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9 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 9-31, fev. 2009 Wellington Trotta O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGEL À LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO 1 Recebido em 26 de outubro de 2006. Aprovado em 3 de setembro de 2008. O objetivo deste trabalho é analisar o pensamento político de Hegel a partir de sua “Filosofia do Direito”, apresentando uma exposição sistemática daquilo que o autor compreendeu por filosofia, na qual a política é uma conseqüência inevitável, já que o seu sistema teórico privilegia a unidade lógica. Utilizei, na elaboração do presente texto, um critério muito simples: apresentar o pensamento político hegeliano à luz do seu próprio tempo, levando em consideração as dificuldades normais que todos sentem na expressão de idéias universais a partir de experiências singulares. Com isso, desejo assinalar que, embora Hegel tenha pensado o Estado dentro da perspectiva do universal concreto, seu olhar é prussiano e voltado aos problemas da unidade alemã. O artigo está dividido em duas partes. A primeira é uma exposição do conteúdo filosófico do autor, ao passo que a segunda parte procura fazer um estudo sistemático do seu pensamento político, tendo por limite sua “Filosofia do Direito”. Essa sistematização é compreensível, já que, originalmente, o presente texto fazia parte de minha Dissertação de Mestrado, em que pude fazer uma relação entre Hegel e o pensamento de Marx em 1843, tal como expresso em “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. Ao final, como conclusão, argumento que, mesmo sendo relevante o conjunto das críticas de Marx, o pensamento hegeliano parece retratar não só o Estado moderno, mas também o contemporâneo, sobretudo o dos últimos trinta anos, em que cada vez mais o poder Legislativo perde, por motivos diversos, o seu papel de legislar, sendo substituído pelo poder Executivo, ao qual cabe o incremento do universal no seio das particularidades. PALAVRAS-CHAVE: Hegel; Filosofia do Direito; Marx; Estado moderno; filosofia alemã. I. INTRODUÇÃO No princípio do século XIX, ocorreram grandes transformações nos cenários artístico, filosófico e científico alemães, que, retomando agudamente a cultura grega, pode ser tipificada, nesse contexto, como uma espécie de renascimento. É nesse ambiente que surge a obra de Georg Wilhem Friedrich Hegel (1770- 1831), que, por sua originalidade filosófica, inaugurou uma nova forma de pensar a relação entre sociedade e Estado. Pode-se considerar que, com Hegel, tem início o período contemporâneo da história do pensamento filosófico e toda sua influência no pensamento político ocidental. Hegel é um marco definitivo. Pela sua ambição intelectual, por seus vastos conhecimentos e por seus esforços permanentes em elaborar uma síntese filosófica, passa à posteridade como uma referência fundamental na Filosofia Política. Hegel nasceu em Stuttgart, no dia 27 de agosto de 1770. Filho de um modesto funcionário público do Departamento de Finanças do Ducado de Würtemberg, recebeu uma educação não diferente dos jovens de sua época, destacando-se nos estudos de latim e história clássica. Por influência de seu pai e pelos seus méritos como bom aluno, obteve uma bolsa ducal para cursar Teologia na Universidade de Tübingen. Ao formar-se, em 1793, recebeu “um certificado que declarava ser ele um homem bem-dotado e de bom caráter, bem preparado em teologia, mas sem nenhuma aptidão em filosofia” (DURANT, 1996, p. 278), mais tarde desmentido pela história. No Seminário, Hegel foi fortemente influenciado por Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) e Johann Christian Friedrich Höelderlin (1770-1843). Este apresentara ao futuro autor da Filosofia do Direito os encantos da Grécia clássica, ao passo que Schelling abriu-lhe uma nova perspectiva filosófica na relação real- ideal. Afirma-se que Hegel, Shelling e Höelderlin, numa manhã, bem cedo na praça do mercado, plantaram uma “árvore da liberdade” em 1 Como ex-bolsista, o autor agradece ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

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Page 1: o pensamento político de hegel à luz de sua filosofia do

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 9-31 FEV. 2009

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 9-31, fev. 2009

Wellington Trotta

O PENSAMENTO POLÍTICO DE HEGELÀ LUZ DE SUA FILOSOFIA DO DIREITO1

Recebido em 26 de outubro de 2006.Aprovado em 3 de setembro de 2008.

O objetivo deste trabalho é analisar o pensamento político de Hegel a partir de sua “Filosofia do Direito”,apresentando uma exposição sistemática daquilo que o autor compreendeu por filosofia, na qual a políticaé uma conseqüência inevitável, já que o seu sistema teórico privilegia a unidade lógica. Utilizei, na elaboraçãodo presente texto, um critério muito simples: apresentar o pensamento político hegeliano à luz do seupróprio tempo, levando em consideração as dificuldades normais que todos sentem na expressão de idéiasuniversais a partir de experiências singulares. Com isso, desejo assinalar que, embora Hegel tenha pensadoo Estado dentro da perspectiva do universal concreto, seu olhar é prussiano e voltado aos problemas daunidade alemã. O artigo está dividido em duas partes. A primeira é uma exposição do conteúdo filosófico doautor, ao passo que a segunda parte procura fazer um estudo sistemático do seu pensamento político, tendopor limite sua “Filosofia do Direito”. Essa sistematização é compreensível, já que, originalmente, o presentetexto fazia parte de minha Dissertação de Mestrado, em que pude fazer uma relação entre Hegel e o pensamentode Marx em 1843, tal como expresso em “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. Ao final, como conclusão,argumento que, mesmo sendo relevante o conjunto das críticas de Marx, o pensamento hegeliano pareceretratar não só o Estado moderno, mas também o contemporâneo, sobretudo o dos últimos trinta anos, emque cada vez mais o poder Legislativo perde, por motivos diversos, o seu papel de legislar, sendo substituídopelo poder Executivo, ao qual cabe o incremento do universal no seio das particularidades.

PALAVRAS-CHAVE: Hegel; Filosofia do Direito; Marx; Estado moderno; filosofia alemã.

I. INTRODUÇÃO

No princípio do século XIX, ocorreramgrandes transformações nos cenários artístico,filosófico e científico alemães, que, retomandoagudamente a cultura grega, pode ser tipificada,nesse contexto, como uma espécie de“renascimento”. É nesse ambiente que surge aobra de Georg Wilhem Friedrich Hegel (1770-1831), que, por sua originalidade filosófica,inaugurou uma nova forma de pensar a relaçãoentre sociedade e Estado. Pode-se considerar que,com Hegel, tem início o período contemporâneoda história do pensamento filosófico e toda suainfluência no pensamento político ocidental. Hegelé um marco definitivo. Pela sua ambiçãointelectual, por seus vastos conhecimentos e porseus esforços permanentes em elaborar umasíntese filosófica, passa à posteridade como umareferência fundamental na Filosofia Política.

Hegel nasceu em Stuttgart, no dia 27 de agostode 1770. Filho de um modesto funcionário públicodo Departamento de Finanças do Ducado deWürtemberg, recebeu uma educação não diferentedos jovens de sua época, destacando-se nosestudos de latim e história clássica. Por influênciade seu pai e pelos seus méritos como bom aluno,obteve uma bolsa ducal para cursar Teologia naUniversidade de Tübingen. Ao formar-se, em1793, recebeu “um certificado que declarava serele um homem bem-dotado e de bom caráter, bempreparado em teologia, mas sem nenhuma aptidãoem filosofia” (DURANT, 1996, p. 278), mais tardedesmentido pela história.

No Seminário, Hegel foi fortementeinfluenciado por Friedrich Wilhelm JosephSchelling (1775-1854) e Johann Christian FriedrichHöelderlin (1770-1843). Este apresentara ao futuroautor da Filosofia do Direito os encantos daGrécia clássica, ao passo que Schelling abriu-lheuma nova perspectiva filosófica na relação real-ideal. Afirma-se que Hegel, Shelling e Höelderlin,numa manhã, bem cedo na praça do mercado,plantaram uma “árvore da liberdade” em

1 Como ex-bolsista, o autor agradece ao apoio da Fundaçãode Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

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homenagem ao sucesso da Revolução Francesade 1789. Isso retrata o impacto positivo do quantoa Revolução animava não só a camada culta alemã,como também sua própria juventude.

Os primeiros escritos de Hegel, chamadosescritos da juventude2, têm como tema central aproblemática teológica3, isso porque o futuroprofessor de Berlim formulou inúmeras reflexõesacerca do cristianismo, sempre tendo a culturagrega como norte ideal de organização política.Em tais escritos primeiros, Hegel chega acomparar Jesus a Sócrates, uma vez que humanizaaquele na tentativa de estabelecer um paralelo, nãosó de personalidades, como também envolver osaspectos culturais que cada um representou antesuas respectivas culturas. Hegel via, nocristianismo, um avanço considerável – em relaçãoao indivíduo – face ao judaísmo, que, para ele,era uma religião positiva no sentido de que asnormas eram emanadas diretamente de Deus numaprescrição de comportamento a partir de umcódigo exterior aos homens. O cristianismo, aocontrário, constituía-se em um avanço, justamentepor ser inverso ao judaísmo, pois seu carátersubjetivo proporcionava ao homem um sentido deliberdade individual, que ligava os homens dentrode uma comunidade humana. Para Hegel, ocristianismo desenvolve a subjetividade quando oshomens, pelo amor uns para com os outros, criamum sentido de comunidade que faz lembrar acidadania ateniense, isto é, o homem pela dimensãodo cidadão.

Nesse período, destacam-se os seguintesescritos de Hegel: Fragmentos sobre religiãopopular e cristianismo (1793-94), Vida de Jesus(1795), A positividade da religião cristã (1795-1796) e O espírito do cristianismo e seu destino(1798-99). Esses textos foram publicados depoisda morte do autor em um único volume intituladoEscritos teológicos juvenis de Hegel. Embora nesseconjunto de escritos houvesse uma preocupaçãoteológica, Hegel não só evita fazer uma apologia à

teologia como também se preocupa com adimensão política da vida, já que o indivíduo situa-se como ser em sociedade (KONDER, 1991, p.7). Pode-se dizer que Hegel toma sua culturareligiosa e tenta viabilizá-la a partir da perspectivado que entende por cidadania ateniense, buscandocompatibilizar os elementos do cristianismo comos da Filosofia grega. Essa será uma preocupaçãopermanente em sua obra. Mais tarde, na Filosofiado Direito, retomando o tema, seu enfoque é ocidadão como voz do indivíduo, em que o Estadocomo unidade política é o centro da vida éticacoletiva.

Por volta de 1800, Hegel transferiu-se para Ienaa convite de Schelling, com o fim de lecionar naUniversidade da cidade. Esse momento marcou,decisivamente, a vida de Hegel, pois à medida quecomeçava a lecionar na referida instituição, davaprosseguimento aos seus estudos filosóficospropriamente ditos. Hegel, após a publicação daFenomenologia do espírito, em 1807 - que tratados movimentos necessários da consciência, doseu despertar até o que poderia chamar-se detomada da essência da realidade -, aprofunda seuconhecimento filosófico e torna sua filosofia cadavez mais abstrata na busca de uma razão universalque não seja fruto de particularidades e opiniões,mas um esforço do espírito que se pensa a simesmo no cenário histórico da consciência.

György Lukács (1885-1971), no livro O jovemMarx e outros escritos filosóficos, assinala queHegel, ao contrário de muitos, inclusive do próprioMarx, que o criticava acusando o seu pensamentopolítico de conservador por desconsiderar osproblemas da realidade material dos indivíduos,cultivou leituras sobre economia, chegando a lerautores como Adam Smith (1723-1790), tomando,do economista escocês, o conceito de “trabalho”,e aplicando-o ao longo da Fenomenologia doespírito (LUKÁCS, 2007, p. 92).

Seguindo a publicação da Fenomenologia doespírito, Hegel apresenta ao publico, em 1813, aCiência da Lógica, que tem por fim um estudoontológico, uma reflexão sobre o ser. Em 1817,apareceu a primeira versão da obra Enciclopédiadas Ciências Filosóficas. Nesse livro Hegelprocurou coroar seu sistema de forma a dividi-loem três momentos, isto é, em três volumes, assimcomo na sua dialética tríade. O primeiro momentofoi dedicado ao estudo da lógica por meio de umagrande síntese; no segundo momento, a sua

2 Hermann Glokner (1896-1987) é responsável por umaedição da obra de Hegel com o fito de aproximar a filosofiahegeliana dos irracionalistas contemporâneos, sendoformulador da tese que implica o jovem e o maduro Hegel.Ver Lukács (2007, p. 91).3 Segundo Lukács, foi Wilhelm Dilthey (1833-1911) oformulador da tese de um “suposto” momento teológicono percurso filosófico de Hegel (ibidem).

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Filosofia da Natureza; no terceiro e último, estudaa Filosofia do Espírito. Em Berlim, por volta de1827, Hegel retoma a Enciclopédia e promovealgumas modificações com o escopo de atenderas premissas do seu sistema, sem com isso alteraro sentido originário que lhe dera na edição anterior,publicando o texto pela última vez em 1831.

No terceiro volume da Enciclopédia dasCiências Filosóficas, Hegel ensaia o que mais tardeaprofundará com a publicação de sua Filosofiado Direito, em 1821, ou seja, o estudo do Estado(eticidade): as relações entre universal-particular;como são possíveis suas possibilidades no planopolítico e em que medida o Direito efetivaria aliberdade ao mesmo tempo em que a norma-tividade, como dimensão pública, resguardaria oshomens nas suas relações sociais necessárias.

Aos 61 anos de idade, Hegel morre em 13 denovembro de 1831, vítima de cólera, passando àposteridade como um dos poucos filósofos aalcançar, em vida, grande notoriedade pública,tanto no mundo acadêmico como no mundopolítico, deixando em toda a Alemanha uma herançaintelectual sem precedentes na história dopensamento ocidental. De seus escritos serãoconstruídas diversas escolas filosóficas impor-tantes e de grande conseqüência política.

Depois desse breve histórico, cumpre-sedestacar que o objetivo deste trabalho é analisar opensamento político de Hegel a partir de suaFilosofia do Direito, apresentando uma exposiçãosistemática daquilo que o autor compreende porFilosofia, tomando a política como conseqüênciainevitável, isso porque o seu sistema teóricoprivilegia a unidade lógica. Nesse sentido, opteipor restringir-me à obra citada na intenção debuscar o substantivo conceitual de política emHegel, sem com isso discutir outros textos damesma natureza de sua autoria, anteriores ouposteriores à sua obra política por excelência. Épreciso esclarecer, ainda, que o estudo direto dopensamento político de Hegel está circunscrito àanálise do Estado, portanto, à terceira seção daterceira parte, “A moralidade subjetiva”,especificamente dos parágrafos 261 a 313, emborafaça incursões em outros parágrafos quandonecessário.

Utilizei na elaboração do presente texto umcritério muito simples: apresentar o pensamentopolítico hegeliano à luz do seu próprio tempo,levando em consideração as dificuldades normais

que todos sentem na expressão de idéias universaisa partir de experiências singulares ou culturais.Com isso, desejo assinalar que, embora Hegel tenhapensado o Estado dentro da perspectiva douniversal concreto, seu olhar é prussiano e voltadoaos problemas da unidade alemã, logo suasreflexões por vezes são ideais e por outras realistas,dependendo de como Hegel entra e sai doproblema, ou seja, o filósofo alemão procura, nointerior do seu sistema, contemplar a relaçãoparticular-universal.

O artigo está dividido em duas partes. A primeiraé uma exposição sumária do conteúdo filosóficodo nosso autor, ao passo que a segunda, maisextensa, procura fazer um estudo sistemático doseu pensamento político, tendo por limite suaFilosofia do Direito. Essa sistematização éexplicável, porque, originalmente, o presente textofazia parte de minha Dissertação de Mestrado, emque pude fazer uma relação entre o velho filósofode Berlim e o pensamento do Marx de 1843, ouseja, o da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.A conclusão ficou restrita a algumas consideraçõesque tomei por empréstimo do próprio Marx, que,ao criticar Hegel, toma novo rumo político-epistemológico ao romper com a perspectivaidealista. Entretanto, isso seria assunto para outroartigo.

II. PRINCIPAIS ELEMENTOS DA FILOSOFIAHEGELIANA

A lógica hegeliana, ao contrário de ser umateoria do conhecimento, é em verdade umaontologia, isso porque o Ser, compreendido peladimensão do pensamento, identidade absoluta,busca a superação do objeto-sujeito, ser-pensar4.Assim, a categoria lógica assume a perspectivasistemática de explicitação de se conhecer oconcreto pelo conceito como identidade daidentidade da diferença. O conceito é o idênticoque se diferencia a si mesmo no processo lógicoda dialética como superação. Nessa relação, osistema identifica-se na premissa de que o Ser é opensamento pensando a si mesmo como idéiaabsoluta. Todos os entes são idéias que existemem razão da representação do Espírito Absoluto,

4 “Ser e pensar são para Hegel o mesmo, e, na verdade, nosentido de que tudo é recebido de volta ao pensamento edeterminado a ser o que Hegel simplesmente designa opensamento pensado” (HEIDEGGER, 1973, p. 404).

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no qual se identificam pensar e ser, conceito erealidade. O absoluto é, por fim, o conceito, e oconceito, a própria identidade (LEÃO, 1977, p.254).

Na concepção de Hegel, a Filosofia define-secomo o conhecimento necessário ao conteúdo darepresentação do absoluto5, por isso o absolutoconfundir-se-ia com o objeto da própria Filosofia,contrariando um postulado fundamental dafilosofia kantiana expressa na Crítica da razãopura, que consiste na impossibilidade de seconhecer o objeto em si mesmo, o que reduz oconhecimento da coisa pelo fenômeno, pelamanifestação exterior do objeto. Ao contrário, paraHegel, a lógica teria o papel de compreender oobjeto pelo conceito: as condições doconhecimento nem estão arbitrariamente nosujeito, muito menos no objeto, mas sim numaestrutura lógica, na idéia, no conceito, por isso“filosofia é um conhecimento conceituante”(HEGEL, 1995a, p. 39-59).

Ressalte-se a importante diferença entre a lógicadialética e a lógica formal: esta se baseia na lógicade Aristóteles, que tem por fundamento osprincípios da identidade e o da não-contradição,ao passo que na lógica dialética a contradição nãoé apenas aceita como também inerente ao própriomovimento do pensamento. A intenção de Hegel éjustamente provar que a razão necessariamenteefetiva-se no mundo e não é apenas uma idéiaabstrata6. Nesse caso, sua concepção de“conceito” difere da tradição filosófica. O conceitoque Hegel descreve e concebe está em movimento,logo é dialético, porque o seu motor é acontradição. Por isso, o absoluto é percebido nopensamento pela lógica, e não, como postulavaSchelling, por meio da intuição e fundido noabsoluto (HEGEL, 1999a, p. 29).

Segundo o entendimento de Carneiro Leão:“Ser e pensar não se opõem como realidade. Não

se pode determinar o dado da experiência sensívelcomo real, contrapondo-o ao pensamento comose o pensamento não fosse real. Abandonar opressuposto absurdo de que o sensível é o ser e opensamento é o nada constitui a primeira condiçãopara se pensar logicamente qualquer coisa [...]. Aessência da abstração não está em se prescindirda matéria sensível, mas na elevação do sensívelà estrutura universal do conceito” (LEÃO, 1997,p. 258).

Pondera-se que o pensamento para Hegel seriaa estrutura universal como condição necessáriapara o conhecimento do objeto. O pensamentonão se configura como algo nadificado, ou melhor,ser e pensamento não se opõem como sentidosopostos em que este se constitui em abstraçãodaquele. Muito pelo contrário, é no pensamentoque o objeto encontra a sua dimensão universal,sendo, portanto, concreto, enquanto o sensívelapenas revela sua exteriorização como percepçãoda realidade pensada, porém, particularizada. Afilosofia hegeliana é, antes de tudo, um sistemafundado sobre o Espírito Absoluto (HARTMANN,1983, p. 326), que, por sua vez, é a síntese darelação dos espíritos subjetivo e objetivo. Todafilosofia hegeliana é filosofia da identidade, umavez que este fundamento expressa-se na arte, nareligião, na história e, por fim, no mundo ético,no Direito como conceito de Estado: “Além doque, por residir a filosofia essencialmente noelemento da universalidade – que em si inclui oparticular –, isso suscita nela, mais que em outrasciências, a aparência de que no fim e nos resultadosúltimos que se expressa a Coisa mesma, e inclusivesua essência consumada” (HEGEL, 1999a, p. 21).

Percebe-se, mediante leitura da passagemcitada, que, para Hegel, o sentido da Filosofia estána perspectiva do universal, assim como tambémé ela a expressão do universal pelo fato de buscara coisa mesma, o “em si”, por isso a noção deunidade domina, de certa forma, o seu pensa-mento, isto é, o universal em si representa a própriatotalidade e, como tal, aquilo que é particularencontra-se como elemento dentro do sistema,necessariamente. Hegel considera o seu sistemacomo uma alternativa ao particularismo filosóficode seu tempo e pretende que o mesmo inaugureuma forma de pensar que leve em conta a culturae sua subordinação ao plano ideal como fiocondutor histórico. Nesse sentido, assevera Hegelque “colaborar para que a filosofia se aproximeda forma da ciência – da meta em que deixe de

5 “Hegel determina como ‘meta’ da filosofia: ‘a verdade’.Esta somente é atingida no movimento da plenitude [...]Verdade é para Hegel a evidência do saber que se sabe a simesmo” (idem, p. 409).6 “O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderiadizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto fazcom a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-secomo sua verdade em lugar da flor [...] Sua natureza fluidafaz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe dese contradizerem, todos são igualmente necessários”(HEGEL, 1999a, p. 22).

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chamar-se amor ao saber para ser saber efetivo –é isto o que me proponho” (idem, p. 23).

Assim, a filosofia hegeliana apresenta-se comoaquela que tem por responsabilidade a construçãode um sistema capaz de dar conta da totalidade,visando colocar a Filosofia como expressão daverdade, e não se contentar com o papel de meraespectadora, já que sua importância estádeterminada pela coisa mesma, o absoluto em si,pelo saber efetivo. Esse saber realiza-se não sópara conhecer o centro como para ser o própriocentro: a visão do conjunto, a partir do e dentrodo conjunto. Portanto, “a filosofia é um modopeculiar de pensar, uma maneira pela qual o pensarse torna conhecer e conhecer conceituante”(HEGEL, 1995a, p. 40); nesse caso, o seuconteúdo é o efetivo, e não o abstrato. Por isso, aFilosofia é objetiva, ao passo que “uma opinião éuma representação subjectiva, um pensamentoqualquer, uma fantasia que eu posso ter dum modoe outros de outro modo; uma opinião é coisaminha, nunca é uma idéia universal que existia emsi para si. Mas na filosofia não contém nenhumaopinião, porque não existem opiniões filosóficas[...]. A filosofia é a ciência objetiva da verdade, éa ciência da sua necessidade: é o conceito porconceitos, não é opinar nem deduzir uma opiniãode outra” (HEGEL, 1974, p. 51).

Segundo Hegel, as opiniões não sãoconsiderações filosóficas, e nesse particularinspira-se no postulado platônico da distinção entredoxa e episteme, opinião e ciência. Desse modo,o trecho acima assinala a concepção hegeliana deFilosofia: a linguagem pela qual a verdadeapresenta-se como um lógico conceituante,procedimento que se refere a uma nova eespecífica forma de pensar, que não opera de umadedução à outra necessariamente, mas porcontradição de uma relação à outra. A linguagemhegeliana estabelece-se por qualificar o que sepensa por meio de uma forma peculiar de desenharconceitos, utilizando expressões consideradas porele científicas, precisas no sentido de relacionaradequadamente pensamento e objeto pensado, ouseja, pela reflexão do “em si” como algo essencial.Daí vem seu rigor extremo na exposição de umsistema que busca a natureza do conceito postopelo conceito. E o conceito posto pelo conceito éum resultado filológico-filosófico que, longe deser uma armadilha de opiniões, significa a própriaverdade por meio de exposições conceituantes. Afilosofia não é um jogo de opiniões, mas

pensamento conceituante por meio de umalinguagem especificamente precisa.

A maneira pela qual Hegel pensa é dialética econsiste na relação inseparável dos contraditórioscom o fim de apreender uma etapa superior quepossa daí estabelecer uma síntese. Por isso, aFilosofia em Hegel é um plano lógico: “A lógicatem, segundo a forma, três lados: a) o lado abstratoou do entendimento; b) o dialético ounegativamente-racional; c) o especulativo oupositivamente racional” (HEGEL, 1995a, p. 159).Esses três lados afirmados por Hegel não sãopartes da Lógica, e sim momentos do todo lógico-real, o que ele chama de todo conceito ou de todoverdadeiro geral. Dessa forma, a dialética de Hegelenvolve, no primeiro momento, um ou diversosconceitos fixos – a tese. Pensados esses mesmosconceitos, ensejam contradições no seio de suasrelações, implicando a fase verdadeiramentedialética ou razão dialética (negativa) quenecessariamente nega a anterioridade comomovimento de superação – a antítese: “O resultadodessa dialética é uma nova categoria, superior, queengloba as categorias anteriores e resolve ascontradições nelas envolvidas” (INWOOD, 1997,p. 100). Essa fase é denominada de especulação,positiva (síntese) ou, como sugere Hegel, unidadesdos opostos, isto é, a negação da negação anteriorque retoma a afirmação negada na totalização de“supressão e conservação das duas posiçõesanteriores”7.

O pensamento filosófico de Hegel é um sistemacomplexo de unidades no qual a mesma estruturaprocessa-se em áreas diferentes do conhecimento.Hegel, como um grande filósofo sistemático, aplicaas mesmas categorias aos mais variadosproblemas. Sua dialética tríade domina sua formade apresentar e superar os mesmos. Pensa sempreno sentido de que o pensamento deve percorrercaminhos cíclicos, ou seja, sempre se realizandoem si mesmo, na saturação de um conceito que

7 “Nesta configuração, destacamos um primeiro ciclo noqual partimos de uma posição afirmativa ou identitária – omomento da tese – suscetível de gerar sua própria negaçãoque, amadurecida, irá constituir uma segunda posição – omomento diferencial da antítese. A tensão entre tese eantítese vai provocar a emergência de uma terceira posição,ou seja, de um momento da síntese, que é,concomitantemente, negação e afirmação, supressão econservação das duas posições anteriores” (SAMPAIO,2000, p. 36).

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impõe a busca de um outro, necessariamente maiscompleto, não por decorrência, mas comosuperação das contradições. E tais contradiçõessão superadas logicamente pelas síntesespromovidas na tensão dos opostos, gerando novasoposições.

Hegel traça um panorama filosófico que tempor fim ser o limite da própria filosofia, fim deuma jornada que encontra em si o fechamento dogrande ciclo, fim da história da filosofia, sistemaque pretende ser o último capaz de dar conta darealidade8. Assim, “essa ciência é a unidade daarte e da religião. Por conseguinte, a filosofia sedetermina de modo a ser um conhecimento danecessidade do conteúdo da representaçãoabsoluta” (HEGEL, 1995b, p. 351). Essapassagem é esclarecedora por tratar das formasabsolutas, arte e religião, totalizando a unidade narepresentação do espírito absoluto que só podeser definido pela Filosofia, que em si é a unidadedo saber. A Filosofia é uma ciência pelo objeto epelo procedimento específicos: o absoluto e adialética no desdobramento do pensamento. Pode-se ponderar que, para Hegel, a Filosofia representaa verdade no mundo dos homens, por isso que noseu sistema as opiniões constituem um obstáculoao conhecimento do absoluto. “A filosofia sedetermina de modo a ser um conhecimento danecessidade do conteúdo da representaçãoabsoluta”, implicando que a Filosofia seria aquelesaber que explicaria o absoluto na condição derevelar sua dimensão de forma racional e dentrodas estruturas da lógica, que, pesquisando o Seratrelado ao pensamento, não como oposição,anunciaria sua identidade necessitante.

Completando essa linha de raciocínio, em umapassagem, nos seus Cursos de Estética, que ampliaconsideravelmente o que concebe por Filosofia,Hegel, mais uma vez, relaciona-a com arepresentação da verdade: “Pois somente a filosofiaem seu conjunto é o conhecimento do universocomo uma necessidade orgânica em si mesma,que se desenvolve a partir de seu próprio conceitoe, em sua própria necessidade de se relacionar

consigo mesma como um todo que retorna a sicomo um mundo da verdade” (HEGEL, 2001, p.47).

Por isso, a filosofia não pode ser uma opinião,assim como também não pode ser um primeiroresultado da sensação. Hegel com isso pretendeque o seu sistema anuncie uma visão que só peloconjunto é possível conhecer o elemento. É comose o elemento em si não pudesse ter sua existênciadeterminada, pois só é reconhecido narepresentação do todo como realidade primeira.Essa realidade primeira é, com certeza, o princípionorteador das difíceis elaborações hegelianas, que,por determinação do seu conceito, não pode buscaro exterior para manifestar o que ocorre no interior,mas o exterior é, ao seu turno, uma determinaçãodo interior. Assim, como os conceitos do “belo” eda “arte” são pressupostos necessários do sistemada Filosofia, a família, a sociedade civil e o Estadotambém são, portanto, pensados pelo espíritocomo realidades em si.

Se a Filosofia é ciência do absoluto, linguagemdo absoluto que se pensa e mostra-seexteriormente aos homens pela consciência, elasó pode ser realização do absoluto, por isso nãose pode olvidar que na sua tarefa esclarecedoratenha por missão precípua apresentar o absolutocomo determinação na história, encontrando noEstado sua relação de efetivação. Esse papel que aFilosofia desempenha, segundo o idealismoalemão9, é a de identidade cultural, portanto,nacional, não tendo nenhum paralelo na históriada Filosofia moderna, a não ser que se recue aomundo grego, em que, sem sombra de dúvida, elatem um papel relevante, na medida em que se criauma linguagem específica a partir de problemaspolíticos e, como atesta Jean-Pierre Vernant(1992), o vocabulário filosófico tem origem na

8 “Agora torna-se claro em que medida a história da filosofiaé o mais íntimo movimento na marcha do espírito, querdizer, da subjetividade absoluta em direção a si mesma.Ponto de partida, avanço, passagem, retorno desta marcha,tudo é determinado especulativo-dialeticamente”(HEIDEGGER, 1973, p. 406).

9 Os termos “idealista” e “idealismo” surgem pela primeiravez com o filósofo alemão Gottfried W. Leibniz (1646-1716), mas é com George Berkeley (1685-1753), filósofoinglês, que adquirem o sentido que nós conhecemos, ouseja, como uma corrente filosófica que reduz toda aexistência ao plano do pensamento, isso quandoconsideramos o pensamento segundo René Descartes(1596-1650). Já o idealismo alemão é uma corrente filosóficaque surge no final do século XVIII, sob forte influência dafilosofia kantiana. Sua premissa básica consiste na não-existência de coisas reais independentes da consciência (eu).O que pensamos representa-se expressamente ao plano doreal.

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temática política, na vida citadina dos homens.

O idealismo alemão surge, então, como umacorrente filosófica impregnada do espíritogermânico: a introspecção, o retorno aos valoresesquecidos como sentido de afirmação política, adisciplina viva no intuito do objetivo determinado,a superioridade do sistema cultural como um valorsobre o resto da Europa. O idealismo alemão, comoassinala Nicolai Hartmann, é expressão criativa deum sistema filosófico em que os fundamentos sãoúltimos e irrefutáveis, totalização que se efetivacomo reflexão profunda pela razão interiorizada,caracterizando-se como um sentimento deotimismo juvenil (HARTMANN, 1983, p. 9). Oidealismo alemão procura sintetizar o espíritogermânico diante da história, e com isso objetivapromover, face à Revolução Francesa, umaperspectiva de auto-reconhecimento.

A filosofia hegeliana representa a apoteosegermânica, missão que o povo alemão traz consigoa fim de efetivar a realização da maturidade daEuropa que soube ser história e consciência desi10. A Alemanha tem um projeto, e esse projetosó pode ser de natureza universal, a materializaçãodo espírito objetivo, a concretização do espíritocomo referência, como principio de identidade.Nesse sentido, nenhuma outra corrente filosóficafoi tão eloqüente quanto a hegeliana, nenhum outrofilósofo alemão representou tão bem esse espíritode se pretender universal a mente filosófica dentrode um mundo comandado pelos mais ingênuossentimentos. A síntese absoluta da Filosofia,construída por Hegel, reproduz os interesses deuma síntese germânica que não somente buscasua unidade, mas também o comando da Europacristã. Assim como os antigos germânicos uniam-se em torno do chefe para a superação dos grandesconfrontos bélicos, nos tempos idos(ANDERSON, 1980, p. 117), os alemães doséculo XIX, especialmente os nacionalistas comoHegel, elegem o Império prussiano como a liderançaracional para comandar a unificação política alemã.A síntese de Hegel é a síntese do espírito na

história, no mundo, por isso precisa dosinstrumentos do mundo para a sua realizaçãoenquanto determinação da vontade.

O princípio da liberdade como valor, segundoHegel, é de natureza germânica e, como tal, significaque o povo alemão deve realizar tal idéia, cumpriro fim para o qual está determinado ou mesmo parao qual se determinou como uma imposição a partirda consciência de si, da autoconsciência enquantodeterminação de sua unidade cultural. Talvez estejaaqui a chave para compreender o entusiasmo quea filosofia hegeliana exerceu sobre boa parte dainteligência alemã, sobretudo naqueles jovens, porrealizar seu papel dentro da história, da luta políticapor uma Alemanha conforme os novos tempos.Desse modo, Hegel, na Introdução da Filosofiada História, monta um quadro dividindo a históriauniversal em quatro momentos, começando peloOriente, pela Ásia, passando pelo mundo greco-romano e terminando a caminhada do espírito nomundo germânico: “A história universal vai do lestepara oeste, pois a Europa é o fim da históriauniversal, e a Ásia é o seu começo. [...] O orientesabia – e até hoje sabe – apenas que um é livre; omundo grego e o romano que alguns são livres; omundo germânico sabe que todos são livres”(HEGEL, 1999b, p. 93).

Essa divisão tem por fim assinalar que oconceito de Estado foi uma longa maturação naqual o seu elemento formal é a monarquia em quea liberdade materializa-se: “Em conseqüência, aprimeira forma de governo que tivemos na históriauniversal foi o despotismo; depois vieram ademocracia e a aristocracia, e, em terceiro lugar,a monarquia” (ibidem). Hegel evidencia a realizaçãodo Estado como reino da liberdade peladeterminação político-administrativa enquantomonarquia, instância do universal pela qual a idéiaconcretiza-se por meio do espírito tomandoconsciência de si na história.

Nessa perspectiva político-filosófica, o mundoconstituído pelo espírito germânico tem a tarefade realizar o reino da razão quando efetiva arealização da vontade que, não sendo particular,mas universal, desdobra-se na realidade histórica,na concretização do mundo político. Esse mundopolítico é dominado pela vontade do conceito deDireito, que se expressa na figura do Estado comoreino ético, reino da liberdade, não de um ou depoucos, mas de todos. O espírito germânico seriaentão a liberdade como uma dimensão espiritual;

10 “Na história da filosofia, veremos que, para outras re-giões da Europa em que as ciências e a cultura doentendimento se fomentaram com zelo e êxito, a filosofia,com excepção do nome , desvaneceu até da memória e danoção e acabou por morrer que ela se conservou na naçãoalemã como uma característica peculiar. Recebemos danatureza a sublime vocação de ser os guardas deste fogosagrado” (HEGEL, 1991, p. 12).

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nesse caso, realidade que se concluiu no momentoem que o espírito determinou-se comunitaria-mente. Hegel inverte as determinações do realporque a natureza do seu pensamento é lógico-idealista, isto é, o objeto é uma realização doconceito como lógico-ideal, logo o pensamentodá as condições de todo o conhecimento. Não é osujeito e muito menos o objeto que se pronunciamna qualidade de se apreender o conhecimento. Esteúltimo realiza-se como categoria lógica, por issoé sempre um conceito, uma idéia11.

Esse conceito só pode ser compreendido comodeterminação pela leitura do idealismo, que,segundo Hegel, é a expressão histórica da Filosofia.Assim, “La proposición que lo finito es ideal,constituye el idealismo. El idealismo de la filosofíano consiste en nada más que en esto: no reconocerlo finito como un verdadero existente. Cadafilosofia es esencialmente un idealismo, o por lomenos lo tiene como su principio, y el problemaentonces consiste sólo [en reconocer] en quémedida ese principio se halla efectivamenterealizado. La filosofía es [idealismo] tanto comola religión; porque tampoco la religión reconoce lafinitud como un ser verdadero, como un último,un absoluto, o bien como un no-puesto, eterno”(HEGEL, 1968, p. 136).

O verdadeiro ser não é aquele que se apresentaaos sentidos, mas aquele que é compreendido nopensamento como determinação última, isto é, ascoisas são representadas pelo conceito; em últimainstância, é o pensamento – como ato – quedetermina a existência da realidade. Isso não querdizer que os objetos não existam ou não tenhamrealidade; essa realidade, por fim, primeiro afigura-se no pensamento como a que possibilita oconhecimento. Este não é um atributo do objeto,mas sim do sujeito que pensa conceituando. Épreciso assinalar que no idealismo o objeto existena idéia, na consciência, isto é, “não há coisasreais, independentes da consciência” (HESSEN,1987, p. 102). Assim, conclui-se que o objeto,

por exemplo, o Estado, que, como universalabstrato, existe na idéia, torna-se universalconcreto por meio dos cidadãos em que suasvontades efetivam-se historicamente, e auniversalidade é tomada como algo “em si” quese torna “para si” no plano das relações objetivas.

Ao contrário do empirismo, que toma o realpelas impressões das sensações, o idealismocompreende o real pela unidade do objeto pensado,o que quer dizer que o Ser é uma apreensão dopensamento. O idealismo alemão afigura-se,portanto, como uma solução ao problema postopela lógica empirista, que insiste ser o real umadeterminação dos sentidos, em que o que seconhece está relacionado pela relação sujeito-objeto externamente. Nesse caso, a lógicahegeliana apresenta o objeto como umadeterminação da idéia, necessariamente.

III. FILOSOFIA DO DIREITO: O POLÍTICONO SISTEMA HEGELIANO

A Filosofia do Direito, de Hegel, mais do queum tratado jurídico-político é, teoricamente, umtratado ético-político, estando na mesma tradiçãode A república, de Platão, Política, de Aristóteles,O príncipe, de Maquiavel, Leviatã, de ThomasHobbes (1588-1679), O segundo tratado sobre ogoverno civil, de John Locke (1632-1704) e Ocontrato social, de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778); enfim, constitui um clássico do pensamentopolítico ocidental. Seja como for, independen-temente do ponto de vista de cada perspectiva, aobra política de Hegel é um marco dentro dopensamento político moderno uma vez que elaborauma crítica ao Estado e ao próprio liberalismoenquanto fundamento teórico dos homens públicosnos negócios públicos, a partir da ascensão daburguesia como classe hegemônica no séculoXIX.

O tema central dessa obra, sem prejuízo paraos demais enfoques, está relacionado à efetivaçãodo plano da liberdade como dimensão do Direito,no sentido da eticidade, em que o Estado assumea instância universal de superação de todas asparticularidades (HARTMANN, 1983, p. 598).Sendo assim, o Estado, na concepção de Hegel,tem em si a idéia de representar a totalidadepolítico-social, de encerrar em si o mundo públicoe o mundo privado, a restauração da vida ética apartir da representação grega. Hegel pensa acomunidade no sentido politicamente estatal, ouseja, por meio da norma jurídica como instrumento

11 “Para o idealista lógico o objecto gesso não existe nemem nós nem fora de nós; não existe pura e simplesmente,necessita de ser concebido. Mas isto tem lugar devido aonosso pensamento. Formando o conceito de gesso, o nossopensamento concebe o objeto gesso. Para o idealista lógicoo gesso não é, portanto, nem uma coisa real nem um conteúdoda consciência; é um conceito. O ser do gesso não é, segundoele, nem um ser real nem um ser consciente, mas um serlógico-ideal” (HESSEN, 1987, p. 105).

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político a resguardar a liberdade, atingindo suarealização num elo comum a todos. O Estado épara Hegel, ao mesmo tempo, tanto poder comofunção, por sinal uma função política cujo escopoé o trato da coisa pública enquanto devidamentepública, isso para a satisfação do indivíduo,socialmente. O pensamento de Hegel é herdeiroda Revolução Francesa de 1789 e, como tal, temna lei, portanto na legalidade, o fundamento danação enquanto sociedade organizada, cujo fim éa liberdade como valor máximo de integralidadehumana.

Na Filosofia do Direito, Hegel pensa umaordem de instituições políticas que deveriamfuncionar na devida medida em que os interessesuniversais sejam garantidos dentro dosparticulares, delegando aos órgãos públicos a tarefade, em si, resolver o social por meio do político.Hegel, que para muitos é considerado o “grandearistotélico moderno”, pensa o homem a partir deuma ordem necessária que o antecede, ou seja,sua possibilidade enquanto homem só é possíveldentro do Estado, a pólis moderna, cuja finalidadeconsiste numa eticidade pelo Direito, pelo planoda normatividade12.

Segundo Norberto Bobbio (1908-2004), aposição de Hegel diante do Direito é ambígua, umavez que ora é parte do sistema (o Direito abstrato,como pensam os juristas), ora é o Direito comosistema, seja no sentido estrito ou na condição deuma filosofia prática – ordens econômica, políticae moral (BOBBIO, 1995, p. 57-58). Ainda,conforme o pensador italiano, a matéria jurídicanão está constituída organicamente, encontra-sedesmembrada e desarticulada; observa-se o DireitoPrivado separado do Direito Público no sentidoconstitucional. Entretanto, ousando discordar deBobbio, entendo que essa tal desarticulação éproposital, porque Hegel não elabora um tratadojurídico à guisa de manual didático, mas sim um

tratado político submetido aos princípios doidealismo. Por outro lado, Bobbio acerta quandoassinala que Hegel rompe com a construçãosistêmica do Direito, legada pela escolástica doDireito Natural, e isso é bastante razoável, pois naFilosofia do Direito, Hegel procura novosfundamentos como pressupostos de condiçãorealizável e condensa ética e política na perspectivaque alenta por muitos anos: o ideal do mundo gregocomo resgate da síntese do cidadão e do indivíduona retomada histórica, a ingenuidade germânicanão afetada pela abstrata propriedade romana.

Instigante e ao mesmo tempo polêmica, aposição do pensador húngaro István Mészáros,ao defender a tese de que o pensamento políticohegeliano, em sua formulação, optou pelo capital,muito embora apresentasse, naquele momento, ascontradições da sociedade civil burguesa. Para odiscípulo de Lukács, Hegel elaborou suaconcepção política em tempos extremamentecomplexos, levando em consideração o seu mo-mento decisivo que foi a Revolução Francesa de1789. Segundo Mészáros, “o que deve serenfatizado aqui é a importância do simples fato deque uma filosofia concebida do ponto de vista docapital, em determinado estágio do desenvol-vimento histórico, tenha reconhecido os antago-nismos históricos objetivos” (MÉSZÁROS, 2002,p. 55). Isso quer dizer que Hegel tornou-se umpensador difícil de ser rotulado, pois ao mesmopasso que é temeroso tê-lo por conservador, outradificuldade é apresentá-lo como genuíno pensadorliberal, mesmo Mészáros associando a filosofiahegeliana à burguesia enquanto classe que seconstituía controladora do Estado moderno.Todavia, o que importa, decisivamente, é pensarHegel como grande teórico: sempre predisposto aacertos, equívocos e contradições, peculiaridadesde quem simplesmente pensa.

III.1. Família, sociedade civil e Estado

A Filosofia do Direito, de Hegel, pode sertomada como uma tentativa de firmar o princípioracional como real, na medida em que a sociedadecivil é apenas uma etapa que o espírito objetivocumpre até se realizar como Estado: a verdadeque se volta a si mesma, preocupada em ir aoencontro da história e dela resgatar a dimensão dohomem. No seu entendimento, tanto a famíliaquanto a sociedade civil são dois momentos queantecedem o Estado, mas que, na verdade,traduzem a idéia de Estado. Etapas as quais o

12 “Na ordem natural a cidade tem precedência sobre afamília e sobre cada um de nós individualmente, pois otodo deve necessariamente ter precedência sobre cada umde nós individualmente” (ARISTÓTELES, 1997, p. 15).Ao chamar Hegel de “aristotélico moderno”, tomo por baseos seguintes autores: Marcuse (1984, p. 51): “A filosofiade Hegel é em amplo sentido a reinterpretação da ontologiade Aristóteles, liberada esta das distorções do dogmametafísico”; Ramos (1993): “A crítica ao modeloaristotélico-hegeliano, exposta por Marx, retrata uma outraposição teórica em relação ao Estado”.

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Estado superou, como autodesenvolvimento de sina objetivação do plano da liberdade. Família esociedade civil são reinos particulares diante doEstado; todavia, consideradas em si, constituemo desenvolvimento da idéia de liberdade, apassagem do contingente para o racional, isto é, onecessário. Família e sociedade civil são, segundoHegel, necessidades em que o espírito no processotoma consciência de si.

No primeiro momento, a família, substancia-lidade imediata do espírito, determina-se pelasensibilidade (amor),e é a instituição em que oespírito adquire sua relação com o mundo externo,apresentando-se por meio de uma unidade. Afamília, de certa maneira, surge como relaçãoracional, espírito ético imediato, sentido desuperação da natureza, ou melhor, qualidade depromover o conteúdo para além do sujeito e dapessoa, a substancialização de membro, de umdentro de outros numa relação com todos (HEGEL,1990, p. 160).

Na superação da família, que se caracterizacomo reino das unidades particulares, Hegelapresenta a sociedade civil como uma disposiçãode encontrar uma associação mais ampla pararesguardar, ainda assim, os mesmos interessesparticulares, muito embora historicamente aconsciência avance para complexas relações desi. Nesse sentido, a sociedade civil é a negaçãológico-dialética da família, que, ao seu turno, seránegada pelo Estado como reino ético, logo asociedade civil é o momento em que os membrosda família libertam-se da condição de membrosde uma unidade para encontrarem em si o“aparecimento de pessoas independentes ereconhecidas como tais pela sua maioridade”(WEBER, 1993, p. 112), possível peloreconhecimento do outro em si.

A sociedade civil, uma descoberta “comocampo de atuação da reflexão filosófica”(FREITAG, 2002, p. 63), assume em si mesmaum instante necessariamente fadado à suasuperação, isso, porque, superando o reino dasparticularidades da família, não consegue ir alémde uma superação tímida, que por sua vez acirraessas mesmas particularidades agora em bases nãonaturais, mas artificiais, nas classes e outrascorporações. Eis que o Estado, a universalidadeconcreta, é absolutamente o fim dasparticularidades tomadas como centro, cedendoaos interesses gerais.

Família, sociedade civil e Estado sãodiferenciações que se negam uma a outra nacondição de que a vida ética só existe no interiordo Estado, o que significa dizer que o Estado nãoé compreendido somente como um aparelhopolítico, mas como o novo sentido de pólis, unidadeurbana em que os indivíduos são livres, masatrelados sob a objetivação da lei. Por isso, paraHegel, a lei é o Direito objetivado, isto é, Direitopositivo, sendo, portanto, aceito universalmente etambém universalmente conhecido, tendo a lei afunção de subordinar as partes da sociedade aotodo. A sociedade civil ainda, comparada aoconteúdo do Estado, segundo Hegel, assemelha-se a um “todo contra todos” hobbesiano, pelo fatode não realizar o espírito da história que é amaterialização da liberdade como valor máximo.A sociedade civil burguesa, mesmo suplantando oreino restrito da unidade familiar, ainda guarda oefeito de sua particularidade, porque ainda não foirealizada a passagem do abstrato ao real, e o formalainda não foi superado pelo conteúdo determinadopelo sentido histórico do Direito.

III.2. Constituição, Estado e seus poderes

Após o advento da Revolução Americana, de1776, da declaração da Constituição dos EstadosUnidos da América do Norte, em 1787, e daeclosão da Revolução Francesa, de 1789, com suassucessivas fases na qual se destaca sua radicalconstituição de 1793, o pensamento jurídico-político ocidental amadureceu a idéia deorganização política, tendo por base umaconstituição formal que estabelecesse osprincípios reguladores de uma determinadaformação social. A constituição como algonecessário à sociedade organizada é um fenômenoque data da Grécia antiga, especificamente daAtenas do período clássico, pois, para os gregos,o sentido de constituição estava relacionado àorganização do governo, ou melhor, a sua formade governo em vista da administração da cidade.

Na modernidade, a constituição assumetambém um caráter formal como determinaçãojurídica de limitação do poder real; as constituiçõessurgem com o objetivo de se estabelecer leis emque todos se obriguem ao cumprimento do firmadomediante uma legislação exterior, isto é, de leis dorei para leis do reino. A Constituição deixa derepresentar forma de governo para firmar-se comoum conjunto de princípios a constituir um Estado,dentro dos limites de sua ação, assumindo, por

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fim, o sentido de um grande contrato social, emque a soberania passa a ser exercida pelo poderestatal, sem implicações pessoais. Todavia, essaexplicação não é suficiente para dar conta doimenso problema que a produção de bens atingiudepois da Revolução Industrial e da consolidaçãoda burguesia como nova classe que reorganiza osEstados nacionais e consolida o capitalismo comomodo de produção de bens. A legislação desponta,por meio das constituições orgânicas e doscódigos, como novo instrumento para resguardarnovos e velhos interesses, firmando e definindo oconceito de propriedade privada para proteger acirculação de riquezas.

Com a Revolução Francesa, o corolário de quea nação tem na lei o seu fundamento, ganhaproporção não só de necessidade jurídica comopolítico-econômica, visto que desse debate estáconstruindo-se aquilo que hoje se costuma chamarEstado de Direito, tendo a norma jurídicadimensão de autoridade suficiente para sobrepor-se aos governantes em favor de uma ordem públicavoltada aos interesses coletivos.

As novas relações de produção, a expansão daindústria e do comércio e as garantias essenciaisà realização dos negócios burgueses aceleram osentido da lei como algo imprescindível no mundomoderno. Dentro desta modernidade, ao lado daconstrução do capitalismo, surge, relacionada atudo isso, a Constituição como elementofundamental de personalização política do Estado.A partir do conceito de Constituição como leimáxima do Estado, submetendo à sua autoridade,surge a tese de que a lei é uma determinação deordem jurídico-político-administativa, oracomandada pelo espírito burguês. A Constituiçãonão é, portanto, um puro princípio da razãojurídica, mas o resultado de interesses político-econômicos.

No entendimento de Hegel, a Constituiçãomarca um momento de pura racionalidade jurídico-política, o momento em que a liberdade está postapela garantia da determinação da idéia até chegarao concreto de si, ou seja, pelos instrumentosefetivos da normatividade; por isso afirma que “porConstituição deve-se entender a determinação dosdireitos, isto é, das liberdades em geral, e aorganização de sua efetivação; e que a liberdadepolítica só pode, em todo caso, formar uma partedela” (HEGEL, 1995b, p. 311). Segundo Hegel, aConstituição determinaria a racionalidade do

Estado, o momento em que são superadas asparticularidades da sociedade civil, organizando-se num organismo vivo e necessariamente lógico-racional em que o Estado, na perspectiva detotalidade, é o universal concreto, centro de umavida ética tendo o público e o privado comodimensões continuadas pela liberdade de todos:“A constituição política é, em primeiro lugar, aorganização do Estado e o processo da sua vidaorgânica em relação consigo mesmo. Nesteprocesso distingue o Estado os seus elementosno interior de si mesmo e desenvolve-os emexistência fixa” (HEGEL, 1990, p. 250).

No pensamento de Hegel, a Constituição é amaterialização racional do Estado, o momento emque o próprio Estado, em si, torna-se efetivamenteuniversal concreto dentro de uma dada organizaçãosocial. A Constituição assume o sentido dedeterminação do Estado moderno pela plenaconfiguração de sua legítima existência no limitedas relações entre os homens: “a Constituição éracional quando o Estado determina e em si mesmodistribui a sua actividade em conformidade com oconceito, isto é, de tal modo que cada um dospoderes seja em si mesmo a totalidade” (idem, p.251). Tinha Hegel entendido que a Constituiçãoseria um elemento essencial do Estado moderno,o que o diferenciaria dos outros momentos desseconceito ao longo da história, e por isso, no seusistema, a Constituição marca o Estado comoorganismo funcionando biologicamente, sendo aspartes naturais subordinadas ao todo em si,enquanto os seus supostos poderes são apenasfunções específicas.

Tanto assim, que Hegel não admite a clássicaseparação entre os poderes interpretada, segundoalguns, por Montesquieu (1689-1755), poisentende que tal concepção não só dificultaria aunidade do Estado como o fragmentaria. Esseorganismo hegeliano é uma determinação lógicarepresentada pela concretização da idéia, e, nessecaso, a concepção de poder de Estado diferesubstancialmente da dos seus contemporâneos,que pensam de alguma forma na construção deum Estado racional e efetivamente comprometidocom a nova realidade burguesa: o plano da liberdadeatomizante dentro de uma ordem política. Hegel,na percepção dessa nova realidade, parte doconceito de unidade do Estado e, para tanto, nãoconfere à clássica separação dos poderes aimportância que tem dentro do pensamento liberalcontra o pensamento absolutista.

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Conforme Hegel, o Estado não poderiaconstituir-se em diversos outros poderes que nãofossem o próprio Estado, um poder em si mesmo,visto que qualquer unidade em si e para si além doconceito de Estado levaria sua unidade de soberanoa diluir-se e não efetivar o seu próprio conceitoque é a concretização da liberdade. Os poderesnão constituíam nenhuma determinação foradaquilo que o próprio espírito do Estado atingiuna história. A divisão dos poderes significaria acisão do Estado como elemento histórico, nãopossibilitando que todos os indivíduos fossemlivres. O Estado moderno é a maturidade históricasob a qual os homens organizam-se e superam asparticularidades, a fim de nele buscar o universal.Logo, o Estado só existe na medida de sua unidade,de sua universalidade. Pensá-lo dividido empoderes é pensá-lo dominado pelas esferas dasparticularidades, diluído privadamente.

Para Hegel, a concepção da separação dospoderes tem em si algo que, devidamenteentendida, é importante no sentido da determinaçãoda liberdade pública, mas que, para isso, é preciso,sobretudo, compreender que tal separação nãopode passar de um princípio de distribuição defunções, não comprometendo a unidade soberanado Estado. Embora admirador de Montesquieu, aquem confere importância capital quanto àpesquisa das constituições, Hegel entende divisãode poderes como desconcentração de funçõesestatais: “Entre as concepções correntes, dever-se-á mencionar a da necessária separação dospoderes. Poderia ser ela uma concepção muitoimportante, pelo que representa de garantia daliberdade pública, se fosse tomada no seuverdadeiro sentido [...]. É nela que se encontra oelemento da determinação racional. O princípioda separação contém, com efeito, como elementoessencial, a diferenciação, a razão na realidade”(idem, p. 252).

Na relação que Hegel estabelece entre realidadee pensamento, isto é, a realidade como produtodaquilo pensado, a separação dos poderes afetariade imediato a lógica do conceito, pois nisso consistetodo princípio de universalidade. A separação dospoderes, que pensa obstruir desconfianças earbítrios, na verdade cumpre o papel departicularização do Estado, visto que sua soberaniarepousa numa unidade realizada no Estado comoconcreto histórico. A separação entre os poderesacirra as relações entre os mesmos, e cada um

deles, na medida do possível, procurará mostrar-se tão independente que, de alguma forma,redundará na dissolução do Estado como unidadeorgânica. Embora guarde racionalidade, aconcepção da independência dos poderes em simesma não garante a harmonia dentro do Estadocomo também não garante a liberdade como algonecessário e vital para o indivíduo. Sendo assim,para Hegel, os poderes são, na verdade, diferençassubstanciais, funções exercidas na lógica do todoprecedendo às partes.

III.3. Poderes estatais

A maneira como Hegel constrói a relação entreas diversas funções de poder de Estado passa,forçosamente, pela sua lógica política na defesada monarquia constitucional, tendo, no monarca,o instituto da soberania como a própriapersonificação do Estado, a unidade político-cultural da Alemanha, tendo à frente a liderançaprussiana. A argumentação hegeliana tem o sentidode validar sua construção lógica, ou seja, ao rejeitara tese da independência entre os poderes, Hegelrejeita a ilogicidade de como ela é apresentada,visto que o seu pensamento político em si sustenta-se na sua lógica como um corolário da razão:“Divide-se o Estado político nas seguintesdiferenças substanciais: a - Capacidade para definire estabelecer o universal – poder legislativo; b -Integração no geral dos domínios particulares edos casos individuais – poder de governo; c - Asubjectividade como decisão suprema da vontade– poder do príncipe. Neste se reúnem os poderesseparados numa unidade individual que é a cúpulae o começo do todo que constitui a monarquiaconstitucional” (idem, p. 253).

A pretensão de Hegel funda-se na perspectivade que o Estado consiga manter-se na suaunicidade, tanto assim que pensa a monarquiacomo elemento político consistente desse projeto.Hegel insiste no ponto de que a tese da separaçãodos poderes como se apresenta pela discussão deseus defensores, que pensam saber o que dizempelo entusiasmo, não difere, em si, das outrasrepresentações que estabelecem no Estado umaverdadeira disputa entre os poderes, quando naverdade o que se deseja é que uma função sejaexercida em plena relação de conjunto, uma coma outra, ou melhor, que todas as atividades de podertenham como princípio o conceito de Estado emcada momento que atue como tal. Cada funçãoexercida deve representar a idéia de Estado e não

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a fração de Estado.

Segundo Thadeu Weber, “a interdependênciados poderes é apresentada como condição depossibilidade da organicidade do Estado. Oconceito inclui em si a unidade da diversidade e aracionalidade da Constituição se dá, na medida emque essa integração se realizar” (WEBER, 1993,p. 151). Essa organicidade é a própria unidade doEstado que se apresenta como necessária relaçãoentre as suas diversas atividades, que em si sópode ser reconhecido em sua totalidade e não pelassuas partes isoladas em si. O Estado, sendo o todo,logo, anterior às partes, tem sua integraçãorelacionada à funcionalidade das partes comounidades ligadas pelo princípio da soberania. Nessesentido, “o poder do príncipe contém em si ostrês elementos da totalidade, a universalidade daConstituição e das leis, a deliberação como relaçãodo particular ao universal, e o momento da decisãosuprema como determinação de si de onde tudo omais se deduz e onde reside o começo da realidade.Esta determinação absoluta de si constitui oprincípio característico do poder do príncipe quenós vamos desenvolver em primeiro lugar”(HEGEL, 1990, p. 258).

O poder soberano, chamado “poder dopríncipe”, na verdade, constitui a própria soberaniaenquanto fundamento do Estado político. Nessepoder, Hegel procurou, por meio do monarca,centralizar toda a unidade do Estado, identificandona monarquia prussiana o motor da história alemãcapaz de levar adiante o seu processo de unificaçãopolítico-cultural. O poder soberano seria a síntesedo poder público estatal, nele estando contidas asdeterminações necessárias à unidade de um Estadoque tem na vida ética a tarefa de executar o planoda liberdade como autodesenvolvimento doconceito de Direito. O poder soberano, enquantosentido da universalidade do Estado, dá-se em umsujeito específico, a pessoa do monarca,encarnando a soberania estatal por meio de suaunidade física como representação da unidadepolítica estatal, além de decidir, efetivamente, ocontrole das diretrizes estatais.

No parágrafo 277, da Filosofia do Direito, háuma passagem significativa que demonstra umapreocupação quanto ao caráter universal doEstado, mesmo que depois Hegel contradiga-secom sua tortuosa adequação do real ao racionalcomo ideal. Vejamos: “As diferentes funções eactividades do Estado pertencem-lhe como

momentos essenciais e são inerentes às universaise objectivas e embora se liguem, à personalidadeparticular como tal de um modo exterior econtingente. As funções e os poderes do Estado,não podem, pois, constituir uma propriedadeprivada” (idem, p. 259).

A contradição consiste no fato de que, mesmonão constituindo uma propriedade privada, oEstado e suas respectivas funções são tratadospor Hegel como se assim o fossem, isso na medidaem que destaca um sujeito específico, umapersonalidade individual como representação dasoberania estatal. Hegel delega ao monarca arepresentação da unidade do povo alemão, acondição de chefe eleito para fins de naturezaorgânico-social. Nesse particular, Hegel fazlembrar a organização dos antigos germânicos queem momentos difíceis elegiam um líder para queeste guiasse os guerreiros no intuito de guardar apaz, resolver contendas entre as tribos e combateros inimigos nas guerras externas (cf.ANDERSON, 1980; GIORDANI, 1985): “Nadecisão pode distinguir-se: a decisão, ocumprimento e a aplicação das decisões do príncipee, de um modo geral, a aplicação e conservaçãodo que já foi decidido, das leis existentes, dasadministrações e institutos que têm em vista finscoletivos. Esta função de absorção no geral é odomínio do governo e nele se compreendemtambém os poderes jurídicos e administrativos queimediatamente se referem ao elemento particularda sociedade civil e afirmam o interesse geral naprópria interioridade dos fins particulares”(HEGEL, 1990, p. 272).

Observa-se de imediato a diferença de comoHegel separa as funções de Estado em francaoposição à clássica separação dos poderes dentroda tradição exposta por Montesquieu. O poderGovernativo é aquele que leva a contento asdecisões tomadas pelo poder soberano na pessoado monarca e aquelas existentes no interior dasleis. O poder Governativo seria, portanto, o braçoadministrativo do poder soberano, subordinado àidéia de soberania existente nas determinaçõeslegais e ideais do Estado, organizado a partir deuma necessidade que está intimamente ligada àconcretização do conceito de Direito. Assim, ospoderes Administrativo e Judiciário não sãopoderes em si mesmos, constituídos comoindependentes e subordinados ao princípionorteador que rege internamente cada vontadeparticular. Para Hegel, tanto a execução dos

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serviços administrativos como os judiciários estãocentralizados no interesse do universal e, dessaforma, vinculados diretamente à soberania comoexpressão máxima do Estado. A execução da justiçaprende-se, politicamente, ao fato de que todadecisão, mesmo que tenha caráter particular, deva,em princípio, estar em consonância com o espíritouniversal, que, sem dúvida, justifica o fim doEstado, a natureza deste e a sua existência comoinstância ideal na realização do Direito.

Aos olhos do pensamento políticocontemporâneo, qualquer subordinação de umpoder a outro seria vista como um forte atentadoao Estado de Direito, uma violenta ruptura comos princípios firmados pela democraciarepresentativa, sobretudo no que concerne àjustiça, que tem no poder Judiciário uma espéciede corolário do liberalismo, uma salvaguarda dosdireitos individuais. Importa ressaltar que Hegelatrela a administração da justiça ao podergovernativo, por considerar tal serviço um ato daadministração pública e não um serviço particulardestinado ao particular. A administração da justiçatem para Hegel um caráter público de máximarelevância, e por isso está vinculada ao podergovernativo sob orientação direta da universalidadedo soberano, pois o seu conteúdo repousa nasoberania do Estado. Nesse sentido, aadministração da justiça assume, no pensamentohegeliano, dimensão estatal primordial, e não,como afirmam muitos, um aspecto conservadordo seu pensamento político.

Pode-se afirmar que o poder governativoassume a processualidade da administraçãopública, cujos serviços públicos não são distintosem si e para si. O serviço público pensado naFilosofia do Direito tem a especificidade únicade garantir o universal para todos aqueles quevivem no Estado. Serviço público tem naturezapública e, sendo assim, não pode sofrer soluçãode descontinuidade, deve estar atrelado ao íntimointeresse do Estado na prestação de superação dasparticularidades e arbitrariedades. A atomização dopoder levaria à extinção daquele Estadopoliticamente constituído para realizar o plano doDireito, a efetivação da liberdade. Portanto, Hegeldestaca: “Assim como a sociedade civil é o campode batalha dos interesses individuais de todoscontra todos, assim aqui se trava o conflito entreeste interesse geral e os interesses da comunidadeparticular e, por outro lado, entre as duas deinteresses reunidas e o ponto de vista mais elevado

do Estado e de suas determinações” (idem, p. 273).

O interesse do Estado é sempre de fundouniversal, com isso o poder governativo não podeoperar de outra maneira senão como expressãosoberana do Estado, e tal soberania visa, em si, àconsecução de fins últimos na superação dasdiferenças particulares. O poder governativo nãopode ser instituído e firmado a partir de princípiospróprios, seus fundamentos só podem e devemser os mesmos fincados no e pelo poder soberano,ao que o poder legislativo, segundo Hegel, éconstituído pelas: “Leis enquanto tais, na medidaem que elas carecem de determinaçõescomplementares e pelos assuntos interiores quesão, graças ao seu conteúdo, completamentegerais. Este poder faz parte da Constituição queele mesmo supõe e que, por conseguinte, está foradas determinações que provêm de si mesmo,embora o seu ulterior desenvolvimento dependado aperfeiçoamento das leis e do carácterprogressivo da organização governamental geral”(idem, p. 278).

No sistema político hegeliano, o poderLegislativo não se determina em si como um podersoberano, a partir daquilo que se convencionouchamar de “autonomia dos poderes”, pois o aquelepoder tem como figura a totalidade da sociedadecivil. Nele imperam as relações de subjetividade, epor isso dele só podem emanar decisões que,mesmo gerais, não constituem em si auniversalidade, o que só pode dar-se na soberaniado Estado, pela representação do soberano, domonarca. Sua eficácia enquanto momento doconceito de Estado atrela-se ao poder governativo,porque é esse que tem por fim a consecução doserviço público por meio da burocracia, da classeestatal composta por indivíduos extraídos daclasse média. Os três momentos do Estado,pensados por Hegel, estão intrinsecamentesubmetidos à idéia do Direito, ao concreto planode uma ordem ideal de se efetivar o Estado comototalidade da vida moderna.

IV. A BUROCRACIA: FUNÇÃO DE ESTADO

Na Filosofia do Direito, Hegel não trata aburocracia dentro de um capítulo à parte oumesmo em longos parágrafos. Desenvolve oproblema no correr das exposições dos parágrafosconcernentes aos poderes governativo e legislativo,na tentativa de legitimar a superioridade dosservidores do Estado sobre qualquer outro serviçopromovido fora do universal concreto, e apontar

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que o único titular do universal é o Estado na figurade seus agentes submetidos ao espírito domonarca. Destaque-se que o caráter da burocracia,para o filósofo alemão, assenta-se na racionalidadedo Estado e está diretamente ligado ao espírito daRevolução Francesa e às estruturas defuncionamento do Estado prussiano, que, ao longodo século XVII e em diante, desde a reforma deFrederico Guilherme I por meio da Resolução de1653, instituiu profundas mudanças na Prússia pormeio de uma forte centralização administrativa,levada adiante por seus sucessores (ANDERSON,1984, p. 280); por conseguinte, longe daquelesideais contidos no espírito revolucionário de178913.

Por fim, o espírito da burocracia confunde-secom o espírito do Estado, porque, para Hegel, “nofuncionamento do governo, dá-se uma divisão detrabalho. Deve a organização das autoridadessatisfazer a exigência, difícil embora formal, de,em baixo, a vida social, que é concreta, sergovernada de um modo concreto [...]. De umanatureza objectiva para si são os actos de governo;pertencem ao que já está decidido de acordo coma sua substância e devem ser executados erealizados por indivíduos” (HEGEL, 1990, p. 240,274).

A existência da burocracia está determinadapela natureza do Estado, isto é, o Estado como tale pensado por Hegel é a superação da sociedadecivil naquilo que para o filósofo significa o reinodas individualidades, de todos contra todos, issopara usar uma expressão hobbesiana que Hegeltoma como um axioma em defesa de um Estadoque compreenda seu papel de abarcar os indivíduospara si. Nesse sentido, a burocracia assumematerialmente a existência do Estado comorealidade determinada por um conjunto de funçõese atribuições regulares em que só o poder públicopor meio do seu pessoal pode exercer. É pelaburocracia que o Estado torna-se uma realidadeconcreta anunciando aos seus membros adisponibilidade dos serviços públicos de formaplena, constituindo, assim, “a vida social, que éconcreta, ser governada de um modo concreto”.De um modo objetivo, a burocracia para Hegel é a

materialização da soberania que se processa pormeio de indivíduos públicos.

O Estado, nas suas atribuições, não pode contarcom a boa vontade das pessoas e muito menosficar refém dos cavaleiros andantes, mas instituirum corpo de indivíduos que possa exercerregularmente funções rotineiras de interesse douniversal no seio da sociedade civil, pela ação dopoder público. Dessa forma, “o serviço do Estadoexige o sacrifício das satisfações individuais, earbitrárias, das finalidades subjectivas, masreconhece o direito de, no cumprimento do dever,e só nele, obter suas satisfações” (idem, p. 276).Claro que, qualquer argumento que se tenha emprol da burocracia não pode ignorar seu grandeintento de manter estável o funcionamentoorgânico das instituições do Estado, e para queisso ocorra a contento, é necessário o mínimo depadronização dos serviços, pagamento em espécieaos funcionários, e uma relação hierárquica dasfunções, em que exista comando e obediência nopropósito de se chegar à “vida social, que éconcreta, governada de um modo concreto”.

Assim, na importância da hierarquia dentro doconjunto das considerações de Hegel, tem-se,objetivamente, que o seu papel visa coibir abusose injustiças por aqueles que, detendo qualquerfunção pública, arroguem-se no direito deextrapolar de sua determinada obrigação, poisestabelece um sistema de relação hierárquica, emque funcionalismo desempenhe suas atribuiçõesbaseado na competência e na responsabilidadedireta de seus cargos, submetidos à lei, ao princípiodo Direito: o plano da normatividade: “Apreservação do Estado e dos governados contra oabuso do poder cometido pelas autoridades e pelosfuncionários, imediatamente consiste, por um lado,na hierarquia e na responsabilidade e reside, poroutro lado, no reconhecimento das comunas ecorporações impeditivo de que o arbítrio individualse confunda com o exercício do poder entregueaos funcionários, assim completando, vindo debaixo, a vigilância que, vinda de cima, é insuficientequanto aos actos particulares de administração”(idem, p. 277).

Nessa passagem, Hegel aponta a importânciada burocracia e de sua relação com o Estadomoderno, sobretudo aquele surgido após osescombros da Revolução Francesa de 1789. Aburocracia, pensada como metáfora, é a porta deentrada do Estado moderno. Nela o que se almeja

13 Item V da Declaração de 1793: “Todos os cidadãos sãoigualmente admissíveis aos empregos públicos. Os povoslivres não conhecem outros motivos nas suas eleições a nãoser as virtudes e os talentos” (PINHEIRO, 1983, p. 149).

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é a imparcialidade da administração pública. Tantoo Estado como os seus governados beneficiam-se com a estruturação da burocracia, visto que oprocesso administrativo torna as relaçõesimpessoais e nele o sentido de eqüidade transformaa Europa do século XIX de monarquias absolutasem constitucionais. Dessa forma, na avaliação deHegel, a hierarquia funcionaria como um sistemade atribuições lógicas guardando o fim deestabelecer o equilíbrio necessário nas relações dopúblico com o privado, não permitindo privilégios,corrupção, peculato e toda sorte de problemas quedefinhariam o propósito de universalidade doEstado. A hierarquia, nesse particular hegeliano, éuma condição lógica cuja atribuição é criarcondições para que os serviços públicos nãosofram os impasses tão comuns ao anarquismoda sociedade civil.

Dentro de suas contradições, Hegel ergue umconjunto de relações necessárias entre a existênciareal do Estado moderno e a eficiência daburocracia. Essa relação é tão íntima no seupensamento, que julga ter solucionado o problemada representação do verdadeiro Estado a partir doponto de vista lógico, visto que basta ter-se umgrande quadro tecnicamente bem-preparado doponto de vista moral-intelectual, constituídomediante seleção por mérito, extraído da classeuniversal (classe média), para ter-se efetivamentesolucionado os problemas no seio da sociedadecivil (idem, p. 274-278).

É sintomático que, mesmo enquanto defendeo ingresso do indivíduo no serviço públicomediante prova e exame de aptidão, emconsonância com a Revolução de 1789, Hegelbusque em Aristóteles o fundamento para defendera tese da classe média como classe universal14,

capaz de em si conter o caráter virtuoso damediania15 e, além disso, de ser o esteio de todaordem social possível. Talvez, suponho, Hegelqueira com isso atentar para o fato de que nem naaristocracia, nem muito menos nas classespopulares encontrar-se-ia o material humano parase formar os verdadeiros paladinos da moralidadepública e, por isso, defenda ele, claramente, oelemento burguês como representação de cidadão,de fato em sintonia com a Revolução de 1789.

V. HEGEL: O PROBLEMA DA PROPRIEDADEPRIVADA.

No sistema de entendimento de Hegel, apropriedade privada é uma extensão do conceitode propriedade. Não se pode perder de vista que osistema hegeliano parte de uma identificação doreal na perspectiva do ideal, mais precisamente, oreal existe no ideal como determinação doautodesenvolvimento do conceito; por isso, arealidade nunca é uma coisa em si mesma, massempre uma exteriorização da idéia no planohistórico. Na relação ideal-real é sempre o realdeterminado pelo ideal. Nesse sentido, Hegeladverte que: “Deve a pessoa dar-se um domínioexterior para a sua liberdade a fim de existir comoIdéia. Porque nesta primeira determinação, aindacompletamente abstracta, a pessoa é a vontadeinfinita em si e para si, tal coisa distinta dela, quepode constituir o domínio da sua liberdade,determina-se como o que é imediatamentediferente e separável” (idem, p. 59-60).

Sem precisar o que é propriedade, Hegel pelomenos a situa de forma a ser o fundamento daliberdade, o momento em que a pessoa existe comovontade livre, algo de exterior à pessoa queefetivamente a torna em si mesma indivíduo derelação com o mundo externo. A propriedade nãodetermina a pessoa, mas sua relação com outrase, nesse sentido, a propriedade efetiva um estadode espírito, uma condição necessária para que oindivíduo seja aquilo que deseja ser: livre edeterminante de si mesmo.

A propriedade não significa uma naturalidadeno sentido de ordem necessária, sua relação está

14 “Existe em todas as cidades três classes de cidadãos: osmuitos ricos, os muitos pobres, e em terceiro lugar os queficam no meio destes extremos. Como é geralmente aceitoque aquilo que é moderado e está no meio é melhor, é semdúvida melhor desfrutar moderadamente de todos os bensproporcionados pela sorte, pois nessa condição de vida émais fácil obedecer à razão [...] de fato, os primeiros tendempara a insolência e para a prática de atos de extremaperversidade, e os últimos se tornam maus e inclinados àprática de perversidades mesquinhas, impelidos para taisofensas pela insolência ou pela maldade. Outrossim, a classemédia é a menos propensa a fugir ao exercício de funçõespúblicas” (ARISTÓTELES, 1997, p. 143-144).

15 “Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtudemoral é um meio-termo [...] é um meio-termo entre doisvícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência,e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixõese nos atos” (ARISTÓTELES, 1973, p. 277).

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suficientemente vinculada ao Estado16, que ainstitui como um direito da personalidade, comoum direito que distingue a situação do indivíduono mundo. Hegel está convencido de que apropriedade torna o homem independente dosarbítrios de outrem, por isso a defende no sentidoburguês de expressão de si mesmo enquantodisposição capaz de autogerência dos seusinteresses. Se considerarmos que a propriedadecomo tal sempre definiu as relações que as pessoasestabeleceram entre si, que no seu fundamentoseparou os que têm daqueles que não têm,colocando estes em posição inferior em relaçãoàqueles, Hegel não tem outra alternativa senãopensar que o melhor para o indivíduo ser no mundomoderno está na posse da propriedade, pois o idealburguês, ao privilegiar a individualidade, toma-acomo propriedade dos indivíduos livres.

Para Hegel, o homem tem o direito de semanifestar por meio das coisas, por meio daquiloque produz, daquilo que o identifica na sociedadecivil burguesa. Por esse motivo, não pode serimpedido de se apropriar das coisas e muito menosde si mesmo. Hegel defende o direito de o homemter como propriedade fundamental as suasqualidades subjetivas: as intelectuais e as morais,advindas do processo cultural, e, sendo assim,torna-as posse jurídica, uma propriedade íntimado espírito, o que identifica e distingue os homensno processo de suas relações sociais. Por isso, adefesa da propriedade em si é a defesa do homemmanifestar-se enquanto ser que dispõe dapossibilidade de possuir direitos na adequação dodever de respeitar aquilo que não lhe pertence ede alguma forma impor esse mesmo princípio aosoutros face sua liberdade17. A liberdade só se realizapor meio da vontade humana que, ao seu turno,origina-se no espírito, e por esse motivo a liberdadeassemelha-se ao exercício da vontade; logo,vontade e liberdade são sinônimos que para Hegelefetivam-se quando ao homem é possível suarealização na propriedade, no momento em que aliberdade é a própria subjectividade.

Propriedade, segundo Hegel, é antes de tudoum princípio que norteia a liberdade comofundamento do indivíduo. Não é um fim paragarantir a posse como construção jurídica ousolução política para debelar carências.Propriedade no sentido de debelar carênciasconstitui-se como um meio para a solução dessesmesmos problemas, mas em si mesma apropriedade é o princípio sobre o qual a liberdadefunda-se. Nesse sentido, Denis Rosenfield assinalaque “a propriedade é uma categoria que dá a Hegela possibilidade de pensar, numa etapa primeira domovimento de concreção da pessoa naexterioridade das coisas, o processo graças ao quala vontade abandona os labirintos de suasubjetividade para aventurar-se nos domínios daimediação do ser. A pessoa determina a suaimediaticidade e a sua individualidade procurandoapropriar-se de um mundo que lhe resiste”(ROSENFIELD, 1983, p. 69).

Como bem se presta essa ilustrativa passagemde Rosenfield, a propriedade no pensamento deHegel é peculiar e está mais como umadeterminação filosófica – portanto, lógica – do quecomo uma determinação eminentemente política,de ordem prática, como em John Locke. Segundoo pensador inglês, a propriedade, embora seja umconjunto de bens, vida e liberdade, umadeterminação da natureza, não assume, como emHegel, uma determinação do indivíduo dentro dasociedade, a partir de como ela é. Para Locke, apropriedade constitui a base de um sistemaassociativo entre os homens, isto é, os homensdeveriam organizar-se no melhor governo possível,cujo escopo seria a guarda, o uso e adisponibilidade da propriedade sem nenhumaingerência externa. No pensamento de Locke,sendo a propriedade um direito natural, existemuito antes da própria organização política18.Deus criou o mundo para o homem e o fez detentorde toda riqueza existente para benefício daquelesque pudessem usá-la com razão e sobriedade, que,explorada pelo trabalho, daria aos homens osustento e a própria liberdade, visto que o trabalho,o corpo e o produto dessa relação formariam apropriedade de si mesmo.16 “E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto

é, onde não há Estado não há propriedade, pois todos oshomens têm direito a todas as coisas” (HOBBES, 1997, p.123).17 “Onde não há Estado nada pode ser injusto. De modoque a natureza da justiça consiste no cumprimento dospactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com ainstituição de um poder civil” (HOBBES, 1997, p. 124).

18 “E não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que não estão já unidos, oupretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, daliberdade e dos bens a que chamo de propriedade” (LOCKE,1973, p. 88).

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Inversamente, para o filósofo alemão, apropriedade não constitui um princípio da natureza,pois esta não é livre (HEGEL, 1990, p. 65). Apropriedade é uma das tantas mediaçõesencontradas por Hegel para a expressão da pessoaque é na verdade sujeito, que em si mesmo éabstração, e por isso a propriedade assume na suafilosofia política um papel de efetivar o indivíduona sociedade civil burguesa, a dignificá-lo por meioda manifestação de algo que o apresente de formaconcreta. Assim, a propriedade em Hegel, nãosendo base de nenhum sistema político, dá-se comoesteio para que o homem manifeste-sepoliticamente no seio da sociedade como algo desi e não como algo em si alheio à sua vontade.Para Hegel, os homens não se organizam emsociedade para usufruir a propriedade sob garantiaspúblicas, mas sim na dimensão pôr a termo aliberdade. Em síntese, a propriedade em Locke éuma manifestação da natureza sob a qual oshomens por bem deveriam viver, ao passo queem Hegel é uma determinação do espírito para queos homens vivam em liberdade (idem, p. 67).

Entretanto, para que a propriedade torne-seprivada, isto é, torne-se de uma pessoa, énecessário que, além da vontade de se apossar dacoisa (animus), haja, por parte desse interessado,a possessão da coisa, e que, em contrapartida,não haja nenhum impedimento interposto poroutrem, ou seja, que outrem não manifestetambém o interesse de possuir a mesma coisa.Nessa relação de princípios, parece que Hegel tomade Locke semelhante argumento: “Ninguém podefechar qualquer parte do terreno ou dele apropriar-se sem o consentimento de todos os membros dacomunidade” (LOCKE, 1973, p. 54).

VI. O PROBLEMA DA REPRESENTAÇÃOPOLÍTICA E A DEMOCRACIA

Não se pode esquecer que a associação entreliberalismo e democracia foi um processo em parteatribuído às lutas que os próprios liberais travaramcontra os socialistas no século XIX (BOBBIO,2000, p. 323), isso porque entre liberalismo edemocracia nunca houve uma relação naturalcomo hoje se deseja passar. Embora para osliberais a democracia sempre tenha sido vista comouma forma governativa fundamentada na liberdade,seus receios estavam intimamente ligados ao fatode que o preceito de liberdade estaria intimamenteligado a um outro, tão ou mais importante: aigualdade. Por isso que os liberais do século XIX

ficavam receosos (como ficam até hoje) com osignificado real da democracia: igualdade para amanifestação da liberdade, isso porque a liberdadenão pode ser um pressuposto da igualdade. Nosentido da lógica associativa, a igualdade é osubstantivo para que eu e o outro possamosexternar sentimentos e opiniões no mínimorespeitadas19.

Muitos liberais do século XIX não defenderama democracia como necessidade vital para umaassociação politicamente justa. Preocupavam-sesobremaneira com a liberdade: para negociar,possuir propriedade e poder contratar como atode inteira disposição de si mesmo. Para um liberalclássico do século XIX, a igualdade era umpostulado estranho ao liberalismo, que deveria sercombatido, pois contrariava essencialmente osinteresses da representação parlamentar da época,que se fundava no voto restrito àqueles quepossuíam propriedade.

Por ser um grande leitor dos clássicos, atentoaos escritos políticos de sua época e argutoobservador dos homens em sociedade, Hegel nãopoderia ignorar a democracia como um elementoque, após a Revolução Francesa, tomou umadimensão de ordem fundamental nos debatespolíticos de então. Aliás, Hegel sempre viu comreservas a democracia pensada única eexclusivamente como sistema de votos.Compreendia que uma democracia assim não dariaconta das necessidades políticas de uma Alemanhadividida. Segundo Herbert Marcuse (1898-1979),em sua obra Razão e revolução, Hegel escreveusua Filosofia do Direito em defesa do Estado,isso porque considerava que muitos movimentospseudodemocráticos alemães20 representavamameaça maior à liberdade do que as próprias

19 “Um princípio fundamental da forma democrática degoverno é a liberdade – a liberdade, segundo a opiniãodominante, somente pode ser desfrutada nesta forma degoverno, pois diz-se que ela é o objetivo de toda ademocracia. Mas um princípio de liberdade é governar e sergovernado alternadamente, pois o conceito popular dejustiça é a observância da igualdade baseada no princípio damaioria, e não no do mérito, e se este é o conceito de justiçadominante, a maioria deve ser necessariamente soberana, ea decisão da maioria deve ser final e constituir a justiça,pois costuma-se dizer que cada cidadão deve ter umaparticipação igual” (ARISTÓTELES, 1997, p. 204).20 Burschenschaften (agremiações estudantis) e osTurnvereine (clubes de ginástica) Em nome da liberdade e

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autoridades constituídas (MARCUSE, 1978, p.171), que, a exemplo do Terror instituído peloComitê de Salvação Pública na Françarevolucionária, invertia o universal pelo particular(ALVES, 1983, p. 156). Hegel não vislumbrou nademocracia o que a monarquia proporcionava-lhe:o princípio da unidade pela autoridade do monarcano projeto de efetivação do universal contra oparticular, isso como razão histórica. Nesse caso,pondera: “Diz-se que todos os indivíduos isoladosdeverão participar nas deliberações e decisõessobre os assuntos gerais do Estado porque sãomembros do Estado, os assuntos do Estado a todosdizem respeito, todos têm o direito de se ocupardo que é o seu saber e o seu querer. Tal concepção,que pretende introduzir no organismo do Estadoo elemento democrático sem qualquer formaracional – obliterando que o Estado só é Estadopor uma forma racional –, afigura-se muito naturalporque parte de uma determinada abstração: seremtodos membros de um Estado, e porque opensamento superficial não sai das abstrações [...].O membro do Estado é membro de tal ou talordem, e só com esta determinação objetiva poderáele ser considerado dentro do Estado” (HEGEL,1990, p. 288-289).

Com isso, Hegel afirma claramente que aintrodução do “elemento democrático sem qualquerforma racional”, no interior do Estado, não otransforma em algo melhor, e possivelmente torná-lo-ia pior, isso porque o Estado só é Estado emrazão de sua racionalidade, e de alguma maneiraos defensores do “elemento democrático”esquecem-se ou ignoram esse detalhe. Hegelconsidera a democracia uma abstração que nãotem realidade histórica, não tem relação deconcretude para gerar instituições voltadas àsatisfação dos interesses da universalidadeanunciada pela idéia desenvolvida pelo Estado. Essaidéia posta em processo pelo Estado é o ingresso

do homem para si, dentro de suas fileiras,entretanto para isso, Hegel julga que os membrosdo Estado são positivamente seus membrosquando participam dele por meio de uma ordem(determinação objetiva)21, membros enquantoespécie e não enquanto gênero, pois em suacorporação atingem o universal. O que Hegel julgaverdadeiramente é que a monarquia em si é umadeterminação histórica germânica e, por fim, oelemento decisivo na unificação político-econômica da Alemanha, o que ocorrerá em 1871por essas mesmas forças.

Em uma passagem da Filosofia do Direito,Hegel aponta claramente que a opinião de muitosnão significa necessariamente a detenção douniversal, mas, sim, em muitos casos, apenas osentido de particularidade, o sentido de umaopinião sobre assuntos que pedem inteiroconhecimento e profundidade. Não são osindivíduos isolados com opiniões isoladas quedinamizam a sociedade civil, mas objetivamente arepresentação por meio dos mecanismos dasordens, das corporações, das classes, dadelegação política. Segundo Rosenfield, não setrata de acusar Hegel de ser contra a democracia.Em seu entendimento, o que Hegel nega-se aaceitar é ainda a forma não-racional que apresentaa democracia, isto é, generalidades abstratas22.Mais que isso, é a sua origem que repousa nasabstrações particulares, nos interesses puramentepessoais, ignorando que em uma organicidadeestatal o que se determina é o universal, não comosoma de partes, mas como estas no seio do todo,visto este logicamente preceder às partes.

Segundo Hegel, a representação parlamentardá-se por competência dos interesses daparticularidade dentro da universalidade, oumelhor, não se trata de uma representação a partir

21 “A participação orgânica dos indivíduos na vida políticatornou-se uma determinação da Idéia do Estado comovontade substancial. A participação atomística dosindivíduos, pelo contrário, é a determinação de uma filosofiaque reduz o Estado a um contrato social” (ROSENFIELD,1983, p. 250).22 “O problema não é então afirmar que Hegel é contra ademocracia, mas, pelo contrário, trata-se de assinalar queele é adversário de sua forma ainda não racional [...]. Aparticipação de todos nos assuntos públicos só tem lugaratravés de uma mediação que garanta efetivamente aexpressão política das relações da sociedade civil-burguesa”(idem, 1983, p. 256).

da igualdade entre os homens, o povo estadunidenseconstituiu-se livremente em uma república comrepresentação pelo voto. Em nome de tais princípios, opovo francês derrubou a monarquia e instituiu uma repúblicaque pudesse racionalmente levar adiante os mais simplesdireitos dos homens. Paradoxalmente, em nome dos mesmosprincípios, a pequena burguesia alemã, após a libertaçãodos estados alemães do jugo francês, através de argumentosliberais e democráticos, propunha ódio aos judeus,católicos, franceses, e fundava o progresso alemão numsalvador do espírito germânico etc.

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de sujeitos isolados, especificamente relacionadosa interesses abstratos, mas pelo fato de se firmarcomo representação de interesses da sociedadeno seu conjunto. A representação em Hegelespelha-se, sobretudo, no interesse que se moveem torno das necessidades da sociedade, por issoentende que a delegação política só pode ser pelainteligência e conhecimento do que constitui aparticularidade. Por isso, é perigoso afirmar queHegel é antidemocrático ou autoritário. Em suaépoca, a democracia estava longe de ser como aconhecemos. Sob os pontos de vista formal ematerial, a democracia que hoje conhecemos deuos seus primeiros passos no mundo moderno pelaexperiência concreta dos Estados Unidos daAmérica do Norte, que, por sua vez, no primeiromomento, ainda via-se em debates tremendos parasaber que tipo de democracia queria-se, atédescobrir, ao fim, o melhor caminho para suainstitucionalização, apesar das tortuosascontingências (cf. HAMILTON, JAY &MADISON, 1993). Vide o próprio ThomasJefferson (1743-1826), um dos expoentes dopensamento democrático contemporâneo, aomesmo tempo em que declara a igualdade naturaldos homens, vê-se às turras com a escravidão denegros africanos nos Estados Unidos. É muitosimples tomar as idéias dos seus titulares longedo tempo em que estão envolvidas.

Um dos corolários da democraciarepresentativa, o sufrágio universal institui, porconseguinte, a representação política partidáriaque, aos olhos de Hegel, é visto como verdadeiroceleiro de interesses ligados à contingência e àparticularidade (HEGEL, 1990, p. 293). A políticapartidária para Hegel é uma das formas departicipação nos negócios públicos, por sinalacidental e incongruente, por não assegurar quetodos realmente assentem-se nos lugares visandodeterminações públicas. Como a democracia é umsistema que pressupõe disputa, e disputa leva aoplano dos interesses particulares – um perdeenquanto outro ganha –, Hegel entende que talforma de administração da coisa política em nadagarantiria a concretização da liberdade como valoruniversal e muito menos levaria a Alemanha a lugaralgum (ROSENFIELD, 1983, p. 257).

Para entender o pensamento político de Hegel,é preciso situá-lo dentro do espírito do seu tempo,é necessário perceber que esse filósofo é antes detudo um metafísico. Por isso não se preocupa em

partir de um real específico como pontodeterminado, mas sim de um real que sejacompreendido pela idealidade de si mesmo. Olegislativo na concepção hegeliana difere doconstruído pela contemporaneidade, isto é, umforo de discussões por vezes intermináveis. ParaHegel, a casa legislativa apenas detém-se naquiloque for de competência da sociedade civil, e nãoultrapassa esses limites, cabendo ao podersoberano a tarefa de sustentar e promover ouniversal por meio do poder governativo, pelo seupessoal devidamente qualificado no interesse doEstado. Nessa relação entre os poderesGovernativo e Legislativo, Hegel privilegia oprimeiro por entender que sua natureza é universale não particular: “A opinião que a consciênciavulgar habitualmente perfilha sobre a necessidadeou a utilidade da colaboração das ordens naelaboração das leis, consiste, antes de tudo, emcrer que os deputados do povo são os que melhorcompreendem o que é o bem do povo e os quemelhor vontade indubitavelmente possuem sobreo que ao povo convém [...]. Quanto ao primeiroponto, o que, pelo contrário, é bem verdade é queo povo, na medida em que esta palavra designauma facção particular dos membros do Estado,representa a parte que não sabe o que quer. Sabero que se quer e, ainda mais, saber o que a vontadeem si e para si, a razão, quer, só pode ser o frutode um profundo conhecimento e de uma intuiçãoque, precisamente, o povo não possui. Acontribuição que ao bem geral e à liberdade públicaas assembléias de ordem vêm dar, não reside, senisso reflectirmos um pouco, na sua intuiçãoparticular. Com efeito, os altos funcionários doEstado têm necessariamente um entendimentomais profundo e vasto da natureza das disposiçõese exigências do Estado [...] não precisam de taisassembléias para fazer o melhor e são eles que,nas assembléias de ordens, fazem o melhor”(HEGEL, 1990, p. 282).

Abusando da extensa citação, deseja-se comela exemplificar o que Hegel pensava do Legislativo:um momento do conceito do Estado totalmentesubordinado ao poder soberano por meio da açãodo Governativo. Para Hegel, o Legislativoconfigura-se em um poder auxiliar nas decisõesde natureza pública; dele chegam informaçõessobre as particularidades da sociedade civil, quepor sua vez são elevadas à categoria de universale por fim efetivadas como prestação de serviçosque o governo entende essenciais ao povo.

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Aventuro-me a dizer que o poder Legislativoassume, para Hegel, apenas uma funçãoconsultiva, como um órgão consultor do podersoberano. Quando não, do Legislativo partiriamalgumas iniciativas que deveriam ser submetidasao monarca na qualidade de verificar o sentidouniversal do Estado. A representação para Hegeltinha um sentido de bem público e liberdaderacional, constituía-se numa instituição, só quenão tão importante quanto a soberania do monarca,o regime judiciário etc. O que na verdade vale dizeré que a representação parlamentar, segundo Hegel,possui importância secundária, pois não é o númeroque define a melhor ação do Estado, mas sim porquem é realizada essa mesma ação do Estado.

VII. CONCLUSÕES

Segundo Hegel, os fenômenos históricos sãoessencialmente políticos porque o desdobramentoda história tem por instância última a efetivaçãodo Estado. Como o Estado é o centro da vida ético-política, a história marcharia sem sombra de dúvidapara essa realização. Hegel, que tinha no Estado apretensão da vida ética, o momento da históriaem que o espírito, voltando-se para si mesmo,compreenderia a totalização da existência, pensaa política no sentido grego do homem participandodos negócios da cidade, ativamente inserido numaordem cuja preocupação não poderia ser outrasenão a plena efetivação de si no conjunto deinteresses da coletividade. Destarte, Hegel pensae monta sua idealização política tendo porexcelência a liberdade que só pode ser real nointerior do Estado como comunidade ética, comoprincípio de uma relação em que transformaria asociedade na integração dos indivíduos ligados pelacultura e pela expectativa comum de uma vidalivre. Nesse sentido, a vida ética permitecompreender o Direito como dever e o dever comoDireito, ou seja, a responsabilidade de todos é uminteresse universal e importante na medida em queconstituem laços integrativos. Esse Estado nãoseria a soma dos eus particulares, mas um grandeEu em que todos estariam inseridos como forçado autodesenvolvimento da consciência de sicomo princípio coletivo.

Hegel tem no Estado a totalidade queabsorveria, num só plano, o “chefe de família” eo cidadão, incluindo-os em uma ordem necessáriae logicamente pronta para romper com aatomização do individualismo burguês construídoa partir do século XVII. Dessa forma, Hegel pensa

romper com o individualismo ao fundir asociedade civil e o Estado político no mundomoderno. No entanto, conforme Marx, em suaCritica da Filosofia do Direito de Hegel, que datade 1843, a iniciativa de Hegel ficou comprometidana medida em que utilizou os elementos queprocurava combater: a política, o individualismoburguês, a propriedade privada, o Direito privado,a moral privada e a ausência do povo nos negóciosdo Estado; na verdade, um conjunto decontradições desafiando a própria lógica montadapara responder os desafios do problema político(cf. MARX, 1946).

Assim, Hegel é acusado de criar um quebra-cabeça lógico de elementos feudais com burgueses,procurando aprisionar o real e dele apresentarnovas representações de cunho estritamentemetafísicas. Como fim do seu pensamentofilosófico – e, por extensão, da totalidade querepresenta –, Hegel elege a síntese como aapoteose final do pensamento que se pensa a simesmo. Mas disso cria armadilhas para si,ignorando que a realidade lógica de seu sistema éuma coisa completamente diferente do que ocorrena lógica da realidade. Embora os elementosfeudais existam, na Alemanha, ao lado dosburgueses, isso não confere a Hegel, sob o pontode vista dialético, razão em afirmar a imutabilidadede tal momento histórico. Por outro lado, paraMarx, o que existe de real é a sociedade movendo-se nas suas contradições internas, e por elasacomodando-se ou transformando-se conformeas forças, os interesses e as necessidades em jogo,desenvolvidas nas condições objetivas, definidaspelas “condições materiais de existência”(ROSENZWEIG, 2008, p. 543).

Segundo Marx, Hegel promove tantascontradições que acaba usando a propriedadeprivada, particularmente o morgadio23, paragarantir o ingresso de uma classe específica da

23 Derivado de majoratus, da baixa latinidade, era o vocábuloempregado na terminologia do Direito antigo para indicarvínculo instituído a certos bens, a fim de que setransmitissem seguidamente aos sucessores, com a mesmaimposição, sem se pode vender ou dividir. O morgadio,assim, apresentava-se perpétuo e indivisível, e tinha porobjetivo manter os bens vinculados para conservação donome da família. O herdeiro do morgado era o primogênito,e a este, por extensão, também se dava a denominação demorgado. E designava, ainda, o direito de suceder nos bensvinculados ou que constituíam o morgado.

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sociedade civil no centro do Estado, apontando opoder Legislativo como o eixo da universalidade,mas impedindo, ao mesmo tempo, o acesso detodos, quando barra o número (povo) enquantoelemento democrático. Sustenta o Estado como oreino da reconciliação e, ao menor piscar de olhos,sustenta a burocracia como o espírito do Estado.Enfim, Marx assinala que, ao separar moral eEstado, Hegel apresenta a moral do Estadomoderno: a ilusão racional em torno do DireitoPrivado. É por esse conjunto de fatores que Marxapela para o sentido de inverter as proposiçõeshegelianas, isso por também perceber que,logicamente, as construções hegelianas estão, aprincípio, montadas numa inversão a priori, oumelhor, Hegel não olha a materialidade como elaé, por isso é preciso uma metodologia dadesinversão do ideal pelo real. A presença do real,para Hegel, converte-se em idealizações, porquesó essas são reais e a experiência não é condiçãode universalidade, o que faz as abstraçõesconstituírem-se num plano concreto.

No entanto, mesmo sendo relevante o conjuntodas oposições de Marx a Hegel, ao ler-se AFilosofia do Direito, levando em consideração ocritério de apatia, por força da observação, chega-se à conclusão de que seu pensamento pareceretratar não só o Estado moderno, mas também o

contemporâneo, sobretudo nos últimos trinta anos,em que cada vez mais o poder Legislativo perde,por motivos diversos, o seu papel de legislar, emfavor do poder Executivo, cabendo a este oincremento do universal no seio dasparticularidades. Por isso, estando certo ou não,constata-se que ao poder Legislativo ficoureservado o papel de moldura constitucional. Opoder Executivo, por outro lado, trouxe para si atarefa de ser o grande poder no interior dasinstituições políticas, constituindo-se na própriarepresentação da soberania. Portanto, nada maishegeliano do que a atualidade dos Estadosnacionais.

A Filosofia do Direito busca, por meio de suasespeculações, prever que o plano do Estado –portanto, o plano do conceito do Direito – é aliberdade como meio-fim por meio danormatividade, enquanto garantias político-jurídicas, tomando o indivíduo como ser social.Conclui-se, assim, que o pensamento político deHegel, por mais paradoxal que seja, ainda é umaleitura consistente contra os esforços atomizantesdo pensamento liberal, que insiste, apesar datragédia social contemporânea, em ser a melhorconstrução política para se pensar a realidade epromover o ideal de uma sociedade, no mínimo,inteligente.

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Wellington Trotta ([email protected]) é Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Riode Janeiro (UFRJ), doutorando em Filosofia na mesma instituição e Professor da Universidade Estáciode Sá (Unesa).

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 189-193 FEV. 2009RÉSUMÉS

LA PENSÉE POLITIQUE DE HEGEL À LA LUMIÈRE DE SA PHILOSOPHIE DU DROIT

Wellington Trotta

L’article analyse la pensée politique de Hegel à partir de sa « Philosophie du Droit », en faisant uneprésentantion systématique de ce que l’auteur a compris comme philosophie dont la politique étaitcomme une conséquence inévitable, puisque son système théorique privilégiait l’unité logique. J’aifait appel, dans l’élaboration de l’article, à un critère fort simples : présenter la pensée politiquehégélienne à la lumière de son propre temps, prenant en compte les difficultés habituelles que tousressentent pour exprimer des idées universelles à partir d’expériences particulières. Ainsi, je souhaitesouligner que, bien que Hegel ait compris l’État dans la perspective de l’universel concret, sonregard est prussien et tourné vers les problèmes de l’unité allemande. L’article est divisé en deuxparties : la première est un exposé du contenu philosophique de l’auteur, tandis que la deuxièmepartie cherche à étudier systématiquement sa pensée politique, ayant comme borne sa « Philosophiedu Droit ». Cette systématisation est envisageable puisque à l’origine le présent article intégrait monmémoire de master, dans lequel j’ai pu établir une relation entre Hegel et la pensée de Marx de 1843,présentée dans la « Critique de la Philosophie du Droit de Hegel ». À la fin, en guise de conclusion,j’argumente que, même si l’ensemble des critiques de Marx sont importantes, la pensée hégéliennesemble retracer non seulement l’État moderne, mais aussi l’État contemporain, surtout ceux destrente dernières années, où de plus en plus le pouvoir législatif perd, pour des raisons multiples, sonrôle de législateur, et est remplacé par le pouvoir exécutif à qui revient l’approfondissement del’universel au sein des particularités.

MOTS-CLÉS : Hegel ; Philosophie du Droit ; Marx ; État moderne ; philosophie allemande.

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MOBILITÉ AU TRAVAIL ET CONTRÔLE SOCIAL : TRAVAIL ET ORGANISATIONS ÀL’ÈRE NÉO-LIBÉRALE

Fábio Guedes Gomes

Le travail réalise une relecture des chapitres historiques de Le capital de Karl Marx, dans laperspective de travailler sur le concept de « mobilité du travail », tel qu’il est développé dans le livrequi sert d’appui théorique à cet article : “Movilidad del trabajo y acumulación de capital”, du françaisJean-Paul de Gaudemar. Cet ouvrage est peu connu au Brésil, surtout en économie politique. Pourtant,il est important pour la capacité d’approfondir la notion de ce concept et pour participer à laconstruction d’une interprétation plus poussée des déterminations du capitalisme contemporain etde ses nouvelles formes d’exploitation, comme la mobilité, la soutraitance, la reengineering, etc.Ainsi, l’article cherche, à partir de la compréhension du concept de mobilité du travail, à menerquelques incursions dans les thèmes essentiels du processus d’accumulation capitaliste, surtoutdans des domaines comme celui du chômage et des procédés de travail qui mènent à l’accrue del’extraction de plus-value relative et absolue qui déclenchent donc la réduction des niveaux moyensde revenu de la majorité de la population des travailleurs, l’accroissement de l’informalité et de laprécarité des conditions de vie matérielle. On remarque que l’épuisement du modèle d’accumulationcapitaliste, pendant la transition entre les années 1960-1970, a favorisé des changements profondsdans le mode de fonctionnement du système, produisant des formes plus indirectes d’exploitation etdes contrôles culturels et idéologiques beaucoup plus sophistiqués et efficaces.

MOTS-CLÉS : mobilité du travail ; contrôle social ; capitalisme ; modernité ; forrmes d’exploitation.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 17, Nº 32: 181-185 FEV. 2009ABSTRACTS

HEGEL’S POLITICAL THOUGHT THROUGH THE PRISM OF HIS PHILOSOPHY OF LAW

Wellington Trotta

This article analyzes Hegel’s political thought, through the prism of his Philosophy of Law. I presenta systematic exposition of Hegel´s concept of philosophy, which made politics a necessaryconsequence, given the fact that his theoretical system sought to establish a unitary logic. In elaboratingthe present text, I have employed a very simple criteria: to present Hegelian political thought throughthe prism of its own historical moment, taking the common difficulties that all of us experience inexpressing universal ideas through singular experiences.. Thus, I would like to note that althoughHegel thought of the State from the perspective of the universal concrete, his Prussian gaze isguided by his concern for German unity. The article is divided into two sections. The first provides anexposition of the thinker’s philosophical content, whereas the second seeks to carry out a systematicstudy of his political thought, based on his “Philosophy of Law”. This systematization is understandablesince the present text was initially a part of my Master’s Thesis in which I related Hegel and Marx’sthought in the 1843 period, as expressed in the latter’s “Critique of Hegel’s Philosophy of Law”.Lastly, in conclusion, I argue that notwithstanding the relevance of Marx’s set of criticisms, Hegelianthought seems not only to provide a portrait of the modern State but also the contemporary one,particularly that of the last 30 years, a period in which legislative power has lost its legislative role,increasingly substituted by the executive which in turn has been confronted by the task of increasingthe universality within its particularities.

KEYWORDS: Hegel; Philosophy of Law; Marx; the Modern State; German philosophy.

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LABOR MOBILITY AND SOCIAL CONTROL: WORK AND ORGANIZATIONS IN NEO-LIBERAL TIMES

Fábio Guedes Gomes

This paper engages in a re-reading of the historical chapters of Karl Marx’s Capital, in the interestsof working with the concept of “labor mobility” as it has been developed in the book that serves asthe underlying theoretical reference for this article: the French scholar Jean-Paul de Gaudemar’s“Labor mobility and capital accumulation”. The latter work is little known in Brazil, particularlywithin the area of Political Economy. Nonetheless, it is extremely important, given its approach tothe concept and contribution toward building a more accurate interpretation of the determinants ofcontemporary capitalism and its new forms of exploitation (flexibilizing, sub-contracting, re-engineering, etc.) Thus, through a heightened understanding of the concept of labor mobility, weseek to make some incursions into central themes on the process of capital accumulation, withparticular concern for issues such as unemployment and labor processes that lead to increasedextraction of relative and absolute surplus value and that consequently lead to a drop in the wagelevels of a large part of the working classes, increasing the informality and precariousness in theirmaterial conditions of life. We are able to observe that the exhaustion of patterns of capitalaccumulation during the transition from the 1960s to the 1970s has promoted profound changes inthe way the system functions, leading to more indirect forms of exploitation and to more sophisticatedand efficient forms of cultural and ideological control.

KEYWORDS: labor mobility; social control; capitalism; modernity; forms of exploitation.

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