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A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL NO CONCEITO DE SOCIEDADE EM LIMA VAZ Maria Celeste de Sousa 1 Resumo: Este artigo discorre sobre o diálogo entre Lima Vaz e Hegel na organização da sociedade de direito. Lima Vaz adere ao aspecto formal e teleológico do sistema hegeliano e pensa o movimento da ideia de sociedade nos três planos lógicos: o plano político, o plano democrático e o plano ético expressando, assim, a relação entre Ética e Direito. Seu objetivo é retomar os conceitos clássicos de Bem (Agathón), de Justiça (dike) e de Direito (dikaion) que são os fundamentos da vida democrática, forma ética do político e que garante a Dignidade Humana. Ele está dividido em três tópicos: 1) A forma universal de sociedade: a relação política; 2) A forma particular de sociedade: a relação democrática; 3) A forma singular de sociedade: a relação ética. Palavras chaves: Sociedade, Bem, Justiça, Direito, Dignidade Humana. Résumé: Cet article parle du dialogue entre Lima Vaz et Hegel dans lorganisation de la société de droit. Lima Vaz sassocie à laspect formel et logique hégélienne système téléologique et croit que le mouvement, lidée de la société en trois plans logiques: le plan politique, le plan démocratique et le plan de léthique, donc exprimer la relation entre léthique et le droit. Votre objectif est de retourner les concepts classiques de Bien (Agathon), la Justice (digue) et droit (dikaion) que sont les fondements de la vie démocratique, à léthique politique et qui assure la dignité de lhomme. Il est divisé en trois thèmes : 1) La forme universelle de la société : la relation politique; 2) la forme particulière de la société : la relation démocratique; 3) La forme singulière de la société: la relation éthique. Mots-clés: La société, le Bien, la Justice, le Droit, la Dignité de l'homme. Introdução Este artigo objetiva mostrar como a filosofia do Direito de Hegel influencia diretamente o conceito de sociedade em Lima Vaz. Esta influência refere-se ao aspecto formal e teleológico do sistema hegeliano (cf. SAMPAIO, 2006, p. 237). Pelo aspecto formal Lima Vaz adere metodologicamente à estrutura triádica de universalidade, 1 Doutora em Filosofia pela PUC-SP. Coordenadora do Curso de Filosofia da Faculdade Católica de Fortaleza. Vice-coordenadora do GT Um Olhar Interdisciplinar sobre a Subjetividade Humana (UECE). Professora colaboradora do Mestrado Acadêmico (UECE). Professora de Filosofia na Faculdade Católica de Fortaleza e da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará.

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A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL NO

CONCEITO DE SOCIEDADE EM LIMA VAZ

Maria Celeste de Sousa1

Resumo:

Este artigo discorre sobre o diálogo entre Lima Vaz e Hegel na organização da

sociedade de direito. Lima Vaz adere ao aspecto formal e teleológico do sistema

hegeliano e pensa o movimento da ideia de sociedade nos três planos lógicos: o plano

político, o plano democrático e o plano ético expressando, assim, a relação entre Ética e

Direito. Seu objetivo é retomar os conceitos clássicos de Bem (Agathón), de Justiça

(dike) e de Direito (dikaion) que são os fundamentos da vida democrática, forma ética

do político e que garante a Dignidade Humana. Ele está dividido em três tópicos: 1) A

forma universal de sociedade: a relação política; 2) A forma particular de sociedade: a

relação democrática; 3) A forma singular de sociedade: a relação ética.

Palavras chaves: Sociedade, Bem, Justiça, Direito, Dignidade Humana.

Résumé:

Cet article parle du dialogue entre Lima Vaz et Hegel dans l’organisation de la société

de droit. Lima Vaz s’associe à l’aspect formel et logique hégélienne système

téléologique et croit que le mouvement, l’idée de la société en trois plans logiques: le

plan politique, le plan démocratique et le plan de l’éthique, donc exprimer la relation

entre l’éthique et le droit. Votre objectif est de retourner les concepts classiques de Bien

(Agathon), la Justice (digue) et droit (dikaion) que sont les fondements de la vie

démocratique, à l’éthique politique et qui assure la dignité de l’homme. Il est divisé en

trois thèmes : 1) La forme universelle de la société : la relation politique; 2) la forme

particulière de la société : la relation démocratique; 3) La forme singulière de la société:

la relation éthique.

Mots-clés: La société, le Bien, la Justice, le Droit, la Dignité de l'homme.

Introdução

Este artigo objetiva mostrar como a filosofia do Direito de Hegel influencia

diretamente o conceito de sociedade em Lima Vaz. Esta influência refere-se ao aspecto

formal e teleológico do sistema hegeliano (cf. SAMPAIO, 2006, p. 237). Pelo aspecto

formal Lima Vaz adere metodologicamente à estrutura triádica de universalidade,

1 Doutora em Filosofia pela PUC-SP. Coordenadora do Curso de Filosofia da Faculdade Católica de

Fortaleza. Vice-coordenadora do GT Um Olhar Interdisciplinar sobre a Subjetividade Humana (UECE).

Professora colaboradora do Mestrado Acadêmico (UECE). Professora de Filosofia na Faculdade Católica

de Fortaleza e da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará.

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particularidade e singularidade. O momento da universalidade visa a totalidade em-si

imediata2 do conceito de sociedade expresso pela relação política. A particularidade é a

mediação conceptual entre a universalidade e a singularidade e refere-se à relação

democrática ou relação do direito, negação do puramente universal e determinação do

conceito de sociedade no limite do ser particular. A singularidade é a reflexão do

particular em-si mesmo como concreto e verdadeiro3 expresso pela relação ética. O

aspecto teleológico4 refere-se ao movimento dialético, passagem da universalidade

abstrata à particularidade e retorno ao universal na concretude da singularidade do

conceito de sociedade.

O movimento da ideia de sociedade em Lima Vaz processa-se, então, por meio

dos três planos lógicos constitutivos: o plano político, o plano democrático e o plano

ético expressando a relação entre Ética e Direito nas relações intersubjetivas. Por meio

desse movimento dialético ele retoma os conceitos que justificam a vida segundo o Bem

(agathón), ou a Ideia clássica de Comunidade ética, independente das suas modalidades

históricas.

O movimento dialético parte da inteligibilidade universal do político. A Política

visa estabelecer o exercício do Direito universal dos sujeitos partícipes da mesma

comunidade pelo estabelecimento da Lei justa. Discorre-se, portanto, sobre o conceito

de Justiça (dike), em seu aspecto subjetivo (Virtude) e objetivo (Lei) e em seguida fala-

se sobre a norma universal do Direito (dikaion). Demonstra-se, em seguida, a forma

particular do conceito de sociedade por meio da reflexão sobre o conceito vaziano de

situação. Esse conceito expressa a suprassunsão dialética da universalidade da Justiça e

do Direito por meio da prática intersubjetiva das diversas virtudes que correspondem às

diferentes circunstâncias da vida comunitária. Posteriormente, enfatiza-se a Ideia de

Democracia, forma ética que possibilita o exercício da participação livre na sociedade

de direito.

Discorre-se, por fim, sobre a forma singular do conceito de sociedade por meio da

reflexão sobre o conceito de Dignidade humana, que é a forma concreta do

2 “Ela é conceito enquanto pressuposição da racionalidade primeira e constitutiva do real, ou ainda

enquanto resulta, em termos hegelianos, da supressão dialética da oposição entre ser e essência”.

(SAMPAIO, 2006, p. 238). 3 “A singularidade, na lógica hegeliana, visa à terceira das determinações do conceito. Ela apresenta a

identidade reflexiva da universalidade primeira e da particularidade na qual se exprime inicialmente sua

riqueza.” (Ibid.. p. 329). 4 “Ele caracteriza-se por um movimento que é, ao mesmo tempo, progressão (linha) e retorno (círculo),

cumulativo e progressivo. O aspecto teleológico se faz presente em cada uma das obras de Lima Vaz, em

todo o seu sistema, e em todo o seu itinerário filosófico.” (Ibid., p. 242-243.)

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reconhecimento universal da pessoa que encontra o sentido de sua existência na

convivência comunitária e estabelece a igualdade pelo reconhecimento recíproco da

dignidade dos iguais dentro da Comunidade ética.

A forma universal de sociedade: a relação política

No plano da universalidade da relação política Lima Vaz reflete sobre as

categorias de Justiça e Direito. A Ideia da Justiça (dike) circunscreve-se no âmbito da

reflexão filosófica grega, que pela primeira vez na história ocidental interpretou o ethos

à luz da Razão demonstrativa (lógos apodeitikós) e estabeleceu como fundamentos da

vida ética, a Ideia do Bem (tó agathón) e a ideia do Justo (dikaion):

Ora, o Bem e o Justo, na sua transcendência ideal, apresentam-se

imediatamente com um caráter deontológico. O Bem conhecido é princípio

de obrigação interior, e o Justo, ao ser pensado, mostra-se imediatamente

como o melhor, sendo, portanto fonte da excelência própria da virtude

(eudaimonia), que é o fim de toda prática ética. (VAZ, 1996, p. 30).

É a partir dessa herança grega que Lima Vaz pensa a Justiça como a categoria que

inicia o movimento dialético da vida ética, e, por meio dela, resgata a interligação entre

os conceitos normativos fundamentais da práxis intersubjetiva que são: a Ética, a

Política e o Direito.

Conforme essa intuição clássica de politeia e de acordo com o pensamento

antropológico aristotélico-tomista que vê o homem como um vivente político (zôon

politikón), exatamente porque ele é um vivente racional (zôon logikón), Lima Vaz

reflete sobre a dialética da Justiça com o intuito em demonstrar a racionalidade que

vincula o agir ético à norma universal da Justiça na sociedade.

Seu pensamento visa “legitimar o poder pela justiça na perspectiva de uma

teleologia do Bem e fazer da vontade política uma vontade instauradora de leis justas -

uma nomotética regida pela razão do melhor” (VAZ, 1993, p. 259), o que implica a

interligação entre as duas faces da Justiça: a Virtude (areté) e a Lei (nómos). Para

Aristóteles, a Justiça (dike) é, com efeito, a “disposição de caráter que torna as pessoas

propensas a fazer o que é justo, que as faz agir justamente e desejar o que é justo”

(ARISTÓTELES, 1987, p. 81).

A interligação do aspecto subjetivo da Justiça como areté e o aspecto objetivo

como nómos constitui, para Lima Vaz, um invariante conceptual que permanece ao

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“longo do tempo assegurando a identidade do conceito na diferença com que se

apresenta nas suas distintas versões históricas” (VAZ, 2000, p. 177-178.)

Lima Vaz explica a categoria da Virtude (areté)5 como a dinâmica existencial

entre a posse permanente do Bem pelos sujeitos éticos, o que lhes configura sua

identidade ética, e, ao mesmo tempo, como o direcionamento da sua intencionalidade

para o horizonte universal, que é o fim da sua práxis virtuosa:

Trata-se de uma categoria que se constitui por uma dialética entre o estático

ou o já possuído (a virtude como qualidade do sujeito bom) e o dinâmico ou

ainda não alcançado (a virtude como movimento do sujeito bom para um

crescimento contínuo no Bem) (VAZ, 1993, p. 148).

O agir ético expressa-se, em consequência, como um agir necessariamente

virtuoso, um ato racional em vista do melhor, ou do bem individual e comunitário. A

proporção entre o Bem e a razão comunitária é exatamente o Justo, a distribuição

equitativa do bem comum: “o justo como mediador entre o Bem e seus beneficiários

passa a ser então a forma do ethos na sua transposição aos códigos da Razão” (VAZ,

1996, p. 31). Em sua expressão objetiva, o Justo manifesta-se na forma institucional

mais elevada, a sociedade política, e na sua expressão subjetiva, a forma de hábito

virtuoso.

A expressão subjetiva do Justo refere-se à prática da Virtude como habitus6

individual que visa o bem comum e que necessariamente direciona-se para o outro, visa

o direito do outro, porque ela manifesta o ato intencional em prol da igualdade7 na

comunidade. A prática virtuosa da justiça retifica, evidentemente, as ações

intersubjetivas e torna os homens bons uns para com os outros.

O Justo objetivo que estabelece, por outro lado, a ordem e a partilha equitativa do

Bem na comunidade é o Direito que estabelece e legitima a Lei comum. Logo, a Justiça

como Lei “é uma regulação permanente do agir dos indivíduos tendo em vista o bem da

comunidade” (VAZ, 2000, p.178) e, como tal, ela é a justiça legal (nómimon díkaion)

que obriga os sujeitos a obedecer a Lei em prol do bem comum e que implica a

denominação de Justo somente ao sujeito que respeita a lei comum.

5 “Podemos mesmo descobrir nesses dois termos a presença do gênio grego e do gênio romano em sua

concepção dessa forma superior do agir que é o agir segundo a virtude. Para o grego na areté esplende a

idéia (eidos) do Bem realizado (face estática da virtude); para o romano manifesta-se na virtus a força

(dýnamis) de realização do Bem (face dinâmica da virtude)” (VAZ, 2000, p.149). 6 “A justiça é o habitus, pelo qual, com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito.”

(TOMAS DE AQUINO, 2005, p. 56) 7 “O nome da justiça implica igualdade, por isso, em seu conceito mesmo, a justiça comporta relação com

outrem. Pois, nada é igual a si mesmo, mas a um outro”. (Ibid., 2005, p. 58).

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Para Lima Vaz, a intuição clássica do “par conceptual Virtude-Lei” constitui um

invariante inteligível e essencial da categoria da Justiça e manifesta a praticidade da

Virtude dentro da comunidade e a efetivação histórica da Justiça como ordenação da

práxis intersubjetiva:

É formalmente na relação com o outro no espaço simbólico da vida-em-

comum que a virtude, ou a excelência do agir individual, se faz justiça, vem a

ser excelência do agir na relação com o outro ou agir comunitário (VAZ,

2000, p. 178).

Ademais, como a Justiça visa imediatamente o bem comum, ela pode ser

considerada uma virtude completa, como afirma Aristóteles na Ética a Nicômaco8, no

sentido que possibilita o exercício atual da virtude no sujeito para consigo mesmo e, ao

mesmo tempo, para com o outro; e, por abranger todas as formas da existência

comunitária, ela é considerada a maior das virtudes.9

A prática da Justiça evidencia, com efeito, a relação constitutiva da

Intersubjetividade como uma relação entre a Virtude e a Lei, e é justamente este par

conceptual Virtude-Lei que fundamenta a vida ética:

O existir-em-comum não é mais do que a efetivação concreta da vida ética

individual. Portanto, se a justiça é a forma universal do existir-em-comum,

sendo assim a forma primeira da vida ética na comunidade, é necessário

concluir que uma relação essencial une, em sua distinção, as duas

manifestações com que a justiça se apresenta, seja como virtude, seja como

lei. (VAZ, 2000, p. 180).

O princípio que unifica essa relação essencial entre a Virtude e a Lei é o Bem

(agathón), princípio que possibilita a vida comunitária segundo o exercício do Direito.10

Lima Vaz, semelhante a Hegel resgata, evidentemente, a unidade clássica entre a Ética e

o Direito e reafirma a articulação entre a práxis (agir) e o bem (fim). e posiciona-se a

favor da organização social pautada na Lei (nómos) da “justa medida”, que assegure a

convivência comunitária pelo exercício da igualdade (isonomia) e da equidade

(eunomía).

A Política é, nesse sentido, a ciência normativa da práxis comunitária que

estabelece as regras e os critérios racionais do consenso cívico em torno do mais justo e

8 “Somente a justiça, entre todas as virtudes, é o ‘bem de um outro’ (Platão, Rep. 343), visto que se

relaciona com o nosso próximo, fazendo o que é vantajoso a um outro, seja um governante, seja um

associado”. ( ARISTÓTELES, 1987, p. 82). 9 “Por isso a justiça é muitas vezes considerada a maior das virtudes, e ‘nem Vésper, nem a estrela-

d’dalva’ são tão admiráveis; e provavelmente ‘na justiça estão compreendidas todas as virtudes’ (Teógnis,

147). (Ibid., p. 82). 10

“Direito é o que está conforme à regra ou à lei (droit, diritto, derecho, rigth, das Recht). Em grego

dikaion é o que está de acordo com a díke, e em latim justus o que é medido pelo jus. Essa etimologia nos

põe na pista da significação clássica do Direito”. (VAZ, 2000, p.119).

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ordena a vida na polis. A Política é, enfim, “a outra face da Ética”. (VAZ, 1993, p. 136)

e deverá justificar a razão imanente ao consenso intersubjetivo por meio do Direito.

Ora, sendo o horizonte do político referente à ordenação do bem comum, a

racionalidade do Direito circunscreve-se no campo da práxis da autorrealização do

sujeito, que é capaz de dar razão ao seu existir comunitário como um cidadão (politês)

e, consequentemente, capaz de explicitar a passagem do social empírico para o social

político, no qual ele vivencia a sua “segunda natureza”, como um sujeito de direitos e

deveres:

Ao ser reconhecido na sua existência política, ou seja, como membro da

comunidade política, como cidadão (polítês), o homem se constitui, portanto,

sujeito de direitos ou sujeito universal. (VAZ, 1993, p. 140).

A prática individual e social da Justiça na vida comunitária está, contudo,

continuamente ameaçada pelo seu contrário, a prática da injustiça que nega

incondicionalmente as propriedades essenciais da vida justa que são a equidade e a

igualdade. A presença da injustiça no âmbito da Justiça aponta para o indivíduo que

“deve viver essa dimensão da vida ética” (VAZ, 1993, p. 184) na comunidade, em meio

à multiplicidade condicional em que a injustiça pode efetivar-se.

O movimento lógico-dialético do conceito de sociedade direciona-se, então, para a

situação particular em que os sujeitos continuamente são desafiados a praticar a justiça,

pelo exercício livre do reconhecimento e do consenso, por meio da “forma mais alta de

organização política”, a relação democrática.

A forma particular de sociedade: a relação democrática

A reflexão sobre a Democracia, no momento da particularidade do movimento

lógico sobre a expressão ética da sociedade, tenta demonstrar a interligação que Lima

Vaz faz entre a Ética e Direito na práxis virtuosa do cidadão (politês). A práxis virtuosa

reconhece, com efeito, o direito comum dos cidadãos e livremente participa na luta pelo

consenso social em prol do exercício desse direito. Lima Vaz vê a Democracia como “a

forma mais alta de organização política a que pode aspirar uma sociedade” (VAZ, 1993,

p. 263). porque ela delimita um espaço de significação axiológica, pelo encontro entre a

atitude livre do cidadão (politês) e o exercício da justiça (dike) em prol do bem comum.

Ele está convicto de que a “superioridade da forma democrática da vida política só é

pensável a partir da essência ética do político”. (VAZ, 1993, p. 265).

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Essa essência ética do político também é uma herança grega deixada à civilização

ocidental, na aurora da prática democrática, e expressa a forma como os gregos

compreendiam a realização da liberdade dos cidadãos na vida comunitária. Para os

gregos, com efeito, “a ação política se definia como a forma mais elevada do agir ético”

(VAZ, 1988, p. 12). Situado no âmbito do problema da soberania, ou da relação entre o

indivíduo e o poder, a reflexão política grega versa sobre a melhor politéia ou sobre a

organização social mais justa.

Dessa sorte, para Lima Vaz, o problema real da politiké epistéme aristotélica não é

a relação entre o indivíduo e o poder, mas a “relação entre as virtudes do cidadão e a

ordem da comunidade. Elas não pretendem ser uma ciência política na acepção

moderna, mas uma Ética política” (VAZ, 1988, p. 12), uma práxis conforme o exercício

da Lei (nómos).

A Democracia nascente expressa assim, a “vitória da liberdade” pela intrínseca

relação que fez entre o ético e o político, pois se a política tem como finalidade a vida

justa e feliz, isto é, a vida propriamente humana digna de seres livres, então ela é

inseparável da ética e é somente a partir dessa relação que a Democracia se apresenta

como a melhor forma de organização social e política:

A democracia – como ideal e como prática – aprofunda necessariamente a

essência ética do político ao definir em termos de liberdade participativa e

responsável a resposta do cidadão à regulação da Lei definindo o corpo

político na sua expressão simbólica fundamental como eklesía dos eleútheroi

- assembléia dos homens livres - que têm direito de participar, de falar e de

decidir. (VAZ, 1993, 265).

A ideia de Democracia constitui uma “idéia reguladora e normativa” que efetiva

na sociedade a “essência ética do político”. Com efeito, a práxis democrática

concretizando o fim da Justiça pelo exercício do Direito e, por ele, a regra

consensualmente estabelecida e promulgada da Lei, efetiva o reconhecimento da

legitimidade do bem comum ou a igualdade entre iguais. Lima Vaz empreende, em

consequência, “a tarefa de pensar os desdobramentos históricos da Ideia de Democracia

fundada no problemático conceito de igualdade política”. (PERINE, 2002, p. 320)

presente nos estados modernos.

O modelo democrático moderno, sedimentado na ideologia individualista

estabelece historicamente a separação entre o ético e o político e modifica radicalmente

o sentido do conceito de igualdade (isonomia), que era compreendida pelos filósofos

clássicos como uma propriedade da Justiça (dike). Para a filosofia política clássica era,

com efeito, inconcebível a ética fora da koinonia ou da comunidade dos iguais. Ora, a

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teoria moderna ao separar a Ética da Política perde o qualificativo da práxis

intersubjetiva como virtus, como práxis direcionada para o bem individual e

comunitário, e enfatiza a igualdade entre os sujeitos em parâmetros quantitativos ou

matemáticos:

O pressuposto mecanicista deste tipo de pensamento reduz assim os

indivíduos a grandezas iguais, a átomos movendo-se num espaço social

isotrópico. Tal modelo repousa sobre a hipótese da igualdade natural entre os

homens da qual resultaria a constituição da sociedade pelo pacto de

associação entre iguais. (VAZ, 1985, p. 267).

Ora, é exatamente esse conceito de igualdade natural defendido na Modernidade

pela teoria do direito natural, que pressupõe a existência de indivíduos independentes e

isolados, que decidem voluntariamente tornarem-se sócios em uma sociedade a fim de

garantir os seus interesses particulares, que se torna problemático na democracia

moderna, porque segundo Lima Vaz, a natureza não é o domínio da igualdade, mas o

domínio da diferença de cada um, o que impossibilita a experiência intersubjetiva do

reconhecimento do outro como outro eu e do consentimento livre em conviver com ele

na sociedade: “a única igualdade possível aqui é aquela que resulta da negação da

diferença qualitativa; a igualdade abstrata do número”. (VAZ, 1985, p. 267).

Ao erigir essa igualdade abstrata como modelo de sociabilidade, os estados

modernos individualizam os sujeitos e criam um sistema mecânico de associação social

pautado na força exterior da Lei. Contudo, esse modelo de organização social traz

consigo a possibilidade real da prática totalitária, pois no momento em que a Lei

concentrar-se na mão de um só, ou de uns poucos, como a história já mostrou, o sistema

totalitário se instalará como forma de organização social, em que “todos são iguais

porque todos são escravos” (VAZ, 1985, p. 268).

Diante dessa tensão existente entre o exercício do poder e a sociedade, nos

Estados modernos, a reflexão sobre a Ideia de democracia requer, segundo Lima Vaz, a

clareza sobre o conceito de igualdade. Então, primeiramente, ele critica a noção de que

a “igualdade é constitutiva da ideia de democracia” (VAZ, 1985, 267). A igualdade

social, embora seja um pressuposto necessário, não manifesta suficientemente a

essência da relação democrática porque situa-se no primeiro momento lógico-dialético

da estrutura conceptual do universo político.

Ora, a racionalidade própria desse momento lógico-dialético do “social” é

justamente a racionalidade da igualdade em relação à natureza e à interdependência

social em prol da satisfação das necessidades materiais e econômicas. A igualdade

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preconizada entre os sujeitos na sociedade é, em consequência, uma igualdade natural,

e devido à expansão dessa racionalidade a todos os âmbitos das relações intersubjetivas,

nas sociedades modernas, o grande desafio que essas sociedades enfrentam atualmente é

o trânsito deste modelo de igualdade “social” para o modelo da igualdade “política”.

Ora, a igualdade “política” situa-se em outro nível de racionalidade, isto é, a

racionalidade expressa pela relação de intersubjetividade em que, por meio do

reconhecimento do outro, enquanto outro eu, a relação recíproca se apresenta como uma

igualdade na diferença de cada um:

Ela se caracteriza pela suprassunção da igualdade abstrata, própria do

primeiro nível, no qual as diferenças naturais dos indivíduos são equalizadas

abstratamente na sua universal dependência da natureza e na sua universal

interdependência nos vínculos do sistema econômico, na igualdade concreta,

aquela na qual as diferenças naturais e adquiridas (culturais) são equalizadas

na isonomia ou na igualdade perante a lei. (VAZ, 1988, p. 19).

Trata-se, portanto, de uma igualdade que não elimina a diferença na relação

abstratamente homogênea da dominação, mas a suprassume na relação concretamente

diferenciada do reconhecimento como afirmou Hegel na Fenomenologia do Espírito.

Esta é a dialética do político iniciada pelos gregos e que Lima Vaz resgata também, por

meio do conceito de reconhecimento. Ela fundamenta a essencial sociabilidade humana

como uma forma superior de convivência social, que eleva a igualdade da

particularidade individual à universalidade de ser reconhecida no seio da Comunidade

ética.

A sociedade política ou o Estado de direito representa uma forma superior de

Comunidade ética na história das sociedades humanas, porque supera o poder despótico

da tyrannía e exerce o poder pautado em leis (nómos basileus). Todavia, Lima Vaz

infere também uma sutil diferença entre o Estado de direito e o Estado democrático:

Todo Estado democrático é um Estado de direito, mas nem todo Estado de

direito é um Estado democrático. Há uma mudança na matriz conceptual,

pois a ideia geratriz não é mais a ideia de justiça, mas a ideia de liberdade

participante. (VAZ, 1988, p. 19).

Logo, na vigência do Estado democrático, a experiência de igualdade ultrapassa o

nível do ato justo, para o nível do ato livre que se efetiva concretamente pela

participação dos cidadãos nas discussões e decisões em torno do bem comunitário.

Na sociedade democrática, a dialética da igualdade na diferença desdobra-se, por

conseguinte, em um nível mais profundo de convivência social, que é exatamente, a

dimensão da liberdade pessoal. Nela, a igualdade alcança o nível do ético, porque a

participação na assembleia dos “homens livres” exige uma prática virtuosa. A prática

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democrática da deliberação e da escolha livre expressa, assim, a “vitória da liberdade”

sobre o poder despótico e a intrínseca relação entre o ético e o político.

O Filósofo brasileiro especifica a diferença entre a práxis política e a práxis

democrática enfatizando o problema central de cada uma. O problema da sociedade

política é a “justiça nas leis”, pelo exercício da melhor constituição e o problema da

sociedade democrática é a “justiça na alma”, pelo exercício da consciência moral do

sujeito nesse sentido, a Democracia não é somente um regime político determinado,

mas uma “ideia reguladora e normativa” que orienta o exercício da liberdade. Lima Vaz

afirma que a Democracia não é uma ideia utópica, mas um difícil e contínuo

aprendizado da liberdade. A sociedade democrática expressa, enfim, “a forma superior

de comunidade política porque se constitui formalmente como essa resposta da

consciência moral de cada cidadão ao apelo da sua consciência política”. (VAZ, 1985,

p. 272).

O movimento lógico-dialético do político culminou no projeto democrático de

sociedade, como expressão da liberdade pessoal e comunitária. Nesse espaço político,

Lima Vaz infere a experiência concreta “da essencial dignidade do homem, que reside

no seu ser moral” (VAZ, 1988, p. 22). A tentativa na efetivação de uma Democracia

real requer, primeiramente, o plano das exigências éticas para a práxis política:

É nesse plano que irá decidir-se, afinal, o êxito da experiência democrática e,

com ele, o próprio destino do homem político, como ser dotado de uma

essencial dignidade. (VAZ, 1988, p. 22)

Concluindo a demonstração da essência ética do político, como uma prática

democrática, Lima Vaz avança a reflexão para o terceiro momento da Ideia de

sociedade, que é a comunidade ética, em que enfatiza o segundo enfoque do problema

da Ideia de Democracia consistindo em “recuperar no plano ético a noção de dignidade

humana e articulá-la com a ideia de democracia, essa igualmente reformulada na

perspectiva de uma unidade orgânica entre Ética e Política”. (PERINE, 2002, p. 318).

A singularidade da sociedade: a relação ética

No plano da singularidade do conceito de sociedade, Lima Vaz reflete sobre os

níveis graduais de efetivação da Dignidade humana na esfera políticossocial. O primeiro

nível refere-se à vida social ou econômica em que a vida digna requer a satisfação das

necessidades básicas dos cidadãos elencadas na Declaração dos Direitos Humanos. O

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segundo nível relaciona-se ao plano político e requer a dignidade cívica que exige a

igualdade perante a lei e a reciprocidade entre direitos e deveres na sociedade e, por fim,

no nível democrático, a dignidade se expressa pela participação livre do cidadão na vida

política como compromisso ético.

Somente o exercício prático desses três níveis graduais da Dignidade humana

poderá favorecer o reconhecimento da dignidade pessoal e conferir à relação

intersubjetiva o qualificativo de comunidade ética. Lima Vaz dissolve, portanto, o

aparente paradoxo da alteridade, pois o indivíduo torna-se cada vez mais consciente de

seu eu, exatamente no encontro com o outro. O reconhecimento recíproco da dignidade

pessoal de cada membro na comunidade efetiva concretamente o universal da Justiça

(dike) em seu aspecto subjetivo, como Virtude (areté), e em seu aspecto objetivo, como

Lei (nómos).

Lima Vaz apresenta um encadeamento dialético entre o Eu e o Nós na prática da

Justiça. Ele afirma: “Eu sou para o Bem (sujeito ético = dignidade individual) → Nós

somos para o Bem (comunidade ética = dignidade comunitária)” (VAZ, 2000, p. 203).

A Dignidade humana tem a sua origem e o seu fundamento, por conseguinte, no

estatuto metafísico do indivíduo e da comunidade decorrente da sua ordenação

transcendental ao Bem. Nesse sentido, a ideia de Dignidade humana não pode ser fruto

de um costume ou de uma convenção socialmente constituída, mas tende para a

“unicidade do ser humano no seu ser-para-si e no seu ser-para-o-outro. É, portanto,

indissoluvelmente um predicado no indivíduo e uma qualidade essencial do vínculo que

une os indivíduos na comunidade” (VAZ, 2000, p. 203).

O que se infere nesta reflexão vaziana sobre a Dignidade humana é que a sua

concepção de igualdade social difere da concepção de igualdade defendida pelas teorias

modernas do contrato social. Lima Vaz não concebe a igualdade como um número

presente na carteira de identidade que operacionaliza a relação indivíduo e Estado, nem

somente como uma igualdade proporcional na participação dos bens socialmente

produzidos, mas como uma igualdade que é “fruto do reconhecimento recíproco da

dignidade dos iguais” cuja natureza se apresenta como uma tarefa a cada indivíduo, de

ser cada vez mais livre para a prática do bem e de comprometer-se com os ditames da

sua consciência moral em prol do bem comum.

A vida ética na comunidade demonstra, por fim, a singularidade das formas

universais do reconhecimento e do consenso social, que nada mais são do que a forma

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como a razão prática se desdobra na relação intersubjetiva como instituição política,

democrática e ética.

Conclusão

O conceito hegeliano de Direito abrangendo o Direito abstrato, moralidade e

eticidade subjaz ao pensamento vaziano de sociedade, à medida em que o Filósofo

brasileiro expõe pelo movimento dialético os invariantes conceptuais da vida ética. A

ideia de sociedade organiza, com efeito, as determinações essenciais que qualificam a

vida-em-comum efetivando pela práxis política, a ideia do Direito (dikaion) entre os

sujeitos partícipes da mesma comunidade, pelo estabelecimento da Lei justa. Essa ideia

universal da Justiça e do Direito suprassume-se na situação por meio da práxis

intersubjetiva das virtudes de prudência, fortaleza e temperança que correspondem às

diferentes circunstâncias da vida comunitária e efetiva o regime ético e político da

Democracia. O exercício democrático possibilita, enfim, o reconhecimento da

Dignidade humana como forma concreta do reconhecimento universal da pessoa, que

encontra o sentido de sua existência na convivência comunitária efetivando a igualdade,

pelo reconhecimento recíproco da dignidade dos iguais dentro da Comunidade ética.

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