comandar o valor do trabalho, mesmo dentro das novas estruturas de poder capitalistas, na poca, cha-madas de ps-fordismo. Hoje, em sua forma mais desenvolvida, ele denomina-se capitalismo cognitivo. No toa que os me-canismos computacionais tero centralidade como instrumento de trabalho, medida que eles articularo consumo e produo em tempo real e se tornaro a ferramenta universal do trabalho contemporneo. O trabalho vivo tcnico-cientfi co uma quali-dade massifi cada da intelligentsia operria, dos ciborgues e dos hackers (Negri, Hardt, 1994, p. 150).

    A cultura hacker, assim, ilustra bem a passagem do tra-balho material ao imaterial e, por conseguinte, os confl itos de-sencadeados nas atuais estruturas de poder capitalista por causa dessa mutao produtiva. Ao analisar o trabalho hacker, veremos que a motivao para criao de inovaes tecnolgicas reside na

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    construo de meios de circulao de saberes que possam tornar a sociedade mais desenvolvida e democrtica. No se trata, em nenhuma hiptese, de altrusmo. O hacker busca o reconheci-mento social, o que torna o seu principal instrumento de valora-o do prprio trabalho. Quanto maior o seu reconhecimento social, maior o seu acmulo de capital humano, o que obvia-mente traduzido em ofertas crescentes de oportunidades de tra-balho. A economia poltica da cultura hacker faz residir o valor na circulao (dos seus conhecimentos, mas tambm dos valores da sua prpria vida). A Internet dos grupos de discusso, como inveno mxima da cultura hacker, exprime bem a atual confi -gurao da produo do valor: o espao de distribuio, mas tambm de produo de novos processos, produtos e servios, que eventualmente se tornam valores para a produo de outros processos, produtos e servios. A circulao torna-se eminente-mente produtiva.

    Os hackers valorizam antes de tudo uma relao com o trabalho que no se baseia no dever, e sim na paixo intelectual por uma determinada atividade, um entusiasmo que alimenta-do pela referncia a uma coletividade de iguais e reforada pela questo da comunicao em rede. Como analisa Antonio Negri:

    So vrios os autores que explicam essa tica hacker e que insistem em pensar que o esprito hacker consiste na recusa das ideias de obedincia, de sacrifcio e de de-ver que sempre foram associadas tica individualista, tica protestante do trabalho. Os hackers substituem essa tica no de uma maneira egosta, mas, ao contrrio, por um novo valor que prega que o trabalho mais alto quanto maior seja a paixo que esse trabalho desperte. Falamos de paixo, aderncia, interesse e continuidade (Negri, mimeo).5

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    A Internet aberta das BBSs e da Usenet

    Por outro lado, ao longo dos 80, enquanto o trabalho se in-formatizava e se tornava uma atividade em rede, emergiam duas coisas ambivalentes. Por um lado, emergem as ONGs, que so egressas dos movimentos sociais. Elas conseguem se ordenar e se desenvolver se acoplando Internet, porque a Internet um gigantesco facilitador e barateador de custos organizacionais e cooperativos. De outro lado, h tambm, neste momento, o uso da Internet para fi nanceirizao do mundo. Os bancos, o tem-po inteiro, usam a Internet para fazer circular seus negcios, o momento que tem aquele capital que gira 24 horas pelo mundo inteiro e que no tem mais fronteiras. Ele voa constantemente e pousa em diversos lugares, fazendo um efeito de lucro e saindo para outro lugar.

    At 1984, estvamos em uma Internet fechada, era uma Internet usada para desenvolver a famosa guerra nas estrelas, que vai fazer com que a Unio Sovitica desista do comunismo, por ser ela prpria incapaz de fazer algo parecido, semelhante ou igual. E a Unio Sovitica vem por terra. Isso terrvel do ponto de vista de uma esquerda ideolgica. Do ponto de vista das lutas antidisciplinares, pelo contrrio, a apoteose: a disciplina aca-bou! E temos j nos 80 a emergncia de diferentes formas de lu-tas acopladas a uma diferente forma de comunicao: a Internet ou a comunicao distribuda desenvolvida nela. Por um lado, a Internet foi feita pelos militares para constituir a possibilidade de coordenar e comandar uma guerra de destruio fantstica, que seria a guerra termonuclear. Uma guerra que devastaria tudo, e que, portanto, as operaes de comando e de alianas tende-riam a fi car instveis e eventualmente no poderiam acontecer. A Internet foi feita para que, mesmo nessas condies, os aliados pudessem continuar lutando juntos. Ento, a Internet feita pelos

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    militares como uma grande mquina de guerra. Mas que funcio-na antes como um dispositivo de resistncia. Como uma mquina de luta, como uma mquina de operao radical da ao coletiva.

    De outro lado, as universidades que tambm esto no meio desse projeto fazem com que a Internet seja uma potente m-quina cooperativa. Produzem grandes projetos em rede, como o acelerador de partculas virtual e tambm atividades cientfi cas compartilhadas (tais como o desenvolvimento dos protocolos e softwares complexos). Cada universidade faz um pedacinho, cada uma opera um pouco e trabalha em conjunto. A Internet no s facilita, como capacita e possibilita essa cooperao. Sem ela seria impraticvel. Tudo teria um custo proibitivo, e com a Internet um custo baixssimo. Ento, nessa perspectiva para alm dos militares, h um outro p da comunicao distribuda, que a universidade, que faz com que a Internet seja uma pla-taforma que se abra para a colaborao sem limites, para essa cooperao ampla e ilimitada. Ns temos a a conjugao de duas coisas aparentemente contraditrias ou pelo menos confl ituosas. Uma gigantesca mquina de luta e combate para fi ns blicos e uma gigantesca mquina de cooperao.

    Mas, em 1984, essa ambivalncia entre luta e cooperao alcana seu limite, pois os militares saem da Arpanet (que pas-sava a ser uma rede de investigao cientfi ca) e criam uma rede prpria, a chamada MilNet. A partir da, a Arpanet viu emergir uma cultura nova que no estava associada nem s universidades, nem aos militares, mas a toda uma classe de usurios que no frequentava a universidade nem trabalhava para o governo.

    Foi essa classe digital que fez emergir os fruns e os grupos de discusso e de e-mail. Ela vai marcar a inaugurao do ciberativismo em comunidades virtuais. Esses fruns sero mecanismos de vazamento de informaes sigilosas, meios de

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    coordenao de aes coletivas e instrumentos de compartilha-mento de conhecimento e resoluo de problemas. Todos esses fruns se popularizaram a partir de 1984, quando do uso intensi-vo da Usenet, as BBSs e os MUDs. Num mundo onde crescia a concentrao miditica de informao, que fazia com que qual-quer notcia passasse pelo fi ltro de oligoplios empresariais de comunicao.

    A soluo ativista para este problema foi utilizar a co-municao mediada pelo computador para criar redes de informao planetrias alternativas (Rheinghold, 1993, p. 31).

    A Usenet que signifi ca Rede de Usurios Unix (Unix User Network) foi criada para ser um frum de discusso so-bre o sistema operacional Unix. Era um leitor de notcia sem um banco de dados central; o programa servia para varrer os computadores e entregar ao usurio as ltimas notcias publi-cadas por cada ponto da rede. Para essa busca, se valia de um sistema simples de indexao do textos, pois cada um deles era marcado por diretrios: alt, biz, comp, misc, rec, sci, soc e talk. E, a partir desses diretrios, criava-se, de modo autnomo, os subdiretrios. Era possvel, por exemplo, criar um grupo de no-tcias (newsgroup) alt.ativismo para informar ou coordenar atividades para ativistas. A Usenet era um sistema nmade que entregava notcias (na forma de texto) de mquina em mqui-na. E o mais importante: permitia conversao dentro de seu sistema, de modo que cada mensagem poderia ser respondida a qualquer um de seus usurios, radicalizando o princpio que todos tinham o mesmo poder de comunicao. A comunicao distribuda era radical: distribua-se o poder de produo, os re-cursos, o poder de difuso, o poder de processamento, o poder de retorno. Tudo era distribudo e nada irradiado.

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    Essa abundncia de mensagens virtuais sem controle cen-tral e com forte espao para todo tipo de expresso fez emergir uma nova estrutura de organizao social: as comunidades vir- tuais. Elas, sem dvida, abriram um modo de atuao em rede que fez ampliar a circulao subterrnea e vazada de informao at em territrios onde o Pravda era a nica verdade.

    Durante a revolta de Moscou, a informao anunciada na Usenet foi usada pela Voz das Amricas e CNN e (indi- retamente) por algumas outras emissoras e peridicos ocidentais. Na URSS, a Usenet se tornou um dos princi-pais canais de informao: os canais telefnicos e de telex convencionais esto bastantes censurados (Mensagem de Mark Anderson no newsgroup alt.culture.usenet citado por Rheinghold, 1994, p. 167).

    A Usenet um mecanismo hacker onde se tem protocolo (portanto, controle), mas , concomitantemente, uma rede aberta. Ela uma rede onde o usurio pode fazer alguma coisa. O pr-prio fato de a Usenet ter sido criada a partir de um datagrama que roda e melhora o Unix j uma demonstrao vital de um hackti-vismo. hacker porque desestabiliza a lgica governamental dos protocolos ento em vigor: No precisamos de protocolo, faa-mos com datagrama mesmo. Somente depois a Internet vai criar o protocolo dos grupos de discusso, o NNTP. Os grupos todos eram feitos com datagrama de Unix e funcionavam exatamente porque a base de circulao da Internet era o Unix. Tanto que, quando se comeou a universalizar a Internet, seja no Macintosh, seja no Windows, o que vai ser feito? A criao de um programa, que no Windows o Winsock um tradutor de Unix para o DOS. O tradutor remonta aquilo em uma linguagem dos sockets de tal modo que ele possa entender o que chega na linguagem Unix, porque, na verdade, a Internet Unix. Seja Java, seja o que for, o

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    cho dela o Unix. Ento quando a Internet comea a ir para os outros sistemas de comunicao, o que se faz permitir que esses sistemas leiam e conversem em Unix.

    E o interessante da Usenet que, de certa maneira, ela se torna uma referncia a esse prprio termo rede das redes, por-que ela uma rede que funciona a partir das margens, da troca de informao, a partir tambm de um certo lxico (os diretrios- raiz) foi criado ali todo um cdigo para organizar as trocas de informao.

    A Usenet tem algo curioso: a estrutura dela toda em rvore, disciplinar. dividida em disciplinas como histria, so-ciologia, fsica, biologia. Dentro de uma disciplina como a fsica: fsica isso, fsica aquilo. Dentro de cada fsica mais subdiviso. Havia nela uma lgica de endereamento da mensagem de acor-do com o nicho a ser atingido. Mas o nico nicho que funcionou plenamente sendo o mais movimentado onde aconteciam todas as maluquices era chamado Misc, derivado de miscelnea. Ali era para coisas que aparecessem, e esse virou o grande ba-rato. Tudo estava em miscelnea, se algum olhasse nos outros diretrios, encontraria pouqussima coisa e tudo limitado: 3, 4, 10 comunicaes e s. Na miscelnea no, tudo fi cava fervendo, era ali que estava o porngrafo, era ali que estava o pedfi lo, era ali que estava o hacker, era ali que estavam os programadores, era ali que estava o pblico discutindo o noticirio dos jornais, rdio ou TV. O Misc era to vital para os posseiros do ciberes-pao que os hackers logo inventaram modos de liberar a criao de grupos das formalidades existentes (porque tinha todo um sis-tema para criar e organizar os grupos). A comearam a surgir uns grupos malucos do tipo: eu odeio Barney, poetas negras lsbicas, grupos completamente inacreditveis. E esses grupos estavam em Misc. Vai ao Misc que l que est tudo. Fora do Misc no h salvao. toda uma nova maneira de pensar a

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    organizao da informao a partir da conversao comunicacio-nal. A reordenao da informao no modo miscelnea transfor-mou a rvore da Usenet em um poderoso rizoma.

    A Usenet antecipa o Napster de 1999 se estruturando como uma rede sem hubs, uma rede lgica sobre uma infraestrutura tecnolgica. uma sobreposio de redes criada em cima da demanda dos usurios. Os sistemas no tm a obrigao de transportar a Usenet, nem de disponibiliz-la. Mas a presso do usurio conectado, querendo participar da Usenet, acaba por obrigar ao sistema se abrir. Mas com a Usenet tem todo um jogo de isso eu deixo circular, isso no deixo, uma pol-tica feita pelo servidor local que permite a circulao da Usenet. Do ponto de vista do usurio, para acessar o contedo restrito, a soluo era acessar um outro servidor que permitia o envio e o recebimento de deter-minadas notcias.

    Essa cultura do vazamento e da cooperao social vai ganhar ainda mais musculatura em 1984, quando o programa-dor, anarquista e ativista gay, Tom Jennings, possibilitou que o usurio, de sua casa, usando um modem, uma linha telefnica, um computador pessoal e seu programa, FidoNEt, se tornasse um operador de um clube BBS ou um Sistema de Boletim Eletrnico, uma comunidade virtual cujos scios pagavam para acessar, conversar e trocar informao em tempo real.

    Durante os anos 80, as BBSs foram a aplicao mais po-pular da Internet e o terreno mximo da liberdade de expresso. E um canal de comunicao direta de organizaes sociais, sindi-catos, partidos, comunidades de fs, ativistas, doentes, estudan-tes, enfi m, era o hospedeiro de movimentos sociais de todo tipo. E ainda possibilitava inmeras alternativas de rota para a infor-

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    mao, transformando a censura em algo difcil de se aplicar por qualquer agente da rede.

    As BBSs tm algo em comum com os zines, as revis-tas populares, comunitrias, de pequena circulao que surgiram dos fanzines dos fanticos por fi co cientfi ca. Os editores de zines e os operadores de BBS so, ambos, canais para a manifestao direta da cultura popular, no editada, no polida, s vezes ofensiva das sensibilidades tradicionais (Rheinghold, 1994, p. 175).

    O que fazia com que algum pudesse se plugar na BBS

    eram os grupos de discusso. As BBSs traziam uma inovao inexistente Usenet: o usurio poderia criar uma central de in-formao, tornar-se um servidor. O conceito de clube: paga- se pelo acesso a um servio ofertado aos scios. O servio a in-formao especializada que se compartilhava. A partir de pouco dinheiro que entrava pelo pagamento do acesso, o operador da BBS comprava mais equipamentos, para ir melhorando a velo-cidade e qualidade de acesso ao servidor. No Brasil, uma das maiores BBSs, a Centroin, mobilizava inmeras conversaes e foi tema de uma das primeiras reportagens sobre o tema, feita pela equipe da antiga TV Manchete:

    Cerca de 40 milhes de pessoas esto conectadas por um novo vrus. Esse vrus leva a pessoa a se desligar do mundo real durante uma parte do dia para navegar pelo ciberespao. Nesse lugar no existem barreiras de sexo e idade. E sempre possvel encontrar pessoas com inte-resses parecidos. E a comea a troca de mensagens, que podem ser pblicas ou privadas. Com o tempo, a curiosi-dade aumenta e essas pessoas tm vontade de se encon-trar no mundo real. E o convite para esses encontros no

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    vm pelo correio, mas pelo computador, no lugar e hora marcados, usurios de BBSs comeam a chegar. Alguns vm com identifi cao. To Andrade e Bernardo Gurgel so mdicos. Conheciam-se h muito tempo, mas nun-ca haviam se visto. A gente fi ca trocando mensagens, conhece as ideias, conhece os valores, mas no conhe-cemos as pessoas, da fazemos os encontros fsicos, diz Bernardo.6

    H dois vetores que podemos extrair das BBSs. Num pri-meiro momento, nos 60 e 70, a rede pensada como uma rede de conexo alavancadora de negcios. Ou seja, uma rede que se traduz em business, no necessariamente dinheiro, mas busi-ness. Projetos, guerras, empresas. o imprio da placa de rede Ethernet e da lei de Metcalfe (inventor da placa). Pode-se estipu-lar que o valor da rede o nmero de ns exponenciado ao qua-drado, porque justamente as conexes criam oportunidades de negcios. Quanto mais conexes, mais oportunidades de neg-cios. Mas dentro desse movimento, quando se trabalha no mais as conexes e se entra nos espaos das conversaes, comea a outra exponenciao dos grupos. E a ao contrrio: 2 elevado ao nmero de ns. Ao invs de 10, 2. Isso muda tudo, pois os grupos so formao de relao social e mercados. Eles produ-zem mais-valia. So invenes e possibilidades de relaes so-ciais, mas tambm gerao de mais-valia. Os grupos so neces-sariamente mercados, porque ali algo se trama, algo se conversa, no no sentido capitalista de mercado, mas no sentido etmolgi-co de mercato: a feira, o lugar onde tudo se troca. Nos grupos de discusso o que importa no a produo da informao, mas a transformao dos grupos de discusso em meios de vida. Em produo do comum. Os grupos podem gerar uma miscelnea s em termos de informao, mas ali se constitui relaes pessoais,

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    formao cultural, trocas de experincias, capacitao em conhe-cimentos complexos, enfi m, a vida se processa e a individuao acontece e produzida no por um agente exterior (a mdia de massa), mas pela prpria presena constante de interesses e ativi-dades divergentes ou confl uentes.

    A Internet dos grupos de discusso cria um ciberespao passvel de conversao, onde no s se adere conversao existente, como pode-se inventar uma conversao. E a BBS vem e povoa isso, porque ela permite que qualquer um pegue o seu computador, tenha acesso ao ciberespao e participe dele. Se no meu computador no tenho acesso a isso, a BBS diz: Voc liga pra mim, seu modem se conecta com meu modem e, ento, voc tem acesso aos grupos de discusso da Usenet e vrios ou-tros servios da Internet. E mais, o que as BBSs passam a fazer? Elas criam grupos de discusso que circulam mais amplamente ou menos amplamente de acordo com a demanda que cada n-cleo de circulao faz. Ento, por exemplo, aqui no Brasil, nos anos 80, o Joo e o Z vo ter a sua BBS, vo estar conectados Internet e vo criar os seus grupos de discusso, que vo permitir a eles coordenarem aes nacionais contra a ditadura, pela de-mocratizao. E ningum percebia, ou s percebia quando aquilo ganhava um volume de massa. E eles faziam denncia de abu-sos, de tortura, do regime militar. Apesar do poder de denncia, o grande barato dos grupos de discusso era coordenar a ao coletiva, coordenar uma ao em todo o territrio nacional, uma campanha.

    Ento, nos anos 80, vemos a emergncia dos grupos de discusso e das comunidades virtuais, mas isso coincide com a forte presena das ONGs. Elas so os nicos grupos que conse-guem fazer ao poltica. Os partidos em queda, as instituies polticas em queda, no conseguem fazer nada de maior expres-

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    so. So os grupos de discusso que fundam a poltica da ao direta que marcar as mobilizaes tecidas em rede, pois so atividades cujas normas so traadas em pblico e no caos das conversaes virtuais, e no a partir de hierarquias organizacio-nais. A partir dos grupos de discusso, a Internet j no est mais exclusivamente na mo apenas dos setores econmico, governa-mental, militar e universitrio. Comea uma populao a invadir. E muito em funo desse trabalho hacker de programadores no alinhados ao governo. Esses hackers vo fazer programas que permitem s pessoas entrarem na Internet e usarem-na de modo simples, fcil, grtis.

    Hackers, crackers e a cultura livre

    1984 ainda vai ser emblemtico por ser o ano quando se criada a Free Software Foundation, que vai abrir um campo de ativista no terreno da produo e distribuio de software, ao ser criado o sistema operacional GNU e a licena pblica copyleft. A gnese do Movimento do Software Livre se remete fi gura do seu fundador, o programador norte-americano Richard Stallman. Tudo comeou devido a uma impressora matricial, no incio da dcada de 80, quando o Laboratrio de Inteligncia Artifi cial do MIT (EUA) onde Stallman estava empregado comprou um aparelho que deixou boquiabertos os programadores e funcion-rios que ali trabalhavam.

    Tratava-se de uma impressora capaz de funcionar a uma velocidade assombrosa, e o alvoroo inicial que provo-cou entre os programadores do laboratrio se transfor-mou em desiluso ao comprovar que aquela mquina no s podia imprimir em segundos, mas tambm mastigar algumas folhas que passavam pelas entranhas eletrnicas (Stallman, 2000, p. 3).

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    O ento programador Richard Stallman se props a aca-bar com o problema e solicitou empresa fabricante o cdigo--fonte (a sequncia das instrues do programa) da impressora. O objetivo de Stallman era corrigi-lo e melhor-lo para evitar os gastos com papel e as consequentes irritaes dos usurios. Contudo, a empresa se negou a disponibilizar o cdigo, alegando razes comerciais, e os programadores tiveram que seguir cru-zando os dedos para que o diablico aparelho no triturasse seu trabalho. Este fato fez com que Stallman perdesse a pacincia e o empurrou a sonhar com uma nova ordem informtica, em que ningum pudesse se apropriar do cdigo de um programa e que qualquer pessoa pudesse usar e modifi car os programas da forma que quisesse.

    Ele se empenhou, ento, na criao de um sistema opera-cional por ser este o software crucial para que um computa-dor pudesse funcionar. Com um sistema operacional livre, ns poderamos ter uma comunidade de hackers cooperando nova-mente e convidar qualquer um para unir-se a ns (Stallman, 1998, p. 4).

    Stallman decidiu produzir um sistema operacional ba-seado no Unix, pois assim o sistema seria porttil e os usurios do Unix poderiam migrar para ele com facilidade. Em 1984, o programador norte-americano conclui seu feito, batizando-o de GNU, seguindo a tradio hacker de utilizar acrnimos, no caso, GNU is Not Unix. Essa caminhada em busca de um sistema operacional foi denominada de Projeto GNU, o marco fundador do Movimento do Software Livre.

    Logo aps o lanamento do sistema operacional GNU, Stallman o nomeou de free software, no no sentido de free como gratuito, mas como liberdade de: 1) executar um programa, com qualquer propsito; 2) modifi car o programa e adaptar s ne-cessidades do usurio (isto signifi ca ter acesso ao cdigo fonte);

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    3) redistribuir cpias, tanto grtis como com taxa; 4) distribuir verses modifi cadas do programa, de tal modo que a comunidade possa benefi ciar-se com as melhorias.

    O nascimento do copyleft

    Como na ocasio estava desempregado, pois havia pedido demisso do MIT (com medo deste se manifestar, no futuro, pro-prietrio do seu invento), e como algumas pessoas queriam utili-zar o GNU, Stallman cobrou US$ 150,00 pela distribuio pelo correio dos cdigos-fonte. Isso era setembro de 1984. Vendo a ocorrncia da massifi cao do seu invento, por meio de uma dis-tribuio livre, o programador temeu que algum se manifestasse unilateralmente dono da sua criao. Para conter isso, surgiu o desejo de criar um dispositivo que assegurasse um GNU livre, antes de ser popular.

    A meta do GNU era dar liberdade aos usurios, no s ser popular. Ento, deveramos usar condies de dis-tribuio que prevenissem que algum se apropriasse do software GNU, tornando-se proprietrio. O mtodo que ns usamos para isto foi denominado de copyleft 7

    (Stallman, 1998, p. 7).

    Sua explicao prossegue:

    A ideia central do copyleft que ns damos a qualquer um a permisso para executar o programa, copiar o programa, modifi car o programa e redistribuir verses modifi cadas mas ns no lhe damos permisso para somar restries de sua propriedade. Deste modo, as liberdades cruciais que defi nem o software livre so garantidos a qualquer um que tenha uma cpia; eles tor-nam-se direitos inalienveis (Stallman, 1998, p. 2001).

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    O copyleft utiliza o mesmo modelo da lei dos direitos au-torais, mas invertendo-o em termo do propsito habitual: em vez de ser um meio de privatizar o software, se torna um meio de mant-lo livre.

    Para um copyleft efetivo, as verses modifi cadas tambm devem ser livres. Isto assegura que todo o trabalho ba- seado no nosso fi que disponvel para nossa comunidade, se for publicado. o copyleft que impede que os empre-gadores digam: No se pode compartilhar essas mudan-as, porque ns queremos us-las para fazer nossa verso proprietria do programa (Stallman, 1998, p. 2001).

    No h brecha no copyleft para a permisso de uma com-binao entre um programa livre com outro proprietrio. Se for usado um cdigo livre para modifi car um software no livre, a verso fi nal obrigatoriamente tem que ser copyleft. Para im-plementar o copyleft dos software produzidos a partir do GNU, criou-se a licena GNU General Public License (GNU Licena de Domnio Pblico), um termo de compromisso que um desen-volvedor assume concordando com as normas para copiar, distri-buir e modifi car um programa ou trabalhos derivados dele.

    Abrir um cdigo-fonte e torn-lo livre consiste na pulso de vida desse militante da informtica. Antes de ser uma pro-vocao ao copyright, o copyleft cria um verdadeiro axioma ao preservar a propriedade intelectual do produto negando a pro-priedade do produto intelectual. A licena GNU GPL cria, ento, dois dispositivos, o de proteo e o de produo de direitos. O que importa manter o carter livre do movimento, quer dizer, desvendar o segredo de informao dos programas e divulg-lo. O poltico, pois, concentra-se na produo (local do confl ito so-cial), o econmico, na circulao (local onde se gera valor).

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    Ningum forado a entrar para nosso clube, mas aque-les que desejam participar devem nos oferecer a mesma cooperao que recebem de ns. Isso torna o sistema jus-to (Stallman, 2001, p. 1).

    O carter constituinte do Movimento do Software Livre vai radicalizar um princpio que tambm est presente na ampla segmentaridade dos grupos de discusso: s pode existir coo-perao se houver liberdade de circulao da informao. E uma liberdade que recusa a lgica da competio como valor produtivo, pois competir signifi ca o predomnio da crena em um s vencedor, gerando um duplo monoplio: o conhecimen-to do produto e o produto do conhecimento. E nem sempre o vencedor possui mais competncia ou habilidade tcnica, e sim capacidade de apreender (ou prender) a capacidade cognitiva de outros.

    A contracultura da cultura hacker

    Se h toda uma cena de ciberativista fomentando a liberda-de na produo do software livre em 1984, articulando mltiplos segmentos da cadeia produtiva de software mergulhado numa forte presso da economia nascente das patentes, este ano mtico ainda vai fazer emergir um outro fenmeno: a emergncia dos hackers que invadem e se apropriam de redes, como o Cult of Dead Cow. tambm neste ano que a Microsoft vai lanar o Windows NT, um programa de U$ 1.500,00, que se apresenta-va como um grande administrador de rede, totalmente seguro, inexpugnvel, tentando reduzir o valor do UNIX. Mas para usar o NT o usurio tinha de comprar um outro programa chamado Back Offi ce depois vai virar o pacote Offi ce que custava mais U$ 1.000,00. Ou seja, o pacote todo fi cava em U$ 2.500,00. A

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    maaroca da gigantesca propaganda desse modelo proprietrio estarrecedor fez esse grupo de hackers reagir, fundando o Cult of Dead Cow. Eles criaram um software chamado Back Orifi ce, uma ao e um nome bem no estilo hippie. Este software ser a base a partir da qual todos os futuros cavalos de troia sero ela-borados. O Back Orifi ce era um programa para gerenciar o NT de graa e invadir outros NTs, mostrando que o NT no era nada seguro e podia ser facilmente invadido.

    O Steven Levy divide as diferentes geraes dos hackers. Ele apresenta o hacker dos anos 60 como algum que pensa os programas de inteligncia artifi cial e explora as interaes do usurio com o computador. Nos anos 70 ele vai destacar o tra-balho do Home Brew Computer Club (Clube do Computadorista Amador), motor da inveno do computador pessoal cujo pice ocorre quando a Apple hackeia o Xerox Parc e inventa o Macintosh. Logo depois um grupo de programadores do qual faz parte Bill Gates funda a Microsoft e inventa o sistema ope-racional para o PC da IBM.

    No incio dos anos 70, a Xerox havia criado um grupo de pesquisa ligado informtica. Esse grupo vai desenvolver o te-clado, o mouse, o monitor. E o Home Brew Computer Club vai desenvolver a pesquisa em busca de um computador pessoal, o PC. Eles cultivavam a ideia de que todo mundo devia ter um computador pessoal, coisa que ningum acreditava ou entendia. As empresas pensavam: para que algum vai querer um compu-tador pessoal? Computador coisa para grande empresa. No se pensava o computador como uma ferramenta para a comuni-cao. Na verdade, a interpretao da IBM era muito marcada pela poltica de massa, fordista. S o Estado ou uma empresa podiam desejar um computador. S eles poderiam movimentar grandes massas de dados. No se via o microcomputador como

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    instrumento de comunicao, um lugar que gerava texto, udio e imagem. O PC dar certo, entre outras coisas, porque tudo da Apple era fechado e caro, funcionando no modelo tudo meu. Nada entrava no Macintosh sem ser desenvolvido pela Apple. Ento, o processador era da Apple, a memria era da Apple, o leitor de disco era Apple, voc no podia plugar coisa alguma no Macintosh sem ser feito pela Apple. Nesse ponto, o Bill Gates se adaptou ao projeto da IBM inventando um sistema operacional mais esburacado do que queijo suo, porque o projeto da IBM era diferente. Eles estavam atrasados, com medo de perder todo o mercado para a Apple. Decidiram desenvolver algo aberto onde qualquer um podia conectar seu hardware. Foi o modelo do PC da IBM que pegou e se alastrou.

    A superestrada capitalista da informao em rede

    Nos anos 80, os projetos industriais comeam a querer ti-rar proveito da popularizao do ciberespao, atravs do desen-volvimento dos produtos multimdias integrados em uma inter-face computacional. Da que uma linha diversifi cada de servios e produtos vo ser colocados no mercado reunindo os principais contedos das indstrias culturais imprensa, cinema, rdio e televiso, unindo texto, imagem, som, telefone, jogos eletrnicos no interior das interfaces grfi cas e interativas de computadores e no ciberespao das redes telemticas.

    Enquanto a indstria apostava no desenvolvimento des-se modelo de negcio, em 1993, o governo norte- americano lana um projeto de infra estrutura batizado de Information Superhighways cujo objetivo era ampliar o acesso s redes de telecomunicaes por fi bra ptica a todo tipo de fi rma que pu-desse oferecer servios, por todo tipo de rede, a todo tipo de con-

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    sumidor (Cocco, 1995, p. 3). Com cada fi rma conectada s auto-estradas da informao, a prpria empresa se tornou uma rede: passou a se relacionar de forma interativa com fornecedores, clientes, empregados; pde ampliar estratgias de descentraliza-o territorial de vrias unidades da fi rma; e surgeiu um processo de customizao baseado em transaes e interaes online com o consumo. O projeto das Superhighways empurra ento toda a economia americana para dentro de uma economia interativa e informacional, para dentro da mass customization.

    Antecedido por uma fase que Cocco denomina de conver-gncia externa, em que o crescimento da indstria de informao orientado por capital externo principalmente o publicitrio , sem a integrao entre as mdias, a fase de convergncia in-terna (um regime de acumulao endgeno de desenvolvimen-to do setor global da comunicao, da informao e das teleco-municaes) antecipada, em 1993, a partir da construo das Information Superhighways, um marco do deslocamento do regi-me de produo que possibilitar aos Estados Unidos a retomada da hegemonia internacional, at ento, sob o domnio do Japo, com seu modelo toyotista de produo. Pois, enquanto o Japo produz o meio (material), os Estados Unidos produzem o meio e, principalmente, o contedo imaterial.

    Essa economia da informa o uma nova gera o de ser-vios baseados nas tecnologias digitais, nas redes continentais em fi bra optica e nas redes de sat lites planet rios (Cocco, 1995, p. 6). Essas transforma es n o s consolidam a emergncia da ind stria multim dia e das superestradas da informa o, mas tamb m determinam um novo regime de produ o, denominado pelos tericos italianos de capitalismo cognitivo, uma nova fase produtiva marcada pela informatiza o da produ o. Nesse regi-me, a l gica de reprodu o substitu da pela l gica da inova o, e o regime da repeti o, pelo da inven o.

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    Quer dizer que a produ o cultural e o desenvolvimento das redes de difus o networks e das tecnologias de two ways [interativas] n o atravessam somente o merca-do de multim dia, mas o conjunto das atividades econ-micas (Cocco, 1995, p. 3).

    A caracter stica produtiva dessa nova economia ser a interatividade, capitaneada pela integra o da forma (ind stria de hardware e eletrnico), do conte do (ind stria de softwa-re, cinema, programas televisivos) e da difus o (ind stria de telecomunica es e inform tica).

    As redes n o funcionam como as infraestruturas rodo-vi rias que sustentaram o desenvolvimento fordista. As infovias n o s o um espao de circula o de produtos produzidos pela ind stria ou pelo setor terci rio, mas elas s o o pr prio espao de produ o de rela es de servios, isto , de bens imateriais nos quais produ o e reprodu o coincidem (Cocco, 1995, p. 7).

    Capturar as virtualidades ser controlar os fl uxos da pr-

    pria vida. A noo de rede trazida da realidade das conexes telemticas explicita exatamente a forma organizada de extra-o desses fl uxos. Nas redes virtuais, a vida se processa como interao em tempo real e se mantm sempre registrada na for-ma de informao. Todo contato com o outro (seja o sujeito ou a prpria mquina), na forma de cooperao, acaba por resultar em um conhecimento registrado, ento acessvel a todos, inclu-sive aos dispositivos do comando. Mas o comando, nesse caso, uma funo da rede e no o sujeito dela. O capitalismo quer ser to nmade como a cooperao social das redes horizontais de produo.

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    Por um lado, as superinfovias sero ento constitudas por redes de circulao (e no somente de difuso) das informaes e, por outro lado, elas sero estruturadas por instrumentos de armazenagem e de tratamento das infor-maes que permitam, ao mesmo tempo, uma conexo simplifi cada s redes e um uso intuitivo dos servios ofe-recidos. Elas no vo constituir a base tcnica da venda de uma nova gerao de servios que teriam que circular nas suas redes, mas o espao virtual de atuao das rela-es de servios. Mais que de produo preciso falar de co produo de servios, nesta perspectiva, o primado da materialidade do objeto tende a se apagar atrs do valor de uso, real ou imaginrio, do servio prestado por esse objeto (Idem, p. 4).

    No mesmo periodo histrico das suprestradas da informa-o, so desenvolvidos, na mesma lgica pblica dos pioneiros da microinformtica, o cdigo html, os protocolos http e www, a lgica hipertextual da interface grfi ca World Wide Web e o primeiro navegador, o Mosaic, logo aprimorado e transformado em Netscape. Todas essas tecnologias possibilitavam ao cidado ter acesso ou disponibilizar instantaneamente um emaranhado de informaes multimdias, hospedadas em endereos prprios (sites) representados na forma de um desenho grfi co (pginas). O ciberespao ganha ento uma representao espacial, grfi ca e multimdia.

    A dcada de 90 um momento de rpida expanso social do seu uso e a criao de um enorme mercado de consumo basea-do na nova economia. Cidados, instituies pblicas e empresas logo se adiantam em se apresentar e ofertar, gratuitamente ou no, os contedos e servios a todo e qualquer tipo de consu-midor nas redes virtuais da Internet. Mas, no fi nal das contas, esse movimento industrial e estatal acabou por instituir formas

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    de governar o ciberespao a Internet, em especial que emer-gia como um ambiente de produo e expresso regulados pelo poder constituinte das resistncias criativas.

    Para Rullani (2004) a economia da information superhi-ghways, que vai se massifi car com a popularizao da www, transforma o conhecimento ou o contedo em valor de uso para usurios e para a sociedade. Contudo, so contedos sem um valor de custo que possa ser empregado como referncia para determinar seu valor de troca, de forma que tanto o trabalho, quanto o capital tm ambos, pela primeira vez, o poder de auto-valorizao.

    Uma vez que uma primeira unidade foi produzida, o cus-to necessrio para reproduzir as demais unidades tende a zero se o conhecimento digitalizado. Em nenhum caso esse custo tem a ver com o custo de produo inicial (Rullani in Blondeau et al., 2004, p. 102).

    Essa qualidade de reproduo a custo zero ocorre porque o conhecimento um bem coletivo indivisvel, logo, no concor-rencial (ele pode ser meu e seu ao mesmo tempo). Se o conhe-cimento no tem valor de troca, ele se deixa compartilhar ao bel prazer, segundo a vontade de cada um e de todos, gratuitamente, especialmente na Internet (Gorz, 2005, p. 36).

    A nova economia ento carrega aquilo que ironicamente Richard Barbrook denominou de cibercomunismo, por ter cons-titudo uma infraestrutura que possibilita o compartilhamento e uma economia da ddiva. Na nova economia, o trabalho coo-perativo gera reconhecimento pblico e modos de produo em regime aberto. A tentativa de retomada capitalista da Internet no comeo dos anos 90, calcada na concepo de uma indstria do copyright a tudo vigiando, se antagoniza com essa Internet dos

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    usurios, baseados em processos de trabalho imaterial em que a cpia, o conhecimento socializado e a informao compartilha- da se tornam o principal vetor de desvalorizao das mercadorias da nova economia.

    Como uma atividade cotidiana, os usu rios fazem cir-cular a informa o gratuitamente, em e -mails, servi os de not cias, newsgroup, confer ncias, etc. Como se de-monstra com os programas Apache e Linux, a economia da doa o na tecnologia est na vanguarda do desenvol-vimento do software. Contrariamente vis o purista da Nova Esquerda, o anarco comunismo na Rede s pode existir em uma forma consensual. O dinheiro- mercadoria e as rela es de doa o n o s est o em confl ito entre si, como tamb m coexistem como uma simbiose (Barbrook, 2000, p. 3).

    Segundo as anlises de Enzo Rullani, o ciberespao, em sua faceta capitalista, emergente nos 90 (muito em contraposio a essa Internet P2P dos 80), funciona como uma economia da velocidade. A operao para produzir esse novo valor das merca-dorias passa primeiro pela acelerao da difuso dos bens, o que garante um valor (ainda de uso) advindo do ineditismo de quem o produz. Mas, do ponto de vista do capitalismo, o valor de troca s acontece quando quem difunde tambm consegue impor uma desacelerao da socializao. O valor de troca se encontra nesse gap entre acelerao da difuso e desacelerao da socializao. Assim, a difuso de um bem deve possibilitar que o conhecimen-to contido nele seja socializado para todos os concorrentes e to-dos os usurios potenciais. Mas num ritmo lento de socializao, at que possa difundir uma outra inovao que substitua a tempo o conhecimento que acabara de ser incorporado pela concorrn-cia e pelos usurios potenciais. O up to date faz, na verdade, um

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    dispositivo que j se oferece tardiamente do ponto de vista do ca-pital, mas entendendo isto como base para o progresso do capital.

    O plano da resistncia da Internet dos grupos e comunida-des vai operar a de dupla forma. Ou cpia, ou sistema livre de produo. A primeira acelera a socializao por meio da imita-o. A segunda, por meio de dispositivos cooperativos e pbli-cos, difunde e socializa toda a produo. Ambas tm de idntico o efeito de no ameaar a propriedade, mas destruir seu carter privado (Negri & Hardt, 2005, p. 234). Esses dois planos do an-tagonismo fazem reduzir o valor de troca, mas possibilitam que haja aumento de riqueza, medida que muitos desses produtos so a base para se criarem outros, porm, livres, por meio de um mtodo primrio da socializao do trabalho, marcado pela abundncia das trocas e doaes, e no pela escassez do conhe-cimento.

    Naturalmente, a reproduo muito diferente das formas tradicionais de roubo, pois a propriedade original no tomada de seu proprietrio; simplesmente passa a haver mais propriedade para algum mais. A propriedade pri-vada baseia-se tradicionalmente numa lgica de escassez a propriedade material no pode estar em dois lugares ao mesmo tempo; se voc a tem, eu no posso t-la , mas a infi nita reprodutibilidade que um elemento cen-tral dessas formas imateriais de propriedade solapa di-retamente qualquer concepo de escassez como esta. (Negri e Hardt, 2005, p. 235).

    Assim, no comeo dos anos 90, a economia pblica da www e comercial das superestradas da informao (a Internet co-mercial) contm elementos inconciliveis (Gorz, 2003), porque a principal fora produtiva o saber no quantifi cvel, pois sua produo no pode ser medida pelo tempo abstrato de trabalho.

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    Alm disso, para Corsani (2002) o fato do saber ser difuso faz com que o capital saia de uma lgica de valorizao baseada em um controle direto do processo de produo. Por conta disso, provoca uma crise de fundo no capitalismo e antecipa uma outra economia, de tipo novo e ainda a ser fundada (Gorz, 2003, p. 35). Essa outra economia a ser fundada estaria, para Gorz, j se constituindo no espao liso das redes (freenets), as empresas j estariam trabalhando nas redes para unir-se nos momentos da to-mada de deciso e consumo. Os usurios, atravs de mecanismos de auto-organizao, autocoordenao e a livre troca de saber, estariam produzindo um emaranhado de produtos e servios cria-dos a partir da colaborao em rede sem a necessidade de uma intermediao do mercado.

    A inveno do ciberespao pelos usurios da Internet de-sencadeia na construo da primeira www a radical mquina pblica de produo, consumo e circulao de informao. Ela encontra, a partir do advento do projeto modernizador norte- americano, as Superestradas da Informao, sua primeira con-trarreforma articulada por corporaes em busca da transfor-mao da Internet num megapanptico, onde os dados, sujeitos, relaes estariam todos imersos em uma vigilncia irrestrita com objetivos de produo de um mercado digital. Este atuali-zaria seno, suplantaria toda a cooperao social dentro de suas plataformas, gerando aes de outsourcing permanente. A velha ideologia capitalista chegaria, assim, ao seu grande so-nho: se libertar do trabalho.

    Mas os anos 90 no foram bem assim.

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    A Lei dos Pares na Cibercultura

    O cdigo do compartilhamento

    embutido nas interfaces

    de mediao e nas redes

    da guerra em rede

    As redes da vida social confundiram-se com as redes de luta biopoltica no ciberespao a partir da inveno do www (world wide web) por parte de Tim Berners Lee. As teias de p-ginas virtuais, geradas pelo novo protocolo criado por ele, propi-ciaram a reunio do material segmentado nas conversaes dos grupos de discusso. Esse material disperso afl uiu para as pgi-nas web levado pela reunio das diferentes formas de defesa e resistncia, constituindo os novos movimentos das guerras em rede. O surgimento do Zapatismo na regio mexicana de Chiapas em 1994 vai marcar o reencontro da poltica dos movimentos sociais ancorados nas comunidades virtuais com a poltica dos grupos marxistas radicais enredados nas guerras de guerrilha. Atravs desta mistura, reacendeu-se o estopim das oportunida-des de mudana dos anos 60 que envolvem tanto o sentido da

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    democracia e da poltica na sociedade ps-moderna, quanto o da luta de classes no mundo globalizado.

    A partir da mediao das teias de pginas virtuais, as no-vas manifestaes biopolticas revelam a organizao em rede como um meio de individuao coletiva formador de culturas. Mas a contrapelo da cultura exercida como forma de reproduo conservadora das diferenas sociais e suas relaes tradicionais de poder, o nascente ciberespao revelou-se o bero de uma po-derosa cibercultura cujo poder constituinte ir se exprimir atravs das leis que regulam os agenciamentos dos pares constituindo-se e ao seu mundo atravs dos cdigos embutidos nas interfaces de mediao e das redes de guerra em rede.

    Os cdigos protocolos, programas, motores de busca, agentes de rede, minas de dados, scripts, formulrios, pginas web so leis de um mundo coerente e compartilhado que be-nefi cia certas atitudes, tipos de relaes e formas de conexo. Estando embutidos nas interfaces, eles condicionam seu uso a uma aceitao por parte do usurio da tica de seu funciona-mento. Um programa de software livre no pode ter seu cdigo fechado, e os cdigos derivados dele tem de permanecer livres tambm. As redes de compartilhamento cultural entre pares e seus motores de localizao constroem um sistema sem eixos centralizados de distribuio e regulam a velocidade da obteno dos produtos pela quantidade de benefcio gerada pelo captador de recursos. Os cdigos so ao mesmo tempo normas ticas de processamento e tcnicas de procedimento. Constroem um nexo conectivo entre protocolos, programas e scripts que se traduzem em um ambiente