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FUNDAÇÃO COMUNITÁRIA TRICORDIANA DE EDUCAÇÃO Decretos Estaduais nº 9.843/66 e nº 16.719/74 e Parecer CEE/MG nº 99/93 UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE- TRÊS CORAÇÕES – MG Credenciada pelo Decreto Estadual nº 40.229/98, de 29/12/1998 A INTERDISCIPLINARIDADE E A TRANSDISCIPLINARIDADE NA FORMAÇÃO DOS ESTUDANTES DE MÚSICA Três Corações 2006

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Monografia apresentada à UniversidadeVale do Rio Verde – UNINCOR comoparte das exigências do programa deLicenciatura em Música, para obtençãodo título de Licenciado.Sobre a necessidade de um conhecimento inter e transdiciplinar na formação do estudante de Música, que quase sempre privilegia a execução musical de um instrumento e não procura ampliar a sua cultura em outras áreas que estão ligadas direta ou indiretamente à arte musical.

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Page 1: A INTERDISCIPLINARIDADE E  A  TRANSDISCIPLINARIDADE NA FORMAÇÃO DOS ESTUDANTES DE MÚSICA Monografia

FUNDAÇÃO COMUNITÁRIA TRICORDIANA DE EDUCAÇÃO Decretos Estaduais nº 9.843/66 e nº 16.719/74 e Parecer CEE/MG nº 99/93 UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE- TRÊS CORAÇÕES – MG

Credenciada pelo Decreto Estadual nº 40.229/98, de 29/12/1998

A INTERDISCIPLINARIDADE E A TRANSDISCIPLINARIDADE NA FORMAÇÃO DOS

ESTUDANTES DE MÚSICA

Três Corações 2006

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FLAVIO CALDONAZZO DE CASTRO

A INTERDISCIPLINARIDADE E A TRANSDISCIPLINARIDADE NA FORMAÇÃO DOS

ESTUDANTES DE MÚSICA

Três Corações 2006

Monografia apresentada à Universidade Vale do Rio Verde – UNINCOR como parte das exigências do programa de Licenciatura em Música, para obtenção do título de Licenciado. Orientador Prof. Ms.Luís Sérgio Mafra

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Aos Mestres Ernesto Hartmann Sobrinho e Domingos Sávio Lins Brandão.

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AGRADECIMENTO

Ao amigo Ernesto Hartmann, sem a ajuda do qual este trabalho jamais poderia ter sido realizado, meus sinceros agradecimentos.

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Les parfums, les couleurs et les sons se répondent

Charles Baudelaire

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 08

2. CULTURA :uma tentativa de conceituação................................................... 11

3. FORMAS DE ENSINO E ESTUDO......................................................... 20

3.1 Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade......................................... 20

3.2 Ganhos e perdas no ensino................................................................................ 37

4. ESTABELECENDO RELAÇÕES: exemplos gerais...................... 52

4.1 Ilustração sucinta de inter-relações na temática musical...................... 58

5. A TENDÊNCIA DE ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR NA ANÁLISE MUSICAL .....................................................................................

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 66

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................... 67

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RESUMO

CASTRO, Flavio Caldonazzo de. A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade na formação dos estudantes de Música. 2006. 68 p. Universidade Vale do Rio Verde – UNINCOR – Três Corações – MG * A cultura acompanha o homem deste os tempos mais remotos. Esta cultura foi se transformando, se ampliando e se diversificando através dos tempos de forma a se tornar algo de fundamental importância em todas as atividades humanas. Quanto mais podemos aprofundar-nos no conhecimento deste processo cultural da humanidade mais sucesso obteremos em nossas realizações. Para que a maior quantidade de aspectos culturais e conhecimentos sejam absorvidos e aproveitados, os estudantes devem procurar se amparar em uma linha de conduta multidisciplinar de estudo. O governo, através da escola, deve cumprir na sua totalidade, as resoluções das leis educacionais, para garantir não somente acesso à sala de aula, mas também a qualidade do ensino, e professores aptos a conduzir seus alunos para uma diversidade de saberes que possam vir a ampliar o seu espectro cultural. Muito particularmente os alunos dos cursos de música não podem prescindir desta linha de realização educacional uma vez que a sua matéria apresenta um vasto campo de associação interativa com outras artes, como também, com a história, a filosofia e a literatura. Somente desta forma eles obterão uma formação mais sólida e profunda, que posteriormente possam utilizar como ferramenta eficaz na comparação de aspectos históricos, filosóficos e literários, podendo estabelecer assim as relações entre as diversas áreas da criação humana e sua interseção com as obras artísticas. A modernidade caminha na direção irreversível da transdisciplinaridade e até mesmo a análise musical específica compreende hoje, em muitos casos, uma visão atrelada a aspectos culturais mais elásticos e não somente a reflexão puramente técnica e estrutural da música. Muitos estudantes, professores, e instituições de ensino, não estão compromissados com esta realidade, permanecendo em uma prática educativa fragmentada. A reversão deste quadro é urgente e está vinculada a uma visão transdisciplinar. No entanto, para que esta mudança se opere, há que se contar com o despertar do prazer da leitura, da pesquisa constante, do amor pelo estudo e pelo conhecer em cada indivíduo. Porém, esta atitude, ou esta transformação dos alunos em estudantes interativos e em verdadeiros agentes de disseminação do gosto pelo saber, está vinculada também à implementação efetiva de uma nova conduta da política educacional no Brasil.

______________________ * Comitê Orientador: Ms. Luís Sérgio Mafra – UNINCOR – (Orientador). Ms. Ernesto Frederico Hartmann Sobrinho – UFRJ – (Co-Orientador).Ms. Marcelo Peterle P. Dantas (profº de Monografia).

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ABSTRACT

CASTRO, Flavio Caldonazzo de. The interdiscipliniraty and the transcisplinarity t o the music students improvement. 2006. 68 p. University Vale do Rio Verde – UNINCOR – Três Corações – MG* The culture has followed the man since the most remoted era. This culture has been transforming itself; increasing and varying itself through the times in fact to become something from the fundamental importance to all human activities. The more we come to deep ourselves in the knowledge of humanity's cultural process, the more sucess we will get in our achievements. In order that the greatest quantity of culture and knowledge aspects come to be absorbed and for taking advantage of these aspects, the students must look for a line of a multidiciplinary method to study. The government, through the school, must carry out the resolutions from the education laws, in its totality to guarantee not only the access to the classroom by the students but also the quality of teaching, with teachers able to drive their students to a several kind of knowledges that improve their cultural visions. Particulary the students of a musician course should not give up the realization of this education line since this subject presents a great interactive association with other arts including history; philosophy and literature. Only in this way, they will put inside the most solid and deep improvement, which later will make them able to use as an efficient tool to compare the literary, historical and phylosofical aspects setting up in this way the relations between the several area of human creation and its intersection to the artistic works. The modernity goes on to the unchanged way of transdisciplinarity and even the specific music analysis inclues, now a days, in a lot of cases, a vision that is added to more extensive cultural aspects and not only by realizing the simple technic of music structure. Many teachers, students, and institutions are not worried about this reality, so they keep the same kind of education doing it in a fragmented way. That's why, it's urgent to change this situation. It will happen by a transdisciplinary way.This will be easier if they come to the pleasure of reading, permanent searching, and to love the study and the individual knowledge as well. Nevertheless this education revolution that will change the students behavior; making them to be true agents who will come to put ahead all the knowledge they have achieved, for sure, this will just come to happen with an efective new behavior of the educational politics in Brazil.

_____________________________ * Orientates Committee: Ms. Luís Sérgio Mafra – UNINCOR – (Orientate). Ms. Ernesto Frederico Hartmann Sobrinho – UFRJ – (Co-Orientate). Ms. Marcelo Peterle P. Dantas (Monograph teacher).

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1. INTRODUÇÃO

A motivação para a realização desta monografia nasceu a partir da observação de

uma peculiaridade existente em muitos estudantes de diversos cursos de música, que, quer

façam parte da rede pública ou privada, sejam eles de nível médio ou superior, têm como

finalidade exclusivamente a performance e o aprendizado relacionado apenas com a técnica

do instrumento escolhido e o dos conceitos teóricos da música.

A princípio nada existe de errado com este desejo, e, aliás, ele é responsável por

muitas histórias de sucesso de grandes artistas. Sem dúvida, o empenho e dedicação à prática

constante do instrumento do qual se pretende tornar um exímio executante é louvável e

fundamental. No entanto, muitos deixam de lado, neste processo, uma parte da formação

integral que parece ser a ideal para aqueles que querem se transformar em músicos completos

e professores capazes.

Certamente que as exceções existem e elas nos motivam a pensar que o

aprendizado de uma arte pode e deve trazer junto com ele uma gama de outros conhecimentos

que farão com que exista um grande enriquecimento cultural do indivíduo que se entrega

àquele estudo.

Mesmo que nos currículos dos cursos de música constem disciplinas como

História da Música, História da Arte, Filosofia, Estética, entre outras matérias, este simples

fato por si só não garante um completo envolvimento do aluno com estas matérias de maneira

que ele venha a relacionar-se com elas de uma forma íntima e nem que ele permanecerá

motivado a se atualizar nelas ou mantê-las na memória.

Poderíamos nos perguntar se além do interesse particular de cada um, a maior ou

menor dedicação aos estudos e uma posterior continuação deles, não está também vinculada

ao fato de existir um baixo nível de exigências nos cursos e não somente à indisposição dos

alunos.

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Uma formação adequada deve provavelmente poder ser atingida somente se

estiver vinculada à valorização de fatores essenciais que se ligam indissoluvelmente ao estudo

das artes como um todo. Dentre estes fatores, seria relevante considerar uma maior

valorização da literatura e do hábito da leitura diversificada. Esta conduta contribuiria para

um aprimoramento do ensino de forma qualitativa na apreciação artística, uma vez que a

literatura foi muitas vezes inspiração e ponto de partida para a realização de muitas obras de

inúmeros artistas que acabaram sempre por beber desta fonte. Por conseguinte, podemos

entender que quanto mais os estudantes tomarem conhecimento destas origens motivadoras

das obras que pretendem interpretar ou apreciar, mais subsídios eles terão para uma melhor

compreensão delas.

Apesar destes aspectos relacionados acima pertencerem a uma área de interesse

mais específico da interdisciplinaridade, tenciona-se ampliar esta perspectiva de forma a

atingir a priorização da transdisciplinaridade que abrange todos os aspectos inclusos naquela,

mas lança uma nova visão e idealiza uma multiplicidade que procura transcender todas as

outras maneiras de se pensar o ensino.

No entanto, parece muito improvável que este nível de empatia entre homem e

estudo possa ser alcançado através de uma didática que privilegie o aperfeiçoamento de uma

única disciplina ou, na melhor das hipóteses, de disciplinas de relação apenas direta entre

matérias.

Quanto maior a conexão entre os temas diversos, quanto mais se demonstrar uma

interdependência entre as partes, maior será o nível de apreciação do todo e a consolidação da

construção do conhecimento cultural do indivíduo. Para que se possa obter este tipo de

formação ou pelo menos, para que se busque atingi-lo, faz se necessária uma transformação

do posicionamento dos alunos e também de professores diante da consciência da importância

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de relações diversificadas, transformação esta que atuará na priorização deste aprendizado

completo.

Esta mudança, no entanto, somente será possível com uma melhor preparação dos

professores para que estes possam guiar seus discípulos, assim como é de fundamental

importância uma maior atenção da política educacional do país, a fim de que esta venha a

efetivar resoluções como, por exemplo, as que estão inclusas nos PCN’s, tirando-as do papel e

fazendo com que elas se tornem uma realidade do ensino nacional.

Acredita-se que exista um arrefecimento na busca das condições ideais do ensino-

aprendizagem, o que faz com que este ensino apresente lacunas significativas que

comprometem a formação dos alunos no que confere a ampliação das associações entre

matérias, e que há uma urgente necessidade de modificação deste quadro.

Assim sendo, este trabalho pretende demonstrar que esta passividade em relação

aos estudos mais profundos no sentido de apreender de maneira eficaz estas inter-relações

disciplinares no ensino e no estudo de todas as matérias, mas especificamente nas artes

musicais, pode e deve ser revertido e que para que se venha atingir este estágio

transdisciplinar é fundamental um desenvolvimento gradual que possibilitará uma ampliação

cultural adequada a este objetivo.

Espera-se ainda concluir que um ensino adequado da arte musical, juntamente com

outras matérias, está vinculado à conquista deste ensino qualitativo pretendido, o que

determinaria a erradicação de um conhecimento fragmentado, transformando o ensino das

artes e possibilitando uma melhor qualificação de músicos, de outros artistas, dos

profissionais de outras áreas e dos professores.

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2. CULTURA: uma tentativa de conceituação

Segundo o antropólogo Clifford Geertz em seu livro “A Interpretação das Culturas”:

[...] a cultura é melhor vista não como um conjunto de padrões concretos de comportamento – costumes, regras, instruções [...] isso significa que a cultura, em vez de ser acrescentada a um animal acabado ou virtualmente acabado, foi um ingrediente, e um ingrediente essencial, na produção desse mesmo animal.[...] Grosso modo isso sugere não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura [...] o que nos aconteceu na Era Glacial é que fomos obrigados a abandonar a regularidade e a precisão do controle genético detalhado sobre nossa conduta em favor da flexibilidade e adaptabilidade de um controle genético mais generalizado [...] para obter a informação adicional necessária fomos forçados a depender cada vez mais de fontes culturais – o fundo acumulado de símbolos significantes. Tais símbolos são, portanto, não apenas simples expressões, instrumentalidade ou correlatos de nossa existência biológica, psicológica e social: eles são seus pré-requisitos. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens (1989, p.56, 59 e 61)

As afirmativas de Geertz demonstram de forma muito clara que a cultura é,

segundo o seu pensamento, o resultado de um processo amplo de desenvolvimento do homem

e que não somente foi criada para atender às diversas necessidades estéticas que este homem

foi tendo no decorrer de sua história, mas é também um ponto de partida simultâneo à própria

origem deste homem, sem a qual não seria possível a sua sobrevivência.

No entanto, o próprio autor citado acima parece concordar que esta definição não

suprime, mas ratifica a necessidade de um entendimento de um processo de construção

cultural gradativo que determinará o avanço em direção de uma visão cultural abrangente.

O homem é, pois, um animal cultural. Sem este pré-requisito a história da humanidade seria

outra, ou nula, pois, muito provavelmente, o homem já tivesse se extinguido.

A cultura que pertence ao nível de condição de sobrevivência para o homem, não

pode ser vista apenas como um ornamento, não tem como ser encarada como conhecimento

em forma de verbetes enciclopédicos que se acumulam em volumes na sua memória, mas

antes, faz parte da matéria-prima que formou e vem formando esta mesma memória através

dos séculos, desde os períodos mais antigos até os dias atuais, e mesmo que Geertz não

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intente aplicar conceitos biológicos, psicológicos ou sociológicos na análise da formação

cultural ele defende que as relações entre estes conceitos são importantes para esta formação,

como aparece expresso na citação abaixo:

[...] a despeito do que possa parecer, não há aqui uma tentativa séria de aplicar os conceitos e teorias da biologia, da psicologia ou até da sociologia a análise da cultura [...] mas apenas a colocação, lado a lado, de fatos supostos dos níveis cultural, e não cultural, de forma a induzir um sentimento vago de que existe uma espécie de relação entre eles.(GEERTZ, 1989, p.49.)

Sem o homem, é obvio que os acontecimentos e as realizações culturais que

compõem as suas aquisições, os elementos que se ordenam e se transferem no tempo

transformando-se em vivência efetiva em sua mente e nas próprias ações deste homem, não

poderiam existir ou se alimentar, impossibilitando a sua continuidade e evolução. No entanto,

sem o caminho inverso, aquele de uma visão que coloca a cultura como sendo o impulso

gerador das realizações humanas, a cultura como base de sua “seleção natural”, este homem

também não seria viável, não subsistiria. O homem é a cultura e a cultura é o homem, e este

entendimento de formação cultural através do homem, pelo homem e em prol do homem é

que faz com que a constituição inata do ser humano parece ser não somente herdada, mas

também um produto do meio.

Desta forma os elementos conceituais da cultura estão nesta via de mão dupla,

nesta interdependência, no amálgama formado entre homem e cultura no tempo e no espaço, o

que os torna um só elemento.

Este entrelaçamento, que no decorrer dos tempos foi urdindo essa trama, essa

“teia” de ligações, atingiu uma densidade ampla e codificada que faz com que tenhamos

condições de compreender as solicitações que as inúmeras necessidades cotidianas nos fazem,

absorvendo-as, e, por assim dizer, instintivamente as decodificando em um nível abstrato no

nosso íntimo.

[...] Como sistemas entrelaçados de signos interpenetráveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos, casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as

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instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível — isto é, descritos com densidade (GEERTZ. p.24)

A cultura, assim entendida, trabalhou ao longo dos anos para que este “quase

instinto” do qual ela seria decorrente, fosse construindo um contraponto de informações

complementares que equipasse a humanidade e a tornasse adaptada às suas diversas

necessidades. Preparando, pois, o indivíduo, tanto para as mais básicas questões de

sobrevivência como também para o desenvolvimento gradativo das realizações artísticas e

culturais provenientes de um desenvolvimento posterior.

Seria importante notar que existem pelo menos duas correntes fundamentais de

pensamento ao se analisar a formação cultural e a aquisição de conhecimentos que implicam

nesta análise. De um lado se encontram aqueles que tendem a tachar de puro academicismo

toda e qualquer exposição de conhecimento fragmentado, e de outro os que não conseguem

descobrir na cultura (ou culturas) aquela transcendência dos aspectos puramente escolares.

Talvez ambos os pensamentos pequem pelo radicalismo. Pois assim como é certo

que todo o desenvolvimento dos fenômenos culturais transformou-se, se desenvolveu, e se

traduziu em aquisições benéficas e de ordem fundamental para a sobrevivência da

humanidade, também é verdade que as construções culturais posteriores a estas reações

básicas de preservação, foram elaboradas e re-elaboradas até se transformarem nesta relação

intrínseca: homem-cultura-cultura-homem. Como também não poderiam ter sido conquistadas

estas configurações mais complexas, sem o armazenamento metódico de lições assimiladas

com o passar dos anos através das fontes culturais tradicionalmente aceitas como cultas e que

englobam todas artes, idiomas, e pensamentos científicos e filosóficos.

Assim sendo, ao se pensar, na atualidade, em uma educação que valorize o

aprimoramento de uma análise de seus objetivos e aplicações, dentro de um enfoque cultural,

não se pode prescindir de estágios de formação adequados a estas finalidades, uma vez que

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parece ser a consolidação de capacidades adquiridas nestes domínios e a expansão constante

destas capacidades o que qualifica o homem a interagir com significados em diversos níveis

de contextos, como sugere Geertz nesta outra observação no seu livro:

[...] A análise cultural é (ou deveria ser) uma adivinhação dos significados, uma avaliação das conjecturas, um traçar de conclusões explanatórias a partir das melhores conjecturas e não a descoberta e o mapeamento da sua paisagem incorpórea.(p. 30 e 31).

Finalmente delineia-se o objeto fundamental desta pesquisa, que é a tentativa de

abordar a importância de um segundo aspecto que envolve a cultura e que está ligado

especificamente à preparação de professores e alunos para que eles possam ter acesso

(simultâneo e posterior) àquelas relações de empatia cultural as quais seriam ideais por

remontarem à condição de cultura vital. Este aspecto parece representar os primeiros passos

para que se possa ampliar o entendimento e a visão de cultura para padrões mais elevados e,

como se observa, tais fundamentos exigem um comprometimento efetivo por parte do

profissional, como nos assegura o educador Paulo Freire:

[...] toda prática educativa envolve uma postura teórica por parte do educador. Esta postura, em si mesma, implica às vezes mais, às vezes menos explicitamente numa concepção dos seres humanos e do mundo. E não poderia deixar de ser assim. É que o processo de orientação dos seres humanos no mundo envolve não apenas a associação de imagens sensoriais, como entre os animais, mas, sobretudo, pensamento-linguagem; envolve desejo, trabalho-ação transformado. Este compreendido, de um lado, de um ponto de vista puramente subjetivo, de outro, de um ângulo objetivo mecanicista. Na verdade, esta orientação no mundo só pode ser realmente compreendida na unidade dialética entre subjetividade e objetividade. Assim entendida, a orientação no mundo põe a questão das finalidades da ação ao nível da percepção crítica da realidade.(1982, p.42).

Um fator importante a ser abordado ao se pensar neste outro aspecto relacionado à

cultura, é que existe uma interdependência nessa relação, onde a tentativa de busca de uma

cultura plena (embora inatingível), somente poderá existir com um constante aperfeiçoamento

do indivíduo em direção à ampliação de seus níveis de capacidade em realizar associações,

pois os estudos se constroem sobre outros estudos no sentido de que cada vez que estejamos

mais informados mergulharemos mais profundamente no significado das coisas e poderemos

realizar uma melhor análise cultural.

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Deveria-se assim, considerar com algum critério, que este “acúmulo de

conhecimento” funciona, e muito bem, como mecanismo de valor para impulsionar os

indivíduos a atingir outros níveis de espectro cultural bem mais amplos, não obstante muitas

vezes acabe sendo marginalizado pelos novos conceitos de educação que às vezes associa esta

busca da erudição a um elitismo excludente que tornaria os indivíduos isolados em seus

conhecimentos e de onde nada de proveitoso poderia surgir.

Talvez fosse mais interessante pensarmos se não são a partir destas posturas,

aparentemente radicais, que nascem os raciocínios que dão impulso ao desenvolvimento do

pensamento e da educação, por haverem, alguns homens, refletido nas questões importantes

para a interpretação de alguns valores fundamentais, o que tornou, então, possível uma

formação de criadores novos e originais, de novos pensamentos, novas ciências e mesmo de

nova estética artística.

O filósofo Friedrich Nietzsche (�1844 -�1900), um crítico mordaz das culturas

estabelecidas nos moldes de pensamento racional ou de valorização de modelos e ídolos, diz-

nos em seu livro A Gaia Ciência que ele havia se mudado da casa dos eruditos e que tinha

também batido a porta ao sair, assim como no mesmo livro critica o filósofo Emanuel Kant

(�1724 – �1804), dizendo que “Kant queria demonstrar a todos de um modo constrangedor,

que todos têm razão: foi esta a secreta pilhéria desta alma. Escreveu contra os sábios, em

favor do preconceito do povo, mas foi para eles, não para o povo que o fez” (NIETZSCHE,

2004, p. 132).

Nietzsche afirma que abandonou os eruditos e a casa deles, mas não deixa de

ter uma ferramenta muito importante, ou essencial para ter o poder de fazê-lo: a própria

erudição. Pois que era notadamente um grande pensador com um vasto conhecimento em

diversas áreas, e foi durante alguns anos dono da cadeira de filologia da Universidade da

Basiléia, na Suíça.

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O outro ponto importante de se notar é que ele, ao criticar Kant, nos deixa claro

que a razão de sua crítica é, entre outras coisas a (para ele) incoerência do filósofo que ao

escrever contra os sábios o faz para estes mesmos, pois que os que não tivessem erudição

suficiente (o povo) para ler e para entender Kant não poderiam ter acesso ao seu pensamento.

Sendo assim Nietzsche, acaba por declarar que a erudição que ele critica e que torna

inacessível ao homem comum o pensamento de Kant, é imprescindível para este acesso. É

interessante notar também que não menos convívio com a prática da leitura culta é necessário

para se tomar conhecimento da “retirada” de Nietzsche da erudição, e que ele também ao

escrever esta máxima que contraria os eruditos, o faz para que estes o leiam e não para o

povo.

Assim poderíamos dizer que antes de se conquistar um nível de entendimento

para se poder fazer uso do livre arbítrio da distinção entre esta ou aquela forma de vida ou

desta ou de outra escolha de envolvimento intelectual ou não com algo, faz se necessário um

certo grau de preparação cultural, já que parece claro que,

[...] O ser humano se desenvolve criando critérios (medidas) de convivência, com o ambiente, critérios e medidas de convivência consigo mesmo e com a sociedade. Tais critérios (ou medida...ou modelo) são criados conforme seu processo cultural de interagir (com a sociedade, consigo mesmo, com o Ambiente) ele amadurece aprimorando (sistematizando) sua capacidade de formação, cada dia mais criativa, mais auto determinada, mais sistemática. Neste outro momento, pensamos no Ser Humano lidando com a “cultura acumulada” da espécie humana. (NOGUEIRA, 1994,p.89)

Pensemos no famoso preceito socrático onde o filósofo alega só saber que nada

sabe. Este é um bom exemplo para entendermos este ponto em questão. É interessante notar

que tal aforismo somente pode ser formulado ou repetido por alguém que tenha atingido um

certo nível intelectual para que possa então se considerar indigno de achar que sabe algo. A

outra única opção é que alguém que realmente fosse um ignorante (no sentido de ignorar

qualquer forma de conhecimento formal, acadêmico) sentisse sinceramente o que professa o

ditado do famoso filósofo ateniense, mas pelo menos teríamos que admitir que esta pessoa

não o poderia repetir, ou pelo menos não o repetiria com a finalidade de citar o filósofo grego,

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pois não saberia quem foi Sócrates (�470-�339 aC).

O que se vê é que o conhecimento produzido e estudado é ferramenta essencial,

também, para qualquer estudioso da importância das culturas, para a formação cultural do

homem, e para todos que pretendam demonstrar através de suas argumentações que o que se

deve valorizar é a relação da humanidade com a cultura e não o simples acúmulo de

conhecimento. Observa-se, pois, que qualquer destes estudiosos necessitaram e necessitarão

sempre destas relações e conhecimentos para tornarem plenamente inteligíveis para os seus

interlocutores, ou leitores, qualquer discurso a respeito da cultura. Da mesma forma será

necessário preparo intelectual para que posteriormente se tome alguma posição em relação a

qualquer uma das implicações decorrentes de qualquer visão filosófica e cultural para que se

possa tomar posição favorável ou contrária a ela.

Um problema parece residir no fato de quase sempre existir uma associação do

termo “erudito” a algo pedante e intransigente. Não há como negar que esta associação é

bastante justificável por existir uma tendência em se atribuir valores mortos a determinadas

coisas, mas deve-se observar quais são aqueles que assim agem e colher exemplos nas

exceções.

Os que verdadeiramente apreciam e se beneficiam das criações denominadas

eruditas (infelizmente não existe outro termo), não o fazem por demonstração de

conhecimento ou por arrogância. Geralmente, estes, são os que vêem nestas criações uma

parte de um todo que determina uma relação íntima que eles têm com o universo cultural, por

serem estas para eles dignas de interesse, e por entenderem que as mesmas estão ligadas a

uma representatividade fundamental para uma apreciação de qualidade.

Quando filósofos, educadores, qualquer artista ou escritor, questiona a validade

dos procedimentos acumulativos de conhecimentos, quando criticam qualquer forma de

erudição, estes somente poderão ser levados a sério, se, em última análise, eles forem, por

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formação, eruditos. Sem se passar pelos necessários caminhos de aperfeiçoamento e

ampliação da sua própria cultura não se pode almejar atingir um nível conceitual no qual se

possa decidir pela ampliação dos conhecimentos ou mesmo pelo simples abandono de tudo,

pelo repouso intelectual, se é que este é possível.

Há que se pensar também, que esta intimidade resultante de um alargamento da

cultura, através do estudo, parece somente estar disponível a uma determinada elite

privilegiada uma vez que os governantes brasileiros atribuem sempre um valor errôneo à

educação, entendendo que o simples acesso à escola já constitui por si só estar

proporcionando educação ao povo. Sendo assim as classes médias e baixas da sociedade

brasileira recebem um “ensino” massificante no qual, muitas vezes, a simples conquista de

escrever corretamente o próprio nome é considerada alfabetização satisfatória.

Poderá se concluir, então, que existem algumas definições para esta entidade

complexa, multifacetada e, ao mesmo tempo, tradicionalmente erudita ou popular, a qual se

denomina cultura: que ela seria um elemento constitutivo do universo humano e do próprio

homem. Que esta cultura nas suas mais diversificadas formas e estágios, esteve, ainda está, e

sempre estará presente na nossa história e formação. Que foi criada pelo homem e é

responsável pelo desenvolvimento e pela constante re-formulação dos conceitos e novas

construções realizadas na humanidade. Que a cultura, da forma ampla e abrangente como

deve ser entendida, e estudada, não é de maneira alguma uma prioridade em muitos governos.

Que a cultura se apresenta sob inúmeras facetas que tendem a se atrair e efetivamente se

atraem e se mesclam visando formar um corpo abrangente e único, porém infinito e vivo, do

qual nunca se logrará abarcar o todo. Mas que estaremos pelo menos mais aptos a

compreender relações e interações no todo se pensarmos nestas correlações inerentes à

cultura, uma vez que:

[...] a prática que se constitui em critério de verdade é sempre aquela motivada por uma finalidade, ou seja, toda a prática verdadeira está intimamente correlacionada ao fim que o homem tem em vista, e ao seu engajamento no processo produtivo. Neste sentido, é

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fundamental que o homem perceba-se a si próprio pelo acúmulo de conhecimentos sobre a prática que adquiriu em sua vida. Embora as situações do cotidiano não se repitam de formas absolutamente iguais, as respostas dadas às situações se revelam no simples aproveitamento de experiências cujos resultados são conhecidos. O que estamos com isso querendo dizer é que a capacidade de conhecer uma prática em suas limitações e possibilidades supõe o conhecimento das intenções que determinaram ou direcionaram esse agir pessoal, particular, individual, e que somente assim teremos condições de adquirir novas formas de perceber, conhecer e agir em outras perspectivas. (FAZENDA, 1994, p.71-72)

E, finalmente, poderíamos terminar, dizendo que a cultura é também a junção dos

elementos formais de todas as áreas do conhecimento. Da música e da literatura, das artes

plásticas e da arquitetura, das ciências e da história, e que todos estes elementos podem e

devem ser aprendidos e ensinados, para que se possa conviver com a cultura em níveis de

familiarização gradual e de constante adensamento e elevação. E que naquele sentido

almejado de cultura ideal, ela é o Parnassum a ser atingido, mas que para que isso venha a se

tornar uma possibilidade precisamos do Gradus como escada de ascensão.

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3. FORMAS DE ENSINO E ESTUDO

3.1 Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade

.

A necessidade de se pensar o ensino de uma forma mais abrangente que ligue umas

disciplinas às outras, que torne possível que se revele diante dos olhos de todos os docentes e

discentes as inúmeras relações entre as partes, e que aponte para um ensino de qualidade de

valorização do ideal cultural, é, ao que parece, se não o principal, pelo menos um dos objetivos

da pedagogia do ensino interdisciplinar. Muitos educadores têm, assim, procurado demonstrar

que através da interdisciplinaridade, ou seja, de um aprendizado calcado na inter-relação de

disciplinas, se pode alcançar melhores resultados educacionais.

A professora Ivani C. Arantes Fazenda ao definir a atitude interdisciplinar,

escreve:

[...] Entendemos por atitude interdisciplinar, uma atitude diante de alternativas para conhecer mais e melhor; atitude de espera ante os atos consumados, atitude de reciprocidade que impele à troca, que impele ao diálogo – ao diálogo com pares idênticos, com pares anônimos ou consigo mesmo – atitude de humildade diante da limitação do próprio saber, atitude de perplexidade ante a possibilidade de desvendar novos saberes, atitude de desafio – desafio perante o novo, desafio em redimensionar o velho – atitude de envolvimento e comprometimento com os projetos [...] atitude, pois de compromisso em construir sempre da melhor forma possível, atitude de responsabilidade, mas, sobretudo, de alegria, de revelação, de encontro, enfim, de vida.(1994, p. 82)

Este compromisso com a construção de um conhecimento ou de uma didática

de ensino, esta atitude de responsabilidade e a sempre presente possibilidade de desvelar

novos saberes é algo que, sem dúvida, poderia tornar muito eficaz a ação do professor.

Imaginemos, por exemplo, que um professor de matemática aborde o assunto das

proporções do número de ouro, ou padrão Fibonacci (�1175 – �1250). Imaginemos

também que este professor saiba que a primeira observação feita em relação aos padrões

desta ordem progressiva tenha sido observada por Pitágoras (�571 - �497 a . C),

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e que este professor possa associar este conceito do número phi1, não só às fórmulas

numéricas expressas por algarismos, ou à sua aplicabilidade científica, mas também

demonstre sua importância na elaboração e na realização de obras artísticas. Que este

professor possa dizer aos seus alunos que inúmeros pintores, construtores , escultores e

grandes mestres da música, utilizaram este conceito de secção áurea na realização de muitas

de suas obras. Este professor, que certamente será um professor diferenciado, no quadro dos

docentes de nossas escolas, o professor bem sucedido, nos dizeres da professora Ivani

Fazenda, logrará atingir aspectos de importância crucial para a verdadeira formação dos

alunos pois estará construindo a ponte que liga o ensino destas artes ao da história, da

geografia, das ciências, como também das religiões e da filosofia. Ampliam-se, assim, as

possibilidades dos seus discípulos de descobrirem que há uma relação entre os estudos que

eles realizam na atualidade, com outras atividades e com outros períodos e lugares onde

viveram e trabalharam estes artistas, matemáticos e pensadores.

O caminho inverso também é verdadeiro. Um professor de artes, que tenha

conhecimento destas relações, pode demonstrar aos seus alunos que aquelas belas proporções

realizadas nas telas, nas construções ou na música, fazem parte não só de um padrão que

pretende imitar a perfeição divina da natureza, mas que esta beleza também pode ser expressa

geometricamente. Poderá um professor deste tipo, estar reascendendo um interesse pelo

estudo das ciências exatas em alguém que, enxergará agora, alguma sensibilidade nas

fórmulas que antes lhe pareciam rígidas e destituídas de harmonia.

Dificilmente se poderá negar que os alunos que forem assim instruídos e informados

demonstrarão um interesse muito maior e mais vivo para o aprendizado daquele conceito

1 O número áureo regula todas as aspirais da natureza, o desenho das folhas e flores, o crescimento populacional, a progressão das ramificações de arbustos e árvores, as conchas marítimas e muito mais. Todos os construtores de Templos da antiguidade, tais como Scopas, Xersífrone, Metagene, Fídias e Hhiram Abif conheciam a Divina Proporção, o número áureo e a geometria Sagrada e as utilizavam em seus projetos arquitetônicos, esculturas e decoração (interna e externa) dos Templos. Na Renascença, quase todas as obras de Michelângelo Buonarroti, Leonardo da Vinci e Rafael apresentam os cânones da Secção Áurea e de seus desdobramentos na espiral logarítima de phi.(CONTE,2004)

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matemático e de suas implicações. Pois eles estarão se debruçando sobre a história, sobre as

realizações reais do homem e estabelecendo, ou sendo instigados a estabelecer

conexões, e, assim, realizando uma prática metodológica coerente, que certamente lhes

parecerá atraente, como sugerido no texto de Nogueira:

[...] como uma espécie de metodologia para este conhecimento, Aristóteles sugere um raciocínio de tipo progressivo. Faz-se uma progressão das observações. Vai-se rumo aos princípios genéricos. Destes se retorna às observações [...] Qual o avanço de Galileu, no campo do conhecimento científico? Ele coloca o movimento (a transformação, o fluxo) como centro da experiência científica e, portanto, como componente do conhecimento verdadeiro.[...] isso nos leva a um outro sábio chamado H. Poincaré. Ele considerava que é importante nos debruçarmos sobre a história para o ensino. Uma das preocupações dele era retomar a intuição no ensino de matemática. A intuição é tão relevante quanto é a lógica e, portanto, é tarefa do educador compreender que elas desempenham papéis diferentes na construção do conhecimento.[...] E quanto ao ensino da matemática? Como é que fica? Se ela for apresentada apenas como rigorosa na aplicação momentânea de fórmulas ou esquemas, ela corre o risco de parecer muito artificial. Ela se “esvazia”. Perde a intuição, perde a possibilidade de invenção e se apresenta como uma gramática, “pronta” pra ser decorada. Mas se a relação professor-aluno percorrer o processo (intuir-supor-descobrir-avaliar) então o rigor tem sentido. O rigor não é algo chato. Ele é um critério de certeza que acompanha a curiosidade e qualifica a descoberta, portanto, desperta interesse, motiva. (1994, p.79-81)

Por esta razão talvez se deva pensar que um envolvimento completo com os

estudos musicais deve também ambicionar conseguir o maior número possível de associações.

Esta atitude levaria o indivíduo a transitar com familiaridade por um leque de informações, e

este leque deve ser tanto mais abrangente quanto possível.

A estética comparada demonstra a utilização de temas em comum entre as várias

artes, e faz notar que o estudo e uma melhor apreciação das obras, não pode se realizar

plenamente sem associações comparativas:

[...] ‘A arte são todas as artes’. Aforismo que afirma simultaneamente a unidade da arte, uma vez que um único termo genérico a designa, e atrai a tumultuosa presença da arquitetura e da música, da pintura e da escultura, do cinematógrafo e da cerâmica, etc [...] Assim a música pode ser calcada no poema [...] como Duparc ao repensar Baudelaire musicalmente [...] quando Lucrécio se inspira numa estátua ou David para vários de seus quadros [...] ou Schumann (Kreisleriana) em arabescos e personagens recortados em silhuetas (SOURIAU,1983, p.3).

Deveríamos pois considerar o valor que pode existir em se ter uma visão

abrangente. E que quando se estuda uma arte, não se pode prescindir de uma

constante leitura comparativa. A perspectiva deste tipo de aprendizado é fundamental para se

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conquistar uma cultura apropriada que propicie um maior aproveitamento, um fluir adequado,

do observador ou do próprio artista, bem como, para se adquirir uma capacidade real de se

tornar um orientador capaz de conduzir outros futuros estudantes pelos mesmos caminhos.

A interdisciplinaridade trabalha com estas possibilidades, com estes objetivos

definidos de complementar as disciplinas vinculando-as umas às outras. Talvez ela possa ser

definida ou conceituada de uma forma simples e sintética, como um processo de integração

das diversas disciplinas que tem a propriedade de romper a estrutura individual de cada uma

propiciando uma integração entre todas. Trabalharia pois, para conquistar a eliminação de

uma tendência de fragmentação existente no estudo mono disciplinar.

Ela não nega os diferentes princípios de cada matéria ou de cada ciência, porém

faz oposição ao pensamento em campos restritos e fechados, e mesmo respeitando o terreno

de cada conhecimento, analisa quais são os pontos comuns a todos e quais as peculiaridades

que os diferenciam, estabelecendo, então, as conexões possíveis de serem feitas.

A conduta interdisciplinar no ensino funciona, entre outras coisas, como um meio

eficaz de atingir uma formação profissional mais ampla, incentiva a pesquisa induzindo os

estudantes ao aprendizado constante e a perceberem a necessidade da educação ininterrupta,

do aprendizado contínuo. Assim, ela conscientiza-nos de que não se pode interromper a busca

do conhecimento, mas antes, permanecer inquieto em relação a uma procura permanente. É o

que sugere Paulo Freire, quando diz:

[...] Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de revista implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.[...] Quase sempre, ao se transformarem na incidência de reflexão dos que as anotam estas idéias remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão.[...] O educador jamais pode ser um memorizador, mas alguém que constantemente refaz sua capacidade de conhecer no exercício que desta capacidade fazem os educandos. Para ele a educação envolve sempre uma certa teoria do conhecimento posta em prática. Ele sabe, porém, que nem todo diálogo é, em si, a marca de uma relação de verdadeiro conhecimento.(1982, p.11,12 e 54)

Da mesma forma, para Ivani Fazenda, a lógica que preside o trabalho dos pro-

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fessores bem-sucedidos é, entre outras coisas, aquela que faz com que este professor tenha o

gosto por conhecer – por um conhecimento em múltiplas e infinitas direções.

Este gosto por conhecer, citado pela professora Ivani, parece ampliar o aspecto

disciplinar e demonstra que não se pode ter uma visão unilateral, pois sugere uma valorização

de qualquer forma de conhecimento e que se deve buscar na formação do indivíduo, seja na

do aluno ou na do próprio professor, a postura de uma mente aberta às diversas manifestações

culturais.

Sejam estas manifestações originárias do pensamento europeu, do conhecimento

das danças tribais indígenas, na sabedoria popular, no folclore de qualquer povo, ou de

qualquer outra origem, elas são muito relevantes para o alargamento cultural do homem, e

especialmente aproveitadas na formação do artista.

Compositores como Bela Bartók (�1881 – �1945) e Igor Stravinsky (�1882 –

�1971) foram buscar material para algumas de suas obras nos mesmos tipos de fontes, onde

também foram o procurar, por exemplo, Villa-Lobos (�1887 – �1959), Lorenzo Fernandez

(�1897 – �1948), Astor Piazzola (�1921 – �1992) ou Pixinguinha (�1897 – �1973).

Independentemente do tipo de composição e do estilo, popular ou clássico.

Um aspecto que se propõe deixar claro neste trabalho é que há uma importância

fundamental em se valorizar o conceito de interdisciplinaridade e de se respeitar, sem nenhum

tipo de restrição ou partidarismo étnico, toda e qualquer forma de cultura. Esta valorização, no

entanto, somente poderá ser consciente e consistente, abrangendo aspectos importantes e

determinantes nas escolhas que se farão, e mesmo servir como base para refutação de

qualquer partidarismo étnico, se for compreendida de forma eficaz pelos professores ou

estudantes de forma a contribuir para a formação do pensamento crítico e criativo. A

conquista deste patamar só será possível se houver uma valorização do conceito

interdisciplinar, e uma ampliação do próprio conceito de cultura, criando-se algumas

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familiaridades com elementos que fazem parte deste mosaico cultural, sejam eles pinturas,

sinfonias, cantigas de roda, ditados populares, uma escultura do barroco mineiro ou uma

estátua grega de um escultor da antiguidade clássica.

No entanto, há que se fazer algum aprofundamento da percepção intuitiva

intelectual, sem a qual, talvez, haveria uma valorização irrestrita de todas as coisas, que

poderia se tornar mera vulgarização, sem uma visão crítica, repetição irrefletida, pois aquilo

que a tudo apóia, sem restrições, e sem embasamento, tudo diminui. Enquanto que a reflexão

e a observação sem nenhuma forma de preconceito ou preferência pré-estabelecida, poderá ao

contrário, perpetuar um gosto eclético e a transmissão deste gosto, pois:

[...] Claro que a pedagogia dos mestres, multiplicando os comentários, os ‘exercícios de estilo’, a explicação meticulosa de cada palavra, cada frase, cada verso de um autor tomado como modelo, pode, e com razão, ser acusada de ter provocado uma ‘inércia admirativa’ cujos efeitos se fazem por vezes sentir na prosa e na poesia latinas. Mas as exigências da formação retórica propriamente dita implicavam, além da leitura dos grandes autores, a aquisição de um saber pluridisciplinar: o direito, a história, a geografia, a filosofia, até mesmo a música e os elementos de cultura científica. Assim se formava a inuentio dos futuros oradores (a inuentio é a arte de encontrar idéias, argumentos) (GAILLARD, 1992, p.20)

A transdisciplinaridade parece tocar em aspectos ainda mais amplos, conduzindo

também a este tipo de raciocínio de valorização dos mais variados aspectos culturais e das

relações existentes entre as diversas disciplinas. Ela sugere que existe algo além das matérias

que somente se tornará acessível com a prática da observação comparativa que se

transformará, através da experiência e do aperfeiçoamento (o que parece fazer com que se

retome as concepções de Geertz sobre a cultura como fundamento e meio para a construção

do homem), em algo que poderá ser percebido de uma forma, por assim dizer, intuitiva, como

sugere para nós também o físico teórico Basarab Nicolescu ao conceituar a

transdisciplinaridade:

[...] a transdisciplinaridade diz respeito ao que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de todas as disciplinas. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, e um dos imperativos para isso é a unidade do conhecimento. Existe algo entre ou através das disciplinas e além de todas as disciplinas? [...] A estrutura descontínua dos níveis de realidade determina a estrutura descontínua do espaço transdisciplinar, que por sua vez explica por que a pesquisa transdisciplinar é radicalmente distinta da pesquisa disciplinar, mesmo quando

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totalmente complementar. A pesquisa disciplinar diz respeito, na melhor das hipóteses, a um único e mesmo nível de realidade; além do mais, na maioria dos casos, refere-se a apenas um fragmento de um nível de realidade. Por outro lado, a transdisciplinaridade diz respeito à dinâmica engendrada pela ação de diferentes níveis de realidade ao mesmo tempo. A descoberta dessas dinâmicas passa necessariamente pelo conhecimento disciplinar.[...] Nesse sentido, a pesquisa disciplinar e transdisciplinar não são antagônicas, mas complementares.(1997)

Nicolescu comentou ainda, no programa Arquivo N (exibido pelo canal Rede

Globo News, em 22/11/2005), que por volta do século XIII havia aproximadamente umas sete

disciplinas, que em meados do séc.XX este número teria crescido para algo em torno de 50

disciplinas. Que hoje em dia existem algo na ordem de 8.000 disciplinas, que formam o tempo

todo especialistas que são experts em um determinado conhecimento muito específico, e,

conseqüentemente, por assim dizer, ignorantes em 7.999 outros.

Com o ritmo de produção de conhecimento científico constante que acontece nos

dias de hoje, sem possibilidade de conecta-los uns aos outros, tende-se a permanecer neste

molde que parece ignorar a globalização que está aí e é, ao que tudo indica, uma realidade

irreversível. Assim, faz se necessário criar meios de conexão entre as diversas disciplinas. A

transdisciplinaridade faz isso, porém não visa a multiplicação de itens como acontece com os

conhecimentos inseridos em uma enciclopédia, mas sim a criação de conexões entre as áreas

de conhecimento. Precisaríamos, segundo esta filosofia transdisciplinar, de uma linha de

pensar a educação e o homem na direção de unir a parte prática da mente do homem, o seu

pensamento analítico, com o lado emotivo, espiritual deste homem.

Basarab Nicolescu coloca também a seguinte questão: seremos nós os humanos

compostos somente de células e neurônios ou somos também seres que trazem a necessidade

de fazer a ligação entre estes dois pólos opostos, o do saber e o do ser? Conclui ele, que

acredita que a transdisciplinaridade trata de uma pessoa humana e da sua necessidade de lidar

com várias e complexas dimensões.

Parece pois, que a transdisciplinaridade pode ser considerada como uma relação de

ordem abstrata e íntima entre homem e cultura, como componentes do universo e que este

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conceito de homem-transdisciplinar pertence àquele último estágio a ser alcançado na

escalada para um entrosamento cultural adequado. Neste sentido de cultura abrangente em

altas esferas de percepção, de compartilhamento, a atitude transdisciplinar se caracterizaria

por uma forma de visão e de compreensão do universo e das relações entre todas as coisas.

Ela superaria assim o âmbito das disciplinas mesmo quando associadas

(interdisciplinaridade), o que seria algo ligado apenas ao conhecimento específico de

determinado, ou determinados assuntos, e rompendo com este invólucro o transcenderia.

Estabeleceria, pois, diferentes níveis de percepção, trazendo à luz com isso, uma grande

quantidade de maneiras de se conhecer. Valoriza não só o conhecimento científico, mas, visa

ampliar seu alcance aos mais variados modos de produção de conhecimento.

Isso não só faz com que se voltem os olhos para questões e interesses muitas vezes

menosprezados em sua condição de componentes formadores de cultura, como os já citados

aspectos folclóricos e valores diversos da cultura popular que ampliam o universo cultural do

homem, como reergue também os valores tradicionais, encarando-os de maneira a mesclar

estes com o todo que existe nas mais heterogêneas tendências. Percebe-se que sem um gradual

aprimoramento e familiarização com estes diversos temas e aspectos não se poderá avançar

rumo ao estabelecimento da maneira transdisciplinar de observar o mundo.

Criariam-se desta forma parcerias e onde antes somente um tipo de profissional

especializado atuava, atuariam agora vários outros, trocando experiências e se relacionando

uns com as atividades e com os conhecimentos dos outros, criando um outro nível de

conhecimento participativo que beneficiaria qualquer um que dele necessitasse ou que nele

atuasse.

Assim se poderia conquistar avanços em questões básicas como, por exemplo, na

saúde, quando, em um determinado momento, um paciente fosse atendido, não se olharia para

o problema daquele indivíduo de uma forma restrita, mas ampla, inserindo-o em vários

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contextos, como o social, o filosófico, o psicológico e o físico, o que certamente faria com

que o atendimento a este paciente fosse de melhor qualidade.

Segundo Jean Piaget (�1896-�1980), o termo Interdisciplinaridade deve ser

reservado para designar “o nível em que a interação entre várias disciplinas ou setores

heterogêneos de uma mesma ciência conduz a interações reais, a uma certa reciprocidade no

intercâmbio levando a um enriquecimento mútuo” (1972, p. 136-139).

Já a Transdisciplinaridade para Piaget envolve “não só as interações ou

reciprocidade entre projetos especializados de pesquisa, mas a colocação dessas relações

dentro de um sistema total sem quaisquer limites rígidos entre as disciplinas.” (1972)

No campo da educação não é necessário repetir as inúmeras vantagens desta forma

abrangente de se pensar a pedagogia para uma formação completa e diferenciada, e não resta

dúvida que esta realidade transdisciplinar, é o ideal perseguido pela educação no

entendimento integral de cultura, como já ficou aqui defendido como o melhor caminho para

o desenvolvimento e sobrevivência do homem.

Novamente temos a difícil e controversa questão sobre o que tem valor na cultura

e como transitar pelos dois lados, realizando o estudo e a consolidação dos fundamentos da

tradição acadêmica e valorizando também, os aspectos culturais informais, sabendo-os não

incompatíveis, mas antes, parceiros na consolidação de um universo rico e definitivamente

heterogêneo.

Esta visão transdisciplinar é, sem dúvida alguma, uma nova e completa forma de

sentir e de abordar este assunto, de agir e reagir frente aos diferentes aspectos do saber que se

interagem praticando um respeito mútuo de convivência e de cooperação que pressupõe uma

diversidade que se interliga por todos os lados.

Quando se extrapola desta forma o perímetro da interdisciplinaridade e se avança

para um estudo que se situa além do âmbito desta, e que constitui, por assim dizer, um terreno

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que não pertence isoladamente a nenhuma disciplina, porque somente se forma com as partes

de todas, então estamos entrando no terreno da transdisciplinaridade.

Não é, pois, a transdisciplinaridade um conjunto de conhecimentos que deverão ser

comparados e confrontados, mas muito mais uma valorização de toda cultura e de todo

conhecimento e experiência que venha a contribuir para o crescimento total do indivíduo não

só de forma intelectual, mas de maneira integral. Este seria um elemento transformador que

influiria em nossos conceitos e visões da sociedade e das diversas culturas, reintegrando-os a

todo o momento no universo, do qual ambos, homem e cultura, fazem ou deveriam fazer

parte, através de uma interação ampla de empatias naturais que estão estabelecidas no todo.

O indivíduo que intuir de forma a valorizar esta visão de integração com a

totalidade transitará pela sensibilidade, pela experiência e pelo prático, nunca desassociando

estas três realidades, mas vivenciado-as em conjunto, unidas em uma só o que redundará em

beneficio da sua percepção do mundo e interação com ele. Poderia se afirmar que na

transdisciplinaridade temos uma proposta de uma espécie de procura de transcendência de um

campo de foco relativamente ainda fechado para um que traga à tona as múltiplas formas do

conhecimento que virão valorizar cada indivíduo, cada cultura, cada concepção artística,

filosófica ou científica, em conjunto, como fator real de produção de um conhecimento

participativo e integrador .

No entanto (e aqui retornamos ao cerne do objetivo deste trabalho) não se pode

cair no engano de que este complexo amadurecimento possa surgir sem antes vencermos

etapas iniciais que embotam e estagnam o afloramento desta forma extraordinária de intuir a

totalidade dos conceitos. Sem o rompimento das amarras que prendem uma grande parte dos

alunos e professores a uma visão estática, jamais se logrará atingir o ideal transdisciplinar, e o

passo inicial para que isso venha a ocorrer é seguir a via aberta pela interdisciplinaridade, a

qual não nega que se deve preservar os fundamentos de uma consolidação dos conhecimentos,

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como se pode observar nos dizeres da professora Ivani Fazenda:

[...] A relação mais antiga ao tema (interdisciplinar) em questão me sugere uma volta à velha Grécia, mais especificamente, à Paidéia e, com ela, a possibilidade de revermos uma situação: a de preceptor e discípulo. O preceptor, se bem me recordo [...] é aquele que ajuda o discípulo a fazer uma leitura das coisas próprias do conhecimento geral. O discípulo é aquele que gradativamente é indicado a ampliar essa leitura.Preceptor e discípulo trazem consigo conhecimentos próprios de um e de outro, que ampliados sintetizam uma proposta eterna e primeira da educação: Paidéia – hoje posso simplifica-la ou reduzi-la a uma palavra pertencente ao meu universo atual de discurso teórico: parceria.[...] (1989, p.38)

E ainda:

[...] ensinar é aprender, porque ensinar é sobretudo pesquisar, e por isso é também construir, é aprender. [...] cabe ao professor, antes de mais nada, haver adquirido uma considerável leitura de vida e de mundo, pois aprender é, inicialmente, aprender em relação à própria vida. Com ele, o gosto da pesquisa que nasce na relação preceptor/discípulo, o espírito daquele que se dispões a trabalhar, a criar, a ousar, a construir. O aluno [...] adquire nesse processo uma admirável disciplina de trabalho, aprende o valor dos conhecimentos necessários, o valor da pesquisa e da documentação. Guarda da escola e do mestre o sabor do saber e permanece um perpétuo estudante. É, segundo Piaget, aquele que não se apressa em virar a página, mas aquele que se demora nela.(1989, p.40-41)

Enquanto todos nós, estudantes e professores de música, de outras artes, de

ciências, de letras, ou de qualquer outro ramo, não mostrarmos mais empenho em relação à

busca de conhecimentos e conceitos importantes para uma compreensão global da cultura, e

não mudarmos nossas atitudes para a atitude do aluno que não se apressa em virar a página, e

enquanto nós não nos transformarmos naqueles que têm o gosto pela pesquisa, estaremos nos

privando, ou sendo privados, quando não orientados adequadamente, de uma fatia saborosa do

saber. Somente através de uma entrega pessoal e íntima aos estudos é que se poderá

conquistar um entendimento abrangente e transdisciplinar. Mas havemos de lutar para dar os

primeiros passos antes de conquistarmos a habilidade do vôo. Precisamos, “auxiliar-nos a

ganhar acesso ao mundo conceptual de maneira que possamos conversar com os nossos

sujeitos em um sentido mais amplo, e necessitamos penetrar num universo familiar de apoio

simbólico, e as exigências do avanço técnico na teoria da cultura, entre a necessidade de

aprender e a de analisar, é tão necessária como irremovível”. (GEERTZ, 1989). Certamente

não se pode obrigar alguém a ter uma experiência emocional com as relações existentes entre

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a música e a literatura, por exemplo, mas pode-se sugerir que quando se abandona esta

possibilidade, ou por não a conhecer adequadamente, ou por menosprezar a sua importância,

estamos causando uma lesão grave na formação do indivíduo culto.

Dizia Machado de Assis (�1839-�1908) pela boca do personagem Brás Cubas

que “Grande coisa é haver recebido do Céu uma partícula da sabedoria, o dom de achar as

relações das cousas, a faculdade de as comparar e o talento de concluir”! (2001, p.264)

Ninguém pode concluir nada a respeito de nada, analisar uma música, uma

pintura ou um ritual de fertilidade de uma tribo africana se não houver trabalhado para isso, se

não tiver adquirido esta habilidade, ou estar adquirindo estas habilidades (já que o

conhecimento e a cultura são infinitos se pensarmos na sua constante ampliação e

transformação). Decorre disso, que, se não nos interessarmos e não estudarmos alguma coisa

sobre música, pintura ou rituais africanos de fertilidade, não teremos como interpretar estes

temas em associação uns com os outros, se em algum momento eles aparecerem para nós

como parte de uma mesma obra ou de obras relacionadas.

Logicamente, existirão pessoas que poderão analisar música, executá-la e mesmo

compô-la, sem que estejam intimamente ligados a uma pluralidade de conhecimentos

interligados, tenham ou não estes conhecimentos associação com esta música. Assim como,

sempre haverá os que poderão analisar alguns princípios que regem rituais africanos de

fertilidade, ou pintores de qualidade e mesmo apreciadores e bons analistas de pintura, de

música e apaixonados por práticas indígenas, que não estejam cientes de realizações em

outras áreas que se ligam a todas estas coisas citadas, e, realizações estas, que talvez jamais

farão falta alguma para eles. O ponto em questão é que existe a possibilidade de uma

ampliação de conhecimentos que faz com que exista uma maior familiaridade e um maior

entendimento de várias atividades culturais. E apesar desta pesquisa citar relações de outros

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grupos com este fator de alargamento cultural, não se pode perder de vista que o alvo

principal desta mudança de atitude em relação ao conhecimento é o aluno, especialmente o

aluno de artes, e mais especificamente o de artes musicais. Uma vez se constituindo este tipo

de abordagem mais ampla, esta modificação fará com que aqueles que detiverem este tipo de

informação associativa diferenciada, além de poderem apreciar de forma otimizada a pintura,

o ritual ou a peça musical, obviamente, estarão também muito mais aptos a exercer a prática

do ensino. Poderão, sem sombra de dúvida, estabelecer, quando em algum momento se

requisitar, algum tipo de associação entre àquelas duas artes e a manifestação tribal citada. O

que constituirá, no caso de professores, grande vantagem de conhecimento específico em

relação àqueles que não puderem estabelecer estas relações.

Certamente este dom não vem gratuitamente, não cai do céu como sugere

Machado no seu livro, através de Brás Cubas, mas adquire-se esta condição de observador

perspicaz por meio do estudo e do trabalho. Não se poderá negar, evidentemente, que existem

mentes aguçadas inatas, que têm extraordinária rapidez de raciocínio, como também está claro

que a inteligência não é medida pelo grau de cultura dos indivíduos, e que um analfabeto que

vive na aldeia mais remota do globo pode ter grande inteligência.

Sabemos, no entanto, que apesar de poder aquele escritor brasileiro ser

considerado alguém muito inteligente não só pela sua produção literária, mas pelas

circunstâncias adversas que fizeram parte de sua história, foi somente com muito esforço e

dedicação aos muitos estudos das artes, da cultura clássica, da história antiga e do seu tempo,

das religiões e logicamente da literatura, que ele pôde aprimorar aquela mente de percepção

aguda e fina, e que se não foi somente através do diálogo com os mestres através dos livros

que ele a conquistou, isso também para tal muito contribuiu.

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O caso de Machado de Assis, instiga-nos a pensar que não foi só uma motivação

intelectual interdisciplinar que motivou aquela reflexão machadiana, (através do personagem)

mas que tal observação poderia estar ligada a uma condição intuitiva peculiar a

transdisciplinaridade. Estava Machado, com certeza, além de seu tempo pelo que afirma

Roberto Schwarz, um dos estudiosos de suas obras, quando diz:

[...] Realmente se nós olharmos o Brasil como parte da cena contemporânea, e se não nos limitarmos ao ângulo da história nacional, veremos que aqui certos aspectos do mundo moderno aparecem de maneira particular e que os autores que têm garra para apanhar esse modo particular podem ser autores de vanguarda e ‘universais’, não só apesar, mas por causa de nosso chamado atraso. Machado de Assis é um autor que em 1880 está dizendo coisas que o Freud diria 25 anos depois. (BOSI et al. 1982, p.318)

Pensando neste avanço em relação à sua época, no que diz respeito ao

desenvolvimento psicológico de seus personagens, poderia ter trazido M. de A consigo uma

percepção transdisciplinar que lhe fizesse criar aqueles tipos inseridos em uma visão mais

ampla de análise do que muitos dos seus contemporâneos? Não seria tirar uma conclusão fútil

acreditar que sim, devido ao conjunto de observações de agudeza semelhantes que

transpassam suas obras e que sempre estão amparadas em uma diversidade de temas

filosóficos, históricos, artísticos e religiosos. O que pode nos levar a deduzir que algumas

vezes podemos ter este tipo de interpretação das complexas relações que podiam por ele ser

pressentidas, e que parecem não se tratar apenas de literatura comparada.

Mesmo que o, bruxo do Cosme velho, naquela época não pudesse definir o tipo de

relação que ele tinha com o conhecimento diversificado, como sendo uma relação de

transdisciplinaridade, uma observação, agora do próprio autor, e não mais de um personagem,

citada por Afrânio Coutinho num estudo crítico, ilustra bem esta questão e faz com que

possamos cogitar da possibilidade do saber transdisciplinar estar presente, intuitivamente, em

sua conduta:

[...] Tiro de cada coisa uma parte e faço o meu ideal de arte, que abraço e defendo [...] Que a evolução natural das coisas modifique as feições, a parte externa, ninguém jamais o negará; mas há alguma coisa (grifo nosso) que liga, através dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma coisa inalterável, universal e comum, que fala a todos os homens e a todos os tempos. (ASSIS apud COUTINHO, 1962, p.3)

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Estes elementos que permanecem inalterados, não no sentido de valor perene e

imóvel, mas no de fomentar interesses que falam a todos os homens e a todos os tempos, e

que determinam a capacidade de captura de idéias que se formam a partir de um texto poético,

de uma sinfonia, ou de uma escultura, atingem as regiões intuitivas, criando um novo

sentimento decorrente daquela beleza expressa naquelas formas de arte. Estas coisas, por

assim dizer, ocultas, entre as notas de uma música ou na expressão dos contornos de uma

estátua de mármore, as mensagens nas entrelinhas a espera de serem decodificadas, são os

caminhos para a capacidade da compreensão artística total (ou a maior possível).

Tudo isso são detalhes que muitas vezes não podem ser ensinados, mas

curiosamente eles podem ser aprendidos em parceria (na redução do termo Paidéia de Ivani

Fazenda), com a prática do interesse diversificado, com o retorno ao estilo de relação

preceptor/discípulo entre aluno e professor. São estes os fatores que demonstram ser a

transdisciplinaridade um conceito muito abrangente e vivo e de grande possibilidade didática.

Esta multifacetada visão é que pode fazer com que o estudante de música, por

exemplo, que antes se encontrava preso a um único elemento de interesse que era a

performance, ou mesmo, na melhor das hipóteses, envolvido também com o aprendizado das

matérias comuns ao seu curso, possa vir a ampliar seus horizontes e enxergar além dos

objetivos primários, transformando em objetivo principal um estudo mais amplo, mais

diversificado e rico em significados.

[...] Assim como não é possível identificar teoria com verbalismo, tão pouco o é identificar prática com ativismo. Ao verbalismo falta a ação, ao ativismo, a reflexão crítica sobre a ação. Não é estranho que os verbalistas se isolem em suas torres de marfim e considerem desprezíveis os que se dão à ação, enquanto os ativistas consideram os que pensam sobre a ação e para ela como ‘intelectuais nocivos’, ‘teóricos’ e ‘filósofos’ que nada fazem senão obstaculizar sua atividade. Para mim, que me situo entre os que não aceitam a separação impossível entre prática e teoria, toda prática educativa implica numa teoria educativa. (FREIRE, 1982, p.17)

Aqui retornamos à questão dos primeiros passos a serem ensaiados antes de se

entregar à prática de voar, voltamos aos degraus que conduzirão ao Parnaso. De maneira

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geral, nosso ensino se encontra hoje em uma espécie de simplificação consentida, que é o

resultado de uma contaminação com o vírus do desinteresse de gerações de estudantes e de

professores que se deixam envolver pelo marasmo da tranqüilidade do mínimo, e não se

aventuram a buscar a transformação deste estado.

Existem, logicamente, razões para este estado de inércia em relação à modificação

das políticas educacionais. Uma delas está ligada a um programa de acesso irrestrito à

educação, porém uma educação que acaba sendo massificada e sem qualidade, que é a única

que não oferece perigo para que se orientem as pessoas a refletir de forma inteligente e

participativa, o que seria uma ameaça para o sistema neoliberal excludente atual. Desta forma

esta educação alienante se detém em um ensino precário e apático que acaba por ser também

o responsável por esta doença de estagnação cultural, agravada pelo distanciamento do

interesse pela leitura e pela alienação político-social, que sem dúvida é o primeiro ponto a ser

reformado para se começar a andar em direção a transdisciplinaridade.

Vejamos o que a esse propósito têm a dizer Paulo Freire:

[...] O educador não pode furtar-se, em determinados momentos, de informar. E não pode na medida mesma em que conhecer não é adivinhar. O fundamental, porém, é que a informação seja sempre precedida e associada a problematização do objeto em torno de cujo conhecimento ele dá esta ou aquela informação.(1982, p.54)

E Ivani Fazenda: [...] A palavra revela o mundo ao homem, anunciando o homem ao mundo. Através dela, o homem sai de si, interfere no mundo e deixa que o mundo interfira nele.(...) A palavra capta, conhece, interfere e transcende a consciência do homem em sua busca do mundo.(...) Afirmada pois a interdependência existente entre palavra e mundo, restaria ressaltarmos a importância da leitura como forma de desvendar o mundo, fazendo do homem seu sujeito efetivo.(...) Através da leitura, o homem aumenta o seu universo de discurso, e, com isso, a possibilidade de multiplicar suas visões e aspirações sobre o mundo. A leitura poderá também conduzi-lo a uma disciplina pessoal que o levará a desvendar os intrincados dilemas e as diferentes facetas dos problemas que o mundo oferece. Aplicará sua capacidade de raciocínio e sua aptidão perceptual, permitindo ao homem agir, conhecer e transformar o mundo. (1994, p.54)

Se o governo pratica uma política educacional limitante e tendenciosa, devemos,

reagir a este tipo de conduta e lutar para a modificação deste quadro.Os professores que têm

uma formação adequada no modelo já exaustivamente abordado neste trabalho podem, sem

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dúvida, ser agentes motivadores desta transformação. É um trabalho árduo e, muitas vezes,

solitário, mas para que algum progresso venha a ser conquistado há que se deter em uma

questão que pode ser o primeiro fator que deve ser revertido: o hábito da leitura. Mais ainda, o

hábito da re-leitura e da reflexão sobre o que se lê.

Esta reflexão corresponde certamente a uma observação atenta de tudo que o

indivíduo encontra no caminho de suas pesquisas, uma audição criteriosa e atenta das obras

musicais, a reação crítica diante da programação da televisão, a postura política diante das

notícias da imprensa escrita ou televisionada. Tudo isso são os fundamentos que levarão a

uma ampliação das perspectivas daquele que estuda ou daquele que ensina.

Pensando particularmente no estudante de música, ao qual sempre temos que

retornar, para que não se desvie o objetivo central do trabalho, muito embora este objetivo

central esteja definitivamente atrelado às questões político-sociais abordadas acima, podemos

citar Nikolaus Hanoncourt que nos lembra a observação que, a propósito da leitura, fez o

compositor romântico alemão Johannes Brahms (�1833-�1897): “Brahms dizia que para

tornar-se um bom músico era preciso empregar tanto tempo lendo quanto estudando

piano”.(BRAHMS, apud HANONCOURT, 1998, p. 31).

O estudante de música, ou de qualquer matéria, deveria, pois, reconhecer que a

sua formação completa está vinculada a esta postura de um estudo comparativo de todas as

artes, textos, experiências, tradições populares ou eruditas, de todas as pinturas que puder

observar, de todos os filmes e peças teatrais que puder assistir, dos jornais que puder ler ou

assistir pela televisão, das questões políticas e sociais que puder acompanhar. Aqueles que

lançarem mão de todos estes recursos, com a finalidade de ampliarem seus horizontes

perceptivos, exercitando sua mente no sentido de absorver tudo e formular pensamentos e

conclusões, seguramente estarão dando passos seguros, criando condições para a realização

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máxima de suas potencialidades e consolidando em seu aprendizado os pilares da

transdisciplinaridade: a realidade, a lógica e a complexidade.

3.2 Ganhos e perdas no ensino

Uma questão que parece pertinente de ser abordada a fim de justificar algumas

colocações já feitas neste trabalho, embora elas também estejam associadas às questões

político-sociais, é a de que até que ponto o ensino em geral, não somente o ensino de música

ou das artes, mas todos os currículos das escolas deixaram de lado o ensino de certas

disciplinas fundamentais.

Pode-se argumentar que existia um ensino duro, autoritário e que somente havia

uma grande quantidade de matérias e de exigências na carga horária dos alunos. Mas será que

isso realmente é o único aspecto que deve ser considerado? Estariam nossas escolas

desculpando-se ou se justificando por um empobrecimento curricular, assim como também,

por um menor grau de envolvimento dos próprios mestres com a valorização cultural, por ser

este talvez um caminho mais fácil para todos os acomodados? Na realidade não existe hoje

uma vulgarização e uma comercialização do ensino, que, muito mais que as exigências de

agilidade do mundo moderno, talvez sejam na realidade os grandes responsáveis pelo

empobrecimento intelectual de todos, alunos e professores, e, conseqüentemente, da

sociedade em geral?

A qualidade do ensino no Brasil acaba por estar vinculada a uma questão

monetária, as escolas passam a ser empresas que priorizam o lucro em detrimento da

educação. Este fato faz com que as escolas que ainda oferecem um ensino que possa ser

considerado de qualidade fiquem restritas a uma elite minoritária que pode pagar por este

ensino, o que dá origem a um círculo vicioso. Somente quem poderia arcar com o custo de

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uma universidade privada cara, é que acaba estudando de graça nas universidades públicas,

pois puderam cursar o ensino médio em uma boa escola privada que lhes deu base para

garantir uma vaga nos disputados cursos daquelas instituições.

A prática do ensino de qualquer matéria teve através dos séculos um avanço

extraordinário no que diz respeito ao relacionamento professor-aluno, no que confere aos

aspectos psicológicos e às estratégias didáticas que foram atingindo com o passar dos anos

altos níveis de sensibilidade no tratamento das questões pertinentes ao desenvolvimento

emocional do educando.

Porém devemos pensar se não se deixou de lado, ou se pelo menos, não se

valorizou menos, neste processo, a exigência de domínio de disciplinas importantes para a

consolidação de uma formação cultural adequada.

Quando este tipo de política educacional, que privilegia um conhecimento

estratificado, ou minimizado, é praticada, deve se ter cuidado para que não se deixe de

valorizar conhecimentos preciosos que deveriam ser interligados uns aos outros.

Realmente havemos de admitir que se torna às vezes inviável que se disponibilize

para os alunos dos mais variados cursos todas as matérias e há que se selecionar disciplinas

mais pertinentes ao curso específico de cada um, porém não pode haver uma completa

ignorância de relações interdisciplinares. Podemos nos indagar quais são as matérias que se

relacionam? Esta é uma pergunta de difícil resposta, pois parece que em última análise tudo

tem haver com tudo.

Vejamos o que diz Adriano Nogueira, relembrando Martin Heidegger (�1889-

�1976), ao abordar especificamente o estudo da matemática, mas demonstrando que

este também não é puramente específico:

[...] A objetividade destes objetos está calcada num esgotamento: eles deixam de existir como ‘coisa’ (ou como “entes” da physis) e reaparecem como representação matemática, reaparecem como conhecimento matemático. Isso é coisa de grego, diz o Heidegger. São matemáticos: a álgebra, a aritmética, a geometria, a astronomia e a música (aqui entendida como harmonia de proporções e ritmos). Entre os gregos, diz o

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Heidegger, não são eles que constituem a matemática mas, sim, é o inverso: sendo eles campos de saber intelectualmente constituídos por este procedimento cognitivo (o procedimento ta mathema) então eles são campo de conhecimento rigoroso, de proporção rigorosa, são conhecimentos que opera com a harmonia dos contrários.(1994, p.82-83)

Parece que o filósofo, aqui retomado por Nogueira, acredita em uma destituição de

uma visão da matemática como matéria isolada, e chamando o filósofo a nossa atenção para o

pensamento grego, diz que a idéia de matemática está contida no universo e que muitas

matérias que têm algo de exato como a matemática, dela fazem parte.

Este pensamento é compartilhado pela modernidade e não se fixa na Europa como

herança grega apenas, mas podemos observar que esta abordagem fez parte, como nos mostra

Nogueira neste seu mesmo livro, de um Congresso Interamericano de Educação Matemática,

em Miami, E.U.A, realizado em 1991, o que podemos observar na citação abaixo:

[...] A natureza das matemáticas está mudando, têm-se muitos indícios disto. Cada dia que passa mais gente questiona aquele modelo de matemática infalível, distante da intuição empírica e da realidade, aquele modelo que, até agora, tem dominado universalmente (1994, p.84)

A insistência na questão matemática tem um objetivo claro. Pois se uma matéria

que poderia estar isolada das outras por apresentar modelos rígidos de ensino pelas muitas

características fixas que apresenta, tende a se mesclar e se abrir para interpretações mais

intuitivas, por que não se deveria ter este tipo de atitude com disciplinas tradicionalmente

ligadas à criatividade, como a música, as artes em geral, ou mesmo aspectos de interpretação

histórica? Lembremos da já referida utilização da história da arte no ensino da matemática

(quando abordamos o número de ouro), quando pudemos demonstrar o enriquecimento

possível no ensino de ambas as matérias.

Devemos no entanto fazer outras associações para que se não perca o principal

objetivo deste trabalho, que é o de demonstrar que qualquer tipo de associação de estudos

somente pode resultar em benefício para os estudantes e professores, quando estes são ou

passam a ser (pela própria mudança de postura que estas associações podem fomentar)

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transformadores de realidades. Ao observarmos as palavras transliteradas do grego que

aparecem na penúltima citação acima, poderíamos voltar a “bater na mesma tecla” da ameaça

de uma gradual perda (para a grande maioria dos estudantes e professores) da importância da

preservação de estudos clássicos, configurando-se este abandono em uma dissociação

prejudicial.

Esta falta de interesse parece estar ligada a uma questão de se considerar

ultrapassados certos estudos. Parece que o conceito de modernidade para um tipo de aluno ou

de professor acomodado, pressupõe uma falta de interesse pelo estudo do que é antigo, se não

o de todo o estudo em geral.

Certamente isso tem suas origens também no próprio descaso de muitas das

instituições, que se multiplicam no país, que não ambicionam a formação de indivíduos bem

preparados e questionadores, mas são antes, empresas lucrativas que preferem pagar menos

por professores mal qualificados, do que investir na qualidade do ensino.

Institui-se assim outro círculo vicioso, onde, os professores despreparados não têm

como alimentar os interesses dos alunos, os alunos já não têm interesses e os professores

acomodados e despreparados, sentem-se protegidos por esta situação, pois, seguramente, é

bem mais difícil “encarar” uma turma de estudantes com questões difíceis de serem

resolvidas.

Esta realidade em nossas escolas não é em grande parte culpa das próprias

universidades que acabam por priorizarem a rapidez e a agilidade rotativa dos cursos, com

objetivos muito mais voltados para os ganhos financeiros do que para a formação integral dos

seus estudantes? Não acabam, desta forma, ministrando o programa de atropelo, entregando

as cadeiras aos professores menos capacitados por constituírem mão de obra barata? Como se

deter em detalhar as questões importantes para uma formação sólida dos alunos com uma

política de supervalorização das razões financeiras? O quadro se agrava ao vermos que muitos

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alunos, em busca da facilitação de currículo, procuram, quando podem pagar, justamente a

escola que lhe oferecer condições mais fáceis para a obtenção de um diploma. O que

contribui para o agravamento da situação, pois que dá cada vez mais condições para

que a universidade-empresa possa subsistir.

Para se conquistar a respeitabilidade deve se proceder de forma inversa. Investir

em um corpo docente de qualidade deixando de lado o mercantilismo e, mesmo que obtendo

lucros, não fazer deste lucro o principal objetivo de uma instituição.

Quando as disciplinas e professores competentes lecionando-as, são colocados à

disposição de todos os alunos, sejam quais forem os cursos em que estão matriculados,

mesmo que isso pareça, ou possa ser verdadeiramente inviável, do ponto de vista cronológico,

pelo menos a Instituição cumpre sua obrigação de atender a qualquer aluno de qualquer curso

que poderá então contar com o estudo de qualquer disciplina que deseje para que se processe

a interdisciplinaridade de forma ampla. Este é o conceito de universidade previsto nos PCN’s,

o de uma instituição capaz de oferecer uma formação ampla e universalizada, o qual deveria

estar funcionando de forma eficaz se os interesses e as priorizações do governo não fossem

outras.

Um ponto muito importante parece ser o de que a postura do profissional de

ensino altamente capacitado, sempre é aquela de alguém que poderá auxiliar o estudante que

dele necessite. Independente da possibilidade de freqüência constante do aluno em

determinadas matérias do seu interesse, e, aparentemente, estranhas ao seu curso, à medida

que for requisitado, tal professor, poderá instruir o aluno que busca mais conhecimento,

direcionando-o de forma que ele possa conseguir, individualmente, uma maior aproximação

da transdisciplinaridade.

Desta forma, um professor comprometido, que fosse amparado por uma instituição

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igualmente comprometida não consideraria desnecessária a preocupação com a existência de

um abandono de matérias que parecem ser antes muito mais próximas do que distantes de

todos os temas. Se pensarmos que nos cursos de artes, de literatura ou filosofia, existem

critérios de relação íntima entre todas estas disciplinas, tal preocupação de uma maior atenção

à multiplicidade é mais do que justificável. Basta para se ter certeza disso, pensar em como na

realização de seus trabalhos, os compositores, escritores, pintores e filósofos foram motivados

e inspirados por temas clássicos, pelo folclore, por costumes diversificados, fossem eles

universais ou regionais e que estes temas desempenharam papel muito relevante em muitas

criações artísticas. Não raras vezes a familiaridade com assuntos diversificados, serão a chave

principal na inteligibilidade de algum termo importante para um contexto interpretativo onde

se nota que o que aparentemente poderia ser considerado desnecessário ao estudante, pode

sob outro prisma de avaliação ser essencial. Em curso de Interpretação Musical o pianista e

regente suíço Alfred Cortot (�1877 – �1962), afirmou:

[...] Poderíamos sustentar que não há arte que, acima da interpretação musical, suponha o manejo delicado, a compreensão requintada de todos os tipos de emoções ou de sensação que se trata de transferir ao espírito do ouvinte pela magia misteriosa das sonoridades. Rousseau afirmou: ‘Para se elevar às grandes expressões da música, seria necessário ter feito um estudo particular das paixões humanas e da linguagem da natureza’.Tolstoi acrescenta: ‘A arte é a comunicação dos sentimentos experimentados’.(CORTOT apud THIEFFRY, 1986, p.16)

Estes exemplos são, no entanto, apenas algumas gotas no oceano de disciplinas de

formação das quais se deveriam fornecer, pelo menos, os conceitos básicos mais importantes,

se quisermos que as gerações futuras não se entreguem definitivamente a uma especialização

extrema que acabe por tornar todos ignorantes em tudo que não é a sua micro-especialidade.

Um dos exemplos mais significativos de professor bem-sucedido e que sempre

valoriza na cultura (para retornar ao início deste capítulo) a vida essencial existente nela, é o

do educador e psicólogo mineiro Rubem Alves.

Existe em todos os textos de Rubem Alves, um entendimento e uma vivacidade

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que mostram aspectos culturais que ele chama à luz em todo momento ao construir os seus

escritos, que são os mais variados. Embora demonstrando um vasto e eclético conhecimento

cultural, em seus textos jamais transparece a menor sombra de pedantismo ou arrogância.

Torna-se evidente que este autor-educador, é alguém que tendo galgado os degraus até um

estágio de compreensão ampla, reconhece na simplicidade de tudo todas as coisas que ele

viveu ou leu, equiparadas e igualitárias. Não atribuiu, ele, à filosofia de um pensador famoso

ou a uma Paixão de Bach um peso maior do que o de um causo que ouviu de um caipira, ou a

uma moda de viola, tocada e cantada em uma cozinha de uma velha casa do interior do país.

Não deixa, no entanto, de chamar como sua testemunha, ao contar suas histórias, seja uma

superstição da roça, uma concepção filosófica de origem européia, ou um poema de autor

famoso. E nestas relações, lê, compreende e enxerga a unidade da arquitetura do todo e depois

nos informa sobre uma beleza e empatia entre tudo isso de maneira sincera em seus escritos.

Isto pode ser observado ao lermos alguns trechos de escritos de Rubem Alves que

demonstram o trânsito fácil deste autor (notadamente um autor contrário à valorização da

rigidez de pensamento ou no conhecimento) por áreas da cultura, para tentarmos continuar

demonstrando, a necessidade de se passar por estágios de aprendizado, para podermos

conquistar a liberdade de pensamento e de escolha:

[...] Comecei a gostar dos livros mesmo antes de saber ler. Descobri que os livros eram um tapete mágico que me levavam instantaneamente a viajar pelo mundo... Lendo, eu deixava de ser o menino pobre que era e me tornava um outro.[...] Eu passava horas vendo as figuras e não me cansava de vê-las de novo [...] Um outro livro que me encantava era o “Jeca Tatu”, do Monteiro Lobato. Começava assim: “Jeca Tatu era um pobre caboclo...” De tanto ouvir a estória lida para mim, acabei por sabe-lo de cor. “De cor”: no coração. Aquilo que o coração ama não é jamais esquecido.[...] Florais de Bach: confesso minha ignorância. Nada sei sobre os seus poderes. Mas sei muito sobre os poderes terapêuticos dos “Corais de Bach”. A música tem poderes mágicos.[...] Um amigo me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava uma única palavra que contivesse o mundo. T.S. Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que temos “conhecimento de palavras e ignorância da Palavra”.A poesia é uma busca da Palavra essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo. (http://www.rubemalves.com.br/).

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Um ponto importante que se pretende demonstrar também, é que a conclusão de

que tomar a decisão de se deixar de lado estudos que dêem uma noção razoável da cultura e

do pensamento de importantes autores antigos, modernos, ou contemporâneos, sem tentar

encontrar alguma solução alternativa que possibilite um convívio mais próximo com estes

estudos, não parece ser algo inteligente e que contribua para a melhoria do ensino. Ainda que

esta atitude não torne os cursos mais rápidos, a preocupação em ministrar pelo menos as bases

e os aspectos principais dos conhecimentos clássicos, e de outros, deveria ser encarada como

ferramenta fundamental à realização de uma prática adequada na busca da excelência no

ensino. A solução pode ser a fomentação da pesquisa, da indagação, e isso só será possível

através do emprego de uma nova política educacional que valorize professores capazes de

abraçar esta filosofia de ensino, sendo modernos na condução das aulas, sem desprezar, por

descaso ou desconhecimento, o ensino da cultura e do pensamento de todas as épocas.

A respeito da importância de recorrer ao ensino dos clássicos, vejamos a

observação que faz Roberto de Oliveira Brandão, na introdução que faz ao livro denominado

A Poética Clássica, onde se estuda a arte poética de três grandes mestres: Aristóteles, Horácio

e Longino:

[...] Paul Valéry descreve a passagem do ato de reflexão inicial, calcado na observação dos procedimentos artísticos, para o estabelecimento da lei e da regra que devem ser obedecidas cegamente: ‘ [...] mas, pouco a pouco, em nome da autoridade de grandes homens, a idéia de uma espécie de legalidade foi introduzida [...] Ela exprimiu as fórmulas precisas; a crítica armou-se; e, então, seguiu-se esta conseqüência paradoxal: uma disciplina das artes, que opunha aos impulsos do poeta dificuldades racionais, conheceu um grande e durável prestígio devido à extrema facilidade que ela dava para julgar e classificar as obras, a partir da simples referência a um código ou a um cânon bem definido’ Tal fenômeno pode ser constatado nos numerosos manuais utilizados nas escolas brasileiras do século passado, onde a observação criadora dos Antigos se encontra petrificada na ideologia paralisante dos valores eternos, como se observa nestas palavras de um manual usado no Colégio Pedro II do Rio de Janeiro: ‘Os antigos e primeiros ordenadores das regras e preceitos tiveram a intuição da verdade; estudaram muito apuradamente as leis eternas e imutáveis da inteligência humana e por isso irá sempre muito seguro aquele que lhes for ao encalço’.(1997, p.4 e 5).

Apesar da citação acima não estar, absolutamente, endossando a prática da

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valorização cega dos preceitos estabelecidos nos manuais antigos, e também questionar a

validade do estudo colocado desta forma, ela evidencia a existência de um estudo da retórica e

da estética clássica, em um colégio brasileiro no século XIX. Isto demonstra que sendo este

estudo feito de uma forma adequada ou não (questão pedagógica já referida, como tendo

alcançado grande progresso, principalmente no que se refere às relações professor/aluno), este

ensino demonstra que existia uma preocupação com a valorização do estudo da cultura

clássica. Estudo este, extremamente rico em aspectos mitológicos, históricos e artísticos, tão

intimamente ligado às artes, e muito vinculado à música, nos quais inúmeros compositores se

inspiraram para suas criações, e também, por analogia, muito mais ligado à cultura popular e

folclórica, do que se pode, às vezes, imaginar.

Além disso, continuando a ler um pouco mais da introdução citada, podemos

observar que o autor ao questionar as formas utilizadas para o aprendizado destes valores, em

momento algum conclui pela não necessidade destes estudos, mas demonstra que eles apenas

deviam ser abordados à luz de uma conduta didática diferente que valorizasse a reflexão

individual sobre aqueles textos, como aparece neste trecho:

[...] Para nós hoje essas diferentes tendências de leitura e interpretação da Poética aristotélica, bem como de outras obras antigas, assumem um significado didático muito importante, pois mostram que, se por um lado, aquele texto goza de um grande poder sugestivo, por outro, revela que cada época vê e compreende o passado de acordo com suas próprias maneiras de pensar, e o significado histórico do texto resulta, em última instância, da interação das diversas formas de leitura ocorridas. É, pois, nesse quadro que se insere a necessidade, sempre renovada, de voltarmos, diretamente, ao texto da Poética para que a constelação de soluções já cristalizadas não impeça o exercício da reflexão pessoal, o que constitui, certamente, a maior lição deixada pelo estagirita.(BRANDÃO,1997, p. 5 e 6)

Existe um exemplo muito interessante que trata desta postura mais aberta na

educação, de como se deve colocar os alunos em contato com os conhecimentos clássicos, e

critica as formas ortodoxas de se lecionar, no famoso filme americano, intitulado, Dead Poets

Society (Sociedade dos Poetas Mortos), realizado em 1989 pelo diretor Peter L. Weir.

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Neste filme o personagem vivido pelo ator Robin Williams, o professor Keating,

em sua aula inaugural, diz para os seus alunos rasgarem a introdução de um compêndio de

poesia que a escola utilizava no programa do curso. Ele toma esta atitude, como fica claro, por

discordar da forma fria, morta, e apenas geométrica, que o autor do ensaio introdutório do

livro, demonstrava tratar a poesia, que para ele, Keating (um clássico exemplo do professor

bem-sucedido), deve ser sentida de maneira viva e apaixonada. No entanto, no decorrer do

filme, em nenhum momento ele se coloca contra a necessidade de se aprofundar na leitura dos

grandes autores, mas o contrário é o que acontece. Isto fica demonstrado quando, ao contar

aos seus alunos sobre a sociedade que ele integrara na sua época de aluno daquela Instituição,

os poetas mortos, diz-lhes que eles eram como uma irmandade grega, e também românticos.

Que se revezavam, nos seus encontros, na leitura dos grandes escritores e na récita de poemas

deles próprios. Porém o que difere aquele professor de outros daquela escola, e que ao ensina-

los, ele os deixa “transgredir” as normas obsoletas da escola, joga futebol com os alunos,

ensina a eles expressão corporal e como extrair de si mesmos os seus próprios poemas.

Pelo menos em todos os exemplos que o autor deste trabalho encontrou, parece

ser esta a forma de interpretação da grande maioria dos que se dedicaram a falar sobre este

tema. Parece que qualquer um que tenha refletido sobre a necessidade de absorver as teorias e

concepções estéticas dos antigos, compartilhou desta opinião. Coutinho em seu ensaio sobre a

obra de Machado de Assis, busca no poeta francês Charles Baudelaire (�1821-�1867) apoio

para este tipo de conduta quando diz:

[...] ‘É evidente que as prosódias não são tiranias inventadas arbitrariamente, mas uma coleção de regras reclamadas pela própria organização do ser espiritual; e nunca as prosódias e retóricas impediram que a originalidade se produzisse distintamente. O contrário seria infinitamente mais verdadeiro: elas ajudam na eclosão da originalidade’.(BAUDELAIRE apud COUTINHO, 1962, p. 56)

Concorda também com este pensamento o compositor Russo, Igor Stravinsky,

uma vez que recorre ao mesmo trecho citado por Coutinho. E não obstante as inúmeras

inovações realizadas em suas composições, ou talvez por isso mesmo, afirma que para ele é

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de fundamental importância o conhecimento das antigas formas, demonstrando isso, neste

trecho de sua Poética Musical em Seis Lições:

[...] Minha liberdade, portanto, consiste em mover-me dentro da estreita moldura que estabeleci para mim mesmo em cada um de meus empreendimentos. Irei ainda mais longe: minha liberdade será tanto maior e mais significativa quanto mais estritamente eu estabelecer meu campo de atuação, e mais me cercar de obstáculos. Tudo o que diminui a restrição diminui a força. Quanto mais restrições nos impusermos, mais libertamos nossa personalidade dos grilhões que aprisionam o espírito[...]De tudo isso concluímos pela necessidade de dogmatizar sob pena de perder o nosso objetivo. Se essas palavras nos incomodam e parecem duras, podemos abster-nos de pronunciá-las. Apesar disso, elas contêm o segredo da salvação. ‘É evidente — escreve Baudelaire — ‘que a retórica e a prosódia não são tiranias inventadas arbitrariamente, mas uma coleção de regras exigidas pela própria organização da realidade do espírito, e jamais a prosódia e a retórica impediram a originalidade de manifestar-se plenamente. O contrário, isto é, que contribuíram para o florescimento da originalidade, seria infinitamente mais verdadeiro’. (STRAVINSKY, 1996, p.65)

Esta conclusão a que Stravinsky, chega na terceira lição de sua palestra realizada

em Harvard no ano acadêmico de 1939-40, transformada posteriormente em livro, decorre de

um raciocínio que ele vem estabelecendo nas lições anteriores, e que a todo o momento

demonstra que toda inovação e todo desenvolvimento da arte, não é feito ignorando as

conquistas passadas, mas aprendendo com elas e desenvolvendo-as. Como podemos observar

na leitura do livro, ele finalmente conclui por algo que poderia ser traduzido pelo pensamento

de que um caminho seguro é ter os olhos no presente e no futuro, sem abandonar o passado.

Este pensamento de Stravinsky se opõe à pregação do movimento futurista,

fundado pelo poeta italiano Fillipo Tomasso Marinetti (�1876-�1944), que em 1909 redigiu

um manifesto no qual proclamava o fim da arte passada e a ode à arte do futuro. O futurismo

tinha implicações políticas, e pretendia através da liberação da Itália do seu peso histórico, a

conduzir ao mundo moderno.

Outros artistas uniram-se a Marinatti. Entre eles, os pintores Carlo Carrá

(�1881-�1966), Gino Severeni (�1883-�1966), Giacomo Balla (�1871-�1958), o pintor e

escultor Umberto Boccioni (�1882-�1916), e o pintor e compositor Luigi Russolo (�1885-

�1947).

Este grupo de artistas lançou, em 1910, um manifesto da pintura futurista e

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posteriormente (1912), um outro da escultura futurista. Segundo eles a cor e a forma somente,

já não eram suficientes para representar o dinamismo moderno, e era necessário que fosse

feita uma “limpeza radical em todos os temas gastos e mofados a fim de expressar a vida

moderna e seu ritmo vertiginoso”.(www.brasilcultura.com.br).

Também esta corrente de pensamento deve ser considerada relevante para este

trabalho, uma vez que não se pretende incorrer no mesmo radicalismo do movimento

futurista, tentando afiançar que somente o oposto do que eles proclamavam seria importante,

pois se acredita que toda manifestação artística contribui para o alargamento cultural do

indivíduo e conseqüentemente deve ser valorizada como ferramenta de condução em direção

a transdisciplinaridade.

O que se poderia sugerir é que o que o movimento futurista pretendia, era

contrário ao pensamento de importantes artistas, e artistas estes, que dificilmente poderiam ser

tachados de antiquados, mas, pelo contrário, realizavam, nesta mesma época, obras

autenticamente modernas. Porém não consideravam estes, que, para realizar suas obras,

mesmo que modernas, necessitavam de promover um abandono completo do cânone

tradicional. Sabiam que era importante valorizar o que já havia sido experimentado e

construído no passado, como podemos perceber através de outras observações de Igor

Stravinsky.

[...] A poética dos filósofos clássicos não consiste de dissertações líricas sobre o talento natural e sobre a essência da beleza. Para eles, a palavra téchné abrangia tanto as belas-artes como as coisas práticas, e aplicava-se ao conhecimento e ao estudo das regras corretas e inevitáveis. [...] Explicar—do latim explicare, desdobrar, desenvolver—é descrever alguma coisa, descobrir a sua gênese, perceber a relação de uma coisa com a outra, e tentar lançar luz sobre elas [...] Como vêem, essa explanação da música que pretendo realizar para vocês, e, espero, com vocês, assumirá a forma de uma síntese, de um sistema que começará com uma análise do fenômeno da música e terminará com o problema da execução da música. [...] Adotarei uma espécie de paralelismo, um método de sincronização; isto é, associarei princípios gerais a fatos

particulares, constantemente apoiando uns a outros. (1996, p.18)

Aqui, referindo-se a música de Richard Wagner (�1813-�1883):

[...] É isso que se chama progresso? Talvez. A menos que os compositores encontrem força para sacudir essa pesada herança obedecendo ao admirável conselho de Verdi: ‘Vamos voltar aos velhos tempos; isso será um progresso.’ [...] Quanto à cultura, é uma

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espécie de formação que, na esfera social, dá polimento à educação, sustenta e completa a instrução acadêmica. Essa formação é igualmente importante na esfera do gosto, e é essencial ao criador que deve, sem cessar, refinar seu gosto, ou correr o risco de perder a perspicácia. Nossa mente, assim como nosso corpo, pede exercício contínuo. Ela se atrofia caso não a cultivemos. (1996, p.47 e 58)

E ainda:

[...] A tradição autêntica não é a relíquia de um passado irremediavelmente transcorrido; é uma força viva que anima e condiciona o presente [...] longe de implicar a repetição do que já foi, a tradição pressupõe a realidade do que permanece. Ela aparece como uma herança, um patrimônio legado à condição de fazê-lo dar fruto antes de passá-lo a nossos descendentes. (1996, p.58)

Sob um aspecto diferente, outro importante compositor do século XX, Arnold

Schöenberg (�1874-�1951), especialmente significativo por ter sido o precursor de um novo

sistema de composição musical, e por conseguinte, de inquestionáveis ideais modernistas, se

não compartilha de todas as opiniões de Stravinsky, quanto ao retorno a formas antigas, as

utilizava, em aulas, tendo escrito um tratado composto de três partes: Structural Funcions of

Harmony (Williams & Norgate, 1954), Preliminary Exercises in Counterpoint ( Faber &

Faber, 1963), e Fundamentals of Musical Compositions (Estate of Gertrude Schönberg). Estes

tratados, que resultaram de seus ensinamentos nos Estados Unidos, eram dirigidos, segundo

suas palavras, “aos estudantes médios das universidades, assim como aos estudantes

talentosos que almejam tornar-se compositores”. Observava também o compositor da

Segunda Escola de Viena, que: “as formas-padrão simplificadas, que não correspondem

sempre às formas artísticas, auxiliarão o estudante a adquirir o senso formal e o conhecimento

dos fundamentos da construção” (SCHÖENBERG:1991,p.28). Querendo nos dizer que, não

necessariamente, somente os modelos utilizados pelos mestres antigos são importantes, mas

também os novos, que podiam inclusive ser construídos no momento das lições. De onde

decorre que se os valores estáticos são nocivos a uma educação para a liberdade de

pensamento, para a autonomia, e para a criatividade, também poderíamos afiançar que a

desvalorização de lições já conquistadas pelo homem na sua formação intelecto-cultural

também será um fator prejudicial a esta mesma educação.

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Poderíamos ainda observar que ao construir novos modelos e registra-los, um dia

eles se tornarão fórmulas do passado e nem por isso deverão ser descartados. Se a atitude do

homem tivesse sido a de ir abandonando o que era por ele mesmo conquistado através dos

anos, não haveria registro de nada, e o homem, muito provavelmente, já teria sucumbido pela

desvalorização de sua própria memória.

Paulo Freire, educador notadamente progressista, em um discurso seu, em um

congresso, o qual gerou o livro, A Importância do Ato de Ler- em três artigos que se

completam, fala sobre a importância de uma educação que tenha significado real aos

educandos, muito particularmente àqueles, já adultos, que seriam alfabetizados através de um

programa que o educador desenvolvia em São Tomé e Príncipe. Na ocasião ele comenta:

[...] A insistência na quantidade de leituras sem o devido adentrar nos textos a serem compreendidos, e não mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita [...] parece importante, contanto, para evitar uma compreensão errônea do que estou afirmando, sublinhar que a minha crítica à marginalização da palavra não significa, de maneira alguma uma posição pouco responsável de minha parte com relação à necessidade que temos, educadores e educandos de ler, sempre e seriamente, os clássicos neste ou naquele campo do saber, de nos adentrarmos nos textos, de criar uma disciplina intelectual, sem a qual inviabilizamos a nossa prática enquanto professores e estudantes (grifo nosso). (1997, p.17)

Há necessidade de nos relacionarmos de uma forma mais próxima com os

estudos, primando pelo estabelecimento de ligações entre as diversas áreas do conhecimento e

a fomentação destes interesses nas escolas desde os cursos mais básicos até a universidade. A

conservação de disciplinas que estão intimamente ligadas à facilitação do estabelecimento da

transdisciplinaridade, à capacidade de apreender uma diversidade de pensamentos e matérias,

é algo que somente pode trazer benefícios e contribuir de maneira efetiva para uma mudança

de postura de alunos e professores.

Em relação à cultura clássica, aos textos históricos, poéticos, às artes e às

ciências, devemos nos lembrar, que uma capacidade de produção variada, um talento para a

diversidade de dons, algumas vezes reúne-se naturalmente em alguns indivíduos que realizam

obras geniais. Certamente estes são exemplos de talentos extraordinários e especiais, mas que

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talvez não os tivessem desenvolvido, como o desenvolveram, se não tivessem uma mente

investigativa que busca perscrutar todos os assuntos.

Foi este, por exemplo, o caso do alemão, Johann Wolfgang von Goethe (�1749-

�1832), que além de poeta, dramaturgo e romancista, desenhou e pintou, dedicando-se ainda

aos estudos científicos, tendo desenvolvido alguns trabalhos nas ciências, entre eles,

contribuindo, no campo da anatomia comparada, com a descoberta do osso intermaxilar no

ser humano, e, na física, elaborou uma teoria das cores alternativa à do grande físico inglês

Isaac Newton (�1642-�1727). Se não se encontra facilmente um Goethe, que não obstante

seu talento inato, este teve de ser trabalhado e desenvolvido. Este seria, então, mais um

motivo para que todos se empenhassem em facilitar para as pessoas comuns uma instrução

mais abrangente e eficaz, pois mesmo não se podendo criar gênios há como nutrir mentes para

que estas se desenvolvam críticas e criativas.

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4. ESTABELECENDO RELAÇÕES: exemplos gerais

Chegamos agora em um momento que deveríamos tentar demonstrar através de

algumas exemplificações a complexa teia que liga o universo cultural artístico. Existem, é

claro, inúmeras citações e referências que as obras fazem umas das outras, assim como uma

infinidade de vínculos que conduzem às mais diversas formas de representações artísticas, e

que jamais poderá ser percebido em sua totalidade por quem quer que seja.

Seria engano imaginar que a explanação destes poucos pontos de contatos entre os

diversos microcosmos que constituem esta malha de representações, que serão parcialmente

representados aqui poderiam sequer se aproximar da prolixa gama de interação entre as

disciplinas. Mas podemos vislumbrar um pequeno fragmento que pode representar como seria

interessante para o indivíduo (aluno, professor, amador), dispor de fontes de relações entre as

artes para melhor apreciar a audição de uma sinfonia, a contemplação de uma tela, ou a

leitura de um livro.

Certamente se deixará de mencionar exemplos claros, que saltam aos olhos de

todos, assim como, também, este empenho em selecionar alguns casos de ocorrência destes

paralelos, dentro da infinita legião deles, não significará em nenhum momento que se

pretenda afirmar que estes fatores são desconhecidos da maioria, ou que o autor deste trabalho

não desconheça incontáveis exemplos destas relações. Por mais que qualquer um se empenhe

no aprofundamento do estudo ou das comparações jamais será possível abarcar a totalidade

delas.

Devemos esclarecer também, que é fato que muitos já têm consciência que estas

similaridades existem e estão inseridas nas obras. A questão que parece ser preocupante é a de

que há um esmorecimento na busca, na pesquisa, e na intenção de se vir a conhecer

pelo menos aquelas mais famosas comparações, e em se aguçar o espírito no sentido de se ter

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mais ânimo em empreender a descoberta de outras, uma vez que se pretenda que estas

associações são a base para a formação completa da transdisciplinaridade.

Entende-se ainda, que mesmo que possa existir uma quantidade significativa de

indivíduos que jamais pensaram sobre estas questões, da maneira que as propomos, isso não

quer dizer, absolutamente, que estes nunca experimentaram alguma vez algum tipo de

sentimento de percepção destas relações. Aliás o contrário é que é verdadeiro, e isso se torna

mais uma afirmação de que o natural é estar em sintonia com estas afinidades eletivas. Ocorre

que muitas vezes um sentimento inexplicável e muito subjetivo, toma conta de um observador

quando este se depara, em um determinado momento com uma surpreendente e inesperada

compreensão do significado de algum jogo de palavras ou de imagens colocada, por exemplo,

em um filme. Sente às vezes uma estranha sensação de familiaridade diante de uma tela ou ao

ouvir uma melodia. Muitas vezes a explicação disso é mais simples e menos sobrenatural do

que se possa imaginar, mas simplesmente o observador ou ouvinte, reconhece ali aquela

maravilhosa unificação que existe na união das coisas, mesmo que este pensamento analítico

não lhe passe pela cabeça de forma consciente:

[...] Enquanto a sinfonia, o palácio e a catedral, o arabesco ou a obra coreográfica (...) o quadro, a estátua, o desenho imitativo (e, como vamos verificar também o poema e o romance) apresentam simultaneamente ambas as formas, primária e secundária, entre as quais estabelecem curiosas relações, ora de identidade estrutural, ora de semelhanças ou afinidades evocativas, às vezes muito mais sutilmente de harmonia, conveniência, conformidade estética e mesmo, ocasionalmente, de luta e oposição.O espectador mal informado pode não se dar conta disso e ingenuamente atribuir todo o encanto da obra à cena que lhe vem à memória, quando ele entra na ficção e coloca-se diante do discurso representativo [...] sem saber que está sob o domínio de um encantamento [...] que o imerge num êxtase impreciso, sem saber ou mesmo sem querer reconhecer que um hábil arabesco de consoantes e vogais, de sílabas átonas ou acentuadas, o enfeitiçou com sua música para fazê-lo confiar mais no sentido das palavras e maravilhar-se com as imagens que lhe são oferecidas.(SOURIAU, 1983, p.98)

Mas também é um fato que muitas destas relações absolutamente indispensáveis a

um mais completo envolvimento e uma maior apreciação das artes, que podem ser ensinadas,

aprendidas e estimuladas, são muitas vezes, negligenciadas. E se pensarmos que todas as

artes têm relação umas com as outras, e que estas relações, além do próprio valor artístico

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inerente a determinada obra isolada, é o que as tornam ainda mais admiráveis e vigorosas,

poderíamos admitir que existem falhas graves no ensino que passa por cima das comparações

que as esclareceriam. Deveríamos sempre estar atentos, professores e alunos, para as relações

que invariavelmente existirão entre as diversas matérias e os diversos temas, que se

encadeiam e aludem uns aos outros de maneira constante e completa.

Todos os artistas registram em sua obra muitas coisas intraduzíveis em palavras, e,

estas próprias palavras, as quais são a matéria prima da arte literária, trazem entre elas aquela

mensagem sub-reptícia que é intuída e que está para alguns em um campo subjetivo e

intermediário das coisas: o campo da parte subjetiva das relações da transdisciplinaridade.

Não somente na área de estudo e impressões da interdisciplinaridade, embora tenha passado

por ele, e também permaneça ainda como parte dela, mas daquele ponto mais alto de

interações complexas, íntimas e subjetivas que é para onde tende a transdisciplinaridade.

Há ligação entre o ritmo de um verso e dos passos de uma dança, entre as notas

tocadas em um instrumento e uma pintura, e estas duas últimas estão ainda interligadas à

primeira. Isso pode ser observado de duas formas: uma delas é a da relação estética que têm

objetivos e similaridades em comum, e a outra forma é a do relacionamento íntimo dos temas.

Ao compor a sua peça musical intitulada D'Apres un lecture du Dante, o

compositor húngaro, do período romântico da música, Franz Liszt (�1811-�1886), ligava-se

assim àquele poeta antigo, que escreveu sua obra sem jamais imaginar, talvez, que esta

falaria, vários séculos depois, à alma de um outro artista. Também, muito dificilmente, lhe

passaria pela mente que este artista do futuro criaria uma música que carregaria, no seu

íntimo, aquela necessidade de expressar o que sentiu o compositor ao ler aquele poeta, o qual

foi o impulso inicial para a realização da referida obra. Assim se estabelece a troca, uma vez

que, através da sua música, Liszt faz referência direta ao trabalho de Dante Alighieri (�1265-

�1321), o que instiga alguns a conhecer o poeta, enquanto outros, por intermédio de um

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prévio conhecimento das obras do mestre florentino podem vir a descobrir as melodias do

compositor romântico.

Os níveis, e a diversidade de linguagens, em que isso ocorre são tão vários, que

pode até parecer fútil a análise destas relações quando nos deparamos, por exemplo, com

relações oriundas de um desenho animado. Mas isso mesmo é o que faz com que sejam

justificados o maior conhecimento e a melhor observação de um leque mais amplo de

conhecimentos de obras artísticas. Muitas vezes a percepção e o aproveitamento maior ou

menor do humor constante de um simples cartoon dependerá da maior ou menor

familiaridade com estas relações.

Pode se chamar à atenção para a utilização de reconhecimento de obras artísticas

em muitos desenhos animados. Para citar apenas um exemplo, esta espécie de utilização pode

ser constatada ao se assistir um desenho animado americano intitulado Cirrhosis of the

Louvre da série Inspetor Clouseau, realizado pela MGM em 1966.

Neste episódio do desenho existe no seu desfecho uma espécie de paródia. Uma

citação visual da qual somente se atingirá o clímax da comicidade (que está atrelada ao

reconhecimento de uma obra de arte) quem na última cena da animação reconhecer um

famoso quadro intitulado: Arranjo em Cinza e Preto (retrato da mãe do artista), do pintor

americano James Mcneill Whistler (�1834-�1903)

Poderia se argumentar que é uma pretensão tola querer dar alguma importância a

este fato e que o desenho certamente será apreciado independentemente disso. Isto não deixa

de ser verdade, porém, o que de fato parece significativo relatar, é a observação de que

aqueles que puderem, devido ao seu conhecimento de obras pictóricas, observar a citação

realizada naquele momento final do cartoon, certamente serão mais agraciados do que outros

no aproveitamento daquele elemento de comicidade que a animação traz, de forma brilhante, como um gran finale.

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Para exemplificar um pouco mais a questão, recorremos mais uma vez ao já citado

escritor Machado de Assis, com apenas mais um exemplo que ilustra de forma clara estas

observações.

Ao se chamar novamente este escritor em defesa desta pesquisa, isso é feito por ser

ele talvez, dentro do panteão de escritores brasileiros, o que mais tenha lançado mão em seus

livros, de uma comparação constante das mais diversificadas obras, autores e filosofias. E ao

fazer isso, ao estabelecer estes contatos entre umas e outras, interligando-as, confere-lhes,

devido esta mescla de idéias uma maior proximidade com os ideais da transdisciplinaridade.

Observemos, pois, o que ele escreve em 1892, em uma crônica para o jornal A

Semana, do Rio de Janeiro:

[...] Thannhäuser e bonds elétricos. Temos finalmente na terra essas grandes novidades. O empresário do teatro lírico fez-nos o favor de dar a famosa ópera de Wagner, enquanto a Companhia de Botafogo tomou a peito transportar-nos mais depressa. Cairão de uma vez o burro e Verdi? Tudo depende das circunstâncias. (ASSIS 1962, p.574)

Como observou Etiénne Souriau, em uma citação colocada acima, aquele

espectador mal informado (no caso aqui todo leitor mal informado), ao ler esta crônica não

apreciará nesta introdução, algo que faz toda diferença para a compreensão do humor que traz

este início do texto, um humor decorrente da comparação de um modernismo que se

desenvolvia na música, com um outro recém inaugurado nos transportes, e a oposição destes

elementos: o transporte moderno e o compositor Richard Wagner (simbolizando o

desenvolvimento do drama musical moderno) versus o obsoleto burro e o compositor

Giussepe Verdi (�1813-�1901) (simbolizando a persistência de formas tradicionais na

composição de óperas).

Pode ser difícil que esta observação contida neste texto de M de A, venha a ser lida

por muitas pessoas, mesmo pensando em estudantes de letras, uma vez que suas crônicas não

fazem parte de seus escritos mais célebres. Mas além de este ser um exemplo de um tipo de

associação comum ao autor em todos os seus livros, o mais importante é pensar que estamos

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diante de uma condição necessária à amplitude de interpretação e compreensão ao olharmos

para o trecho referido acima.

Certamente não se pode esperar (voltamos a afirmar) que as pessoas possam

conhecer de forma ilimitada as inúmeras metáforas e citações que aparecem em todas as

obras, ou em todos os tipos de arte. Como, também, de maneira geral, não seria muito comum

encontrar em profissionais que lidam com atividades mais afastadas das artes ou da literatura,

como por exemplo, engenheiros químicos, cientistas, farmacêuticos, uma sintonia ou uma

afinidade com os temas que proporcionassem uma maior facilidade em reconhecer tais

referências. A não ser que, no caso específico da crônica citada, estes profissionais tenham

por hobby a literatura e a ópera, sendo que ainda assim, em muitos casos, seria difícil o

reconhecimento das relações entre os temas para muitos amadores.

Mas se pensarmos em um estudante de música que esteja muitas vezes mais

voltado para as questões práticas do instrumento, e que não procure se aprofundar nos

aspectos de interdependência que existe no estudo dos períodos musicais, nas suas diversas

tendências, filosofias e de estilo de composição, ou em um estudante de letras que embora

possa se dedicar ao estudo literário, não trafegue muito bem por outras artes e desconheça as

escolas e períodos da história da música, é muito provável que estes estudantes se por acaso se

depararem com o trecho daquela crônica, não poderão saber quais os antagonismos separavam

ou separam estes dois compositores de ópera, Wagner e Verdi. Neste caso poderíamos

considerar isso uma deficiência na sua formação histórico-musical-literária, caso este

estudante não pudesse atinar com o sentido da comparação destas divergências, com aquelas

realidades práticas da tecnologia moderna que é colocada pelo escritor. Isto certamente o faria

perder, entre outras coisas, pelo menos no momento da leitura deste texto, a oportunidade de

absorver a beleza da sutil ironia colocada diante dele, e esta deficiência o tornaria incapaz de

ser agente de continuação desta forma ampla de visão multidisciplinar. Da mesma forma,

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seria incompleta a formação de um professor de literatura, que ao ler o início da crônica, não

soubesse, se lhe fosse solicitado que o fizesse, explicar aos seus alunos, o porquê de o autor

citar estes dois nomes neste contexto. Logicamente isso poderia ser pesquisado

posteriormente, mas o manejo ideal das relações disciplinares pressupõe uma familiaridade

ampla com a diversidade de matérias, e aqueles que a tiverem serão professores diferenciados

e bem sucedidos.

4.1 Ilustração sucinta de inter-relações na temática musical

Inúmeros nomes e conceitos estão associados a todas as obras artísticas criadas

através dos tempos.

Para permanecer apenas dentro de um sucinto exemplo destas relações, o que,

aliás, não poderia ser demonstrado de outra forma, devido à infinita variedade de pontos em

comum interligando as diversas obras artísticas através dos tempos. Restringindo ainda estas

exemplificações à arte musical que conterá obviamente as referencias às outras formas de

arte, história, idiomas, geografia, ou qualquer que seja as que estiverem unidas àquela, se

poderá, talvez, com alguns pequenos exemplos, se demonstrar pelo menos uma parte desta

imensa teia.

Em caráter de exemplificação teremos que partir de algum ponto do qual se tenha

a possibilidade de estabelecer associações, sendo que nenhum lugar é especificamente inicio

ou fim de nenhuma relação interdisciplinar. E uma vez que, quando alguma matéria citar,

direta ou indiretamente, um tema de ligação, ou um assunto qualquer, o fato de fazê-lo não

implicará em um fim, mas será apenas um detalhe dentro da própria obra, que pode se

estender (criando novas situações de compartilhamento), há que se observar, pois, que

existirá sempre uma concisão e mesmo uma deficiência nos exemplos.

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Para se demonstrar um pouco desta atividade comparativa, teríamos que criar uma

situação da qual pudéssemos partir para a troca de detalhes em comum que transitam de um e

outro lado estabelecendo as conexões. Primeiramente poderíamos adaptar o modelo de

Jantsch, e construir um esquema das relações da transdisciplinaridade, e preenchendo-o com

algumas disciplinas, onde poderíamos ter alguns exemplos destas associações.

Devido à infinidade de matérias diversificadas, tanto dentre as artísticas como nas

de outros ramos do conhecimento, disponíveis para nossa exemplificação, podemos escolher

aleatoriamente qualquer uma para que possamos fazer uma demonstração através da

utilização do modelo Jantsch, acima referido.

Escolheremos é claro uma obra musical para que esta seja o ponto de partida para

a nossa análise associativa. Tomando esta obra como referencial ligaremos a ela algumas

matérias que nos parecerem passíveis de interação com a mesma, e embora possamos deixar

de lado várias outras, entendemos que daremos ênfase às mais importantes, ou mais próximas.

Tomemos pois o famoso Réquiem de Wolfgang Amadeus Mozart (�1756-�1791).

A escolha desta obra, e posteriormente, outras que aparecerão em um quadro

comparativo, não significa de maneira nenhuma, que se intenta excluir os exemplos da

literatura popular, musical ou não, mas foi feita simplesmente com o objetivo de facilitar a

ligação desta obra com vários temas de outras disciplinas. Tanto foi feita pela facilidade de se

encontrar as matérias de ligação como também por conhecimento limitado do autor do

trabalho, o qual, se fosse mais abrangente e rico nos aspectos transdisciplinares, poderia

lançar mão de uma gama bem mais ampla e diversificada de exemplos.

Não deixa pois de ser a própria limitação dos exemplos (que não poderiam ser

demasiadamente amplos, mesmo se os conhecimentos do autor fossem mais vastos, devido ao

porte do trabalho) também um argumento em favor da sustentação da necessidade de urgência

em se implementar com mais vigor e determinação em nossas escolas o ensino trasdisciplinar.

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FIGURA 1

Erro!

Imaginemos então, a partir deste raciocínio, que possamos aplicar uma espécie de

zoom na matéria Música e tomando a título de exemplificação o Réquiem de Mozart KV 626,

que é uma obra específica da literatura musical. Teríamos, ao aplicar o mesmo padrão do

modelo de Jantsch (adaptado), o seguinte gráfico:

FIGURA 2

Percebemos que a utilização deste processo de ilustração das relações entre os

diversos temas pode ser muito útil, pois demonstraria assim os professores aos estudantes, que

Réquiem de Mozart (Música)

Pinturas com temática religiosa

Literatura religiosa/ Bíblia

Oposição entre Ciência e Religião

Hebraica / Greco-Romana

Geometria das Pinturas/ Formas/Matemática

Psicologia relacionada às crenças/medo do Juízo Final

Cristianismo/Judaísmo Política /Europa séc. XVIII/ Roma Antiga

Latim/ Grego Comparação dos Mitos da Criação

Música

Artes Plásticas literatura

Filosofia

História

Ciência

Psicologia Religião Política

Idiomas Mitologia

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as artes estão vinculadas não somente umas às outras, mas como todas as coisas no mundo,

dependem do contexto em que estão inseridas para que se tenha uma maior apreciação das

mesmas.

Devemos salientar porém que estas relações não podem simplesmente ser

demonstradas com a finalidade de acúmulo de conhecimentos, mas com a de tornar o aluno

independente. Torna-lo aquele que reflete sobre o que aprende e de fato se torna um indivíduo

capaz de pensamento crítico, e conseqüentemente transforma-se também naquele que forma e

não só no que é formado, na medida que ao ser instigado à pesquisa e à reflexão, também

ensina, pois consegue descobrir novas possibilidades no que lhe é apresentado.

[...] Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível. E essas condições implicam ou exigem a presença de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, educandos, ser simplesmente transferidos.(FREIRE, 1996, p.42)

Para ampliar mais um pouco a nossa pequena demonstração de possibilidades de

estabelecimento de relações poderíamos sugerir a associação de algumas obras artísticas com

outras, que por sua vez nos mostram que vários conceitos podem ser trabalhados

conjuntamente ao estudo de uma obra. Lembrando sempre, que qualquer modelo aqui

apresentado tem somente o caráter de sugestão, uma vez que seriam praticamente infinitas as

possibilidades associativas, e que jamais se poderá atingir todas, e que todos estes

conhecimentos deverão ter o intuído de despertar os interesses para a continuação da

ampliação dos estudos de forma a tornar o indivíduo capaz de conquistar a autonomia.

Reforçando ainda o que ficou dito acima, que quanto maior fosse as experiências associativas

que o autor do trabalho tivesse tido a oportunidade de fazer no decorrer de seus anos de

estudos, embora sempre insuficientes, mais ricos poderiam ser os exemplos citados e maiores

e mais diversificados os temas abordados. Usaremos um quadro para melhor visualização de

associações entre alguns tipos de trabalhos:

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Quadro 1. Demonstração de alguns tipos de relacionamento entre temas

Assim Falou Zarathustra

F. Nietzsche/ R. Strauss

Livro do filosofo/ Poema Sinfônico do compositor

Língua alemã/ Música alemã e universal. Filosofia/ Religião – Zoroastro/Pérsia. Cinema/ Trilha sonora/ Elvis’ Shows/ Etc.

A Criação

J. Haydn/ J. Milton

Livro O Paraíso Perdido/ Oratório

Bíblia/ Poesia/ Literatura/ Religião Judaísmo/Cristianismo/Pintura/Canto/ Desenho/ Ilustradores/ Música Clássica

Criaturas de Prometeu

Ésquilo/ Beethoven/Vários outros autores

Prometeu =tema de vários autores/Abertura musical

Mitologia Grega/ Música Sinfônica/ Balé/ Pinturas e desenhos/ literatura Clássica/ Filosofia/ Escultura/ Religião - politeísmo paganismo, Etc.

Sinfonia Dante

Dante / F.Liszt

Divina Comédia/ Sinfonia

Literatura Clássica/ Música sinfônica/ Filosofia/ Religião/ Bíblia/ História

Dom Quixote

M.Cervantes/R.Strauss/ Dürer/Picasso/ O.Wells/ Outros

Livro Dom Quixote/ Filmes/ Ilustrações e pinturas.

Literatura/ Música/ História/ Ilustração/ Pintura/Cinema/ Psicologia Comportamento/ etc.

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5. A TENDÊNCIA DE ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR NA ANÁLISE MUSICAL

Poderíamos afirmar que se a forma de se abordar a análise musical, e

conseqüentemente o seu ensino, sob a ótica das inter-relações histórico-culturais, não é a

única compartilhada por todos os estudiosos, teóricos, musicólogos, professores e artistas, é

inegável que ela é uma das opções mais consideradas devido a oferecer a compreensão das

relações de forma detalhada do discurso musical.

Segundo ensaio de Maria Alice Volpe intitulado: Análise musical e contexto:

propostas rumo à crítica cultural, musicólogos e teóricos nas últimas décadas têm revisto

seus conceitos diante da observação e da análise musical com o objetivo de transcender os

limites da análise interna das obras em favor de um entendimento mais amplo da música.

Busca-se sentido não apenas na estrutura autônoma, mas na linguagem contextualizada dentro

dos aspectos sociais, históricos e culturais, como se pode observar durante a leitura de seu

trabalho através de suas reflexões e das citações de outros estudiosos:

[...] Manifestação visível da repercussão da crítica da musicologia às limitações analíticas, encontra-se no artigo theory, analysis and Criticism (1982), de Morgan, onde o autor faz um balanço do desenvolvimento da análise musical em relação à teoria e crítica, atentando para a necessidade de se ampliar as dimensões da análise musical, pela compreensão de que uma composição não é apenas um objeto autônomo mas também um registro do pensamento humano ou um reflexo de preocupações de uma época (2004)

Demonstra o ensaio de Volpe que esta preocupação de abordar a análise musical é

comum a inúmeros estudiosos, teóricos e musicólogos, observando por exemplo que Kerman

acredita que se deve fazer uma abordagem da “crítica musical” mais próxima a uma crítica

literária e cultural do que na forma de crítica jornalística como é comumente entendida a

expressão. Continuando a autora do texto a enumerar os diversos nomes que propõem uma

apreciação mais relacionada das obras com os diversos contextos, e ao citar Tomlinson,

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retorna também ao pensamento de Gerrtz, já muitas vezes exposto neste trabalho

monográfico, como quando observa:

[...] A leitura que Tomlinson faz da hermenêutica cultural de Geertz privilegia a premissa de que os dados perdem significado quando isolados de seu contexto e que, inversamente, ganham significado apenas em conexão com outros dados, que por sua vez também devem ser contextualizados. Dados ganham significados continuamente na medida em que somos capazes de entender cada vez mais as suas inter relações na teia cultural (VOLPE 2004.web of culture).

Percebe-se pois, em todo o texto de Volpe, uma sustentação das idéias

interdisciplinares que a autora vai demonstrando na sua reflexão sobre a análise musical

contextualizada, bem como através dos exemplos retirados de afirmações de eminentes

estudiosos do assunto.

Kramer, em seu livro, Music and Poetry: the nineteenth Century and after (1984),

busca a, interdisciplinary, segundo as suas próprias palavras, o autor procura confirmar que as

obras musicais têm significados discursivos que podem ser interpretados de forma comparável

a interpretações feitas de textos literários. Que os significados que se descobrem têm relação

entre si, e abordam a música, a literatura, a pintura e a crítica cultural, de maneira que a

música deve ser compreendida dentro de uma determinada ordem que pressupõe o

reconhecimento da pluralidade de visões.

Mostra-nos Maria Alice Volpe, que Richard Leppert e Susan Mc Clary, visam uma

contextualização da música e seu trabalho fundamenta a confirmação de várias abordagens

que devem ser valorizadas em uma “nova musicologia” e que têm como parâmetros, entre

outras coisas, a história das idéias, a literatura e a semiótica.

No decorrer de todo o ensaio de Volpe, vai ficando claro que existe uma tendência

geral de se pensar a análise musical de forma que esta compreenda uma visão de diversidade

cultural, costumes, receptividade das obras, e confronto com outras artes. Fica claro que é

necessário contextualizar, que sem o ponto de vista do conhecimento da cultura de várias

sociedades, de diversos lugares e épocas distintas, não se pode relacionar as obras com os

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pensamentos vigentes e dominantes. Como não podemos também analisar a criação artística

através da ótica de escritos e discursos filosóficos, se não pudermos compreender os fatores

sociais envolvidos na composição de uma obra de arte, no caso especificamente tratado pelo

ensaio de Volpe, a obra musical.

Um exemplo deste tipo de análise está no trecho onde a autora chama a atenção

para uma comparação entre os estilos, clássicos e românticos, em relação à filosofia Kantiana

e pós Kantiana, e compara valorização da racionalidade universal da ciência no iluminismo ao

estilo clássico, em contraposição ao estilo romântico que critica os valores clássicos, ao

valorizar a subjetividade, o individualismo, e a expressividade, e, por isso, estaria em

conformidade com o pensamento pós Kantiano.

Muitos são os exemplos que poderiam ser arrolados, mas não é objetivo deste

capítulo expor detalhadamente as inúmeras citações e afirmações da autora do ensaio acima

citado, pois isso além de excessivo seria desnecessário. Ao fazer alusão a alguns trechos do

texto de Maria Alice Volpe, bem como, ao chamar a atenção para algumas das citações que

ela faz de outros autores, espera-se demonstrar que as afirmações tratadas ao longo deste

trabalho monográfico se ampararam em argumentos de autoridades que delas compartilham.

Afirmações estas que esperam poder demonstrar a necessidade da constante valorização e

busca sempre crescente da transdisciplinaridade para a análise e para um melhor

entendimento, não só da música, mas de todas as obras artísticas que estão interligadas entre

si, por esta forma de abordagem contextualizada.

Quando valorizada e perseguida diligentemente esta atitude contribuirá sempre

para a formação não só dos estudantes e dos professores de artes, ou de qualquer disciplina,

como também será fator diferenciador na capacidade da compreensão que um interprete fará

de uma obra ou mesmo na do simples apreciador, por tal linha de sugestão de aprofundamento

visar o entendimento do mundo da arte como um sistema mais coeso e otimizado.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Poderíamos concluir este trabalho reiterando a necessidade de se ter sempre uma

maior atenção para que o ensino em nossas escolas tenha qualidade. Que esta qualidade se

baseie nas modernas práticas de abordagens educacionais da interdisciplinaridade e da

transdisciplinaridade, bem como nas atitudes do governo frente às questões da educação, e por

isso todos os educadores devem perseguir a realização plena destes objetivos em prol de um

ensino de maior responsabilidade.

Concluímos que qualquer estudo que se realize, não poderá aspirar a ser

abrangente se não interagir com outras matérias e outros estudos, e que muito especialmente,

os estudantes de artes musicais (matéria tão intimamente ligada a inúmeras outras) jamais

poderão ter uma visão panorâmica de sua arte, se não procurarem realizar estas interseções,

e/ou se não forem instigados a fazê-lo por professores capacitados.

Devemos relembrar que cultura é um termo amplo que está vinculado a inúmeros

conceitos e concepções distintas e que todas as suas formas devem ser valorizadas sem

preconceitos. Que esta cultura não é estática e a modernidade sempre traz consigo novas

abordagens e novas tendências que devem ser analisadas e entendidas a partir de

conhecimentos anteriores.

Finalmente, que para que esta forma ideal de ensino e de entendimento da cultura

venha a se estabelecer e se traduzir em agente modificador e incentivador do crescimento

intelectual e cultural dos indivíduos, nossas escolas e nossos professores devem estar

amparados pela efetivação das previsões que constam das resoluções das leis da educação e

adequadamente preparados para realizar uma docência adequada e diferenciada.

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