a identidade histórica do espaço urbano

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS Que futuro nestas ruas cheias de memórias? A identidade histórica do espaço urbano no crescimento europeu 2020 O caso de estudo da vila de Sesimbra Luís Filipe Pinhal Ferreira Orientador: Prof. Doutora Maria João Baptista Neto Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor no ramo de História, na especialidade de Arte, Património e Restauro 2015

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    Que futuro nestas ruas cheias de memrias?

    A identidade histrica do espao urbano no crescimento europeu 2020

    O caso de estudo da vila de Sesimbra

    Lus Filipe Pinhal Ferreira

    Orientador: Prof. Doutora Maria Joo Baptista Neto

    Tese especialmente elaborada para obteno do grau de Doutor no ramo de Histria, na

    especialidade de Arte, Patrimnio e Restauro

    2015

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    Que futuro nestas ruas cheias de memrias?

    A identidade histrica do espao urbano no crescimento europeu 2020

    O caso de estudo da vila de Sesimbra

    Lus Filipe Pinhal Ferreira

    Orientador: Prof. Doutora Maria Joo Baptista Neto

    Tese especialmente elaborada para obteno do grau de Doutor no ramo de Histria, na

    especialidade de Arte, Patrimnio e Restauro

    Jri:

    - Presidente: Doutor Antnio Adriano de Asceno Pires Ventura, Professor Catedrtico e

    Diretor da rea de Histria da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

    Vogais:

    - Doutor Virgolino Ferreira Jorge, Professor Associado com Agregao Aposentado da

    Escola de Artes da Universidade de vora;

    - Doutora Margarida Helena de La Fria Valla, Professora Associada da Escola de

    Comunicao, Arquitetura, Artes e Tecnologias de Informao da Universidade

    Lusfona de Humanidades e Tecnologias;

    - Doutor Vtor Manuel Guimares Verssimo Serro, Professor Catedrtico da

    Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

    - Doutora Maria Joo Lopes Baptista Neto, Professora Associada com Agregao da

    Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, orientadora;

    - Doutora Clara Maria Martins de Moura Soares, Professora Auxiliar da Faculdade de

    Letras da Universidade de Lisboa.

    2015

  • i

    Resumo

    Se um homem no sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe ser favorvel.

    Enunciada por Sneca no sculo I, esta reflexo mantm na atualidade toda a sua

    profundidade na assuno do cidado a domnios fundamentais e a qualidades

    singulares, do saber pensar ao saber fazer, tomar decises e lidar com a mudana,

    possuir aptido de trabalho, ser autodidata e criativo, mas tambm, ser crtico.

    Esta diegese fundamental na leitura que se compe quanto relao das cidades

    contemporneas com o seu legado patrimonial, perpetua dialtica do passado com o

    futuro mediada entre a existncia cultural e o programa construdo, num mesmo

    momento em que delineado, na estratgia poltica da Europa Comunitria, o futuro das

    cidades europeias, centros de crescimento inteligente, sustentvel e inclusivo, onde a

    cultura e o patrimnio so aspetos dessa audaciosa viso cosmopolita.

    O presente estudo pretende contribuir para este momento, patenteado na dialtica da

    cividade enquanto gnese histrica da vindoura Europa 2020, atravs da abordagem a

    um caso de estudo de pequena escala, uma urbe, de entre tantas que pontuam o territrio

    europeu, a vila de Sesimbra, exemplo da identidade que o patrimnio urbano carreia,

    seja na tipologia de edifcios seja de atores participantes nas dinmicas quotidianas.

    Tradicional pvoa de feio atlntica, em Sesimbra, a vivncia da comunidade tem

    ditado a evoluo urbana ao longo dos sculos, pautada nas ltimas dcadas por um

    maior reconhecimento quanto ao seu patrimnio, embora confrontado com a dificuldade

    em assegurar a preservao dessa originalidade perante o crescendo turstico, lato

    desprendimento em assimilar o que se assume novo e proveitoso. A relao pende entre

    o espao urbano e a comunidade, entre a misso e a utilizao urbana, permanente dos

    residentes e ocasional dos visitantes, notas que se dedilham nas pautas do futuro.

    Esta dinmica agora revista luz dos novos paradigmas de valorizao do legado

    cultural, validados na clareza da interpretao do ncleo histrico urbano e do

    entendimento quanto sua gesto. Aspira-se a um carater mais humanizado, centrado na

    identidade local e na propagao dos seus valores materiais e ativos imateriais, bases de

    proporcional benefcio de capacitao como de contributos justificados para a

    sustentabilidade da ambincia histrica urbana.

    Palavras-chave para leitura: cidades contemporneas, patrimnio urbano,

    crescendo turstico, Europa 2020, vila de Sesimbra.

  • ii

    Abstract

    If a man does not know to which port heads, no wind is favorable to him.

    Enunciated by Seneca in the first century, this reflection keeps today all its depth in

    the assumption of the citizen to fundamental domains and unique qualities, from the

    awareness how to learn up to how to think, take decisions and cope with the change,

    own ability to work, be self-taught and be creative, but also known to be critical.

    This portrayal is essential regarding the lecture fond in the relationship of

    contemporary cities with their heritage legacy, perpetual dialectic of the past with the

    future mediated between cultural existence and the edification program, at the same

    time when are outlined, in the policy strategy of the European Community, the future of

    European cities, centers for smart, sustainable and inclusive growth, in which the

    Culture and the Heritage are aspects of this audacious cosmopolitan vision.

    The present study aims to contribute to this to this moment, patented in the dialectic

    of the city as a historical genesis of what will be Europe 2020, through the approach to a

    case study of small scale, a city from so many that constitute the European territory, the

    Sesimbra village, example of the identity that urban heritage carries, either estates types

    or relevant stakeholders involved in their daily dynamics.

    Traditional coastal city of Atlantic feature, in Sesimbra, the community experience

    has dictated its evolution over the centuries, marked in recent decades for the major

    recognition about their heritage, though, faced with the difficulty of ensuring the

    preservation of this originality over the growing tourism and the broad release in

    assimilating what is new and useful. The relationship hangs between urban space and

    the community or between urban mission and its using, permanent from the residents

    and occasional by the visitors, marks the guidelines to the Future.

    This dynamic is now reviewed in the light of the new cultural traditions valuation

    paradigms, validated in the clarity on the interpretation of the historic urban core and

    understanding about its management. Aims thus a more humanized character, centered

    on local identity and in the spread of its tangible and intangible assets, bases for

    proportional benefit for capacitating as justified contributions to the sustainability of

    urban historical ambience.

    Keywords for reading: contemporary cities, urban heritage, growing tourism,

    Europe 2020, Sesimbra village.

  • iii

    Agradecimentos

    Cinco anos, foi o tempo que levou a questionar, refletir e escrever todas as palavras

    e todas as ideias que constituem esta preleo, a qual reflexo de simetria do que nos

    ltimos anos tem sido a minha experincia profissional, a que se soma um envolto

    espirito de vocao de arqueolgo que, de formao acadmica, porm gnese mais

    antiga, continuidade do legado cultural da minha comunidade nativa sesimbrense. Pese

    embora este seja um trabalho pessoal, nele esto presentes concees que vivenciei

    neste tempo com vrias pessoas, para as quais, vai o meu sincero reconhecimento.

    Na instituio onde trabalho, a Cmara Municipal de Sesimbra, um primeiro

    agradecimento ao seu presidente, Augusto Plvora, com quem tenho o prazer de

    trabalhar no universo da programao comunitria, como tambm na fruio da coeva

    urbe de Sesimbra. Reconhecimento tambm para todos os meus colegas que

    acompanharam esta jornada, particularmente a Joo Aldeia, a Andr Garrau e, a Anabela

    Gonalves, com o discreto condo de contriburem pelo exemplo do seu labor.

    Particular referncia a um outro grupo de pessoas, igualmente discreto, mas que

    com o seu pessoal empenho tiveram participao importante no resultado final, um

    agradecimento a Susana Sousa, a Paulo Silva e a Joo Ferreira, pelo tempo e dedicada

    ateno na reviso de textos e nas suas sinceras opinies.

    No Instituto de Histria de Arte da FLUL, renovado reconhecimento ao corpo de

    docentes liderado pelo Prof. Dr. Vtor Serro, que em acordo com os docentes externos

    que lecionaram no doutoramento, instruram o necessrio suporte que aliviou o carrego

    ao plano de estudos, e aos nossos colegas de curso, que conferiram animo. Igual

    meno, e muito particular, para a Prof. Dr. Maria Joo Neto, que desde o dia em que

    aceitou ser a orientadora desta investigao, esteve sempre presente e indiscutivelmente

    assertiva em benefcio do programa de investigao, e da minha prpria motivao.

    Como pargrafo conclusivo, um agradecimento para a minha famlia que

    continuadamente acompanhou todos os percursos desta longa jornada, quer da parte de

    meus pais e irm como de meus sogros e cunhados. Por fim, o ltimo, e mais emotivo

    agradecimento, Snia e Catarina, uma vez que a segunda tese que acompanham, e

    ao novato Rodrigo, que sem a compreenso desta trs pessoas muito prximas, a tarefa

    teria sido bem mais difcil.

    Em jeito final de dedicatria, uma pessoal lembrana a meu pai, que no pde

    conhecer este trabalho final, mas que para o mesmo muito contribuiu.

  • iv

    ndice Geral

    Chave das principais siglas .............................................................................................. vi

    Introduo .......................................................................................................................... 1

    1. O tema em estudo ..................................................................................................... 1

    2. O projeto de investigao ......................................................................................... 4

    3. A pertinncia atual e vindoura .................................................................................. 8

    4. A estrutura da dissertao ....................................................................................... 10

    Parte I. Sesimbra, a mnemnica da identidade urbana .................................................... 13

    Captulo 1. Um territrio de endemismos naturais ......................................................... 15

    1.1. A geomorfologia e as ambincias ........................................................................ 15

    1.2. Terras de biodiversidade ...................................................................................... 19

    1.3. O Atlntico e seus ecossistemas .......................................................................... 23

    1.4. O vale e a baa de Sesimbra ................................................................................. 25

    Captulo 2. A evoluo histrica ..................................................................................... 37

    2.1. A ancestralidade e a pvoa medieva.................................................................... 37

    2.2. O burgo piscoso e o emprio porturio ............................................................... 53

    2.3. A poca mercantilista e a era da industrializao ................................................ 68

    2.4. A contemporaneidade e a urbanidade .................................................................. 83

    Captulo 3. O contexto humanizado .............................................................................. 143

    3.1. A envolvncia social .......................................................................................... 143

    3.2. A vertente econmica ........................................................................................ 158

    3.3. A vivacidade cultural ......................................................................................... 172

    3.4. A orientao de governana .............................................................................. 187

    Captulo 4. O recinto urbano ......................................................................................... 229

    4.1. Uma histria de evoluo .................................................................................. 229

    4.2. A atualidade materializada ................................................................................ 246

    4.3. Testemunhos do registo histrico ...................................................................... 262

    4.4. A relao funcional e as vivncias .................................................................... 279

    Parte II. Sesimbra, um olhar luz da Estratgia 2020 .................................................. 329

    Captulo 5. Paradigmas de abordagem .......................................................................... 331

    5.1. A eleio do patrimnio urbano na cidade europeia ......................................... 331

    5.2. A regenerao urbana integrada ........................................................................ 345

    5.3. Os fenmenos de identidade local ..................................................................... 359

  • v

    5.4. Os recintos, os equipamentos e os usos ............................................................ 370

    Captulo 6. Planeamento e gesto no espao histrico urbano ..................................... 409

    6.1. O aperfeioamento integrado ............................................................................ 409

    6.2. O plano integrado de gesto .............................................................................. 423

    6.3. As aes e a programao de eventos ............................................................... 439

    6.4. Do acompanhamento monitorizao e avaliao ........................................ 450

    Captulo 7. Propostas de interveno de base patrimonial ........................................... 489

    7.1. Os espaos e a relao com os recursos ............................................................ 489

    7.2. As dialticas de usufruto e o evento turstico.................................................... 500

    7.3. As relaes de convivncia local ...................................................................... 513

    7.4. Comunicar a imagem do espao urbano ........................................................... 523

    Captulo 8. Condies e condicionalismos locais ......................................................... 565

    8.1. A concretizao da urbe histrica ..................................................................... 565

    8.2. A reorganizao do espao e das existncias .................................................... 578

    8.3. A cultura no crescimento integrado .................................................................. 590

    8.4. A premncia de uma nova misso urbana ......................................................... 603

    Concluso ...................................................................................................................... 643

    1. Sntese do projeto de investigao ....................................................................... 643

    2. Orientaes sobre o caso de estudo ...................................................................... 646

    3. O legado cultural nas cidades inteligentes ........................................................... 650

    4. O ensaio da contnua renovao ........................................................................... 652

    Fontes documentais ....................................................................................................... 655

    Fundos de documentao escrita .............................................................................. 655

    Fundos cartogrficos e ilustrados ............................................................................. 656

    Fundos fotogrficos e flmicos ................................................................................. 658

    Repositrio de fontes diversas ................................................................................. 662

    Referncias bibliogrficas ............................................................................................. 664

    Documentao de leitura formal .............................................................................. 664

    A ambincia da cividade .......................................................................................... 669

    Estudos sobre espaos histricos urbanos ................................................................ 672

    Monografias para o caso de estudo .......................................................................... 673

    ndice de imagens ......................................................................................................... 679

  • vi

    Chave das principais siglas

    ADREPES Associao para o Desenvolvimento Regional da Pennsula de Setbal

    AIDT Abordagens Integradas de Desenvolvimento Territorial

    AIDUS Aes Integradas de Desenvolvimento Urbano Sustentvel

    AML rea Metropolitana de Lisboa

    AMRS Associao de Municpios da Regio de Setbal

    ARU rea de Reabilitao Urbana

    CCDRLVT Comisso de Coordenao e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale

    do Tejo

    CE Comisso Europeia

    CEE Comunidade Econmica Europeia

    CnE Conselho da Europa

    CMS Cmara Municipal de Sesimbra

    CTE Cooperao Territorial Europeia

    DLBC Desenvolvimento Local de Base Comunitria

    EIDT Estratgia Integrada de Desenvolvimento Territorial

    EI Lisboa Especializao Inteligente da Regio de Lisboa

    ENM Estratgia Nacional para o Mar

    EP Eixo Prioritrio

    EPIEI

    Estratgia de Pesquisa e Inovao para a Especializao Inteligente

    ERTRL Entidade Regional de Turismo da Regio de Lisboa

    EU European Union | Unio Europeia

    FdC Fundo de Coeso

    FEADER Fundo Europeu Agrcola de Desenvolvimento Rural

    FEAMP Fundo Europeu dos Assuntos Martimos e das Pescas

    FEDER Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional

    FEEI Fundos Europeus Estruturais e de Investimento

    FSE Fundo Social Europeu

    GEPAC Gabinete de Estratgia, Planeamento e Avaliao Culturais

    GPEARI Gabinete de Planeamento, Estratgia, Avaliao e Relaes Internacionais

    ICC Industrias Culturais e Criativas

    ICOMOS International Council on Monuments and Sites | Conselho Internacional de

    Monumentos e Stios

  • vii

    IEJ Iniciativa Emprego Jovem

    ITI Investimentos Territoriais Integrados

    ORU Operao de Reabilitao Urbana

    OT Objetivos Temticos

    OWHC Organization of World Heritage Cities | Organizao das Cidades Patrimnio

    Mundial

    PAR Lisboa Plano de Ao Regional de Lisboa

    PDCT Pacto para o Desenvolvimento e Coeso Territorial

    PDM Plano Diretor Municipal

    PEC Pacto de Estabilidade e Crescimento

    PEDU Plano Estratgico de Desenvolvimento Urbano

    PETS Plano Estratgico de Turismo do Concelho de Sesimbra

    PI Prioridade de Investimento

    PIB Produto Interno Bruto

    PME Pequenas e Mdias Empresas

    PNR Plano Nacional de Reformas

    PORL Programa Operacional Regional de Lisboa

    PROMAR Programa Operacional Pesca

    PROT Plano Regional de Ordenamento do Territrio

    PTI Programa Territorial Integrado

    QCA Quadro Comunitrio de Apoio

    QEC Quadro Estratgico Comum

    QREN Quadro de Referncia Estratgico Nacional

    RIS3 Research and Inovation Strategies for Smart Specialisations | Estratgia de

    Pesquisa e Inovao para a Especializao Inteligente

    SIG Sistema de Informao Geogrfica

    SWOT Strengths, Weaknesses, Opportunities, Threats | Foras, Fraquezas,

    Oportunidades, Ameaas

    U.E Unio Europeia

    UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization |

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura

    URBACT Programa em Rede de Desenvolvimento Urbano

    URBCOM Programa de Incentivos a Projetos de Urbanismo Comercial

    VAB Valor Acrescentado Bruto

  • viii

  • 1

    Introduo

    1. O tema em estudo

    Num porvir em que se prefigura a elevada atratividade urbana, realidade que em

    Portugal avoca mais de sete milhes de habitantes a residir nas cidades, enquanto os

    restantes trs milhes, continuam campesinos, e num momento em que se cumprem as

    primeiras medidas nacionais do novo Quadro Estratgico Comum 2014-2020, apostado

    nas cidades, h que voltar a refletir sobre o espao urbano. Foi sob este panorama que,

    ao percorrer as ruas enegrecidas mais recnditas da vila de Sesimbra, se insinuou a

    questo: Que futuro nestas ruas cheias de memrias?

    Mais que uma pergunta, esta interpelao aborda um estado de questo quanto

    cividade na sua evoluo econmica, relaes sociais, capacidade de governana e

    lucidez ambiental, onde a gnesis patrimonial, surge como anel de compromisso. Ser

    este o nosso objeto de estudo, o qual pretende em Sesimbra, atravs da sua identidade

    histrica e do seu legado societrio, associar as metas programticas Comunitrias da

    nova viso Europa 2020, para um crescimento inteligente, sustentvel e inclusivo, com o

    objetivo de propor um roteiro para um programa de gesto do patrimnio urbano, linha

    de reflexo para o crescimento integrado e, para o prprio futuro de Sesimbra.

    O recinto urbano aqui abordado nos seus usos quotidianos, perante a propenso da

    musealizao ou face s potencialidades de fruio, limites na definio do centro

    histrico e na conscincia da cidade histrica. Considerar Sesimbra, sobrevm de

    afinidade pessoal de nascimento e da proficincia profissional no municpio, no qual ao

    longo dos ltimos anos assisti a pontos de encontro e de clivagem entre a salvaguarda

    do patrimnio e o progresso sustido na reabilitao urbana. Esta experincia j havia

    suscitado anterior ligao acadmica, quanto valorizao do patrimnio, tema

    abordado na dissertao de mestrado apresentada Faculdade de Letras da

    Universidade de Lisboa em 2007, ento, sobre o Castelo de Sesimbra, o genoma da

    atual urbe, e que serviu de epgrafe de partida para a presente preleo.

    A pvoa de Sesimbra emerge num enquadramento ambiental nico pela singular

    relao de afirmao atlntica. Detentora de relevante legado histrico, encontra-se

    valorizada pelas recentes intervenes urbanas e por um universo de tradies ainda

    perdurantes na estrutura social. Porm, na atualidade, igualmente confina fenmenos de

    despovoamento coligados ao declnio de arqutipos econmicos como a pesca e o

  • 2

    pequeno comrcio, que segam a empregabilidade e contribuem para deslocar o recinto

    habitacional, no qual, prolifera um parque residencial de segunda habitao que faz

    decair a vivncia da rua e impem a moradia como rea de socializao.

    A bibliografia consultada ante o caso de estudo suscitou leituras compartilhadas,

    pois se ricas em dados histricos, so enfadas na aceo urbe. Destaque para o

    relatrio elaborado por Antnio da Silva em 18971 e para a obra Os Pescadores de

    Raul Brando, primevas prelees do quotidiano das gentes e da faina na pvoa,

    secundados pelos estudos histricos de Joaquim Guerra, que divisaram a afirmao da

    nacionalidade nos anos de 1930 e 1940. Coevo, o estudo monogrfico geoeconmico

    de Hernni Bernardo, a primeira abordagem integrada do territrio concelhio onde a

    vila primava, a que se sucedem os estudos histricos produzidos por Rafael Monteiro, e

    em 1966, o emblemtico Pesca e Pescadores em Sesimbra de Maria Cruz, onde se

    explora a relao da comunidade piscatria com o espao urbano.

    Duas dcadas aps publica-se Sesimbra Monumental e Artstica, de Eduardo

    Serro e Vtor Serro, reportrio do patrimnio arquitetnico e artstico do concelho, em

    que se dedica um captulo vila e onde, em apndice, Rafael Moreira ensaia a gnese

    urbana quinhentista. Desde ento advieram novas leituras, embora eminentemente

    histricas, seja com Antnio Marques em torno de quotidianos passados, de Joo Aldeia

    com abordagens socioeconmicas, ou do prprio autor na evidncia arqueolgica da

    povoao, at que num recente estudo sobre a comunidade martima, Joana Freitas

    aduziu nova leitura da evoluo da vila ao longo da ltima centria.

    Com carcter mais institucional, meno aos documentos desenvolvidos pelo

    Municpio que, aps uma leitura complementar, permitiu tecer a abordagem de

    conjunto, do Plano Diretor Municipal de 1991 s propostas para desenvolvimento do

    museu municipal, do mais prximo diagnstico social concelhio at carta educativa e

    ao plano estratgico de turismo, e por fim, bem recente proposta de definio da rea

    de reabilitao urbana no ncleo antigo da vila de Sesimbra, de 2014.

    Na atual conjuno europeia, as cidades, constituem um patrimnio singular que se

    consolida na conscincia da sua prpria valorizao, maturao de prosperidade

    econmica e de incluso social num ambiente saudvel. Este entendimento tem

    implcitas questes tericas e perspetivas comparativas que se aperfeioam no presente

    ensaio, consumao que o tempo no logrou apagar, do restauro do patrimnio urbano

    1 Publicado in Martins (org.), 2013.

  • 3

    na carta de Veneza de 1964 abordagem pitoresca da urbe contempornea como

    proposto por Gordon Cullen em 1971, at ao mago da prpria leitura, que incidiu em

    propostas mais recentes, para uma conspeo coetnea quanto ao entendimento da

    conexo de Sesimbra face s bases da Estratgia Europa 2020.

    Foram tambm coligidos temas reportados ao municipal, no cariz arquitetural

    do espao pblico como proposto por Bruno Coussy, Sylvane Martin-Laval, Thierry

    Roze e Benot Carri, ou na intermediao das polticas culturais como tratado por Iaki

    Aguileta, a que acresceu a abordagem de fatores como o progresso, revisto por Eduardo

    Rojas, o desenvolvimento sustentvel, revisitado por Mona Serageldin ou por Donovan

    Rypkema e Caroline Cheong, e a identidade urbana, abordada por Francesco Siravo.

    Meno ainda relao do patrimnio com a economia, como explorado por Marc

    Guillaume ou por David Throsby, promoo do seu potencial, revisto por Jean-Louis

    Luxen ou por Jrg Haspel, e dos seus contributos por Guido Licciardi ou por Nili

    Shchory e Leah Shamir-Shinan, a que se aduziu o envolvimento do setor pblico,

    privado e do associativismo social, revistos por Ron Oers ou por Susan MacDonald.

    A perceo da ambincia patrimonial no espao urbano suscitou igualmente, a

    anotao de abordagens nacionais com paridade temtica a Sesimbra, onde foram

    revistos temas como a identidade na fruio cultural, como formulado por Clara Soares

    e Maria Neto, s relaes da comunidade com a memria coletiva do territrio, das

    tradies culturais vivenciadas na atualidade com Paula Pacheco e Paula Teixeira

    memorao laboral na feio urbana com Artur Martins e Helena Alves. Esta leitura

    procurou tambm o recinto patrimonial, do centro histrico na viso de Paulo Peixoto

    ou de Paula Santos, ao processo arquitetnico de recuperao por Jos Lamas ou

    reabilitao estrutural dos edifcios por Vtor Cias, at identidade transposta por

    Virgolino Jorge, associao ao monumento revista por Pedro Abreu, e aos desafios da

    arte pblica formulados por Jos Regato, a que acresce uma abordagem mais

    cosmopolita quanto misso da cidade, revisitada por Ernni Lopes.

    A problematizao em questo suscitou todas estas perspetivas de olhar o

    patrimnio histrico da cidade contempornea, pois a conservao do crculo urbano,

    assenta numa teia contextual que evolui dos edifcios e recintos s funcionalidades e aos

    costumes. Neste trabalho, procurou-se ir um pouco mais alm, ancorar a interpretao

    sob o olhar dos programas polticos Comunitrias para o horizonte 2020, o que suscitou

    anloga interpelao quanto documentao mais institucional.

  • 4

    Recuou-se um pouco para entender a civitte histrica, da declarao da UNESCO

    de 1982 quanto s polticas culturais, s abordagens do ICOMOS quanto conservao

    das cidades histricas, visitao dos stios patrimoniais e salvaguarda das reas

    urbanas histricas, bem como s orientaes da OWHC quanto relao do turismo

    com a vitalidade das cidades histricas e a cooperao para a sua gesto sustentvel.

    Com o novo milnio, a leitura terica acentua o valor do patrimnio no entendimento da

    sua diversidade cultural e na relao da arquitetura contempornea na misso atual da

    cidade, focada na conservao da paisagem histrica urbana, como proposto pela

    UNESCO, s abordagens do ICOMOS quanto preservao do esprito do lugar.

    Tambm no contexto da Europa Comunitria, esta temtica foi revisitada nas bases

    propostas pela conveno da paisagem europeia do Conselho da Europa de 2000, s

    definies de cidades sustentveis ou regenerao urbana integrada, da agenda

    territorial europeia e seus desafios para as regies e cidades, pela Unio Europeia, a que

    se associaram as perspetivas da Comisso Europeia no desenvolvimento urbano

    sustentvel ou nas estratgias de pesquisa e inovao. Estas orientaes foram vertidas

    em Portugal na programao publicada por instituies estatais, como a CCDRLVT no

    plano regional de ordenamento territorial ou na viso para a regio Lisboa 2020, seus

    modelos de especializao inteligente e respetivo plano de ao regional, como tambm,

    assumidas pela comunidade intermunicipal da AML, com o seu programa territorial e a

    estratgia integrada de desenvolvimento. Na rea da cultura, foram versadas as

    propostas de entidades como o GPEARI ou o GEPAC para a cultura e a criatividade,

    definio da estratgica turstica para a regio como proposta pela ERTRL.

    Partir destas leituras para definir o ngulo com que abordar a questo de partida e

    dirimir o quadro de estudo, influiu num encadeamento de raciocnio por onde

    sobressaem distintos nveis transpostos na anlise ao espao urbano, atravs da gerao

    histrica e da inseparvel dialtica patrimonial. A conservao do patrimnio urbano

    relevante enquanto fator de organizao da comunidade e de planificao do territrio,

    elevao de um trajeto de valores participados, desde logo, no estabelecimento de

    decises ou no planeamento de intervenes, sinnimo de cidadania coletiva.

    2. O projeto de investigao

    Na conceo antropolgica do territrio, desde os mais recuados perodos da

    Histria que se consagrou a manifestao da criao humana no meio natural atravs da

  • 5

    adaptao a situaes e da produo de solues, onde o espao urbano a forma

    experimental mais completa desta conscincia, no s pela dimenso aristotlica do

    lugar, mas pela criao de dinmicas que o tornam multidimensional. O recinto

    histrico urbano foi entendido neste projeto de investigao sob diferentes epstolas,

    embora por vezes de semntica comungada algo dbia, tal como testemunhado no

    romanesco centro histrico, enquanto materializao do sentimento de efemeridade da

    construo humana, ou como alicerado na icstica cidade histrica, consecuo da

    existncia comunitria perseverada no quotidiano coetneo. Ser este espao comum,

    qualificado e construdo escala humana, que se consubstancia a conceo pessoal

    quanto abordagem do caso de estudo, o qual e antes de mais, importa compreender.

    A vila de Sesimbra, sede epnima do municpio e do concelho, integra-se no

    Distrito de Setbal e na rea Metropolitana de Lisboa, distante desses dois centros

    urbanos em cerca de 30 km. O municpio tem associada uma rea territorial com 195

    km2 de extenso, onde residem 49.500 habitantes, em que os limites de vila confinam

    com os limites da freguesia de Santiago, a segunda freguesia mais antiga do concelho2,

    que conta no seu permetro administrativo com uma populao de 4841 habitantes para

    uma rea de aproximadamente 2 km2, o que corresponde a menos de 10% da populao

    e a pouco mais de 1% da rea geogrfica do territrio municipal.

    Desponta neste agregado profcua quadrangulao piramidal entre o Econmico, no

    contexto de atividades permanentes como o comrcio versus as temporrias como o

    turismo quanto a uma economia de partilha, o Social, na coeso da comunidade local e

    na incorporao assertiva de utilizadores e visitantes, o Ambiental, pela eficincia de

    usos e pela envolvncia geogrfica, a Governana, pela incluso dos atores locais e por

    medidas de governao participada, todas, encimadas pelo Cultural, manifesto na

    identidade urbana e na conservao patrimonial.

    Por esta teia se vislumbra o estreito fio de Ariadne quanto ao percurso de futuro

    nessas ruas cheias de memrias, em que traar o esquisso do que a vila de Sesimbra,

    requer dois distintos planos de leitura, o primeiro desponta da noo de histrico,

    aplicado ao espao urbano, dialtica da cidade histrica, do ncleo histrico e do centro

    histrico, o segundo, enleia a urbe na epstola das polticas de desenvolvimento urbano,

    sob a perspetiva do crescimento associado poltica de coeso 2020, proposta pelo

    colegial da Unio Europeia.

    2 O concelho acolhe as freguesias de Castelo (1201), Santiago (1536) e de Quinta do Conde (1985).

  • 6

    A limitao da sua patine de antiguidade no facilita o redimensionamento

    estrutural da urbe histrica, nem favorece pretenses de concorrncia face a

    aglomerados mais recentes. No obstante, a conscincia de que o ncleo ascende alm

    dos limites fsicos da sua ancestralidade, reflete uma apelativa aptido de encontro de

    lugares, pois o costumado centro histrico pode no ser coincidente com o centro

    industrial ou com o renovado centro habitacional, o que tem reflexos quanto ao

    entendimento do que a cidade, pelo que urge clarificar a noo de cidade adotada

    neste estudo, a qual mediada entre cidade enquanto metrpole e cidade enquanto a

    cidade menor ou vila. Propem-se que o termo consultado como citie ou cidade

    metropolitana seja acertado para metrpole, definio de urbes superiores como Madrid

    ou Lisboa, enquanto o termo town, cidade ou vila, seja entendido como cidade,

    definio de urbes inferiores como Cracvia, Toledo ou Beja, e Sesimbra3.

    No cerne da abordagem problemtica em estudo, preconiza-se que a questo de

    base almeje superar as costumadas limitaes quanto ao entendimento do ncleo

    histrico, apenso conceo do centro histrico das atuais metrpoles e cidades, ao

    extravasar a apreenso patrimonial com questes econmicas estimuladas pelo turismo,

    urbansticas pela valorizao imobiliria ou ideolgica atravs das polticas

    socioculturais. Como produto cultural contemporneo, o histrico espao urbano

    permanece como o lugar de nascimento para a comunidade local, o seu mago

    emocional de crescimento e conscincia coletiva face cividade, no sua vivncia mas

    ao seu progresso, assento do melhor que esta tem, a sua identidade.

    A abordagem proposta para o caso de estudo procura, mais que se consubstanciar

    como consequncia de uma aprofunda pesquisa, convergir reflexes tericas em

    propostas metodolgicas, face pertinncia da obteno de resultados na especificidade

    de Sesimbra, repositrio de riqueza e de variedade societria, na qual, a pertinncia da

    preservao do legado patrimonial reside na primognita expresso da cultura

    arquitetural, soma de todos os aspetos culturais, econmicos, tecnolgicos, sociais e

    ecolgicos que influenciam a construo urbana. Esta orientao evita generalizaes

    conducentes a abordagens superficiais ao focar a sintaxe nos mecanismos tendentes a

    reduzir a excluso social e os efeitos da sua estratificao socioeconmica, freio

    deslocao de atores e de funes vitais no equilbrio urbano, pela qual, se orienta o

    compromisso quanto promoo de um crescimento urbano integrado.

    3 As metrpoles e cidades referidas decorrem de locais visitados no mbito do projeto de investigao.

  • 7

    Por replicao de observao de esmero intelectual, uma construo isolada suscita

    a sua leitura como obra de arquitetura no espao antes vazio, porm, quando se

    presencia um aglomerado de construes, est-se perante um gnio gregrio de

    conscincia humana, complexo de elementos com uma ambincia prpria e utilidade

    civilizada, onde a salvaguarda do espirito do lugar crucial. A renovao de funes

    com atributo genesaco, deve ser compatvel com a identidade local ao concretizar a

    melhoria dos equipamentos e servios pblicos, beneficiar a habitao e adotar a

    fachada comercial em harmonia com a rua, medidas que evitam paisagens artificiais e

    asseguram atratividade pois, como fase histrica, a introduo de elementos

    contemporneos enriquece o percurso memorial da cidade.

    Pretende-se conferir nova apropriao ao recinto urbano com base no caso de

    estudo abordado, trajetria assente na relao do preexistente trao histrico com a

    regenerao urbana, conjugao que supera o comum sentido uniformizado do centro

    histrico, amplamente propagado e onde se conjugam anlogos equipamentos e funes

    que porm secundam a singularidade da cidade, fenmeno evidente no definhar

    demogrfico ou na declinao comercial, tudo fundido num espao que embora original

    de identidade, acabou por no seu genoma ser manipulado pela urbanidade.

    Para uma cidade como Sesimbra, propem-se ver este estudo como um roteiro,

    pretexto para um programa de regenerao urbana integrada, onde o valor cultural e a

    tradio de convivncia, refletem recursos capitais para a reciprocidade entre a urbe e os

    seus usurios. evidente que o estado de maturidade das polticas locais deve ser

    animado por um grau de inovao, como de capacitao, face aos objetivos propostos

    ou s metas a alcanar, o que aclara a qualidade das propostas de interveno na

    perspetiva da durabilidade dos resultados, pois a vivncia urbana transcorre da

    capacidade dos seus intervenientes em usufrurem dos seus recursos.

    Ser de todo pertinente clarificar as competncias de observao da abordagem

    local, aptas a identificar padres de regulao e fenmenos emergentes que permitam

    registar recursos ou identificar valores, contributos para a assero das propostas

    patrimoniais. Assim e face questo, que futuro nestas ruas cheias de memria?, o

    que motiva ento o presente empenho na demanda de uma resposta?

    Mais que procurar uma soluo milagrosa para velhas dificuldades ou uma rpida

    resoluo para a emergncia de novos problemas, mais que ampliar o campo generalista

    do conhecimento ou de desejar conferir novel preciso emprica a uma abordagem

    acadmica, aspira-se, nesta dissertao, a um sentido de oportunidade. A oportunidade

  • 8

    percetvel no espao urbano, piscoso burgo que mantm uma duradoura relao entre a

    ambincia construda e o meio natural, fenmeno que se vaticina na singularidade que,

    em si, as urbes martimas encerram, limite de fronteira entre o trao do mar e o risco da

    terra, com particularidades resilientes que lhe conferem uma ambincia nica, partilhada

    com fonte autntica de potencial qualitativo. Este fenmeno est bem vincado na pvoa

    martima de Sesimbra, onde a presena do mar se presente em todos os nossos sentidos,

    desde a epiderme fria ao vago olhar no horizonte, sentimentos que se descobrem no

    espao urbano como raridades peculiares.

    A convenincia do quotidiano e o pndulo que gere o metabolismo urbano, suscitam

    a diferenciada ocupao desse espao, individual como abrigo dos elementos ou

    coletivo como utilizao social, uma dinmica de existncias com funo permanente

    que modela a ambincia local, atravs de uma singular apropriao. Pelo movimento do

    quotidiano e pela circunscrio construda, um sentido nico de intimidade e de

    pertena ao lugar, o qual se depreende na implantao das casas e dos arruamentos, ou

    evolui na localizao das atividades e na relao dos usos consoante as necessidades da

    comunidade, em que as restries naturais e a ao humana, moldaram na cividade, um

    crescimento no padronizado mas sequencial, influenciado pelas necessidades do

    quotidiano da comunidade at aos dias de hoje.

    3. A pertinncia atual e vindoura

    Valorizar o patrimnio ao partilh-lo como espao comum, surge pela necessidade

    de clarificar os seus limites como pela legibilidade da sua coerente utilizao, onde a

    integrao da envolvncia arquitetnica, to mais apropriada quanto conciliar regras

    de equidade perante os usos. Aqui vive a cidade histrica, o lugar e a comunidade como

    um todo, onde at os pormenores mais insignificantes so relevantes, pois influenciam

    reas e usos no quotidiano, pelo que se confere ao patrimnio urbano, a incumbncia de

    comunicar a cidade no curso do seu progresso, o qual abrangente nas polticas de

    organizao territorial, tambm como razo histrica, tal como se concretiza no

    horizonte 2020 Comunitrio.

    apresentado um mbil de propostas assentes no respeito pela diversidade urbana e

    pela sua evoluo ancestral patente na identidade europeia, a qual se vislumbra na

    competitividade econmica em bases sustentveis ou nas competncias afetas incluso

    social, nas perspetivas da empregabilidade e no apoio aos mais desfavorecidos. Esto

  • 9

    aqui definidas as metas do primado da coeso multidimensional urbana, onde se

    permitem cruzar necessidades com oportunidades para o patrimnio.

    Concretizar esta estratgia, ser possvel atravs de novas metodologias de

    planeamento ancoradas na participao, onde se privilegia a obteno de resultados em

    bases mensurveis e, onde governao e governana so eixos horizontais cooperao

    interinstitucional e transversais tutela administrativa. Espraia-se o sintomtico

    envolvimento da cultura na poltica como na diversidade de vivncias, concretizao da

    gnese histrica local como momento em que a cidade j no se limita ao seu espao

    administrativo, pois assume-se como complementaridade territorial, sincronismo social

    e econmico, capacitao ambiental e cultural.

    Como sustenta a UE para as cidades do futuro, a viso tende a orientar a

    diversidade das cidades face s metas do crescimento, atravs da instruo dos

    contextos sociais e demogrficas como da validao dos recursos econmicos e

    culturais, o que se comprova na smart specialisation da cidade, resposta inteligente s

    dificuldades que enfrenta e que requerem solues especficas. Neste desgnio, torna-se

    possvel delinear um novel rumo na abordagem gnese histrica do espao urbano,

    agora compreendido como potencial de especializao para a resoluo de problemas e

    ativo fundamental de fomento para um crescimento integrado.

    Como objeto do presente estudo, a proposta de interveno no patrimnio histrico

    urbano, luz das orientaes da viso Europa 2020, faz com que o entendimento da

    cidade contempornea discorra da compreenso da sua identidade, o que de direito e de

    facto, conduz a estratgias de gesto e conceo de programas de ao concertados

    para a sua regenerao enquanto realidade dimensvel.

    O recinto urbano de Sesimbra, em si, no se evidencia pela presena de notveis

    edifcios ou de emblemticos espaos pblicos, mas pela unidade da sua edificao

    enquanto ncleo habitado, consolidado ao longo dos tempos e com peculiaridades

    prprias contidas na implantao dos edifcios, nos recintos funcionais ou nas vivncias

    dos seus habitantes. A sua veracidade como cidade histrica sopesa da morfolgica

    urbana com as suas dinmicas comunitrias, pois se os edifcios alumiam valores

    arquitetnicos, a sua exegese estimula uma exuberncia que importa preservar.

    Divisar esta relao requer conhecimento, mas tambm capacidade para uma

    conspeo diferenciadora da ambincia urbana, recinto partilhado por onde flui uma

    dialtica quotidiana em que se ajusta a ascendncia patrimonial na interpretao das

    preexistncias e nos recursos da prpria urbe, contributos para a definio de um

  • 10

    programa de ao rumo ao futuro concebido, com base nas realidades locais, onde a

    identidade cultural surge qual pelourinho no centro do burgo.

    Concetualmente vislumbra-se o futuro na piscosa pvoa pela disposio do seu

    espao urbano, leitura quer da sua gerao histrica quer da sua inseparvel dialtica

    patrimonial, latente na conceo experienciada dos contributos a avocar no projeto de

    investigao, rumo a um porvindoiro programa de interveno integrada. fundamental

    observar o traado urbano, o qual indubitavelmente evidencia a funo primordial da

    cidade, a sua organizao e as suas principais linhas de fora, pois a ausncia desta

    perceo suscita uma urbanidade confusa, desfasada da sua identidade e sem pretenso

    de evoluo, pelo que a interpretao da cidade e a inteligibilidade do seu potencial, tem

    na gnese histrica um fator indispensvel.

    Pela sua aptido endgena em se manter como recinto vivo e vivenciado, apesar de

    em permanente mudana, o espao histrico urbano conjuga diferentes orientaes

    fludas por vrtices de ao que enquadram, de forma sistemtica e ordenada, a

    identidade local, atravs de apetncias sociais, existncias arquitetnicas, dinmicas

    econmicas, vnculos ambientais ou programao cultural.

    4. A estrutura da dissertao

    A explorao do tema em anlise ser aqui entendida na perspetiva dialtica de uma

    obra aberta, conceo que recupera os princpios definidos em 1960 por Umberto Eco,

    a interao entre lgica formal e lgica dialctica e entre metodologias diacrnicas e

    sincrnicas, as quais atuam sobre os paradigmas da investigao. Por esta via permitiu-

    se traar um percurso interpretativo que facilita a compreenso das relaes no espao

    urbano, entre os seus criadores histricos e os seus observadores contemporneos,

    discurso que une o facto evocativo com o momento de formao, base para leituras de

    anlise quanto s faculdades de entendimento para conjugar no espao urbano, a

    reflexo da sua prpria humanizao.

    A estrutura da dissertao est organizada em quatro grandes partes, as quais, alm

    da introduo e da concluso, compem dois importantes corpos temticos, o primeiro a

    incidir na contextualizao de Sesimbra enquanto caso de estudo, e o segundo apenso

    ao entendimento do espao urbano associado interpretao do patrimnio urbano luz

    da viso europeia 2020.

  • 11

    Assim, no captulo preambular, Introduo, como antecomeo, abordado o tema

    de estudo atravs da narrativa do projeto de investigao, seus conceitos metodolgicos

    e perspetivas de abordagem focadas na temtica em estudo, pela qual, se encontra

    delineada a estrutura do trabalho adotada.

    Na primeira parte, Sesimbra, a mnemnica da identidade urbana, so inscritos

    quatro distintos captulos para a contextualizao de Sesimbra. No captulo 1 apresenta-

    se o territrio natural, incluso na cadeia montanhosa da Arrbida e limitado pela faixa

    costeira atlntica, com ecossistemas prprios e de singulares ambincias. No captulo 2

    composta a sintomtica evoluo histrica desde a sua ancestralidade origem da

    pvoa medieval, do burgo piscoso dos Descobrimentos ao emprio porturio de

    setecentos, da vila da poca mercantilista oitocentista ao porto martimo do sculo XIX,

    da renovao de novecentos urbanidade contempornea. No captulo 3 aborda-se o

    contexto humanizado do espao urbano, atravs das dimenses da envolvncia social,

    da vertente econmica, da vivacidade cultural e da orientao de governana. No

    captulo 4 tratado o recinto urbano, resumo medianeiro da sua narrativa de evoluo,

    atualidade materializada e testemunhos do registo histrico, o que permite

    consubstanciar a sua relao funcional e as suas vivncias,

    Na segunda parte, Sesimbra, um olhar luz da Estratgia 2020, definem-se quatro

    captulos consonantes com diferentes patamares de pensar o ncleo urbano. No captulo

    5 abordam-se os paradigmas quanto eleio do patrimonio urbano na cidade europeia,

    a regenerao urbana integrada e os fenmenos de identidade local, os recintos com os

    equipamentos e os usos. No captulo 6 quanto ao planeamento no espao histrico ser

    anotado o seu aperfeioamento integrado, o plano integrado de gesto com as aes e a

    programao de eventos, ao acompanhamento, monitorizao e avaliao. No

    captulo 7 so comentadas as propostas de interveno patrimonial face aos espaos e

    relao com os recursos, as dialticas de usufruto e as relaes de convivncia local, ao

    comunicar a imagem do espao urbano. No captulo 8 revisitam-se as condies e

    condicionalismos locais para a concretizao da urbe histrica, para a reorganizao do

    espao e das existncias, onde se frisa a misso da cultura no crescimento 2020 e a

    premncia de uma nova misso urbana.

    No captulo final, Concluso, enunciada a sntese dos resultados colhidos ao longo

    do ensaio e providas algumas orientaes quanto ao caso de estudo, abordagem ao

    legado cultural nas cidades inteligentes, onde se lana o desafio da contnua renovao

    do espao urbano atravs da sua identidade e da fruio da comunidade.

  • 12

    O presente estudo propiciou a pesquisa de distintas fontes documentais em arquivos

    de vrias instituies, nas quais se identificaram fundos de documentao escrita,

    fundos cartogrficos e ilustrados, fundos fotogrficos e flmicos, e um repositrio de

    fontes diversas. Quanto s referncias bibliogrficas, de modo a conferir coerncia na

    sua leitura face dissertao, estas foram organizadas enquanto documentao de

    leitura formal, registos da ambincia da cividade, estudos sobre espaos histricos

    urbanos, e monografias para o caso de estudo.

    No curso da leitura da dissertao so includos registos grficos, essenciais para

    uma leitura complementar. Das informaes de cariz mais estatstico em tabelas

    numricas, modelos grficos e fluxogramas de organizao metodolgica, de modo a

    coligir dados com particular incidncia para o tema em estudo. Acresce documentao

    mais visual reportada a documentos cartogrficos, mapas e plantas do ncleo urbano de

    Sesimbra, a que se somam ilustraes, debuxos e outras plantas parcelares de alguns

    projetos, complementados com planos cronolgicos de evoluo da urbe, elaborados

    sobre planimtrica trabalhada em ficheiros cartogrficos e ortofotomapas (2007) do

    sistema de informao geogrfica (SIG) municipal.

    Foi tambm constitudo um repositrio fotogrfico que documenta as existncias

    arquitetnicas e os usos ao longo dos tempos em torno do patrimnio cultural urbano da

    piscosa urbe, registado ao longo do sculo XX at atualidade, num quadro imagtico

    de momentos e de realidades do espao urbano na evoluo dos seus quotidianos como

    da sua identidade. Igualmente se associaram similares contextos escala nacional e

    dimenso europeia, os quais visitados em estudo comparativo quanto ao entendimento

    do valor do patrimonial na vivncia e no esprito dos espaos urbanos. Nos casos

    visitados no contexto nacional foram exploradas diferentes territorialidades, da capital

    Lisboa a urbes mais pequenas com registo patrimonial, de Setbal a Palmela, Beja ou

    Ftima, So Miguel e Vila de Porto, a pvoas atlnticas intervencionadas no QREN

    2007-2013, Sines e Peniche, ao simblico ncleo histrico de bidos. No entrecho

    europeu, referncia a metrpoles como Madrid e Bruxelas, Varsvia e La Valeta, bem

    como a cidades de relevncia patrimonial, casos de vila, Segvia e Toledo (Espanha),

    Lausanne e Montreaux (Sua), Bruges (Blgica), Cracvia (Polnia) e Medina (Malta).

  • 13

    Parte I. Sesimbra, a mnemnica da identidade urbana

  • 14

  • 15

    Captulo 1. Um territrio de endemismos naturais

    1.1. A geomorfologia e as ambincias

    A vila de Sesimbra, embraada num profundo vale e numa benfica angra natural

    virada para o Atlntico, pautada pela ambincia natural nica nascida da Serra Me4, a

    serra da Arrbida. Esta cadeia montanhosa composta por uma alcantilada cordilheira a

    sul, fronteira ao oceano, que na sua extenso setentrional se apazigua at encontrar as

    margens do Tejo, configurao que marca a pennsula de Setbal. Na vertente austral

    surge um contnuo de serranias e pontuais vales, com orientao predominante de leste

    para oeste, ao longo de mais de 32 km, desde os limtrofes de Palmela e Setbal at ao

    promontrio do cabo Espichel, o que traduz no territrio uma ampla diversidade de

    fenmenos que testemunham singular narrativa geolgica.

    Na transio dos perodos Prmico para o Trisico, por volta dos 250 milhes de

    anos, ganhava aqui contorno um processo de deposio compsita onde se acolheram

    sucessivas evolues que deram origem ao oceano Atlntico, registo duradouro nas

    arribas fsseis do Espichel, cartela estratigrfica para a datao dos estratos

    sedimentares, resultantes da evoluo dos ambientes e da paleobiologia em contextos de

    mar aberto, pocas lagunares e perodos fluviais5. H 145 milhes de anos atrs,

    Portugal estava mais ao sul, frente ao que hoje o Canad e separado por um diminuto

    mar atlntico que evolui nos seguintes 25 milhes de anos para um plago ocenico,

    medida que a Lusitnia crescia para norte e se afastava do continente a leste, princpio

    de uma bacia sedimentar esporadicamente acometida pelo mar, a bacia Lusitnica.

    A paisagem evolua, de um pntano litoral para um ambiente fluvial e depois mar

    profundo, que ao recuar criou uma zona de recife de corais com um mar interno de

    guas quentes e pouco profundas, a que se sucedeu um ambiente de lagunas salinas com

    subida e regresso do nvel do mar, at criao de uma plancie litoral que invadida

    pelo oceano, acolheu novo ambiente fluvial, no mesmo momento em que o Atlntico se

    estendia para norte, h 110 milhes de anos6. Este processo teve continuidade at fase

    superior do perodo Cretcico, quando se inicia, e que teve a sua expresso derradeira

    no incio do Miocnico, h cerca de 20 milhes de anos com o embate das placas

    4 Ttulo do primeiro livro do poeta Sebastio da Gama publicado em 1945, inspirado na Serra da

    Arrbida. 5 Miguel Ramalho in Sargedas (ed.), 2014: 10, 16.

    6 Jacques Rey in Sargedas (ed.), 2014: 23-30.

  • 16

    tectnicas de frica e da Eursia, o processo continuado que conduziu dissenso da

    Laursia, definio do Atlntico Norte e irradiao do Mediterrneo, num contnuo

    movimento de compresso profunda pelo qual ascende o macio calcrio da Arrbida.

    Esta dinmica de ocorrncias geolgicas percetvel na vertente ocidental da

    pennsula de Setbal, particularmente na faixa costeira do concelho de Sesimbra. Assim

    e no obstante a atrativa envolvncia paisagstica propiciada pela cordilheira da

    Arrbida, afigura-se aqui uma elevada influncia ssmica pela proximidade falha

    geolgica ocenica a sul do cabo Espichel, a qual tem dominante influncia na histria

    da regio, como noticiado nos eventos ssmicos de 1755, de 1858 ou de 19097.

    Regio fronteira ao Atlntico e com dispares tenes altimtricas, na frente rochosa

    meridional localiza-se a mais elevada escarpa litoral calcria da Europa, a serrania do

    Risco, sujeita a distintas formas de eroso pelos agentes associados incessante

    exposio ao martima, talhe elico e eroso pluvial, que conjugadas, moldaram de

    modo indelvel os aglomerados calcrios e as camadas argilosas que constituem a faixa

    austral do territrio, de falsias abruptas e baas escavadas a grutas, lapas e algares,

    resultado de contnuos processos de desgaste natural.

    Apresenta-se assim uma composio singular onde se acoitam vrios testemunhos

    da diacronia geolgica que lhe deu origem, caso dos afloramentos de calcrios

    dolomticos e siliciosos de gnese jurssica predominantemente de elevada densidade e

    de cor branca escurecida. Este valor natural reconhecido, no registo histrico, onde se

    associa Sesimbra a um centro de referncia na produo de pedras molares, tal como

    noticiado por Duarte Leo em 1610 na Descripo do Reino de Portugal, de todas

    sam as melhores, & mais aluas, as de Cezimbra, Aluito, & Condexa junto a Coimbra,

    que fazem as farinhas mais aluas que quantas se sabem em Hespanha8, justeza que

    mais tarde Lus Cardozo, no segundo tomo do Diccionario Geografico, publicado em

    1751, reitera, em humas serras do Termo desta Villa, que fica sobranceiras ao mar,

    produz muita gra, e finissima, e achase nellas pedras molares excellentes, das mais

    brancas, que tem o Reyno9.

    Este filo de calcrios extremamente rijos conduziu fixao de variadas atividades

    extrativas que exploraram a serra, cavas e pedreiras que hoje sobrevm como uma

    cicatriz difcil de apagar mas que, em sculos anteriores, foram a origem para castelos e

    7 Bernardo, 1941: 65-66.

    8 Leo, 1610: 47.

    9 Cardoso, 1751: 618.

  • 17

    capelas, igrejas e fortalezas. Outro exemplo desta riqueza geolgica est presente em

    edifcios construdos por todas as povoaes, tratam-se dos conglomerados de rochas

    ornamentais de onde se destaca, pela exclusividade regional, a brecha da Arrbida,

    conglomerado com caractersticas muito peculiares resultantes da sua origem em fcies

    do Jurssico Superior e com uma matriz esttica nica, complementar ocorrncia de

    espessos argilitos e margas avermelhadas.

    Pela sua exposio ocenica, a regio tem sofrido a sua contnua ao na modelao

    do relevo, de modo muito acentuado na frente a sul, em que as escarpas da serrania,

    abruptamente cortadas em vertical at ao mar, acompanham a incessante constituio de

    fenmenos como rechs e plataformas de antigas praias elevadas do Quaternrio,

    resultado dos momentos de glaciao que se perpetuam na plataforma de abraso

    martima que antecede o cabo Espichel. A ligao dos agentes naturais de eroso, as

    condies climatricas na escala geolgica mais recente e o contexto de rochas

    carbonatadas que constitui a Arrbida, deu origem a uma morfologia crsica muito

    singular e de importncia cientfica, a qual comprovada nos mltiplos testemunhos do

    exocarso, casos das plataformas de lapis existentes na ch dos Navegantes, junto ao

    Espichel, ou no vale fluviocrsico do antigo polje conhecida por Marmitas do Gigante,

    na ribeira das Terras do Risco10

    .

    Tambm o endocarso apresenta fenmenos singulares que merecem referncia no

    contexto natural dos terrenos carbonatados, pois so muitas as ocorrncias em grutas e

    algares, formadas pela ao qumica da chuva e corrosiva do mar, que suscitam

    multiplicidades e particulares de interesse que envolvem ocorrncias minerais de calcite

    a aragonite em distintas formas. Do vale de Sesimbra, em direo a poente, surge a

    gruta do Frade com os seus singulares espeleotemas de profcua diversidade, as grutas

    de galerias freticas fsseis da lapa do Fumo e da gruta do Zambujal11

    , que acolhem

    estruturas litoqumicas variveis, e no esporo do Espichel, as grutas da Grande Falha,

    da Garganta do Cabo e a gruta do Meio, algumas com antigos nveis de praia e outras

    com galerias que ao nvel do mar apresentam retns de gua doce.

    Este enquadramento natural propiciou igualmente testemunhos de valor

    paleontolgico, os quais manifestos na extensa plataforma de abraso, desde o lugar do

    Zambujal at ao cabo Espichel, onde foram descobertos vrios exemplares de fsseis

    10

    Coelho (coord. ed.), 2013: 94, 96. 11

    Classificada como Monumento Natural pelo Decreto-Lei n. 140/79, de 21 de Maio, e posteriormente como Stio Classificado com Interesse Espeleolgico.

  • 18

    em reas de cultivo, como na sua presena nas arribas fsseis, as quais associadas a

    jazidas de icnofsseis com trilhos de pegadas de dinossurios.

    No Jurssico Superior e Cretcico Inferior, apresentavam-se prolongados terraos

    litorais e faixas lagunares onde os dinossurios passaram e que, aps a deposio de

    sedimentos, as camadas superiores comprimiram as inferiores at formarem rochas que

    preservaram esses trilhos. Destas jazidas12

    , so conhecidas no stio de Zambujal o local

    da Pedreira do Avelino, pequena plataforma com vrios trilhos de pegadas de diferentes

    espcies do Jurssico, no cabo Espichel o local da Pedra da Mua, associada lenda de

    Nossa Senhora do Cabo, com a presena na falsia de vrios conjuntos de trilhos de

    saurpodes em pistas paralelas e de terpodes de h 150 milhes de anos, e o local dos

    Lagosteiros, onde foram identificados trilhos associados a um ornitpode e a terpodes

    datveis de h 130 milhes de anos13

    .

    Por fim, outro dos fatores que marcou o territrio da Arrbida at aos dias de hoje

    prende-se com o clima, o qual apresenta particularidades que lhe conferem a conhecida

    feio de caractersticas mediterrnicas, embora, sob influncia do Atlntico. As brisas

    martimas carreadas de sal e de minerais, conjugadas com a proteo do macio

    orogrfico da serra, criam condies propcias atratividade durante todo o ano, tal

    como j certificado pela Seco de Climatologia da Direo-Geral de Sade, que na

    dcada de 1930 considerava esta como um das mais saudveis regies do pas14

    .

    A faixa atlntica nacional apresenta temperaturas agradveis e de baixas amplitudes

    trmicas, embora chuvosa e ventosa, influenciada por uma estao estival mormente

    seca pelos ventos quentes ascendentes do norte de frica, ao passo que a invernia

    influenciada pelos centros de depresso martima, mais amena embora chuvosa, merc

    dos centros de alta presso continentais de temperaturas frias.

    A Arrbida, pela sua cadeia orogrfica a sul e pela exposio abrigada dos alseos

    martimos, apresenta feio aprazvel e clima temperadamente hmido de temprie

    constante, a qual varia nos mximos do inverno, em janeiro entre 8 e 13 C com

    perodos frios e hmidos, e no tempo estival, em agosto entre os 20 a 24 C com ciclos

    quentes e secos, o que garante uma temperatura mdia anual que ronda os 10 e os 20

    C, com uma amplitude trmica reduzida, inferior a 10 C, de hmidas brisas de cariz

    12

    Todas classificadas como Monumentos Naturais, pelo Decreto-Lei n. 20/97, de 7 de Maio. 13

    Vanda Faria dos Santos in Sargedas (ed.), 2014: 52. Na tipologia dos dinossurios, os saurpodes eram quadrpedes herbvoros com longos pescoos e caudas, os terpodes eram bpedes carnvoros e os ornitpodes eram bpedes herbvoros. 14

    Bernardo, 1941: 52.

  • 19

    ocenico que amenizam os restantes perodos anuais. Sucedem-se primaveras chuvosas,

    veres de tempo soalheiro e enxuto, outonos com aguaceiros curtos mas violentos,

    pautados por tempo quente e elevado ndice de humidade, e invernos moderados com

    precipitao atmosfrica baixa, em que a mdia anual ronda os 700-750 mm, o que

    identifica o clima como moderadamente chuvoso, no qual ocorrem, para alm de chuva

    e chuviscos, orvalhos, geadas, granizos, neblinas e nevoeiros.

    A humidade relativa condicionada por estas temperaturas, numa relao inversa,

    que aumenta de agosto para dezembro e que decresce nos meses seguintes, influenciada

    pelos alseos dominantes na faixa costeira, uma realidade patente na baa de Sesimbra,

    com predominantes ventos de sul e de sudeste, com velocidade mxima de 10,5 km/h,

    merc da proteo da serra que atalha os ventos de norte, nordeste e de noroeste. Quanto

    insolao e exposio ao sol, esta atinge o pico mximo nos meses de junho a agosto,

    e diminui acentuadamente entre setembro e janeiro, at nova subida entre fevereiro e

    maro como preldio do crescendo at junho, o que motiva a que os ndices de

    insolao evidenciem a existncia de duas fases anuais de luminosidade, a primeira de

    gnese progressiva de janeiro a agosto, a que se segue a segunda, de decrescente

    sentido, de setembro a dezembro.

    1.2. Terras de biodiversidade

    As conexes climticas desta regio litoral oferecem um conjunto de caractersticas

    muito particulares, pois que mediada entre a regio de Lisboa com o Tejo e as reas

    extensas da costa alentejana, a sua disposio a sul assegura-lhe uma proteo singular

    na costa martima que delineia as especificidades do seu clima, ambincia detentora de

    caractersticas mediterrnicas. A cordilheira da Arrbida assume-se como o principal

    esteio de proteo da regio, limite derradeiro de proteo da plancie que provem desde

    o Tejo para sul, tida como primeiro, e quase intransponvel, muramento de pedra diante

    dos ventos que o Atlntico sopra para norte, encontra-se envolta num microclima

    temperado pese embora uma das suas principais caracterstica seja o elevado grau de

    humidade no ar, compassivo para o equilibro das espcies de flora que caracterizam a

    regio, algumas endmicas de relevante valor mundial.

    O territrio apresenta elevada tmpera natural que acolhe trs distintos

    agrupamentos de flora, o euro-atlntico, de cariz fresco e hmido nas extenses mais

    sombrias a norte, um mediterrnico, quente e seco nas reas mais abertas a sul, outro

  • 20

    macaronsio, de gnese insular na linha de arribas martimas. Aqui se concentra rica

    diversidade de espcies de flora natural, em cerca de 42 tipos e subtipos de habitats, dos

    quais nove so reas prioritrias de conservao e uma tm carter nico, onde j foram

    identificados perto de 1368 txones, repartidos por 111 famlias15

    .

    Nas reas frteis confinantes serra, que se estendem pela pennsula rumo a norte,

    surgem grandes manchas florestais, a tpica floresta mediterrnica de bosques e arbustos

    em que, nas dispersas reas de vale, so bem marcadas manchas florestais mistas com a

    predominncia de espcies autctones. Nos terrenos mais virados para poente, onde

    predominam os terrenos arenosos, e de especial pendente para a faixa costeira, surgem

    formas de flora bem diferenciadas em coberturas arbustivas.

    Das diversas espcies de rvores de porte mais proeminentes, como de porte mais

    reduzido, merecem referncia o Sobreiro e o Carvalho, a Oliveira, a Alfarrobeira, o

    Pinheiro-manso e o Pinheiro-bravo, o Zambujeiro, o Salgueiro-branco e o Salgueiro-

    preto, o Freixo e o Choupo. Em complemento, surgem espcies arbustivas como a

    Durisilvae-laurisilvae e o Carrasco, o Aderno e a Salsaparrilha-bastarda, a que acrescem

    outras de gnese macaronsia como a Withania frutescens, a Lavatera maritima e a

    Fagonia cretica, a par de alguns exemplares de ligao ao sistema calcrio, casos da

    Orobanche rosmarina, da Ulex densus e da Chaenorrhinum serpyllifolium.

    Uma das caractersticas desta flora de gnese mediterrnica prende-se com a sua

    grande diversidade vegetal e riqueza florstica, resultado de uma longa e lenta evoluo,

    desde o momento de consolidao da estrutura calcria da Serra, at superao das

    vrias pocas de glaciao. Esta vegetao, de cariz pereniflia e esclerofila, surge na

    sequncia alongada dos prados martimos, implantada nos limites dos afloramentos

    calcrias e que, face aos agentes naturais de eroso, tende a surgir na forma de plantas

    rasteiras que, cruzadas em ramificaes, formam densas moitas arbustivas.

    No conjunto de diferentes espcies surge a Espanada-dos-montes e o Tojo-gatunho,

    o Alisso, o Tomilho, a Esteva, a Urze-vassoreira e a Murta. Aluso tambm a outras

    espcies que conferem originalidade regio pelo seu endemismo, casos da

    Piptatherum coerulescens e da Catapodium salzmanii, do Narcissus calcicola,

    da Cheilanthes catanensis e do Convolvulus siculus, da Linaria melanantha e

    da Chaenorrhinum origanifolium, a que se associam na vertente floral espcies como a

    Silene longicilia e a Arabis sadina.

    15

    Coelho (coord. ed.), 2013: 32.

    http://www.icnf.pt/portal/naturaclas/rn2000/resource/rn-plan-set/flora/cha-ser-lusithttp://www.icnf.pt/portal/naturaclas/rn2000/resource/rn-plan-set/flora/sil-longhttp://www.icnf.pt/portal/naturaclas/rn2000/resource/rn-plan-set/flora/arab-sadina

  • 21

    Com localizao privilegiada nas arribas fronteiras ao mar, delimitadas entre o cabo

    de Ares a leste da baa de Sesimbra e o cabo Espichel, surgem duas espcies nicas nos

    afloramentos calcrios, a Euphorbia pedroi, com os seus caules desenvolvidos com a

    funo de reservatrio de gua, testemunho de uma primeva flora tropical que sobreveio

    do norte de frica, e a Convolvulus fernandesii, idntico vestgio vivo de uma poca de

    recolonizao do continente por espcies que subsistiram nas ilhas macaronsicas.

    Tambm nos terrenos arenosos surgem endemismos com caratersticas singulares como

    a Thymus capitellatus e a Thymus villosis, a par de castas igualmente raras como a

    Drosophyllum lusitanicum, a nica planta carnvora ibero-marroquina, ou a Pinguicula

    lusitnica que reside em taludes arenosas e em solos cidos.

    Pela vasteza deste territrio pontuam outras espcies igualmente de singularidade

    nacional, que consagram a riqueza floral da regio, exemplo das orqudeas como a

    Brachypodium phoenicoides ou a Barlia robertiana, ou em espcies como a Rosa-

    albardeira e a Hesperis laciniata, a Alcachofra e as Tulipas, que conferem colorido na

    transio do macio calcrio.

    As condies climticas, geolgicas e florsticas da regio da Arrbida, tm

    permitida a preservao de distintos habitats onde se pode encontrar uma ampla

    diversidade de elementos faunsticos, desde logo, do grupo dos invertebrados, onde

    foram identificadas 106 espcies de aranhas, 445 de escaravelhos, 61 de borboletas, 37

    de formigas e quatro de tngideos16

    . Destaque existncia de cinco espcies de

    colepteros exclusivos da zona, dos quais merecem particular referencia, o Geocharis

    boeiroi, o Gorgulho esmeralda-rosado e o endmico caracol Candidula setubalensis, a

    Liblula, a Aranha-tigre-lobada e a caverncola Anapistula ataecina, a que se associam

    outras espcies como a borboleta Branca-Portuguesa e a Aurora Amarela, que mantm

    nestas reas as ltimas existncias evidenciadas no territrio mediterrnico.

    Quanto famlia dos vertebrados, so conhecidas 12 espcies de anfbios, 17 de

    rpteis, 197 de aves e 34 de mamferos, alguns dos quais, so atualmente espcies em

    vias de extino, caso das aves de rapina e de morcegos, o que torna esta regio uma

    rea de elevada sensibilidade em termos da salvaguarda dos ecossistemas e da proteo

    de espcies em risco. A existncia de ambincias lagunares e a expressiva presena de

    linhas de gua evidencia a relativa capacidade de gerar ecossistemas perenes, os quais

    16

    Coelho (coord. ed.), 2013: 32.

  • 22

    contribuem para a fixao de anfbios como o Cgado, a R-de-focinho-pontiagudo, a

    Rela, o Sapo-de-unha-preto e o Trito-de-ventre-laranja.

    De igual modo so propcias as condies na transio para a linha atlntica, em

    reas de prados e de ocorrncia dunar, para a fixao de variadas espcies de rpteis

    como a Vbora-cornuda, a Cobra-rateira e a Cobra-de-pernas-pentadctila, a Cobra-de-

    ferradura, o Sardo, a Lagartixa-ibrica, a Lagartixa-de-dedos-denteados, a Lagartixa-

    do-mato e a Lagartixa-do-mato-ibrica.

    Tambm as aves, sobretudo as de rapina, tem aqui elevado primado de observao,

    pois a regio acolhe a guia-de-bonelli que nidifica nas arribas atlnticas, o Falco-

    peregrino e a gea que tambm rodeiam essas reas de falsia, a guia-pesqueira, a

    guia-de-asa-redonda e a guia-cobreira, o Falco-peneireiro, o Gavio e o Peneireiro-

    comum, ou o Bufo-real, o Mocho-galego, a Coruja-das-torres e a Coruja-do-mato. A par

    destas, as vertentes e ravinas martimas constituem-se como paragens ocupadas por

    outras espcies, como o Corvo-marinho-de-crista, a Gaivota-argentina e a Pardela-de-

    bico-amarelo, o Ganso-patola, o Pombo-das-rochas e o Andorinho-real.

    Pela localizao geogrfica, particularmente o extremo poente do Espichel, esta

    faixa uma paragem bem documentada nas rotas de migrao da avifauna, sobretudo

    no final da poca estival, o que confere dinamismo e colorido s espcies residentes. As

    autctones coabitam nas zonas de prados com influncia arbustiva, como nas reas de

    transio e nas florestas, universos onde abundam bagas, frutos carnudos e insetos,

    fundamentais para os grupos da avifauna local no s como reas de alimento, mas

    tambm, de abrigo e nidificao. Da extensa listas de espcies possveis de encontrar,

    referncia ao Pisco-de-peito-ruivo, Felosa-bilistada e Cotovia-de-poupa, o Pombo-

    torcaz, o Melro-azul, o Rabirruivo-preto, o Rouxinol e o Bico-grossudo, a Carria, a

    Poupa e a Perdiz-comum, o Noitib-de-nuca-vermelha, o Guarda-rios, o Pica-pau-

    malhado-grande e o Cartaxo-comum, o Tordo-ruivo ou a Petinha-dos-prados.

    Quanto aos mamferos, as diferentes potencialidades de habitat naturais permitem

    uma disperso de espcies que asseguram a diversidade deste territrio. Merecem

    destaque espcies predadoras como a Raposa e o Gato-bravo, a Doninha, o Toiro e a

    Geneta, o Texugo, a Fuinha e o Saca-rabos, a par de espcies insetvoras como o

    Ourio-cacheiro, ou ruminantes como o Coelho-bravo, a lebre e o Rato-do-campo.

    Ainda na vertente martima, mas j na sua transio para as zonas planlticas do

    interior, onde o macio rochoso prevalece e as grutas predominam, possvel encontrar

    outra das riquezas faunsticas da Arrbida, as suas diferenciadas colnias de morcegos

  • 23

    caverncolas que se alimentam em redor das entradas das cavidades geolgicas, nas

    quais hibernam e se reproduzem. So conhecidas colnias do Morcego-de-peluche e do

    Morcego-de-ferradura-mediterrnico, do Morcego-de-ferradura-grande e do Morcego-

    de-ferradura-pequeno, do Morcego-de-ferradura-mourisco, do Morcego-de-franja e do

    Morcego-rato-grande.

    Toda esta riqueza natural, de flora e de fauna, motivou a constituio em 1976 do

    Parque Natural da Arrbida17

    . Atualmente, esta uma extensa rea de reserva ecolgica

    nacional que se prolonga desde a cidade de Setbal at ao cabo Espichel, e na qual, a

    vila de Sesimbra a mais presenteada exceo de um espao urbano implantado neste

    extenso territrio de biodiversidade.

    1.3. O Atlntico e seus ecossistemas

    A amplitude de costa virada a sul, onde Sesimbra se encontra, representa a mais

    expressiva alterao de linha litoral portuguesa, quebra do eixo maior de norte para sul,

    com uma curta, mas acentuada, inflexo de oeste para este, quando retoma a anterior

    longitude at ao cabo de Sagres, onde inflete para levante rumo ao Mediterrneo. Esta

    beira-mar desenvolve-se ao longo de aproximadamente 26 km, definida por uma

    contnua escarpa calcria de elevada pronunciao, desde o promontrio do Espichel at

    ao limite do esturio do Sado, o que lhe confere proteo contra os ventos litorais

    preponderantes de nortada, embora, de acentuada exposio ao suo.

    A gnese geolgica terrestre tem continuidade no meio subaqutico, atravs de uma

    outra serra abaixo da linha de gua, extensa ao longo de fundos rochosos at ao limite

    das duas distintas linhas geomorfolgicas de vales submarinos que confluem ao largo do

    cabo Espichel, respetivamente o canho de Lisboa e o canho de Setbal18

    , intercalada

    por zonas de areal que rodeiam essas, quase que ilhas, submersas do continente.

    Apresenta-se assim uma topografia subaqutica de ascendente rochoso, que na faixa

    litoral se reveste de complexa orografia, escarpas e falsias, onde se definem paredes e

    reentrncias e se destaca a existncias de grutas.

    17

    Com o Decreto n. 355/71 de 16 de agosto constituda a Reserva da Arrbida, a que sucede com o Decreto-Lei n 622/76 de 28 de julho o Parque Natural da Arrbida, reclassificado pelo Decreto Regulamentar n. 23/98 de 14 de outubro, que tambm criou a rea marinha, com o Plano de Ordenamento ratificado na Resoluo do Conselho de Ministros n. 141/2005, de 23 de agosto. 18

    Miguel Saldanha in Sargedas (ed.), 2014: 95.

  • 24

    A faixa costeira fronteira a Sesimbra ostenta solos submarinos arenosos at ao seu

    limite, por onde evoluem, vindos dos vales submersos, acquias naturais de fluxos de

    ascendentes de progresso subaqutica com elevada suspenso de matrias tomadas dos

    fundos, fenmeno que contribui para a elevada presena de nutrientes nestas guas,

    singular recurso para a cadeia alimentar19

    . Propicia-se a criao de habitats onde o

    ecossistema marinho se reproduz, por entre as soberbas presenas geolgicas e os

    espaos por estas criados, ambincia que associada contnua exposio solar, amena

    ondulao e incidncia martima, permite a fixao de uma multiplicidade de algas,

    invertebrados e macroinvertebrados, reas de reproduo e fontes de alimento para uma

    ictiofauna rica e variada de espcies costeiras, como tambm de alto-mar, as quais

    acabam por atrair outras espcies maiores, residentes e migrantes.

    Nesta costa, as guas apresentam temperaturas algo esfriadas que variam entre os

    14C e os 15C, com ndices de salinidade entre os 35 e os 36,5, influenciadas pelas

    tempries ocenicas como pelas correntes vindas do Sado, que seguem toda a costa da

    Arrbida, existncia que se altera aps a transposio para norte do cabo Espichel.

    A influncia da torrente martima preponderante para se entender esta linha litoral,

    na qual o Espichel funciona como ocasio de transio na circulao, ponto meo na

    importante corrente que atravessa a costa desde o cabo da Roca at Sines, a qual, acaba

    por neste lugar, cruzar-se com a que provem de Setbal. A regio marco de

    convergncia de elementos de diferentes latitudes, com as correntes de temperatura mais

    frgida trazidas do norte do Atlntico e as de temperamento mais tpido, ascendentes do

    Mediterrneo e do plago confinante com o Saara Ocidental.

    A relao ocenica entre as correntes martimas, a sua temperatura e a sua

    salinidade, tem reflexos no estabelecimento das vrias formas de vida, com o

    assentamento de ciclos termodinmicos e condies propcias fixao de plncton que

    confere especificidade ao ecossistema que, em muito, beneficiou a riqueza da biologia

    marinha de Sesimbra ao longo da Histria. Esta costa acolhe um complexo ecossistema

    que concilia uma afinidade mediterrnica com uma preponderncia atlntica, o que lhe

    coteja referncia em termos nacionais e europeus. Aqui, registam-se 1320 espcies de

    flora e fauna marinha, com 37 espcies de peixes, 21 espcies de crustceos, 21 espcies

    de bivalves, 76 espcies de poliquetas e quatro espcies de equinodermes20

    .

    19

    Miguel Saldanha in Sargedas (ed.), 2014: 95. 20

    Coelho (coord. ed.), 2013: 156.

  • 25

    Nesta faixa de serra de mar que constitui a linha de litoral, surgem espcies de

    invertebrados como o Coral-amarelo e o Nudibrnquio, a Anmona e a Anmona-joia, a

    Dedos-do-mar-vermelhos e a Estrela-do-mar-vermelha. De entre as vrias espcies de

    algas, muitas das quais nos ltimos anos tem tido nova fixao com influncia positiva

    no habitat marinho, destaque para a Saccorhyza polyschides e a Gellidium sesquipedale.

    A passagem de transio para o mar alto territrio de espcies que deambulam

    entre o esturio e a imensido ocenica, caso da Toninha-comum, do Golfinho-comum e

    do Golfinho-roaz, o qual tem aqui uma comunidade residente. Regista-se tambm a

    presena de 11 espcies de elasmobrnquios, raias como a Tremelga e a Raia-lenga, e

    tubares como o Tubaro-anequim e a Tintureira, a Pata-roxa e o Cao-pintado,

    espcies vulnerveis face pesca e em risco de supervivncia.

    Do extenso rol de ictiofauna, merece referncia espcies discretas como a Enguia e

    a Moreia, o Cavalo-marinho e o Cavalo-marinho-de-focinho-longo, mas tambm outras

    mais conhecidas que vagueiam por estas guas, casos da Sardinha e Carapau, a Sarda e

    a Cavala, a Faneca, o Robalo e o Salmonete, a Dourada, o Cherne e o Goraz, o Tamboril

    e o Linguado. Dos cefalpodes, destaque para a presena do Choco, da Lula e do Polvo,

    enquanto nos crustceos, confere-se importncia a espcies como a Lagosta e o Cavaco,

    o Lavagante, a Santola e a Navalheira. Nos gastrpodes, meno Lapa e aos bzios

    como o Bzio-canilha, a Nassarius reticulatus e a Gadinia garnoti, e por fim os

    bivalves com conchas, como a Nucula nucleus, a Glycymeris glycymeris e a Loripes

    lucinalis, o Mexilho, a Vieira e o Longueiro-direito.

    A influncia das correntes de gua doce e tpidas que descende do Sado para a

    ambincia salina e fria do Atlntico, conjugam condies para um ecossistema singular,

    o que contribuiu para a criao do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha em 199821

    ,

    o primeiro em Portugal continental, vocacionado para a preservao da biodiversidade e

    instituio de uma rea protegida para reproduo das espcies marinhas.

    1.4. O vale e a baa de Sesimbra

    Insculpida no complexo calcrio da Arrbida, a enseada atlntica que alberga o vale

    e a baa de Sesimbra, localiza-se na base meridional de um vale aprofundado pelo mar e

    rodeado pela serra, factos que alm de moldarem a forma da sua abrigada angra,

    21

    Com o Decreto Regulamentar n. 23/98 de 14 de outubro.

  • 26

    tambm lhe conferiram um conjunto de particularidades geolgicas nicas. Daqui se

    autentica o complexo da orla mesozoica que assinala o vale, no qual surgem margas

    infralisicas, conglomerados, argilas e numerosas intruses de teschenito de origem

    eruptiva, exemplos da depresso geolgica resultado da falha de Santana, que fecha a

    nava afunilada a norte, resultado da quebra geolgica e da reunio geogrfica do

    monoclinal de Ares a nascente e do anticlinal diaprico do Castelo a poente.

    Neste alinhamento, o vale de Sesimbra, pese embora o morro alcantilado que acolhe

    o castelo seja testemunho do filo geolgico de calcrios dolomticos, surge como uma

    estreita comba que apresenta uma realidade diametralmente divergente.

    Pela sua origem muito caracterstica, classificado em termos geolgicos como

    vale tifnico, limitado por uma srie de falhas e assomado por terrenos mais recentes

    que coroam todo o seu contorno, e lhe conferem uma forma muito especfica, a qual

    Paul Choffat definiu como tringulo geolgico de Sesimbra22

    . Limitado por essa

    coroa de afloramentos rochosos, de gnese calcria dolomtica do Lusitaniano, que de

    nascente para poente compreende os cumes do Facho de Santana (232 m), de Santana

    (224 m), do Moinho da Forca (220 m) e do Castelo (240 m), desta elevada cordilheira

    descem estratos geolgicos de margas gipsferas do Infralissico, de rochas margosas e

    dolomticas de entre o Lissico e o Bajociano, e do conjunto margoso e arentico do

    Neojurssico e do Cretcico, acompanhados por files de teschenito eocnicos.

    Na faixa serrana que rodeia a concha da baa surgem cerros calcrios em terrenos do

    Neojurssico e do Cretcico, com formaes oolticas brandas de menor dureza e

    resistncia, completares a outras formaes de calcrios mais rijos e resistentes de fcies

    dolomtica e de tonalidades cinzentas, localizam-se no seu permeio os mais imponentes

    macios que servem de fundao ao castelo, por sobre o vale. Este tipo de calcrio

    ainda extrado em algumas pedreiras distantes do anel de coroamento do vale, e que

    pela variedade presente nos diferentes estratos explorados, so destinados a diversas

    utilizaes desde a brita para construo produo de cimento e de cal.

    Tambm destes terrenos frente ao mar at meados do sculo XX extraiu-se gesso,

    proveniente do stio do Caneiro, a nascente do areal da vila, o qual recolhido e

    embarcado num vapor de poro fundo que o transportava at fbrica cimenteira no

    Outo23

    , prximo de Setbal e em pleno corao da Arrbida, que ainda hoje labora.

    22

    Bernardo, 1941: 81. 23

    Rodrigues, 2003: 169.

  • 27

    O vale, defendido dos ventos adjacentes dos quadrantes norte, este e oeste, embora

    totalmente aberto aos ventos dos quadrantes a sul, propcia, a par das riquezas minerais

    das encostas e do seu sop, terrenos frteis resultantes da riqueza em cal, cido fosfrico

    e potassa, propcios expanso de flora arboresce e arbustiva, uma caracterstica muito

    prpria tambm da Arrbida, onde imperam castas de zimbros, carvalhos, medronheiros

    e pinheiros, a par de espcies mais de interesse hortcola, pomcola e silvcola.

    A enseada de Sesimbra, limite extensvel do vale que desce at ao mar, era abertura

    para onde pendiam seis importantes ribeiras que trilhavam os terrenos calcrios macios

    e os terrenos mais desagregados de gnese argilosa, porm, na atualidade estas

    encontram-se maioritariamente encobertos pela ao humana, mas durante centrias,

    foram limites naturais na ocupao do terrao frente ao areal. De nascente para poente,

    surgia a ribeira prxima ao cabo de Ares e a da Califrnia, a ribeira do Caninho que se

    juntava ribeira da Misericrdia, a ribeira da Fonte Nova, a ribeira do Juncal e a ribeira

    a poente do Monte do Macorrilho, em que por alguns corriam guas ferruginosas.

    Destaque para os ribeiros do Caninho e da Misericrdia, que afluam no centro da

    vila com um contnuo lenol fretico explorado por poos e fontes, embora na poca

    estival o fluxo fosse menor. Tambm neste entrecho, particular referncia presena de

    guas de trato medicinal que vinham da fonte do Carvalho, no extrem