a inter-relação trabalho-saúde mental

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- A INTER-RELAÇAO TRABALHO-SAÚDE MENTAL: UM ESTUDO DE CASO Edith Sellgmann Silva Professora do Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da EAESP/FGV. * RESUMO: A autora, ap6s sintetizar algumas das vertentes de estudo e conceitos atuais na temática da inter-relação trabalho-saúde mental, apresenta um estudo de caso indivi- dual. Trata-se do caso de um mecânico industrial do setor si- derúrgico que desenvolveu um quadro psicopatol6gico. A evolução de manifestações de fadiga crônica e desenca- deamento de uma crise mental aguda são examinadas em suas correlações ao hist6rico de vida e trabalho e a dinâmicas re- feridas às condições e à organização do trabalho no empre- go atual. * ABSTRACT: The author, afier sinthesizing some of the study sources and present concepts concern to the interrelation between work and mental health, shows a study on an indi- vidual case. It deals with a case of an industrial-mechanic who works in the siderurgical area and had developed psycopathologic manifestations. The evolution of the chronic fatigue expressions and the unchain of a sharp mental crisis are examinated on their co-relations with the work life, as well as with the dynamics related to the work conditions and organization in the present job. * KEY WORDS: mental health, occupational mental health, work health, work psychopathology. * PALAVRA5-CHAVE: Saúde mental, saúde mental ocupacional, saúde do trabalho, psicopatologia do trabalho. 70 Revista de Administração de Empresas São Paulo, 32(4): 70-90 Set./Out. 1992

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Trabalho e saúde

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  • -A INTER-RELAAOTRABALHO-SADE MENTAL:UM ESTUDO DE CASO

    Edith Sellgmann SilvaProfessora do Departamento de Fundamentos Sociais eJurdicos da EAESP/FGV.

    * RESUMO: A autora, ap6s sintetizar algumas das vertentesde estudo e conceitos atuais na temtica da inter-relaotrabalho-sade mental, apresenta um estudo de caso indivi-dual. Trata-se do caso de um mecnico industrial do setor si-derrgico que desenvolveu um quadro psicopatol6gico. Aevoluo de manifestaes de fadiga crnica e desenca-deamento de uma crise mental aguda so examinadas em suascorrelaes ao hist6rico de vida e trabalho e a dinmicas re-feridas s condies e organizao do trabalho no empre-go atual.

    *ABSTRACT: The author, afier sinthesizing some of the studysources and present concepts concern to the interrelationbetween work and mental health, shows a study on an indi-vidual case. It deals with a case of an industrial-mechanic whoworks in the siderurgical area and had developedpsycopathologic manifestations. The evolution of the chronicfatigue expressions and the unchain of a sharp mental crisisare examinated on their co-relations with the work life, as wellas with the dynamics related to the work conditions andorganization in the present job.

    * KEY WORDS: mental health, occupational mental health,work health, work psychopathology.

    * PALAVRA5-CHAVE: Sade mental, sade mental ocupacional,sade do trabalho, psicopatologia do trabalho.

    70 Revista de Administrao de Empresas So Paulo, 32(4): 70-90 Set./Out. 1992

    UsuarioTypewritten TextAPASilva, E. S. (1992). A Inter-relao Trabalho-sade Mental: um Estudo de Caso. RAE-Revista de Administrao de Empresas, 32(4), 70-91.ABNTSILVA, E. S. A Inter-relao Trabalho-sade Mental: um Estudo de Caso. RAE-Revista de Administrao de Empresas, v. 32, n. 4, set-out, p.70-91, 1992.

  • SADE MENTAL E TRABALHO

    A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENTAL...

    Os estudos referentes qualidade de vida no trabalho cada vez maisvm enfatizando a importncia das inter-relaes trabalho-sademental. A temtica vem despertando interesse tanto entre os adminis-tradores da rea de sade quanto entre aqueles que planejam egerenciam o trabalho no setor industrial e em diferentes tipos do setortercirio.

    Os fatores subjetivos e psicossociais vm sendo identificados naanlise de acidentes de trabalho, do absentesmo e na busca de expli-caes para disfunes diversas, bloqueios de comunicao, perdas dequalidade do produto e incidentes que prejudicam o processo produ-tivo.

    Nas estatsticas brasileiras de auxlio-doena, o peso da morbidadepsiquitrica aspecto relevante e notrio. O desgaste mental, incidindoem empregados experientes e responsveis, ocasiona incalculveisperdas, tanto em termos humanos quanto financeiros, simultaneamenteexpressos a nvel da sade e da produo.

    Para os planejadoresque atuam na progra-mao da prestao deservios de sade, ficaatualmente evidente anecessidade de estabe-lecer vias de integraoentre as atividades deSade Mental e as deSade do Trabalho. Issosignifica, entre outrosaspectos, introduo denovos contedos nosprogramas de treinamento destinados ao pessoal de Sade.

    Por outro lado, tanto os profissionais de Sade que atuam junto sempresas quanto os que desenvolvem atividades em rgos da Previ-dncia Social encontram freqentemente situaes cujo esclarecimen-to epidemiolgico ou clnico, no que diz respeito a transtornos mentais,exige conhecimentos de Psicopatologia do Trabalho.

    Do mesmo modo, na administrao de empresas e na administraopblica, a identificao de aspectos ambientais e organizacionais im-plicados na gnese ou desencadeamento de "doenas", tanto humanasquanto da produo, poder ser mais acurada a partir de um novoenfoque.

    O contexto social e o "territrio" prprios da empresa no qual decor-re o cotidiano do trabalho e das relaes interpessoais encontram-se emconstante inter-relao. Assim, os reflexos das conjunturas se fazemsentir no interior das empresas, da mesma forma que o mundo dotrabalho ir repercutir externamente.

    Existem situaes no interior das empresas,geralmente identificadas simultaneamente pelasgerncias, setor de RH e servios mdicos dasempresas que os possuem - em que crescem astenses e suas repercusses a nvel dosdesempenhos, dos conflitos interpessoais e daecloso de queixas Nnervosas" oupsicossomticas.

    Situaes de mal-estar. Situaes de tenso vivenciadas coletiva-mente se expressam em adoecimentos individualizados. A Epide-miologia oferece metodologia e instrumentos para estudar associaesentre as variveis de diferentes esferas dos ambientes (fsico e social) eo aparecimento de diferentes patologias. As observaes e registrosrealizados nos servios de atendimento mdico, juntamente com re-gistros de absentesmo e outras verificaes, permitem identicar, apartir de uma perspectiva epidemiolgica, duas situaes:

    1992, Revista de Administrao de Empresas / EAESP / FGV, So Paulo, Brasil. 71

  • l1~QCASES

    1. MCQUEEN, D.V.' eSIEGRIST, J. Social Factors intheetilogy ofchronic disease: anoverview, Soe. Sei. Med.6:35367, 1982; SELlGMANNSILVA, Edith. "Sade Mental eTrabalho". In TUNDIS, S. eCOSTA, N. (org.) Polticas deSade Mental no Brasil, p. 217-88, Ed. Vozes/Abrasco, 1987;___ o Crise Econmica,Trabalho e Sade Mental. InANGERAMI, W. (org.) - Crise,Trabalho e Sade Mental noBrasil, So Paulo, pp. 54-132,Ed.Trao, 1986; _Desgaste Mental no TrabalhoDominado (Em Publicao).

    2. Prevalncia: termo utilizadoemEpidemiologiaparadesignara proporode casos de deter-minada doena em uma dadapopulaoemdeterminadomo-mento ou perodo delimitado.

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    1. Ocorrncia elevada de crises. Existem situaes no interior dasempresas - geralmente identificadas simultaneamente pelas gernci-as, setor de RH e servios mdicos das empresas que os possuem - emque crescem as tenses e suas repercusses a nvel dos desempenhos,dos conflitos interpessoais e da ecloso de queixas "nervosas" oupsicossomticas. Podemos, a, caracterizar uma elevao de episdiosclnicos agudos: "crises nervosas"; crises de taquicardia; episdios demal-estar rotulados nos servios mdicos como "distonia neuro-vegetativa"; crises de hipertenso arterial e mesmo infartos cardacosfulminantes. Do ponto de vista epidemiolgico, pode-se ento carac-terizar aqui uma situao de maior incidncia de episdios agudos.(Lembrando que o termo incidncia diz respeito ao surgimento de"casos novos" de doena dentro de determinado perodo de tempo.)

    Essa situao coresponde a circunstncias nas quais presses espe-cialmente fortes exarcebam o cansao e a tenso emocional dos em-pregados. o que pode ser registrado em perodos correspondentes intensificao de produo ou quando so anunciadas transformaestecnolgicas e / ou organizacionais. Apresentam geralmente um car-ter reativo. Circunstncias de ordem conjuntural- como recessoeconmica - nas quais aumenta a insegurana no emprego e efetiva-mente muitos assalariados so dispensados, representam igualmentemomentos em que se intensificam exigncias que atingem a esferamental. Assim poder ocorrer um aumento de atendimento de crisesde ansiedade e de suas diversas expresses psicossomticas - epis-dios de taquicardia, sufocao, diarrias nervosas etc., no setor mdicode uma empresa determinada na qual estejam ocorrendo grandes mo-dificaes. Mas tambm em setores de produo, regies ou pasesafetados por crises, os registros psiquitricos refletem tais impactos.'Em tais situaes, tambm o aumento das tentativas de suicdio mereceespecial ateno.

    2. Situaes em que h maior prevalncia' de distrbios da esfera"psi". Vm sendo estudadas em determinados setores de atividadesformas de organizao do trabalho, ou, ainda, com respeito a algumasprofisses - nas quais os riscos mentais tm sido constatados commaior evidncia. Vrios desses estudos correlacionam a estrutura demorbidade "psi" a constelaes de fatores de risco que interagem nasituao laboral, tornando possvel identificar os processo que atuama nvel do cotidiano, sincronicamente.

    Ao mesmo tempo, indispensvel considerar que existe tambm umcarter cumulativo em muitos destes processos, quando examinadosem perspectivas longitudinal, ao longo do decorrer do tempo - querna biografia dos indivduos, quer na histria dos coletivos de trabalho.Para o entendimento dos processos em causa, o exame em perspectivadiacrnica, por conseguinte, se torna necessrio. Especialmente nosestudos que investigam as razes pelas quais em determinadas em-presas ou reas especficas das mesmas, ou mesmo em certas ocupa-es, ocorrem maiores ndices de alcoolismo, depresses e transtornospsicossomticos, anlises longitudinais tm proporcionado conside-rvel esclarecimento. Assim, o histrico de uma empresa - em seusvrios momentos organizacionais e tecnolgicos - poder explicitarem muito a situao psicossocial do coletivo de seus empregados.

    A importncia da biografia ocupacional foi especialmente bem es-tudada em investigaes referidas doena coronariana e ao enfarte domiocrdio, em que a nvel das trajetrias de vida laboral puderam ser

  • 3.MASCHEWSKY,Wemer. TheState of Stress and StrainResearch.lnternationallnstitutelor Comparative SocialResearch,Berlin,9I1VG,Papers,1982; DEJOURS, Christophe."Itineraire Theorique onPsychopathologie du Travail",Prevenir, n 20, Marseille, 1990.

    A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENTAL...

    identificados os processos psicossociais conectados ao trabalho que ti-veram lugar cumulativamente.' Portanto, tambm para a abordagemclnica, a considerao da dimenso psicossocial do trabalho oferecesubsdios que podero ser utilizados tanto para fins diagnsticosquanto para objetivos preventivos, uma vez identificadas as constela-es de risco e as possibilidades de interveno.

    A COMPLEXIDADE DA TEMTICA

    Numa tentativa de sintetizar a complexidade dos fenmenos queconectam a instncia psquica individual e os diferentes mbitos dasesferas sociais nos quais se insere, vale considerar o que segue.

    a) Existe uma interatuao dinmica e continuada entre instnciapsquica (individual) e experincia laboral (coletivo micro-social);

    b) As dinmicas que se processam articulam vivncias individuais,que pela via de intersubjetividade atingem a instncia coletiva.

    c) O sofrimento vivenciado pelos indivduos, atravs dessas conexes,d ensejo para que a nvel coletivo duas formaes tenham lugar, dandoorigem a duas expresses: o sistema coletivo de defesa contra o sofrimentoe o sistema de resistncia emancipatria e de compromisso tico,

    Esses dois sistemas coletivos foram profundamente estudados porDejours', que a partir de 1980 publicou uma srie de estudos sobre oassunto, em textos que vm marcando os desenvolvimentos tericos daPsicopatologia do Trabalho de enfoque psicanaltico. Pharo" realizaimportante elaborao terica sobre a intersubjetividade, a cujo nvelse desenrolariam, por exemplo, os fenmenos de intercompreenso einteratividade, nos espaos "micro" do cotidiano laboral. Nesses es-paos se constrem uma tica e uma conscincia, vinculadas a signifi-cados vivos na conscincia dos agentes, segundo o mesmo autor.Dejours", ao analisar os fenmenos intrapsquicos, os intersubjetivos eas configuraes assumidas a nvel "micro" pelos coletivos de trabalho,no deixa de apontar que as sobredeterminaes da advindas do mbitomacrossocial esto presentes, quando reafirma que "a organizao dotrabalho se encontra, em definitivo, sobredeterminada pelas relaes sociaisde trabalho"?

    Evidentemente, essa viso terica com respeito natureza e di-nmica dos fenmenos em que o sofrimento pode ou no dar lugar amanifestaes de doena, ope considervel dificuldade a um estudode "riscos mentais do trabalho" dentro da abordagem epidemiolgica.A propsito, Dejours considera que diferentes abordagens - inclusivea epidemiolgica e todas as que se baseiam no conceito de stress - noso apropriadas" para elucidar as complexidades das condutas singulares, dasconstrues coletivas e das articulaes entre os dois registros do singular edo coletivo". 7 As pesquisas destinadas a estudar estes processos devemser, conforme o autor, de carter eminentemente qualitativo.

    Em uma outra perspectiva terica, categorizaes de "fatorespsicossociais de risco" tm sido utilizadas pelos diferentes autores epesquisadores que se filiam corrente que estuda repercusses dotrabalho na sade psicossocial em termos de stress. Vale destacar areviso realizada por Kalino" dentro desta perspectiva, bem como asinvestigaes e modelos desenvolvidos por karasek e Theorell", assi-nalando, ainda, que considervel ampliao do conceito tradicional destress poder ser verificada nestes estudos.

    4. DEJOURS, C., DOPPLER, F.e LOGEAY, P. "Psychanalise etTravail: InterventionauColloque"Champ Social et Inconseient".CentreNacionalde laRechercheScientilique (C.N.R.S.), p.9,1983; . Christophe,A loucurado trabalho.Ed.Obor/Cortez, p. 163, 1987;___ .. "Travial et SantMentale:de l'Enquetea l'Action",Premieres Journes dePyschologie du Travail-Paris,1989; . "ItineraireTheorique on Psychopathologiedu Travail", Prevenir, n 20,Marseille, 1990.

    5. PHARO, Patrick. Questions la Psychopathologie du Travail.In DEJOURS, C. (org.) Plaisir etSouflrance dans leTravail,Tome11,p.11-27, Ed.de I'AOCIP,Paris,1988.

    6. DEJOURS, Christophe."Itineraire Theorique onPsychopathologie du Travail",Op. cil.

    7. Traduo e grilo da autora.

    8. KALlNO, R. Assesment 01occupactional stress. In O.M.S.Epidemiology 01 occupationalhealth-Copenhagen. EuropeanSeries, n 20, 1987.

    9. KARASEK, R. e THEORELLI,T. Healthy Work-Basic Books,New York, Inc.,1990.

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  • j]~D CASESEssa abordagem tem sido compatibilizada com estudos epide-

    miolgicos, que continuam, no obstante, oferecendo muitos desafiospara atender a complexidade das interaes envolvidas. Esforos arespeito tm sido desenvolvidos por diferentes pesquisadores+

    Nos estudos centrados na anlise das repercusses de trabalho, emtermos de desgaste, os aspectos sociais de diferentes mbitosmacros sociais da empresa e das estratgias de controle que esta impri-me organizao do trabalho, tm merecido ateno especial.

    Outras investigaes ainda tm se detido no estudo da cultura or-ganizacional.

    A extenso e complexidade da temtica exige que se considere umcampo interdisciplinar para tais estudos: o campo da Sade Mental doTrabalho.

    ASPECTOS NA INTER-RELAO TRABALHO-ESFERA MENTAL

    Os componentes da instncia trabalho que esto envolvidos na di-nmica originadora destas perturbaes pertencem a diferentes cate-gorias e se inserem em diferentes nveis que vo do macros social ao

    individual e geralmenteinteratuam de formacomplexa. Cabe tam-bm dizer que essescomponentes e os fen-menos em que tomamparte tm sido estuda-dos em distintas abor-

    Os avanos tecnolgicos cada vez maisaumentam as exigncias cognitivas, -determinando esforos mentais sempre maiores.

    10.KARASEK,R.& THEORELU,Op. cit.; SELlGMANN SILVA,Edith. Metodologia de Pesquisaem Sade Mental do Trabalho.Relatrio de Pesquisa/CNPQ,1984/85.

    11. DEJOURS, Christophe, Aloucura do trabalho. Op. cit.

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    dagens tericas, que j constituem ampla literatura especializada. Por-tanto, apenas ser possvel delinear aqui algumas informaes sucin-tas sobre alguns dos aspectos em causa.

    O sistema coletivo de defesas contra o sofrimento

    Conforme os estudos realizados por Dejours e assumidos pelo grupoque, ao lado deste autor, vem desenvolvendo importante sistematiza-o da Psicopatologia do Trabalho, estas defesas coletivas nocorrespondem lgica dos Setores de Medicina e Segurana do Tra-balho. Estando em grande parte voltadas para tornar suportvel epossvel a permanncia em situaes perigosas de trabalho, caracteri-zam-se pela inverso e pela eufemizao. Assim, no caso de situaesque ameaam a integridade fsica do trabalhador, este assume um pa-pel ativo e desafiante em relao ao perigo, que pode ser tambm de-preciado e ridicularizado. Isso explica a freqncia da no utilizao deEquipamentos de Proteo Individual (EPls), por exemplo, bem comoda prtica de certas ''brincadeiras'' em que h evidente conotao deexorcizao do perigo. 11 Evidentemente, esta explicao do no uso dosEPls no se ope a outras razes muito objetivas - como o desconfor-to e at a inadequao que muitos destes equipamentos representampara garantir os objetivos de proteo.

    Aspectos vinculados natureza e ao contedo de tarefas

    Existem tarefas que por sua natureza e contedo envolvem a esferapsicoafetiva. Os exemplos poderiam ser numerosos. Lembremos as si-tuaes que envolvem riscos para a prpria vida ou integridade fsica;as que exigem permanente e intenso auto-controle emocional; as que

  • 12.PPIN, M. L'Organisation duTravail Post, Paris, Ed. del'Anact, 114 pgs, 1987.

    A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENTAL...

    implicam em elevadas responsabilidades com vidas humanas, comvalores vultuosos ou com a prpria continuidade da produo.

    A estrutura temporal do trabalho

    Abrange distintos aspectos temporais como: a durao das jornadas,sua distribuio em termos diurnos e noturnos e a organizao deturnos; distribuio das folgas, considerando tambm quais os dias dasemana em que ocorrem (pelo bvio interesse de que possam coinci-dir com fins-de-semana); dispositivos referentes s pausas (quantida-de, durao e qualidade); flexibilidade ou prescrio rgida dos ritmos;presses de tempo referidas ao desempenho de etapas das rotinas detrabalho. No caso do regime de trabalho em turnos alternados -tambm denominados turnos de revezamento - inmeros estudos tmsido realizados comprovando a nocividade deste sistema para a sade,com especial nfase na forma como atingida a sade psicossocial eafetada a fisiologia neuroendcrina e digestiva."

    A densidade do trabalho em especial a densidade das atividades cognitivas

    Este aspecto vem merecendo muita ateno, na medida em que osavanos tecnolgicos cada vez mais aumentam as exigncias cognitivas,determinando esforos mentais sempre maiores. Na medida em queessas atividades se desenvolvem no decorrer de jornadas longas e sosubmetidas a presses de produtividade, ocorrem repercusses emtermos de fadiga e de irritabilidade, que se tornam profundamentenegativas. Fica patente nesta observao a necessidade de estudar demaneira conjunta os diferentes elementos da situao de trabalho, vis-to que se torna insuficiente estudar o volume de atividade mental exi-gido, sem considerar a dimenso temporal na qual incide tal exigncia."

    o controle um aspecto que incide fortemente na subjetividade e, simultanea-

    mente, a nvel do coletivo de trabalho. H que considerar o controlecomo uma moeda de duas faces: a do controle que exercido sobre oassalariado e a do controle que este exerce sobre a realizao de suasprprias atividades laborais. A primeira face, a dos nveis e formasde dominao, a segunda, corresponde ao espao de autonomia dentrodo qual podem ser tomadas decises e aplicados os potenciais criativos.

    Vale assinalar que nas empresas ditas modernas, a sutileza do poderorganizacional associa o incremento do controle exercido sobre o as-salariado aos estmulos que, dentro do espao de autonomia,conduzam ao aumento da produtividade e das inovaes que possamfavorecer os interesses da empresa, ao mesmo tempo que deixam um"espao de prazer" ao empregado, promovendo assim sua coaptao,num processo bem analisado por Pages e colaboradores."

    Formas sofisticadas de controle surgem tambm nos processosautomatizados e computadorizados. A partir do controle embutido nosprprios equipamentos, manifestaes psicolgicas de insegurana somuitas vezes suscitadas, podendo assumir intensidade e, inclusive, darlugar a vivncias de estar sendo perseguido. A ansiedade vinculada atais situaes poder acarretar no apenas a intensificao da tenso eda fadiga mental, como ocasionar inadequao das respostas em situ-aes de emergncia. O dispositivo que funciona como "controladorinvisvel" muitas vezes nem chega a ser identificado pelos emprega-

    13. WISNER, Alain. La densitdu Travail. In WISNER, A. Testes Generaux, IV -1981,1985,pp. 43-45, Paris, 1986.

    14. PAGES, M.; BONETTI, M.;GAULEJAC,V. eDESCENDRE,D. O Poder das Organizaes,So Paulo, Ed.Atlas, 234 pgs.,1987.

    75

  • 11m CASES

    15. WISNER, Alain. Op. cito

    76

    dos, o que torna a vivncia de estar sendo vigiado particularmente in-quietante.

    Necessidades psicolgicas

    o atendimento referente a diferentes necessidades psicolgicas for-temente vinculadas preservao da identidade social, em valores es-senciais que muitas vezes se reportam prpria dignidade, precisa serlevado em conta. Mencionaremos apenas uma dessas necessidadescomo exemplo: a importncia de perceber reconhecimento social nasituao de trabalho.

    Nas situaes em que, ao invs de um reconhecimento social positi-vo, o trabalhador se sente como alvo de rejeio, o enfrentamento destasituao se torna especialmente penoso e, freqentemente, configuraameaa sade mental.

    Aspectos do ambiente fsico, qumico e biolgico do local de trabalho

    Suas repercusses na esfera mental se fazem quer diretamente, querpela mediao da organizao do trabalho, sempre que imposies demaior tempo de exposio a condies desfavorveis, intensificao deritmos de trabalho e outros fatores organizacionais atuem determi-nando, inter-relacionadamente, a dimenso dos agravos. Podemosapresentar alguns exemplos:

    a) O trabalho em temperatura elevada demanda maior incremento de es-foro para a concentrao da ateno. Quanto maior a jornada de tra-balho, mais intensa ser tambm a fadiga mental, juntamente com ageral.

    b) A ao neurotxica proporcional no apenas concentrao dassubstncias txicas, mas tambm durao da exposio e inten-sidade do ritmo de trabalho."

    c) Os riscos de contaminao por microorganismo em laboratrios,hospitais e nos Servios de Sade em geral, so agravados quando aorganizao do trabalho apresenta exigncias em que se fazem sen-tir presses de tempo, diversificao de tarefas com dissociao daateno e conseqente diminuio das precaues. Deve ser acres-centado que a prpria percepo de tais situaes de risco resulta emconsidervel ansiedade.

    A singularidade individual

    O exame das inter-relaes trabalho-esfera mental, evidentementeno pode deixar de lado o indivduo, sua personalidade e a singulari-dade de seu histrico pessoal de vida e trabalho.

    O exame das situaes individuais remete prtica clnica, onde omdico se defronta com o desafio de incluir a instncia trabalho. Quaisos aspectos do trabalho que devem ser investigados, em cada situaoparticular, a nvel individual, para caracterizar os riscos "psi" e suacorrelao com o quadro clnico? Acreditamos que a exposio de umestudo de caso individual possa ser til para uma reflexo a respeito.

  • A INTER RELAO TRABALHO-SADE MENTAL. ..

    UMA HISTRIA DE "CRISE DE NERVOS"

    1. O entrevistado - situao por ocasio da entrevista

    o Sr. Jlio uITlhomemde 55 anos. Mecnico dc manuten-o em empresa de setor siderrgico,daquaJ se aposentou portempo de servio, h um ano. Reside com a esposa e quatro filhosem uma casa de alvenaria, de sua propriedade, que possui sala,dois quartos, varanda, cozinha, banheiro eum pequeno quintal.Nasceu no interior do Estado de Santa Catarina. Reside em SoPaulo h 31 anos.

    As entrevistas foram realizadas na casa do Sr. Jlio, sendoque durante partedotempo a esposa e duas filhas participaram.

    2. Histria de trabalho

    "Comecei a trabalhar aos treze anos, nt: pastoreio de ovelhas e car-neiros, no mesmo lugar que meu pai era empregado. Fiz exrcito e depoisde servir tornei a voltar 17rafazenda. Mas achei que ali no ia ter futuropara mim ..Eu tinha vontade de estudar, de progredir. Da, com 24 anos,vim para So Paulo. Naquele tempo era fcil arrumar servio. Primeirotrabalhei trs meses numa padaria, de balconista. Depois, fui pra umatecelagem: e ji l,no cilindro da mquina de rolamentos, que perdi trsdedos da mo esquerda. Foi porque um menino l do eeroio apertou semquerer um boto da mquina. Foi nessa tecelagem que eu fui registradopela primeira vez, trabalhei l seis meses, como tecelo e depois tambmna manuteno mecnica. Quando perdi os dedos, fui pro seguro. Equando voltei de trtamenio, fui mandado embora, no me aceitarammai. Fiquei unS seis 111esesSemirabalhar.mas tive oportunidade de fil-ter curso de mecnica, mcursopequeno. Eem 1951 entrei para Side-rurgicaL., como porteitoe apontador ..Fiz esses servios por trs anos.ApontadorD que anota as horas trabalhadas. Quando descobriram queeu entendia de mquinas me colocaral11COrnOoperador de mquinas dear comprimido, na Aciaria ..Fiquei nesse servio da Aciaria durante 15anos. Mas eu comecei. fazer. um curso porcorrespondncia, de graa,durante dois anos. Foi por informa~'o de um tcnico estrangeiro quetrabalhou na Siderrgica que eu consegui fazer esse curso e passei depoispr mecnico. E a Siderrgica bem que ganhou com isso, porque deixoude pagar afirma quefazaantes a manuteno dos compressores, protrabalho passar a ser feito por mim. E eu fico recebendo um pouquinhomais s, do que o que recebia antes. Eu tinha chegado a ser chamado,convidado pra trabalhar na firma estrangeira que fazia a manuteno,depois que terminei o curso. Mas na firma L. prometeram me dar chefiae um grande ordenado. Fiquei e o prometido nofoi cumprido. S depoisfoi que me passaram pra conira-meetre.mas com muito menos salriodo que tinham prometido".(Pausa) "Sabe, devido aos defeitos da mo, eusabia que no arranjava lugar em qualquer firma e tive, na minha vida,que me sujeitar a passar muita humilhao. No meu trabalho, depois,ensinei muitos outros. Homens que chegauam apoiados pela diretoria, eque depois passaram a ser meus chefes, vrios deles. Nesse tempo que eufiquei como mecnico de compressores, eu tinha horrio de entrar masno tinha hora de sair ~ era conforme o servio que eu faria. Com tan-tos anos nessa firma e com tanta responsabilidade, cheguei apenas a subirmuito pouco, a ser contramestre eficar mais de cinco anos nessa funo.

    77

  • A responsablidade era grande - cuidar dos oito compressores e aindacontrolar todo o material que chegava dos Estados Unidos pra fazermanuteno ... Olhe, eu acho que l na empresa principalmente nos lti~mos anos se oproveitaram muito do meu defeito na mo: no me promo-viam. E isso tambm porque nogostavam quando eu protestava. Eain-da mais: de eu ter sido testemunha a favor de outros operrios prejudi- .cados pela firma. Pros que trabalhavam comigo cU ensinavo tudo: o tra-balho e os direitos que o operro tem - e os homens da firma nogostavam disso. Houve um engenheiro estrangeiro que me perseguiubastante, quis me mandar embora porque eu tillha feito umas crftica8aoserros tcnicos dele e tambm aos ataques que elefazia contra os operrios.Mas quando ele viu minha ficha, que eu tinha 18 anos e nenhuma ad-vertncia, no pde fazer nada contra ,mim".

    3. A atividade na manuteno ~condies de trabalho

    "Esse trabalho era numa sala coberta, fechada. Ningum suporta-va aquele calor. Depois colocaram l quatro ventiladores, mais tarde seis.Melhorou o calor, mas piorou o barulho. f., na verdade, esses ventilado-res nem foram colocados pra gente, fo mais pra aumentar o ar pros

    Cada

    rotina era verificar cada 20 minutos os regisra e do leo. Niio dava pra tempo nesspressores. O ar de l era ente pra gente res-pirar. E o barulho era ins logo que temi'serto ou de ver os sair pra um localfora dessa sala. Lzda se escutavam os cOlnpress01es,.maEMe disseram que agora, depois que me aposentei, fizeram l uma cabinefechada, pra pessoa que faz esse controle de cada 20 minutos.

    Eu tnha um superior que era o responsveL Quando o compres-sor tinha defeito, eu tinha que desmontar ele l denoutros compressores trabalhando em volta naquele bcansao, um mal-estar em todo corpo, ficava maldoendo, ali naquele servio. A dor de cabea era pelo barulho, eu sentia.

    Mas eu no trabalhava s nos compressores e nos tros. Tinhamuitas vezes que fazer manuteno tambm de outros s. Porexemplo, nos feriados, da ponte rolante.

    Meu trabalho nos compressores era assim: quando um compressortinha defeito, eu tinha que desmontar aquela parte. Nos ltimos anos euj no agentava o barulho, no agentava mesmo. ncasempre em cima da gente. Porque eles no nham emsuficiente pra trabalhar ali, faltava Punham ajudantesdespreparados pra trabalhar, a gente tinha que es r junto o tem todo,pro servio no ficar mal feito. E tinha que ser ie elesprecisavam de ar nos fornos! E eles no sabiammorar mais. Mas o servio no

    78

  • A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENT~

    at as oito, ou at mais tardtempo

    outro dia. O horrio nesse6 da

    ilo irritava, era insuportvel. Ee era constante, tambm tinha o

    o compressor estourava e a gente

    i na sala dos compressores tnha muita coisa pra aumentar o.Pe que j teve l, foi um reservatrio de ar

    que sso eu no me conformava. Porque a esta-va em perigo tanto a minha vida como a de todos os companheiros quetra am comigo. Se por exemplo a vlvula de segurana queb

    morrer todo mundo ali_ Eu redamque iear fora

    demorou um bom tempo para tique era perigde ambiente fevatrio de l.

    Outra coisa a trdentro da cabea ~parcoisa que a trepidao que muitasvezes te ia esquentar a comida num fogarero que tmha l, chegavaa car mannitas, comida-derramava tudo e a que a genteficava nervoso mesmo e sem comer... gs que d sonona gente. Penso que iorava acom o calor, com a t Eu chdoca/ar. O calor era tanto, operder todo apetite. Dentro da sala dos c011!17ressores,o calor chegava auns 50P_ Num desses desmaios pelo calor, eu cai de cima du.m compres-sor qu.e eu estava consertando, machuquei muito a perna (mostra umalonga cicatriz)_ Nesse dia eu j estava sentido ruim com o calor, masqueria terminar o servio. Foi quando de repente deu a tonteira e eu cal de cima."

    4. A falta de peas

    "Um problema que preocupava era a falta de peas. Eles queriam otrabalho. E eu dizia -Mas eu no tenho peas pra trabalhar. F.,lesficavamfazendo muita presso em cima de mim, pro trabalho sair logo, e eu sempeas. Tudo isso afetava o meu sistema nervoso. Eu ia pra casa levando() problema na cabea. ficava s pensando: Como que vou fazer ama-nh, se no tenho as peas que preciso pra consertar aquele compressor.Ficava s pensando nisso e nem conseguia conversar direito com a fa-mz1a_E perdia o sono ...

    Eu tinha que improvisar, que aproveitar peas velhas pra colocar. _Os chefes no queriam mandar buscar o material que era necessrio. Achoque era pra evitar despesas prl1firma e desse jeito eles chefes ficarem com

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  • CASES

    maior apoio da direo, conseguirem promoo e vantagens. Quantomenor despesa ~ maior produo, mais aumento pros engenheiros e ptoeoutros chefes. As vezes eu improvisava e dava certo, s vezes no dava.Eles queriam produo, I!,depois, se o servio nilo ficava bom, a queixavinha contra mim ... Se eu podia discutir esse problema com eles? Antes,11170, ficava calado. Mas, depois daquela crise de nervos, mudei. E falavamesmo: vocs querem qUI!o compressor trabalhe? Enia comprem vl-vulas, canaletas, o resto do material que precisa, que eu ponho ele novo! ...E era muito mais trabalho por causa desse problema de falta de peas no-vas: eu fazia o conserto num dia, com as peas velhas, poucos dias depoisquebrava de novo. Se o servio desse certo, a vantagem era pra eles (oschefes) ficar com mais prestgio. Se no desse, a culpa era minha ... Mas

    teve um dia que eu fuifalar com um engenhei-ro me conhecido queera do outro setor, masera tambm da diretoria.Ele ficou admirado doque eu contei sobre aspeas. Falou que nuncatinham tocado no as-sunto l nas reuniesdos engenheiros. E, de-

    pois disso, ele foi falar com os outros, e comearam a comprar mais ma-terial que precisava. rr

    5. As pertubaes sentidas

    a) O sono perturbado e a irritao

    "Eu dormia bem antes de trabalhar no turno (revezamento). Co-mecei a ter problema foi quando fui trabalhar de trs turnos e ficava nonoturno. No conseguia dormir bem de dia. Mas o problema maior desono foi depois, quando passei pro horrio de doze horas de trabalho ... Oproblema de faltar o sono era quando eu ficava pensando no servio epensando na famlia. Isso j quando eu trabalhava as doze horas segui-das. Dormia, acordava, rolava ... Qualquer barulho - criana, carropassando --tudo j me acordava. Nesta rua, os carros aceleram porque uma subida, faz muito barulho.

    "Quando passei a contramestre, a responsabilidade era muitogrande. A qualquer hora, com sono ou j dormindo, vinham a na mi-nha porta chamar: 'Tem uma mquina quebrada. Precisa ir l consertar'.

    H uns dez anos airds, eu fficava assim um pouco nervoso, quandoera na semana do turno da noite. Porque, sabe, quem trabalha de noite,nunca dorme bem de dia. E o barulho me irritava, o barulho do servio,e, depois, mesmo em casa. As crianas - sabe como criana, criana criana - querem brincar ... E eu j irritava, sentia um pouco de nervoso,mas no tanto como depois.

    A senhora, quando chegou aqui esta manh, ouviu essa msica.(aponta para o toca-discos), estaoa tocando alto. Se fosse antigamen-te, se eu chegasse em casa e estivesse msica alta, eu no agentava, euestourava. Hoje no, podem tocar' Mas eles sofreram tambm, minha[amtia sofreu, eles podem contar (faz movimento para se retirar da

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  • A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENTAL------------------------------~----------.,------~~~~~~~~~~~~~sala e deixa a entrevistadora com a esposa e as duas filhas queesto na sala. A entrevistadora insiste para que permanea ex-plicando a importncia de que todos falem e se escutem. Ele per-manece, mas demonstra sinais de inquietao).

    Pta mim ela foi me, foi enfermeira, foi tudo (est se referindo esposa). Eu agradeo estar vivo a Deus e a ela. Foi demais, o que eu passeie o que minha fmm1ia passou por causa desse nervoso meu. Eu ficavadesesperado, uma vez quebrei um copo d'gua na boca, podia ter morridona hora se no fosse a famz1ia. Eu tambm brigava com os filhos porqualquer coisa. E eu amo eles demais! Se eles estavam aqui escutandomsica, num domingo ou feriado, eu chegava e brigava com todo mun-do. Eu j vinha perturbado, de vez em quando era mais forte o nervosoera preciso um vizinho vir socorrer, me levar correndo pro convnio, todavez que minha mulher chamava, toda vez que ela via que j ia me dar oataque nervoso. L no convnio me davam uma injeo e eu voltava protrabalho. Convnio assim mesmo: atendem e depois dizem: 'Vai embo-ra, vai trabalhar. "

    Neste momento, a esposa toma a palavra:;,Ele ficava muito nervoso mesmo. Aqui em casa, teve uma vez uma

    crise muito forte, ficou muito nervoso, tentou abrir a gaveta pra tirar umafaca, e... era com ela (aponta para a filha mais velha)... at ela ficoutraumatizada. (A filha comea a soluar, passando a chorarconvulsivamente). D.Ana, a esposa do Sr. Jlio, chora tambm. Oentrevistado abraa a filha, visivelmente emocionado, murmu-rando palavras de carinho). Minha filha ... aquilo acabou ... no temmais nada! No lembra o passado ... Teu pai est bom agora. Voc ficoutraumatizada mas eu no sabia o que estava fi1zendo. Uma pessoa quandotem o sistema nervoso abalado do jeito que eu estava, claro que muitascoisas acontecem. Pior se a pessoa no tem o amparo da famlia. E eu,graas a Deus, tive a compreenslo de vocs, pacincia, carinho ... Eu, pramim naquele tempo no era homem, no era nada, nem animal. fu notinha possibilidade de raciocionar, o nervoso no deixava. E uma pessoaquando no tem raciocnio, ento o que ? ... Eu no sabia que estavamaltratando vocs. E vocs me ajudaram, faziam de tudo, a comida nahora, o remdio na hora e sempre me agradando!"

    Estamos vivendo um momento realmente dramtico naentrevista. Muitas emoes vieram tona, certamente acionadaspelas lembranas em que muita dor, violncia e culpa estavamintimamente associadas,

    b) Mgoas e emoes reprimidas

    "Pessoas que eu ajudei, que comearam depois que j estava tra-balhando J h muito tempo, pessoas que eu ensinei como um professorensina um aluno, depois, passaram a ser meus encarregados! E eu nun-ca passava daquilo. Por que? Eu sentia mgoa com essa situao, masno reclamava da injustia. Mas foi indo, foi indo, me atacando tantoaquele sentimento, e eu calado, calado, calado. Pra no desabafar. Maschegou um tempo que o esgotamento fsico foi tanto, foi tanta perturba-o, tanta a perseguio que eu no agentei mais. Meu crebro, meucorpo, meu sistema nervoso nlo agentaram mais! E a, chegou umaocasio que eu tive que ficar trabalhando 47 horas em seguida, sem virem casa. Foi quando deu a crise, porque eu no podia agentar mais."

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  • Ilt:a CASES

    c) HA crise de nervos"

    "A Acaria s pra cnco dias por ano: 19 de janeiro, Sexta-feiraSanta, 1gde maio, 7 de setembro e Natal, claro. Ficam l s os forneirose o pessoal das fossas. Mas s vezes, mesmo em um desses cinco feriados,eu tinha que ficar pra manuteno de outras partes que no pertenciamao meu servio.

    Justo num feriado, houve um problema que parou a produo e fo-ram chamar em ite.

    E que eu ue ficar 47 horas seguidas, ali nasfossas, sem vir em casa, naqu cheiro ...Eu comandando a turmal, todas aquelas pessoas me ,de noite, frio ...e eu sem poder fazer nada. com o engenheiro, propus queuma turma trabalhe duas horas, duas outra outro grupo .... Mas ele (oengenheiro) dizia: 'No, isso tem que ser feito rpido, com todo mundo' .

    ...E para mim aquilo doa. Os homens se revoltavam, revoltavamcontra mim, que era o contramestre. E eu tinha que estar ali, com eles otempo todo. O engenheiro e o encarregado geral iam dar voltas de carro,pra c, pra l ...E os homens tendo que tirar aquela sujeira com os baldes,de uma alt mau cheiro terrveL.(explica) ida sujeira pra fora,mas antes rar combaldes. O mau cheiro porque de esgoto que vem pra represada firma. Essa gua que pu. os fornos, pra fazer ()resfriamento.Muitos, pm agentar tomam pin;;;aantes de ir pra l. E isso aumenta o

    que eles cassem numa fossa daquelas, comobalho, teve caso tambm de pegarem doena

    - e re ti ide- que houve casas h uns anos atrs, de gente desse ser-vio de fossa. Ento, eu me revoltava por aquilo, j fazia muito tempo.Porque e eu dizia pro encarregado geral e engenheiro que nodmm pra uelas condies, aquele mau cheiro, eles s diziamque aquela gua suja era necessria para dar a produclo tu; laminao,noS fornos de ao ... Falavam que quanto mais depressa os homens traba-lhassem, melhor pra dar essa produo. E que o mau cheiro fazia elestrabalharern rpido, querendo terminar logo ... Quando terminamos delimpar tudo, o encarregado geral mandou ligar unta mquina e o rapazque trabalhava nessa mquina no ligou a gua, porque a gua aindaestava ruim. A mquina quase fundiu! (pelo fato da gua no ter sidoligada). A diretoria chamou o encarregado e ele disse que no haviamandado ligar nada. E descarregou a culpa por cima de mim. No diaseguinte, eu eslava fazendo um servio; !ti em cima do equipamento,quando vieram me acusar. Eu fui ficando nervoso, ficando nervoso, atque estourei! Gritei, perdi O controle, at bati com uma ferramenta noservio que eu tinhal1cabado de fazer, quebrei de novo! Se eu no tivessecapacete, tinha monido, porque acabei caindo l do alto de ponta cnbe-a! Da me levaram pro ambulatrio da firma, que riem morto, desmaia-do! Depois me levaram para ti clnica do convnio, fiquei internado unsdias. Desde esse tempo, eu venho tratando dos nervos, com psiquiatra.Mas ainda passei muito tempo sentindo mal. Voltei pro servio, massempre aquele mal, me enervando, enervando, chegou a um ponto queeu j no podia andar sozinho, Unha medo, algum da falm1ia tinha que irjunto. Deoa em mim uma decepo to grande que me deu at vontade demorrer. "

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  • A INTER-RELACO TRABALHO-SADE MENTAL..

    "Qwmdo eu tive a crise, acho que foi oesgotamento j{sico que atingiu o crebro!O esgotamento fsico levou pro esgotamento dosistema nerooso".

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  • COMENTRIOS

    1. Leitura de uma sintomatologia

    o conjunto de sintomas revelado no depoimento do Sr. Jlio e ascondies de trabalho por ele referidas conduzem, num primeiromomento, no reconheclnento do cansao crnico, isto , dasndromc de fadiga patolgica. Pois esto presentes as manifesta-i'es mais importantes da sndrome: a vivncia do cansao acumu-lado, as perturbaes do sono, dores em vrias regiCles do corpo,perda de apetite, irri tabilidade, desnimo, dores de cabea.

    Ainda outras manifestaes, entretanto, so acrescentadas pelorelato. Os desmaios esto neste caso. E o Sr. Jlio possibilita certoesclarecimento da causalidade dos mesmos, quando sua prpriapercepo os distingue em "desmaios pelo calor" e "desmaios pelonervoso".

    Entretanto, no possvel de uma forma imediatista formularcxp lica es que reduzam o entendimento da instalao dasintomatologia a relaes diretas de causa e efeito.

    -'lo estudo do caso do Sr. Jlio, alm do cansao acumulado, necessrio reconhecer o papel da coero vivcnciada pelo entrevis-tado, da frustrao de suas expectativas de ascenso funcional, bemcomo dos outros fenmenos psicolgicos e psicossociais que sedesenvolveram vinculadamente sua vida e ao seu trabalho.

    Assim o estudo descritivo de uma sintomatologia polimorfa comoa apresentada pelo Sr. Jlio pouco nos dir se no houver, simulta-neamente, uma tentativa de compreender a complexa dinmica quepreside instalao dos sintomas e evoluo do quadro psico-patolgico. Nesta dinmica, h que considerar os seguintes con-juntos de aspectos: determinaccs principais do histrico pessoal eda insero laboral do Sr. Jlio (perspectiva diacrnica, isto , lon-gitudinal); aspectos organizacionais e ambientais da situao detrabalho; defesas psicolgicas.

    1.1. Exame de algumas determinaes numa perspectiva longitu-dinal

    Os estudos de casos indi viduais nos permitem examinar situaes

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  • A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENTAL.

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    que, subordinadas a determinaes coletivas de diferentes mbitos,evoluem seguindo linhas particularizadas pelas singularidades de cadahistrico pessoal.

    O Sr. Jlio nos trouxe a viso de sua vida laboral e das inter-relaesda mesma com seu cotidiano e sua perspectiva existencial, Entretanto,o que ele nos transmitiu ao longo da entrevista, longe de ser um qua-dro esttico, assumiu o aspecto dinmico de uma experincia marcadapor transformaes. Permitiu-nos entender como suas prprias pers-pectivas em relao a seu prprio projeto de vida foram sofrendo mo-dificaes no decorrer do tempo. A maneira pela qual fluiu a entrevis-ta permite perceber a complexidade das interaes que foram se pro-cessando, entre diferentes aspectos do trabalho, da vida extra-laborale da pessoa Jlio.

    O depoimento ilumina uma dinmica que envolve fenmenos dis-tintos, que se inter-relacionam para constituir novos fenmenos, osquais vo desembocarora em desgastes ora emdefesas e/ou resistnci-as, alterando as verten-tes mental, psicossociale psicossomtica dasade do entrevistado.

    Em sua trajetriapessoal de vida laboral enas condies organi-zacionais e ambientaisde trabalho que foivivenciando ao longodo tempo o Sr. Jlio de-senvolveu suas prpriasmaneiras de lidar com as contingncias particulares a que se via sub-metido. Na busca de um entendimento do papel que tiveram estascontingncias na constituio do sofrimento mental do entrevistado, umprimeiro momento de anlise nos permite visualizar a importnciaassumida por trs determinaes que marcam sua situao laboral:

    A primeira determinao a que deriva do fato de ter sido mutila-do por um acidente de trabalho ainda na juventude. Muito cedo per-cebeu que seu campo de opes ocupacionais ficava mais restrito apartir da perda de trs dedos da mo esquerda. Assim, quando encon-trou uma empresa que o aceitou, tudo fez para ser valorizado. Buscou,simultaneamente, garantir sua permanncia na empresa e obter possi-bilidades de uma ascenso funcional. Encontrou o caminho utilizandoo curso por correspondncia que o habilitou a trabalhar como mecnicoespecializado em compressores. Mas a empresa explorou essa qualifi-cao sem compens-lo da forma que esperava. Teve que reprimir afrustrao e a raiva, pois, fora da firma que j o conhecia, no via pers-pectivas de segurana quanto a manter um emprego.

    A segunda determinao a destacar aquela que se vincula s ca-ractersticas da empresa "L" enquanto Organizao e, muito especial-mente, quanto ao modelo de gesto da fora de trabalho adotado pelamesma. Uma hierarquizao rgida e a adoo de normas disciplina-res fortemente coercitivas impedem a expresso de queixas e reivindi-caes, levando o Sr. Jlio a grandes esforos de auto-controle emocio-nal, nos quais se sente "engasgado" pelas palavras que no pode dei-xar fluir de sua garganta. A nvel de seu corpo, quando ocorrem "des-maios pelo nervoso" e "cai duro", tambm expressa a paralisia

    Na lgica da empresa o princpio de que aproduo no pode parar se sobrepe snecessidades e limites da condio humana doagente da manuteno, conduzindo a umaprtica em que no ocorrem pausas, as refeiesso sacrificadas, os ritmos se aceleram e ajornada se prolonga at que seja sanado o malque interrompeu a produo.

  • 11m CASESresultante do embate de foras contrrias: seu movimento de revolta,de um lado, e a coao silenciadora, internalizada e transformada emauto-represso, pelo outro.

    O depoimento aponta ainda uma terceira determinao: a posio doSr. Jlio na hierarquia do setor de manuteno. Essa determinao, emverdade, precisa ser apreendida em seu duplo aspecto:

    a) O de ser ele contramestre. Na posio de contramestre, encontra-se submetido a presses conflitantes: as que partem das chefias e asdaqueles que so seus subordinados. Portanto, Sr. Jlio se confrontaaqui com uma nova contraposio de foras, potencialmenteparalisante.

    Pois, mesmo na ausncia da chefia, ele tempresente na prpria cabea um lemainternalizado ("a produo no pode parar") etrabalha sob uma presso de tempo que simultaneamente "presso da produo"

    b) Estar inserido dentro do setor de manuteno, onde respons-vel por um equipamento essencial ao processo de produo. Deve serainda assinalado o fato de ser ele o nico mecnico da empresa capaci-tado para a manuteno dos compressores de ar. O que, se por um lado

    o faz sentir-se valioso eorgulhoso, pelo outrodetermina que tenhaque estar permanente-mente disponvel parachamadas de emergn-cia, mesmo durante suashoras de repouso e fol-gas. Na lgica da em-presa, o principio de quea produo no pode

    parar se sobrepe s necessidades e limites da condio humana doagente da manuteno, conduzindo a uma prtica em que no ocorrempausas, as refeies so sacrificadas, os ritmos se aceleram e a jornadase prolonga at que seja sanado o mal que interrompeu a produo.Numa escala de valores onde o desgaste do mecnico aspectominimizado.

    Para entendimento do processo de constituio do sofrimento ps-quico do entrevistado, alm destas determinaes, tambm impres-cindvel reconhecer a sucesso de perdas que emergem deste histri-co que nos trouxe.

    No fluir do tempo, aps a primeira grande perda que lhe levou osdedos, veio a perder grande parte da capacidade auditiva. Quando nosdiz que "antes eu era alegre, contador de piadas", est nos mostrando queperdeu tambm o bom humor, a alegria. Sua participao social foitambm se restringindo, pois sua sociabilidade foi sendo prejudicadapelo cansao, pelo desnimo e pela irritao. A ponto de acarretartambm perdas significativas na qualidade do relacionamento famili-ar. Assim, gradualmente, mutilaes sucessivas atingiram o corpo, avida mental fi o espao relacional do Sr. Jlio.

    1.2. Organizao e ambiente de trabalho

    Esses aspectos esto fundamentalmente sobredeterminados pela caracte-rizao da empresa ''L'' como organizao e sua poltica de pessoal.

    O relato do Sr. Jlio permite reconhecer as interaes pelas quaisdiferentes aspectos organizacionais e ambientais do trabalho conver-giram para construir seu cansao e sua tenso nervosa.

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  • 16. FREUD, Anna. O ego e osmecanismos de defesa, Rio deJaneiro, Biblioteca UniversalPopular, 189 pgs, 1968; HAR-TMANN, Heinz. Psicologia doego e oproblema da adaptao.Rio de Janeiro, Biblioteca Uni-versal Popular, 103 pgs. 1968.

    A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENTAL...

    As longas jornadas, o regime de turnos alternados, as pausas insufi-cientes para o descanso, as presses e a responsabilidade cotidianas,tudo isto convergiu para aumentar sua sobrecarga de trabalho, porconseguinte, sua fadiga e seu desgaste ao longo dos anos de trabalhona Siderrgica "L".

    O entrevistado contou como sua irritabilidade foi sendo exacerba-da, simultaneamente, pelo calor, pelo barulho, pelas vibraes (trepi-dao). Falou-nos tambm de um "abafamento" de dupla face, expressoao mesmo tempo por um ambiente fsico onde o ar era insuficiente epor uma situao funcional em que vivenciava outro tipo de abafa-mento: aquele que impedia a expresso de sua irritao e revolta. Emdiferentes trechos da entrevista mencionou as presses a que se senti-ra submetido. A "presso de chefia" se confunde por vezes com a"presso da produo", porm nem sempre. Pois, mesmo na ausnciada chefia, ele tem presente na prpria cabea um lema internalizado ("aproduo no pode parar") e trabalha sob uma presso de tempo que simultaneamente "presso da produo". Pois sabe que a continui-dade da produo depende do equipamento a ser reparado.

    Outro aspecto relevante diz respeito falta de promoo, como ve-remos adiante.

    1.3. Defesas psicolgicas

    Mecanismos psicolgicos de defesa costumam ser acionados pelaspessoas sempre que necessrio lidar com angstia ou suportar si-tuaes externas capazes de gerar sofrimento psquico."

    Nos processos mentais humanos tm sido estudados diferentesmecanismos de defesa, valendo destacar negao, a auto-represso, aracionalizao, diferentes formas de fuga ou evitao, o deslocamentoe a idealizao. Considera-se que prejuzos importantes para a sademental podem advir do uso constante e exarcebado destes mecanismos.Por outro lado, eles fazem parte da vida mental, sendo importantes naauto-proteo contra o mal-estar psquico. A sublimao reconhecidacomo um mecanismo de elevada importncia na preservao da sademental, sendo que esta mesma sublimao se associa, fundamental-mente, ao exerccio de atividades laborais significativas."

    A anlise da entrevista do Sr. Jlio possibilita identificar o modo peloqual alguns mecanismos psicolgicos de defesa foram utilizados pelomesmo.

    A represso de seus sentimentos de revolta e mgoa foi um meca-nismo adotado durante muito tempo. Foi certamente o temor de perdero emprego ou de ser seriamente prejudicado em suas relaes com aschefias o que presidiu ao intenso esforo de auto-controle emocionalde que nos fala. E como no podia extravasar sua raiva e indignaono local de trabalho realizou o deslocamento de sua irritao para oambiente familiar. A o barulho e mesmo a msica, surgiram comoimportantes "detonadores" de suas exploses domsticas. Explosesque provocaram conflitos dolorosos e desespero, em uma dinmica que,alm de ocasionar sofrimento tambm famlia, gerou sentimentos deculpa que agravaram a perturbao psquica do prprio Sr. Jlio.

    A medida que foi progredindo o desgaste mental, a auto-repressofoi se tornando um recurso defensivo cada vez menos eficaz. O prprioauto-controle, exacerbado, passou a funcionar incrementando a tensonervosa.

    O esforo desenvolvido e as presses enfrentadas ao longo de 47horas desencadearam o colapso final de sua j enfraquecida defesa. Pois

    17. DEJOURS, C., DOPPLER,F. e LOGEAY, P.Op. cit.

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  • 1J!1D CASESfoi no momento da crise que se rompeu a couraa da auto-represso eeclodiu a exploso dos sentimentos abafados.

    Tudo indica que por muito tempo o Sr. Jlio procurou negar a ex-tenso da explorao de que era alvo pela empresa.

    Por outro lado, a importncia e valorizao conferidas suaespecializao como mecnico de compressores constituram motivosde satisfao e orgulho que contriburam para fortalecer seu nimo esua auto-imagem. Essa vivncia de auto-realizao foi intensificadatambm pelo fato de ter atuado "como um professor", transmitindo aoutros seus conhecimentos e prticas especializados. Muito embora,mais tarde, tenha experimentado profunda mgoa pelo que sentiu comoimensa decepo e injustia para com seus mritos: seus discpulosforam promovidos, passaram a receber melhores salrios do que ele ealguns se tornaram seus superiores hierrquicos. Entretanto, seu de-poimento transmite a idia de que o Sr. Jlio havia, durante bastantetempo, mantido altas esperanas de ter seus esforos reconhecidos erecompensados, dentro de uma empresa que inicialmente visulizaracomo "boa" e "justa", atravs de seus mecanismos psicolgicos deidealizao.

    2. Breve estudo do apoio familiar e das resistncias

    Ao lado dos elementos e aspectos identificados como adoecedores,h que buscar, tambm, a compreenso das resistncias individuais ecoletivas, suporte ou estruturas de apoio informal. Comecemos no casodo Sr. Jlio, por algumas consideraes sobre a instncia familiar, quese constituiu, de acordo com a entrevista, um suporte importante.

    2.1.O apoio familiar

    O ambiente familiar foi o nico lugar para onde o Sr. Jlio pde darevaso s manifestaes de sua ansiedade. O deslocamento da expres-so de sua raiva, do local onde essa sua revolta era suscitada para suaprpria casa, se constituiu, nas palavras do Sr. Jlio, em algo "trauma-tizante".

    Entretanto, foi tambm sua famlia que o ajudou a suportar as ten-ses decorrentes de seu trabalho, na medida em que lhe deu apoioafetivo.

    Num momento de grande emoo, dirigindo-se famlia durante aentrevista, o Sr. Jlio expressou o quanto se sentira apoiado pela ajudae pelo carinho recebidos. Demonstrou, assim, como esse mesmo apoiofoi importante para a resoluo da fase mais aguda de sua perturba-o mental quando necessitou inclusive do acompamento de seus fa-miliares para lidar como os sintomas fbicos (o medo de andar na ruasozinho) que o acometeram.

    Uma anlise mais profunda seria necessria, para dar melhor contade toda a complexidade das inter-relaes famlia-trabalho e da formacomo a vida psquica e as relaes intra-familiares sofrem as repercus-ses indiretas da experincia laboral do trabalhador entrevistado.

    2.2. Resistncia individual

    Ocorreu alguma resistncia individual do Sr. Jlio estrutura e aospoderes que o superexploravam. Essa resistncia, dentro de um siste-ma fortemente autoritrio e repressor, foi a princpio sutil, exercendo-se atravs das tentativas de, usando sua inteligncia e o estudo, quali-

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  • 89

    A INTER-RELAO TRABALHO-SADE MENTAL...

    ficar-se e assumir funes mais valorizadas e menos penosas. O xitono foi suficiente, logo percebeu que sua nova capacitao tambmpassava a ser superexplorada.

    Mencionou ainda alguns protestos e reclamaes que realizou, comono caso em que denunciou o risco representado pelo depsito de ar nasala dos compressores. Falou tambm de ter sido solidrio, testemu-nhando a favor de operrios prejudicados pela empresa e ensinando"os direitos que o operrio tem".

    2.3. Resistncias coletivas. Comentrio sobre sua ausncia no relatodo Sr. Jlio.

    O relato deixa de mencionar as resistncias organizadas do coletivode trabalhadores da empresa siderrgica em que o entrevistado haviatrabalhado. Nesta empresa, entretanto, por muitos anos ocorreramfortes movimentos dirigidos a reivindicar direitos negados pela mes-ma - como a remunerao dos domingos e das horas-extras trabalha-das em conformidade com a legislao - e a instalao de refeitrios,por muito tempo inexistentes na empresa.

    Ocorre a possibilida-de de que a posio decontra-mestre, alida vulnerabilidade quesentia por ser mutilado,tenham infludo paraque o entrevistado notivesse estado mais pr-ximo de tais resistnciase por isso no as tenhamencionado. Por outrolado, essa falta de parti-cipao pode talvez serrelacionada, tambm, no prprio cansao e desnimo vivenciados. Valelembrar, a propsito, a importncia que pode ser atribuda fadiga naconstituio do processo de alienao.

    A diversidade das situaes de trabalho e asrpidas mudanas tecnolgicas e organizacionaisdos processos em que se insere a atividadelaboral, exigem que a identificao dascircunstncias tensigenas seja realizada deforma continuada, com participao dos quetrabalham nos setores pesquisados.

    3. Trs questes de ordem prtica

    a) A questo do diagnstico

    Do ponto de vista das regras institucionalizadas nos servios mdi-cos, h exigncia de que o mdico registre um parecer diagnstico. Odesafio integrar adequao cientfica e responsabilidade social,quando casos como o do Sr. Jlio so atendidos, seja pelo consultante,seja pelo perito. Certamente os desafios colocados ao mdico sero di-ferentes conforme o tipo de servio e a funo exercida pelo mesmo.

    Mas em qualquer situao, precisa ser evitada a utilizao de.rotulaes diagnsticas genricas e vagas - como "D.N.V." (distonianeurovegetativa) ou "agitao psicomotora" - e mesmo de diagns-ticos psiquitricos cujo enunciado no revele os aspectos laborais naorigem do quadro clnico. Por exemplo, aplicar ao Sr. Jlio um diag-nstico mais tradicional de "psiconeurose mista" ou de "neuroseconversiva com componentes fbicos", constituiria um modo de ocul-

  • l1!1D CASES

    18. DEJOURS, Christophe."Itineraire Theorique onPsychopathologiedu Travail',Op.cit.

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    tar o vnculo da sintomatologia com a instncia trabalho. Felizmenteas classificaes mais recentes dos distrbios mentais j incluem cate-gorias que permitem registrar o carter reativo da sintomatologia emesmo, oassinalamento do tipo de situao envolvida (laboral, fa-miliar, escolar etc).

    Assim, mesmo considerando a especificidade dos aspectos indivi-duais presentes em qualquer situao de adoecimento, fica a assegu-rada a refrencia determino laboral.

    b) A questo teraputica

    Atendido em sua "crise de nervos", o Sr. Jlio recebeu medicaotranqilizante, sendo posteriormente atendido regularmente por umpsiquiatra que, num processo de psicoterapia, conduziu-o tanto re-misso dos sintomas quanto a uma viso mais clara do que haviaocorrido consigo. Foi assim que pde perceber a extenso em que suaauto-represso - ou, como o disse, seu "abafamento" - contribuiupara a ecloso da crise aguda. Posteriormente, mudou sua atitude di-ante das presses do trabalho. Por exemplo, a prposito da antes aflitivasituao de falta de peas, perdeu o receio de verbalizar, j no se an-gustiava por ter que improvisar peas "novas" de modo precrio, epassou a exigir o material necessrio ao seu servio.

    No obstante, torna-se evidente que h um grande limite paraqualquer ao teraputica eficaz, sempre que inexistir uma transfor-mao efetiva da situao de trabalho vinculada constituio do so-frimento mental, e, portanto, o reconhecimento da dimenso coletivadaquilo que o origina.

    c) A questo preventiva

    A magnitude do desafio preventivo certamente no poder seranalisada neste pequeno espao, uma vez que passa pela complexida-de da dinmica origina dor a dos distrbios e, portanto, obrigatoria-mente, pela organizao do trabalho.

    A diversidade das situaes de trabalho e as rpidas mudanastecnolgicas e organizacionais dos processos em que se insere a ativi-dade laboral, exigem que a identificao das circunstncias tensigenasseja realizada de forma continuada, com participao dos que traba-lham nos setores pesquisados."

    Do mesmo modo, essa participao ser necessria para definir eimplementar medidas preventivas integradas s transformaes dotrabalho que tero este carter.

    O objetivo preventivo pode ser confrontado por objees associadasao temor de incremento de custos. Nestas discusses, convir lembrarsempre, ao lado dos argumentos de ordem tica, que tambm do pontode vista econmico, o interesse em investir no capital humano exige serseriamente considerado pelas empresas.

    A informao em Sade Mental do Trabalho, desse modo, passa aser instrumento importante, tanto para representantes da empresaquanto para representantes dos empregados, por ocasio das negocia-es que buscam harmonizar os objetivos econmicos e a humanizaodo trabalho. Q