a iniciativa popular como instrumento da democracia

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  • 7/24/2019 A Iniciativa Popular Como Instrumento Da Democracia

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    A INICIATIVA POPULAR COMO INSTRUMENTO DA DEMOCRACIA

    PARTICIPATIVA

    Professor Doutor Hlcio Ribeiro1

    Professor da Faculdade de Direito - UPM

    RESUMO. O artigo trata da iniciativa popular na Constituio

    Federal de 1988 e seu papel na democracia participativa nela

    proposta. As relaes entre participao e representao so

    analisados a partir de uma breve comparao entre a concepo

    grega antiga de democracia e a moderna para, em seguida, destacar-

    se o modelo brasileiro de participao poltica direta previsto na

    Carta de 1988.

    PALAVRAS CHAVE: democracia participativa, iniciativa popular,

    representao poltica, Constituio de 1988

    ABSTRACT: The article discuss the initiative in the Brazilian

    Constitution of 1988 and the role proposed in it in direct democracy.

    The relationship between participation and representation is

    analyzed from a brief comparison between the democracy in ancient

    Greece and modern democracy in order to show the Brazilian model

    1 Doutor em Direito pela Universidade de So Paulo. Professor do Curso de Graduao em Direito e doPrograma de Ps -Graduao em Direito Poltico Econmico da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estetrabalho parte de uma dissertao de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de SoPaulo sob a orientao do Professor Dr. Enrique Ricardo Lewandowski junto ao Departamento de Direito doEstado. O texto foi alterado tendo em vista a regulamentao posterior do artigo 14 da Constituio bemcomo as observaes feitas pela banca examinadora, composta pelo orientador e pelos professores AnaCndida da Cunha Ferraz e Jos Eduardo Faria, aos quais agradeo as crticas e comentrios. A atualizaofoi possvel pelo apoio obtido no Programa de Ps-graduao em Direito Poltico e Econmico da Faculdade

    de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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    of direct political participation established in the Constitution of

    1988.

    KEY WORDS: direct democracy, initiative, political participation,

    representation, Brazilian Constitution.

    1.1) DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA

    Diversas so as concepes de democracia que perpassam as

    sociedades humanas ao longo dos sculos, desde sua primeira

    manifestao, na Grcia antiga. Apesar de caracterizada como um

    modelo restritivo, posto que escravos e mulheres estavam excludos

    de qualquer interveno nas decises polticas, vem de Atenas o

    ideal democrtica de participao de todos os cidados na vida

    pblica.

    Retomado a partir das revolues liberais do sculo XVIII, esse

    ideal surge, a, como forma de superar as limitaes dos regimes

    absolutistas, no momento de ascenso da burguesia e sua luta

    contra os privilgios do antigo regime.

    H, no entanto, uma diferena fundamental entre uma

    concepo e outra. Se para a antiguidade o cidado, participa

    ativamente das decises polticas, na concepo moderna o cidado

    delega a seus representantes essa tarefa. Estrutura-se, ento, a

    democracia representativa, coeva do Estado Liberal.

    O ponto de partida dessa diferena reside no fato de que em

    Atenas participavam das Assemblias ekklesia apenas os

    indivduos com certos direitos, os cidados, que assim se

    caracterizavam pela possibilidade de interveno direta nas decises

    polticas. Esta era a essncia da democracia grega: somente os

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    membros da comunidade poltica faziam parte da polis. Como afirma

    Claude Mosse, a poltica , na verdade, a palavra chave da

    civilizao ateniense. 2 Os Atenienses, antes de mais nada, eram

    cidados, sendo impensvel a idia de no participar da poltica:

    A conduta apoltica era inconcebvel porque significava a

    renncia aquilo que era a prpria essncia do ateniense: o

    pertencer ao corpo poltico, cidade. 3

    A concepo moderna, por outro lado, vem recuperar a noo

    de que os cidados devem participar na formao do Estado, mas

    numa perspectiva diversa. Agora o cidado interceder de forma

    indireta nas decises polticas, delegando, como se disse, esse

    funo aos representantes.

    A consolidao desse modelo, porm, foi lenta e envolveu toda

    a discusso a respeito da soberania, antes e durante a Revoluo

    Francesa.

    1.2. A CONSOLIDAO DO PRINCPIO REPRESENTATIVO: A

    SOBERANIA DA NAO

    A partir do sculo XVIII a estruturao das novas instituies

    polticas democrticas ir se confundir com o problema da

    soberania. Com efeito, as teorias democrticas procuraro organizar

    o sistema poltico a partir da idia de soberania popular. A questono nova, e passa pela clssica polmica entre Rousseau e

    Montesquieu.

    Embora as teorias da soberania popular sejam anteriores a

    Rousseau, a partir de sua obra que vo se consolidar. Para o

    filsofo genebrino, somente a participao do povo na elaborao da

    2

    MOSSE, Claude.Atenas: Histria de uma Democracia. Braslia: Ed. UnB, 1982, p. 134.3MOSSE, Claude.Atenas: Histria de uma Democracia. Braslia: Ed. UnB, 1982, p. 135.

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    lei faz refletir fielmente a vontade geral. E bastante conhecida sua

    rejeio qualquer forma de representao, Rousseau afirma mais

    de uma vez no ser possvel viabilizar a vontade geral e a soberania

    popular por meio da intermediao de qualquer corpo

    representativo.

    Tornou-se clebre a passagem do Contrato Social em que o

    autor critica a estrutura parlamentar do governo ingls, concluindo

    que o povo daquele pas s livre no momento da eleio, tornando-

    se, a seguir, escravo. 4

    A representao a negao da liberdade poltica necessria aocidado que participa da vontade geral. E a negao, portanto, da

    soberania. Em oposio liberdade negativa, defendida pelos

    liberais naquele perodo, Rousseau defende uma liberdade positiva,

    consubstanciada na ao poltica, na participao. Ao exercer a

    liberdade positiva o cidado manda, porque obedece a si mesmo:

    La liberdad positiva es autnoma, mediante ella elsbdito deviene ciudadano porque participa en la voluntad

    general, en la soberania. 5

    Cada cidado detm uma parte da soberania e seu exerccio

    exige uma participao constante e ativa, caso contrrio ter-se-

    alienao, no liberdade. Dessa forma a soberania no pode ser

    representada, pois que isso significa alienao da soberania. 6

    A posio de Rousseau fica clara nesta passagem:

    A soberania no pode ser representada pela mesma

    razo por que no pode ser alienada, consiste

    essencialmente na vontade geral e a vontade

    4ROUSSEAU, Jean Jacques.Do Contrato Social. So Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 108.5DEL MORAL, Antonio Torres. Democracia y Representacin em los origines del Estado constitucional.Revista de Estudios Polticos, n. 203, 1975, p. 164.6

    DEL MORAL, Antonio Torres. Democracia y Representacin em los origines del Estado constitucional.Revista de Estudios Polticos, n. 203, 1975, p. 164 e 165.

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    absolutamente no se representa. ela mesma ou outra,

    no h meio termo. 7

    Para Montesquieu, ao contrrio, a liberdade poltica se realizaapenas no Estado representativo. Em um Estado livre o povo detm

    o poder de fazer as leis, embora o faa atravs de representantes,

    uma vez nos grandes Estados torna-se impraticvel faz-lo

    diretamente. De mais a mais o povo, segundo Montesquieu, pode

    no estar preparado para decidir as questes, mas saber escolher

    os melhores representantes.

    J que, num Estado livre, todo o homem que supe ter

    uma alma livre deve governar a si prprio, necessrio

    que o povo, no seu conjunto, possua o poder legislativo.

    Mas como isso impossvel nos grandes Estados, e sendo

    sujeito a muitos inconvenientes nos pequenos, preciso

    que o povo, atravs de seus representantes, faa tudo que

    no pode fazer por si mesmo.

    (...)

    A grande vantagem dos representantes que so capazes

    de discutir os negcios pblicos. 8

    A partir da Revoluo Francesa, o princpio representativo se

    consolida especialmente na tese da soberania da nao elaborada

    por Emanuell de Sieys. A soberania, para Sieys, no reside mais

    no povo, mas na nao, consubstanciada no parlamento. Nesse

    prisma, a soberania nacional est intrinsecamente ligada ao

    princpio da representao. Pode-se dizer, como observou Torres del

    Moral, que a representao, na perspectiva de Sieys, torna-se um

    7ROUSSEAU, Jean Jacques. op. cit., p. 107.8

    MONTESQUIEU. O Esprito das Leis. So Paulo: Abril Cultural, 1973, Livro Dcimo Primeiro, CaptuloVI, p. 158.

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    princpio constitutivo da nao, a qual no existe fora ou sem a

    representao parlamentar. 9

    Sob a influncia de Sieys e de outros seguidores de

    Montesquieu, a Assemblia Constituinte de 1789 se encaminharia

    no sentido de consagrar o princpio da soberania da nao

    estruturando o sistema poltico sobre instituies representativas. A

    Constituio Francesa de 1791 vai adotar claramente o princpio no

    artigo 2, ao declarar que a Constituio Francesa representativa.

    10

    A partir da, toda a discusso acerca da democracia estarmarcada, de certo modo, por essa modificao na titularidade da

    soberania.

    E justamente a nfase na soberania nacional (e no

    popular) que ensejar a maioria das polmicas sobre

    representao e exerccio direto da democracia. Se a nao representada pelo Parlamento, a ele, exclusivamente a

    ele, cabe a representao poltica. A soberania

    parlamentar substitui, portanto, a soberania popular.11

    1.3) DA REPRESENTAO DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

    A consolidao da democracia representativa no ocidente foi,

    no entanto, lenta. Desde a conquista das liberdades polticas,

    passando pela crescente organizao dos partidos e dos

    parlamentos, at a conquista do sufrgio universal, a democracia

    9DEL MORAL, Antonio Torres. Democracia y Representacin em los origines del Estado constitucional.Revista de Estudios Polticos, n. 203, 1975, p. 17210 LUQUE, Luis Aguiar de. Democracia Directa y Derecho Constitucional. Madrid: Revista de DerechoPrivado, 1977. p. 39.11

    BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita.A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular.So Paulo: tica, 1991, p. 53.

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    direta, em diversos momentos, volta a ser objeto de propostas

    daqueles que pleiteavam a interveno direta do povo nos negcios

    pblicos, como forma de superar os limites das instituies

    representativas.

    Com relao a estes destaca-se, em primeiro lugar, a

    problemtica relativa representao poltica e s dificuldades em

    sua conceituao. Como entender-se o sentido do mandato livre ou

    imperativo para melhor operacionalizao do sistema?

    Historicamente, as crticas representao sempre tiveram como

    objetivo denunciar a distancia entre representantes e representados,feitas em defesa de um vnculo mais estreito entre ambos. 12Hoje,

    uma srie de transformaes operadas no Estado e na sociedade

    trazem a tona vrios problemas relacionados concepo tradicional

    de representao. 13

    Em segundo lugar, de ressaltar-se, no desenvolvimento da

    democracia representativa, a tendncia dos partidos polticos de

    monopolizar a ao poltica, favorecendo a formao de oligarquias a

    partir de comits dirigentes altamente burocratizados.14

    Some-se a isso a influncia do poder econmico e de toda sorte

    de grupos particulares sobre os partidos polticos e estes aparecero

    mais como bloqueadores do que como canalizadores da vontade

    popular.

    Especialmente a partir do sculo XIX enveredamos pelo

    caminho dos partidos polticos. E chegamos a um ponto em

    que o partido no mais um representante do povo, ele

    12BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 48.13Os problemas relacionados aos limites da democracia representativa e, especificamente, representao

    poltica extrapolam os limites deste trabalho. Tratam especificamente do tema, entre ns: Mnica HermannSalem Caggiano (Sistemas Eleitoral x Representao Poltica. So Paulo, 1987) e Celso Campilongo

    (Representao Poltica. So Paulo: tica, 1988).14BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 61.

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    um substituto do povo, e aquilo que se propunha como

    democracia degenerou em partidocracia.15

    Em funo desses limites que surge a prtica da democraciasemidireta ou participativa. O objetivo integrar os institutos de

    participao direta democracia representativa e seu exerccio se

    concretiza em instituies atravs das quais o povo intervm

    diretamente no processo de elaborao legislativa: iniciativa popular,

    referendo, plebiscito, veto popular, revogao dos mandatos e

    oramento participativo.

    Atravs da iniciativa popular um grupo de cidados elabora e

    apresenta ao parlamento um projeto de lei ou emenda

    constitucional; o referendo e o plebiscito permitem ao povo deliberar

    sobre matrias de acentuada relevncia, de natureza constitucional,

    legislativa ou administrativa conforme o artigo 2. da lei no. 9709 de

    novembro de 1998, que regulamentou o artigo 14 da Constituio

    Federal16

    ; o referendo permite aos cidados ratificarem ou no atolegislativo ou administrativo e o plebiscito convocado com

    anterioridade para que o povo aprove ou denegue o ato legislativo ou

    administrativo;17 o veto popular permite aos cidados rejeitar um

    projeto de lei j aprovado pelo poder legislativo; a revogao dos

    mandatos um instrumento pelo qual os cidados, descontentes

    com o desempenho de um representante, revogam o mandato antes

    do seu trmino (como o recall praticados nos Estados Unidos);

    finalmente o oramento participativo, que no est previsto na

    Constituio Federal, permite a participao direta do povo nas

    15DALLARI, Dalmo de Abreu. Formas de Participao Poltica. Revista da Procuradoria Geral do Estadode So Paulo. 24:135-147, dez., 1985.16Lei No. 9709 de 18 de novembro de 1998.17No pacfica a conceituao do plebiscito, principalmente quando se trata de diferenci-lo do referendo.A distino aqui referida a geralmente aceita pela doutrina. Ver DALLARI, Dalmo de Abreu, Mecanismos

    de Participao Popular no Governo, in Problemas e Reformas: subsdios para o debate constituinte, vriosautores. So Paulo: OAB, 1988, p. 193. A lei No. 9709 definiu ambos institutos conforme se viu acima.

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    discusses sobre o oramento e vem tendo amplo desenvolvimento

    em alguns municpios e estados da federao brasileira. 18

    Assim, a democracia semidireta ou participativa aparece como

    forma de permitir a interveno direta dos cidados nas decises

    polticas, preservando, contudo, as instituies representativas. 19

    A utilizao de mecanismos de participao direta na Sua

    contribuiu para arrefecer, no fim do sculo XIX, o contedo

    ideolgico que a questo propiciava. At aquele momento os

    institutos da iniciativa popular e do referendo eram associados a

    uma concepo mais radical de democracia direta. O surgimento dateoria do Estado como pessoa jurdica, por sua vez, igualmente

    contribuiu para que o problema fosse considerado sob um prisma

    tcnico, colocando aqueles mecanismos como integrantes das

    instituies do Estado liberal. 20

    A consolidao dos mecanismos de participao direta no

    Estado Constitucional no foi, no entanto, linear e pacfica. Desde

    suas primeiras manifestaes a democracia semidireta suscitou

    crticas por parte daqueles que temiam a desestruturao do Estado

    representativo.

    Nessa perspectiva, a interveno direta do cidado nas

    decises polticas levaria ao desprestgio dos parlamentos e partidos

    polticos, tornando-se, portanto, incompatvel com a manuteno da

    democracia representativa e do Estado liberal.Especialmente a partir do incio do sculo XX, quando a

    prtica da democracia semidireta propagou-se na Europa, a maioria

    dos autores contestava a eficcia desse tipo de interveno,

    18DALLARI, Dalmo de Abreu, Mecanismos de Participao Popular no Governo, inProblemas e Reformas:subsdios para o debate constituinte, vrios autores. So Paulo: OAB, 1988, p. 193 a 195.19 A doutrina utiliza igualmente os termos democracia semidireta, democracia participativa ou aindademocracia mista para designar a integrao desses institutos democracia representativa.20

    LUQUE, Luis Aguiar de. Democracia Directa y Derecho Constitucional. Madrid: Revista de DerechoPrivado, 1977. p. 69.

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    baseando-se no fato de que, nos pases onde era aplicada,

    importantes inovaes polticas tinham sido rejeitadas pelo povo.

    Dessa forma constituiria-se em verdadeiro entrave ao

    desenvolvimento poltico. A desinformao dos cidados, aliada

    complexidade tcnica das questes, seria um fator a mais para

    dificultar a prtica da interveno do povo nas decises polticas. 21

    Entretanto, vrios autores que se ocupam da questo tm

    procurado mostrar que os mecanismos de participao direta

    ampliam a possibilidade de discusso de temas de interesse pblico,

    fornecendo a educao poltica dos cidados:

    In sum, the initiative and referendum can increase

    popular participation in and responsibility for government,

    provide a permanent instrument of civic education and give

    popular talk the reality and discipline of power that it

    needs to be effective.22

    Havia tambm uma tendncia para associar a utilizao dosmecanismos de participao aos regimes autoritrios, como forma

    de legitimao poltica.

    Na Frana, a experincia com a participao direta,

    posteriormente Revoluo, responsvel por uma crescente

    desconfiana do pensamento jurdico e poltico daquele pas em

    relao a essas instituies. A doutrina passou a entender a

    participao direta como instrumento de manipulao do povo pelo

    lder poltico. O apelo ao povo associou-se, desde ento, a adeso

    irracional das massas pessoa do chefe, do ditador, em funo do

    21AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Editora Globo, 1968, p. 253.22BARBER, Benjamin R. Strong Democracy. Califrnia: Califrnia University Press, 1984, p. 284. JohnStuart Mill ressaltava os benefcios da participao para a educao dos indivduos: atravs da discusso

    poltica e da ao coletiva, que um homem cujos interesses so limitados por suas ocupaes dirias a um

    circulo estreito, aprende a simpatizar com seus concidados e se tornar um membro consciente da grandecomunidade.Consideraes sobre o Governo Representativo. Braslia: UnB, 1980, p. 89.

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    uso do plebiscito como meio de legitimao em perodos conturbados

    politicamente, entre os quais se destacam os governos de Napoleo

    Bonaparte e Luiz Napoleo. De fato, ambos beneficiaram-se

    politicamente dos resultados de todos os plebiscitos por eles mesmos

    convocados. Na opinio de Benevides, essa utilizao dos

    mecanismos de participao direta responsvel pelo equvoco de se

    tomar democracia direta por democracia plebiscitria.23

    No resta dvidas sobre a utilizao deformada dos

    instrumentos de democracia semidireta, uma vez que no havia

    nenhuma possibilidade de organizar qualquer oposio e os

    resultados significaram altas taxas de aprovao ao regime.24

    Esses episdios tm significado alm do contexto francs, pela

    prpria influncia do pensamento poltico e jurdico daquele pas na

    Europa, que busca, ora em Montesquieu, ora em Rousseau, a

    soluo para o problema dos limites e controles do poder poltico.

    Alm disso, trazem tona problemas relacionados ao tema daparticipao direta em geral. Trata-se especificamente do controle

    dos institutos pelos poderes constitudos. Se a prerrogativa de

    convocao cabe a um s poder do Estado, podem eles servir, de

    fato, manipulao, com graves riscos para o sistema poltico como

    um todo.

    Observa-se, contudo, que em contextos democrticos os

    mecanismos de participao direta abrem ampla possibilidade de

    interveno do povo nas decises polticas. Este o resultado da

    23BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita.A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular.So Paulo: tica, 1991, p. 58. Friedrich, por sua vez, saliente que, por ocasio dos plebiscitos realizados por

    Napoleo Bonaparte, foram denunciadas presses de todo tipo e at fraudes para distorcer o resultado(Gobierno Constitucional y Democracia: Teoria y Prctica en Europa y America. Madrid: Instituto deEstudios Polticos, 1975, pp. 552 e 553).24BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita.A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular.So Paulo: tica, 1991, p. 58. A polmica e a desconfiana da doutrina chegaram aos dias de hoje por

    ocasio dos referendos convocados pelo General De Gaulle. Em todas as consultas o presidente francscolocou seu mandato em funo do resultado.

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    prtica da democracia semidireta em vrios pases. Benevides

    lembra que qualquer instituio de ndole democrtica pode ter sua

    funo desviada: os partidos polticos, os parlamentos, o voto,

    podem encobrir a existncia de um regime autoritrio. Diz a autora:

    O que importa observar e discutir a aplicao de tais

    mecanismos em regimes democrticos, onde supe-se a

    liberdade de expresso, de informao, de discusso e,

    portanto, de escolha real. A manipulao e o controle total

    nas ditaduras tornam invivel considerar seus referendos

    como institutos democrticos.25

    A consolidao dos institutos de participao direta em vrios

    pases, especialmente nos Estados Unidos e na Sua, confirma as

    possibilidades da democracia semidireta. Hoje so poucos os pases

    relativamente estveis do ponto de visto poltico que no utilizam

    alguma das formas de participao direta.

    A questo distribuir o controle e a competncia paraconvocao das consultas populares, permitindo, principalmente, a

    possibilidade de realizao de consultas atravs da iniciativa dos

    cidados.

    No basta, portanto, adotar os mecanismos de participao

    direta. preciso, atravs de regras claras, no permitir sua

    utilizao indevida, ou o bloqueio pelos poderes constitudos.

    Analisando esses mecanismos em algumas democracias

    contemporneas, Arend Lijphart classificou os referentes em pr-

    hegemnicos e anti-hegemnicos, conforme o resultado da consulta

    seja favorvel ou no s expectativas do governo. 26Conforme

    classificao de Gordon Smith, os referendos podem tambm ser

    25BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita,A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular,

    So Paulo, tica, 1991, p.63.26LIJPHART, Arend.Democracies.New Haven and London, Yale: University Press, 1984, p. 203.

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    controlados e no controlados, segundo sua convocao seja feita

    pelo governo ou resultante da iniciativa popular, respectivamente.27

    A interligao entre referendo e iniciativa popular , nessa

    perspectiva, fundamental para distribuir o controle das consultas

    populares:

    Most referendums are both controlled and pro-hegemonic.

    One reason is that the initiative is available in only very

    few countries. And when governments control the

    referendum, they will tend to use it only when they expect

    to win.28

    Desta forma, o autor considera que:

    The referendum by itself entails a very modest step

    toward direct democracy but, combined with the initiative,

    it becomes a giant step.29

    Tambm Paulo Bonavides se refere importncia da

    combinao entre referendo e iniciativa popular. Esta de fato, mais

    apropriada participao popular, pois obriga, efetivamente, o poder

    legislativo a sair da inrcia, enquanto que o referendo apenas

    assegura ao povo que ele no seja submetido a uma legislao que

    no deseje.30No caso da iniciativa combinada com o referendo:

    A lei ser ento fruto direto e exclusivo da soberana

    vontade do povo, consequentemente sem participao das

    Assemblias representativas, at mesmo contra a

    resistncia que estas porventura lhe hajam movido.31

    27Idem, ibidem, p.20328LIJPHART, Arend.Democracies.New Haven and London, p. 203.29Idem, ibidem, p. 200.30

    BONAVIDES, Paulo. Cincia Poltica.Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1967, p. 227.31Idem, ibidem, p. 228.

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    Essa distribuio do controle para convocar as consultas no

    apenas evita sua manipulao como oferece maior potencial de

    presso aos mecanismos de participao direta.

    Por outro lado, necessrio lembrar que no se prope a

    extino das instituies representativas, mas a conjugao dessas

    com os mecanismos de participao. Dallari defende essa

    conjugao como forma de aproximar a sociedade do ideal

    democrtico:

    Isso no deve significar, por enquanto, a eliminao do

    representante, mas menos representao, mais

    democracia e mais participao direta do povo. Quanto

    maior for a participao direto do povo, mais prximos

    estaremos de uma sociedade democrtica. 32

    Mesmo Norberto Bobbio, que frequentemente procura ressaltar

    os limites das instituies de participao direta como mecanismos

    de deciso poltica no mundo moderno, prope sua integrao democracia representativa:

    At hoje, o sistema de referendum no pde substituir a

    democracia indireta. Ento, convm que fique claro que,

    dentro dos limites onde a democracia direta assim

    compreendida realizvel, a democracia representativa e

    a democracia no representativa no so realmenteincompatveis. Ao contrrio, se verdade que a segunda

    pode integrar utilmente a primeira, tambm verdade que

    no pode substitu-la.33

    32DALLARI, Dalmo. Mecanismos de Participao Popular no Governo, in Problemas e reformas: subsdiospara o debate Constituinte. So Paulo: OAB, 1988.33

    BOBBIO, Norberto. Quais as alternativas para a democracia representativa? In: O marxismo e o Estado.Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 49.

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    Jos lvaro Moiss acrescenta inclusive que a participao

    direta aumenta a prpria legitimidade das decises oriundas do

    Poder Legislativo. 34Esta relao , contudo, controvertida pois no

    apenas as decises do Poder Legislativo com freqncia contradizem

    a tendncia da maioria dos cidados como tambm o que se busca

    exatamente ampliar a participao popular como meio de diminuir o

    espao dos grupos que atuam nos parlamentos muitas vezes acima

    dos prprios partidos os chamados lobbies e que comprometem a

    representao poltica nas sociedades com alto grau de

    complexidade. A conciliao entre participao direta e democraciarepresentativa no , portanto, to simples assim.35

    Os mecanismos da democracia semidireta contribuem,

    portanto, para o aperfeioamento da democracia representativa, ao

    mesmo tempo que propiciam um resgate do conceito de soberania

    popular como princpio fundador de uma sociedade democrtica.

    No se trata, portanto, do restabelecimento de uma concepo de

    soberania incompatvel com a sociedade moderna nem de cair na

    tentao do plebicitarismo, pois, como observa Benevides, a

    democracia pressupe controles e limites. 36

    Neste sentido o estabelecimento de regras claras para os

    procedimentos relativos participao direta imprescindvel:

    O que deve ficar claro que as manifestaes da

    soberania popular podem obedecer a certas regras

    processuais, para serem vlidas e reconhecidas ... a

    34 MOISS, Jos lvaro, Cidadania e Participao: ensaio sobre o plebiscito, referendo e a iniciativapopular na nova Constituio. So Paulo: Marco Zero Cedec, 1990. p. 66.35A crise da democracia representativa est relacionada a muitos fatores que no podem ser analisados aqui,mas h quem sustente que a ampliao da democracia participativa comprometem a representao poltica.Cf. CAMPILONGO, Celso.Representao Poltica, So Paulo, tica, 1988.36

    BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita.A Cidadania Ativa:Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular.So Paulo: tica, 1991, p.95.

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    soberania popular, constitucionalmente definida, sempre

    soberania regrada. 37

    Atravs da iniciativa popular, portanto, o povo no apenasintervm na elaborao legislativa, como adquire a possibilidade de

    requerer a realizao de consultas populares, atravs de plebiscitos

    e referendos, retirando do Estado o monoplio dessas decises. A

    iniciativa popular assume, assim, importncia fundamental para

    todo o sistema da democracia semidireta ou participativa.

    2) INICIATIVA POPULAR: DA CONSTITUIO DE 1988 LEI No. 9709

    2.1) INICIATIVA DE LEIS E PROCESSO LEGISLATIVO

    A tarefa de elaborao das leis sempre coube ao poder

    legislativo, conforme princpios estabelecidos no direito

    constitucional clssico. Tal competncia, nesta concepo,

    decorrncia da doutrina da separao dos poderes e do princpio

    representativo, como afirma Ferreira Filho:

    No direito constitucional clssico, a elaborao da lei cabe

    ao poder legislativo que , pelo menos parcialmente, de

    carter representativo.38

    Modernamente, entretanto, o processo legislativo se caracteriza

    por um crescente alargamento do poder de iniciativa. Neste sentido,

    a principal diferena, em relao ao processo clssico, se obsertva

    na posio ocupada pelo Poder Executivo, que aparece cada vez

    37BOBBIO, Norberto. Quais as alternativas para a democracia representativa? In: O marxismo e o Estado.

    Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 141.38FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves.Do Processo Legislativo. So Paulo: Saraiva, 1968, p. 58.

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    mais no apenas como propulsor do processo mas como o prprio

    legislador.39

    A partir da, vrias outras pessoas e rgos do Estado passam

    a ter o direito de iniciar o processo legislativo. Esse alargamento

    alcana, hoje, o Poder Judicirio, conselhos regionais e municipais

    (como na Itlia) e os cidados.

    O direito constitucional brasileiro acompanhou esta evoluo,

    ampliando a possibilidade de participao no processo legislativo e

    vrios rgos do Estado e tambm aos cidados, na mesma forma da

    iniciativa popular.H divergncias, no entanto, quanto a incluir a iniciativa nos

    atos do processo legislativo. Ferreira Filho divide a elaborao

    legislativa em trs fases: a iniciativa, a constitutiva e a fase

    integratria.40Para este autor a iniciativa no faz, porm, parte do

    processo legislativo em sentido estritamente tcnico:

    Iniciativa no propriamente uma fase do processolegislativo mas sim o ato que o desencadeia. Em verdade,

    juridicamente, a iniciativa o ato porque se prope a

    adoo do direito novo. Tal ato uma declarao de

    vontade, que deve ser formulada por escrito e articulada;

    ato que se manifesta pelo depsito do instrumento do

    projeto, em mos da autoridade competente.41

    O autor salienta, no entanto, a importncia do poder de

    iniciativa legislativa no plano poltico, considerando-se, por um lado,

    a difcil tarefa de preparao de um projeto de lei, para a qual

    necessrio um longo trabalho de pesquisa, apreciao de

    39FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves.Do Processo Legislativo. So Paulo: Saraiva, 1968, p. 109.40

    Idem, ibidem,p. 60.41FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Curso de Direito Constitucional. So Paulo: Saraiva, 1990, p.164.

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    convenincia e de redao e, por outro lado, a existncia de presses

    que podem comprometer o contedo do mesmo:

    No plano poltico, todavia, a preparao do projeto dealta importncia (...) Por outro lado, essa fase de gestao

    do projeto, onde se admite que o legislador faa a lei e no

    simplesmente reproduza o direito no escrito, cheia de

    perigos e tentaes, j que a presso de interesses

    particulares se faz sentir preponderantemente.42

    Tambm Jos Afonso da Silva ressalta a importncia da

    iniciativa legislativa. Para este autor o poder de iniciativa no

    apenas o ato propulsor do processo, mas escolha entre regras de

    condutas possveis, que esto difusas na sociedade. o ato pelo

    qual se pe em movimento o processo de elaborao das leis, mas

    sem o qual os rgos legislativos no podem cumprir sua funo. 43

    No entendimento do autor, pela iniciativa legislativa se d a

    interferncia do Poder na predeterminao das normais jurdicas:

    (...) podemos concluir que a iniciativa das leis funciona

    como instrumento de atuao do programa poltico-

    ideolgico (...) A iniciativa legislativa apareceu, pois, como

    poder de estabelecer a formao do direito objetivo e como

    poder de escolha dos interesses a serem tutelados pela

    ordem jurdica em forma de lei em sentido tcnico.44

    Neste sentido a ampliao do poder de iniciativa assume

    importncia fundamental, confundindo-se com o prprio ideal

    democrtico, como salienta Ferreira Filho:

    42FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves.Do Processo Legislativo. So Paulo: Saraiva, 1968, p. 6143SILVA, Jos Afonso da. Princpios do Processo de Formao das Leis no Direito Constitucional. SoPaulo: RT, 1964, pp. 105 e 106.44

    SILVA, Jos Afonso da. Princpios do Processo de Formao das Leis no Direito Constitucional. SoPaulo: RT, 1964, pp. 105 e 106.

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    Destarte o ideal democrtico de auto-governo exige que a

    iniciativa seja estendida, para que todos possam, na

    medida de seu interesse e de sua capacidade, colaborar

    na gesto da coisa pblica.45

    2.2) A INICIATIVA POPULAR E SEUS REQUISITOS

    A possibilidade do povo interferir diretamente na criao

    legislativa foi amplamente reconhecida na Constituio brasileira de

    1988, atravs dos mecanismos de democracia semidireta ou

    democracia participativa. A iniciativa popular legislativa um destes

    instrumentos. Por meio deste instituto um grupo de cidados pode

    elaborar um projeto de lei e apresent-lo ao Poder Legislativo,

    mediante o cumprimento de certos requisitos. No dizer de Dalmo

    Dallari:

    A iniciativa confere a um certo nmero de eleitores e o

    direito de propor uma emenda constitucional ou um projetode lei.46

    A iniciativa popular est prevista em vrios dispositivos da

    Constituio Federal. Em primeiro lugar, ao estabelecer as diversas

    formas de exerccio da soberania popular, no captulo referente aos

    direitos polticos, diz a Constituio:

    45FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves.Do Processo Legislativo. So Paulo: Saraiva, 1968, p. 122.46 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado, cit, p. 131. No h divergnciasdoutrinrias quanto natureza da iniciativa popular: A iniciativa popular consiste no poder conferido a

    parcela do eleitorado para propor direito novo (para apresentar projeto de lei) (FERREIRA FILHO,Manoel Gonalves. Curso de Direito Constitucional, cit., p. 82); o direito de uma parcela da populao(um por cento do eleitorado) apresentar ao Poder Legislativo um projeto de lei que dever ser examinado evotado (BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional.So Paulo: Saraiva, 1990, p. 237); A iniciativa

    popular o direito do povo, representado por uma frao do eleitorado, de propor projetos de lei,

    articulados ou no. (FERREIRA, Luis Pinto. Comentrios Constituio Brasileira. So Paulo: Saraiva,1992, p. 266).

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    Art. 14 A soberania popular ser exercida pelo sufrgio

    universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para

    todos, e, nos termos da lei, mediante:

    I plebiscito;

    II referendo;

    III iniciativa popular.

    Tambm na seo referente ao processo legislativo, onde se

    regula a iniciativa das leis complementares e ordinrias:

    Art. 61 A iniciativa das leis complementares e ordinrias

    cabe a qualquer membro ou Comisso da Cmara dos

    Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional,

    ao Presidente da Repblica, ao Supremo Tribunal Federal,

    aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da

    Repblica e aos cidados, na forma e nos casos previstosnesta Constituio.

    (...)

    Pargrafo segundo A iniciativa popular pode ser exercida

    pela apresentao Cmara dos Deputados de projeto de

    lei subscrito por, no mnimo, um por cento do eleitorado

    nacional, distribudo pelo menos por cinco Estados, comno menos de trs dcimos por cento dos eleitores de cada

    um deles.

    A Constituio determina ainda o exerccio de iniciativa

    popular nos Estados da federao e nos Municpios, conforme

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    disposto nos artigos 27, pargrafo quarto e 28, inciso XI,

    respectivamente.47

    Do texto constitucional podemos extrair algumas regras

    bsicas para o funcionamento do instituto, embora o artigo 14 faa

    referncia expressa lei que dever regulamentar a iniciativa

    popular.

    Dois pontos importantes esto previstos no pargrafo segundo

    do artigo 61: em primeiro lugar, a necessidade de apresentao

    Cmara dos Deputados de um projeto de lei, portanto, de um projeto

    articulado ou redigido em artigos. Em segundo lugar, o dispositivoconstitucional determina o patamar mnimo de assinaturas

    necessrio para aceitao da proposta: o projeto de iniciativa

    popular deve estar subscrito por 1% (um por cento) do eleitorado

    nacional, distribudos em pelo menos cinco Estados com no menos

    de 0,3% (trs dcimos por cento) dos eleitores de cada um deles.

    2.2.1) PROJETO ARTICULADO

    Vrias podem ser as formas de se classificar a iniciativa

    popular. Uma delas leva em conta a maneira de apresentao da

    proposta. Tanto no direito suo quanto no americano48, os cidados

    participam da elaborao da lei, apresentando ao Poder Legislativo

    uma proposta contendo os termos gerais daquilo que se deseja ver

    regulado ou um projeto de lei j redigido em artigos. No primeiro

    caso temos a iniciativa no articulada e no segundo a iniciativa

    articulada. 49

    47 Cf. RIBEIRO, Hlcio. A Iniciativa Popular na Constituio de 1988, Universidade de So Paulo,Departamento de Direito do Estado, 1993.48Idem, ibidem, 1993.49A doutrina tambm se refere a essas formas de iniciativa como formulada e no formulada. No direitosuo ela pode ser chamada moo: A iniciativa popular articulada ou formulada exige que o projeto de lei

    deva ser elaborado pelos proponentes, porm ela simples ou no articulada quando se apresenta umasimples moo com contedo pacfico. Esta ltima a moo do direito suo. (FERREIRA, Luis Pinto.

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    Pela iniciativa popular articulada exige-se que o projeto de lei

    seja elaborado pelos prprios proponentes e que se apresente um

    projeto redigido em artigos, pronto para ser discutido e votado pelo

    Poder Legislativo. No dizer de Ferreira Filho, a iniciativa popular

    articulada:

    Consiste na apresentao de projeto popular ao rgo

    legislativo, num texto em forma de lei, redigido de maneira

    articulada, pronto pra ser submetido discusso e

    deliberao.50

    A Constituio brasileira de 1988 acolheu apenas a iniciativa

    popular articulada, como pode ser deduzido do disposto no artigo

    61, pargrafo 2, no qual se determina a apresentao de projeto de

    lei. Este requisito coloca o problema da redao do projeto. Os

    proponentes devero ter em mente, no momento da formulao,

    questes de ordem formal e de contedo, uma vez que estar em

    jogo a clareza dos interesses que se quer proteger e que devem serexprimidos dentro da tcnica legislativa:

    O momento da formulao envolve o aspecto redacional

    do projeto, onde se tem que aplicar uma linguagem

    adequada, no s utilizando a terminologia legislativa

    consagrada e tcnica, mas tambm observando a

    terminologia prpria da matria que se estregulamentando.51

    Nos pases onde permitida a apresentao de um projeto no

    articulado h sempre um rgo do Estado encarregado em dar forma

    legal proposta. Nos Estados Unidos o Procurador-Geral do Estado

    Comentrios Constituio Brasileira, cit., p. 267). No mesmo sentido DARCY AZAMBUJA, Teoria Geraldo Estado, cit., p. 247.50

    FEREIRA FILHO, Manoel Gonalvez. Curso de Direito Constitucional, p. 82.51SILVA, Jos Afonso da.op. cit.,p. 153.

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    redige o ttulo e o texto do projeto. Na Sua o prprio parlamente

    que se encarrega de dar forma final moo. J na Itlia, a redao

    do projeto responsabilidade dos proponentes, como no Brasil. 52

    Dessa forma, qualquer dvida a respeito do real significado do

    projeto poderia at lev-lo inconstitucionalidade. 53

    A necessria adequao do projeto de lei Constituio no

    deve servir, no entanto, para bloquear o funcionamento do instituto.

    Benevides chama a ateno para o problema, lembrando que uma

    das argumentaes mais comuns contra os mecanismos de

    participao direta o de que eles podem perturbar o funcionamentodo sistema constitucional. Neste sentido torna-se de fundamental

    importncia a definio clara do momento em que far-se- o controle

    de constitucionalidade. A autora defende, baseando-se na

    experincia sua, a argio prvia da constitucionalidade do

    projeto:

    Um controle a posteriori do resultado pode colocar emcausa o prprio princpio democrtico da soberania

    popular (ou existe, ou no existe). por isso que, na Sua,

    h quem defenda que a constitucionalidade de uma

    proposta popular deve ser argida antes do

    desenvolvimento do processo.54

    No caso brasileiro, a anlise deste e de outros aspectos do

    projeto cabe a Cmara dos Deputados.55 A lei No. 9709 de 1998

    52BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita..op. cit.,p.180.53Cf. RIBEIRO, Hlcio.A iniciativa popular na Constituio de 1988. Alguns regimentos internos fixaramregra segundo as quais no se rejeitar liminarmente projeto de lei oriundo de iniciativa popular por vcio deforma ou problemas de linguagem.54BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita..op. cit.,p.164.55Vrios projetos de lei, tramitaram desde 1989 com o objetivo de regulamentar os institutos de participaodireta O projeto de lei n. 3.744, do Deputado Plnio de Arruda Sampaio, previa, no artigo 5, formao de

    Comisso Mista da Cmara dos Deputados e do Senado Federal especialmente para a anlise daconstitucionalidade e legalidade das propostas de referendo e plebiscito (Projeto de Lein. 3744, de 1989, p.

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    praticamente reproduziu os termos estabelecidos no artigo 14 da

    Constituio Federal quanto definio do instituto da iniciativa

    popular e seus requisitos fundamentais. A novidade ficou por conta

    dos pargrafos primeiro e segundo. O primeiro estabelece que o

    projeto de lei de iniciativa popular deve limitar-se a um nico

    assunto e o pargrafo segundo determina que o projeto no pode ser

    rejeitado por vcio de forma, cabendo Cmara dos Deputados ou

    rgo competente providenciar a correo de eventuais

    impropriedades de tcnica legislativa ou de redao.56Desnecessrio

    dizer que nenhuma alterao pode afetar o sentido fundamental doprojeto popular. Mas a lei nada estabeleceu a este respeito. A

    caracterstica deste instituto em outros pases de deixar aberta aos

    parlamentares, obviamente, apenas a possibilidade de apresentar

    um projeto de lei alternativo e que concorra com o primeiro.57

    2.2.2) O NMERO DE ASSINATURAS

    No h consenso na doutrina quanto ao nmero ideal de

    assinaturas necessrias para por em prtica a iniciativa popular. No

    direito comparado, os nmeros so, de um pas para outro, bastante

    dispares.58

    Os autores consideram, de modo geral, dois problemas. H,

    por um lado, a preocupao em no estabelecer um patamar

    excessivamente alto, que signifique um empecilho ao exerccio dainiciativa. Por outro lado, rejeita-se a fixao de um patamar to

    baixo que permita uma proliferao de iniciativas populares. O

    11.356). A Lei 9709 estabeleceu, em seu artigo 12, que a tramitao dos projetos de plesbiscito e referendoobedecer s normas do Regimento Comum do Congresso Nacional.56Lei 9709, artigo 13, pargrafo 2.57A respeito deste aspecto da iniciativa popular na legislao estrangeira ver RIBEIRO, Hlcio.A Iniciativa

    Popular na Constituio de 1988.58Idem, ibidem, 1993.

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    abuso na utilizao do instituto poderia, nessa perspectiva, lev-lo

    ao descrdito e ao desgaste.

    As constituies da Sua, Espanha, ustria e Itlia optaram

    por estabelecer um nmero fixo de eleitores, ao passo que nos

    Estados Unidos as constituies estaduais que admitem a iniciativa

    popular fixaram uma percentagem de eleitores em relao ltima

    eleio geral do estado, como requisito para aceitao da proposta.

    A fixao de uma percentagem permite que o nmero mnimo

    de assinaturas necessrio iniciativa popular acompanhe a variao

    do nmero de eleitores alistados, sem necessidade de modificao do

    percentual. O estabelecimento de um nmero fixo, de uma unidade,

    favorece uma defasagem em relao ao aumento ou diminuio do

    eleitorado, como nas Constituies europias de um modo geral. A

    exigncia de 50.000, eleitores, na Itlia por exemplo, hoje no

    corresponde nem a 0,1% (menos de um dcimo por cento) do

    eleitorado. Este problema s pode ser corrigido por uma mudana

    no texto constitucional.

    Agiu bem, portanto, o constituinte brasileiro, ao fixar um

    patamar de assinaturas em um percentual do eleitorado. Por outro

    lado, o percentual de 1% foi tomado pela doutrina brasileira, de

    modo geral, como uma exigncia difcil de ser cumprida, posto que

    significava, poca da promulgao da Constituio de 1988, quase

    novecentas mil assinaturas e hoje um nmero em torno de

    1.260.000 assinaturas, conforme os dados da eleio de 2006.59

    Deve-se ressaltar que as assinaturas devero estar distribudas

    em pelo menos 5 (cinco) estados com no menos de 0,3% (trs

    dcimos por cento) de eleitores em cada um deles. Todas estas

    59

    Estavam aptos a votar em 2006 125.913.134 eleitores segundo o TSE. http://www.tse.gov.br, acessado em05 de julho de 2007.

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    exigncias podem tornar, de fato, o exerccio da iniciativa popular

    mais difcil:

    As exigncias, que, no texto em exame condicionam apropositura popular de leis, tornam difcil, portanto,

    improvvel, que tal ocorra efetivamente.60

    Apesar da dificuldade, Dallari chama a ateno para o efeito

    mobilizador do instituto, possibilitando ampla discusso do tema

    objeto da iniciativa popular:

    No nmero fcil de ser conseguido, mas tambm no exageradamente difcil, devendo-se ainda considerar que

    todo trabalho de coleta de assinaturas ter um efeito

    mobilizador e conscientizador, provocando o debate de

    assuntos de interesse pblico.61

    Por outro lado a exigncia de distribuio das assinaturas

    pelos Estados da federao, com um mnimo de subscritores em

    cada um deles, pode ser considerada medida positiva. As dimenses

    geogrficas do pas, aliada desigual distribuio da populao pelo

    territrio, poderiam propiciar a apresentao de projetos oriundos de

    apenas uma regio e, portanto, comprometidos com interesses

    particulares:

    A inteno do legislador, ao fixar o nmero mnimo de

    subscritores e de Estados participantes, foi impedir que a

    60 FERREIRA FILHO, Manoel Gonalves. Comentrios Constituio Brasileira de 1988. So Paulo:Saraiva, vol. 2, 1992, p. 98. A Constituio Brasileira vigente admite a iniciativa popular em teoria, mas adificulta na prtica (FERREIRA, Luis Pinto. Comentrios Constituio Brasileira, cit., p. 271). Como sev, manifesta a inteno de dificultar, por todos os meios, uma iniciativa dessa ordem, tornando

    praticamente impossvel a sua viabilizao (SOARES, Orlando. Comentrios Constituio da RepblicaFederativa do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 191).61

    DALLARI, Dalmo de Abreu. A participao popular e suas conquistas. In Cidado Constituinte, cit.,, p.378.

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    iniciativa popular parta de setores localizados com o

    objetivo de alcanar interesses particulares.62

    Jos lvaro Moiss considera que a exigncia de todos esses

    requisitos pode tornar a viabilizao da iniciativa popular acessvel

    apenas aos setores mais organizados da sociedade. Segundo este

    autor, somente tais grupos possuiro estrutura para mobilizar a

    opinio pblica em torno de uma proposta, qualquer que seja o

    tema.63 Para conseguir o apoio no apenas dos signatrios da

    proposta mas de boa parte da sociedade, ser necessrio a

    arregimentao de recursos humanos e materiais que somente

    entidades bem estruturadas como sindicatos, grandes grupos

    econmicos e todos os tipos de lobbies podero movimentar. Nessa

    perspectiva, sairo prejudicados os grupos menos organizados e,

    portanto, menos favorecidos da sociedade:

    Esses setores, como acontece durante as campanhaseleitorais para a disputa de cargos pblicos, sero

    afetados, sim, pelas campanhas em torno da iniciativa,

    mas dificilmente tero capacidade organizativa para se

    qualificar como apresentadores de alguma iniciativa que,

    em algum sentido, corresponda aos seus interesses.64

    Dessa forma, o exerccio da iniciativa popular estaria falhandojustamente onde se faz mais necessrio, ou seja, junto aos setores

    menos favorecidos da sociedade. Por outro lado, necessrio

    lembrar dois pontos. A crtica exagerada pois no se pretende

    substituir a democracia representativa pela participao direta. A

    62PRICE WATERHOUSE. So Paulo. A Constituio do Brasil de 1988: Comparada e Comentada. SoPaulo, 1989, p. 246.63

    MOISES, Jos lvaro, op. cit., p. 87.64MOISES, Jos lvaro, op. cit., p. 87.

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    participao popular deve ser regulamentada exatamente para

    proteger os grupos menos favorecidos e, ao mesmo tempo, evitando

    uma banalizao do instituto. Em primeiro lugar a iniciativa

    popular, assim como outros mecanismos de participao direta,

    possui, justamente, a qualidade de impulsionar a organizao de

    todos aqueles que desejam intervir de modo direto na gesto da

    coisa pblica. Em segundo lugar, existem formas de reprimir a

    utilizao abusiva de recursos materiais em relao a estes

    institutos, como se ver adiante.

    Assim sendo, apesar das previsveis dificuldades, a iniciativapopular certamente impulsionar a participao poltica do cidado

    de um modo geral, como, alis j est acontecendo. Em novembro de

    1991 um grupo de eleitores entregou Cmara dos Deputados o

    primeiro projeto de lei elaborado por iniciativa do povo. A proposta

    tinha como objetivo a criao de um fundo nacional de moradia

    popular e foi apresentado, poca, com cerca de 850.000 (oitocentas

    e cinqenta mil) assinaturas. 65Outro projeto de iniciativa resultou

    na edio da lei de crimes hediondos em face do clamor popular

    diante da violncia urbana tambm no incio da dcada de noventa.

    Duas ltimas questes devem ser levantas em relao s

    assinaturas: o controle da autenticidade e os prazos para coleta das

    mesmas. No h previso constitucional neste sentido. Entretanto, a

    legislao regulamentadora deveria ter tratado destes temas comoforma de garantir a idoneidade do processo. A lei n. 9709 nada

    estabeleceu a respeito.

    De fato, necessrio definir os dados que devero constar da

    lista de assinaturas para reconhecimento da autenticidade das

    65Folha de So Paulo, 20 de novembro de 1991, p. 8.

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    mesmas, bem como estabelecer quem ficar responsvel por sua

    aferio.

    Em outros pases esse controle feito pelos prprios rgos do

    Estado. Na Itlia cabe ao Poder Judicirio conferir a autenticidade

    das assinaturas e nos Estados Unidos Secretaria de Estado. Neste

    pas as assinaturas so conferidas por amostragem e, em casos de

    dvida, submete-se toda a lista a uma averiguao rigorosa,

    havendo casos de propostas que tiveram milhares de assinaturas

    anuladas. 66

    Existe a hiptese de delegar-se a responsabilidade pela coleta eautenticidade das assinaturas s entidades promotoras do projeto.

    Esta foi, como se ver, a soluo encontrada pelo Regimento Interno

    da Cmara Municipal de So Paulo, determinando que as listas

    sejam organizadas por uma entidade legalmente constituda ou por

    trinta cidados, que se responsabilizaro pela idoneidade das

    subscries.67

    No h tambm previso constitucional a respeito de prazos

    para coleta e verificao de assinaturas. Benevides salienta que uma

    excessiva lentido na verificao das assinaturas pode protelar

    indefinidamente o processo.68 Na Califrnia, por exemplo, os

    promotores do projeto tm um prazo de cento e cinqenta dias para

    coletar as assinaturas e na Sua o prazo de dezoito meses. Estas

    medidas evitam o prolongamento excessivo do processo mas,novamente, a lei nada estabelece a no ser a competncia da

    66BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita. op. cit., p. 177.67 O projeto de lei n. 4.160, do Deputado Sigmaringa Seixas, determinava que a Unio facilitasse, nosMunicpios, a coleta de assinaturas atravs dos Cartrios da Justia Eleitoral, autenticando as assinaturas ecertificando a participao dos analfabetos (artigo 13, pargrafo nico). O projeto do Deputado PlnioSampaio apenas determinava que o projeto devia conter as assinaturas dos eleitores seguidas dosrespectivos nomes, nmeros dos ttulos eleitorais e estados de origem (artigo 7, pargrafo primeiro). Maisuma vez a legislao regulamentadora deixou muito a desejar no especificando nada a este respeito. Comose tem visto ao longo deste artigo, os projetos de regulamentao eram mais detalhados e cobriam uma srie

    de lacunas que a Lei No. 9709 deixou em aberto.68BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita. op. cit., p. 170.

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    Cmara dos Deputados para verificar o cumprimento das exigncias

    estabelecidas em lei, analisando o projeto popular com base no

    Regimento Interno daquela casa legislativa.69

    2.2.3) LEIS E MATRIAS QUE PODEM SER OBJETO DA

    INICIATIVA POPULAR

    A Constituio de 1988 estabeleceu a iniciativa popular em

    matria de leis complementares e ordinrias. No h, entretanto,

    nenhuma previso expressa quanto a matrias includas ou

    excludas do mbito da iniciativa dos cidados. Neste sentido

    devemos entender que a iniciativa popular pode ser exercida em

    relao a todas as matrias previstas na iniciativa geral do artigo 61,

    caput, excluindo-se as de iniciativa privativa.

    Problema maior se coloca no tocante s emendas

    constitucionais. A Constituio disciplinou a competncia para

    iniciar o processo de reforma constitucional no artigo 60, incisos I, II

    e III, mediante proposta de um tero dos membros da Cmara dos

    Deputados ou do Senado Federal, do Presidente da Repblica ou de

    mais da metade das Assemblias Legislativas das unidades da

    Federao, com voto da maioria relativa dos seus membros. No h,

    portanto, previso expressa para iniciativa dos cidados neste

    terreno.

    A excluso da iniciativa popular em matria constitucional

    restringe sensivelmente o alcance do instituto e, mais do que isso, o

    alcance do princpio da soberania popular.

    Como afirma Jos lvaro Moiss,

    69Lei No. 9709 de novembro de 1998.

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    (...) essa impossibilidade restringe a eficcia do princpio

    da soberania popular, uma vez que a participao,

    ademais das eleies, s intervm para produzir efeitos no

    plano da legislao ordinria (o que, certamente, no

    irrelevante). (...) Trata-se, portanto, apesar da novidade, de

    concepo bastante restritiva do modelo que envolve a

    legislao direta (...) 70

    No demais lembrar que algumas das mais importantes

    modificaes da Constituio sua operaram-se a partir das

    iniciativas populares. Na Itlia o referendo sobre o divrcio foi

    desencadeado por iniciativa popular. Tambm as constituies da

    Espanha e ustria admitem a iniciativa popular em matria

    constitucional. Dos pases com tradio no uso dos mecanismos de

    participao direta, somente nos Estados Unidos no adotada a

    iniciativa popular em matria constitucional a nvel federal.

    Fbio Comparato, entretanto, entende cabvel a iniciativapopular em matria constitucional. Segundo o autor, a Constituio

    no estabelece nenhuma exclusividade de iniciativa para

    desencadear-se o processo de reviso constitucional previsto no

    artigo 3 do Ato das Disposies Constitucionais Transitrias:

    Parece razovel, portanto, entender-se que ele pode ser

    instaurado mediante proposta de qualquer das pessoas ou

    entidade anunciadas no artigo 61, como se tratasse de

    iniciativa em matria legislao complementar ou

    ordinria.71

    70BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita. op. cit., pp. 84 e 85.71

    COMPARATO, Fbio Konder.Emenda e Reviso na Constituio de 1988.Revista de Direito Pblico, 93: 125-128, jan-mar, p. 1990.

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    Caso houvesse recusa do Congresso em receber o projeto de

    iniciativa popular alegando falta de complementao do artigo 61,

    pargrafo segundo, diz Comparato, caberia mandado de injuno

    para superar a resistncia. 72

    Por outro lado, a Constituio, ao estabelecer os mecanismos

    de participao direta, limitou-se a enunciar princpios, pois dos trs

    mecanismos, apenas a iniciativa popular vem ali regulamentada, e

    de maneira incompleta. Ou seja, os mecanismos de participao

    seriam, nesta perspectiva, admissveis no apenas nos casos

    expressamente previstos na Constituio, pois:

    Trata-se, no caso, de autnticos princpios substantivos e

    no de princpios adjetivos ou instrumentais, para

    retomarmos a classificao proposta pelo Prof. Jorge

    Miranda. Quer isto significar que se est, ai, diante de um

    dos fundamentos da ordem poltica, qual seja, a soberania

    popular.73

    Isto significa que o exerccio da soberania popular direta se

    encontra em posio no mnimo eqipolente sua manifestao

    atravs de representantes e, portanto, qualquer limitao ao

    princpio deve estar expressa no texto constitucional:

    Ora, para que se pudesse dizer, com lgica certeza, que o

    povo se auto-limitou no exerccio da soberania, abrindomo do poder de exerc-la diretamente, ou que, tendo

    admitido, em princpio, o exerccio direto do poder

    soberano, pretendeu faz-lo apenas em casos especiais e

    taxativos, seria preciso que a Constituio que a

    72

    Idem ibidem, p. 1990.73Idem, ibidem, p. 128.

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    manifestao originria da soberania o declarasse,

    explicitamente.74

    O autor conclui sustentando que, nesta perspectiva, noapenas a reviso constitucional mas qualquer reforma da

    Constituio pode dar-se atravs dos mecanismos de participao

    poltica direta, uma vez que no h norma explcita em contrrio:

    Havendo a Constituio de 1988 admitido o exerccio

    direto da soberania popular como princpio, a sua

    excluso, para as emendas e a reviso, dependeria de

    uma norma explcita. Como esta no existe, deve-se

    concluir que toda e qualquer reforma da Constituio pode

    ser ratificada como tambm iniciada pelo voto

    popular.75

    Comparato considera conveniente, no entanto, que a legislaoregulamentadora tornasse explcito esse princpio76 o que no

    ocorreu na nova lei.

    Nessa perspectiva caberia tambm ao legislador especificar as

    matrias que podero ser objeto da iniciativa popular. Algumas

    constituies, como se viu, excluem, por exemplo, as leis

    oramentrias e tributrias do mbito da participao direta. 77

    74Idem, ibidem, p. 128.75COMPARATO, Fbio Konder.Emenda e Reviso na Constituio de 1988, 1990, p. 128.76 O projeto n. 3.744, do Deputado Plnio de Arruda Sampaio, propunha a possibilidade de referendoconstitucional mediante proposta dos cidados, desde que autorizado pela maioria absoluta dos membros doCongresso Nacional. O requerimento deveria ser apresentado nas mesmas condies de um projeto deiniciativa popular (artigo 4).77 o que estabelecia o projeto de lei do Dep. Plnio Sampaio, supra citado: A iniciativa popularlegislativa, exercida nos termos do pargrafo segundo do artigo 61 da Constituio, no poder ter por

    objeto matria financeira e oramentria ou de iniciativa exclusiva do Presidente da Repblica, do PoderJudicirio e do Ministrio Pblico (art. 7).

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    De qualquer forma, alm de exclurem-se as matrias cuja

    iniciativa privativa, a participao direta tambm sofre as

    limitaes impostas pelo artigo 60, pargrafo quarto, que impede a

    deliberao de emenda constitucional tendente a abolir a federao,

    o sufrgio universal, a separao dos poderes e os direitos e

    garantias individuais.

    A vedao constitucional imposta em relao aos direitos e

    garantias individuais tornou-se polmica por ocasio da proposta de

    levar-se plebiscito a instituio da pena de morta. A

    inconstitucionalidade da proposta foi levantada por vrios autores. Aevidente restrio a um dos direitos fundamentais do homem, o

    direito vida, contida a proposta, entra em flagrante conflito com o

    artigo 60, pargrafo quarto. 78

    A Constituio incorpora, assim, princpios estabelecidos nos

    mais importantes documentos de proteo dos direitos humanos,

    que garantem a inviolabilidade destes direitos contra as

    eventualidades e quaisquer maiorias ou minorias polticas, nascidas

    ou no de situaes excepcionais. Trata-se de direitos que no

    podem estar vulnerveis ao de qualquer governo ou Estado,

    posto que cristalizados na conscincia universal a partir das

    revolues dos sculos XVII e XVIII e dos movimentos iluminista e

    jusnaturalista. Como ressalta Enrique Ricardo Lewandowski:

    A partir desses movimentos intelectuais, firmou-se a

    noo de que o homem possui certos direitos inalienveis e

    imprescritveis, decorrentes da prpria natureza humana e

    existentes independentemente do Estado. Passou-se a

    entender, desde ento, que tais direitos, dentre os quais se

    destacam o direito vida e liberdade, no podem ser,

    78

    BRITTO, Carlos Ayres de.A inconstitucionalidade do plebiscito sobre a pena de morte. Revista de DireitoPublico, 100: 70-75, out-dez, 1991.

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    em hiptese alguma, vulnerados por governantes ou

    quaisquer indivduos.79

    Neste sentido, nem mesmo a manifestao direta da soberaniapoder modificar o contedo dos direitos e garantias individuais e

    dos princpios elencados no artigo 60, pargrafo quarto. Para

    Comparato estas vedaes constitucionais se impem tanto s

    emendas como ao processo de reviso constitucional. Dessa forma

    apenas o povo reunido em Assemblia Constituinte, que a

    manifestao originria da soberania, poder alterar a federao, a

    separao dos poderes, o sufrgio universal e os direitos e garantias

    individuais. 80

    2.3) INICIATIVA POPULAR E REFERENDO

    A experincia estrangeira com a democracia semidireta tem

    demonstrado que a iniciativa popular funciona melhor quando

    combinada com o referendo. O fato de se retirar do parlamento aexclusividade da aprovao ou rejeio do projeto acrescenta

    iniciativa popular uma fora que ela normalmente no possui

    quando a palavra final cabe ao Poder Legislativo. Eventual

    submisso da proposta a referendo impe ao Poder Legislativo

    anlise mais cuidadosa da iniciativa dos cidados, possibilitando

    79LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Proteo dos Direitos Humanos na Ordem Interna e Internacional.Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 1.80COMPARATO, Fbio Konder. op. cit., p. 127. Benevides defende a possibilidade do povo decidir sobrequestes relacionadas aos direitos humanos desde que as propostas impliquem na ampliao desses direitos:Nesse sentido, abrangemos tanto os meios para garantir direitos e estende-los a todos, quanto o surgimentode novas formas de reivindicao ou de sano referentes violao dos direitos fundamentais. A autoraconsidera a participao direta do cidado neste terreno uma maneira de criar um equilbrio em relao ao

    poder de presso de certos rgos ou setores do Estado na definio estes temas. Tem em vista,especialmente, as leis de anistia e a represso aos crimes contra os direitos humanos. O problema resolvidode forma diferenciada em outros pases. O Uruguai submeteu a referendo, por iniciativa popular, a lei de

    anistia, em 1989. A Itlia, por outro lado, exclui as leis de anistia das consultas populares. Ver Maria Victriade Mesquita Benevides, op. cit., pp. 419 a 151.

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    aos eleitores uma interveno mais efetiva no processo de

    elaborao das leis.

    Na Sua e nos Estados Unidos, como se viu 81, a eficcia do

    instituto tem sido maior, em boa medida pelo efeito desta

    combinao, enquanto que na Itlia, onde a iniciativa popular no

    desemboca em um referendo, tem ocorrido o inverso.

    Existem, no entanto, vrias formas de combinao do

    referendo e da iniciativa popular. A mais radical forma da

    participao direta, neste sentido, a realizao de referendo sem

    que o Poder Legislativo possa fazer qualquer apreciao do projeto. Ea iniciativa direta, praticada em alguns estados da federao

    americana, pela qual a medida vai diretamente votao popular e o

    referendo se torna, assim, uma conseqncia necessria e

    indispensvel do processo.

    O povo pode ser tambm chamado a deliberar sobre um

    projeto originado da iniciativa popular depois da apreciao e

    votao do mesmo pelo Legislativo. Neste caso os cidados ratificam

    ou no uma deciso parlamentar num processo onde o referendo

    tem carter supletivo. Essa a modalidade instituda na Sua e nos

    Estados Unidos na forma da iniciativa indireta.

    A Constituio brasileira vigente no vinculou a iniciativa

    popular ao referendo, em nenhuma das formas vistas acima, o que

    torna o instituto menos eficaz como instrumento de participaopoltica. A sistemtica brasileira assemelha-se bastante da

    Constituio Italiana, neste aspecto. Existe o risco, portanto, da

    iniciativa popular ficar reduzida a um mecanismo de mobilizao da

    81Cf. RIBEIRO, Hlcio.A iniciativa popular nas Constituio de 1988.

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    opinio pblica, sujeito ao esquecimento e toda sorte de

    protelaes do poder legislativo. 82

    Existia a dvida quanto possibilidade da norma

    regulamentadora criar a vinculao, em face da previso

    constitucional que determina exclusividade do Congresso para

    autorizar referendo e convocar plebiscito (Constituio Federal,

    artigo 49, XV).

    Benevides defende a possibilidade de iniciativa popular para a

    realizao de plebiscitos uma vez que a exclusividade do Congresso,

    neste caso, se refere apenas convocao, podendo os cidados,nesta perspectiva, deliberarem sobre a realizao de plebiscitos e

    no de referendos. Quanto a estes ltimos, a iniciativa popular se

    limitaria a solicitar ao Congresso a realizao da consulta, tendo

    este a competncia para autorizar referendo:

    Nesse sentido, entendo que pode haver iniciativa popular

    vinculante para a realizao de plebiscito mas no parareferendos. Em relao a estes, a iniciativa popular poder

    apenas obrigar o Congresso a deliberar sobre se d ou no

    autorizao para a convocao da consulta popular.83

    Somente a legislao complementar poderia fazer qualquer

    vinculao neste sentido e tornar claro o dispositivo constitucional o

    que novamente no ocorreu, deixando mais uma lacuna no trato da

    questo.84

    82 A matria havia recebido melhor tratamento em vrios anteprojetos de Constituio. Ver RIBEIRO,Hlcio,A iniciativa popular na Constituio de 1988..83 BENEVIDES, Maria Victria de Mesquita. A Cidadania Ativa, p. 163. A ambigidade do textoconstitucional se d em torno dos termos convocar e autorizar. Na opinio de Benevides a convocao podeser apenas o instrumento de uma vontade maior que, esta sim, autoriza. Nesta perspectiva, caberiaautorizao de plebiscitos por iniciativa popular e no de referendos (pp. 163 e 168).84 O projeto de Plnio Sampaio propunha a convocao de plebiscito e autorizao de referendo peloCongresso Nacional mediante requerimento dos cidados nas mesmas condies exigidas para a iniciativa

    popular (artigo 1, inciso IV e artigo 2., inciso IV). O artigo 8, pargrafo segundo, por outro lado,possibilitava a realizao de referendo sobre lei originada de iniciativa popular, nos termos acima referidos.

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    2.4) O CONTROLE DOS RECURSOS ECONMICOS

    J foi referida, anteriormente, a necessidade de uma estrutura

    complexa, envolvendo recursos humanos e materiais, para que sepossa mobilizar os cidados em torno de uma proposta de iniciativa

    popular e cumprir-se os requisitos exigidos. Em outros pases a

    iniciativa popular tem levado os promotores utilizao cada vez

    maior de recursos financeiros, imposta pela necessidade de se

    atingir um amplo contingente de cidados que se disponham a

    assinar um projeto de lei. Se a proposta vai a referendo aparece

    ainda a necessidade de uma campanha com as dimenses de uma

    campanha eleitoral, para se obter o sim da maioria do eleitorado.85

    Nos Estados Unidos a participao direta fez surgir uma

    verdadeira indstria da iniciativa. O exemplo da Califrnia

    expressivo. Naquele estado existem empresas que patrocinam

    projetos de lei sem que tenham, necessariamente, nenhum interesse

    direto no tema em questo. Alm do que, a complexidade dasquestes propostas exige alto nvel de informao, algo que s se

    encontra nos estratos sociais mais organizados e de maior poder

    aquisitivo. Segundo Jos lvaro Moiss os setores que se utilizam da

    participao direta, nos Estados Unidos, so formados por uma elite

    de pessoas de cor branca, grande poder aquisitivo e alto nvel de

    informao. A conseqncia disso foi uma crescente mercantilizao

    do processo. Na Califrnia o custo mdio de uma assinatura foi

    avaliado em torno de 50 dlares.86

    Embora seja salutar a determinao do projeto em vincular a iniciativa popular ao referendo, a deciso finalcaber sempre ao Poder Legislativo. No fica claro tambm se sero necessrias duas mobilizaes uma

    para a apresentao da proposta de iniciativa popular e outra para requerer a realizao do referendo caso aCmara rejeite ou modifique o projeto ou se o requerimento relativo ao referendo poder constar do

    projeto.85

    MOISES, Jos lvaro. op. cit., p. 73.86MOISES, Jos lvaro. op. cit., p. 73.

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    Por outro lado, essa situao acabou gerando uma legislao

    que busca limitar o abuso na utilizao dos recursos econmicos.

    Inicialmente tentou-se limitar os gastos necessrios para

    qualificao de uma proposta em at 25 centavos de dlar por

    assinatura, mas a medida foi considerada inconstitucional pela

    Suprema Corte. 87

    Da experincia americana Benevides destaca as leis que visam

    evitar que se formem certos comits, por trs dos quais se escondem

    grupos de interesses. Considera indispensvel definir de maneira

    clara a origem dos recursos, sejam eles usados contra ou a favor daspropostas. Para a autora, somente a criao de controles

    democrticos poder evitar que a desigualdade de recurso desvirtue

    o sentido da participao direta e, neste sentido, sugere que o

    controle dos gastos seja feito nos moldes do controle proposto para

    as campanhas eleitorais, bem como que se garanta acesso aos meios

    de comunicao a todos os envolvidos no processo. 88

    2.5) A APLICABILIDADE DA INICIATIVA POPULAR

    So muitos os aspectos, como se pde observar, que ainda

    necessitam ser regulados a fim de que o exerccio da iniciativa

    popular se torne efetivo. Diante das lacunas constitucionais e

    infraconstitucionais cabe perguntar se na falta da lei

    regulamentadora o exerccio do instituto ficaria obstaculizado.

    87 BELL, Charles e PRICE, C. California Government Today, Politics of reform?. Chicago: The DorseyPress, 1988, p. 100.88 op. cit., p. 191 e 192. Os projetos de lei que tramitam na Cmara regulamentando os mecanismos de

    participao direta no propem nenhuma regra no tocante ao controle do poder econmico. Apenas oprojeto do Deputado Plnio Sampaio determina que o Tribunal Superior Eleitoral assegure, atravs deinstrues, o acesso gratuito aos meios de comunicao para livre divulgao dos argumentos e docontraditrio, no caso das campanhas para plebiscito e referendo (artigo 6). De acordo com o projeto o

    horrio gratuito para a divulgao das propostas vigorar nos 30 dias anteriores s consultas, em doisprogramas dirios de trinta minutos cada (art. 6, pargrafo nico).

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    Apesar do advento da lei n. 9709 a questo ainda pertinente em

    face das lacunas apontadas acima.

    A doutrina divergiu a respeito da aplicabilidade dos institutos

    de participao direta. Dos trs mecanismos previstos pela

    Constituio de 1988 referendo, plebiscito e iniciativa popular

    apenas este ltimo, como se viu, contm algumas indicaes de

    procedimentos e requisitos bsicos fixados no prprio texto

    constitucional.

    Para Mnica Herman Salem a iniciativa popular no seria um

    mecanismo auto-aplicvel e a ausncia de legislaoregulamentadora poderia obstar seu funcionamento:

    O preceito contudo, no foi firmado de modo a conferir

    auto-executoriedade ao comando cuja regulamentao

    restou reservada ao legislador ordinrio. Assim, sem o

    advento da lei ordinria a conferir aplicabilidade quele

    preceito, por mais uma vez, a regra constitucionalpermanecer no papel.89

    Pinto Ferreira, por sua vez, entende que o exerccio da

    iniciativa popular sucede do prprio texto constitucional, uma vez

    que os requisitos bsicos j esto nele fixados:

    Na Seo VIII do Ttulo IV da Constituio reconhece-se ainiciativa popular mesmo sem regulamentao legal, pois

    89CAGGIANO, Mnica Herman Salem.A Representao Poltica na Nova Constituio. Cadernos Liberais.Braslia: Instituto Tancredo Neves, n. 86. Bolvar Lamounier entende da mesma forma: Mas notransparece a natureza da iniciativa que est sendo instituda (...), como ser acionada, qual vai ser suainstrumentao no fica claro. Parece-me, portanto, que ser difcil aplic-la sem lei complementar que a

    regulamente por inteiro. (Gesto Estadual: Participao e Controle. In: A nova Constituio Paulista:Perspectivas. Vrios Autores. So Paulo: Fundap, 1989).

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    adiante a Constituio (art. 61 pargrafo 2) estabelece e

    determina os requisitos indispensveis ao seu exerccio.90

    Neste sentido, bastaria a apresentao de um projeto de leiarticulado e assinado nas condies do artigo 61, pargrafo

    segundo, para desencadear o processo de elaborao legislativa por

    iniciativa popular. Restaria saber se a casa legislativa encarregada

    de receber e apreciar o projeto no poderia recus-lo alegando falta

    de complementao da norma constitucional. Neste caso o mandado

    de injuno poderia garantir o exerccio da iniciativa popular.

    O mandado de injuno est previsto no inciso LXXI do artigo

    5 da Constituio vigente e visa garantir o exerccio de

    prerrogativas inerentes nacionalidade, soberania e cidadania e dos

    direitos e garantias fundamentais.

    A ausncia de norma regulamentadora gera, portanto, a

    necessidade de preencher-se a lacuna legal atravs do mandado de

    injuno, posto que a iniciativa popular um direito de cidadaniaou, nas palavras de Jos Cretella Jnior, um direito pblico

    subjetivo poltico, cuja restrio abusiva tem como conseqncia:

    O direito de recorrer ao poder judicirio solicitando o

    controle jurisdicional do ato lesivo. 91

    Dessa forma, a eventual recusa em receber o projeto popular

    por parte do poder legislativo poderia ensejar o mandado deinjuno para garantir o exerccio deste direito poltico. Este foi o

    entendimento de Fbio Comparato, como se viu nos comentrios

    acerca da posio desse autor no tocante a iniciativa popular em

    matria constitucional.92

    90FERREIRA, Luis Pinto. op. cit.,p. 157.91 CRETELLA Jr. Jos. Comentrios Constituio Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense

    Universitria, 1991, vol. II, p. 1091.92supra,p. 116.

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    A falta de norma regulamentadora no impediu, portanto, o

    exerccio da iniciativa popular, condicionado apenas a apresentao

    de um projeto popular nas condies determinadas pela

    Constituio. E a Cmara dos Deputados aceitou e analisou dois

    projetos de iniciativa popular logo em seguida promulgao do

    texto constitucional. Mas muitas questes analisadas aqui

    permanecem sujeitas discusso e dvidas em face dos limites da

    Lei No. 9709 de novembro de 1998.

    2.6) CONSIDERAES FINAIS

    Apesar disso, observou-se que a regulamentao do instituto

    da iniciativa popular pela lei de nmero 9709 de 1998 deixou muitas

    lacunas que ainda tero que ser discutidas e sanadas caso este

    procedimento de participao poltica venha a ter mais aceitao na

    cultura poltica do pas. Anteprojetos de Constituio, que serviram

    de base para o Congresso Constituinte, assim como anteprojetos de

    lei que tramitaram no Congresso com o intuito de regulamentar o

    artigo 14 da Constituio, tinham melhores e mais detalhadas

    solues para diversas questes que foram aqui levantadas.

    Procurou-se, mesmo assim, mostrar a importncia deste instituto

    na efetivao da concepo brasileira de participao direta do

    cidado, demonstrada pelo Constituinte j no primeiro artigo da

    Constituio Federal de 1988, pargrafo 2. : todo poder emana do

    povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou

    diretamente, nos termos desta Constituio ( grifo nosso ). A

    articulao deste instituto com os demais, principalmente na

    convocao de referendos e plebiscitos, apontada pela doutrina

    nacional e pela experincia estrangeira, como fundamental para a

    efetivao da democracia participativa prevista no texto

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    constitucional. Embora a Constituio no tenha contemplado essa

    possibilidade e a norma regulamentadora nada estabelea a esse

    respeito, parece que o espao para uma utilizao mais efetiva deste

    mecanismo pelo cidado no est fechado, ao contrrio. Em tempos

    de globalizao e fortes presses sobre a soberania dos Estados

    sempre bom lembrar os fundamentos da nossa ordem constitucional

    e reafirmar a necessidade de avanar na ampliao da participao

    popular democrtica como remdio para a crise profunda em que se

    encontram nossas instituies representativas, mais uma vez

    enredados em escndalos de corrupo e pouco sensveis aosreclamos das urnas.

    2.7) REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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