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A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográficos A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográfi- cos A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográ A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográfi- cos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamen- tos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográfi- cos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamen- tos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha Alguns apontamentos autobiográfi- A Ida do Zé para a Marinha Alguns apontamentos autobiográficos 2002 José Monteiro Morais

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A Ida do Zé para a marinha – Alguns

apontamentos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha – Alguns apontamentos

autobiográficos A Ida do Zé para a marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-

cos A Ida do Zé para a marinha – Alguns apontamentos autobiográ A Ida do Zé para a marinha – Alguns apontamentos

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cos * A Ida do Zé para a marinha – Alguns apontamentos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha – Alguns apontamen-

tos autobiográficos * A Ida do Zé para a marinha – Alguns apontamentos autobiográfi-

A Ida do Zé para a Marinha

Alguns apontamentos autobiográficos

2002

José Monteiro Morais

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A Ida do Zé para a Marinha

Alguns apontamentos autobiográficos

José Monteiro Morais

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A Ida do Zé para a Marinha

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INTRODUÇÃO

Com este trabalho, o Zé pretende recrear-se recordando e contando

ocorrências, na sua grande maioria, de caracter humorístico, bem de

acordo com o modo de estar da marujada.

São peripécias que foram sucedendo ao longo da caminhada desde

Zé que saiu, aos 20 anos de idade, de uma “longínqua” aldeia do Alto

Douro – Celeirós do Douro - para se apresentar numa inspecção, no Alfei-

te, a fim de, eventualmente, ingressar na Marinha de Guerra Portuguesa.

Aconteceu que o Zé foi apurado, correu mundo, conheceu e convi-

veu com muita gente desde 1946 a 1950.

Como é natural, sempre há pessoas, entre tanta gente, umas mais

próximas que outras; mas as que o Zé aqui vai referir, não é por serem

alguns dos amigos mais chegados – também o são em parte - mas sim

porque eles são os protagonistas das histórias aqui referidas. Sem fazer

acepção de pessoas, o Zé terá de começar por uma personalidade amiga

sim, mas que se situa num grau da hierarquia militar que nada tem a ver

com o grumete nº.7004, nem de longe nem de perto com a caminhada que

o Zé percorreu desde a sua origem, igualmente na Marinha. Essa perso-

nalidade é exactamente, o 2º Comandante da Escola da Aviação Naval

Almirante Gago Coutinho de S. Jacinto – Aveiro, ao tempo 1º Tenente –

hoje Almirante – Francisco Ferrer Caeiro. O Zé coloca-o desde já neste

trabalho porque, como disse ele é um dos intervenientes mais marcantes,

na sequência dos acontecimentos.

Os “outros” são: O “Cabo Zé” – filho da mesma escola, o Zé Rama –

um Grumete de Manobra - dois compinxas de grande destaque entre a

marujada, os quais participaram, como o Zé, na viagem da SAGRES, em

1948, à América do Norte.

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Por último, o Zé faz referência a um certo Oficial, o senhor Tenente

Fontes, não devido a qualquer proximidade, mas sim pelas invulgares

características enquanto Oficial da Marinha. O senhor ten. Fontes mercê

de uma invulgar tolerância, supõe o Zé, permitia-se, inclusive, desrespeitar

regulamentos e pessoas, ao sabor do seu modo que mais não era que for-

temente grosseiro.

O Zé conviveu com ele, em duas alturas, na Escola de Alunos

Marinheiros, e na Escola de Mecânicos, em Vila Franca de Xira.

Outra pessoa aqui referida, o Senhor Capitão Joaquim Nunes Duar-

te, já falecido -, autor da obra intitulada: “ HIDROAVIÕES NOS CÉUS DE

AVEIRO”, faz parte do número de pessoas aqui mencionadas, tanto por-

que o Zé conviveu com ele na Escola de Aviação nos anos de 1947/48,

mas também porque foi da sua obra que o Zé colheu preciosas informa-

ções, relativamente a S. Jacinto.

J. Morais Aveiro, 2002

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Ida do Zé para a Marinha

Sai o Zé da sua aldeia, Curioso, par’a cidade. Tal desejo tem na ideia Desde muito tenra idade. Eram quatro de Janeiro Dum ano já tão distante Lá vai ele de pé ligeiro, De chapéu, bem elegante! Só ele sabe o que passou A vida que ali viveu Se o demo lhe amassou, Muito do pão que comeu Mas grande sonho ele tinha, Noite e dia sussurrado Era ir para a Marinha, Se por bem fosse apurado De Celeirós ao Pinhão, Dez quilómetros de distância. Carrega as cestas à mão, Mas não lhe dá importância. Chega o comboio sonante, A largar negra fumaça, Aquele fagulho constante Pôs-lhe o fato uma desgraça. Corre o comboio, veloz, Desvairado corre à toa; Mas, p'ra trás é Celeirós, E para a frente é Lisboa.

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Pelo mesmo vai também Um tal Pires, seu companheiro; Está mais feliz que ninguém Já se sente marinheiro. Outras palavras não tinha Não mais mudava de assunto; Só falava da Marinha Entre lascas de presunto. Dissertava sobre o mar... Quanta largura teria, E acabou por achar De fundo, quanto media! Ficara de estar no Porto, Um tal Zeca à sua espera; Mas a coisa deu p’ró torto O tal rapaz não viera Pasmados de tanta gente, Lá na estação de S. Bento, Vai o Zé diz de repente Espera Pires um só momento. Saiu, logo achou O tal Zeca ao dar da esquina, Afinal só se atrasou Por diferença pequenina. Reentrados na estação Lá está o Pires triste sozinho, Iludindo a solidão, Com mais copo de vinho Eh pá! Brada o Zeca em alvoroço. Pensavas que já não vinha? Venha de lá esse abraço, Já sei que vais p'rá Marinha!

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Limpa o Pires ainda a boca Do tinto que lhe escorria, Puxa o chapéu para a nuca A transbordar de alegria Foi o abraço mais torto... De nunca vista emoção! Depois, falámos do Porto, Que o Porto é uma nação! Fala o Zeca do seu Porto, De modesto, tem um toque; Às tantas diz absorto: Grande, sim, é Nova York”! E vejam só... Quem diria, Nessa noite tão distante, Que só o Zé é que iria A essa terra gigante!1 Mas vamos lá, devagar, Que a razão se respeite Era preciso passar Nas inspecções do Alfeite. E lá partiram do Porto Talvez duas da manhã; Alheios ao desconforto Na busca dum “talismã”. Reluziam horizontes Desde o nascer daquele dia, Bem longe de Trás-os-Montes Um novo mundo surgia. Ao chegarem a Lisboa Deu-se ali a mesma fita; Pois lá não estava pessoa Que ficou de estar na dita!

1 Viagem da Sagres América do Norte em 1948

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Era a Estação do Rossio... Tanta gente a fervilhar Mas a multidão sumiu E eles ali a secar. Mas onde fica a pensão, “Lá sabemos nós onde é”... Com tantas cestas na mão... E agora!?... diz o Zé. Mas o Zé o que queria Era logo ver o Mar Toma Pires a cestaria Que eu vou até ali espreitar”. Bastante tempo passou Pois chegou ao cais do Sodré Pobre Pires, desesperou Ficou c’os nervos em pé. Esse tal tinha aparecido, Logo, mas, enfim, fora de hora; Lá deram o Zé por perdido, Por essa Lisboa fora. Depois dum ralha que ralha Que todos tinham falhado, E lá guardaram a tralha, Numa tasca ali ao lado No dia seis, manhãzinha, Tomado o café com leite Do arsenal da Marinha Lá partiram pró Alfeite Julga o Zé ir sobre o Mar Se a lógica lhe não falha Era água de pasmar... Mas só era o mar da Palha! Deu-se pois a inspecção, E chegam os resultados Para uns, desilusão E outros são apurados.

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Ninguém sabe o seu destino Antes de a hora chegar Pois foi grande o desatino Que pôs os dois a chorar Por falta de aptidão O pobre Pires não serviu Oh cruel desilusão Dum sonho que assim ruiu Impossível compreender Semelhante desventura; Deixa o Zé triste a valer, Pelas ruas da amargura Mas por mais que se incomode, Já nada pode mudar; É que ali manda quem pode, Custe isso, a quem custar! Tornou o Pires para a terra E o Zé pra Vila Franca: Quanta amargura encerra A lágrima de não se estanca Viu pois partir o Zé E outros no camião Já fardado, de boné. Pró local da instrução A Vila Franca chegados Era já noite cerrada E ao mando de arvorados Se instala a marujada Novas formas de lidar, Algumas vozes troando; São instrutores a berrar E a malta via marchando. Mas há coisas esquisitas Que podem acontecer Pois parecem estar previstas Para nosso padecer.

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Logo, logo ali chegado, Coube ao Zé virar rancheiro; Para isso foi escalado, Mais um outro companheiro Entre tachos e panelas Andava algo confuso Mal sabia pegar nelas, Pois disso nunca fez uso. Um dia, Oh santo Deus Também já noite cerrada Tombou o rancho dos “seus”2 Cai-lhe a papa na parada Coitado, foi castigado... “Três privações de saída” Por derramar o guisado, Ou lá que era a comida! Pregou c´os bifes no chão, O tenente estava a ver Passou-lhe ali um tal sermão Deixando o Zé a tremer Quem dera desarvorar P`ra qualquer lado, às cegas Confuso por estuporar O jantar dos seus colegas Mas vejam só a fineza Do porte de tal tenente Resolve mandar p`rá mesa Areia e terra aderente Energúmeno sujeito Pensa o Zé, do figurão Por achar muito bem feito Comermos os bifes do chão

2 Os 8 indivíduos da sua mesa

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Mais tarde no refeitório Havia um certo sussurro E pró Zé era notório Que a coisa cheirava a esturro Sentia rilhar a areia Nos dentes dos arranchados E pensa ir p´rá cadeia Por danos daí esperados Não se lhe varre da ideia Que preso, vai de certeza Se esta maldita ceia Provocar a diarreia Nos oito gajos da mesa Mas, a sorte já está escrita “Por quem nos faz os destinos”; E esta papa maldita Lá passou nos intestinos. Tudo rolou, passou E o Zé se fez mais forte; Ginasta se revelou “Dos melhores, idos do Norte”! Três meses ali passara Em trampolins a voar Até alguém lhe chamara Um atleta invulgar3 Depois, adeus Vila Franca, O Zé para Aveiro marchou Já o comboio arranca; Já três vezes apitou. Parte pois o Zé, do Sul, Mas agora marinheiro, Lá vai ele de farda azul, Senhor do mundo inteiro!

3 Palavras de um instrutor de Vila Franca, de nome Gouveia.

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Alguns apontamentos Históricos da Aviação Naval4

É óbvio que muito há que dizer sobre a História da Aviação Naval,

mas essa análise aprofundada, como é devido, não caberia, propriamente,

no âmbito deste modesto trabalho. Transcreverei, entretanto, o seguinte,

sobre os primórdios desta Arma da Marinha de Guerra: A Aviação Marí-

tima

“Em 1912, Bento Carqueja, fundador de “O Comércio do Porto”

adquiriu um biplano francês. Destinava-se a fazer voos para angariação de

fundos para a manutenção das creches daquele Diário”.

“Em 1916 foi criada a Escola de Aviação Militar em Vila Nova da

Rainha. Aí surgiu um outro biplano baptizado de “casta Susana”.

“Em 1910 um aviador francês Mamet fazia voos em Belém, a uma

altura de 50 metros”.

“Foi no avião do Fundador de O Comércio do Porto que Gago Cou-

tinho voou pela primeira vez, a convite de Sacadura Cabral, instrutor em

Vila Nova da Rainha. Este avião acabou despedaçado num desastre, mas

Sacadura e o Alferes Pinheiro Correia saíram quase ilesos.”

“Pode dizer-se” – continua a sua narração o Capitão Duarte –, “que

a Aviação Marítima começou a ganhar corpo nas noites tropicais africanas

quando Sacadura Cabral e Gago Coutinho, longe ainda do maior feito da

Aviação Portuguesa, se dedicavam à tarefa de medições geodésicas.

Gago Coutinho era, em 1907, o chefe de uma missão em Moçambique

onde ambos se encontraram pela primeira vez, criando-se então profun-

das raízes de amizade.” “...trabalharam juntos de 1907 a 1910”. Sacadura

Cabral “regressou a Lisboa em 1915 e concorreu à Aviação, uma nova

arma que despontava, sendo brevetado em Chartres, na França”.

4 Segundo a Obra do Capitão Joaquim Nunes Duarte – Hidroaviões nos Céus de Aveiro.

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A primeira escola de pilotagem no nosso país funcionou em Vila

Nova da Rainha, onde Sacadura Cabral recebeu, em 1916, a visita do seu

ilustre amigo Gago Coutinho. Pela primeira vez, voaram juntos, os dois

amigos.

Passados poucos meses foi criada a Aviação Marítima por iniciativa

de Sacadura Cabral com Bases em Lisboa (Bom Sucesso), Aveiro (S.

Jacinto) e Faro (Ilha da Culatra).

Também por iniciativa de Sacadura Cabal e segundo um acordo

com o Governo Francês, foi instalada uma pequena esquadrilha em S.

Jacinto. “A aviação Naval Francesa decidiu-se pelo espelho de água da

Ria de Aveiro”.

No dizer de um Senhor Daniel Constant – com quem o Capitão Joa-

quim Nunes Duarte ainda conversou em Aveiro – “A Ria naquele tempo

era plena de barcos, coalhada de velas, um verdadeiro sonho...”

No ano de 1918 os franceses retiraram-se definitivamente de S.

Jacinto para a sua terra natal e, em 8 de Dezembro, procedeu-se à entre-

ga solene do Centro de S. Jacinto com todos os aparelhos e equipamento.

Logo de seguida, deu-se a revolta no Porto, a “Traulitânia”. Implan-

tação da Monarquia do Norte – que apenas durou 25 dias. Os aviões de S.

Jacinto entraram imediatamente ao serviço. As tropas revoltosas avança-

vam em direcção ao Sul, pelo que as estradas de Aveiro eram atravessa-

das pelos seus veículos. O caminho-de-ferro era também usado pelos

trauliteiros. Os aviões de S. Jacinto entraram na contenda pelo lado do

Governo Republicano, lançando primeiramente panfletos sobre a cidade

do Porto e, depois, bombardearam a linha do C. Ferro ali por alturas de

Espinho.

Sacadura Cabal fez parte na primeira linha, pelo que foi louvado por

Portaria de 15-10-1919.

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Em 1920 chegaram da Inglaterra os aviões «F-3», construídos e

adaptados a largos voos com vista à I Travessia Aérea do Atlântico Sul.

A dada altura Sacadura Cabral pediu a Gago Coutinho que viesse

de Lisboa de comboio para saírem de Aveiro para Lisboa de avião. Todos

estes gestos eram preparativos para a travessia Lisboa- Madeira.

Assim aconteceu e sobre isso, são as seguintes as palavras de

Sacadura Cabal: “Com a violência da nortada que fazia e auxiliado pela

mareta que se tinha formado na Ria de Aveiro, o hidroavião descolou

como nunca o vira descolar...”

Como já se disse, o Zé veio da recruta de Vila Franca de Xira para a

Escola de Aviação Naval de S. Jacinto.

Esteve nesta Unidade dois anos como telefonista da Base e, agora,

vê, com curiosidade, que, só muito recentemente, através da Obra do

Capitão Duarte se apercebeu que, sobre a história da aviação e da história

da própria Unidade, nada se disse.

Ora, um dos mais encantadores atributos daquela Unidade e conse-

quentemente da laguna de Aveiro intimamente ligadas, é, exactamente, a

presença do glorioso Aviador português, Sacadura Cabral. Isto, obviamen-

te, sem o mínimo desprimor para tantos outros obreiros que o próprio Zé

conheceu, alguns, em pessoa. Mas nem mesmo desses se falou; da sua

carreira, do seu contributo.

No que respeita a Sacadura Cabral, mercê de ser um herói destaca-

do da nossa História, foi-nos “apresentado” - nessa qualidade -, na Escola

Primária. Foi então que muito mais tarde, agora marinheiro em S. Jacinto,

o Zé se apercebeu de como os heróis ficam desprovidos da humanidade

do homem vulgar, que teimosa e aturadamente, conseguem atingir os

seus objectivos. Objectivos que, sem dúvida, não são ganharem louros

que, por bem, mais tarde lhes atribuímos.

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Por tudo isso, é muito gratificante para o Zé saber agora, que, neste

lugar maravilhoso – Aveiro e a sua Ria – foram feitos todas as experiên-

cias e ultimados os últimos preparativos, para que, os heróis Sacadura

Cabral e Gago Coutinho, se prepararam para a travessia do Atlântico Sul,

que tão alto brado deu.

Apenas como ilação, desta falta de comunicação, que normalmente

não fazemos, de viva voz, apoiados nas nossas tradições, - seja qual for a

área da vida em que nos inserimos, desenraíza-nos uns dos outros, afas-

ta-nos das raízes, que são afinal a razão de ser do nosso presente. É

óbvio que esta falta de informação que o Zé aqui refere, longe de ser um

reparo a quem orientava os recém-chegados grumetes, é apenas a invo-

cação de um lugar-comum extensivo a áreas da maior importância da vida

dos povos, o que, no caso português nos situa numa improvisação cons-

tante, num individualismo sempre crescente.

Contudo esta forma de ver as coisas da parte do Zé, fica, por agora,

compensada com a notícia extra do Capitão Duarte, talvez o Zé particula-

rize um pouco a questão, porque, de alguma forma partilhou, ainda que

muito modestamente, da realidade dos factos enquanto grumete da Uni-

dade de S. Jacinto. Na verdade o Zé fez parte da guarnição da Escola e

até teve a sorte de estar presente na visita que o Almirante Gago Coutinho

fez à Unidade, em 1946.

A esse respeito, o Capitão Duarte diz no seu livro:

“Em 1946, o Almirante Gago Coutinho visitou a Escola com o seu

nome. Foi a última vez que o ilustre marinheiro esteve em S. Jacinto, onde

foi recebido pelo Comandante Cardoso de Oliveira e por toda a guarnição

que o acarinhou de modo especial.

Depois de uma cerimónia no hangar, com o outro herói da Travessia

a tecer elogios a Sacadura Cabral, seu companheiro de viagem, o pessoal

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ligado ao voo transportou-o pelo ar, sentado numa cadeira, o patrono da

Escola que agradeceu, comovido, a manifestação de carinho e simpatia”.

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MARAVILHOSO CENÁRIO DA NATUREZA

O Zé chegou a esta Unidade da Marinha no mês de Abril, tempo em

que tudo o que há para florir, já floriu.

Os espaços verdes da Unidade e, igualmente, a mata que se esten-

de até às praias de S. Jacinto, já se tinham revestido do amarelo vivo das

acácias e dos variadíssimos verdes dos arbustos. Foi interessante deparar

com o asseio da Unidade nomeadamente o impacto que causava o

esbranquiçado arenoso das ruas, a contrastar, fortemente, com o verde-

escuro das árvores que, cerradamente, as ladeavam.

Além disso, era a novidade da visão que se teve da grande exten-

são da laguna – a Ria de Aveiro –, a beleza dos moliceiros sulcando as

águas da ria – vela ao vento –, o movimento dos aviões levantando e des-

cendo na Ria e no campo, o espectáculo das acrobacias dos Tigers em

céu azul, a azáfama nos hangares, tudo isso constituía, para o Zé e para

os demais recém-chegados, algo novo, encantador. O Zé sentia em tudo

aquilo, toda uma “promessa de bem-estar”, o que veio a ter o melhor des-

fecho.

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Escolha dos Recém-chegados

Estamos numa formatura. A formatura dos recém-chegados. O

Senhor Comandante escolheu... “pela cara” (!) – palavras suas – os gru-

metes que haveriam de ocupar os diversos lugares, na Unidade.

Pela cara ou não, o grumete 7004/46, foi mandado para o P.B.X. e,

se sorte tivera, desde logo, em ficar isento de fazer guardas à Unidade,

sorte muitíssimo maior, o esperava na linha telefónica. É que a miraculosa

linha telefónica, haveria de levar a sua voz e, um pouco mais tarde, os

sons da sua guitarra a lugares que, o seu destino, não se poderia imagi-

nar.

Um telefonista-guitarrista na linha!

E foi pela cara, disse o Comandante! Mas como é que se percebe,

por exemplo, que o Zé tinha cara para telefonista!? Como é que Coman-

dante podia descobrir, pela cara, que o Zé era guitarrista!? E como é que

se poderia saber que, só a guitarra poderia atrair – e não as vozes de mal-

afamados marujos – as meninas da rede telefónica de Aveiro!?

E, também, como foi que o Comandante descobriu – pela cara –, na

mesma formatura, um grumete para pastor!? Exactamente, um grumete

recém-chegado de Vila Franca para pastorear um rebanho que, nem sei

porque carga de água, existia na Aviação!?

Mas deve dizer-se que o grupo ali presente não era lá muito dotado

profissionalmente.

Risada geral foi quando o Senhor Comandante perguntou a um

deles, o 7009/46: Qual é a sua profissão? Este, estranho a tudo que ali o

esperava, talvez nervoso, o que nós víamos era uma cara aflita, sobrance-

lhas em jeito de asa delta, acabou por responder: “minha profissão, é pro-

prietário”.

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O Senhor Comandante sorriu e disse:

– Se eu fosse proprietário, não andava aqui, meu amigo.

Mas, interessante foi também aquela abordagem estratégica do

Comandante inteligentemente guarnecida de regalias que não eram para

desprezar, tão só para desencantar na mesma formatura um qualquer

grumete que, sem dúvida tinha saído de casa para ir para os mares e que

ali o estavam a aliciar para ser um marinheiro pastor!!! Bom. Diga-se que o

convite era tão descabido, como tão descabido e insólito seria um rebanho

de carneiros numa base de aviões! Seja como for, nunca se ouvira falar de

pastores marítimos pelo que só um voluntário poderia fazer tal milagre e

exercer a função. O certo é que o grumete de cara corada e redonda

aprumou-se e disse: “Aceito eu, Senhor Comandante”.

Ao fim e ao cabo, o rapaz não tardou a descobrir que tinha uma

imensa mata para descansar à sombra das acácias e dos pinheiros, desde

manhã ao sol-pôr; que, com jeitinho poderia até refrescar-se na praia; que

não fazia guardas; que tinha direito a licenças extra. E tudo isto para pre-

miar a humildade e a solidão do “pobre” pastor.

Pois é; o tempo corria normalmente e, a dada altura, o Zé prevari-

cou, e o Senhor Comandante castigou. Seis guardas de castigo. Azar.

Pior, ainda, porque o raio do castigo logo foi incidir nas festas de S. Jacin-

to, e isso era, para o Zé, o pior dos contratempos.

De facto nunca ninguém soube que o 7004/46 dessas seis guardas,

só fez duas. É óbvio que isso daria um castigo muito maior mas... o Zé

não faltou à festa. O Zé diz agora estas coisas porque as infracções cadu-

cam ao fim de... 50 anos. O Zé pede desculpa ao Comandante que estima

e ao Sargento que não topou a jogada.

Costuma dizer-se: “quem tem amigos, não morre na cadeia”. Pelo

que o ditado não pode estar melhor aplicado.

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O Zé tinha uma quantidade de colegas a fazerem o seu serviço,

quando dessa ajuda precisasse. Mas essa ajuda resultava afinal de uma

troca de serviço, mais ou menos, à margem das Ordens de Serviço. O Zé

é oriundo do Alto Douro, longe, portanto, de casa, pelo que passava, nor-

malmente, os fins-de-semana no quartel. Deste modo, nada lhe custava

fazer o serviço que cabia a colegas moradores nas redondezas. Mas havia

uma outra razão bastante mais preponderante que levava o Zé a ficar, de

bom grado, de serviço, no P. B. X, ao fim de semana.

A guitarra e a voz do Zé já de há muito eram conhecidas e mesmo

acarinhadas pelas meninas da rede, de modo que aquelas tardes, no

segredo que permitiam as desabonadas5, eram ouro sobre azul. Assim o

Zé descobriu que entre essas telefonistas estava a sua namorada e mais

tarde a sua mulher.

Talvez seja a altura de dizer que o Senhor Comandante não era

pessoa para brincadeiras, era extremamente exigente em tudo e consigo

mesmo.

Porém, se aplicou um castigo ao Zé por o ter encontrado a fazer chi-

chi por detrás da Casa da Guarda, foi extremamente benevolente quando,

um dia, vindo à Base num fim-de-semana, fez que não viu o Zé no P. B.

X., no Edifício do Comando, a tocar guitarra para Aveiro. Não sabe o Zé a

que santo deve esta falta de visão do Comandante, pois a irregularidade

do Zé era grave, se levada em conta.

E se algum dia o Senhor Comandante, hoje Almirante, ler estas

palavras, o Zé crê que lhe desculpará todo este tom de brincadeira, com

que agora fala destas passagens.

Ainda quanto á situação atrás referida, Senhor Almirante, nem ima-

gina a aflição do 1º marinheiro, Senhor Paula, ordenança ao oficial de Ser-

5 Fins-de-semana, de 6ª a 2ª

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A Ida do Zé para a Marinha

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viço, quando, de olhos esbugalhados, chegou à porta do PBX a dizer ao

alegre tocador: – Ai “4”, você está desgraçado!

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A Ida do Zé para a Marinha

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Outra ocorrência

Esta talvez mais preponderante na caminhada que o Zé percorreu.

A dada altura a marujada de S. Jacinto, deu em falar telefonicamen-

te para Aveiro, com grande frequência.

Telefonemas motivados pelas mais diversas razões, mas, na sua

grande maioria, contariam histórias de estroinices, de rebaldaria, dizíamos

nós, algumas bem conhecidas na praça pública, o que justificava, afinal, a

má fama dos marinheiros “Oh Homens de caserna – diziam – cuidado com

essa ralé!”

Bom; essa ocupação exagerada do telefone mereceu reparo do

Comando o que levou a determinadas restrições.

Um dia o Zé estava a telefonar, e o Senhor Comandante Ferrer viu

e, interferiu dizendo:

– Vossemecê foi chamado ou chamou?

O Zé, já em sentido, respondeu:

– Senhor Comandante, por acaso fui chamado.

– Sabe – diz ele –, ainda que não referissem o seu nome, disseram-

me que os telefonistas estão sempre a falar para o exterior.

Mas o Zé disse-lhe com todo o à vontade:

– Senhor Comandante, informaram-no mal, porquanto, ninguém, na

Unidade, fala mais que eu. – E continuando – a diferença estará, certa-

mente, em que, os meus telefonemas, não passam da Central Telefónica

de Aveiro.

O Comandante, ao ver tanta clareza, sem ponta de constrangimen-

to, respondeu, da porta entreaberta:

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A Ida do Zé para a Marinha

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– Sim senhor; assim é que se fala! Dali vai para o seu gabinete e, a

breves momentos, voltando, abre a porta, simplesmente para dizer de

novo:

– Sim senhor; assim é que se fala! E sabe que mais... A mim, nem

me aquece nem arrefece.

E com essa se foi.

Escusado será dizer que o sucedido causou, digamos, uma certa

simpatia mútua.

Haveria muitos e variados episódios ocorridos em S. Jacinto, não só

aqueles em que o Zé foi protagonista, mas também muitos outros, que

primam pelo seu impacto humorístico.

Porém, para não alargar demasiado o rol das suas recordações, o

Zé, aponta apenas dois desses momentos hilariantes.

Um, que se prende com a amostra de uma refeição, em que, um tal

grumete – o 6937/45 – nos proporcionou uma cena de alta comédia, ainda

que demasiadamente atrevida; outro, uma cena maluca do grumete

7018/46 numa visita guiada à Escutaria da Base.

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A Ida do Zé para a Marinha

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A malandrice dum Rancheiro

Na Marinha nenhuma refeição é servida sem se obter a aprovação

do oficial de serviço.

Para o efeito, o cozinheiro prepara uma pequenina refeição, incluin-

do um pouco de tudo que vai parar às mesas. Essa amostra é levada ao

oficial de serviço, esteja este onde estiver, sem o que a refeição não é dis-

tribuída.

Mas há uma preocupação de que todos partilham que é fazer che-

gar o comer às mesas, tão rapidamente quanto possível, para que chegue

quente.

Ora o que aconteceu naquele dia foi que o oficial de serviço, um

tenente já bastante alquebrado, talvez devido à idade, mas não só, pois

dizia-se que o senhor, uma vez por outra, bebia um copo a mais; o caso é

que o oficial tinha já deixado o seu gabinete e recolhido à messe dos ofi-

ciais.

A messe dos oficiais dista dos refeitórios entre os 100 e os 200

metros. Os dois edifícios estão situados praticamente nos topos de uma

avenida ladeada de árvores.

A amostra foi pois levada àquele oficial pelo dito grumete, tal como

mandam os “cânones”, mas o velho tenente, talvez com as ideias muito

pouco claras, disse para o grumete: “prova tu”.

É aqui que começa a insólita comédia que o “safado” do grumete

engendrou.

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A Ida do Zé para a Marinha

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Sempre na ideia de que o comer arrefecesse o menos possível, era

costume o rancheiro acenar lá de longe, à saída da messe, com um gesto

convencionado que significava o “pode seguir”; precisamente a frase que

os oficias de serviço dizem, no caso de aprovação.

Mas naquele dia, algo de estranho se passava, dada a atitude do

safado do grumete, que se limitava a percorrer o caminho, na maior das

calmas, sem emitir o mais pequeno sinal.

Na ponta de cá da avenida, o Sargento de dia e os restantes ran-

cheiros interpelavam-se mutuamente e bradavam: “então pá!?

Era já audível a voz do descarado grumete, e só lhe ouvíamos dizer:

calma meus senhores, calma meus senhores.

O sargento, perplexo, dizia: – então pá, estás maluco ou quê!?

Mas o “pato bravo” só pedia calma e assim lá ia passando, agora,

entre nós.

Perplexos, todos vão atrás dele, à frente o Sargento Gusmão. Toda

a gente entra, finalmente, na cozinha.

Aí o rapaz pousa, ostensivamente, a caixinha da amostra em cima

duma mesa de mármore e, com o maior dos desplantes, põe-se a provar e

a saborear, coisa por coisa, enquanto o sargento Gusmão, estupefacto,

desconcertado, fulo, já a dizer que ia participar dele.

Finalmente, o grumete, mal acabou o meio copo de vinho da amos-

tra, dá um forte estalido, com a língua, e diz, alto e bom som: PODE

SEGUIR.

O sargento, pessoa de trato agradável, mas perplexo, fora de si,

acaba por dizer ao grumete que ia participar dele, etc.

Resposta do descarado: “Não sei porquê, senhor sargento; eu ape-

nas estou a cumprir uma ordem”.

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O 7018/46 e a Metralhadora Enferrujada

O outro caso

Quando chegamos à Escola de Aviação Naval, coube ao Senhor

tenente Rego – uma pessoa calma e extremamente educada – mostrar

aos recém-chegados a Escutaria da Base.

Para quem não sabe, aí se guardam armas e munições, e, neste

caso, a par do armamento operacional, estavam também ali, umas armas

mais ou menos antigas, expostas, digamos, como se de um museu se tra-

tasse.

O tenente ia dando as suas explicações, e o grupo, seguia-o com a

devida atenção.

A dado momento, deparámos com uma metralhadora muito antiga

que o tenente passou a descrever: características e história da velha

arma.

No fim, resumindo, acabou por dizer que, apesar de haver ali outras

armas, também antigas, aquela metralhadora, era a única peça que não

funcionava; isto não só porque ficara parcialmente destruída, mas, tam-

bém, porque era de todo impossível, encontrar as peças que lhe faltavam.

O 7018/46 – que não batia a cem por cento – mal ouvira dizer que a

peça não tinha conserto, vira-se rapidamente para o tenente, já com a

mão estendida, como quem quer selar um contrato, dizendo: – “Vale uma

aposta, senhor tenente!?”

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O ZÉ NO CORPO DE MARINHEIROS DA ARMADA

O Alfeite é a Unidade da Marinha que movimenta mais gente. O Zé

esteve ali pouco tempo, o que acontece com todos aqueles que desejam

ser destacados para os navios e outras Unidades, existentes por todo o

país.

Dessa Unidade, o Zé poderia contar complicadíssimas histórias da

marinhagem, que partilhavam a sua vida maruja com faias e brigões,

alguns bastante perigosos, pelos bairros mais prostituídos de Lisboa.

Em jeito de pormenor, diz-se que, é a esta Unidade que chegam e

dela partem, marujos que têm a cumprir castigos mais severos, que aque-

les que, normalmente, são cumpridos nas próprias Unidades. A propósito

da prisão de um desses afamados marinheiros chulos e brigões, o Zé

assistiu à cena que descreve a seguir.

UM GESTO DE CONFIANÇA EXTREMA

Está ainda nas lembranças do Zé, uma cena que muito tem a ver

com princípios de honradez, ética e companheirismo, praticados por um

desses marujos. É facto que existe entre a marujada um espírito de ajuda

mútua mesmo que essa ajuda exija zaragata na rua, ou mesmo, interna-

mente, encobrimento de faltas. É amigo, está dito. Seja grumete ou oficial!

Um dia saiu do Alfeite, um desses marinheiros rufias de primeira no

meio lisboeta para cumprir uma pena grave que exigia prisão, no Forte de

Elvas.

Nestes casos é nomeada uma escolta armada composta por um

Cabo e um Marinheiro, que acompanha o preso ao destino. Diz-se, e o Zé

ouviu isso várias vezes, que é da ordem que a escolta seja penalizada se

acontecer uma fuga.

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Bom; o certo é que o Zé viu partir do Alfeite para Lisboa os três

homens e, tendo vindo de licença, para a cidade, voltou a encontrá-los –

esteve com eles algum tempo –, na Estação do Rossio. Ali aguardavam a

hora de partida.

Foi nesse momento que o Zé assistiu à cena mais “desconsertante”,

que se possa imaginar; um gesto de incrível solidariedade e confiança

mútuas, apenas baseado na honra e na tal protecção mútua entre mari-

nheiros.

O marinheiro preso conhecia muito bem o grau de responsabilidade

dos que foram encarregados de o levar ao presídio. O cabo e o marinheiro

sabiam que o preso era um dos “gabirus” mais credenciados do Bairro

Alto.

Pois, não é que o Cabo e o Marinheiro, acreditando que aquele

marinheiro cumpriria rigorosamente o seu dever, acederam ao seu pedido

que era deslocar-se livremente ao Bairro Alto para se despedir da amante,

com a promessa de que se não atrasaria da hora da partida do comboio

para o Forte. E foi o que aconteceu.

O Zé ainda recorda a recomendação do Cabo: Vê lá pá, não me

deixes ficar mal... Vai lá, vai lá. Pois o rufia, habituado a desmandos de

toda a ordem, lá estava, certinho, à hora da partida do comboio.

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Centro da Aviação Naval em Pedrouços

Esta foi uma das bases da Aviação Marítima, criada também sob a

influência de Sacadura Cabral em 1916.

Em 1947, tempo em que o Zé aqui prestou serviço, era um Centro

de grande movimento, ainda que muito mais modesto que a Base de S.

Jacinto. Foi extinto, como a própria Aviação Naval, em 1952.

Sendo que este trabalho pretende, acima de tudo, recordar passa-

gens mais ou menos pitorescas, o Zé recorda uma partida – uma malan-

drice, melhor dizendo, ocorrida nesta Unidade da Marinha.

Certo dia, o rancho era, carneiro estufado, ou coisa assim.

O cozinheiro amanhou o animal e, deitou para o bidão do lixo, cabe-

ça e olhos, tudo esfacelado, obviamente.

Ao saberem da existência da cabeça do carneiro, os brincalhões

combinaram e decidiram engendrar uma tremenda partida que, por pouco,

ia deixando um Sargento-Ajudante, entre a cruz e a caldeirinha. Combina-

dos, uns três ou quatro Cabos, retiraram do lixo a cabeça e os olhos e,

com essa amálgama ensanguentada, encenaram um tremendo desastre,

por detrás dos aviões.

Empurraram uma quantidade de latas e tambores, o que fez as pes-

soas correr para o local. Aí o Sargento, induzido a correr à frente, deparou

com a cara do mecânico esfacelada e os olhos pendurados!

O homem ficou doido. Apavorado, fora de si, andou por ali às voltas,

até que deu em correr, na direcção do gabinete do Oficial de Serviço, em

altos brados, pedindo socorro.

Os mecânicos, vendo que tudo aquilo foi muito para além do que

esperavam – pois já o Oficial de Serviço corria, para o local do “desastre”

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–, decidiram esconder, rapidamente, a cabeça do carneiro e porem-se a

trabalhar, tão disfarçadamente quanto possível.

O Oficial chega ao local e, não vendo nada fora do normal, pergun-

tava o que se tinha passado.

Mas o pobre Sargento, se possível, ainda mais fora de si, confuso,

pois via o “filho da mãe” do cabo atingido com a cara limpa e sorridente,

desatou a gritar, de novo, bradando: Milagre! Milagre! Milagre, Senhor

Tenente! Milagre...

O Oficial de Serviço, vendo, desde logo, que se tratava de uma

grande maroteira, não terá querido, contudo, tirar a limpo o sucedido, cer-

tamente para não levar as coisas para o lado disciplinar. Daí que o caso

ficou por isso mesmo, acabando por ser conhecido, à socapa, aqui e ali.

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N.R.P. AVISO DE 2ª CLASSE JOAO DE LISBOA

Do Corpo de Marinheiros da Armada, no Alfeite, o Zé foi destacado

para o Aviso de 2ª Classe, João de Lisboa.

Não sendo já novidade para o Zé a normal convivência – alegre e

descontraída – da marujada, o recém-chegado achou que na guarnição

deste navio, além da habitual descontracção, havia um certo toque pater-

nal por parte de um bom número de veteranos, que de há muito faziam

parte da tripulação deste navio.

No parecer do Zé, essa característica “paternal”, é adquirida num

longo período de tempo dos marinheiros em cada uma das Unidades. Por

outro lado, há também grande receptividade da parte dos mais novos por

esse mesmo ambiente familiar.

O Zé tem gratas recordações do navio, João de Lisboa.

Assim à distância, quando recorda a passagem por este navio, tem

a sensação de que, em tempos idos, teve uma vivenda em pleno Tejo,

frente ao Terreiro do Paço, com um gasolina6 à “porta”, no qual se deslo-

cava, quase diariamente, à cidade, pelo entardecer, e ali regressava pela

meia-noite.

A propósito do regresso, isto é, se por qualquer motivo não chegas-

se a tempo do embarque, lá estava uma cama à sua espera – por cinco

escudos – no Arsenal da Marinha.

Mas, no dia seguinte de manhã, lá estava, de novo, no cais, o trans-

porte que havíamos perdido, de regresso a “casa”.

A propósito, e porque umas recordações trazem outras, o Zé tem

presente o perfil e o ambiente de Lisboa nesse tempo.

6 Uma lancha

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Lá estava a Praça da Figueira, os cafés no Rossio, o Cinema Galo,

na Avenida da Liberdade (preço único 2$50 (?)...) enfim, uma Lisboa fami-

liar e pacata tal como é retratada nos filmes portugueses dessa época.

Importa dizer que o Zé acabava sendo conhecido de muita gente em

várias unidades da Marinha, muito mais por tocar guitarra portuguesa -

razão pela qual estava sempre rodeado de ouvintes.

Um dia, já noite dentro, o Zé deu por si a falar na coberta do navio

sobre os valores e os efeitos da doutrina cristã.

Isso aconteceu uma única vez.

A dado momento, o Zé terá dito algo semelhante a isto: o cristianis-

mo praticado, constitui o meio mais seguro de levar uma vida equilibrada,

evitando problemas como, por exemplo, os de alguns filhos da escola, lim-

pos e sadios ao chegarem das suas terras à recruta, em Vila Franca, e

agora mergulhados na prostituição, feitos chulos de infelizes prostitutas,

ou assumidos rufias, dos bairros de Lisboa.

Mas o Zé, ao referir esses valores, terá dito essa disciplina cristã,

também ele, a não a cumpria.

Houve naturalmente observações, perguntas e respostas, mas do

que o Zé se recorda é de um alentejano, falando alto, entre os presentes

disse: – Ouve lá, ó “4”, então se tu sabes que o cristianismo é assim tão

importante porque não o cumpres tu!?

O Zé respondeu: – Olha pá! Quanto ao valor do cristianismo de que

falo, ele pode ser o caminho mais perfeito para o equilíbrio do homem e da

humanidade. Por que o não cumpro, o que te digo é que estou a tentar, e

nisso me sinto fortemente empenhado.

O alentejano olhou, pensou e disse: – Está bem, “pá”; satisfaz-me a

resposta.

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O Zé achou curiosa esta resposta do alentejano. Mas, interessante

foi que na semana seguinte, depois de ter vindo de fim-de-semana diz ele:

– “Ó “4”; sabes, tu que fui à missa no Domingo, com a minha irmã!?”

Entre a guarnição havia um velhote pachorrento, protestante, que

gostava de trocar ideias e pontos de vista com o Zé e um Sargento-

Ajudante, ateu, um durão, ar grave, que dizia com ênfase: – “se alguém

fizer mal a este indivíduo terá que se haver comigo.”

Bom! O Zé, a dada altura, foi destacado para o Navio Escola Sagres

para se integrar na tripulação que partia para a América do Norte.

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O NAVIO ESCOLA SAGRES

Ser destacado de uma qualquer Unidade da Marinha para o Navio

Escola Sagres, nomeadamente com o fim de participar das suas viagens,

torna-se necessário que, para além das especialidades fundamentais

como seja, por exemplo o caso dos fogueiros, os marinheiros de manobra,

etc., os candidatos terão de possuir determinados atributos, como seja,

por exemplo, ser músico e ser necessário na charanga de bordo ou mes-

mo do grupo de jazz. Ser, por exemplo, barbeiro, alfaiate, etc.

Mas, porque o número de elementos da tripulação é sempre limitado

e as eventuais aptidões artísticas são raras, disso resulta que, muitíssimo

poucos marinheiros têm a oportunidade de viajar naquele navio.

Na realidade, a Sagres, e mesmo os outros navios que partem em

viagem mundo fora, ficam muito fora das aspirações da quase totalidade

dos marinheiros em geral.

No caso do Zé, tinha aptidão para ser destacado para a Sagres ao

abrigo da sua veia musical, tal como o fora um acordeonista do seu ano. –

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Afinal o Zé foi desde logo integrado no grupo de Jazz de bordo. Mas não

foi por essa via que o Zé foi do João de Lisboa para a Sagres.

Estava já havia dois anos na Marinha sem nunca se lhe ter propor-

cionado uma saída da barra, sequer; pois havia navios patrulha, como S.

Miguel, por exemplo, navegando entre portos ao longo da costa portugue-

sa.

O que aconteceu foi que, num qualquer Domingo do ano de 1948, o

Zé foi à missa – como era seu hábito – por acaso à Escola Naval do Alfei-

te, dado que o João de Lisboa estava fundeado ali perto, no Mar da Palha.

Terminada a missa e ainda na presença de uns quantos marinhei-

ros, o Zé pediu ao capelão que, para quem não sabe, é também um oficial,

o Cónego Correia de Sá, que lhe arranjasse forma de ir para o mar. Que já

tinha dois anos de marinha e ainda não navegara.

A sua resposta foi imediata, dizendo: – “Queres ir comigo à Améri-

ca!?... O Capelão tem direito a uma ordenança, por isso posso levar-te.

Pasmámos. Como é bom de ver, para o Zé foi ouro sobre azul.

Pois bem. A partir dessa viagem o Zé ficou portador de uma história

muito mais rica para contar aos netos. Disso se fará relato mais adiante.

Pode dizer-se que quando a Sagres sai a barra, vai, certamente,

para uma festa algures no mundo. Vai leve, vai ligeira, donairosa como

outro navio não há.

Isso mesmo se viu na Espanha – em Sevilha –, uma festa invulgar,

tanto quanto é invulgar juntarem-se, num festival, marinhas de sete

nações!

Aí se viu o impacto que tinha a elegância da Sagres, mais aquele

toque inconfundível de espiritualidade, que sobressai das vermelhas cru-

zes do Gama estampado no pano alvo das velas.

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Bom, o Zé está a fazer estas referências quando já cerca de cin-

quenta anos passaram sobre os acontecimentos e, acontece até que, essa

mesma Sagres, já há muito deixou os mares, cedendo a sua bela imagem

à sua sucessora.

Por isso parece importante deixar aqui, um resumo da sua história

deste navio de eleição.

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NAVIO ESCOLA SAGRES (II)

Construído na Alemanha em1896, de ferro, armou primeiro em gale-

ra e posteriormente em barca. Denominava-se RICKMER RICKMERS e

pertencia à marinha do comércio. Em 1912, já na posse de outro armador,

foi baptizado MAX.

Durante a I Grande Guerra, quando estava na Horta, foi apresado

pelo Governo Português tendo ficado sua propriedade com o nome de

FLORES. Foi incorporado na Armada em 1924 como navio-escola, com a

designação de SAGRES. Em 1962 foi classificado como navio depósito

com o nome de SANTO ANDRÉ.

A Sagres foi entregue à Associação alemã “Windjammer fur Ham-

burg” no dia 28 de Abril de 1983, que entregou como contrapartida o Polar.

Durante os 36 anos que navegou com a bandeira de Portugal, efec-

tuou o equivalente a dez voltas ao mundo. As Cruzes de Cristo ostentadas

nas velas redondas e na mezena tornaram-no célebre e inconfundível em

todo o mundo, tradição que se mantém com o seu sucessor, a Sagres III

O velho navio-escola SAGRES é hoje um navio-museu no porto de

Hamburgo com o primeiro nome, RICKMER RICKMERS, no qual se pode

apreciar a história da construção de veleiros, a vida e o trabalho dos

homens do mar na passagem do século, documentos da história das via-

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gens marítimas à vela, bem como exposições temporárias sobre temas

relacionados com assuntos do mar.

Tem uma exposição permanente portuguesa com uma vitrina com o

modelo da Sagres, 36 fotos da actividade do veleiro e dos dez comandan-

tes que por ele passaram e o trofeu da vitória da regata entre Brest e

Tenerife, em 1985.

Características

Deslocamento: 2116 tons.

Comprimento: 96,85 m.

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Viagem à América do Norte 1948 Rota: Lisboa – Porto Santo – Madeira – Cabo Verde – Boston – Providen-

ce – Provinceton – New Bedeford – Nova York – Lisboa Ao largo no Rio Tejo Paira a Sagres ancorada; Barco mais belo não vejo, Na frota da nossa Armada! Se no Tejo é sedução Encanto da Marujada, Lá no mar é uma visão, Pelos céus emoldurada Todos dizem, quem me dera, Ir na Sagres viajar; Mas nem toda a gente espera, Tal sonho realizar Suas velas enfunadas Ostentam a cruz do Gama Deixam gentes encantadas Inda mais que sua fama Passei já S. Julião, Para trás deixei Lisboa; Agora com emoção, Navego na sua proa Já ao longe fica a barra, P’rá frente fica a Madeira; E o Zé tange a guitarra, Pelos mares, a vez primeira.

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Há silêncio... é mar chão. Um convés enluarado, Nesta cena a guarnição Repousa escutando o fado Passa lenta a branda aragem Pelas cordas da guitarra Vem de Lisboa a mensagem De certas noites de farra Voz do fado nas vielas, Nas tasquinhas de Lisboa Escutado à luz de velas, Ante um quadro de Malhoa.

Como é de calcular, nessa multidão maruja, oriunda de todas as

regiões do país, surgem indivíduos com as características mais diversas

que se possam imaginar. Isso é bem evidente desde logo na recruta em

Vila Franca e mais tarde no dia-a-dia. Assim é no Navio Escola Sagres.

Para não falar de todos os tiques e habilidades de cada um dos “engraça-

dos” que seguiam nesta viagem, o Zé apenas refere aqui, dois deles: o Zé

Rama e o “Cabo Zé”.

Este último, o 6969/46 - que nem sequer o Zé soube o seu nome, e

isto tão-somente porque o apelidámos, desde logo, em S. Jacinto – Aveiro,

de “cabo Zé”, e assim o tratámos toda a vida.

Tal alcunha adveio-lhe do facto de ter uma barriga avantajada, mais

ou menos semelhante à barriga do verdadeiro cabo Zé, um marinheiro já

velhote, fogueiro da Central Eléctrica daquela Unidade.

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O ZÉ RAMA

Mas nem só um triste fado Lhes serve de distracção; Um grande nome é citado Por muitos da guarnição Quem não conhece Zé Rama, Pela sua fantasia; De muito rico tem fama; Mas nem cheta possuía. Levantava fardamento, Parte dele, logo vendia; “Massa” tinha de momento Mas, meias ele não trazia! Nunca a bordo se detinha, Ir p’rá borga era seu fito E se uns escudos não tinha, Nem sequer p’ra uma sardinha, Sempre havia um companheiro, A pagar-lhe uma ginjinha Uma isca, ou peixe frito. As iscas sabiam bem. Sem elas era um vintém Quando metia batatas (que desgraça!) Trinta reis era um pratinho. Ai, um tipo nestas casas Enchia-se sempre de vinho O próprio Zé as comeu, na Rua do Arsenal. Por muito pouco dinheiro... Dormiria menos mal; Na Casa do Marinheiro. Na Rua do Arsenal. Mas, cinco escudos não tinha Para dormir nessa cama Lá vinha de manhãzinha! Extenuado de Alfama,

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A Ida do Zé para a Marinha

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Em Cascais diz que esbanjava Fortunas, lá na má vida Eram tretas que inventava Rambóias que imaginava Ao pernoitar na Avenida E quando a bordo contava Farras da noite passada Por salões da burguesia, A gente muito se ria Ao ver-lhe a farda cagada Da caca da passarada Nos bancos em que dormia!

A propósito de umas “meias” do Zé Rama.

Está ainda na lembrança do Zé, uma das mais engraçadas peripé-

cias deste indivíduo7.

Imaginemo-lo nas amuradas de bombordo ou estibordo, ou estira-

çado no castelo da Sagres, em tardes calmas, a contar façanhas suas, o

que muitas vezes acontecia, perante uma grande parte da guarnição.

“Um dia, dizia ele num desses momentos:- estava eu sentado num

dos bancos da Avenida da Liberdade, juntamente com umas “gajas”,

algumas delas, eu via pela primeira vez, e vejam o que me aconteceu.

Ainda hoje eu fico varado de vergonha. Agora mesmo, ao contar-vos

esta “barracada”, sinto arrepios na espinha.

Ora oiçam. Oiçam e prestem atenção, se tenho ou não razão!

7 Deve-se dizer que a descrição que aqui faço, dos contos do Zé Rama, não tem o rigor da letra,

como é óbvio; mas este Zé assegura que o espírito e o sentido que ele imprimia às suas histórias e patranhas são exactos.

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Ora, talvez porque tanta preambulação já não coubesse na paciên-

cia de um dos presentes, diz o gajo lá do meio: “Anda lá palerma. Conta lá

isso, e dá volta à conversa”.

O Zé Rama, com curto gesto sugestivo, diz apenas:- Cala a boca,

urso.

Um coro: “Vá lá Zé Rama, manda-o lixar.

Pois – continua finalmente o Zé Rama – estávamos todos mais ou

menos em roda quando, de momento, resolvi sentar-me e traçar a perna,

tudo em grande estilo, como quem evita, a todo o custo, amarrotar o vinco

do seu único fato de cerimónias; percebem?

Sim, claro... – Dizem, alguns.

– Era notório – continuou o Zé Rama – que o meu charme havia já

provocado grande impacto principalmente nas recém chegadas ao grupo,

ainda que me olhassem com discreto acanhamento.

– Bom. Retraídas talvez, mas, sem dúvida, embevecidas com o meu

patuá!

– Bem, vocês sabem que nisto de patoá, eu sou o maior.

Algumas risadas, e o Zé, retomando o fio da meada, disse, mergu-

lhado num profundo desalento

– Foi o “chico dos pipos”!... Uma bronca!..

Ponto. Mais uma assoreada geral.

– Tudo bem – diz o Zé Rama – Tenham calma pois, tinha acabado

de me sentar e, puxando a calça para evitar a joelheira, eis que me vem

junto, agarrado à minha mão, o cano da meia, em franja.

Foi o delírio da malta ali presente, pois toda a gente sabia que o Zé

Rama, pelo facto de vender uma boa parte do fardamento que mandava

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vir do Casão, nunca trazia umas meias inteiras. Daí os canos estuporados

de que fala.

Acabada a longa risada, o Zé continua:

– Todos olhavam para mim, isto para cúmulo da minha desgraça! É

que eu, momentos antes lhes tinha metido o “chaço”, dizendo-lhes que, na

noite anterior, teria gasto para cima de vinte contos, na borga, em Cascais!

Talvez não acreditam; mas não desejaria semelhante “encravanço”, ao

meu maior inimigo.

– Oh! c´um caraças. – continuou o Zé Rama, após terem acabado

as risadas – As “putas” das franjas a saírem cá para fora das botas e eu,

nem sei se branco se vermelho que nem um peru, suspenso que nem um

actor esquecido da deixa no meio do palco, nem, atinava com o que fazer,

mas arrependido de não me levantar imediatamente. Porém, estático,

aparvalhado, pus-me a atacar as malditas franjas, para dentro das botas,

já com cheiro a chulé, qual estrumeira ao sol.

A marujada apertava as mãos à barriga por tanto rir, enquanto o Zé

Rama, sério, com um ar de meter dó, esperava poder continuar.

– Fiquei louco – disse – Fiquei louco de raiva. Roguei pragas ao

destino. Parece que foi castigo; talvez por ter dito aquela malta que tinha

gasto “massa” a potes no Casino, e agora descobrirem-me a “careca” de

forma tão violenta.

– Ao ouvir – dizia ele – a risota escancarada daquelas gajas e os

“funfuns” das mais novatas... Oh! Meus amigos, antes a morte!

– Parece que foi castigo – dizia “contristado”.

– É que eu tinha dito àquelas gajas, entre elas aquela “especial” a

quem eu tinha já convencido que era ricaço lá na terra, e que andava na

Marinha contra a vontade da família, único herdeiro. Ó que caraças.

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A última vez que o Zé viu o Zé Rama, terá passado um ano após a

saída da Sagres, em Vila Franca, onde me disse que tinha ganho juízo, e,

tinha casado com uma mulher muito rica, dona de nove quintas no Algar-

ve, notem bem!

Entretanto importa dizer que, apesar dos seus problemas de carac-

ter financeiro, era um tipo sempre alegre, asseado, quanto baste.

Alcache, manta de seda, farda, o boné, calça fortemente vincada,

estavam sempre à altura da vaidade de ser marinheiro.

Além do mais esse Zé Rama era um bom tipo, ainda que matreiro,

gozão, amigo da reinação e da boémia.

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O PERCURSO DA SAGRES

ILHA DE PORTO SANTO

Gentes do Mar, Que partis de Lisboa , Bradai bem alto, “Terra à vista” Ao vislumbrardes, na bruma, a Ilha de Porto Santo! Tentai “escutar” e “escutareis” O Grito alvoroçado, que foi da nossa gente, Ao enxergar primeiramente, Porto Santo, dos navios do Infante. Tentai ouvir, e ouvireis, Esse brado português, Estranho, terrível talvez, Pois os medos se esvaíram, intrigados, Porque foram confrontados com uns “ seres “ tão atrevidos! Que coisa estranha, tal barco ! Serão deuses, Tristão e Zarco !?... E se deram por vencidos, Quedados bem escondidos, Por trás as ondas do mar!.. Tal fora o brado estridente Das vozes da estranha gente Chispando de crista em crista : “TERRA Á VISTA! TERRA Á VISTA!”

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ILHA DA MADEIRA (em 1948)

Se intento é vosso Ir à Ilha da Madeira Tentai chegar à noitinha. E se tiverdes a sorte de encontrar um mar-chão Um mar-chão que o luar virou prata, Vereis então Um espelho estranho Reflectindo luzinhas de cascata, Olhai para o alto dos montes Lá vereis iguais luzinhas Tão tristonhas tão sozinhas Irmãs daquelas do mar! Mas, à luz do sol nascente, Dum sonho desperta a gente! Afinal as tais luzinhas São janelas das casinhas Que nos pareceram estrelinhas

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SÃO VICENTE, CABO VERDE

Gente do mar, Se rumardes Proa ao Sul, Heis-de encontrar, curiosos, Cabo Verde ! Abeirai-vos da amurada. Ponde as mãos na terra escura E sentireis a secura Das terras daquela gente Da Ilha de S. Vicente. E do Castelo vereis que, Cabo verde, De verde, não tem nada!... Lembrar-vos-eis em Lisboa * Dessa terra já distante E só então sabereis, Porque se é emigrante!

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MAR DOS SARGAÇOS, BERMUDAS

Junho/ 24/48 Passagem ao largo das Bermudas Tão rara recordação Duma certa ocasião Lá pelo mar dos sargaços. É noite de S. João. Uma grande reinação Sem regras nem embaraços Fez-se a bordo uma fogueira Como se fora na eira. E de cerveja na mão Vão de marcha os foliões. É uma festa lisboeta Com arquinhos e balões Já quinze dias passados A partir de S. Vicente À América estamos chegados P’ra grande alívio da gente.

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A CHEGADA A BOSTON

O mar, um tanto irrequieto, apresentava uma cor mal definida, diria,

um azul pardo, difuso, tocado por uma centelha de vermelho, bem longe

que estávamos ainda dos primeiros alvores da manhã.

A guarnição, já torturada por uma crescente ansiedade a caminho

da América do Norte, e agora que estamos prestes a chegar, durmiam

ainda nos seus beliches, nos seus camarotes, ou então de larada ao longo

do chão da Coberta.

Acordado estava, naturalmente, o pessoal do quarto, do qual o Zé

fazia parte.

No Tombadilho, lá estavam, como sempre, os dois grumetes agar-

rados à roda do Leme, um marinheiro atento à “bússola”, e, evidentemen-

te, o oficial de quarto.

Para além do marulhar das águas, chapinhando contra o casco do

navio, pouco mais se ouvia que uma voz calma breve e clara, mas cons-

tante, dizendo: – “Uma malagueta para bombordo, uma ou duas para esti-

bordo”.

A essa voz, os grumetes do leme vão executando as ordens intermi-

tentes – ora para bombordo ora para estibordo –, e, porque o mar estava

calmo só lhes era exigida a força dos pulsos. Alturas há que o mar exige

ombros e todas as forças, a fim de especar a fúria das ondas contra o

leme.

Ali, um pouco mais pela meia nau, mais ou menos junto ao bailéu,

entre a cozinha e mesa das malaguetas, encostados às amuradas, pernoi-

tavam, enrolados cada qual em sua manta, os restantes marinheiros de

Quarto.

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Sim. Enrolados nas mantas, dormitando, isto se não soar um apito

estridente aflito, “gritando”: “Homem ao Mar!

Quem não experimentou, nem imagina qual o efeito terrível daquele

chamamento. Não só pelo que significa, mas também devido ao entorpe-

cimento dos corpos sonolentos, aqueles homens disparam esbaforidos em

direcção ao salva-vidas, pronto a ser arriado nas águas escuras do abis-

mo.

Tal transe sucede com muita frequência, durante a noite, não por-

que tivesse caído alguém ao mar (nunca aconteceu tal), mas tão só por-

que o Oficial de quarto, entende dever fazer esses testes.

Por vezes este tipo de intervenção por parte de alguns oficiais vai

até ao ponto de fazer entrar as pessoas no salva-vidas, e mandar descer

até meio do percurso, sem que nada tenha acontecido.

Como já disse, as noites de um modo geral, são escuras, o que,

naturalmente, dificulta as coisas. Mas, mau é, quando a faina é exigida

devido a um temporal, suportando balanços sem fim.

Tentando não perder o fio à meada, pois que a intenção neste

momento é descrever um episódio inesperado na chegada a Boston,

importa registar antes uma situação dos marujos nos quartos da noite.

É assim: a meio de cada um desses Quartos é “servido” um cacau

quente.

O cenário em que a situação acontece é naturalmente escuro, por

vezes como breu; nesse cenário tem grande impacto uma luz que vem da

porta aberta da cozinha e se projecta na amurada do navio.

É ali que aí está um marinheiro a fazer o dito cacau, e a luz da cozi-

nha torna-se numa referência orientadora para a malta de serviço que por

ali pernoitam como se fossem uns sem abrigo, ocultos na escuridão.

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A dado momento, soa uma voz, forte, por vezes esganiçada depen-

de da voz do marinheiro bradando: – OLHA O BARRO!8

É então que se processa um momento misterioso carregado de

sombras em movimento, recortadas, á sua passagem na luz da cozinha.

São mantas “recheadas” a deambular no convés, convergindo, munidas

de um copo de alumínio, para a distribuição do cacau à porta da cozinha.

Mas voltemos aquele singular momento, passado às portas de Bos-

ton.

Começámos por ver ao longe dois barcos de pesca; pareciam trai-

neiras.

Em princípio, nada de especial, apenas uma curiosidade para quem

vem há 15 ou 18 dias sem ver terra nem barcos, e ali vinha um ao longe.

Mas os barcos – eram traineiras – que se foram aproximando, e de

tal modo se aproximavam que, causavam já estranheza, muito especial-

mente ao Oficial de quarto – único responsável pela segurança do navio.

A proximidade era já transgressora das leis da navegação, quando

aos brados, gesticulando, começou-se a ouvir as vozes de portugueses,

dizendo: “Hei! Hei! Nós somos portugueses!... Nós somos portugueses!

Querem peixe!?...” E com isso, não desistiam de se aproximarem.

Ora o que ali se passava era um transbordar de alegria de tal modo

emocionante que aqueles portugueses se tornaram incapazes de respeitar

qualquer lei.

Não deve ser nada fácil, se não impossível, que pessoas, roídas de

saudades, como era o caso, e, ainda mais, deparando, em pleno alto mar,

com o característico navio da sua pátria deslizando veloz, velas ao vento,

alvo de neve - fiquem impávidas e serenas.

8 O barro é, nem mais nem menos, o cacau.

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Em alvoroço já estavam eles em função da notícia que, naturalmen-

te se havia antecipado à nossa chegada, e já de há muito partilhavam da

euforia de milhares de portugueses que, ansiosamente, nos esperavam.

Havia, pois, mil razões que justificavam o seu descontrolo naquela

inesquecível madrugada do mês de Julho de 1948.

Mas, a bordo, ninguém estava preparado, naquele preciso momen-

to, para interpretar, devidamente, o insólito encontro. O Oficial de Quarto,

o único, com competência para assumir, a responsabilidade da solicitada

atracação, pensou titubeou e, por fim, não admitiu.

Os pescadores eram agora observados de tão perto, que era possí-

vel ouvi-los perfeitamente, falando em português, continuando a dizer:-

Nós somos portugueses!... Querem peixe fresco!?

E o Oficial, nitidamente confuso, responde-lhes em inglês: – no...

Mas, vejam só. Por debaixo do tombadilho – onde se encontrava o

Oficial de Serviço – ficam os camarotes dos oficiais; e, através da vigia, o

tenente que se preparava para render o colega em fim de Quarto, obser-

vara tudo que se estava a passar.

Ao ouvir a nega – para ele extremamente desconcertante - do cole-

ga, desatou a correr e, chegado ofegante junto do colega, solicita-lhe a

entrega do serviço. Acto contínuo, ainda o oficial rendido estava presente,

faz um largo gesto aos homens, dizendo: – Hei!.. PODEM ATRACAR...

PODEM ATRACAR!

Não foi propriamente uma desautorização, pois que a responsabili-

dade do posto já tinha sido transferida; contudo a coisa não foi assim tão

eticamente correcta.

Não se soube o que se passara depois entre eles; mas o que acon-

teceu foi que aqueles portugueses, maravilhados com semelhante visão e

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agora por serem os primeiros portugueses a verem e a contactarem com a

Sagres, não tardaram a atracar felizes da vida.

Como não podia deixar de ser tudo aconteceu em pouco tempo

dado que as condições de atracação e o movimento do mar, mais não

permitiam. Transferiram, dos seus barcos para bordo da Sagres, uma

grande quantidade de peixe, não parando de repetir que iriam estar con-

nosco, em todos os festejos que nos esperavam na América.

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ESTADIA NA AMÉRICA DO NORTE

Chegados a Boston, verificou-se que os residentes portugueses

tinham organizado Comissões de Recepção, ao longo dos diversos portos

de mar, desde esta localidade até Nova Iorque e Fall River. Cada qual

competia com o seu melhor, e, para a marujada, era um regalo chegar, a

cada porto, ouvir uma banda de música, enquanto, impacientes, a maruja-

da vestia as suas fardas para sair. Desde logo eram absorvidos pela mul-

tidão em festa, bebendo, nomeadamente, refrigerantes e gelados. Era um

delírio incrível.

Porém nessas movimentações, tinham, por trás de si, as ditas

Comissões de Recepção, em cada porto, em cada lugar, animadas do

espírito de competição entre si. Essa competição levou a casos curiosos

de maior ou menor importância, mas, o mais relevante, foi o sucedido na

comunidade de Fall River.

Esta Comissão teve a ideia de tentar cortar os mastros da Sagres de

forma a ser possível passar por debaixo de uma ponte próxima do seu

cais! Tudo por que – diziam –, haviam ali preparado a maior das recep-

ções em honra de Portugal e da Sagres.

O que se passou foi que, a Comissão de Fall River, não se tinha

apercebido do obstáculo que era a altura dos mastros da Sagres – 45

metros – em relação à ponte por que teria de passar, para finalmente

poder atracar, festivamente, no cais da sua localidade.

Assim, ao aperceberem-se de tão incómodo contratempo, decidi-

ram-se por uma proposta dirigida ao Comando da Sagres, em que se pro-

punham cortar os mastros e repô-los, tal e qual como estavam, após a

realização da festa. De notar que eles tinham consciência de que os mas-

tros da Sagres eram e são, de ferro.

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Como foram desfavoráveis as respostas do Comandante do navio e

do Embaixador, gerou-se um movimento organizado para dialogar com o

Governo Português.

Nada conseguiram, mas o Zé ficou a pensar lá para consigo: “e

digam lá se não é a falta de recursos económicos, que inibe os portugue-

ses de serem as pessoas mais desenrascadas do mundo!”

Outra situação, também, de algum impacto, foi quando uma das

Comissões de Recepção, neste caso de New Bedford, ofereceu às entida-

des oficiais da Sagres, um almoço, através de um convite, extensivo a

toda a tripulação.

O convite foi mal interpretado, pelo que, no dito jantar, só aparece-

ram, em vez da totalidade da tripulação, só apareceram nove grumetes,

estes escolhidos em formatura, feitos deste modo, representantes de toda

a marujada.

Foi um enorme fiasco. É pois fácil imaginar uma situação em que

uma comissão, espantada e triste, vê chegar “meia dúzia de gatos-

pingados”.

Em face do sucedido, decidiram andar pela cidade a pedir aos mari-

nheiros que encontrassem para irem comer, ao que estes respondiam que

não, isto por duas razões: por não terem sido considerados na formatura

geral para o efeito e, depois, porque toda a marujada não chegou para as

encomendas. Isto é, cada família ansiava albergar em sua casa um mari-

nheiro.

Ao Zé, como já se disse, foi-lhe oferecido um piano por uma dessas

famílias, oferta invulgar, muitíssimo badalada pela imprensa local, talvez

não tanto pelo piano, mas sim pelo aparato festivo que a oferta acarretou.

Aconteceu uma enorme festa no cais, mais uma, enquanto o pes-

soal da manobra procedia ao espectacular carregamento.

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Nos dias seguintes o Zé recebia cartas que lhe eram dirigidas de

diversos lados, com manifestações, as mais diversas.

Interessante foi também o caso de um baile de gala, oferecido a

bordo da Sagres.

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Um baile célebre

A Sagres, além de linda como é, estava ataviada como nunca o Zé a

vira. Por todo o lado se viam passadeiras aveludadas e reposteiros verme-

lhos, orlados e enfeitados, de vistosos amarelos.

Quanto à orquestra, bom. Quanto à orquestra, a ninguém iria passar

pela cabeça que este evento tão pomposo, pudesse ser “abrilhantado “

pelo grupo de Jazz da própria Sagres, do qual, aliás, o Zé, fazia parte.

Mas veio uma orquestra americana, bem ao sabor daquele país;

mas o que mais impressionou o Zé, foram aqueles belíssimos instrumen-

tos da cor do ouro, brilhantes como sol. Depois os maravilhosos sons,

ecoando, fortemente, entre o tombadilho e um cais de New Bedford.

Diga-se de passagem que nessa mesma localidade houve um outro

baile, em que participaram largas centenas de portugueses e seus familia-

res femininos, baile este organizado por uma das comissões. Aí, sim.

Actuou e fez sucesso, o nosso grupo de Jazz. Disse atrás familiares femi-

ninos, porque, uma enorme casa de espectáculos e festas, a associação

determinou que naquele baile só entrariam as mulheres e as filhas dos

sócios e outras. Eis como resolveram fazer a sua homenagem à tripulação

da Sagres.

Mas voltemos ao caso do baile da Sagres.

Era já ao cair da tarde, perto da noite, e o Zé, encontrava-se na

coberta, diria, um tanto só. De repente chegou à sua beira um outro gru-

mete a quem chamávamos “o Setúbal”, acordeonista, dizendo: ó “4”

vamos tocar ali pró cais? – Nem penses – diz o Zé admirado – não vês

que íamos dar-lhes cabo do baile! Nem penses!

Mas, o “Setúbal” insistia dizendo: – Eh pá, nós temos licença até à

meia noite e podemos estar onde quisermos; ninguém nos pode pegar.

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Ao fim e ao cabo o Zé aderiu, e lá se sentaram no cais , tocando.

Diga-se que juntos, faziam um interessante conjunto de acordeão e viola.

Bom; o que aconteceu foi que estavam estacionados, talvez, uns

400 carros numa zona do cais, pertencentes a pessoas que vinham, em

massa, ver e visitar a Sagres.

Ao ouvirem a nossa música, acenderam, pelo menos a maioria

deles, os faróis e, saindo dos carros, vieram para junto de nós.

Apareceram de todos os lados, provocando um movimento tal, mais

que suficiente para pôr o baile em risco. Não sabíamos se aquilo iria fazer

correr tinta vermelha, mas o caso é que tudo aquilo deu num grande

arraial.

Porém, o Zé ficou pasmado quando começou a ver passar entre a

multidão dançante vários oficiais da Sagres, parte dos convivas da festa,

dançando agora no meio da multidão, bem à moda dos arraiais portugue-

ses.

Na verdade, ninguém nos podia “pegar”. Porém o atrevimento pro-

duzira efeito no espírito do senhor Imediato, pois que, um pouco a roçar o

caricato, chegou à nossa beira, mal soou a meia noite e ainda com muita

gente no Cais, disse secamente:- Vá meninos, é hora de recolher. O Zé

também acha que o gesto, apesar do êxito que teve enquanto arraial, não

deixou de ser uma malandrice minha e do “Setúbal”.

Mas, diz-se que tudo está bem, quando tudo acaba bem. Aquilo foi

um arraial muito oportuno.

Cada marinheiro era rodeado do maior carinho. Houve até quem

oferecesse um carro a um dos marujos, coisa que, afinal, não pode trazer

para Portugal.

Mas o mesmo não aconteceu, como já se disse, com o piano que o

Zé trouxe.

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Para além disto, gravámos discos de fados e canções portuguesas

e, em dada altura, fomos convidados pelo Comandante da Sagres para

fazermos uma serenata a bordo, à maneira de Coimbra, na presença de

um ilustre convidado que, naquela noite pernoitaria a bordo; o Senhor

Embaixador de Portugal; na altura, Dr. Teotónio Pereira.

Muitas outras histórias ficam por contar desta estadia da marujada

da Sagres na América. Mas deixemos todos estes divertimentos, e regres-

semos, ao mar, a Portugal.

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EPISÓDIOS VÁRIOS A CAMINHO DE LISBOA

Como já disse, o Zé Rama gastava, em menos de um fósforo, tudo o

que tinha e, para não fugir à regra, foi o que sucedeu, mais uma vez, lá na

América.

Não obstante todas as festas decorrerem por conta das associações

de portugueses em cada localidade, o perdulário do Zé Rama sempre

arranjou maneira, de gastar tudo, até ao último cêntimo.

O Zé, pelo que viu e sentiu, supôs que tais festas só poderiam ter

sido as maiores do mundo, feitas a marujos portugueses.

Era o dia 3 de Agosto de 1948. A Sagres partia, deixando num dos

cais de Nova Iorque – doca n.º 26 – uma multidão de portugueses cheios

de comoção e saudade. Como sempre nestes momentos lá estavam as

vergas cheias de marujos em pé, a 40 metros de altura, dizendo adeus

acenando com os seus panamás. Nesse dia fez o Zé, 23 anos de idade.

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Sagres

Como tu, estou na reforma No mundo tudo acaba Mas apesar desta norma, Há em nós consolação Por termos sido visão Em muitos portos de mar! Nós fomos a estrela-d’alva, Por esse mundo além. Escutámos corações, A sofrer de saudade, Comovidos de verdade! Nos quatro cantos do mundo, Portugueses, há milhões. Ante a bandeira das Quinas... Nós vimos chorar “meninas” Pensando nas terras delas! Foi a bandeira das Quinas, Que lhes causou esta pena. Mas também a cruz do Gama Os corações inflama Tremeluzindo nas velas, Desde o Traquete à Mezena

Partiram pois de Nova Iorque para Lisboa. Foi uma viagem que

durou vinte e oito penosos dias, e que o Zé não foi lá grande “praça”.

Pode dizer-se que o enjoo constante, o prostrou como nunca estivera.

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A Ida do Zé para a Marinha

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Pintura do Navio

Entre os mais diversos trabalhos de bordo, há um que é, pode dizer-

se, constante: é a pintura do navio.

Há que remover tintas velhas e ferrugem de todos os cantinhos e

pintar de novo. É assim garantida uma maior durabilidade, pois que de fer-

ro se trata, sujeito ao contacto com as águas e à salinidade do mar. Note-

se que esse trabalho é feito, não só no interior, mas também na parte

exterior, todo o costado até à linha de água, trabalho que se faz a navegar.

O importante é que, a Sagres - a bela Sagres - surja, alva de neve,

em cada porto.

Para levar a cabo esse tratamento da parte de fora do navio, o pes-

soal da Manobra suspende pranchas de madeira, presas por dois cabos,

um em cada extremidade da prancha. Estes cabos servem pois para sus-

pender as pranchas, mas também são absolutamente indispensáveis a

dois marinheiros que trabalham em cada uma delas

Quando o mar se apresenta demasiado perigoso, é ainda colocado

um outro cabo, mais ou menos à altura da cinta, conhecido por guarda-

mancebos. Porém, diga-se de passagem; ali o que vale, é a destreza e a

genica da marujada, para se esquivar trepando “a cem à hora”, quando for

caso disso. As ondas longas, que esbarram, com grande sobranceria, con-

tra o casco do navio, são, obviamente, traiçoeiras. Mas não há problemas.

Quando vêm essas massas de água ainda que lisas à superfície, as pran-

chas ficam submersas mas a marujada, num ápice se guindou para a

amurada.

A propósito deste sobe e desce, a-propósito deste trabalho por fora

do navio, vale a pena contar uma cena passada numa dessas pranchas,

sobre um mar relativamente traiçoeiro.

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A bordo da Sagres havia, e há certamente, um Sargento-ajudante

de Manobra e um Sargento que se designa por Mestre.

Eles são os responsáveis pela manutenção do navio e, digamos, de

alguma forma são considerados responsáveis, pela segurança do pessoal.

Naquele dia, depois de uns restos de ciclone, o mar mostrava-se

como disse, um tanto agressivo. Contudo, as ondas longas, apesar de

muito volumosas, permitem um certo controlo do risco.

Decorria pois uma dessas situações e, em dado momento, a Sagres

estava cheia de marinheiros nas pranchas desde a proa à popa, raspando

e pintando, com uma mão no cabo, outra no pincel e olho vivo.

Segundo o parecer do Mestre, o estado do mar exigia, pelo sim e

pelo não, que fosse aplicado em todas as pranchas esse tal cabo chama-

do guarda-mancebos. Assim foi, e era ele próprio que vinha de prancha e

prancha passando o cabo.

Ora, na prancha anterior à do Zé, do Zé e de mais um Grumete de

Manobra, acabaram-se os cabos ao Mestre.

Mas mesmo assim o homem saltou para a nossa prancha e, acto

contínuo, berrou lá do fundo para o Cabo Manobra que aguardava ordens,

espreitando lá de cima da amurada: – Ó “fulano”, vai buscar mais um

guarda-mancebos.

E lá foi o “sorna” no seu vagar. O Mestre, já farto de vociferar, contra

o Cabo, contra o mar, contra tudo, muito mal agarrado a um dos cabos,

“era só raiva e desespero”.

Foi então que, se formou bruscamente uma onda descomunal,

banhando o casco de ponta a ponta.

O alentejano e o Zé, como era normal, apareceram, em três tempos,

pendurados na “corda” de modo que a água nem os pés lhes tocasse.

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O sargento, porém, tinha tudo contra ele. Era pessoa aí para os

seus cinquenta anos. Não tinha, um cabo tanto à mão como os grumetes

e, muito menos a necessária destreza. Como tal, a situação teve sabor a

um gesto de “salve-se quem puder”.

A água começou a subir, enquanto o sargento enchia já, o peito de

ar, como quem entra forçado num tanque de água gelada.

Nesse momento apareceu o cabo manobra lá na amurada a dizer: Ó

senhor Mestre, já não há mais guarda-mancebos no paiol.

A cena terminava com o sargento a escorrer água, furioso, e a

subir, muito a custo, para o convés.

Tudo voltou à normalidade e o Zé, mais o alentejano desceram para

continuar o trabalho, mesmo sem a tal protecção. Já na prancha, diz o

alentejano: “Que pena este cabrão não ter ido ao fundo…”

O Zé achou que aquilo era um enorme disparate, mas ele continuou:

“Eh pá! Ele é um sacana!.... Um engraxador! Eu é que sei o que passo por

causa dele. Na manobra ninguém o pode ver, o filho dum cabrão...

Pois bem. Toda a gente anda envolvida nos trabalhos de manuten-

ção e, obviamente, o Zé Rama também. Vamos à sua procura.

Decorria uma bela tarde de Agosto e lá estava o nosso amigo a

picar tinta velha na área do tombadilho, mais ou menos por cima do cama-

rote do Sr. Imediato.

Deve dizer-se que, na Marinha, sendo, embora, uma instituição mili-

tar, nada há de rígido nas relações humanas, o que, de modo algum, põe

em causa uma saudável disciplina.

Mas, por mais tolerância que haja, o princípio é que os regulamen-

tos são para cumprir. Uma das regras é, por exemplo, “proibido cantar nas

horas de serviço”.

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O Zé Rama, de sempre teve grande dificuldade em encaixar-se em

regulamentos.

Bom. Longe de ser um valdevinos, um sorna inveterado, o certo é

que também não se descobria nele, um modelo de virtudes, no que diz

respeito a “espírito militar”.

Tanto assim que, naquela tarde, deu ao rapaz para se pôr a trautear

uma das suas mais humorísticas cantilenas, marcando o compasso, com a

própria pica contra, o casco do navio.

Ora, se o sítio onde picava tinta velha fosse mais discreto, vá que

não vá; talvez a coisa não desse “raia”, como deu. Mas o caso é que esta

“praça”, talvez se tivesse esquecido que picava e cantava, a escasso meio

metro da escotilha do camarote do Sr. Imediato.

O Sr. Imediato, ao ouvir a insólita cantoria, decerto empolgada por

um entusiasmo em crescimento, veio por aí acima e, lá estava o Zé Rama,

sentado, atacando, decidido, uma mancha de ferrugem que tanto teimava

em não sair do sítio. Batia, batia, mas “o raio” da mancha ferrugenta, ali

permanecia entre as suas pernas, estendidas, bem ao jeito da marcação

ritmada da pica.

O meu pai é José Caco Minha mãe Caco Maria Lá em casa tudo é caco Sou filho da cacaria

Depois era o refrão, ainda mais vigoroso:

Raparigas novas Vamos ó vira Ao dar da meia volta Ó pis tó tira, Ó pis tó tira.

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O Sr. Imediato aparecera sem que o Zé Rama desse por isso, tão

entregue estava ao seu trabalho. O Imediato, após uns momentos de

apreciação, mãos atrás das costas, acaba por dizer, alto e bom som:

– Sim senhor, Zé Rama; mas que grande cantor tu me saíste!

O Zé Rama põe-se em pé num instante, assustado, com o coração

aos pulos, e, coçando a cabeça, diz:

– Senhor Imediato, desculpe... sei que é proibido cantar nas horas

de serviço, mas... distraí-me, Senhor Imediato. Enfim, estava aqui a pen-

sar na vida... Sabe Senhor Imediato, a vida é difícil.

Além disso, Senhor Imediato, só mar... tanto mar... a gente fica

maluco, Senhor Imediato!

– Muito bem, diz o Imediato. Pois é! A vida está difícil e, “Quem can-

ta seu mal espanta”. Mas, ó Zé Rama, o ditado nem sempre se pode

seguir à risca, não achas !?... Agora, por exemplo, em vez de espantar as

penas, ainda as aumentas.

– O quê... o Senhor Imediato; está a pensar em castigar-me!? – diz

o Zé Rama muito espantado.

O Imediato, de mão no queixo, olhando lá para o alto dos mastros

com ar pensativo, como que avaliando a infracção e qual o tipo de castigo

a aplicar, respondeu, com uma pergunta:

– Que tal uma privação de saída, quando chegarmos a Lisboa!?

Do ponto de vista do Zé, não seria um castigo assim tão leve, para

quem navegava há cerca de 25 dias sem ver terra.

Mas o Zé Rama, com um tímido sorriso, e ainda a dar um jeito ao

panamá, desalinhado, devido à precipitação com que se levantou, respon-

de-lhe:

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– Enfim, Senhor Imediato, do mal o menos... Até, vistas as coisas,

que vou eu fazer para terra sem um tostão no bolso... gastei tudo, lá

“naquela” América!...

O queixume do Zé Rama, não podia ser mais compungente, ao

dizer: “gastei tudo lá, naquela América”.

O Imediato disfarçando um sorriso, disse

– Pois é, Zé Rama, o dinheiro, hoje em dia, não vale nada.

– É verdade – diz imediatamente o Zé Rama – A quem o diz... a

quem o diz... O senhor Imediato não reparou como é caríssima a vida na

América!?...

– Sim, sim – diz o Imediato, sorrindo – mas, ouve lá; afinal que cas-

tigo te hei-de aplicar!?... Como se tivesse achado, de repente, a medida

correcta disse:

– Exactamente. Que dizes a três guardas de castigo ao portaló, logo

à chegada a Lisboa. Parece-te bem?

O Zé Rama, contraindo o queixo como quem está a tentar levar a

melhor numa negociata na feira da ladra, diz:

– Enfim, Senhor Imediato, convenhamos que é duro... um bocado

duro, mesmo! Então, um indivíduo há tanto tempo fora de Lisboa, e ficar

logo de guarda; é duro, Senhor Imediato.

Cabisbaixo, longe, sem dúvida, de estar pesaroso como parecia,

termina dizendo:

– Pronto, Senhor Imediato, paciência; resta-me confiar na sua bene-

volência; fará o que for de sua justiça.

Importa dizer que, de modo algum, este tipo de infracções eram

registadas na caderneta militar, pelo que, em nada afectavam a carreira

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militar de qualquer indivíduo. Mesmo este diálogo é apenas uma brincadei-

ra num dado momento.

Mas o gozo da malta foi grande, quando se viu o Zé Rama, perfilado

no portaló, de franquelete aperreado ao queixo, enquanto a marujada,

sussurrando graçolas, saía de licença.

Ainda, lembra ao Zé, ele ter correspondido, entre dentes, à sua pro-

vocação: “Vai, vai, senão prego-te já uma coronhada”.

Ao saírem da Sagres aqueles marujos que fizeram parte da guarni-

ção, apenas para irem na viagem, e agora destacados para o Alfeite, o Zé

Rama dedicou-lhes um empolgante discurso de despedida, ao almoço na

Coberta. Mas o caloroso discurso, terminou do modo mais burlesco que se

possa imaginar. É que o impagável Zé Rama terminou com a mais insólita

informação: “E agora, meus amigos, termino, informando-vos que tenho,

no meu cacifo, uma dentadura, em segunda mão, para vender!”

Lembrado desta interessante personagem, o Zé deixa, neste registo,

um enorme abraço ao Zé Rama. Um grande abraço, do grumete n.º

7004/46.

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CABO ZÉ

Dos papafigos ao sobro, Eu subo que nem um gato. E não temo o desacato Dos ventos mais tempestivos! Nem tenho quaisquer motivos, Que me inibam das alturas; Até mesmo às escuras, Percorro todo o velame, Qual artista no arame! Por mais que troam os astros, Por mais que ranjam os mastros: O traquete o grande ou a mezena... Não fujo de qualquer cena! Andar nas vergas, é obra Em noites de tempestade Mas tenho unhas de sobra, Quero meças na Manobra, Na minha especialidade, Eu aí sou a “verdade”.

Pode dizer-se que estas palavras postas ao vento, são a definição

exacta das capacidades do “cabo Zé” em movimento a bordo da Sagres.

E, quem olhasse para ele, calmo e pachorrento não adivinhava tanta

destreza e garra, naquele grumete de manobra.

Uma das medidas de segurança a bordo da Sagres a navegar, é a

inspecção diária que se faz ao velame, ao fim do dia. Essa inspecção é

obrigatória seja qual for a “cara” dos astros e a soada dos ventos.

Ora, numa dessas tardes cinzentas, para não dizer pretas, e vento

forte, diz o “Cabo Zé” ao Zé, nessa hora da inspecção:- “Ó quatro; hoje

vou lá acima na tua vez. Sabes bem que eu percebo mais disto, do que

tu”.

Tinha toda a razão; ele era especializado na manobra; o Zé não.

Além disso era dotado de uma destreza invulgar, e, diga-se, não é nada

fácil a aventura lá por cima, para além do cesto de gávea.

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De facto, mal temos a que nos agarrar, ao longo das vergas com os

pés nos estribos, apoio que não é mais que um cabo de aço, bambo, colo-

cado um pouco abaixo da verga.

Já que estamos a falar das alturas, um dos momentos mais arre-

piantes é quando a marujada abre a partir do cesto de gávea, andando em

pé sobre as próprias vergas, passando apenas a mão por um cabo, pre-

viamente colocado à altura da cintura.

Trata-se de um exercício praticamente de puro equilíbrio, que tem

lugar a cerca de 40 metros de altura – a altura máxima é de 48 metros.

Mas tudo aquilo se torna mais difícil ainda, quando, o cabo pelo qual pas-

samos a mão fica mais bambo, devido aos puxões desencontrados de

cada marujo, em busca do seu próprio equilíbrio.

A principal finalidade deste aparatoso gesto é, como já se disse,

acenar, com o Panamá, às multidões, que vêm aos cais ver a Sagres,

principalmente em ocasiões de festa.

Para o efeito cada marujo tem o seu lugar na verga, previamente

atribuído e o Zé, era o segundo, a partir do cesto de gávea do traquete,

velacho-alto, para o lado de bombordo.

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Vós marujos da Sagres, que passais

Vós, marujos que passais Procurai ouvir talvez ouçais, Sons esbatidos duma guitarra. E se tal escutardes ainda, Dizei lá para convosco Que coisa linda! São gemidos Da guitarra do Morais. Marujo de tempos idos Que por esses mares andou Com seus duzentos irmãos Lá de Lisboa largou. Porém, se nada escutardes Tentai ver, talvez vereis Inda a esteira rarefeita dum navio. Que em tempo se chamou “FLORES” e “SANTO ANDRÉ”. E se virdes o que eu vejo, Desde o Castelo à Ré Vereis a SAGRES passar Pelo mar a navegar Linda, branca a dealbar

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“O CAPITÃO DA SAGRES”

Um dia chegou ao Portaló do Navio Escola Sagres, na altura atraca-

do numa das docas de Alcântara, uma senhora emproada, procurando

conter um certo nervosismo, mas tentando parecer calma e segura.

Dirigindo-se à sentinela, diz-lhe resoluta:

– Quero falar com o capitão.

A sentinela vendo o modo arrogante da senhora e também a igno-

rância que revelava – na Marinha não existe esse posto –, chamou imedia-

tamente a Ordenança ao Oficial de Serviço, e disse-lhe simplesmente:

– Oh... ordenança; vai chamar o capitão; diz-lhe que está aqui, no

portaló, uma senhora à sua procura.

A ordenança, medindo a senhora de alto a baixo, e vendo logo que

ali “ havia gato”, na sua se foi e, desde logo, encontrou o solicitado capi-

tão, no Castelo, junto a uma arrecadação.

– Ó capitão – diz a ordenança – vai ao Portaló; está lá uma senhora

que te quer falar.

Mas, desde logo, acrescenta:

– Talvez seja bom ires depressinha; a sujeita está com cara de pou-

cos amigos. Unh... há moiro na costa!...

O capitão sentindo-se inseguro, disse:

– Que senhora, pá!?...

Sem obter qualquer resposta por parte da Ordenança foi, desde logo

suspendendo o que estava a fazer, enfim, arrumar os utensílios de limpe-

za tais como baldes, vassouras, trissodina, sabão amarelo, lixívia, solari-

ne, desperdícios, etc., etc., mas, muito intrigado, até receoso, tanto mais

que não tinha a certeza do que acontecera na noite anterior: O caso é que

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o noctívago capitão tinha chegado a bordo por volta das três da manhã,

entrando a bordo, naturalmente ao abrigo dos olhares tolerantes da senti-

nela, ainda mais porque portador de uma grande carraspana.

E lá vem o valdevinos sem imaginar sequer, que tipo de problema

teria para resolver, ali bem perto, no Portaló.

Hesitou aqui e ali, espreitou sem ser visto, e lá estava uma senhora

que ele juraria, a pé firme, que jamais a vira, em parte alguma.

Espreitou, olhou, olhou, e, concluía lá para consigo: - mas quem raio

é a mulher!?... Eu nunca vi esta gaja em lado nenhum!...

Mas, fossem quais fossem os motivos de tão insólita “visita” não

tinha outro remédio senão abeirar-se da entrada do navio.

Já junto do Portaló, mirava a senhora de alto a baixo, e ela, nada!

Em vez de lhe dirigir qualquer palavra, o capitão via que a senhora

se limitava a olhar de soslaio para ele, mas nada mais que isso.

Ali estava, mesmo na sua frente, com o fato de trabalho já de há

muito a precisar de uma barrela, com cara de parvo, olhando a senhora.

Num momento a senhora perde o resto de compostura que ainda

lhe restava e lhe diz:

– Ouça lá; você nunca me viu !?

E o capitão já nem sabendo como havia de pôr as mãos, explode:

– Ouça lá, Oh minha senhora; o que é que se passa!?... O que é

que a senhora quer de mim!?

A senhora, branca de raiva, limitou-se a olhar de alto a baixo, para o

desconsertante e ensebado capitão e, também, para a sentinela que sor-

ria, ainda que perfilado no seu posto.

Apesar de tudo, apercebendo-se já que estava a ser ”gozada”, ainda

disse de novo:

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– “Eu quero falar com o capitão do navio!...”

Prontamente diz o capitão:

– Oh minha senhora, o capitão, aqui da Sagres, sou eu!...

Foi então que a senhora, encarniçada, apertou os dentes, olhou

para tudo aquilo com rancor e, sem dizer mais uma palavra, virou as costa

e partiu, esbaforida cais além.

Pelo que conhecemos das malandrices que se cometem na socie-

dade igualmente por parte dos marinheiros, admitimos que a senhora teria

boas razões para ir ali, em busca de algo; porém, o descaramento do ofi-

cial mandar chamar o capitão; mais o erro da senhora dizendo que queria

falar com o capitão do navio, resultou no que se viu.

Na verdade a bordo dos navios da Marinha, na Sagres também, não

existe o posto de capitão; o único capitão que há a bordo é, normalmente,

um grumete encarregado da limpeza e que se designa por capitão do lixo.

Esta história era contada, como verídica, a bordo da Sagres, no meu

tempo. Não a testemunhei portanto; mas isso não me impede de a ver

estampada na pessoa do meu filho da escola, nessa altura o titular desse

“posto”.

Poderia ser ele, muito bem, o valdevinos da história contada, indiví-

duo bastante patusco, aparentemente um pouco “chanfrado”.

Um dia, disse ele em conversa:

– Bom, vou ver em que deu a minha sabonária; se der resultado –

dizia – nunca mais terei trabalho a lavar as minhas fardas.

E continuando, explicou-se:

– Ontem à noite fiz uma sabonária de trissodina bem fortezinha e

meti lá uma calças muito encardidas. Espero que fiquem um brinco.

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Acho que já disse que o gajo andava quase sempre com o fato

conspurcado; daí a ideia da barrela de trissodina que o indivíduo preparou,

segundo parece, com um certo cariz científico, para desencardir, sem tra-

balho, as calças emporcalhadas.

Mas, o palerma, que todos os dias lidava com aquele produto de

limpeza, ou não andasse ele connosco todos o dias de manhã, na baldea-

ção do convés, achou que o pano se aguentava com aquele produto bas-

tante corrosivo muito mais que lixívia concentrada!

Pois dirigiu-se ao balde em que depositara, confiante, o seu fato

cheio de esterco; ao puxar, apenas traz, na mão, farrapos queimados.

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CERTOS CENÁRIOS

Quando algumas das forças da Natureza se conjugam entre si, sur-

gem no mar cenários, medonhos e belos, nomeadamente quando apre-

ciados e sentidos, lá nas alturas.

Efectivamente certos cenários têm tanto de belos como de tenebro-

sos, só faltando, diria, descortinar em algum buraco negro, o famoso

Gigante do Adamastor, ainda que, talvez um tanto mais modesto, do que o

que “viu” Luiz de Camões.

Mesmo quem não passa por essas aventuras, não lhe será difícil

imaginar um marinheiro, a cerca de 48 metros de altura, tentando mover-

se no espaço instável e ar de mistério, entre vergas e velas enfunadas,

passando por situações como a do “ Camarinha, que teve necessidade de

usar os dentes, para se agarrar, por momentos, lá na mesena. A Sagres,

com vento de feição, sulcava mares e varava ventos enfurecidos, à veloci-

dade de 10 ou 12 nós. A pouco mais que esta velocidade, partir-se-iam os

mastros.

É de grande impacto ao olhar lá do alto e ver as pessoas e as coisas

no convés, bastante mais pequenas incluindo o todo do navio, baloiçando

proa/popa, bombordo/estibordo, ladeado de vagas brancas, num fundo por

vezes verde-escuro, ou então num constrangedor azul vivíssimo

Se quisesse sintetizar o ambiente de certos momentos lá nas altu-

ras, diria que se tem a sensação de nos encontrarmos, num qualquer

lugar, fora da nossa realidade.

Mas atenção; em face de tudo isso, o que vale é o ânimo e a genica

da marujada. E se os veteranos não têm a genica dos mais novos, não

ficam no convés, graças à sua grande experiência.

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A-propósito o Zé recorda uma cena em que o cozinheiro de bordo, já

bastante entrado na idade e gordo, que nada tinha a ver com a manobra,

ganhou um garrafão de vinho, por aposta, subindo em escassos minutos

até ao Sobro, em pleno mar! Mas nem todos.

O Zé recorda um filho da sua escola que teve de ser amarrado no

Balso e içado até ao cesto de gávea dos Papa-Figos. (as vergas mais bai-

xas). Daí teve de descer, sem qualquer ajuda. Mas, na sua grande maio-

ria, são tão lestos e trepadores como macacos.

Pois bem. O “cabo Zé” era, como se disse, um desses especialis-

tas, mas, não é sobre essa faceta que o Zé pretende falar dele.

O Cabo Zé era, também, um grande cómico, tanto quanto o era o Zé

Rama, embora com características, completamente diferentes.

Para começar, o Zé que escreve estas coisas, supõe que o Cabo

Zé, terá sido bastante pobre, antes de entrar na Marinha. Aliás, pobre

como era todo o operariado daquele tempo.

Mas refiro este aspecto mais para referir uma das suas histórias.

Contava ele:

“Eu tinha, lá na terra, uma namorada, mas, por mais que falásse-

mos, nunca conseguíamos entender-nos”.

E para justificar essa falta de entendimento, dizia:

– Um dia, ela chegou à minha beira e disse:

– Se conseguires juntar 250$00, casamo-nos.

Claro que estas coisas eram contadas em grupo, pelo que, ocasio-

navam grandes gargalhadas. Com isso mesmo contava o “Cabo Zé e, rin-

do também, mais uma vez exibia a sua enorme dentuça9

9 O “Cabo Zé tinha uma dentuça muito grande, bastante semelhante à daquele cómico francês, o

Fernandel.

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– Mas, continuando, dissemos nós:

– Ó “cabo Zé! para que queria ela duzentos e cinquenta escudos, se

nem sequer daria para comprar um baú!?

– Sei lá... – Diz ele rindo de si próprio. – Ela nunca me disse... e eu,

também, nunca fui capaz de juntar tal quantia...

O “cabo Zé” foi um dos grumetes que, após a recruta, transitou de

Vila Franca para a Escola de Aviação Naval Almirante Gago Coutinho, em

Aveiro e, daqui foi destacado para o Navio Escola Sagres, onde o Zé vol-

tou a encontrá-lo, já com o seu curso de Marinheiro de Manobra.

Daí a nossa viagem juntos, à América do Norte.

Sortilégio à volta de umas meias de vidro

Enquanto navegávamos rumo a Boston, a “malta” pronunciava, aqui

e ali, “mal e porcamente”, uma ou outra palavra em inglês, construindo fra-

ses, longe de fazerem nexo algum.

Só disparates e, o “cabo Zé” era um desses poliglotas.

Faltavam ainda uns dias para chegar à América, quando cabo Zé,

começou a imaginar-se, sozinho, na 5ª Avenida, em Nova York, falando

fluentemente o inglês, “tu cá tu lá”, com um elegante caixeiro de uma

luxuosa casa de modas da famosa avenida.

O objectivo era, “comprar umas meias de vidro, para oferecer à sua

amada; esta era uma rapariga da Gafanha da Cale da Vila, Ílhavo, Aveiro”.

Assim, ele, Cabo Zé, sairia de licença e, depois de admirar as gran-

dezas da América que nunca vira, acabaria por entrar, muito descontrai-

damente, numa luxuosa casa de modas. Sorridente, diria ao caixeiro:

– Gude morningue, mister caixeiro. Estás tanquiu!?

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– Oh Yes! – Dir-lhe-ia o americano – How do you do? Can I help

you? Como ter passado!?

– Ai ame gude – terá dito o Cabo Zé – muito veri gud, mesmo, muito

veruel!...

– Então que o trazer aqui por Nova Iorque, sinor marinero? – disse o

americano.

Aí, o Cabo Zé, mostrando um leve sorriso ao canto da boca para

não se lhe verem os dentes, diria:

– Eu ser um seilor portchuguise. Não saber se já percebeu – apon-

tando para o boné – e querer comprar umas meias de vidro, um vidro bom,

é claro.

E, segredando levemente inclinado sobre o ouvido do caixeiro, con-

tinuaria, dizendo: – são para oferecer à minha namorada, está a perceber?

– Very well, very well – dirá o vermelhusco muito prestável, talvez a

pensar que está a falar com um gajo cheio de massa: – eu ter aqui um

artigo finíssimo, confeccionado com vidro importado. E, pondo todo o

empenho na venda, conclui dizendo: – Isto ser um artigo da mais alta qua-

lidade. Insistindo mais ainda, disse com presteza: – Olhe que ser um vidro

famoso da... ai!... da... Ah! Já saber. É vidro da Marina Grrande!... Ye, Yes;

Marina Grrande, Portuguisa; lá junto a Espaina. Decerto o sailor portchu-

guise, conhecer, not !?

– Oh! Iece, Iece – dirá o Cabo Zé, sorrindo mais uma vez. – pois

quem não conhecer a Marinha Grande!... Bom. Vidro, sim senhor. Muito

bom vidro.

Mas, o cabo Zé, lá na sua ideia, aquilo era um grande disparate, e o

contrário seria, para si, uma grande surpresa. Perguntou:

– Mas, ó mister, como é que foi que disse, essa coisa da Marinha

Grande !? Que me conste, eles lá, não fazem meias!

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– Pois não, – dirá o americano admirado, ou chateado – sei lá – mas

com cara de quem me está a chamar palerma – Eles lá, fazerem a matéria

prima e nós, aqui, fazer o milagre das meias inquebráveis, percebeu?

– Bom, bom, está bem; mister – dirá o cabo Zé, para evitar mais

confusão10.

O cabo Zé pensou lá para consigo:

– Quero lá saber... afinal, o que eu quero é adquirir o mais requinta-

do presente do século, para oferecer, com todo o meu amor, à minha

amada.

– Sim – continuava o “Cabo Zé”, ali no convés – para mim, umas

meias de vidro escondem um quê de intrigante; eu nunca fui capaz de

“encaixar” que vidro, para além de servir para vidraças, garrafas, pratos,

clarabóias, óculos, vitrais ou o caraças, e já agora independentemente de

ser ou não feito na Marinha Grande, viesse a servir também para fazer

meias! Meias de senhora; olha que caraças! Mas o mais intrigante – dizia

ainda – E como é que o raio da vidraça, não se espatifa nas pernas das

gajas!?...

Mas, o Cabo Zé, continuando a dar largas à sua imaginação, louva-

va calorosamente este milagre da técnica; acima de tudo, o que lhe inte-

ressava era oferecer à sua amada, tão chique “souvenir“!

Um “Souvenir” estranho, lá isso é; mas de tão fino gosto não há.

Oh! Como é gostoso pensar nas pernas da namorada, assim envol-

tas numa espécie de redoma, leve, transparente, sensual!

Depois vinha-lhe à ideia, como essas meias iriam causar furor entre

as amigas, roídas de inveja, lá na Cale da Vila.

10

De notar que em 1948, as meias de vidro (meias de nylon) eram uma novidade rara, que muito poucas mulheres usavam, pelo menos em Portugal. Naturalmente devido ao seu elevado preço.

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Enquanto dissertava apaixonadamente, antevendo o invulgar pre-

sente, nas mãos cândidas da sua namorada, o seu olhar espraiava-se

sobre o mar, de lés-a-lés, ansiando por descobrir, algures, e finalmente,

terras da América.

Bom! Mais conversa menos conversa, o “Cabo Zé” trará as meias da

América, e o seu gesto de amor só ficará completo ao fim de uma serena-

ta à luz da Lua.

É exactamente nisto da serenata que passa para o imaginário do

apaixonado “Cabo Zé”, a colaboração do “7004”. O “4” que, tangendo a

sua guitarra, fará despertar de um sono profundo, a sua idolatrada Maria-

na. Mariana!... Doce nome. Mais doce que açúcar mascavado... Todavia, o

Zé, com a sua guitarra, ficará escondido entre os arbustos, pois que, quem

tira aqueles sons pungentes, é o próprio “Cabo Zé”, “que toca e canta

sozinho”, em frente da rústica casinha, numa guitarra de papelão.

Será de madrugada, a Lua já esbatida, declina sobre o mar. As

Gafanhas dormem e ressonam. O Cabo Zé e o 7004/46, esses esperam o

momento oportuno, mudos e quedos junto à Ria, no Cais da Cal da Vila.

Que nem o marulhar de remos se oiçam, e muito menos a voz rouca

de um qualquer pescador que por ali passasse. Então, sim. A voz do

“Cabo Zé” se ouvirá na estreita rua, logo de seguida a duas puxadas em lá

maior, conforme o combinado.

A canção escolhida é aquela canção do filme “Capas Negras”:

Oh! meu amor, Minha linda feiticeira Eu daria a vida inteira Por um só beijo dos teus... Por teu amor eu morria de desejo Deste-me a vida num beijo E eu vivi pra te beijar!

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Ela acorda, e, estremunhada, pensa que é apenas um lindo sonho,

voando, talvez, sobre a Sagres, no alto mar! Porém vai despertando e,

aquela voz, a voz inconfundível do seu amor marinheiro, se torna cada vez

mais real. Está ali, eu oiço... Eu oiço a voz do meu amado!...

É então que, ainda cambaleante, perturbada, apressa-se a acender

o seu candeeiro de petróleo e a colocá-lo no postigo do seu quarto. Se for

verdade – pensava – se tudo isto não for um sonho, ele saberá que esta

luzinha petrolífera se acendeu para ele. Para lhe dizer: “Aqui estou meu

amor; a todo o momento esperava o teu regresso!”

Mas, as coisas não ficam por aqui. Segundo a fantasia do “Cabo

Zé”, a moça, roída de saudade, apaixonada em último grau, não pode limi-

tar-se ao sinal da bruxuleante luzinha. Para o “Cabo Zé”, ela sairá dispa-

rada, vindo cair-lhe nos braços, em pleno voo!

Bom! Chega, finalmente, o doce momento. A guitarra emudecerá.

Se a deusa do Amor estiver por ali perto, suspenderá a própria res-

piração, para melhor escutar as doces palavras do “Cabo Zé”:

Aqui tens ó meu amor Um presente americano. Comprei-o em Nova Iorque E não aí, num cigano. Oh que prazer tenho eu Em oferecer-te estas meias. São de vidro, tem cuidado, Não te vão ferir nas veias

Nesta altura, o Cabo Zé mostrando a sua dentuça, sorrindo, diz para

a malta que o ouvia:

– Bom! O Quarto está a terminar e a história já vai longa. Good Bye!

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De facto, ele a acabar de falar e a soarem as quatro badaladas da

meia-noite, a bordo da Sagres. Estávamos prestes a chegar a Boston.

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REGRESSO A VILA FRANCA DE XIRA

Após a chegada da América, o Zé passou pelo Corpo de Marinhei-

ros e de seguida, foi destacado para Vila Franca de Xira.

Havia cumprido dois anos de marinha (metade do tempo obrigató-

rio), circunstância que lhe conferia direitos de antiguidade relativamente

aos grumetes que estavam naquela Escola – a antiguidade é um posto.

Por tal motivo, desempenhava funções de Cabo de Quarto, quando esca-

lado para o efeito. Mas, desta vez recorreu a uma das suas habilitações

profissionais e, porque era mais antigo, fizeram-no chefe da oficina de

alfaiate. Alfaiate foi uma das suas profissões na sua terra natal.

Estes dois anos foram, fortemente marcados, por acontecimentos de

caracter sociológico, muito graves, não só em terras de Vila Franca, mas

também por todo o nosso país. Foi também neste período que o Zé fez um

curso de guarda-livros por correspondência, para juntar ao curso de dacti-

lografia que, vindo do Navio João de Lisboa, fizera na Rua Eugénio do

Santos, em Lisboa.

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VILA FRANCA DE XIRA NAQUELE TEMPO

Para que se tenha a noção do desespero das gentes que ali afluíam,

na esperança de encontrar um trabalho na construção da ponte de Vila

Franca, o Zé faz referência a alguns casos que ali aconteceram. Decorria

o ano de 1950.

Se muitos portugueses partiam de Portugal – a monte – para Fran-

ça, outros deambulavam por esse país fora, fustigados pela sua própria

fome e a dos seus, que na terra ficaram à míngua de alguma caridade.

Não há, nestas palavras, exagero algum. O Zé, não só os viu chegar a Vila

Franca, como os vira partir até dois anos antes, da sua própria terra. O Zé,

como já se disse, é da Região de Trás-os-Montes.

O chamariz que no momento soava mais longe, era, a construção

de uma ponte em Vila Franca. Rumores que trouxeram àquele lugar muita

criatura desesperada, alguns dos quais encontraram ali o fim dos seus

dias. Uma notícia local, dava conta de que três homens se enforcaram jun-

tos, na mesma árvore.

Mas, também, o próprio Zé, num dia chuvoso e gelado de Janeiro,

saltou as grades do Quartel para tirar da linha do Caminho de Ferro um

pobre homem, ali deitado, com o pescoço no carril, à espera do comboio

que lá vinha.

Havia famílias, cujas casas de habitação eram lorgas cavadas a

meia altura, nos barrancos de Vila Franca. Lama. Só lama.

Poderia fazer-se um relato extenso dos muitos episódios ocorridos

dentro e fora do Quartel, bem como das dificuldades que houve em tornar-

se possível o dar entrada, pela Porta de Armas, a uma multidão de famin-

tos que, com as cabeças metidas nas grades da Unidade, clamavam por

um pouco de pão. Mas não foi fácil ao Comandante da Escola de Mecâni-

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cos e Escola de Alunos Marinheiros permitir-se dar tal autorização, obvia-

mente contrária aos regulamentos da ordem da Marinha.

A este respeito muito fica por dizer. Diz-se apenas que, diariamente,

um bom número de recrutas daqueles anos arrebanhavam, entusiasma-

dos, grandes quantidades de sobras, servindo assim, uma extensa fila de

famintos.

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O SENHOR TENENTE FONTES

Das figuras principais que o Zé foca nas suas histórias, falta ainda

incluir o Senhor Tenente Fontes.

Este velho marinheiro era detentor das mais altas condecorações,

como sejam as medalhas de Torre e Espada e a Cruz de Guerra, etc., por

feitos heróicos, praticados nas campanhas de África.

E, para quem não sabe, essas condecorações dão direito às mais

altas honras militares, onde quer que elas sejam exibidas.

Era uma pessoa de humor grosseiro, irreverente, pouco ou nada

respeitador da ética militar; mas, por qualquer razão, gozava de tolerância,

diria, absoluta, de todos, incluindo qualquer oficial, pelo menos na Unida-

de, onde o Zé conviveu com ele: Escola de Alunos em Vila Franca.

Usava permanentemente um pingalim e não se ensaiava para “cas-

car” num qualquer recruta ou grumete, uma atitude parva e estranhamente

ignorada, apesar de que, na Marinha, é expressamente proibido tal gesto.

O Zé recorda, por exemplo, uma cena passada na carreira de tiro

em Santarém.

Um grumete estendido no chão a fazer tiro ao alvo, o qual já tinha

disparado sessenta tiros sem que tivesse acertado no alvo – de facto nun-

ca se vira um indivíduo mais tacanho –, e o tenente Fontes, não esteve

com meias medidas. Num repente, levanta de alto o pingalim e aí vai

semelhante bordoada, para logo virar costas, sem dizer uma palavra.

Um dia estava o senhor Tenente Fontes, rodeado de grumetes e

marinheiros, contando-lhes os grandes feitos nas campanhas de África.

Tudo muito bem, até certo ponto. Mas, em dado momento, um gru-

mete, resolveu levantar-se e, já pronto para fugir à vergastada, diz ao

tenente, alto e bom som:

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– O senhor Tenente… O senhor afinal ganhou as suas medalhas,

mas foi a matar pretos.

Dito isto, fugiu e o senhor Tenente Fontes disparou a correr atrás

dele, sem que jamais o apanhasse. Claro que tudo ficou por isso mesmo.

O Zé nunca percebeu a razão da existência de uma figura assim,

exercendo a função em igualdade de serviço com os outros oficiais da

Escola.

Mas um outro momento, muito mais aparatoso e complicado, coisa

contada pelo próprio clarim de serviço mostra bem as características, mui-

tos especiais, deste homem, e, já agora, mostra também, o grau da tole-

rância atrás referida. Esta história é contada pelo próprio clarim que, no

momento, estava de serviço.

Em Vila Franca há, ou havia ao tempo, a Escola de Mecânicos e a

Escola de Alunos Marinheiros, estas separadas por um corredor interno,

ladeado por sebes de jardim.

Quem se dirigisse para a Escola de Alunos Marinheiros, vindo do

apeadeiro do Caminho de Ferro da Linha do Norte, tinha de entrar primei-

ramente na Escola de Mecânicos e, daí, percorrer o dito corredor, para

entrar, finalmente, na Parada da Escola de Alunos Marinheiros. A distância

poderá rondar os 200 m.

Na circunstância ia realizar-se o juramento de bandeira dos recrutas

daquele ano, e isso constitui uma verdadeira festa, a que assistem, nor-

malmente, muitas das altas individualidades incluindo o Ministro da Mari-

nha. Como eles, vinham também, como de costume, as respectivas espo-

sas.

Ainda que a Porta de Armas da Escola de Alunos, onde tinha lugar o

juramento de bandeira, seja a entrada principal e por ela passe a grande

maioria dos oficiais, a verdade é que também vêm de comboio e, por isso,

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é colocado um clarim na Porta de Armas, e, um outro, situado no tal corre-

dor, para anunciar os que por ali chegam de comboio, segundo as suas

patentes, com direito a honras militares.

Outro esclarecimento é que as instalações dos oficiais daquelas

unidades conjuntas, ficavam do lado da Escola de Mecânicos isto é, do

lado daqueles que chegam de comboio. Portanto, em qualquer circunstân-

cia, todos daquele lado, teriam de passar pelo clarim, tal como aconteceu

com o Senhor Tenente, quando se levantou da cama e se dirigiu para a

Parada, onde já decorria a cerimónia do Juramento de Bandeira.

Lá vinha ele, conta o clarim, sozinho, cara virada ao chão, sisuda,

como era seu costume, sobrancelha carregada, batendo com o pingalim

na perna, a cada passo que dava.

– Olá, seu Tenente – diz o clarim, naquele jeito de quem fala com

uma pessoa da casa.

O Tenente, olhando de esguelha, sobrancelha levantada, com cara

de poucos amigos, diz:

– Olá cavalo.

– Então, vai até à parada, não? – Diz o clarim sorridente.

Sim porque, esse “olá cavalo”, nada tinha, para ele, de ofensivo. O

Senhor Tenente chamava “cavalo” a toda a gente.

Mas, da parte do tenente, o clarim não ouviu, nem uma palavra.

Aí vai ele, passo lento, nitidamente desinteressado da festa , como,

aliás, o denotava a “humildade” do fato de cotim que vestia, enquanto

todos os outros oficiais haviam vestido as suas vistosas fardas de gala.

A festa decorria e o clarim via que o tenente voltava para trás; já

próximo, meteu-se de novo com ele:

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– Então “Sr” Tenente... Está farto de ver estas coisas, não é verda-

de?

– Não. Nada disso – diz o Tenente Fontes, com voz rancorosa. –

Eles vão ver quem é que tem direito a sentar-se na Tribuna!

Mais um passo à frente, diz ainda:

– Então, o cavalo do Fontes andou com o coirão ao sol mais de um

mês, a montar a tribuna e agora não tem nela uma nesga para se sentar!?

E resmungando ameaças, continuou o caminho em direcção aos

seus aposentos.

O clarim encolhendo os ombros, ficou a pensar no que dissera o

Tenente, mas, sem perceber bem, o que se teria passado.

Como já tinha começado a cerimónia do Juramento de Bandeira e

não havendo o menor sinal de que por ali viesse mais viva alma, pelo

menos com direito a toque de clarim, pensou lá para consigo: “Bom, já não

vem mais ninguém”. E com essa ideia, tratou de descontrair, ainda que

não pudesse ausentar-se do local.

Passados alguns momentos, o clarim viu aparecer, lá adiante, um

oficial solitário. À medida que se aproximava, melhor distinguia – era o

Tenente Fontes.

O clarim, confuso, pois que o velho tenente, tornou-se, de um

momento para o outro, a pessoa mais importante, de todos quantos esta-

vam dentro do Quartel, ficou aturdido, sem saber o que havia de fazer.

Olhava agora embasbacado para as altas condecorações que o

Tenente Fontes exibia no peito e, sabia, obviamente, que, nem uma pala-

vra poderia dirigir ao tenente. Sabia, também, que tais condecorações exi-

giam, sem pestanejar, a obrigatoriedade de tocar a sentido.

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Coisa mais insólita e disparatada, pensava. Era apenas o tenente

Fontes. O “Fontes” que, momentos antes, andava por ali a passear, de

fato de cotim e agora lhe aparece naquele estado.

O dilema era então: se tocasse a sentido – coisa mais insólita –

Interrompia a cerimónia. Não tocar a sentido, perante tais decorações, era

algo inconcebível.

Por sua vez o tenente, com um desplante inacreditável, nem por um

momento se detinha. Pensou: “Bom, eu tenho que tocar a sentido, custe a

quem custar”.

Como é óbvio, o inesperado toque a sentido, deixou todo o Quartel

em suspenso.

Uma Parada repleta de gente, vozes de comando ecoando no espa-

ço, tudo isso, bruscamente interrompido.

É fácil imaginar toda gente, estática, como os marinheiros perfilados

na Parada, ou então levantada, circunspecta, a olhar para um só ponto,

perguntando-se o que estava a acontecer.

Intrigante foi, depois daquele compasso de espera, nomeadamente

para as personalidades instaladas na tribuna, enquanto o tenente Fontes,

percorria, vagarosamente e semi-encoberto pelos arbustos, o “infindável”

corredor, até chegar, com a sua cara de lata, em frente da Tribuna repleta

de personalidades.

Boquiabertos, olhavam para ele, limitando-se a levantar-se e abrir

caminho, até ao lugar a que o condecorado tinha direito. Isto é, ao lado do

Senhor Ministro da Marinha.

Este senhor tenente Fontes, homem idoso, bochechas maceradas e

descaídas, comportamento rude, sempre aprumado, robusto, ainda porta-

dor de uma saúde de ferro, era uma criatura mesmo muito especial. Fosse

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pelo que fosse, o velho tenente “vassoureiro”11, era simplesmente tolera-

do. Provavelmente esse seu “estatuto” poderá, talvez, ter a ver com feitos

exarados no seu curriculum, e daí ser superiormente considerado como

excepção.

11

É um oficial que inicia a carreira como grumete ou aluno sem passar pelo curso superior da Escola Naval.

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DESPEDIDA

Quatro anos de Marinha e o Zé regressou, naturalmente, à vida civil.

Ainda hoje considera que a Marinha foi um dos maiores bens que aconte-

ceram na sua vida.

Sem que tudo tenha, necessariamente, uma explicação, a Marinha

constituiu, para o Zé, desde criança, um vislumbre de esperança no meio

de reais atribulações próprias do tempo e da uma Região, onde deambu-

lou – pode dizer-se –, até aos 20 anos de idade.

A Marinha foi o veículo que o levou a percorrer um caminho, até cer-

to ponto inesperado; um sonho apenas, no qual contactou com gente das

mais variadas origens e formas de estar na vida. Foi a partir da Marinha

que se lhe proporcionou a oportunidade de estudar algo, adquirir conheci-

mentos que o haveriam de fazer vingar no futuro.

Com a Marinha viajou até lugares que jamais teria visitado, ainda

mais em ambiente de alegria e camaradagem de tanta malta como ele – a

marujada em geral –, o extraordinário contacto que teve com portugueses

em terras distantes, e finalmente, talvez a este “bem” se possa chamar de

providencial que é A DESCOBERTA DE AVEIRO.

E assim volta o Zé quase ao princípio desta longa história; isto é, foi

através das linhas telefónicas desde o P.B.X da Aviação Naval Almirante

Gago Coutinho, em S. Jacinto – onde o Zé foi colocado pelo Almirante

Francisco Ferrer Caeiro – e a Rede Telefónica de Aveiro, que o Zé encon-

trou a namorada com quem casou. Daí uma família relativamente grande e

feliz.

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FIM

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A Ida do Zé para a Marinha

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ANOTAÇÕES DIVERSAS

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Há Gente no Convés

No convés andam mil pés Na manobra, na labuta. Sempre alerta, Sempre à escuta, Noite e dia, a marinhar. Pois se ventos os açoitam, De bombordo, De estibordo, Da proa à popa, Pode-se ouvir apitar: “Homem ao mar”!

VELHA SAGRES

Relíquia da velha guarda; Teu pendão Foi ilusão, Dos meus vinte anos de idade Te recordo doutra Era Qual fugidia quimera Carregada de lembranças. Daqui te mando um recado Cinquenta anos passados! Sabe aí, que esses céus Que me viram nos teus mastros, pendurado, Eles me deram, Me trouxeram Um futuro bem fadado.

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A Ida do Zé para a Marinha

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Índice

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 5 Ida do Zé para a Marinha ................................................................................................................. 7 Alguns apontamentos Históricos da Aviação Naval ....................................................................... 14 MARAVILHOSO CENÁRIO DA NATUREZA ................................................................................. 19 Escolha dos Recém-chegados ....................................................................................................... 20

Outra ocorrência ......................................................................................................................... 24 A malandrice dum Rancheiro ...................................................................................................... 26 O 7018/46 e a Metralhadora Enferrujada ................................................................................... 28

O ZÉ NO CORPO DE MARINHEIROS DA ARMADA .................................................................... 29 UM GESTO DE CONFIANÇA EXTREMA .................................................................................. 29

Centro da Aviação Naval em Pedrouços ....................................................................................... 31 N.R.P. AVISO DE 2ª CLASSE JOAO DE LISBOA ........................................................................ 33 O NAVIO ESCOLA SAGRES ......................................................................................................... 36 NAVIO ESCOLA SAGRES (II) ....................................................................................................... 39 Viagem à América do Norte 1948 .................................................................................................. 41 O ZÉ RAMA .................................................................................................................................... 43

A propósito de umas “meias” do Zé Rama. ................................................................................ 44 O PERCURSO DA SAGRES ......................................................................................................... 48

ILHA DE PORTO SANTO ........................................................................................................... 48 ILHA DA MADEIRA (em 1948) ................................................................................................... 49 SÃO VICENTE, CABO VERDE .................................................................................................. 50 MAR DOS SARGAÇOS, BERMUDAS ....................................................................................... 51

A CHEGADA A BOSTON ............................................................................................................... 52 ESTADIA NA AMÉRICA DO NORTE ............................................................................................. 57 Um baile célebre ............................................................................................................................. 60 EPISÓDIOS VÁRIOS A CAMINHO DE LISBOA ............................................................................ 63

Sagres ......................................................................................................................................... 64 Pintura do Navio ............................................................................................................................. 65 CABO ZÉ ........................................................................................................................................ 72 Vós marujos da Sagres, que passais ............................................................................................. 74 “O CAPITÃO DA SAGRES” ............................................................................................................ 75 CERTOS CENÁRIOS ..................................................................................................................... 79

Sortilégio à volta de umas meias de vidro .................................................................................. 81 REGRESSO A VILA FRANCA DE XIRA ........................................................................................ 87 VILA FRANCA DE XIRA NAQUELE TEMPO ................................................................................ 88 O SENHOR TENENTE FONTES ................................................................................................... 90 DESPEDIDA ................................................................................................................................... 96 ANOTAÇÕES DIVERSAS .............................................................................................................. 98

Há Gente no Convés .................................................................................................................. 99 VELHA SAGRES ........................................................................................................................ 99

Page 102: A Ida do Zé para a Marinha - grumete7004.files.wordpress.com · Entre lascas de presunto. Dissertava sobre o mar... Quanta largura teria, E acabou por achar ... Ficou c’os nervos

A Ida do Zé para a Marinha

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