a identidade de segurança brasileira e a unasul: novos espaços para autonomia

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A Identidade de Segurança Brasileira e a UNASUL: novos espaços para autonomia Heloise Guarise Vieira Mestra em Relações Internacionais pela UFSC Professora do curso de bacharelado de Relações Internacionais da UNINTER Seminário 03: Relações Internacionais e Política Externa na América Latina [email protected] Resumo: A pesquisa aqui apresentada tem como objetivo delinear se a perda de poder de penetração dos Estados Unidos na América do Sul (BUZAN, 2003) deu espaço para a possibilidade de maior protagonismo ao Brasil para as questões de Segurança e Defesa. O Brasil tem buscado criar modelos de anarquia que primem pela menor presença dos EUA na região, aumentando os espaços de autonomia para os países latinos, com a finalidade de estabelecer os seus padrões de comportamento nas relações intracontinentais. A maior influência brasileira sobre os demais ocorre pela concretização do seu projeto de integração política, a UNASUL, como vetor para a criação de entendimentos comuns entre os países sul-americanos. A UNASUL é, então, tanto um instrumento para a maior autonomia em relação aos Estados Unidos, quanto também é uma ferramenta política para aumentar a projeção do Brasil. A pesquisa aponta que esse processo ainda é incipiente, mas já mostra resultados, com o desfecho de duas questões de Segurança Regional resolvidas pela instituição: o separatismo boliviano e o tratado de bases na Colômbia, de 2009. Em ambos os casos, ainda que não tenha havido uma resolução contundente na UNASUL, a politização dos temas regionalmente alterou os entendimentos dos decisores desses países sobre seus posicionamentos. Sendo a estabilidade e a integração latina um objetivo brasileiro de longa data, oficializado em sua constituição de 1988, o país tem exercido influência sobre os demais através da UNASUL, sendo um motor para entendimentos sobre segurança na região. Através da análise de discursos brasileiros e de líderes regionais, a hipótese apontada nesse artigo pode ser considerada validada.

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A Identidade de Segurana Brasileira e a UNASUL: novos espaos para autonomia

Heloise Guarise VieiraMestra em Relaes Internacionais pela UFSCProfessora do curso de bacharelado de Relaes Internacionais da UNINTERSeminrio 03: Relaes Internacionais e Poltica Externa na Amrica [email protected]: A pesquisa aqui apresentada tem como objetivo delinear se a perda de poder de penetrao dos Estados Unidos na Amrica do Sul (BUZAN, 2003) deu espao para a possibilidade de maior protagonismo ao Brasil para as questes de Segurana e Defesa. O Brasil tem buscado criar modelos de anarquia que primem pela menor presena dos EUA na regio, aumentando os espaos de autonomia para os pases latinos, com a finalidade de estabelecer os seus padres de comportamento nas relaes intracontinentais. A maior influncia brasileira sobre os demais ocorre pela concretizao do seu projeto de integrao poltica, a UNASUL, como vetor para a criao de entendimentos comuns entre os pases sul-americanos. A UNASUL , ento, tanto um instrumento para a maior autonomia em relao aos Estados Unidos, quanto tambm uma ferramenta poltica para aumentar a projeo do Brasil. A pesquisa aponta que esse processo ainda incipiente, mas j mostra resultados, com o desfecho de duas questes de Segurana Regional resolvidas pela instituio: o separatismo boliviano e o tratado de bases na Colmbia, de 2009. Em ambos os casos, ainda que no tenha havido uma resoluo contundente na UNASUL, a politizao dos temas regionalmente alterou os entendimentos dos decisores desses pases sobre seus posicionamentos. Sendo a estabilidade e a integrao latina um objetivo brasileiro de longa data, oficializado em sua constituio de 1988, o pas tem exercido influncia sobre os demais atravs da UNASUL, sendo um motor para entendimentos sobre segurana na regio. Atravs da anlise de discursos brasileiros e de lderes regionais, a hiptese apontada nesse artigo pode ser considerada validada.Palavras-chave: America Latina; Brasil; Poltica Externa; autonomia.Resumen: La investigacin que aqu se presenta tiene como objetivo delinear la prdida de poder de penetracin de Estados Unidos en Amrica del Sur (BUZAN, 2003) dio lugar a la posibilidad de un mayor papel a Brasil a las cuestiones de seguridad y defensa. Brasil ha tratado de crear modelos de anarqua que se destacan por la menor presencia de Estados Unidos en la regin, el aumento de los espacios de autonoma para los pases latinoamericanos, con el fin de establecer sus pautas de comportamiento en las relaciones intra-continentales. La influencia ms grande de Brasil en los dems paises quedase por la realizacin de uno proyecto de integracin poltica, UNASUR, como vector para la creacin de un entendimiento comn entre los pases de Amrica del Sur. La UNASUR es entonces tanto una herramienta para una mayor autonoma de los Estados Unidos, como tambin es una herramienta poltica para aumentar la proyeccin de Brasil. La investigacin muestra que este proceso se encuentra ayun en su infancia, pero ya est mostrando resultados, con el resultado de dos temas de seguridad regional resueltos por la institucin: el separatismo boliviano y las bases del tratado en Colombia, 2009. En ambos casos, aunque no ha habido una resolucin contundente en la UNASUR, la politizacin de las cuestiones cambi regionalmente las mentes de los fabricantes de estos pases en sus posiciones. A medida que la estabilidad y la integracin de Amrica una meta brasileo de larga data, oficial en su Constitucin de 1988, el pas ha ejercido influencia sobre los dems a travs de UNASUR, es un motor para la comprensin de la seguridad en la regin. A travs del anlisis de los discursos de Brasil y lderes regionales, la hiptesis seal este artculo puede considerarse validado.Palabras-clave: America Latina; Brasil; Poltica exterior; autonomia.

IntroduoA liderana brasileira na Amrica do Sul observada durante a Nova Repblica tem chamado a ateno de estudiosos do tema sobre variadas perspectivas. O protagonismo brasileiro pode ser sentido em vrios aspectos da vida poltica e respaldado por vrias fontes podem ser utilizadas o crescente nmero de consulados, a construo de Organismos Internacionais Regionais, a aproximao das empresas brasileiras com o restante do continente, as cifras das relaes econmicas com esses pases, entre vrios outros. Neste trabalho, a maior fonte de observao desta aproximao so os discursos oficiais, sejam eles expressados pelos governantes brasileiros ou pelos documentos que competem integrao de Segurana Regional.A viso de Segurana regional na Amrica do Sul, no entanto, limitada quando as anlises no consideram a intervenincia dos Estados Unidos no continente. Desde o estabelecimento da Doutrina Monroe, onde o Presidente Monroe declarou que as Amricas no responderiam s potncias europeias, mas unicamente tutela e proteo dos EUA, em 1823, as questes de segurana do continente possuem, no mnimo, a intervenincia e, no mximo, a interferncia direta dos Estados Unidos.No entanto, no se pode afirmar que as Amricas estiveram sempre em uma relao de imposio das vontades dos dirigentes estadunidenses. As relaes com os EUA foram, na maior parte do tempo, vistas como positivas e desejadas pelos demais pases (SANTOS, 2007, p. 12). Ter um Estado forte ao lado do subcontinente era positivo para os Estados que ainda estavam em fase de formao e de criao de burocracias internas, alm dos EUA serem um importante investidor no continente e, tambm, um provedor de matrias de defesa contra inimigos externos. O Tratado Interamericano de Assistncia Recproca - TIAR (1947) um dos exemplos das criaes positivas de segurana intracontinental[footnoteRef:1] acordado multilateralmente entre os Estados. [1: Cabem, obviamente, questionamentos sobre a validade do tratado. A no interveno americana quando ocorreu a Guerra das Malvinas, por exemplo, mostra que a assistncia em caso de interveno de outra potncia pode ser flexibilizada se os EUA necessitarem fazer uma escolha estratgica entre o TIAR e a OTAN. No entanto, o tratado foi visto com bons olhos no incio do sculo XX.]

Com o final da Guerra Fria, os EUA voltam grande parte da sua ateno para as Amricas. A guerra contra as drogas se torna um dos grandes temas da agenda de segurana americana (CAMPBELL, 1992, p. 198). A guerra contra as drogas se concentrou, especialmente, na Amrica Central e na Amrica Andina. Isso levou a uma grande presena de exrcitos e aes militares na regio, que teve como consequncia o aumento da insegurana entre os pases. Pelo desrespeito soberania dos Estados vizinhos, ou pelas aes conjuntas com os Estados Unidos serem tratadas como segredos de Estado, a tenso aumenta dentro do continente. O pice do medo da interferncia americana na regio a promulgao do Plano Colmbia, no ano de 2000, um plano de assistncia militar que previa o extensivo combate s guerrilhas, cartis de drogas e grupos insurgentes no pas, que necessitava de um nmero expressivo de combatentes e especialistas em segurana para o pas (YOUNGERS, ROSIN, 2005, p. 107). As aes na Colmbia, no entanto, sofreram um relaxamento desde os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001.De fato, pode-se dizer que toda a presena americana na Amrica do Sul[footnoteRef:2] foi flexibilizada diante do medo do terrorismo global. E esse momento de menor presena dos EUA na economia, segurana e poltica da regio cria espaos que comeam a ser preenchidos pela ao bi ou multilateral do subcontinente. O Brasil passa a utilizar a poltica externa (regional e extrarregional) como uma forma de se fortalecer, e tambm vive um momento positivo em sua economia, e as empresas brasileiras se expandem para as Amricas. Os presidentes sul-americanos passam a negociar entre si sem carregarem os receios da resposta americana agora, com um novo foco para os seus problemas de Segurana. Obviamente, os Estados Unidos no evacuaram a regio (literal ou politicamente), mas os problemas com o terrorismo dos grupos radicais do Oriente Mdio precisavam de uma resposta imediata, ao contrrio das Amricas, rea de influncia americana de longa data. [2: Ainda que possa ser sentida a menor presena dos EUA na Amrica Central, o combate ao trfico e imigrao ilegal no tiveram um corte to expressivo quanto a Amrica do Sul.]

Com isso, o Brasil consegue ser um protagonista para os problemas regionais e a incentivar novas formas de se pensar a poltica para a Amrica do Sul. Os planos do Brasil para a liderana regional vm de longa data, mas a Nova Repblica positivou essa aspirao em seu artigo 4, pargrafo nico:

A Repblica Federativa do Brasil buscar a integrao econmica, poltica, social e cultural dos povos da Amrica Latina, visando formao de uma comunidade latino-americana de naes.

As aes de aproximao continentais tm incio com o governo Sarney, se transformam em questes polticas durante o governo Fernando Henrique Cardoso (especialmente com a negao da rea de Livre Comrcio das Amricas), e encontram um continente aspirando por autonomia durante a presidncia de Lula da Silva.

A Identidade de Segurana Internacional do BrasilPor ser um conceito de diversas interpretaes, a Identidade de Segurana tratada neste artigo uma fuso das consideraes de diferentes autores de Relaes Internacionais. Para Katzenstein (1996, p. 13), a Identidade de Segurana a fuso da intersubjetividade das populaes sobre as expectativas sobre a Poltica Externa, alm das normas, valores, cultura e interpretao da Histria de um povo. Barnett (1996, p. 408) adiciona ao conceito que a Identidade mutvel, e as preferncias e as opes dos governos so definidas e redefinidas por presses nacionais (o avano econmico, mudanas no perfil demogrfico) e externas (como a poltica das grandes potncias,as crises internacionais, as mudanas trazidas por Organizaes Internacionais). Wendt (1995, p. 77) agrega discusso que a estrutura internacional pode tornar uma conformao de identidade inaceitvel e ser altamente constrangedora para que um Estado mude um comportamento ou permanea dentro do espectro de aes, valores e normas aceitveis. Assim, pode-se concluir que a Identidade de Segurana Internacional de um Estado formada pela forma com que o Estado v o Sistema Internacional e seu posicionamento nele, e tambm denota a que tipo de presso do Sistema Internacional o Estado se submete.Lafer (2007, p. 20) lana alguns valores centrais para a interpretao da Identidade de Segurana Internacional brasileira, que apesar de aparecerem ao longo da Histria do Brasil de maneiras distintas, perpassam a preferncia de um governo ou outro e denotam as questes centrais para a Poltica Externa do pas. So esses: A escala continental do Brasil; A unidade lingustica; O relacionamento ativo com vrios pases vizinhos; Pouca proximidade com os focos de tenso mundial; O desejo de se tornar um Estado desenvolvido.No h dvidas que esses princpios nortearam as aes brasileiras em vrios momentos histricos. Ao longo do livro, Lafer faz referncia a outras questes centrais ao Brasil: um importante defensor do Direito Internacional (ibid., p. 46), as relaes amistosas com os EUA (ibid., p. 66), ainda que esta seja atrelada a uma histrica construo brasileira por autonomia de ao diplomtica. O fim da Guerra Fria mostrou ao Brasil a necessidade de atualizao da sua identidade, pois as premissas em que o regime autoritrio brasileiro se embasava ficaram anacrnicas como o combate ao comunismo e a presso mundial pelo avano democrtico (ibid., p. 108). Assim, com a transio negociada democracia, o novo governo tem como principal desafio e fonte de inovao na poltica nacional, a criao de uma nova Constituio Federal (CAMPOS, DOLHNIKOFF, 2003, p. 305). Como Barnett (1996) argumenta, a inovao na poltica significa uma atualizao dos valores e expectativas do Estado diante das mudanas internas e internacionais, no a criao de novos e diferentes valores e expectativas. Ou seja, as construes histricas do Brasil sobre seu papel no continente e no mundo precisam ser revistas, as potenciais ameaas so revisitadas, se discutem qual ser o papel das foras armadas (talvez o maior embate durante o governo Sarney), mas no se abandonam as construes e os constrangimentos ao do Estado no campo de Segurana. Isso fica claro no artigo 4 da Constituio Federal:

Art. 4 A Repblica Federativa do Brasil rege-se nas suas relaes internacionais pelos seguintes princpios:I - independncia nacional;II - prevalncia dos direitos humanos;III - autodeterminao dos povos; IV - no-interveno;V - igualdade entre os Estados;VI - defesa da paz;VII - soluo pacfica dos conflitos;VIII - repdio ao terrorismo e ao racismo;IX - cooperao entre os povos para o progresso da humanidade;X - concesso de asilo poltico.Pargrafo nico. A Repblica Federativa do Brasil buscar a integrao econmica, poltica, social e cultural dos povos da Amrica Latina, visando formao de uma comunidade latino-americana de naes.

Pode-se notar que os princpios constitucionais so mantidos por todos os governos, independente de suas ideologias polticas, e embasam as aes brasileiras sobre vrios aspectos. A questo da integrao latino-americana positivada pela constituio mostra uma importante atualizao da poltica brasileira. O Brasil no mais entende que apenas as relaes Norte-Sul podem trazer seus objetivos polticos, mas tambm a integrao com seus pares. Com isso, a segurana deixa de ter foco nacional e passa a ser uma questo regionalizada; o Brasil compreende que a sua sobrevivncia no depende apenas da sua estabilidade, mas da criao de um ambiente regional que favorea a cooperao e o desenvolvimento de todos (SENNES et. al., 2003, p. 6).O governo Cardoso tem a integrao regional como vetor central do desenvolvimento econmico, e o seu governo se destaca pela busca da estabilidade econmica e criao de meios de exercer liderana na Amrica do Sul (CERVO, 2004, p. 9). Neste momento, a crena de que o Estado deveria liberalizar a economia e ser um transformador da sociedade passava pela ideia de que as barreiras para as relaes econmicas precisam ser retiradas. Assim, o governo cria o Mercosul, volta a requerer participao no Conselho de Segurana da ONU e cria uma aproximao estratgica de vanguarda com a Argentina e o Chile (SENNES, et. al., 2003, p. 15). O Mercosul, apesar de ser um projeto econmico, fez parte da mudana na concepo das relaes com a Argentina, ao lado dos tratados chamados ABC (Argentina, Brasil e Chile). O Brasil tenta ser visto como um catalisador dos processos que levaro paz no Continente para requerer a incluso na ONU e ser visto como um jogador global, sem a interferncia dos Estados Unidos nas suas polticas. Ao final do seu governo (ano de 2000), criada a Iniciativa para a Integrao de Infraestrutura Regional Sul-americana (IIRSA), que buscava integrar os pases econmica e politicamente atravs da projeo fsica estradas, hidrovias e portos, especialmente. Apesar de ser um instrumento apenas de carter logstico-administrativo para os governos, a IIRSA passou a ter um componente de segurana em seus debates. Os problemas de roubo de cargas, uso de estradas para o trfico, os ataques de grupos beligerantes e outros problemas so parte do cotidiano das empresas e pessoas da Amrica do Sul, e fica claro que a IIRSA precisa ter um componente poltico para tratar dessas questes. No entanto, esse componente comear a ser pensado apenas em 2004.O governo Lula busca se destacar pelo engajamento e pela ampliao da cooperao Sul-Sul. Esse tipo de relacionamento permitiu uma aproximao de pases com perfis semelhantes nas RI e um equilbrio maior em relao aos Estados desenvolvidos (VIGEVANI, CEPALUNI, 2007, p. 283). Assim, conversando com seus pares, o Brasil aumenta a sua autonomia, no estando cerceado pelos limitantes cooperao com os pases centrais. Esse aumento de autonomia vem acompanhado de um sentimento de solidariedade aos pases latinos e contestao maior dos presidentes eleitos. Em todo o continente, governos de esquerda sobem ao poder, e uma caracterstica comum esquerda latino-americana a contestao das relaes Norte-Sul. Assim, o Brasil encontra terreno frtil para a criao poltica de um novo entendimento sobre o papel das Amricas no mundo.

A criao da Unasul e o caminho para uma Comunidade de SeguranaA IIRSA, como j observado, avanava muito pouco em seus dilogos sem levar em conta as questes de segurana. Essa ampliao de dilogos, unida vontade dos governos em criar espaos de atuao que no contemplassem a presena dos EUA, leva criao da Comunidade Sul-Americana de Naes (CASA). Com a Declarao de Cuzco de 2004, estabelecido um eixo de cooperao entre a Comunidade Andina de Naes e o Mercosul. No entanto, a organizao no possua uma agenda determinada, reunies ordinrias ou objetivos claros. Era claro que a CASA era uma etapa na integrao continental crescente desde a redemocratizao do continente. A percepo de ameaas no continente tambm se alterara, e os Estados estavam em processo de abandonar a crena no anel de paz e tratar de questes No entanto, havia uma nova discusso em pauta. Deveria ser mantida a forma de se fazer uma Organizao Regional aos moldes da Unio Europeia? Era claro que as urgncias do subcontinente no comeo do sculo XXI no eram as mesmas da Europa no ps Segunda Guerra, e tambm que o mundo no era o mesmo. As tentativas em criar Organizaes naqueles moldes no avanaram como o previsto a Comunidade Andina e o Mercosul conquistaram parcialmente seus objetivos, mas foram pouco eficazes em transformar a percepo do internacional de seus membros. Martins (2011, p. 73) destaca que, no caso do Mercosul, as aspiraes dos seus membros j ultrapassavam o alcance da organizao, e a integrao com o Norte Andino era bem vinda. No entanto, Martins (ibidem) destaca que a gerao de consensos em nvel comercial era dificultada pelos tratados preferenciais bilateral (a presente autora destaca o Chile e a Colmbia). A grande urgncia do subcontinente era, como defendida pelo Brasil desde o governo FHC, criar uma zona de paz onde os consensos pudessem florescer (como defendido pelo governo Lula). Logo, uma organizao subcontinental necessitaria envolver outros aspectos da vida internacional que no as questes tarifrias e comerciais.A economia aparece dentre os objetivos do tratado da Unasul, mas seu documento constituinte no destaca ou exalta este processo como central para as naes. Como pode ser observado no artigo 2 da Declarao de Braslia:

A Unio de Naes Sul-americanas tem como objetivo construir, de maneira participativa e consensuada, um espao de integrao e unio no mbito cultural, social, econmico e poltico entre seus povos, priorizando o dilogo poltico, as polticas sociais, a educao, a energia, a infra-estrutura, o financiamento e o meio ambiente, entre outros, com vistas a eliminar a desigualdade socioeconmica, alcanar a incluso social e a participao cidad, fortalecer a democracia e reduzir as assimetrias no marco do fortalecimento da soberania e independncia dos Estados (UNASUL, 2008).

Ou seja, a criao de um foro de dilogo, debate e percepo da necessidade de unio continental para que a Amrica do Sul fosse um ator requisitante nas Relaes Internacionais mostram-se os grandes geradores de consenso, no a eliminao de barreiras comerciais, o que era o objetivo central das tentativas contemporneas da Unasul. O projeto foi visto com ceticismo por alguns pases sul-americanos e analistas. A forma de gerir a organizao, a real capacidade dos Estados em chegarem aos objetivos propostos e at onde os membros estavam dispostos a mudar suas normas e valores internalizados eram, e ainda so, questes em pauta (TEIXEIRA, SOUSA, 2013, p. 43).Na Reunio de Braslia, tambm, sugerida a criao de um Conselho de Defesa Sul-americano (CDS), onde se possa construir consensos, criao de ameaas e trabalhar conforme as particularidades de seus membros a favor da criao de uma estabilidade regional duradoura (MARTINS, 2011, p. 75). Apesar das demandas de segurana, at o presente momento, terem sido tratadas pelo Conselho de Chefas e Chefes de Estado da organizao, o CDS contm um elemento contestador que deve ser levado em conta. Alm de buscar gerar uma identidade de segurana e defesa comum no continente (CDS, 2004, art. 4), o rgo permite que as demandas de segurana e as potenciais ameaas ao continente sejam levadas a ele. Assim, h uma negao tcita da legitimidade do Conselho de Segurana das Naes Unidas, que no possui nenhum membro permanente sul-americano, em deliberar sobre a regio. As crticas ao rgo incluem o fato dele nunca ter passado por um real teste da sua efetividade, visto que as demandas tm sido respondidas atravs do Conselho de Chefes e Chefas de Estado com alguma eficcia.No entanto, observando os valores gerais apresentados nestes fragmentos dos tratados bsicos das Instituies regionais, encontram-se alguns elementos em comum com o norteamento da Poltica Externa Brasileira. A ideia de construo de consensos e da resoluo pacfica de conflitos parte do discurso brasileiro de segurana desde o final da dcada de 1980:Os princpios recolhidos dos ilustres precursores da diplomacia brasileira so sobejamente conhecidos e podem-se resumir em alguns enunciados fundamentais: vocao para as solues pacficas, a boa convivncia e o primado do Direito. Alicerada nesses princpios tradicionais, a poltica externa brasileira tem sabido atualizar seus horizontes temticos (SARNEY, 1987).

O discurso do ento presidente, Jos Sarney, no um momento isolado na histria da Nova Repblica; v-se que estes elementos norteiam a poltica externa brasileira, e sul-americana, at os dias atuais. A operacionalizao e o funcionamento do da Unasul, com a presena de todos os presidentes s reunies[footnoteRef:3] mostra que h da regio em negociar sem a presena americana. Tambm evidencia que existem vontades comuns, como afastar o medo do separatismo, negociar os problemas fronteirios e reduzir as disparidades dentro do subcontinente (MARES, 2001, p. 32). Essa resoluo pacfica de problemas, a criao de um espao de debates sem a presena americana, e as vontades comuns que podem gerar valores regionais comuns mostram que a realidade sul-americana tem mudado. Governos dispostos a cooperar e a criar estabilidade regional atravs de uma Organizao Internacional, com sistemas democrticos e dispostos a relativizar a preferncia por resolues ao lado das grandes potncias regionais tambm configuram um fenmeno novo na regio. E, tambm, a Unasul em si uma negao da criao histrico-terica da criao de uma comunidade de segurana a teoria sobre as comunidades de segurana apresentada por Adler e Barnett (1998), prev que primeiro exista uma aproximao dos valores, para ento se estabelecer um nvel mnimo de dilogo entre os Estados. [3: Exceo feita Colmbia na reunio de Quito para tratar da questo das bases americanas em seu territrio.]

A Unasul inverte a lgica da teoria e da prtica que fora observada pela Unio Europeia. Partindo de problemas comuns, que passam a ser institucionalizados, a organizao pretende gerar esferas de dilogo autnomo onde os Estados convergiro ideias e propostas para a regio e, assim, geraro valores comuns. O maior problema nesta inverso, segundo Katzenstein (1996), que se delega aos mecanismos continentais a criao de uma identidade, quando essa identidade depende da evoluo da prtica social para se solidificar. Ou seja, a criao da Unasul no , por si, a garantia que haja mudana nos padres continentais e que exista uma maior estabilidade regional se ela continuar sendo criada e recriada apenas em reunies presidenciais. A Unasul parte da criao de valores que devem ser internalizados e compreendidos por toda a sociedade sul-americana, ou seja: depende da vontade dos governos em fazer com que as prticas sociais evoluam.Essa evoluo da prtica social atrai grandes interesses brasileiros, que querem apesar da capacidade limitada, serem reconhecidos como lderes da regio. A Unasul um projeto brasileiro por excelncia, apesar de no ser dependente do pas. Consideraes FinaisApesar de a Unasul ser um instrumento importante para potencializar a projeo brasileira nos espaos polticos que tm surgido nas ltimas duas dcadas, sua baixa institucionalizao e a dependncia presidencial so ainda empecilhos para uma integrao consistente. A excluso da sociedade civil organizada dos processos decisrios afasta a populao da integrao e no atinge grande parte das populaes. Os esforos da Unasul na Bolvia, por exemplo, uniram apenas as lideranas regionais e nacionais, e grupos da sociedade civil organizados foram alienados do processo[footnoteRef:4]. [4: Informao obtida atravs do contato da presente autora com lideranas da Nacin Camba, grupo separatista da meia lua boliviana, que no fora consultada nas tentativas de despolitizao do separatismo das provncias mais ricas da Bolvia, em 2009.]

No concebvel pensar na integrao sul-americana quando esta retira a populao de seus processos. Chamar a sociedade civil organizada para debater temas que concernem a elas, levar a ideia de integrao para a populao, e no apenas para setores militares e estratgicos, utilizar meios de difuso cultural para unir as populaes e criar uma identidade sul-americana devem estar ao lado dos projetos de integrao regional econmica, financeira, estrutural e poltica.Os espaos que a menor presena americana na regio abrem propiciam uma integrao maior de setores privados. At o presente momento, o preenchimento desses processos tem sido realizado pelo governo nacional. Poucas iniciativas de empresas privadas brasileiras no contam com o financiamento do BNDES ou pela chamada pblica do governo brasileiro. Promover a maior integrao entre os setores privados sem a necessidade de concertao governamental seria uma grande vitria da expresso dos valores de identidade de segurana brasileira.Outro ponto importante para a plena expresso dos valores da identidade de Segurana Internacional brasileira que os problemas sul-americanos deixem de ser questes extraordinrias da poltica nacional e passem a ser debatidos como questes cotidianas pelos poderes nacionais. Atualmente, tais questes ficam a cargo da presidncia, Ministrios competentes e das Foras armadas, com pouca participao do legislativo e judicirio. A Unasul pode suprir esta falta, pelas suas decises necessitarem da aprovao do Congresso, mas o pas precisar estudar melhor uma poltica de longo prazo que traga tais decises para o mbito interno e para a discusso pblica.Para tal, a postura do Itamaraty tambm precisar ser revista. Um dilogo maior com o legislativo, a sociedade civil organizada e movimentos organizados regionais necessrio para uma compreenso maior da Amrica do Sul e das necessidades do Brasil em suas reas fronteirias que tm diferentes demandas. A vivificao das fronteiras por meio humano deve ser seguida de uma poltica adequada para se tratar das necessidades das populaes. O Itamaraty tambm precisa ser modernizado no sentido de refinamento das polticas para a Amrica do Sul e conferncia de maior papel estratgico para os vizinhos. Atualmente, as reas sul-americanas tm importncia menor para a organizao que a Europa (segundo a escala de progresso de carreira dos diplomatas). Uma inverso pode significar maior expresso do Brasil na regio, com profissionais mais capacitados para aumentar as relaes consulares com os demais pases.Pode-se concluir, segundo a anlise aqui levantada, que o Brasil tem se esforado para aumentar a expresso de sues valores e ocupar os espaos de autonomia deixados com a sada pelos EUA. No entanto, preciso que essas aes caminhem para uma maior integrao dos demais setores da sociedade e maior ateno Amrica do Sul como rea preferencial de atuao. No entanto, apesar de ainda existirem vrios passos a se realizarem para se efetivar tais discursos, o Brasil tem se mostrado empenhado a construir uma poltica que caminhe no sentido de fortalecer sua liderana regional.RefernciasBARNETT, Michael. Identity and alliances in the Middle East. KATZENSTEIN, Peter. The culture of national security. Nova Iorque, Columbia University press, 1996.BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 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