a história no entretecer - editora milfontes historia no...reconfigurá-la, como bem pondera keith...

219

Upload: others

Post on 08-Mar-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,
Page 2: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no Entretecer das Práticas de Ensino

Page 3: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Copyright © 2018, Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).Copyright © 2018, Editora Milfontes.Rua Santa Catarina, 282, Serra - ES, 29160-104.Compra direta e fale conosco: https://editoramilfontes.com.brDistribuição nacional em: [email protected]

Editor ChefeBruno César Nascimento

Conselho Editorial Cadernos de História e EducaçãoProf. Dr. Alexandre de Sá Avelar (UFU)

Prof. Dr. Arnaldo Pinto Júnior (UNICAMP) Prof. Dr. Arthur Lima de Ávila (UFRGS)

Prof. Dr. Cristiano P. Alencar Arrais (UFG) Prof. Dr. Diogo da Silva Roiz (UEMS)

Prof. Dr. Eurico José Gomes Dias (Universidade do Porto)Prof. Dr. Fábio Franzini (UNIFESP)

Prof. Dr. Hans Urich Gumbrecht (Stanford University) Profª. Drª. Helena Miranda Mollo (UFOP)

Prof. Dr. Josemar Machado de Oliveira (UFES) Prof. Dr. Júlio Bentivoglio (UFES)

Prof. Dr. Jurandir Malerba (UFRGS) Profª. Drª. Karina Anhezini (UNESP - Franca)

Profª. Drª. Maria Beatriz Nader (UFES) Prof. Dr. Marcelo de Mello Rangel (UFOP)

Profª. Drª. Rebeca Gontijo (UFRRJ) Prof. Dr. Ricardo Marques de Mello (UNESPAR)

Prof. Dr. Thiago Lima Nicodemo (UERJ) Prof. Dr. Valdei Lopes de Araújo (UFOP)

Profª. Drª Verónica Tozzi (Univerdidad de Buenos Aires)Prof. Dr. Edson Maciel Junior (UFES)

Prof. Dr. Ueber José de Oliveira (UFES) Profª. Drª. Záira Bomfante dos Santos (CEUNES - UFES)

Page 4: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio KmittaSuzana Arakaki

Viviane Scalon Fachin(Organizadoras)

A História no Entretecer das Práticas de Ensino

EDITORA MILFONTES

Page 5: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação digital) sem a

permissão prévia da editora.

RevisãoDe responsabilidade exclusiva dos organizadores

CapaImagem da capa:

Diversidade - foto do acervo pessoal de Ilsyane do Rocio KmittaBruno César Nascimento - Aspectos

Projeto Gráfico e EditoraçãoBruno César Nascimento

Impressão e AcabamentoGM Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

H673 A História no entretecer das práticas de ensino/ Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (organizadoras). Serra: Editora Milfontes, 2018. 218 p. : 20 cm

Inclui Bibliografia. ISBN: 978-85-94353-30-6

1. História 2. Ensino de História 3. Metodologia 4. Fontes Históricas 5. Historiografia I. Kmitta, Ilsyane do Rocio II. Arakaki, Suzana III. Fachin, Viviane Scalon IV. Título.

CDD 373.08

Page 6: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Sumário

Notas Introdutórias .................................................................... 7

Notas sobre o curso da História e o (re)curso do historiador ..13Ilsyane do Rocio Kmitta & Eudes Fernando Leite

Como o historiador produz o seu mel: algumas experiências com fontes sobre temáticas do Mato Grosso do Sul .............. 31

João Carlos de Souza

Formação de professores e ensino de história: reflexões sobre práticas mediadas pela língua escrita ....................................... 65

Maria Lima

Museus em diálogos ................................................................... 95Paulo Henrique Martinez

O ensino de história, entre o local e o global: relato de experiência docente e esboço de uma metodologia para sala de aula ...... 115

Jiani Fernando Langaro

O mangá no ensino de História: possibilidades ..................... 159Tânia Regina Zimmermann, Márcia Maria de Medeiros & Talles Murilo Alves Bispo

O Espaço da África no Ensino de História: demandas sociais e políticas públicas para livros didáticos. ................................... 181

Mírian Cristina de Moura Garrido

História do corpo na sala de aula: os novos domínios da história e a transversalidade ..................................................................... 199

Fernando Lucas Garcia de Souza

Page 7: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,
Page 8: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

7

Notas IntrodutóriasAs reflexões e avaliações sobre as profundas mudanças

pelas quais passou a História, inicialmente com a Escola dos Annales, nos permitem repensar a História com ousadia e também reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores, a convicção de que estudam os fatos e que o passado estava lá atrás, bem organizado à espera do historiador para assim revelar a sua totalidade. Esta relação mudou, ou seja, a relação do historiador com o seu objeto alterou-se significativamente, pois a produção do conhecimento histórico é bem mais complexa, posto que envolve inúmeras e profícuas discussões e problematizações, especialmente no que tange ao principal instrumento utilizado pelo historiador, isto é, as fontes.

Segundo Benjamim (1985), o historiador deveria ser o sujeito que recolhe entulhos que a sociedade relega ao esquecimento. Sua tarefa deveria consistir em apropriar-se dos descartes e deles fazer matéria-prima em sua oficina. A mesma ótica de análise é apresentada por Febvre (1949) quando escreve que fazer história depende da engenhosidade do historiador que a partir de palavras e sinais, a partir de tudo o que pertence ao humano, dele depende e está a seu serviço, que exprime sua humanidade, significa sua presença, suas atividades, suas preferências e maneiras de ser, são matéria bruta para o historiador, que incansavelmente irá lapidá-las e devolvê-las com outros contornos de conhecimento.

Este é um dos desafios da História na atualidade, o de não sucumbir ao ritmo vertiginoso da humanidade, propor uma pausa para buscar na matéria do esquecimento as experiências e vivências, os sujeitos, os discursos e representações sobre o passado de modo que

Page 9: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

8

a História ensinada seja como a “fábrica do mel” como bem salienta Febvre.

E nesse sentido, o curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, com sede na cidade de Amambai, tem por objetivo priorizar a indissociável relação entre teoria e prática na formação de profissionais críticos-reflexivos em relação à docência, e que adotem como objetos de pesquisas científicas questões sociais, econômicas, política e culturais, e demais questões que perfazem o cotidiano. E, no intuito de viabilizar o desenvolvimento do conhecimento no campo de atuação da História, o currículo do Curso foi reformulado e passou a contar com um conjunto de disciplinas responsáveis por apresentar os conteúdos e práticas de ensino fundamentais à formação dos acadêmicos. Dessa forma, o ensino em História visa contribuir na formação sólida com relação aos conteúdos indispensáveis a sua atuação profissional, que, no entanto, devem ser articulados com atividades práticas, a partir das quais os acadêmicos possam construir suas análises partindo das teorias, categorias e conceitos específicos da área.

Esta obra, é o resultado de estudos e práticas de docentes em História desta, bem como de várias outras instituições de ensino superior exemplifica nosso trabalho, para tanto, encontramos reflexões pertinentes no texto Notas sobre o curso da História e o (re) curso do historiador, no que concerne às preocupações teóricas e metodológicas, os parâmetros empregados para tornar a História um conhecimento cientifico. No referido texto, Ilsyane Kmitta e Eudes Leite nos estimulam a pensar não apenas as mudanças que margearam a história e o fazer do historiador, como também a se atentar para as permanências, e ainda, para a ampliação de seus objetos, temáticas, conduzindo para uma reflexão sobre o oficio tradicional do historiador, do pesquisador, do professor em suas respectivas atuações.

Partindo da premissa que quando os historiadores intensificaram o grau de perguntas sobre o passado e escolher objetos de pesquisa de forma mais criteriosa, também foi preciso buscar novas fontes e, pelas escolhas que faz e pelas relações que estabelece atribui um sentido inédito as palavras e imagens que extrai de suas fontes,

Page 10: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

9

que não consiste tão somente numa cópia, uma compilação tal qual ela se apresenta.

Na mesma linha de reflexões, João Carlos de Souza, vai nos contar Como o historiador produz o seu mel e traz provocações ao escrever que o oficio do historiador se aproxima de um quebra-cabeça, onde não importa o número de peças, de sua materialidade ou não, de lacunas ou ausências, o que dá o tom da montagem é a natureza diferente de cada peça, com características que impõe o grau de dificuldade requerendo a habilidade, onde a atenção aos detalhes é crucial para a construção do quadro, para o resultado final, pois para o historiador, as peças não são de mesmo padrão, material, espessura e não possuem número limitado. O historiador está diante de peças a encaixar de naturezas distintas, o que advém muitas implicações e desafios.

Maria Lima apresenta-nos A formação de professores e o Ensino de História: reflexões sobre práticas mediadas pela língua escrita, no contexto de um curso de formação de professores, abordando alguns dos processos reflexivos por que passaram docentes em situações de formação mediadas pela língua escrita no contexto do estudo sobre o conceito de imagem e seus usos para o ensino de História. A partir do pressuposto de que o conhecimento é uma construção social e o fazer docente constitui-se como agência, a autora questiona a ideia de uma técnica associada ao fazer e defende a necessidade da organização de situações de formação regidas pelos princípios do conceito benjaminiano de experiência.

Museus em diálogos, esta é a proposta com a qual nos brinda Paulo Henrique Martinez. Para o autor, o museu é irmão da escola e a educação está na origem dos museus, ademais, ela é a essência própria das instituições museológicas, pois o museu surge para reunir, exibir, tocar a sensibilidade e a consciência do visitante, instruindo espontânea e deliberadamente; onde as ações educativas e a comunicação com o público são funções incontornáveis em todo e qualquer museu, grande ou pequeno, temático ou não, local ou nacional. Martinez conduz seu texto de modo a levar o entendimento que no museu a ação educativa volta-se para a descoberta, ao questionamento, a interpretação, a

Page 11: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

10

compreensão, mobilizando sempre que possível todos os sentidos humanos e não apenas a cognição intelectual.

Ao escrever sobre o Ensino de História, entre o local e o global relato de experiência docente e esboço de uma metodologia para sala de aula, Jiane Langaro problematiza questões que envolvem experiencias docentes, cujo foco da discussão se centra no ensino de história regional e local e na escassez e dificuldades em encontrar bibliografia que contemple os anseios do docente, e mediante tal problemática, esboçar uma proposta cujo intuito é orientar os profissionais de história a construir um espaço para o ensino de história local e regional nos níveis onde atuam, articulando essas dimensões com o global.

A opção do autor é sistematizar, neste texto, os principais pontos para o ensino de história local e regional nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, esboçados a partir das oficinas realizadas com os discentes da graduação em história, sem se eximir de discutir as questões pertinentes a esse ensino nos anos iniciais do nível fundamental, motivo pelo qual aborda também a experiência de orientação.

Para Tania Zimmermann, Márcia Medeiros e Talles Bispo, uma das maiores preocupações dos professores de História atualmente é inovar o ensino de sua disciplina através de novos elementos e utilizando novas linguagens; nesse sentido O mangá no ensino de História: possibilidades e desafios, oferece subsídios para o ensino de história utilizando o mangá, no entanto, precisa estar atrelado a eventos históricos se constituindo assim em uma metodologia que emprega elementos e linguagens que vão ao encontro das preocupações dos professores, que é despertar no aluno o gosto pela leitura, pela história e uma reflexão histórica, utilizando o mangá como um mecanismo de assimilação de conhecimento com base em uma metodologia que facilita sua difusão.

Portanto, a história em quadrinhos, mais especificamente os mangás, constituem mais um aditivo didático para renovação e enriquecimento do ensino, fazendo com que se amplie o leque de possibilidades de práticas disponíveis aos educadores. Através deste

Page 12: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

11

recurso temos uma multiplicidade de temas a serem abordados, facilitando também o entendimento de saberes culturais, ideológicos e identitários

A autora Mirian Garrido, pensando O Espaço da África no Ensino de História: demandas sociais e políticas públicas para livros didáticos nos instiga com reflexões sobre como a temática “África” se apresenta como uma demanda social e sua presença nas políticas públicas educacionais contemporâneas lançam indagações, muitas ainda sem respostas, portanto, a proposta da autora é contribuir e fomentar novas abordagens e discussões englobando a temática, os conteúdos apresentados nos livros didáticos e a Lei 10.639/2003, que com sua aprovação e também o discurso do movimento negro – em específico o que relaciona a necessidade de conhecer a história africana e afro-brasileira de forma positiva para uma auto representação positiva – ganha credibilidade e visibilidade.

Para fechar este entretecer, trazemos o texto de Fernando Garcia, cujo título História do corpo na sala de aula: os novos domínios da história e a transversalidade, ponderando que transformado em instrumento político, o corpo é significado, disciplinado e submetido, assim como é ressignificado, transgredido e torna-se espaço de resistência, e nesse sentido, acompanhando estas transformações, e talvez justamente no anseio de compreendê-las ao passo que as vivenciam, é que os historiadores se debruçam sobre esses novos objetos. O autor apresenta as possibilidades, se entendermos que a emergência da História do Corpo na contemporaneidade é resultado de uma demanda social, de uma carência de orientação que incita esses novos temas de pesquisa.

Tendo a história a função de orientação existencial, se faz desejável que esses temas figurem entre as discussões produzidas na escola, no processo educacional, gerando desafios, uma vez que ao aceitarmos ser o conhecimento escolar dotado de particularidades e construído no interior de uma cultura escolar cujas especificidades não devem ser ignoradas, faz-se imprescindível pensar o “como” dessa inserção.

Page 13: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

12

Como podemos observar, trata-se de uma obra, cujo entretecer de práticas e teorias se fazem presentes, advindas de um trabalho realizado com afinco junto as suas instituições e no decorrer de suas práticas docentes, despertando a necessidade de uma busca constante, de repensar com ousadia e reconfigurar a História, suas teorias, seus objetos, suas fontes e possibilidades de construir conhecimentos “encantadores” no campo do ensino e para a historiografia.

Boa leitura!

As Organizadoras

Page 14: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

13

Notas sobre o curso da História e o (re)curso do historiador

Ilsyane do Rocio Kmitta1

Eudes Fernando Leite2

A contemporaneidade parece sofrer certa “carência de história”! Poderíamos mensurar quantas vezes nos deparamos com a presença da palavra história em algum noticiário, geralmente devotado à temas políticos, referindo à algum suposto papel a ser desempenhado por esse saber no futuro. Paradoxalmente a menções à história, em tais circunstâncias, esperam dela algum atestado de reconhecimento de legitimidade ou de salvo-conduto. Essa preocupação com a história é também importante porque sinaliza algum tipo de relevância que tal tipo de conhecimento ainda possui em uma sociedade, como a brasileira, pouco afeita a pensar seu trajeto. Isso posto, este texto realiza um percurso em que momentos e aspectos importantes do campo histórico são destacados.

As preocupações teóricas e metodológicas, os parâmetros a serem empregados para tornar a História um conhecimento científico, as demandas apresentadas, os conceitos e teorias constantemente repensados e revisitados, fazem da História, uma prática do conhecimento como uma área de atuação cada vez mais ampla e plural. Contemporaneamente o historiador, em seus mais diversos campos de atuação, tem sido estimulado a trabalhar com novas fontes, objetos e abordagens. Estímulo esse, que altera significativamente os rumos dos trabalhos historiográficos e o fazer da História, de suas funções e sentidos.

Surgem questões como as que dizem respeito às mudanças e permanências no fazer do historiador e as características norteadoras

1 Doutora em História pelo Programa de Pós-graduação em História (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal da Grande Dourados, MS.

2 Doutor em História. Programa de Pós-graduação em História Universidade Federal da Grande Dourados, MS.

Page 15: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

14

de seus objetos de análise, bem como a ampliação da pesquisa em História, que aos poucos, conquista um leque considerável de publicações, ampliando seu campo de abrangência e recepção. Essas são reflexões fundamentais que levam ao entendimento e a escolha dos objetos e temáticas pelos pesquisadores, sejam elas memórias, experiências vividas, patrimônio histórico, movimentos sociais, gênero, dentre outras. As inovações tecnológicas emergem como subsídios desafiadores aos tradicionais métodos de pesquisa e na formação do historiador, bem como na produção da historiografia. Perspectivas que desafiam e afetam os rumos tanto da pesquisa como do ensino e, ao mesmo tempo, conduzem para uma reflexão sobre os ofícios tradicionais do historiador, do pesquisador, do professor em suas respectivas atuações.

A (re)descoberta dos homens, enquanto participes e personagens da História surge como uma forma de contraposição à aquela historiografia centrada nas categorias coletivas, de conceitos macroestruturais e, por deveras abstratos, contribuindo significativamente para a inserção da dimensão inventiva das práticas humanas como um espaço de atuação dos pesquisadores e/ou historiadores. Cabe, aqui, dar os devidos créditos à essa compreensão presente em uma importante referência intelectual para o campo da história: o francês Marc Bloch. Como todo intelectual de seu tempo, Bloch parece tentar se imiscuir em seu tempo, momento emblemático na França, pátria do Iluminismo, vencida e ocupada pelos nazistas; cindida em seu cotidiano pela presença do colaboracionismo.

Marc Bloch, de certa maneira, ao rascunhar Apologia da História ou o ofício do historiador, cuja publicação ocorreu em 1949, portanto depois de seu assassinato, repôs uma questão central para interessados em História, avaliando ainda o lugar social do conhecimento histórico. Escrito-testemunha de sua época, Apologia contém uma reflexão marcada pelo contexto e pela capacidade de seu autor em construir uma leitura de seu ofício apontando para aspectos do método, mas igualmente para o caráter político do conhecimento.

A história é igualmente, para Bloch uma ciência que possui a tarefa de lidar com homens, atores produtores das dinâmicas sociais

Page 16: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

15

que ao longo do tempo protagonizam o movimento responsável pela produção da História-acontecimento. O Passado que compõe as preocupações do historiador só tem importância à medida em que demarca uma noção de tempo, cuja relevância decorre da presença humana.

há muito tempo, com efeito, nossos grandes precursores, Michelet, Fustel de Coulanges, nos ensinaram a reconhecer: o objeto da História é, por natureza, o homem. Digamos melhor; os homens. Mais que o singular, favorável à abstração, o plural, que é o modo gramatical da relatividade, convém a uma ciência da diversidade.3

Nessa perspectiva, todo evento classificado como histórico é predominantemente produzido pelos homens e pelas relações sociais que determinam o grau de conflitos e/ou consórcios em torno da sua estrutura organizacional. Portanto, as práticas e atividades humanas sejam individuais e/ou coletivas não podem ser reduzidas apenas e tão somente a um aspecto da realidade, ou seja, uma prática econômica não pode ser desprendida, desligada de um conteúdo sociopolítico e sociocultural e suas respectivas análises. Assim todo evento histórico é social, cultural e simbólico, político e econômico e, necessita de formas, de linguagens e símbolos para estabelecer uma dada comunicação com a sociedade. E, em conformidade com Durval Albuquerque,4 para o historiador escrever história é também importante mediar temporalidades, exercer uma atividade de produção entre natureza, sociedade e culturas em tempos distintos, baseado nos indícios que o passado oferece, que nos apresenta como acontecimento dado.

O fato de escrever história não consiste apenas em uma atividade acadêmica e, como pondera Hobsbawm,5 o dever principal do historiador é de se mostrar critico, de ser um não conformista, visto que sua produção, já serviu para a consolidação de políticas

3 BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 54.

4 Cf. ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007.

5 Cf. HOBSBAWM, E. Sobre história: ensaios. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Page 17: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

16

de Estado, para a construção de formas de identidades nacionais e mesmo locais, gerando certo grau de conflitos. Portanto, rever os caminhos da escrita e da pesquisa histórica é um dos ofícios básicos do historiador para o entendimento da sua atuação enquanto profissional da História. É necessária uma avaliação critica que perpassa a relação entre historiografia e historicidade e, que por sua vez, implica na consciência de que todo o conhecimento produzido tem a sua própria historicidade, ou seja, não pode ser desvinculado do recorte do tempo no qual foi produzido.

A historiografia de caráter profissional é tanto resultado das questões internas ao campo, quanto das demandas do tempo; demandas contemporâneas à produção do saber histórico e com as quais o historiador estabelece diálogo. O conhecimento do passado, como se sabe, inclui em sua existência não só os fenômenos perdidos no tempo, marcado pela ação das personagens, mas da mesma forma diz muito a respeito do tempo presente e da sociedade dessa época.

Com base nas questões acima expostas, observa-se uma expansão vertiginosa no campo da História e no universo dos historiadores e, tal expansão, foi responsabilizada por uma espécie de crise de identidade, de acordo com Chartier.6 O autor analisa que a então chamada Nova História sucedeu um tempo de dúvidas e mesmo de incertezas, de um tempo de questionamentos que expressavam, de certa forma, o receio da fragmentação e da dispersão da História. As grandes tradições historiográficas perdiam sua unidade, fragmentando-se em propostas diversas que multiplicavam não apenas os objetos como também os métodos e as fontes. Ofuscando a certeza, até então advinda da História tradicional, que a protegiam de qualquer inquietude no regime da verdade. Como consequência, nesse sentido para Chartier,7 as modificações ocorridas no campo de análise e estudo da História estão associadas às próprias práticas de expansão da pesquisa, da definição e escolha dos objetos, dos recortes temporais, das aptidões e diferenciações nos campos cultural e social,

6 Cf. CHARTIER, R. O mundo como representação. In.: CHARTIER, R. A beira da Falésia: a história entre certeza e inquietude. Porto Alegre: EUFRGS. 2002.

7 Ibidem.

Page 18: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

17

da aptidão, organização e problematização por parte dos historiadores e da dinâmica social.

Se considerarmos que as preocupações teóricas que envolvem questões que estão diretamente ligadas aos parâmetros utilizados para tornar a história um conhecimento cientifico, a sua funcionalidade e a utilidade desse conhecimento para a sociedade, percebe-se que é a partir de tais preocupações que emerge a necessidade do entendimento da função do historiador, quais os modelos de construção, de interpretação, reflexão e análise se utiliza para a produção de um conjunto teórico capaz de explicar seu objeto. Mesmo que o historiador detenha tal conhecimento, é o respeito às regras próprias e as operações pertinentes à construção da História a condição necessária, mas não suficiente para estabelecê-la como um saber único e especifico. Nesse ponto da discussão, voltamos a Chartier, quando o autor pontua que são duas as exigências necessárias para a constituição da ação do historiador, a primeira diz respeito a inteligibilidade do objeto proposto e a sequência de problematizações e, a segunda consiste no diálogo da História com outros campos de saber e/ou do conhecimento, facilitando e multiplicando os campos de trabalho, fontes, experiências e análises.8

Na esteira de um acumulo significativo de reflexões e debates acerca do método de produção de conhecimento histórico, Roger Chartier insiste na inexistência de um objeto, ou se preferirmos, de um passado natural, lócus de onde o historiador extrai conhecimento, sem impor ao acontecimento uma série de indagações – de certa maneira, expectativas de respostas – com a intenção de compreender, para em seguida explicar o passado estranho ao presente. Não se trata, certamente, de estranhamentos temporais, mas de indagações germinadas pelo historiador, no presente, num diálogo quente com sua própria historicidade. Ao produzir uma relação de conhecimento sobre acontecimentos, o historiador realiza uma prática em que sua pertença ao presente não pode ser ocultada ou disfarçada. Resta ao historiador trabalhar com diversos sentidos da diferença: diferença de si em relação aos tempos históricos, diferenças entre sociedades e indivíduos em temporalidades distintas.

8 Cf. CHARTIER, R. O mundo como representação... Op. cit.

Page 19: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

18

Para que tais objetivos sejam alcançados, é preciso conhecer e entender a dinâmica das sociedades e/ou agrupamentos humanos em seus distintos processos históricos e temporais, diferentes daqueles aos quais o historiador está habituado a analisar. Dessa forma, não teremos apenas uma história nas formas de história que nos permite o entendimento de que o conhecimento histórico não cabe apenas em um modelo único de escrita e explicação. Tal reflexão nos remete a outra questão que envolve a verdade histórica. Cabe a todos os historiadores questionar se é possível a obtenção de uma verdade na História. Em conformidade com Paul Veyne, a verdade é que a verdade varia, tem suas variações de acordo com o dado entendimento.9 Essa variação está atrelada ao fato de que a História é uma construção intelectual no presente, partindo de indícios deixados pelo passado.

Para o historiador tais indícios são chamados de fontes históricas, as quais ele tem acesso e, as conclusões de suas analises podem ser alteradas com o surgimento de novas fontes, novos documentos e leituras do que era conhecido. Notemos que quando os historiadores intensificaram o grau de perguntas sobre o passado e escolher objetos de pesquisa de forma mais criteriosa, também foi preciso buscar novas fontes e, pelas escolhas que faz e pelas relações que estabelece atribui um sentido inédito as palavras e imagens que extrai de suas fontes, que não consiste tão somente numa cópia, uma compilação tal qual ela se apresenta. Para Veyne, é tarefa do historiador perceber como se dá e quais são os problemas que se apresentam no decorrer da escrita da história,10 a afirmação do autor parte do principio de que o método, independente de sua utilização, não torna a História uma ciência, tal qual outras ciências experimentais. Na produção do conhecimento histórico encontram-se lacunas criando a possibilidade de novas análises.

Veyne, de forma provocante, destaca não apenas o caráter provisório do conhecimento histórico, mas ele chama atenção para os limites existentes o acontecimento propriamente e a produção de uma fora de saber acerca dele. A provisoriedade do conhecimento

9 Cf. VEYNE, P. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70, 2008.10 Ibidem.

Page 20: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

19

é parte das inconsistências da história na medida em que ela opera para buscar o “real” mas é impossibilidade de retomar ou resgatar o passado e expô-lo como um troféu ou um atestado de cientificidade. Dessa condição, seria apropriado dizer, desse fenômeno, temos parte importante das características do conhecimento feito pelos historiadores e que indica a condição lacunar da história.

No entanto, nem todos os dados podem ser simplesmente utilizados sem a devida analise, sem uma reflexão plausível sobre os fatos. Consideramos que existe um campo de diferenciação entre o que é pertinente a um acontecimento ou o que se conhece como um acontecimento. Assim é possível perceber que a verdade, conforme análise de Veyne, sofre também tais variações, no interior do campo das pertinências e permanências históricas.11 O que vai definir tais conexões são as fontes escolhidas e a análise criteriosa, coerente e não dogmática do historiador. Para Bloch, o oficio do historiador incide na reflexão da ideia de como ocorrem os procedimentos e/ou conhecimentos históricos.12 O historiador faz ao passado as indagações que o presente apresentou como pertinentes na obtenção das respostas que atendam aos seus interesses e, exige novo questionamento através das respostas obtidas. A historiografia se desloca e o homem também muda, modifica seu ambiente, sua cultura, seu modus vivendi e seu modus operandi.

Mudou o passado ou o que mudou foram apenas os olhares do presente em direção ao passado? A problematização dos debates e do objeto de acordo com Reis é pensar, teorizar, criar e testar hipóteses, articular os discursos em linguagem compreensível, discutindo-o seus mais variados ângulos, “percebendo- o em suas mudanças de tempo”.13 Finalmente, avaliar a dimensão e/ou grau das dificuldades do fazer historiográfico. A alternância decorre também da historicidade do historiador, sujeito que se interessa pelo acontecimento à medida em que esse fenômeno o incomoda; tal “mal estar”, paradoxalmente, não é individual, mas é parte da condição existencial do historiador que pertence a um tempo em que alguma

11 Cf. VEYNE, P. Como se escreve a história... Op. cit.12 BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador... Op. cit.13 REIS, J. C. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: EdFGV, 2010, p. 12.

Page 21: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

20

outra questão pretérita ganha notoriedade e acaba por ser convertida em uma problemática merecedora de atenção, sob as regras do ofício orientador e da investigação histórica. A prática historiadora implica no reconhecimento da presença do historiador no tempo e no espaço, ambiências essa que dele fazem um leitor-construtor de representações peculiar não por sua condição física, mas por suas relações com o tema e com o campo histórico. O historiador é o especialista, cujo treinamento nas artes de seu ofício favorece na aquisição e aperfeiçoamento da prática da pesquisa histórica. Não é a idade cronológica ou a condição de testemunha as garantidoras da condição de autoridade do historiador, mas suas relações com o campo em que trabalha.

Partindo dessa premissa, um dos maiores problemas enfrentados pelo pesquisador são aqueles relacionados às fontes e métodos. Para construir um novo objeto de pesquisa é preciso buscar novas fontes, tal como enunciavam os franceses na década de 1970; a busca recai sobre a historia oral, imagens, literatura, música, livros de registros e atas, jornais, estatísticas, enfim; se por um lado ocorreu a ampliação do campo da documentação histórica, em detrimento a uma historia baseada essencialmente em documentos e textos, agregando-se um rol de análises mais criteriosas, por outro lado essa amplitude trouxe também uma preocupação de primeira ordem para os pesquisadores em face da maior abrangência das atividades humanas o que suscita analises mais complexas e rigorosas.

Portanto, a introdução das novas indagações e problematizações levou os historiadores a enriquecerem o campo teórico e metodológico, construindo novos conceitos, como as práticas e representações encontradas nos trabalhos de Chartier,14 as noções construções culturais e apropriações em Certeau,15 quando o autor analisa a invenção do cotidiano com base nas escolhas dos sujeitos e da sua relação com a cultura em determinado contexto histórico e temporal. As pesquisas e debates sobre a narrativa, suas estratégias

14 Cf. CHARTIER, R. O mundo como representação... Op. cit.15 Cf. CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 6 ed.

Petrópolis: Vozes, 2001.

Page 22: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

21

discursivas e legitimidade, tão bem trabalhadas e apresentadas por White e Burke,16 bem como memória e identidades nos trabalhos de Le Goff e Paul Ricouer.17 Todas essas mudanças que representam para a história o desaparecimento de modelos rígidos de compreensão dos princípios de inteligibilidade e, que foram de modo geral, aceitos pelos historiadores.

Nesse contexto, no final da década de 1980 a memória tornou-se um campo fecundo de reflexão para os historiadores assim como as profundas mudanças pelas quais passou a historiografia nas ultimas décadas. Ricouer tratou com clareza as diferenças entre história e memória: de acordo com ele, a primeira diferença consiste no que distingue o testemunho do documento e a segunda a que opõe o imediatismo da construção histórica e por ultimo que opõe reconhecimento do passado e representação do passado.18 Do mesmo modo, as reflexões sobre as diferentes e constantes representações utilizadas, as diferentes linguagens, textos, narrativas, imagens, usadas na construção do conhecimento histórico evocam uma infinidade de situações múltiplas e de múltiplos sentidos que estão associados às constantes modificações operacionalizadas e paradigmáticas dos valores contemporâneos e da dinâmica dos fenômenos sociais e históricos. O historiador passou a escrever e apresentar uma história menos dogmática e mediadora das inquietações gestadas pela sociedade em que se insere.

As preocupações a respeito da presença da memória enquanto objeto e também fenômeno ligado à conservação de um tipo de informação sobre o passado produziu importantes discussões. Ainda que essa relação – a história e a memória – tenha larga presença no campo historiográfico, os historiadores de ofício se dedicaram a demonstrar que a memória possui relevância, mas se distingue da história por estar fundamentalmente vinculada ao indivíduo e

16 WHITE, H. Trópicos do discurso: ensaios sobre a critica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994; BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

17 Cf. LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Edunicamp, 1992; RICOUER, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Edunicamp, 2007.

18 Cf. RICOUER, P. A memória, a história, o esquecimento.... Op. cit.

Page 23: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

22

à capacidade do mesmo em operar constantes ressignificações em decorrência de outras experiências. No conhecido verbete sobre a memória, Le Goff destacou que

a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.19

O falecido historiador medievalista francês apresenta importante contribuição para o entendimento da memória enquanto fenômeno social e histórico, alertando ainda para seu lugar nos espaços do poder, sobretudo quando ela a passa a ser empregada enquanto mecanismo de valorização de atores e mitos políticos, sob determinadas circunstâncias em que há disputas pelo domínio ou tentativa de imposição de um modelo de certeza sobre o passado. A memória nesse contexto cria uma relação ambígua e não raras vezes antagônica com a história porque ambas reivindicam direitos sobre a preservação e a explicação dos acontecimentos pretéritos. Sobrevive uma disputa, mas também ações colaborativas quando o objetivo é explicitar, até onde for possível, o acontecimento histórico.

A contemporaneidade trouxe a expansão das relações sociais com o fenômeno da globalização em diferentes espaços e tempos. Assim, considerando que a essência do conhecimento histórico são as ações humanas e as contradições que são traduzidas no fato histórico, o passado nos chega como um discurso, produzido pelo homem, portanto, não é possível restaurar o real e o vivido em sua integralidade, sendo a memória uma fonte de pesquisa, é também passível de erros, esquecimentos e silêncios. Da mesma forma, é parte do conhecimento e do fato histórico, o tratamento dado ao documento, como nos alerta Le Goff, quando ensina que trabalhar com o documento escrito, com as fontes, é interrogar os silêncios da história, como algo que nos foi dado intencionalmente, produto de orientações históricas e do homem, as quais deve o historiador fazer as

19 LE GOFF, J. História e Memória... Op. cit., p. 423.

Page 24: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

23

devidas criticas.20 É preciso explicar e reconhecer o documento em seu caráter, sempre mais ou menos, fabricado por outrem. Se é verdade que todo discurso historiográfico é determinado pelo interesse dos grupos descritos e vistos como “dominantes”, podemos também admitir que o discurso seja sempre autoproduzido, pode não dizer nada sobre o objeto, mas pode responder muitas questões sobre quem o produziu. Se é justo dizer que o outro é construído pelo discurso, não seria também pertinente avaliar o discurso do outro como um instrumento de estratégia para adentrar no estudo das fontes e de como se construiu esse discurso e a imagem do outro? A tarefa do historiador será então a de desconstruí-los, revelando as suas imbricadas teias de constituição e naturalização.

Para Le Goff a atenção do historiador deve se voltar para o fato em que o documento é algo produzido, forjado no calor do cotidiano, mas se ligado ao poder ou institucionalizado pode virar um monumento uma referência posterior, tal qual o discurso produzido pela memória, que parte do presente para (re)inventar o passado.21 Nessa perspectiva, são indispensáveis algumas reflexões sobre a memória como uma modalidade de representação social num quadro de práticas que caracterizam a sociedade, sejam como um tema de estudo, seja como suporte dos processos de identidades e reivindicações. Seja como prática seja como representação a memória é frágil e, sua fragilidade envolve questões que esbarram na dimensão técnica, cuja problemática, esta centrada na qualificação do juízo critico e na sensibilidade do homem diante das informações, da dimensão existencial e de domínio, da especificidade centrada nas práticas sociais que atuam como elementos de intervenção nas suas funções e na sua eficácia, da perda de memória coletiva que pode ser produzida e artificializada, da dimensão política associada as pressões vigentes na sociedade, no presente e na amplitude das práticas sociais da memória, pela mídia que prioriza o transitório, o efêmero.

Se o monumento é tudo aquilo que evoca o passado, consequentemente é um legado á memória coletiva. O documento é

20 LE GOFF, J. História e Memória... Op. cit21 Ibidem.

Page 25: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

24

uma prova escrita e apresenta-se por si como uma prova histórica, um discurso produzido, portador de representações. A sua objetividade opõe-se a sua intencionalidade, fato esse que pede cautela do historiador ao efetuar suas análises. Ponderando, de acordo com Chartier que as representações geram práticas, no entanto, as práticas não geram representações, essas por sua vez, são entendidas como classificações e divisões que organizam a apreensão do mundo social como categorias de percepção do real.22 O autor parte de um objeto ausente que é substituído por uma imagem material, que por sua vez irá reconstituir uma memória.

No entanto, se com os Annales a noção de documentos e fontes ganhou amplitude é importante salientar que exigiu do historiador, analisar a intencionalidade de quem os produziu, sua relevância e a problemática apresentada. Tanto o documento quanto o monumento foram produzidos para transitar entre gerações de historiadores, tentando impor uma imagem de si, pois todo documento traz e mantém as características essenciais do que quer mostrar a outrem como o real, uma representação do passado. Cabe ao historiador não sucumbir a ingenuidade na sua analise. Certamente que a História faz-se com documentos escritos, no entanto, pode e deve fazer-se quando esses não existem. É a habilidade do historiador que permite alcançar tal feito. Em conformidade com Hobsbawm tudo que pertence ou depende do homem que o serve, exprime e demonstra sua presença, atividade, gestos, sua maneira de viver e ser é história.23 É, portanto, o homem o artífice do tempo na história. O homem e suas práticas sociais enquanto fonte para o trabalho dos historiadores e, como toda fonte suscita uma analise profunda e coesa, mesmo por que, nos acontecimentos humanos, nem sempre o homem é a peça principal, que por sua vez, não são coisas ou objetos consistentes e permanentes, não são portadores de unidades naturais e/ou únicas. Pensar os fatos e/ou acontecimentos é pensar na sua significação.

22 Cf. CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

23 Cf. HOBSBAWM, E. Sobre história... Op. cit.

Page 26: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

25

O desafio posto à história e aos historiadores na contemporaneidade é incorporar nas suas reflexões e nas práticas de pesquisa os sentidos que a produção do passado implica desenvolver uma espécie de consciência em que existem lado a lado a tentativa de compreender o que não mais existe e, ato continuo, produzir representação aceitável e compreensível desse fenômeno. O estigma produzido pela noção de ciência, forjada especialmente no século XIX, atormenta o imaginário historiador, impondo a necessidade de controlar sempre seus impulsos para não afetar o conhecimento. O historiador se vê constrangido a admitir que se faz presente em seu objeto, mas por dever de ofício precisa enfrentar diuturnamente o risco de mesclar o seu presente ao passado com que lida.

Se a questão das fontes parece equacionada e a demanda por um método seguro para se compreender fenômenos ou acontecimentos eleitos como históricos, há ainda a demanda pela melhor compreensão da produção escrituristica do conhecimento fabricado pelo historiador. Bastante discutida a partir dos escritos de Lawrence Stone e Hayden White, entre outros, a chamada “questão da narrativa” não apenas repôs um tema basilar no trabalho desenvolvido pelo historiador, mas também chamou a atenção para o lugar e o sentido que a escrita sobre eventos passados provoca no presente.

Não poucas vezes, tenta-se diminuir ou desvalorizar a preocupação com a narrativa atribuindo-lhe a filiação às angustias produzidas no mundo pós-moderno e ao “giro-linguístico” estadunidense. Ainda que as críticas, por vezes, apontem para tópicos relevantes, a leitura que quer reduzir a discussão às tentativas de desvirtuar a ciência histórica ou sugerindo a existência de tentativas de alinhar o texto histórico ao texto literário e ficcional não apresentam possibilidades de enfrentar o tema do texto histórico enquanto uma representação escrita de forma consistente. A importância que a narrativa adquiriu decorre das limitações que os modelos macro explicativos apresentaram e que progressivamente foram associados à preocupações com um tipo de eficácia estética que os trabalhos historiográficos devem(riam) alcançar.

Page 27: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

26

O texto ou a escrita pode ser tomado como a materialização do exercício e das práticas intelectuais realizadas pelo historiador. Sua estrutura obedece a marcos da linguagem formal, mas antes reflete todas as etapas que Certeau denominou de “operação historiográfica”, realizando as etapas da pesquisa e suas dimensões. É no texto que se encontrará uma imagem do passado, a representação historiográfica que é um resultado da pesquisa e possui a tarefa de expor ao leitor um tipo de compreensão e explicação de um tema estudado. Considerando-se que,

ainda que o debate sobre a narrativa tenha adquirido status de “objeto” ou “fenômeno”, acreditamos estar distante a elaboração de um consenso razoável em relação ao seu espaço no trabalho historiográfico. E a dificuldade decorre da resistência verificada entre os historiadores, especialmente aqueles que ainda perseguem macronarrativas, em considerar a produção textual enquanto componente essencial para a historiografia. Esse entendimento, o da relevância do texto para o conhecimento histórico, está muito além das preocupações formais, como as de observação da ́ legislação gramatical´.24

Pensar sobre o texto histórico é reconhecer a relevância que o formato de “narrar” possui para o historiador e para o seu leitor. Sem dúvida, a narrativa por si não garante a existência de um trabalho historiográfico, mas sem pensá-la enquanto etapa integrante do ofício o esforço empreendido na pesquisa e na análise das fontes, bem como a construção do entendimento acerca do objeto, o esforço intelectivo não adquire “materialidade”. A presença da narrativa no interior do trabalho realizado pelo historiador não diz respeito exclusivamente a sua característica estética; interessa igualmente sua função analítica e, ao cabo, explicativa que introduz um sentido ao passado, entregando sua representação ao leitor do presente. Consequentemente, é na narrativa que se encontra a possibilidade de conhecimento histórico enquanto um tipo de saber especializado nãos apenas nos seus métodos e teorias, mas também em sua exposição.

24 FERNANDES, Frederico G.; LEITE, Eudes. E as musas se riem: problemas sobre a metaficcionalização da História. In.: TETTAMANZY, Ana Lúcia L.; ZALLA, Jocelito; D´AJELLO, Luís Fernando (org.). Sobre as poéticas do dizer: pesquisas e reflexões em oralidade. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p. 168-169.

Page 28: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

27

No percurso da operação historiográfica, a atuação do historiador se mostra importante quando permite que o passado ganhe sentido face às indagações do presente. Esse exercício de prospecção implica no trabalho com as fontes, componente fundamental para a construção do conhecimento histórico.

Bloch chama a atenção para o cuidado em imaginar que um único documento responderia a toda problemática histórica.25 Não há História sem documento, mas, um único documento não faz a História. É possível verificar uma revolução das fontes apoiadas em novas tecnologias permitindo uma dilatação da memória histórica que, no entanto, pede cautela pela sua efemeridade. Para Certeau com o advento da tecnologia é necessário uma analise criteriosa, uma submissão mais critica,26 e para Bloch os documentos não aparecem aqui ou ali pelo efeito ou desígnio dos deuses,27 seja sua presença ou ausência esta associada ao homem, as causas humanas, vinculados a sua utilização pelo poder ou seja o documento é um produto da sociedade e esta atrelado as relações de desenvolvimento e as forças que moldam e detém o poder. Salientamos que nesse sentido, pensar o poder não apenas a partir da institucionalização, como também nos aspectos que se articulam na busca do poder.

Para concluir, retornamos a Bloch quando o autor escreve que o oficio do historiador tem como ponto inicial uma reflexão a partir da ideia de como ocorrem os procedimentos na elaboração dos conhecimentos históricos.28 Fazendo recortes temporais, elege não apenas seu objeto, ele precisa identificar e selecionar suas fontes e os aportes teórico-metodológicos que são norteadores de suas análises, fundamentando e amparando a problematização do objeto. E, na sequencia da pesquisa, ter o cuidado de não desvincular o individuo e o ser pesquisador do processo histórico analisado. Segundo Bloch, a história não tem um fim, sua funcionalidade está atrelada a função atribuída a ela pelo historiador.

25 Cf. BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador... Op. cit.26 Cf. CERTEAU, M. de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982.27 Cf. BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador... Op. cit.28 Ibidem

Page 29: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

28

No âmbito das polêmicas criadas a partir dos temas enfrentados por White, nas décadas de 1960 e 1970, está presente a discussão respeito do ofício do historiador e das tarefas atribuídas ao conhecimento histórico. Ao tentar responder às críticas atribuídas às suas “provocações”, White produziu em 1966 um instigante ensaio – O Fardo da História - em que se percebe a tentativa de articular aspectos inerentes à uma filosofia da história e à teoria do conhecimento histórico, associadas à tarefa do conhecimento enquanto fenômeno capaz de influenciar não apenas o campo histórico, mas sobretudo a sociedade no presente. Longe de considerar a história um saber descolado de função social e política ou, um saber equivalente a arte literária, Hayden White se dispôs a pensar o conhecimento histórico na relação de produção e apropriação, apontando ainda que o trabalho com o passado evoca dimensões que podem ser estéticas, de curiosidade ou de intervenção. Nesse contexto encontra-se o profissional da história, um ser marcado pela necessidade produzir representações e de tomar decisões sobre sua aplicabilidade.

e segue-se que o ‘fardo do historiador’ em nossa época é restabelecer a dignidade dos estudos históricos numa base que os coloque em harmonia com os objetivos e propósitos da comunidade intelectual como um todo, ou seja, transforme os estudos históricos de modo a permitir que o historiador participe positivamente da tarefa de libertar o presente do ‘fardo da história’.29

É destacável que se observamos com cuidado, White aponta a tarefa do historiador: contribuir para libertar o homem daquilo que a História lhe impõe como herança. Há nessa tarefa o desafio de escrever uma história que mostre as contradições e as descontinuidades que caracterizam os processos históricos e explicitam a presença do homem como núcleo desses processos. O passado na leitura de White que tomou de Nietzsche a compreensão de que o culto ao passado é um obstáculo para a liberdade humana, não deve ser tomado como um fenômeno exclusivamente para deleite pessoal, ou corre o risco de ser compreendido como um “necrófilo

29 WHITE, H. Trópicos do discurso... Op. cit., p. 53.

Page 30: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

29

cultural, isto é, alguém que encontra nos mortos e moribundos um valor que jamais pode encontrar nos vivos”.30

Na atualidade, não pode o historiador olhar o modelo teórico como um modelo fechado, tal atitude implica no comprometimento da historiografia, não permitindo um diálogo entre as compreensões das diferentes concepções de sociedade. A teoria caminha ao encontro das perspectivas mediadoras da complexidade do pensamento histórico. Cabe ao historiador definir o conjunto de acontecimentos com os quais vai tratar. O saber histórico se organiza pela ótica do historiador, na busca das fontes e na perspectiva lacunar, desnudando conceitos na intenção de (re) significar o passado.

Referências bibliográficas:ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru: Edusc, 2007.

BLOCH, M. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

CERTEAU, M. de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982.

CHARTIER, R. O mundo como representação. In.: CHARTIER, R. A beira da Falésia: a história entre certeza e inquietude. Porto Alegre: EUFRGS. 2002.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa, Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

FERNANDES, Frederico G.; LEITE, Eudes. E as musas se riem: problemas sobre a metaficcionalização da História. 0.: TETTAMANZY, Ana Lúcia L.; ZALLA, Jocelito; D´AJELLO, Luís Fernando (org.). Sobre as poéticas do dizer: pesquisas e reflexões em oralidade. São Paulo: Letra e Voz, 2010, p. 164-181.

HOBSBAWM, E. Sobre história: ensaios. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

30 Ibidem, loc. cit.

Page 31: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

30

LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Edunicamp, 1992.

REIS, J. C. O desafio historiográfico. Rio de Janeiro: EdFGV, 2010.

RICOUER, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Edunicamp, 2007.

VEYNE, P. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70, 2008.

WHITE, H. Trópicos do discurso: ensaios sobre a critica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.

Page 32: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

31

Como o historiador produz o seu mel: algumas experiências com fontes sobre temáticas do Mato

Grosso do Sul1

João Carlos de Souza2

O ofício do historiador se parece muito com a montagem de um quebra-cabeça. Utilizarei desta imagem com seus limites para iniciar a conversa sobre o trabalho do pesquisador. Há similaridades e aproveitarei desse comparativo para iniciar reflexões sobre o ofício do pesquisador, que envolve o seu fazer. Não importa muito aqui se são mil ou duas mil peças ou mesmo cem, é a natureza diferente de cada peça, de sua materialidade ou não, de lacunas ou ausências, do problema a enfrentar que definirão em parte o grau de dificuldade da montagem, que diga-se de passagem, está sempre por se complementar.

Nesse sentido, o historiador Elias Saliba exemplifica a partir de um romance inacabado de Flaubert,3 em que dois personagens Bouvard e Pécuchet, na busca de sentido da vida tentam várias profissões, dentre elas a de historiadores.4 Passaram a compilar tudo que achavam, coletaram fontes arqueológicas e saturados destas, passaram a colecionar fontes escritas que poderia ser útil para seu trabalho. Entulhados de diversidade de materiais, o que fazer? Puseram-se a estudar e decifrar documentos de acordo com algumas

1 Agradeço aos doutorandos/as e mestrandos/as que participaram dos seminários das disciplinas Tópicos Especiais: Imprensa e Fontes Imagéticas (2016) e da disciplina O Historiador e seu Ofício: desafios no trabalho com as fontes (2017), no PPGH/UFGD, pois os debates, contribuições críticas e observações estão de alguma forma incorporados no presente texto.

2 Professor do Programa de Pós-Graduação em História/FCH/UFGD.3 Elias Saliba informa que os personagens foram criados em 1881 por Flaubert

e que apesar da obra ser um romance inconcluso, pode ser lida como uma metáfora sobre as oscilações, que esse registro da história e da memória, o documento, sofreu em nossa cultura. Cf. SALIBA, Elias Thomé. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas. In.: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 310.

4 SALIBA, Elias Thomé. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas... Op. cit., p. 309-310.

Page 33: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

32

regras, a bem da verdade, alguns aforismos.

Voltando à imagem do quebra-cabeça, se há similaridades com o trabalho do historiador, ocorrem muitas diferenças. Nesse jogo as peças são uniformes sobre o ponto de vista da materialidade, embora cada peça se diferencie na forma e na gravura. E o barato é descobrir os encaixes. O grau de dificuldade é maior quando numa paisagem de mata, a gravura ajuda muito pouco. Isso vai requerer a habilidade da observação do formato das peças, das tonalidades da cor... Ora se requer a observação dos detalhes da paisagem ora a da forma. A atenção aos detalhes nesse caso será crucial.

Já para o historiador, as peças não são de mesmo padrão, material, espessura e não possuem número limitado. Podemos lembrar os dois personagens já mencionados. Apesar das limitações da analogia aqui evocada, nos serve também para ir além no entendimento do trabalho do historiador. O historiador, pelo contrário, está diante de peças a encaixar de naturezas distintas, o que advém muitas implicações e desafios.

Então, as similaridades pode-se dizer são pouco efetivas, param por aí. No jogo de quebra-cabeças já existe uma quantidade de peças definidas que comporá a paisagem, a pintura, a figura, o desenho. Há também uma imagem, uma foto que servirá de referência para a reconstituição e composição das peças. Isso norteará o trabalho de quem estiver montando. Quanto ao historiador, também recorre a referencias que o auxiliarão no seu ofício, contudo, são de natureza bem diferente de uma imagem a ser reproduzida, cujo resultado está definido a priori.

O historiador busca seus referenciais na teoria, na historiografia, no dialogo com outras áreas de conhecimento e parte do lugar social em que produz sua análise. Como afirma Michel de Certeau: É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes “serão propostas, se organizam”.5

5 CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 56.

Page 34: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

33

Todo trabalho de pesquisa e de tratamento das fontes possui um referencial teórico que fundamenta as práticas e o fazer, e consequentemente seus resultados. Inclusive a começar pela escolha e seleção que se faz das fontes. Recorro mais uma vez a Certeau: “Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho”.6

Ao dialogar com os personagens Bouvard e Pécuchet, nota-se que desistiram da profissão pois se depararam com a enorme quantidade de artefatos e não sabiam como lidar com os mesmos. Faltavam informações e formação para saber o que fazer com tudo o que dispunham. Pelos rascunhos da obra, os dois acabaram desistindo das profissões, inclusive a de historiadores, e passaram a ser copistas.7

Certamente, diante do exposto, uma questão se coloca: por onde começar? O que move um pesquisador a fazer o seu trabalho são perguntas, a curiosidade de entender a sociedade em que vive. Compreender o mundo ao seu redor para nele se movimentar. Isto é, ajudar a construir e contribuir com a transformação de uma determinada situação e sociedade.

O trabalho requer conhecimento, prática e habilidades que se adquirem com um investimento de tempo. Aprende-se com os outros pesquisadores, daí a importância da historiografia e da crítica. Não é possível apreender, fazer tudo de uma vez, resta colocar a mão na massa, iniciar o processo. Não há também trabalhos definitivos, por isso quando se delimita a abordagem, é mais ou menos como as margens e limites que existem também nos quebra-cabeças. Além disso, esse procedimento ajuda o leitor a interpretar o trabalho do historiador.

Para auxiliar os pesquisadores, há no Brasil várias coletâneas de livros que tratam de diferentes tipologias de fontes. Alguns abordam aspectos diversificados de fontes, tais como: O Historiador e

6 CERTEAU, Michel de. A escrita da História... Op. cit., p. 73.7 SALIBA, Elias Thomé. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas... Op.

cit., p. 309.

Page 35: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

34

suas fontes, Fontes históricas, Domínios da História, e Novos Domínios da História.8

O intuito deste texto, não é tratar de todas as tipologias de fontes, mas refletir sobre algumas e comentar como alguns historiadores lidaram com as mesmas. Para chegar a resultados tiveram que trilhar um longo caminho, nem sempre por estradas bem asfaltadas e sinalizadas, mas por caminhos esburacados, em chão batido, também lamaçais e atoleiros, em caminhos à sombra na mata e bucólicos, mas também em picadas íngremes. Há casos em que se teve que abrir trilhas novas na mata fechada, ou carregar o barco nas costas em meio ao pantanal. As imagens aqui evocadas são de aventura e dificuldades, uma representação do que aguarda quem se dispõem a fazer pesquisa. Recorrerei a outras imagens para expressar o fazer.

O emprego do termo fontes históricas requer algumas considerações. Com razão, a História se utiliza de documentos para fazer o seu mel. Contudo, é o olhar do pesquisador que transforma o documento em fonte, daí a importância de seu ofício. É possível identificar um elemento de fluidez na compreensão do termo fonte, ligado ao sentido de nascente, (água que jorra da terra), origem, princípio, como também comporta um elemento de autoridade e fixidez, como causa primária, sua verdadeira origem.9 Na historiografia, a compreensão desses polos é objeto de disputas. Portanto, há uma historicidade sobre a compreensão do que seja fonte para os historiadores, ou documento histórico, pois ambos são utilizados também como sinônimo.

Compartilho da ideia de que nem o documento fala por si, como portador da verdade, autossuficiente e reveladora do passado

8 Cf. PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009; PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005; VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro Flamarion. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier e Campus, 2012; Idem. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997. Outros textos tratam de tipologias específicas, como a história oral, fontes imagéticas, imprensa, fontes etnohistóricas. Alguns serão oportunamente mencionados quando se abordar as temáticas específicas.

9 FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In.: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes... Op. cit., p. 62.

Page 36: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

35

(concepção da escola Metódica ou visão da historiografia positivista do século XIX), como tão pouco é possível relativizar o documento, do qual supostamente se pode extrair qualquer coisa, um exercício de subjetividade como os pós-estruturalistas apregoam.10

É pertinente, portanto, uma pergunta: como o pesquisador escolhe as suas fontes? O início do trabalho de pesquisa não é aleatório, a seleção de fontes está relacionada com o tema e a problemática que se deseja responder. Importante considerar o alerta do grande historiador francês Marc Bloch: “seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo único de documentos, específico para tal emprego”.11 Uma temática do tempo presente poderá ter uma profusão de fontes, enquanto que uma do passado distante provavelmente conviverá com maiores restrições. São muitas as implicações. Abordarei, por razões práticas e de experiência, predominantemente fontes relacionadas à história do tempo presente.

Ao situar a análise de algumas tipologias de fontes, trabalharei na perspectiva de apontar opções realizadas pelos pesquisadores, tecendo considerações sobre as mesmas. O caráter dessa abordagem é de um ensaio, com objetivo de elencar possibilidades para provocar alguns diálogos, despertar para a importância das fontes e sua conservação. As temáticas aqui tratadas versam preferencialmente sobre pesquisas relacionadas ao Mato Grosso do Sul ou suas fronteiras. Uma opção que também considera a importante produção local de conhecimento sobre temáticas da região. Contudo, tratam-se apenas alguns exemplos, em razão das limitações que se impõem a um texto no conjunto de uma obra coletiva.

Fontes Impressas – jornais, periódicos.Os impressos, particularmente a partir do final do século

10 KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia Galli. A memória evanescente. In.: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 16.

11 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 80.

Page 37: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

36

XVIII, passaram a fazer cada vez mais parte do cotidiano de milhões de pessoas. Os jornais diários abordam o cotidiano das cidades e do campo, a produção econômica, as relações sociais, políticas, os eventos culturais e religiosos e, nesse processo, revelam as tensões, disputas e consensos dos diferentes grupos sociais no interior de uma sociedade. Dessa forma, a imprensa periódica se constitui para os historiadores em importante meio de acesso para compreensão e análise da vida moderna.

Nessa perspectiva, Isabela de Fatima Schwengber debate as representações do Movimento de Trabalhadores Sem-Terra (MST) na imprensa de Mato Grosso do Sul, na qual tomou como referencia para análise os jornais Correio do Estado e O Progresso no período de 1995 a 2000.12

O trabalho de Isabela tece um comparativo que nos ajuda a compreender como um dos mais importantes movimentos sociais na história recente do Brasil foi pensado e avaliado por setores de nossa sociedade e a importância política, econômica e social que representa. Revela as tensões e disputas de interesse que ocorrem no interior da sociedade e o lugar social que trabalhadores rurais sem terra almejam sobretudo seu papel na produção de alimentos.

A autora rastreou o noticiário de seis anos enunciados nas páginas dos dois jornais. Buscou referências diretas ou indiretas ao MST, trabalho que resultou na identificação de trezentos e noventa e quatro documentos em O Progresso e duzentos e cinquenta e dois no Correio do Estado. Uma de suas percepções:

Na leitura dos documentos percebemos que o MST foi qualificado de diferentes formas. Identificamos 16 adjetivos atribuídos a ele: baderneiro, comunista, corrupto, criminoso, guerrilheiro, ilegal, ilegítimo, justo, ladrão, organizado, pacífico, perigoso, político, revolucionário, socialista e violento.13

12 Cf. SCHWENGBER, Isabela de Fátima. Representações do MST na imprensa de Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Grande Dourados, Dourados, 2005. A autora publicou o livro Quando o MST é notícia (2008), fundamentado em sua dissertação. Mantivermos as referências ao texto da dissertação em função do foco nas fontes.

13 Ibidem, p. 84.

Page 38: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

37

Para organizar sua análise, propôs três grandes conjuntos de valores: legais, morais e políticos. Essa organização não foi aleatória, partiu da reflexão e percepção de que a mencionada adjetivação pela imprensa era uma forma desta imputar valores às ações do MST, com atribuição de representação positiva ou negativa.14

Dessa forma, em relação aos valores legais (ações de acordo ou não com a lei), a autora identificou ações do MST, tais como: ocupação de propriedade privada, porte ilegal de arma, desacato a autoridade. Essa dimensão foi responsável pelo maior número de representações negativas sobre o movimento, enquanto ameaça à ordem estabelecida, o que não surpreende pelo que a propriedade da terra significa enquanto valor estratégico e simbólico no Mato Grosso do Sul, onde predominam atividades agropecuárias.15

Quanto aos valores morais (referencias a qualidades, conduta do movimento ou de seus seguidores), identificou imputações de justos, pacíficos, violentos e baderneiros. Essas representações apresentaram poucos documentos nos dois periódicos, no jornal O Progresso a maioria reforçou aspectos positivos e metade nas referencias no Correio.16

Sobre os valores políticos (caracterizam aspectos ideológicos, principalmente ações de pressão ao governo), menciono entre tantas ações: ocupações de espaços públicos (caminhadas em ruas ou rodovias, reuniões com o governo, manifestação em praças públicas), reuniões e congressos, saques a caminhões de alimentos para forçar negociação, discursos de lideranças etc. Ressalto que o maior número de ações referidas nos texto dos jornais enquadram-se nesse tópico. A autora constatou aqui certo equilíbrio entre as representações positivas e negativas, mas no O Progresso predominaram as positivas.17

A partir desses levantamentos e comparações, uma de suas

14 SCHWENGBER, Isabela de Fátima. Representações do MST na imprensa de Mato Grosso do Sul... Op. cit., p. 90.

15 Ibidem, p. 92-93.16 Ibidem, p. 96.17 Ibidem, p. 84-94.

Page 39: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

38

conclusões foi a de que os dois periódicos ressaltaram e reforçavam em suas matérias mais as características negativas do MST do que as positivas. O Progresso em 57% de suas matérias, enquanto o Correio atingiu um índice de 74%, demonstrando antipatia maior.18 A autora, entretanto, constatou que o jornal douradense, durante certo período, se apresentava como interlocutor junto ao movimento, no qual projetava como este deveria agir, contudo, não se verificando suas expectativas, passou a tecer críticas mais contundentes. Com relação ao Correio do Estado, a autora percebeu que, desde o início, o tratamento do jornal foi de crítica mais acirrada.19

As trajetórias dos jornais são importantes para entender algumas diferenças. Ambos surgiram vinculados a partido ou a políticos. O Correio do Estado, por exemplo, foi fundado em 1954 por políticos conservadores ligados a União Democrática Nacional – UDN. Somente em 1960 passou para a propriedade de José Barbosa Rodrigues e o sócio José Inácio, de quem comprou a parte tornando-se único proprietário.20

O jornal O Progresso, por sua vez foi fundado em Dourados em 1951 por Weimar Torres, advogado e político vinculado ao Partido Social Democrático - PSD. O jornal, contudo, em seus sessenta e seis anos de atuação, sempre foi dirigido por alguém da família.

Isabela, em sua pesquisa, adotou procedimentos fundamentais para quem trabalha com esse tipo de fonte. Conhecer os proprietários e/ou empresa, seus objetivos e sua linha editorial. Identificar quem são os colaboradores, jornalistas e colunistas que atuam. Identificar a rotina das pautas. A tiragem e a técnica, assinantes mantenedores e patrocinadores... São recomendações para quem quer dar um tratamento com profundidade, conforme De Luca aponta em texto.21

18 SCHWENGBER, Isabela de Fátima. Representações do MST na imprensa de Mato Grosso do Sul... Op. cit., p. 92.

19 Ibidem, p. 98.20 Isabela Schwengber trata das trajetórias dos dois periódicos e de seus

proprietários em subitem específico do capítulo 2 - Imprensa e sociedade em Mato Grosso do Sul. Neste texto oferecemos apenas breve referência sobre os periódicos, assim como destacamos as possibilidades temáticas do trabalho com as fontes impressas. Cf. Ibidem, p. 48-62.

21 Ibidem, p. 111-153.

Page 40: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

39

Os dois periódicos sul-mato-grossenses possuem perfil conservador e, quanto ao apregoado discurso de imparcialidade, Isabela entende como uma forma de representação sobre si mesmos, mas não uma realidade concreta, pois os vínculos comerciais, políticos e ideológicos das empresas jornalísticas influenciavam na produção de suas notícias. Tomou por referência, no período analisado de seis anos (1995 – 2000), as críticas e o tratamento dispensado a dois governantes. Os periódicos apresentaram maior afinidade com o governo de Wilson Barbosa Martins, do PMDB e menor tolerância com o governo José Orcílio, conhecido por Zeca do PT. Embora tenha constatado que O Progresso não chegou a fazer forte oposição a este último.

Todos esses procedimentos são necessários para não se incorrer em uma visão ingênua da leitura do jornal. Os periódicos e a mídias em geral se apresentam ao leitor como sendo neutros e objetivos ao transmitir informações. Os jornalistas, ao definirem uma pauta sobre temas, de um rol extenso de opções, já estão realizando um ato de preferência, assim como o editor do jornal ao definir pela publicação. Todas essas operações não estão presentes na notícia, mas cabe ao pesquisador entendê-las para realizar sua interpretação.

Nesse ponto lembro que o jornal já foi considerado uma fonte suspeita, ou seja, não adequada para o historiador tomá-la por fonte, em razão dos interesses em jogo. Se tal visão está superada, os cuidados metodológicos são importantes para não se cometer o equivoco de incorporar textos sem estabelecer a crítica. Em sua pesquisa, Isabela identifica a natureza e valores dos discursos e expõe seus limites.

Temas polêmicos podem ser mais reveladores. Recorrer a tempos quentes da história ajuda o historiador a melhor perceber o que pensam os diferentes grupos sociais, que valores defendem e sua forma de agir. Com esse intuito, abordarei outro trabalho da história do tempo presente. Trata-se do livro: Dourados: memórias e representações de 1964, resultado do mestrado de Suzana Arakaki.22

22 ARAKAKI, S. Dourados: memórias e representações de 1964. Dourados: Editora UEMS, 2008.

Page 41: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

40

A autora debateu como ocorreram na região de Dourados, então MT, os primeiros momentos após o golpe civil-militar ocorrido em março/1964, que derrubou o governo de João Goulart. Analisou as implicações do mesmo numa região distante dos grandes centros, não habitualmente tratada pela historiografia. Dois aspectos, entre tantos desta obra, serão destacados: os discursos do jornal O Progresso sobre aquele momento político e as ações civis locais de apoio ao golpe.

Os discursos do jornal sobre o governo João Goulart, também tratado por Jango, faziam coro com grande parte da imprensa brasileira, que identificava em seu partido, o PTB, e em seu governo, a defesa de ideais comunistas. Neste sentido, além das críticas à condução da economia, as greves eram um foco a mais, intitulando o governo de república sindicalista. Uma questão abordada com frequência pelo O Progresso era a da reforma agrária proposta por Jango. Conforme a autora, em fevereiro de 1964, o jornal:

alertava que estava em andamento no Brasil o caos social, com invasões de propriedades particulares. Caos no campo e na cidade, caso as Reformas de Base de Jango fossem implantadas. Em artigo publicado dias antes do golpe, o jornal demonstra o seu temor ao publicar a manchete “INVASORES DE TERRAS: Reforma agrária está provocando movimento subversivo em diversos Estados”.23

Este tema era sensível numa região em que predominava a economia fundada na agropecuária. Tanto que o deputado federal Weimar Torres, proprietário do jornal em um artigo de janeiro de 1964, chegou a chamar a reforma agrária proposta pelo governo de janguices.24 A desqualificação do governo era escancarada.

Além disso, localmente o prefeito Napoleão Francisco de Souza, que também pertencia ao PTB, recebia críticas contundentes. Em janeiro de 1964, depois de antever um ano catastrófico, o periódico, segundo Arakaki “insinua que Dourados, governada por um prefeito do PTB tornava-se uma ‘cidade de ninguém’, exposta a abusos”.25

23 ARAKAKI, S. Dourados... Op. cit., p. 112.24 Ibidem, p. 55-56.25 Ibidem, p. 10.

Page 42: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

41

Conforme já referido, seu proprietário era partidário do PSD26.

Um segundo aspecto que tipifica as ações em Dourados, foi a prisão e perseguição de moradores da Colônia Agrícola Nacional - CAND. Muitos colonos tinham simpatia pelo PTB, uma vez que a CAND foi criada durante o governo de Getúlio (1943). Os colonos foram automaticamente considerados suspeitos, pois lideranças políticas que se opunham ao golpe eram do referido partido. Além disso, eram acusados de pertencer aos Grupos de Onze, organização estimulada por Leonel Brizola, umas das lideranças nacionais do PTB.

Grande parte das acusações partia de civis que amedrontavam cidadãos com o discurso que deveriam denunciar vizinhos suspeitos, senão seriam também responsabilizados. Essas atitudes instauraram um clima de insegurança. Suzana constatou que logo após o golpe foi constituída a Ação Democrática Mato-Grossense (ADEMAT) em Dourados e, como uma de suas funções era perseguir comunistas, também foi montado o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Foram noticiadas pelo O Progresso, com elogios à iniciativa.27 Tais organizações foram dirigidas por civis, principalmente dos quadros da UDN, conhecidamente antijanguista. Vale notar que localmente o partido havia perdido eleições em dois pleitos consecutivos para o PTB e atribuía a derrota por causa dos eleitores da CAND, pela presença ali de muitos simpatizantes do PTB. No clima político, muitos apoiadores do golpe inclusive aproveitaram o momento para acertar contas com desafetos. É importante ressaltar que as prisões foram temporárias, as pessoas libertadas por falta de provas e a autora não localizou nenhum Inquérito Militar.

Quanto às fontes, Suzana ao utilizar da imprensa, analisou as atuações políticas de seus proprietários para contextualizar seus posicionamentos. Mas recorreu a entrevistas, que ainda abordaremos em outro tópico, realizadas por ela ou por terceiros em outros projetos,

26 O PSD deixou a aliança com o PTB em fins de 1963, passou a integrar com a UDN a oposição a Jango.

27 ARAKAKI, S. Dourados: memórias e representações de 1964. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2003, p. 57.

Page 43: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

42

o que revela que dificilmente uma problemática é respondida com apenas uma tipologia de fonte. Cruzou as fontes para interpretar as tensões e polarizações daquele período.

Esse panorama nos permite afirmar que em momentos de crise, as pessoas e instituições revelam seus valores e partem para a ação. Com a imprensa periódica não é diferente, os discursos de isenção, objetividade e neutralidade apresentam seus esgarçamentos. O tom dos discursos, a desqualificação do governo Jango, a formulação de representações entorno de caos contribuiu, certamente, para a aceitação do golpe. A ativa atuação de civis demonstra também que o golpe de 64 teve um caráter civil-militar.

Deixando um pouco a temporalidade mais imediata, passo a abordar a cidade de Corumbá ao final do século, em sua constituição após a guerra do Paraguai (1864 – 1871).28 Analiso o cotidiano de Corumbá a partir da imprensa periódica, para apreender as dificuldades de uma cidade que se queria moderna, seus dilemas, enfrentamentos e contradições.

Os jornais ofereciam quase uma crônica do cotidiano, mas eram bem diferentes dos acima referidos. Em geral eram semanais, tabloides com quatro a seis páginas, dirigidos a uma minoria da sociedade de então, poucos eram alfabetizados. Os jornais geralmente eram vinculados a um partido, às vezes publicava-se um único número. A maioria tinha curta duração. A falta de arquivos com uma série completa dificultou a pesquisa, às vezes se localizava periódicos com apenas dois a três exemplares. Isso requereu a utilização de diferentes periódicos ou outras fontes, como relatórios do intendente29. As condições técnicas não permitiam melhor qualidade, como reprodução direta de fotografias. Não havia jornalistas profissionais.30

Essas dificuldades, contudo não impediram a apreensão de 28 Temática que desenvolvi no doutorado que resultou no livro Sertão

Cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872–1918), conforme: SOUZA, João Carlos. Sertão Cosmopolita: tensões da modernidade de Corumbá (1872-1918). São Paulo: Alameda, 2008..

29 Corresponde à figura, no poder executivo, de prefeito.30 SOUZA, João Carlos. Sertão Cosmopolita... Op. cit., p. 59-73.

Page 44: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

43

aspectos da vida da cidade e da incorporação de novas tecnologias como máquinas a vapor que só chegaram ao antigo Mato Grosso pela via Platina com a liberação da navegação internacional pelo rio Paraguai. Dentre os sonhados artefatos da modernidade, destaco os navios a vapor, o telégrafo (1904), a energia elétrica (1912), a água encanada (1914) e várias fábricas e edifícios.31 Os serviços mencionados, acrescidos de códigos de postura e os cuidados com as dimensões de higiene eram parte das cobranças dos discursos dos periódicos como sinais de civilização e modernidade.

A cidade não era só o porto e o casario das casas de comércio, convivia-se também com uma outra, que parecia negar a modernidade desejada, o progresso, a civilização. Uma nota em um jornal no ano de 1907, pouco destacada, sobre a ocorrência de enterros na beira do rio Paraguai, feitos às escondidas, suscitou a atenção para o problema das epidemias de varíolas. A partir desta pista passou-se a analisar a experiência da varíola, o quanto interferia na vida da cidade e de seus habitantes. Os jornais nem sempre trataram disso abertamente. Provocava verdadeiro terror na população, era fatal. Inclusive porque houve, em vários períodos do final do século XIX, situações de corpos espalhados pelas ruas da cidade. Essa é uma situação em que se apreendem pontos críticos para a vida urbana.32

Independente da tipologia da fonte, ao historiador cabe a tarefa de aprender a olhar e ler cada fonte considerando sua especificidade. O olhar precisa ser apurado. As experiências do contato direto de levantamento, organização e leitura das fontes ajudam nessa aquisição. Pistas percebidas, caminhos novos a trilhar, investigação que pode ou não resultar em achados importantes, proporcionar novas chaves de leitura. O historiador italiano Carlo Ginzburg trata da importância da atenção aos detalhes, que podem oferecer pistas importantes para o pesquisador, que precisa saber decifrá-las, pois podem levar a novas portas de acesso e de interpretação de uma realidade. Chama esses procedimentos de método indiciário.33

31 SOUZA, João Carlos. Sertão Cosmopolita... Op. cit., p. 31; 138-139.32 Ibidem, p. 95.33 GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In.: GINZBURG,

Page 45: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

44

Na pesquisa em foco, foi necessária muita atenção às informações fragmentadas, a associação das mesmas para se montar o quadro das experiências urbanas.

Contudo, há outra dimensão fundamental, a preocupação com a preservação de acervos de jornais, sua digitalização é importante para o trabalho do historiador, pois representa uma fonte das mais promissoras para estudos de uma gama variada de temas. Há muitos periódicos disponíveis na Biblioteca Nacional, acervos que foram microfilmados e digitalizados. Vários centros de documentação nas Universidades acolhem esse tipo de material.34 O patrimônio cultural e sua preservação representam a possibilidade de conhecimento e o exercício da cidadania.

Fontes imagéticas – fotografias e pinturas.Aproveitando a referência a Corumbá e a importância da

imprensa como fonte para analisar o período do final do século XIX, aborda-se a seguir um trabalho que debate a produção de diferentes imagens sobre a guerra contra o Paraguai (1864 -1871) e o seu emprego pela imprensa periódica.

Trata-se da dissertação de Marcus Túlio Borowiski Lavarda: A Iconografia da Guerra do Paraguai e o periódico Semana Illustrada – 1865-1870: um discurso visual.35 O autor analisou pinturas, aquarelas

Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras. 1989, p. 143-179. Um exemplo importante de aplicação do método indiciário é o trabalho do historiador Sidney Chalhoub: Visões da Liberdade, no qual o autor refaz trajetórias de escravos e suas estratégias para obter a alforria no Rio de Janeiro em meados do século XIX. Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. 2ª reimpressão. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

34 No Mato Grosso do Sul, além do Centro de Documentação Regional - FCH/UFGD, destacamos os centros de documentação dos Campi de Aquidauana, Corumbá e Três Lagoas da UFMS. Outra importante referência é o Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional – NDHIR, da UFMT – Cuiabá – MT.

35 Cf. LAVARDA, Marcus Túlio Borowiski. A iconografia da guerra do Paraguai e o periódico Semana Illustrada (1865 – 1870): um discurso visual. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Grande Dourados, Dourados, 2009.

Page 46: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

45

e fotografias. Registre-se que foi uma das três guerras de maior porte do século XIX, a receber cobertura de fotógrafos no campo de batalha.

As fotografias naquela década, requeriam um tempo de exposição do negativo que ainda não possibilitava instantâneos fotográficos, como a produção de imagens dos soldados em ação. A tecnologia disponível, portanto, impunha limites à produção de imagens. Os jornais, por sua vez, não dispunham de uma tecnologia que permitisse a reprodução direta da foto. A reprodução das fotografias nos jornais ocorria através de uma cópia feita à mão, por um artista gravador (caso da xilografia36), ou um artista-copista (no caso da litografia37), processo mais usual na imprensa brasileira.

A Semana Illustrada, saia aos domingos, um dos poucos jornais que trabalhava com ilustrações no Rio de Janeiro, seus proprietários eram os germânicos Henrique e Carlos Fleus. No formato tablóide, possuía oito páginas, das quais a metade era dedicada às ilustrações. Tinha como proposta tratar as notícias de forma divertida. Através de caricaturas satirizava a sociedade da época.38

Quanto à posição do semanário sobre o conflito, Marcus Lavarda constatou que era favorável, apoiava no geral as posições do governo imperial, apresentava os militares como heróis, possuía discurso nacionalista e patriótico. Segundo o autor:

o tom do discurso assume um caráter belicoso e que o Paraguai necessitava de uma lição civilizadora do Império em retaliação a invasão guarani na província de Mato Grosso.39

36 Xilografia: processo no qual, numa matriz de madeira, a imagem é talhada, em relevo. A transferência da imagem para o papel se assemelha ao que ocorre num carimbo. Cf. ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil: a fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 76.

37 Litografia: processo em que o desenho é feito numa pedra calcária com lápis gorduroso ou com tinta gordurosa. Uma solução ácida fixa a gordura à pedra. A impressão é realizada numa prensa litográfica, baseia-se na repulsão que a água tem pela gordura. Ibidem, p. 83.

38 LAVARDA, Marcus Túlio Borowiski. A iconografia da guerra do Paraguai e o periódico Semana Illustrada (1865 – 1870)... Op. cit., p. 89-91.

39 Ibidem, p. 89; 92-93.

Page 47: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

46

Assim, as caricaturas que publicava de Solano Lopes e seus seguidores, eram no geral desqualificadoras. A maioria das demais publicações sobre a guerra versava geralmente sobre personagens políticos, militares, a diplomacia. Ressaltava também a figura de D. Pedro II em visita a soldados nos acampamentos.

Embora interessantes, não são dessas representações que nos ocuparemos. O foco recairá sobre as reflexões de Marcus em relação aos silenciamentos do periódico, como por exemplo, a situação de penúria dos acampamentos, das trincheiras e sobre a morte. Essa é uma dimensão que os historiadores devem estar atentos ao tratar da circulação de imagens. As escolhas do que se publica ou não também revelam intenções sobre como aquela sociedade, o governo lidavam com temas tensos. O acobertamento tem um sentido.

Corroborando com esse entendimento sobre a cobertura da guerra pelo Semana Illustrada, assim se manifestou Joaquim Andrade:

a fotografia era a materialização de um espetáculo idealizado do “teatro da guerra”, poderoso instrumento para a construção de um imaginário que convinha ao sistema político vigente. Não se percebe, em momento algum, a verdadeira dimensão trágica, horripilante até, do que se passava nos campos de batalha.40

Para além do semanário, Marcus pesquisou um conjunto de fotos produzidas pela Companhia Bate y Cia de Montevidéu, cujos fotógrafos acamparam próximos às áreas de combate. Também identificou obras de pintura, pois havia artistas plásticos que acompanharam os exércitos. Portanto, as obras de arte, pinturas, aquarelas e fotografias o ajudaram a entender a produção da iconografia sobre a guerra e a questionar a não publicação pelo jornal Semana Illustrada de aspectos trágicos da guerra, como as relacionadas à morte.41

Há em alguns acervos de bibliotecas e álbuns de imagens, pesquisados pelo autor, fotos de cadáveres amontoados que não foram publicados pelos jornais. Lavarda analisa uma delas, de cadáveres

40 ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil... Op. cit., p. 196.

41 Ibidem, p. 58-59.

Page 48: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

47

paraguaios amontoados, tirada em 1866 pela Bate & Cia W. (Figura 1). No Álbum de La Guerra Del Paraguay, identificou uma litografia (Figura 2), que trata da mesma temática, produzida pelo militar e artista argentino José Ignácio Garmendia. Ano e inscrições sugerem tratar-se da batalha de Tuiuti.

Com relação à fotografia (Fig. 1), o que se vê são pessoas mortas, amontoadas, jogadas nas mais diversas posições. Apresentam partes de seus membros, braços e pernas expostos e seus corpos cobertos com panos. Outro aspecto a considerar é que aparecem suas cabeças, porém os rostos praticamente não são visíveis, não sendo possível identificá-los. A legenda ajuda a identificar que se trata de cadáveres paraguaios, soldados que lutaram na guerra e particularmente na batalha de Tuiuti (1866). Esse procedimento segue as recomendações da análise iconográfica, mais descritivo, seguido da análise iconológica, a interpretação propriamente em sentido mais estrito e cultural, que desde Panofsky tem sido um método amplamente utilizado por pesquisadores de diferentes áreas, conforme expõe o historiador Peter Burke,42 também referido por Lavarda.

Para interpretar a fotografia, outro elemento fundamental é considerar o enquadramento. Nesta foto em primeiro plano, o enquadramento é praticamente tomado pelos mortos, para além dos cadáveres há apenas pequena área do terreno. Esse enquadramento, que exclui outros elementos que poderiam amenizar a dramaticidade das mortes, transmite a mensagem de que o fotógrafo quis enfatizar as mortes no conflito, não deixando margem para outros sentidos da imagem.43 O ângulo da posição da câmara, de cima para baixo, que achata os corpos representados, denota: “a posição de inferioridade dos corpos mutilados, e essa sugestão é reforçada, também, pela posição de superioridade do ponto de vista do fotógrafo em relação aos objetos representados”.44

Quanto à análise da litografia (Fig. 2), Marcus Lavarda procedeu através de um comparativo, tomando por referência a fotografia em foco (Fig. 1), pois tudo indica que esta ou outra fotografia semelhante, serviu

42 Cf. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagens. Bauru: EDUSC, 2004.43 LAVARDA, Marcus Túlio Borowiski. A iconografia da guerra do Paraguai e

o periódico Semana Illustrada (1865 – 1870)... Op. cit., p. 66.44 Ibidem, p. 71.

Page 49: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

48

de modelo para Garmendia. O militar e artista argentino, apesar de ter atuado no front, costumava utilizar de fotografias para produzir seus desenhos, pela captação do real que atribuía às mesmas.45

Figura 1: Foto - Bate & Cia W - Cadáveres paraguayos, 1866 – Biblioteca Nacional do Uruguai. Fonte: LAVARDA, Marcus Túlio Borowiski. A iconografia da guerra do

Paraguai e o periódico Semana Illustrada (1865 – 1870)... Op. cit., p. 70.

Figura 2: Aquarela de Garmendia - Cadáveres paraguayos de la batalla de Tuyutí. Álbum de La Guerra del Paraguay. Fonte: Ibidem, p. 70.

45 LAVARDA, Marcus Túlio Borowiski. A iconografia da guerra do Paraguai e o periódico Semana Illustrada (1865 – 1870)... Op. cit., p. 68-69.

Page 50: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

49

Ao olhar para a produção de Garmendia, de imediato, é possível se identificar diferenças. Constata-se que para além do primeiro plano dos mortos mantidos pelo artista, acrescenta a inclusão do céu. Portanto, um enquadramento que traz outros elementos não constantes na foto. Lavarda, ao tecer considerações sobre esse aspecto, considera que a inclusão do céu minimiza a tensão que existe na fotografia, pois o impacto causado pela foto é maior, inclusive porque esta possui uma iluminação que é amenizada na litografia.46

As diferenças não param por aí. No canto esquerdo superior da aquarela consta uma pequena mata, quebrando a paisagem monótona e chapada dos corpos. Além disso, é visível na linha do horizonte, do ponto de fuga da tela, a presença de um bando de pássaros, urubus possivelmente, dirigindo-se para os corpos, sendo que os que se aproximam do primeiro plano, quase que sobrevoam os cadáveres insepultos. Sobre esse acréscimo, assim avaliou Marcus:

a introdução de pequenos detalhes na litografia demonstra um juízo de valor sobre os cadáveres paraguaios. [...] São estas diferenças e detalhes que fornecem indícios da visão que se tem do autor sobre o inimigo. Com a inserção de urubus na cena representada, pode-se concluir que Garmendia teve por intenção denegrir a imagem do oponente, sendo que as fotos mostram o cenário num ponto de vista diverso que fora criado por Garmendia.47

Do exposto até aqui, pode-se tirar alguma lição. A fotografia é um recorte do real, sobre o qual o fotógrafo faz escolhas, ressalta alguns aspectos em detrimento de outros. Embora a fotografia tivesse sido inventada no campo da ideologia positivista, que dava credibilidade de prova às imagens, na prática sempre foi objeto de alterações desde seu surgimento. Dessa forma, essa consideração vale ainda mais para a litografia, uma cópia necessária para que a foto fosse reproduzida nos jornais, assim sempre ganhava ou perdia em detalhes. Mas, havia também alterações deliberadas, resignificando a fotografia, como no caso aqui em foco.

46 LAVARDA, Marcus Túlio Borowiski. A iconografia da guerra do Paraguai e o periódico Semana Illustrada (1865 – 1870)... Op. cit., p. 69.

47 Ibidem, loc. cit.

Page 51: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

50

O destino das fotos, de que forma são veiculadas, se um álbum, de circulação mais restrita, ou a publicação na imprensa, circulação de massa, também expressam uma ideologia e uma narrativa. Segundo Marcus Lavarda, a não publicação desse tipo de temática ocorreu pois a preocupação do periódico era de não chocar e não dividir ainda mais a opinião pública que se colocava contra a guerra.

Cabe ainda ressaltar que, se o autor tivesse analisado as publicações do Semana Illustrada, sem recorrer a outras produções, como os Álbuns e acervos de fotos, teria maior dificuldade para avaliar os silenciamentos da imprensa. Trata-se, portanto, de frisar que não existe uma fonte exclusiva que responda a cada problema. O olhar do historiador, sobre outras informações relacionadas à sua temática, é importante para não incorrer em leituras simplificadas.

Utilizar imagens como documento é se atentar para os usos e formas de deslocamentos e publicações das mesmas. As imagens servem para pensar, para induzir, para levar a ação, para elaboração de valores, para julgamento e apreciações, não raro depreciações.

Ao comentar a potencialidade das imagens como fonte, convém destacar que o campo imagético ou iconográfico, além de fotografias e litografias, é constituído por pinturas, aquarelas, artes plásticas em geral, desenhos, charges, o humor. Documentários, vídeos e filmes fazem parte desse campo. Como este capítulo não comporta trabalhar com cada uma dessas manifestações imagéticas, convém lembrar que há aspectos gerais no tratamento das mesmas, contudo, cada uma requer também cuidados com suas especificidades.48

Na sequência, abordarei o trabalho de análise de Sonia Pereira sobre aquarelas e desenhos produzidas pelo pintor-viajante Hércules Florence, produzidos a partir de sua participação na

48 Obras de caráter geral sobre fontes: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes... Op. cit.; PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas.. Op. cit.; VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro Flamarion. Novos Domínios da História.. Op. cit.; Idem. Domínios da História.. Op. cit., já mencionadas, possuem textos que tratam de quase todas as tipologias e também sinalizam para outras referências bibliográficas.

Page 52: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

51

Expedição Langsdorff, entre 1826 e 1829.49 Pintores viajantes no Brasil oitocentista oferecem amplo conjunto de aquarelas sobre os mais diversos temas da vida cotidiano da sociedade daquela época. A autora, contudo, analisou particularmente as produções do pintor sobre três grupos étnicos: Guaná, Guató e Bororo, no Pantanal e na bacia do Alto Paraguai. Neste caso, são documentos que se pode qualificar de fontes etnográficas.

Sobre Florence, a autora tece uma série de considerações importantes que ajudam a compreender sua produção. Destaco, por exemplo, que nesse período o viajante era um dos pesquisadores que tentava trabalhar com a fixação de imagens, ou seja, foi um dos inventores da fotografia em 1833, embora não a tenha patenteado.50 Estava imbuído dos valores da ciência do século XIX, dentre eles o pretendido caráter de objetividade. Nesse sentido, suas pinturas de plantas, mas também as representações de pessoas assumem características técnicas. Sonia Pereira chega a afirmar que seus desenhos e pinturas não possuem poesia. Não está sozinha nessa interpretação. Boris Kossoy, outro pesquisador dos trabalhos de Florence, supõe que o pintor-viajante fizesse uso da câmera escura, que aspectos de sua perfeita perspectiva reforçam que suas representações de paisagens almejavam a representação que desejava das fotografias.51

Conforme Sonia Pereira, o que se conhece de Florence sobre os Guaná é um conjunto de cinco desenhos, esboços rápidos e aquarelas, que no geral mantém um padrão. Para valorizar as características físicas dos índios, Florence os pintava de frente ou de perfil, seu estilo parece mesmo escolher formas diretas. Tomarei,

49 PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, UFGD, Dourados, 2008.

50 Cabe ressaltar que a invenção da fotografia foi anunciada em 1839 na Europa, com o nome de daguerreótipo. Contudo, o nome que prevaleceu foi o que Florence já utilizava: Photografia. Cf. ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil... Op. cit.

51 KOSSOY apud PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829)... Op. cit., p. 85-86.

Page 53: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

52

como parte desse exercício, apenas uma das aquarelas de Florence, analisada por Sonia. Trata-se de um esboço de três índios Guaná, em lápis, 20 x 25cm, datado de 1826, produzido em Albuquerque, distrito de Corumbá (Figura 3).

Os três índios surgem no primeiro plano sem outros elementos de paisagem, demonstrando que o autor desejava focar na figura humana. Todos estão de frente e só a parte superior de seus corpos é representada. Utilizam vestimentas de algodão e apresentam corte de cabelo peculiar, “tosquiado na parte anterior da cabeça o que permite o cabelo crescer em escovinha e deixando-o livre e solto a partir daí”.52 Sonia Pereira observa que: “a posição dos índios pode parecer ignorar a pose, pouco aparece dos seus membros superiores, mas os olhares são fixos e diretos”.53

As observações escritas pelo artista em seu diário ao se referir aos Guaná, auxiliam na interpretação das imagens:

Não marcam a pele, nem mutilam o nariz, o lábio inferior ou as orelhas; não se pintam de urucum como tantas outras tribos. Se em épocas anteriores tiveram essas práticas singulares, já são por demais civilizados para nelas perseverarem.54

Em relação às percepções que Florence teve dos Guaná, Sonia Pereira assim se refere, considerando também os escritos do pintor:

a impressão que Florence teve dos Guaná foi do índio ‘bom selvagem’, aquele que se aproximava dos padrões sociais, morais e culturais dos europeus e euro-americanos. Assim, se houvesse pudor e andasse vestido, se submetido

52 HARTMANN apud PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829)... Op. cit., p. 135.

53 PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829)... Op. cit., p. 137.

54 FLORENCE apud PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829)... Op. cit., p. 137.

Page 54: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

53

às leis e condutas imperiais, seria enquadrado no perfil do ‘índio civilizado’. Florence expressou pelo desenho de suas feições tal concepção, um ‘quê de ameno e de suave muito especial’.55

Figura 3: Lápis - Índios Guaná - Florence, 1826. Fonte: CARELLI apud PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 –

1829)... Op. cit., p. 134.

As conclusões de Sonia Pereira sobre o tipo de abordagem das pinturas de Florence servem para interpretar as produções do pintor-viajante e entender que o olhar, que este pretendia objetivo, revela a impregnação da ideologia eurocêntrica:

A imagem do índio como “selvagem” é forte no relato de Florence. O caráter do índio oscila entre a “bondade” ou a “maldade”, de acordo com sua submissão aos desígnios da civilização ocidental. Uma paleta de percepções determina a presença ou não de humanidade e cultura. Para o pintor-viajante, manter a disparidade cultural era seguir a ciência, que, por sua vez, estava atrelada aos ideais burgueses de progresso e servia aos interesses dos países expansionistas. O indígena ameno e suave versus o traiçoeiro e o mau; o indiático puro versus o tipo europeu. Este enfrentamento

55 PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829)... Op. cit., p. 133.

Page 55: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

54

escondia no contexto colonial os embates entre domínio e submissão, ou luta e extermínio.56

A escolha da dissertação de Sonia e da aquarela, para este exercício de análise de imagens como fonte para o historiador, possui uma razão. Para realizar sua interpretação, a autora dialoga com a antropologia e a história e se propõe refletir sobre a experiência de tratar as imagens como documento. Adentra no debate sobre a visualidade e de como ela se constrói, nas trilhas da reflexão proposta por Ulpiano Bezerra de Meneses.57 A experiência visual, a visualidade se constrói na interação entre imagens mentais e as experiências, discursos e práticas, historicamente situados. Nesse sentido, para interpretar as obras de Florence sobre os indígenas, a autora utiliza o termo “visualidade étnica”, para compreender “o processo de construção da imagem que, no terreno da percepção visual, forma uma projeção a respeito do ‘outro’”.58

Complementando as observações sobre essa visualidade étnica, a percepção do outro que é construída por Florence sobre os grupos com os quais entrou em contato, Sonia comenta que o autor estabeleceu uma tipologia na construção de imagens: os Guató e Guaná eram representados nas aquarelas e pinturas com roupas e suas imagens relacionadas aos europeus e a civilidade, contudo os bororos estavam nus, na selva, com feições de maus, representavam o exótico e selvagem.59

Ainda sobre as fontes imagéticas, é importante também a preocupação com a preservação, nos seus mais diversos suportes. Não é incomum instituições, inclusive públicas, se desfazerem de

56 PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829)... Op. cit., p. 188.

57 Cf. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003.

58 PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829)... Op. cit., p. 73.

59 Ibidem.

Page 56: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

55

acervos. Um historiador atento pode ajudar a preservar e destinar para centros de documentação, museus, arquivos. Um exemplo disso foi a “casualidade” de um jornalista se deparar com um lote significativo de fotografias jogado num lixo. Constatou que se tratava de fotos sobre Dourados e região, recuperou-as e doou para o Centro de Documentação Regional – CDR/UFGD, sendo que passaram a integrar seu acervo e se encontram disponíveis para pesquisa. O inusitado também faz parte da história, mas certamente o olhar apurado do jornalista levou à decisão do resgate no lixo.

Fontes Orais – trajetórias de vida, memória, identidade.A decisão pela utilização da História oral enquanto fonte

não é aleatória, pelo gosto simplesmente do pesquisador. É o projeto e sua problemática que irão definir o corpus de fontes. Essa perspectiva de construção do objeto se aplica para as demais fontes em geral, conforme já comentado. Quando uma pesquisadora, por exemplo, se propõe analisar as trajetórias de vida de migrantes, a história oral se apresenta como uma possibilidade importante, pois a apreensão dessas experiências encontra nos relatos uma riqueza que outras fontes não apresentam, ou quando o fazem é de forma muito fragmentada. A ausência e silenciamento em outras fontes justificam recorrer às narrativas dos sujeitos, as suas vivências, experiências e memórias.

Um trabalho de pesquisa que ajuda na compreensão desse processo é o de Edna de Falchi, de título Na luta por um espaço de chão: experiência e cotidiano nos acampamentos de sem-terra do sul de Mato Grosso do Sul.60 Ao se propor debater as experiências e o cotidiano de acampados sem-terra, Edna se viu diante da necessidade de recorrer à fonte oral. Realizou vinte e cinco entrevistas com acampados/as para entender os processos de migrações, as trajetórias de vida das famílias, as mudanças nas relações de produção no campo, como perdas dos espaços para a atuação de meeiros, arrendatários, e outras

60 Cf. FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão: experiência e cotidiano nos acampamentos de sem-terra do sul de Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, UFGD, Dourados, 2007.

Page 57: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

56

formas de trabalho, e nesse processo a própria expulsão/exclusão da terra. Além disso, para apreender o cotidiano dos acampamentos de lona à beira das rodovias ou em fazendas ocupadas, também encontrou na história oral uma forma de adentrar nas leituras sobre as dificuldades e estratégias do grupo para sobreviver, a constituição de normas e a organização, as tensões e medos e a morosidade dos encaminhamentos, as expectativas.

De três acampamentos abordados pela autora: Laguna Peru (Eldorado), Mambaré (Mundo Novo), destaco a formação do Acampamento Oito de Março em Itaquiraí. Conforme Edna nos relata, o mesmo teve início com a ocupação da fazenda Santo Antonio Agropastoril, no município de Itaquirai - MS, que ocorreu na manhã do dia 8 de março de 1997. A ocupação foi realizada com aproximadamente 1.300 famílias, mas no processo pode ter chegado a 2.100, conforme estimativas do Movimento de Trabalhadores Sem-Terra – MST, que organizou e mediou as ações.61 A área, contudo, começou a ser desocupada um mês depois, após muita negociação. Dalí os trabalhadores se dirigiram para as margens da rodovia BR 136, aproximadamente 38 km da área anteriormente ocupada, entre os municípios de Naviraí e Itaquiraí, MS.62 Nesse local se formou efetivamente o Acampamento Oito de Março.

Das várias situações abordadas pelo trabalho de Edna, serão comentados dois momentos que, nas falas dos participantes, marcaram a luta pela terra: as ameaças de despejo e de reintegração de posse que suscitaram o medo de perdas e enfrentamentos com a polícia e a falta de alimentos para os acampados, que desencadeou ações nas rodovias próximas.

É tempo, pois, de retornar aos primeiros momentos de tensão no processo de ocupação da referida fazenda. Há relatos de como foi vivenciado. Desde o processo de chegada à área, os sem-terra se depararam com as barreiras do policiamento. Depois, nos primeiros dias, o acampamento continuou sendo montado, com novas famílias

61 FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão... Op. cit., p. 141; 144.62 Ibidem, p. 148.

Page 58: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

57

chegando. Nesse período viveram a expectativa de que a qualquer momento os policiais poderiam vir para proceder à desocupação. Havia o medo do que poderia ocorrer. Sobre esses momentos, assim se manifestaram respectivamente Nair e Claudinéia:

Porque assim é muita gente. Nós chegamos na área era mais ou menos umas seis horas, tava amanhecendo o dia, né? Na verdade quando a gente chego ali na entrada tinha vários camburão, né? Aí a gente ficou assim... “meu Deus será que já passou muita gente ou não passou, né?” [...] Mas aí a gente desceu, eles perguntaram pra onde a gente tava indo. A gente falo que a gente tava indo pra Santo Antônio. Não tinha como a gente esconder mesmo. Fizeram algumas perguntas e tal, mas aí deixaram a gente ir, porque a maioria já tinha passado mesmo, né?63

[...]

Que eu passei muito medo mesmo foi a primeira vez que veio, as polícias, eu não sabia. Aí o pessoal chego lá com ônibus dizendo que tinham despejado a turma no caminho, que eles vinha pra bate. O pessoal falava bastante, né? Eu tinha muito medo. Foi quando bateu a vontade de ir embora mesmo foi naquele momento, né? Foi no dia que tomaram as armas. Viche já passei muita coisa assim, muito medo.64

Esse fato, mencionado pela Claudinéia, ficou conhecido como a tomada das armas. Foi também narrado por vários acampados que vivenciaram o período. As referências recorrentes ao acontecido demonstraram que o mesmo marcou a história dessa ocupação. Esse tipo de memória, fundamentada na emoção, na experiência de aflição vivenciada pelas famílias afloraram por serem aspectos marcantes, inclusive porque estão também relacionados aos valores cultivados pelo grupo, como solidariedade e sobrevivência. O caso foi desencadeado quando logo depois dos primeiros dias da ocupação, um caminhão lotado de famílias, que se dirigia ao acampamento foi barrado pela polícia.

63 NAIR apud FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão... Op cit., p. 136.64 CLAUDINÉIA apud FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão... Op

cit., p. 147.

Page 59: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

58

Em relação à ocupação da fazenda Santo Antônio, ocorreu negociação, não houve despejo por uma ação direta da policia, contudo, Edna destaca que as pessoas sentiram-se ameaçadas, viveram apreensivas e com medo, era a experiência do provisório, tiveram que desmontar e refazer seus barracos, recomeçar. Sem dúvida, os acampados viveram uma violência simbólica, que também maltrata.

Outro aspecto a se considerar, é que Cláudinéia concedeu a entrevista oito anos depois dos acontecimentos, na ocasião da ocupação era uma adolescente de treze anos de idade. Edna entrevistou pessoas adultas e jovens, é possível constatar como várias memórias são compartilhadas e como algumas experiências foram marcantes. Coube a historiadora questionar a memória, possíveis idealizações da vida passada frente às dificuldades.

Destaco, também, que a historiadora, dialogou com as narradoras e com as próprias entrevistas, pois seria uma ilusão achar que as fontes falam por si. O trabalho de composição é da pesquisadora. Ao se mencionar algumas informações dos acampamentos, não se trata de detalhar os resultados da pesquisa, mas de refletir sobre como a autora em parte lidou com as fontes: estudou sobre a temática da terra, a trajetória dos movimentos sociais, a bibliografia disponível; realizou trabalho de campo, a identificação e formação de uma rede de entrevistados para tentar abranger a comunidade que desejava analisar, elaborou roteiro de entrevistas e apreendeu a atitude de respeito aos narradores. São procedimentos que fundamentaram seu trabalho de análise.

Contudo, para a apreensão do modo de vida, foram fundamentais as visitas in loco, a convivência e participação com os acampados/as. Realizou, portanto, um trabalho etnográfico, de outra maneira seria quase impossível apreender as experiências do cotidiano.

Ao analisar as condições de vida dos sem-terra na situação de acampados, Edna lembra que além de sofrerem as carências em comuns das comunidades pobres brasileiras, enfrentaram uma série de dificuldades específicas daquela situação, como a distância dos centros urbanos, a ilegalidade, o medo, a insegurança.

Page 60: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

59

Nesse tempo/espaço, entendido aqui como um momento de transitoriedade, são encontradas dificuldades de todas as ordens: alimentação, saúde, educação, moradia; a espera e a esperança são marcas desse processo. O cotidiano nos acampamentos é marcado pelas faltas, por limitações e privações. A privacidade é algo que não existe, quando se vive em um vulnerável barraco de lona que acaba onde o outro começa.65

Diante desse quadro, e na situação limite que muitas vezes se encontravam, para suprir necessidades básicas e imediatas, os sem-terra acampados reagiam, tomavam a ofensiva na luta, e além de promoverem o pedágio nas rodovias, promoveram abate de gado, recuperação de alimentos através de saques a caminhões, sobre essa experiência, comentam respectivamente os acampadas/os Edinéia e Dércio:

Ai Jesus, pior que eu participei! Eu saí até no jornal minha fia! Eu tava junto no meio do pasto, eu num nego porque eu tava. Foi bem na véspera do natal, num tinha carne ué! Num tinha nada não naquele tempo.66

[...]

Um foi no ano de 97, foi no final de 97, e o outro em 99. Depois daquele tempo em 99 até implantaram, se não me falha a memória um programa social, Segurança Alimentar, aí reduziu muito, nois num preciso faze mais esses... Se era alimentação do básico aí nois pegava, se era outra coisa nois dexava passa. Nois só pegava o básico, arrois, feijão, coisa básico. Se tivesse otra coisa no meio nois num mexia, porque se era pra sacia a fome era o básico, né. Deus ajudo que... nunca mais fizemo... Aí começo a adquiri a cesta e com umaP199 ajudinha aí nois consegue se mantê, não tem mais esse nível de precisá fazê mais essa situação, nunca mais preciso. Até portanto que ajudo nois, mais por um lado atrapalho.... não é verdade?67

As falas de resistência, de enfrentamento numa linguagem

65 FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão... Op cit., p. 177.66 EDINÉIA apud FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão... Op cit.,

p. 197.67 DÉRCIO apud FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão... Op cit.,

p. 199-200.

Page 61: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

60

mais dura, também são substituídas pelas preocupações e apreensão sobre aquele momento. Uma questão abordada pela autora quanto ao próprio ato de ocupação, é que para muitos havia o sentimento de estar cometendo uma ilegalidade. A autora menciona José de Souza Martins que qualifica essa situação de dilemas da transgressão, que se caracteriza pelo fato das vítimas das injustiças, originadas das leis que regulam as relações sociais, se constrangerem de burlá-las, e vivenciam como uma violência, por isso muitos desistem.68

O Acampamento Oito de Março se constituiu numa referência para muitas famílias que lutavam pela terra na região sul do estado. Essa luta gerou a desapropriação de várias áreas na região, sendo que entorno de mil famílias procedentes do Oito de Março, foram atendidas em diferentes assentamentos. Um processo lento, fruto das articulações, negociações, pressões dos movimentos junto ao governo, particularmente do MST. Para muitas famílias a espera foi de dez anos. Há que se registrar, inclusive que a fazenda Santo Antônio voltou a ser ocupada como estratégia de pressão por outros grupos de sem-terra e foi finalmente desapropriada em 2007.69

Em vários momentos destaquei que a especificidade da fonte requer metodologias e cuidados específicos por parte do pesquisador. A fonte oral possui uma particularidade que é o fato do historiador participar da produção do documento. Na seleção de quem vai entrevistar e nas perguntas que formula, no roteiro que propõe e na interação que promove. A consciência dos limites e das interferências, respeitando o sujeito da fala, é basilar nessa produção de via de mão dupla. Cabe um diálogo com o sujeito e um diálogo com o documento. Ou seja, após a entrevista, cabe o diálogo com o documento final fruto da transcrição. O pesquisador está sempre fazendo perguntas.

Considerações finaisAo percorrer alguns trabalhos sobre temáticas relacionadas

68 FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão... Op cit., p. 137.69 Ibidem, p. 144; 148; 155.

Page 62: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

61

ao Mato Grosso do Sul, o principal intuito foi o de ressaltar três tipologias de fontes com as quais os pesquisadores trabalharam. Não foi a temática nem as conclusões das mesmas que nortearam este capítulo. Há que se ressaltar que as três tipologias abordadas ganharam maior espaço na historiografia a partir da década de 1970. Contudo, não se deve ter a ilusão de que as fontes documentais escritas, de cunho oficial, perderam sua relevância. O mais importante é o olhar sobre as mesmas, perguntas diferentes para fontes conhecidas podem trazer novos resultados. Há procedimentos que independem do tipo de fonte, tais como saber fazer perguntas, afinal o documento não fala por si; assim como apreender a sua historicidade, as condições de produção e circulação ou não do documento. Grande parte das fontes não surgiu com o propósito de serem fontes, os historiadores que as selecionaram.

As fontes são o principal ingrediente com o qual os historiadores/as fabricam seu mel. “Em síntese, documento histórico é qualquer fonte sobre o passado, conservado por acidente ou deliberadamente, analisado a partir do presente”, conforme afirmam Karnal e Tatsch.70 Mas, como diz um ditado popular: “a rapadura é doce, mas não é mole não”. Apesar das dificuldades, os autores/as aqui mencionados não entregaram os pontos como os dois personagens de Flaubert. Narrar e interpretar a história se assemelha a montar um ou vários quebra-cabeças. Requer conhecimento, perspicácia, metodologia. Habilidades que se adquirem com o fazer, apoiadas pela historiografia e as teorias. Trabalhar com fontes é um exercício intelectual instigante, o desvelar, o abrir-se ao conhecimento. Há percalços, mas é uma aventura que traz prazer.

Referências Bibliográficas:ANDRADE, Joaquim Marçal Ferreira de. História da fotorreportagem no Brasil: a fotografia na imprensa do Rio de Janeiro de 1839 a 1900. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

70 KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia Galli. A memória evanescente... Op cit., p. 24.

Page 63: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

62

ARAKAKI, S. Dourados: memórias e representações de 1964. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2003.

ARAKAKI, S. Dourados: memórias e representações de 1964. 1. ed. Dourados: Editora Uems, 2008.

BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. 2ª reimpressão. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

FALCHI, Edna de. Na luta por um pedaço de chão: experiência e cotidiano nos acampamentos de sem-terra do sul de Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, UFGD, Dourados, 2007.

FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In.: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 61- 91.

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In.: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

KARNAL, Leandro e TATSCH, Flavia Galli. A memória evanescente. In: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 9 – 27.

LAVARDA, Marcus Túlio Borowiski. A iconografia da guerra do Paraguai e o periódico Semana Illustrada (1865 – 1870): um discurso visual. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, UFGD, Dourados, 2009.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: balanço provisório, propostas cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2003.

PEREIRA, Sonia Maria Couto. Etnografia e Iconografia nos registros produzidos por Hércules Florence durante a expedição Langsdorf na Província de Mato Grosso (1826 – 1829). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, UFGD, Dourados, 2008.

PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e

Page 64: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

63

suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

SALIBA, Elias Thomé. Aventuras modernas e desventuras pós-modernas. In.: PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009, p. 309 – 328.

SCHWENGBER, Isabela de Fátima. Representações do MST na imprensa de Mato Grosso do Sul. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, UFGD, Dourados, 2005.

VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro Flamarion. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier; Campus, 2012.

VAINFAS, Ronaldo; CARDOSO, Ciro Flamarion. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

Page 65: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,
Page 66: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

65

Formação de professores e ensino de história: reflexões sobre práticas mediadas pela língua escrita

Maria Lima1

ApresentaçãoOs cursos de extensão oferecidos por diferentes universidades

têm sido considerados espaços importantes de formação docente em serviço. A demanda social por este formato de ação é alta e pode ser conferida pelos inúmeros cursos oferecidos, sejam eles presenciais ou à distância. Tal demanda é, muitas vezes, justificada por necessidades relacionadas ao desejo de incremento dos saberes docentes que são imbuídos da tarefa de frequentar os cursos referidos na maior parte do tempo fora de seu horário de trabalho.

Seguindo essa tendência, o curso de extensão intitulado: Ensino de História e a fotografia como linguagem, fonte histórica e recurso didático2 foi organizado por mim a partir de uma demanda de 30 horas de trabalho com docentes da rede apresentada à universidade pela Secretaria de Educação da cidade de Campos de Goytacazes (SEMED). O tempo exíguo disponibilizado evidencia, a meu ver, um caráter contraditório à lógica da formação na perspectiva do intelectual crítico reflexivo e, por isso, colocou-se como um desafio a mais no contexto da temática abordada.

1 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo; Professora Associada e docente da disciplina de Fundamentos do Ensino de História dos cursos de Pedagogia (presencial e EAD) e da disciplina Políticas Educacionais dos cursos de licenciatura da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ensino de História (GEPEH/UFMS). Email: [email protected] .

2 Refiro-me ao curso de formação oferecido pelo Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Ensino de História (LABORA/UFF), coordenado por mim, realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Esportes (SMECE), da Prefeitura da cidade de Campos dos Goytacazes (RJ), e financiado pelo Laboratório História, Política e Cultura (LAHPOC), coordenado pela profa. Dra.Débora El-Jaick Andrade, docente de Teoria da História do curso de História/UFF/Campos. O curso fez parte das ações de extensão vinculadas ao projeto de pesquisa intitulado: Experiências da modernidade na arte e na política, coordenado pela profa. Débora e financiado com recursos do Edital Faperj no. 21/2012.

Page 67: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Assim, algumas indagações surgiram-me a partir do conhecimento científico em torno de práticas de formação no campo do ensino de História: que contribuições um curso de formação continuada de curta duração poderia oferecer ao docente sobre uma temática tão complexa como o é aquela do trabalho com imagens no ensino de História? De que forma contribuir para que os professores mobilizassem conhecimentos pedagógicos na transformação de suas práticas em diálogo com conhecimentos historiográficos e desenvolvessem instrumentos de análise dos próprios saberes? Que papel o registro escrito poderia ter nesse tipo de situação, tendo-se em vista a natureza dialógica, responsiva e auto-constitutiva da linguagem?

Considerando princípios da pesquisa qualitativa em Educação,3 empreendi a análise de produções de um docente participante do curso.4 Frente às indagações apresentadas anteriormente, objetivei sistematizar alguns dos indícios da reflexão tecida pelo professor Mauro5 no decorrer do trabalho de parceria que foi estabelecido que dão pistas dos saberes empreendidos e construídos no diálogo mediado, por um lado, pelo conhecimento histórico e didático sobre os usos de imagens na História e em seu ensino, e, por outro, pela língua escrita em sua dimensão de prática de linguagem e em seu componente de experiência.

Saberes em diálogo.Os professores que atenderam ao curso de extensão indicado

3 Cf. LAVILLE, Claude. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999; POUPART, Jean [et. al.]. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Editora Vozes, 2010; GHEDIN, Evandro; FRANCO, Maria Amélia Santoro. Questões de método na construção da pesquisa em Educação. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

4 Foi coletado e analisado um conjunto de produções de cinco docentes participantes do curso. Quero agradecer imensamente a esses colegas pela generosidade com que contribuíram com o trabalho de pesquisa, cedendo suas produções e atendendo minhas demandas de entrevistas.

5 O nome é fictício para preservar a identidade do sujeito, conforme acordado com o mesmo.

Page 68: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

67

anteriormente mencionaram que estavam ali em buscas de “técnicas” que lhes permitissem melhor enfrentar os desafios do ensino na sala de aula. Em suas próprias palavras, buscavam “novas maneiras de ensinar” para “tornar as aulas mais dinâmicas”.6 Esse sentido do que significa se atualizar traz embutida uma concepção muito reforçada pela universidade de que os professores da Educação Básica precisam incrementar sua formação intelectual procurando cursos e estudando fora de seu ambiente de trabalho, compreendendo a prática profissional como uma resolução instrumental de problemas baseada na aplicação de teorias e técnicas científicas construídas em outros campos, ou seja, em uma perspectiva da racionalidade técnica do saber.7 o pressuposto tácito subjacente a essa concepção é de que o professor é um técnico, habilitado para ensinar o que é pré-determinado pelos programas e currículos, sendo possuidor, portanto, de uma competência técnica que lhe permite ensinar os conhecimentos científicos que os alunos precisariam aprender. Em adição, concebe-se o docente como aquele que, fundamentalmente, é o responsável por veicular conhecimentos produzidos e referendados cientificamente pelas diferentes áreas de conhecimento.8

Cabe ressaltar a relação dessa perspectiva ao contexto das políticas neoliberais que, dadas as novas configurações do trabalho, o não-emprego, descartando as conquistas trabalhistas, impõe a necessidade do trabalhador buscar, por sua conta, requalificações. Advém daí a imensa valorização conferida atualmente aos programas de formação continuada, transformando a educação em um grande mercado.

Balizadas por esses pressupostos, muitas ações de formação ofertadas parecem reforçar a crença de que o professor “precisa de” “algo” que o permita ensinar “melhor” e que esse “algo” pode ser

6 Anotações em caderno de campo da conversa realizada com 15 professores (com formação e atuação em sala de aula nas disciplinas de História, Artes, Geografia e Português) no 1º encontro (19.03.14) que teve como objetivo mapear as demandas formativas que os mesmos apresentavam ao curso.

7 TARDIF, Maurice. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade, São Paulo, ano XXI, n. 73, 2000a.

8 MONTEIRO, Ana Maria F. C. A história ensinada: algumas configurações do saber escolar. Revista História & Ensino, Londrina, v. 9, p. 9-35. 2003.

Page 69: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

68

conseguido no interior de um curso, o qual é concebido muitas vezes sem considerar elementos da cultura escolar e da cultura da escola, ocorrendo fora da instituição de origem do docente.

Na sistematização das demandas apresentadas pelos professores no primeiro encontro foi possível identificar alguns indícios dos sentidos atribuídos por esses sujeitos à função das ações de formação em sua vida profissional que parecem estar situados na relação ciência/técnica na acepção formulada por Larossa, inspirado em Walter Benjamin.9 Para esse autor, o par ciência/técnica remete a uma relação positiva e retificadora e, no campo da Educação, refere-se a um sujeito técnico, que aplica com maior ou menor eficácia diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos cientistas, pelos técnicos. O dado colocou-se como primeiro desafio no sentido de planejar atividades que pudessem mobilizar reflexões sobre a formação fundamentada na concepção do par experiência/sentido, em que os docentes participantes pudessem relacionar-se com suas demandas como saberes e não como faltas.10 Dessa forma, foi importante ter em vista, a partir de Benjamin, que o sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto”, que se constitui no encontro, no tempo da apreciação, da escuta atenta, elementos em falta na modernidade e que desaparecem

9 CF. LAROSSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002.

10 Aqui utilizo o conceito de mobilização no sentido imputado por Charlot em: CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação de professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005 No contexto da crítica ao reprodutivismo da teoria de Pierre Bordieu sobre o habitus, o autor destaca que a análise das políticas educacionais considerando posições sociais é necessário, mas insuficiente, pois a sociedade é um conjunto de práticas e não só um conjunto de posições. Aqui menciona a importância da recuperação do conceito marxista de práxis operado por Vigotski, apontando que “as atividades são socialmente definidas, mas também são atividades de um sujeito” (Ibidem, p. 19). Nesse contexto, o autor considera que o conceito de mobilização é mais significativo do que o de motivação, pois, pensando sobre o ensino, a questão mais importante não é saber como vou motivar o aluno, mas o que posso fazer para que o aluno se mobilize. “A mobilização é um movimento interno do aluno, é a dinâmica interna do aluno que, evidentemente, se articula com o problema do desejo” (Ibidem, loc. cit.). Do ponto de vista da psicanálise, tem-se que o sujeito interpreta o mundo. Na análise empreendida apresentada neste artigo compreendo o professor como esse sujeito.

Page 70: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

69

junto com o narrador.11 Larrosa chama a atenção para o que nos ensina a palavra “experiência”, vinda do latim experiri, afirmando que ela é, em primeiro lugar, um encontro em que algo se experimenta, que se prova.12

Mesmo que, a meu ver, o formato de cursos de extensão esteja marcado pela concepção racionalista, fundamentei minhas ações, seja no planejamento, seja na coleta dos dados e análise, no pressuposto de que as reflexões que tomam lugar no decorrer do processo de reflexão do professor sobre o seu fazer são complexas e multifacetadas. A partir de Tardiff sabemos que os saberes docentes são temporais, variados e heterogêneos, situados e personalizados, concepção que torna possível vislumbrar esses saberes como elemento central dos processos formativos.13

Amparada por esses referenciais, procurei estabelecer uma relação de formação que, em oposição (mas, necessariamente em diálogo) se apresentasse como espaço de ressignificação do campo de ação profissional,14 uma vez que, ao tomarem sua prática como objeto de observação e de reflexão, compartilhando sentidos com outros sujeitos, engendram-se condições de possibilidade para que os professores reconstruam o pensamento embasados em novos patamares, em sucessivas tomadas de consciência da ação docente. Tal reconstrução, apoiada num sistema de relações e referências conceituais mais amplo, configura uma nova estrutura epistemológica, que possibilita ao professor um “pensar-fazer pedagógicos qualitativamente diferente do anterior”.15 A inserção dos professores

11 Cf. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia, arte, técnica e política. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985

12 LAROSSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência... Op. cit.13 TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos

universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação para o magistério. Rev. Bras. Educ., n.13, p. 05-24, 2000b.

14 Cf. CAIMI, Flávia E. Aprendendo a ser professor de história. Passo Fundo: Editora UPF, 2008.

15 AXT; MARASCHIN apud CAIMI, Flávia E. Aprendendo a ser professor de história... Op. cit., p. 264.

Page 71: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

70

nessa nova estrutura conceitual de referência filia-se a uma nova rede de significações, condição de possibilidade para significar tanto a ação própria na instância local, quanto o próprio campo de atuação profissional em que a ação se atualiza.16

Os dados que subsidiaram essa reflexão foram coletados no primeiro registro escrito dos participantes a respeito do que definiam por imagem (Produção 1 – P1). O registro produzido, que acionou um saber declarativo, retomado depois ao final do curso, estabeleceu um marco inicial para nossos trabalhos no decorrer dos encontros previstos de maneira que os professores pudessem pensar e sistematizar por escrito seus saberes sobre a definição de imagem, conceito que tem sido objeto de reflexões filosóficas desde Platão e que se configurou como eixo norteador do curso e das atividades subsequentes. A seguir, apresento algumas das respostas produzidas pelos docentes, à título de exemplo.

Quadro 1: Exemplo de texto produzido pelos docentes – Produção 1 (1ª versão – produzida no 1º encontro).

Questão J-P1 L-P1 MA-P1

1. O que é imagem?

É uma representação

visual de qualquer coisa

como por exemplo um

desenho, uma figura, uma

foto, um cartão postal etc.

É o que vemos ou formulamos

e que nos permite uma interpretação

livre.

É o resultado do olhar de alguém que fixou algo naquele momento e espaço. Quanto mais sensível e observador, maior será a sua possibilidade de captar. Esse registro possibilitará que outros, em um tempo posterior, possa fazer a leitura específica daquele objeto que foi fixado no papel.[grifos de MA]

Complementarmente, os professores também registraram no mesmo encontro a definição de fotografia (Produção 2 – P2) e como achavam que ela poderia contribuir para o ensino de História (Produção 3 – P3). No quadro a seguir, sistematizei alguns exemplares.

16 CAIMI, Flávia E. Aprendendo a ser professor de história... Op. cit., p. 264.

Page 72: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

71

Quadro 2: Exemplo de texto produzido pelos docentes – Produção 2 e Produção 3.

Professor(a) O que é fotografia? Produção 2 – P2)

Como a fotografia pode ser utili-zada no ensino de História

(Produção 3 – P3)

MA

“É o resultado do olhar de alguém que fixou algo naquele momento e espaço. Quanto mais sensível e observador, maior será a sua possibilidade de captar. Esse registro possibilitará que outros, em um tempo posterior, possa fazer a leitura específica daquele objeto que foi fixado no papel”.[grifos da autora]

“É uma fonte riquíssima de trabalho do professor. É um dos elementos auxiliares para uma exposição em sala de aula. Ex.: a capa do livro “O Cortiço” de Aluízio Azevedo, já permite uma compreensão de que o autor vai tratar, pois os detalhes da foto já nos permitem uma leitura dos conflitos aí existentes (Rio de Janeiro nos anos 20, urbanização/pobreza, des lo c amento/agrupamentos diferenciados etc.) ”.

L“É a representação, real ou não, de um momento, objeto ou paisagem”.

“Pode ser usada para análise e interpretação de uma época, identificação de espaços etc.”.

Longe de expressarem todos os saberes conceituais que os professores possuíam, os escritos são ricos por trazer indícios de diferentes olhares relacionados provavelmente à formação específica de cada professor (a turma era composta por professores de Artes, de Língua Portuguesa, de Geografia e de História, além de coordenadoras pedagógicas com formação em Pedagogia). Também foi uma produção importante porque pretendeu estabelecer um patamar inicial das discussões que tomariam lugar nos encontros seguintes uma vez que as contribuições foram socializadas e sistematizadas em um só documento escrito produzido coletivamente. O papel mediador da escrita foi exacerbado no momento de socialização, pois o registro coletivo motivou a troca de ideias entre os participantes, que explicavam e buscavam palavras que expressassem melhor o que pretendiam registrar.

Com o intuito de obter mais dados sobre os sentidos mobilizados pelos docentes, propus, também no primeiro encontro, a realização de exercícios fotográficos solicitando-lhes que produzissem imagens de objetos/lugares no local onde o curso acontecia (Produção

Page 73: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

72

4 – P4). Nesse contexto, um elemento desafiador que tinha a função de problematizar a ideia da imagem/verdade foi colocado: era preciso captar objetos que, na realidade concreta eram pequenos e que, na fotografia, deveriam criar a sensação de serem grandes. Além disso, a imagem deveria provocar a curiosidade, em seus apreciadores, em saber onde ela havia sido captada. O exercício resultou em imagens como os exemplares que seguem:

Imagem 1: (MFA-P4) – Sem título (março de 2014).

Imagem 2: (AFA-P4) – Sementes (março/2014).

O exercício trouxe dados que me permitiram vislumbrar um conhecimento em ação relacionado aos conteúdos teóricos que no curso apareceriam relacionados tanto à historiografia, quanto à sociologia e à filosofia da imagem. A imagem 1 (MFA-P417) foi produzida por

17 Tendo em vista que os participantes produziram diversas fotos no decorrer de todo o curso, adotarei essa sistemática de numeração para proceder à análise, considerando-as todas inseridas no contexto da Produção 2. Assim, teremos: MFA-P4

Page 74: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

73

Mauro, cujo percurso analisarei neste artigo. Ao observarmos a produção, é possível perceber conhecimentos de aspectos técnicos do uso da máquina fotográfica (abertura, enquadramento, foco); saberes sobre a relação sujeito que observa/autor-fotógrafo, uma vez que a imagem captada cria um desafio a quem a observa e aciona referentes de diferentes ordens em sua leitura (chão? Parede? Textura de ferro?); e conhecimentos sobre o estatuto de verdade da imagem e o acionamento de referentes que, nessa produção, remete a uma pintura (traços em uma tela?) e, por isso, pôs em relevo elementos da subjetividade de sua produção pelo uso controlado da luz e da cor, bem como pelo cuidado ao decidir o que ficaria “dentro” e o que ficaria “fora” da imagem.

Reunidos na sala, apreciamos o material produzido com a tarefa de descobrir que objeto seria aquele e onde ele estava. O momento da projeção das imagens coletadas foi marcado por muita conversa e indagações. Os participantes riram, ficaram intrigados, ora identificando os objetos/lugares, ora surpreendendo-se quando o autor as identificava e eles expressavam com surpresa que “nunca pensariam naquilo”.18 Naquele momento, uma série de memórias afetivas, familiares, foram acionadas e lembranças foram compartilhadas pelo grupo, exacerbando-se o componente de experiência que norteou o trabalho. Foram lançadas, também, algumas questões que visavam trazer à consciência alguns conhecimentos que se faziam presentes de forma inconsciente (uma saber da ação), tais como, de que lado vinha a luz, onde estava o fotógrafo e em que posição, e por que a imagem nos faz acionar referentes que conhecemos.

A atividade de realizar exercícios repetiu-se por quase todos os encontros, sempre com um desafio que os convidava a explorar um recurso técnico da produção fotográfica ao mesmo tempo em que se promovia a reflexão teórica sobre algum elemento da construção do Olhar. Também o momento de apreciação das produções tornou-se ritual ao início dos encontros, sendo em alguns momentos veementemente cobrado pelos participantes, os quais se ressentiram em dois encontros nos quais não pudemos realizá-lo.

= Mauro Foto A; P4 – refere-se à sequência numérica das produções dos participantes (escritas e imagéticas), sendo P4 referente especificamente às fotos.

18 Anotações de caderno de campo do encontro do dia 02.04.16.

Page 75: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

74

A partir dos textos e imagens produzidos, bem como dos dados que registrei em caderno de campo da conversa do grupo sobre as fotografias, pude perceber grosso modo, que as representações que alguns professores possuíam sobre o papel das imagens no ensino (perspectiva da ilustração) não condizia com os saberes que apresentavam nas fotografias que produziram na atividade inicial, indicando que os saberes manifestos na dimensão da ação pareciam não serem “automaticamente” mobilizados na reflexão sobre a prática docente. As fotografias possibilitaram, por um lado, a percepção de que havia um conhecimento mais elaborado que não fora manifestado declarativamente em sua totalidade na atividade escrita inicial, como podemos perceber ao observar o 1º registro escrito do professor Mauro, bem como uma outra imagem que apresentou no 2º encontro (MF4-P4), destacando a natureza diversa dos saberes que envolvem a temática.

Quadro 3: Registros produzidos pelo professor Mauro.

O que é imagem? (M-P1)

O que é fotografia?

(M-P2)

Como a fotografia pode ser utilizada no ensino

de História (M-P3)

MF4-P4(legenda da foto: “Sem

título”)

“É o que nos chega

através dos

sentidos, sobretudo a fala e a

visão”.

“É um registro da

imagem baseado na quantidade

de luz”.

“Através de uma série de investigações que possibilitem sua compreensão: época,

local, costumes, etc. Pode ser utilizada num trabalho

comparativo, tendo em vista a percepção de continuidades e

rupturas, permanências e mudanças ao longo da

história”.

Com esses dados de análise em mãos, no 2º encontro, realizei uma exposição teórica sobre fundamentos das questões que envolvem os regimes de visualidade na contemporaneidade sempre norteada pelas fotografias produzidas pelos professores. A partir da ideia de que a mesma é basicamente uma síntese que oferece traços, cores e outros elementos visuais, introduzi alguns aspectos dos debates que, no campo da História, vêm sendo travados em torno dos usos da fotografia como

Page 76: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

75

fonte histórica. Aqui foi dado destaque, por um lado, ao ato fotográfico como prática social,19 e, por outro, ao posicionamento necessário do pesquisador diante da imagem fotográfica. Nesse sentido, destacou-se a produção fotográfica como sistemas de signos ou símbolos que transmitem significado do testemunho ao leitor, ou da fotografia aos órgãos visuais do pesquisador, criando textos intermediários orais/verbais, seja das diferentes personagens fotografadas ou contemporâneas à fotografia, seja dos grupos descritos, uma vez que “nunca olhamos apenas uma coisa, estamos sempre olhando para as relações entre as coisas e nós mesmos”.20

Abordei, ainda, como os historiadores têm considerado as imagens estáticas e em movimento no contexto de uma cultura visual, deslocando-se a atenção das fontes visuais para a visualidade.21 Assim, nosso olhar voltou-se para a percepção daquele sujeito que, a partir de indícios, começava a “aparecer” por trás da máquina fotográfica. Mas não só. Também imaginamos que pessoas poderiam consumir essas imagens. A ênfase recaiu na polissemia dos sentidos que é intrínseca ao olhar mecânico e a inserção dessas imagens em uma economia visual.

Knauss, apresentando o processo de afirmação das imagens como fonte para o historiador que se deu a partir da década de 1980 nos Estados Unidos, apresenta uma definição de cultural visual que foi considerada como aporte para as discussões e atividades propostas no curso.22 Segundo o autor, de pictorial turn, expressão cunhada com a leitura de Richart Rorty, o qual introduziu a ideia de linguistic turn na década de 1960, passou-se, na crítica das artes e das formas culturais, a dar destaque aos diversos modelos de “textualidade” e discursos, tendo alguns autores sublinhado “a importância assumida pelos modos de ver e pela experiência visual como paradigmas de nossa época”.23 Assim,

19 Cf. LEITE, Miriam Moreira. Retratos de família. São Paulo: Edusp; Fapesp, 1993.20 Ibidem, p. 31.21 MENEZES, Ulpiano B. de. Fontes visuais, cultura visual, História visual.

Balanço provisório, proposta cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, nº 45, p. 11-36, 2007.

22 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e culutra visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, p. 97-115, 2006.

23 KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens... Op. cit, p. 106-107.

Page 77: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

76

Nessa perspectiva, importa, sobretudo, não tomar a visão como dado natural e questionar a universalidade da experiência visual. Trata-se de abandonar a centralidade da categoria de visão e admitir a especificidade cultural da visualidade para caracterizar transformações históricas da visualidade e contextualizar sua visão.24

No caso específico da fotografia, Lima e Carvalho destacam que sua abordagem como fonte exige que se entenda a diversidade de usos que gerou arquivos e coleções que são encontradas hoje não só em arquivos, museus, bibliotecas etc, mas também nos seus locais de origem de produção ou no caminho final de sua circulação.25 Segundo as autoras,

é necessário ainda deixar claro que tais circuitos precisam ser compreendidos de modo que a fotografia não seja descolada de seus contextos de produção circulação, consumo, descarte e institucionalização. O contexto da imagem fotográfica não é seu conteúdo, mas o modo de apropriação da imagem como artefato.26

Um elemento fundamental a ressaltar no trabalho desenvolvido refere-se à necessidade de abordar, paralelamente às questões teóricas e práticas envolvendo o ator de fotografar e a construção do Olhar, o planejamento didático envolvendo o uso de imagens pelos docentes. Assim, na parte final do segundo encontro, solicitei a produção de um plano de aulas que, de alguma forma, dialogasse com os conteúdos que vinham sendo abordados até aquele momento no curso. Foi solicitada a elaboração de uma proposta de uso de imagem com os alunos (pintura, gravura ou fotografia) levando-se em consideração os conteúdos curriculares propostos em seus planejamentos anuais. Apresentei-lhes um roteiro que teria a função de nortear o registro do plano solicitado. O objetivo era, a partir daquele momento, aproximar as reflexões conceituiais da razão pedagógica,27

24 Ibidem, p. 107.25 Cf. LIMA, Solange Ferraz; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia: Usos

sociais e historiográficos. In.: PINSK, Carla B.; LUCA, Tânia de. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

26 Ibidem, p. 35.27 Cf. ANHORN, Carmen Teresa Gabriel. Um objeto de ensino chamado

História: a disciplina de História nas tramas da didatização. Rio de Janeiro: PUC, 2003.

Page 78: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

77

ou seja, das especificidades da disciplina escolar de História, da escola e da sala de aula real na qual os docentes se encontravam inseridos.

No terceiro encontro, dei início à abordagem dos usos de gravuras e fotografias no ensino de História ainda com a intenção de dar destaque aos elementos tangentes à razão pedagógica. Adotando a ideia de trabalhar com modelos como fonte de reflexão sobre a prática docente, os participantes foram convidados a “assumir” o lugar de “alunos” de um 9º ano28 e realizar uma atividade de leitura de gravuras e fotografias do século XIX com o objetivo de obter informações sobre como era a vida dos escravos no Brasil, naquele período, mais especificamente em regiões produtoras de café como o Rio de Janeiro e Minas Gerais.29 Um conjunto de imagens foi apresentado ao grupo que, em duplas seguiram um roteiro de leitura de documento imagético elaborado a partir de Trépat,30 e Prats,31 o qual, em linhas gerais, possibilitou que fossem enfocados três níveis de análise do documento imagético: a análise morfológica considerando os aspectos técnicos e formais da imagem; a análise sintática do conteúdo, o que significa dizer, o que foi fotografado e como cada elemento se articula com os demais; e, por último, a análise do significado.32

Na preparação da atividade também foram considerados

28 Aqui pauto-me pela ideia de “simetria invertida” para descrever um aspecto da profissão e da prática que inclui os conceitos de homologia de processos e o que Donald Schön denomina “play in a hall of mirrors”, e que pode ser conferido em: ALARCÃO, Isabel. Formação reflexiva de professores: Estratégias de Supervisão. Porto: Porto Editora, 1996. Ressalto, também, que, para a preparação da sequência proposta, pautei-me pelo conceito de situações de dupla conceitualização de: LERNER, Delia. Situações de “dupla conceitualização”. In.: CARDOSO, B.; LERNER, D.; NOGUEIRA, N.; PEREZ, T. Ensinar: tarefa para profissionais. Rio de Janeiro: Record, 2007.

29 Foram apresentados exemplares das obras de Victor Frond, J. Christiano, W. Read, Debret, Harro-Haring e Rugendas. A seleção foi feita seguindo-se o critério de trabalhar com imagens de uso corrente nos livros didáticos, como é o caso da produção de Debret e Rugendas, em contraste com registros que dificilmente se tem acesso nesse material, como a produção de Harro Haring e Victor Frond.

30 Cf. TRÈPAT, Cristófol-A. Procedimientos en Historia. Un punto de vista didáctico. Barcelona: Graó, 1996.

31 Cf. PRATS, Joaquín. Geografia e História: investigación, innovación y buenas prácticas. Barcelona: Graó, 2011.

32 PRATS, Joaquín. Geografia e História... Op. cit., p. 76.

Page 79: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

78

os princípios da metodologia de ensino baseada na pesquisa, principalmente a partir de Iglésias, Pozo, Prats e Torruela & Cardona,33 e que remete ao uso de estratégias que possibilitem ao estudante experienciar situações didáticas que tomam como elemento central as práticas de investigação investidas pelo historiador em seu fazer. Já nos idos da década de 1980, Marson apresentou alguns dos princípios dessa perspectiva no contexto de reflexões sobre a relação entre a Teoria da História e o Ensino de História.34 Em sua reflexão sobre os elementos que são comuns ao historiador e ao professor de História, o autor deu relevo aos princípios que movem as noções e categorias (a integração, a adequação e a causalidade, generalização e objetividade) para se chegar a uma explicação completa, objetiva e racional. Prats, posteriormente, justifica a consideração desses aspectos, destacando que

a partir da discussão sobre a natureza e as relações entre as Ciências Sociais e a Educação, defende-se o ponto de vista de que para que as Ciências Sociais sejam disciplinas formativas e introduzam os alunos em um plano de aprendizagem que os faça descobrir a racionalidade da análise social, com toda a carga formativa que ela tem, é imprescindível que a educação ofereça uma didática dessas disciplinas que considere a natureza desse tipo de conhecimento.35

Depois de realizarem as atividades previstas (análise das imagens, socialização dos dados obtidos, mapeamento de questões de investigação motivadas pela leitura das imagens, elaboração, em duplas, de suposições de respostas às questões de investigação, listagem das fontes bibliográficas com as quais poderiam ser respondidas as questões, demos início à tematização, enfocando, agora, as condições didáticas da tarefa pari passu as questões que envolvem o uso de imagens estáticas

33 Cf. IGLESIAS, F. Javier Mercán & PÉREZ, Francisco F. G. Una metodologia basada en la Idea de investigacion para la enseñanza de la Historia. Revista Didáctica de las Ciencias Sociales, 1987; POZO, Juan I. Solução de problemas: aprender e resolver, resolver para aprender. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998; PRATS, Joaquín. Ensinar História no contexto das Ciências Sociais: princípios básicos. Revista Educar, Curitiba, Especial, p. 191- 218, 2006; TORRUELLA, Maria Feliu; CARDONNA, F. Xavier H. 12 ideas claves: Enseñar y aprender história. Barcelona: Graó, 2011.

34 Cf. MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. In.: SILVA, Marcos A. da. Repensando o ensino de História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986.

35 PRATS, Joaquín. Geografia e História... Op. cit., p. 193.

Page 80: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

79

no ensino de História, tais como nos sugerem Molina e Gejão.36 Esse plano foi apresentado pela maioria dos participantes e, a partir de intervenções específicas e coletivas, gerou um percurso de produção com idas e vindas que se tornou bastante produtivo e muito revelador.

A seguir, analisarei o percurso de um dos professores, tecendo considerações em torno não só das três versões que produziu de seu plano de aula, mas da relação entre essas produções e aquelas que enfocaram apenas os conteúdos específicos do curso (imagem e fotografia) procurando explicitar a complexidade dos saberes que são mobilizados no ato de planejar.

Formar para ensinar História utilizando imagens: o exercício do diálogo.

Como apontado anteriormente, no 1º encontro, os professores responderam a três questões apresentadas por mim (P1, P2 e P3), as quais foram retomadas ao final do curso com o objetivo principal de potencializar o papel mediador da língua escrita nos processos de pensamento, uma vez que, na atividade de reescrita, a natureza dialógica da produção textual pode ganhar uma conotação especial, pois o autor acaba necessariamente tornando-se o leitor de seu próprio texto. Alternadamente, como leitor e co-leitor,37 o docente, pelas possibilidades oferecidas pelo registro escrito, estabelece uma relação interlocutiva com suas próprias ideias e passa a ver a si mesmo como um “outro”. Imbuído desse outro olhar, ele se aproxima de seus escritos como exemplares de seu pensamento e relaciona-se de forma dialética com o mesmo.

Importa destacar que, na análise empreendida, não considerei o registro escrito produzido como a expressão absoluta dos saberes de seu autor. Pelo contrário, a produção, entendida em uma perspectiva

36 Cf. MOLINA, Ana Heloisa. Ensino de História e imagens: possibilidades de pesquisa. Domínios da Imagem, Londrina, ano I, n. 1, p. 15-29, 2007; GEJÃO, Natália G. A fotografia como mediador cultural na construção do conhecimento histórico escolar. Antíteses, v. 2, n. 3, p. 257-267, 2009.

37 Cf. SAUTCHUK, Inez. A produção dialógica do texto escrito: um diálogo entre o escritor e o leitor interno. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Page 81: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

80

enunciativa, está inserida em um circuito de produção discursiva, e, antes de tudo, devido ao papel mediador e constitutivo da língua escrita, apresenta apenas indícios de reflexões muito mais intensas e profundas levadas a cabo por aquele que a produziu. Muito embora seja possível identificarmos indícios que remetem às concepções de História, de ensino e de aprendizagem da História, e de Didática, os quais aparecem imbricados de forma complexa, elegi, para apresentação neste artigo, apresentar um exercício de análise de aspectos relacionados ao ensino e à aprendizagem da História, tanto pela limitação do espaço, quanto pelo fato de que esse foi o eixo em torno do qual estruturei o curso ministrado. Isto posto, apresento abaixo as respostas do professor Mauro.

Quadro 4: Produção1 (MP1), sua retomada (MP6) e os comentários produzidos pelo prof. Mauro ao compará-las.

Questões MP1 MP6 Comentários avaliativos (comparação)

1.O que é

imagem?

É o que nos chega através dos sentidos, sobretudo o

tato e a visão.

Imagem é uma construção

humana produzida

pelos sentidos, sobretudo a

visão. 

As respostas são bem parecidas. Ambas enfatizam os sentidos humanos, sobretudo a visão. Isto porque o olhar contribui para a percepção das cores, formas, peso, sabor, temperatura e volume dos objetos, cujas referências estão guardadas na memória. Contudo a ideia de construção, presente na segunda resposta, ressalta a importância da subjetividade diante daquilo que está sendo observado ou produzido. A maior parte destas informações veio de leituras anteriores a este curso, o que não diminui sua importância, já que funcionou como pretexto para que a mente trabalhasse e recuperasse esses dados. Além disso, a noção de referente adveio dos vários debates e discussões que tivemos ao longo do curso “Ensino de História e a fotografia como linguagem, fonte histórica e

recurso didático”.

Page 82: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

81

2.O que é uma

fotografia?

É um registro da imagem baseado na

quantidade de luz.

Fotografia é uma combinação de ponto e linha, luz e sombra

captadas pelas lentes de

uma câmera ou máquina fotográfica.

Comparando as duas respostas, percebemos uma mudança significativa na descrição do conceito ou da definição de fotografia. À simplicidade da primeira superpõem-se as características inerentes à forma/contorno do objeto ou paisagem, evidenciados pela segunda. Ou seja, fotografia é uma técnica que depende tanto da relação entre “ponto e linha” como da relação entre “luz e sombra”. A importância da luz para a efetivação da fotografia veio das aulas de Física e de um curso oferecido pelo SENAC há aproximadamente dois anos. Porém, a relevância do par “ponto e linha” é oriunda das aulas do curso de formação continuada “Ensino de História e a fotografia como linguagem, fonte histórica e recurso didático”, realizado na UFF – Polo Campos, no primeiro semestre de 2014. Baseados na bibliografia apresentada durante as aulas do curso, coordenado pela professora Dra. Maria Lima, demos mais um passo no sentido do aprimoramento do conceito de fotografia, incorporando ao par tradicional “luz e sombra” a

ideia de “ponto e linha”.

Page 83: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

82

3.Como a

fotografia pode ser utilizada

no ensino de História?

Através de uma série de investigações

que possibilitem sua compreensão: época, local,

costumes, etc. Pode

ser utilizada num trabalho comparativo,

tendo em vista a percepção de continuidades

e rupturas, permanências e mudanças ao longo da

história.

Elas são fontes de informações

que refletem determinados

interesses. Portanto, podem ser usadas para

compreendermos o contexto

em que foram produzidas, além das intenções de

quem as produziu.

Analisando as duas respostas, escritas em momentos distintos do curso, constata-se uma diferença significativa entre elas. A primeira nos remete para a compreensão dos fenômenos sociais, tendo em vista a percepção de continuidades e descontinuidades a partir de registros imagéticos vinculados a duas dimensões temporais: passado e presente. Já a segunda destaca o valor da intencionalidade subjacente a esses registros, independente da técnica utilizada. Ou seja, vale tanto para a pintura quanto para a fotografia ou outra forma específica de capturar a imagem e registrá-la numa superfície. Isso não significa que elas sejam excludentes. Pelo contrário, são respostas complementares. Sendo assim, o trabalho em sala de aula deve levar em consideração esses dois aspectos relacionados ao registro da imagem, os quais são por demais importantes para o entendimento de qualquer processo ou contexto

históricos.

A primeira versão traz indícios dos saberes do professor a respeito dos conceitos de imagem e de fotografia antes do início do curso. Nela, o conteúdo parece remeter apenas à consideração de aspectos internos da imagem fotográfica, quase que a apresentando como um registro do real pelas potencialidades que possui no trabalho de comparação entre exemplares produzidos em diferentes épocas. Em sua primeira definição, a imagem “está” fora do sujeito que olha. Na segunda versão, percebemos a incorporação de elementos abordados em diferentes momentos do curso, apontando para um processo de

Page 84: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

83

ressignificações conceituais e deslocando a noção de imagem para o sujeito que a produz. O enunciado produzido aponta uma outra reconfiguração da noção de imagem, definida não apenas em seus aspectos internos, mas deslocando o olhar para questões da autoria e do contexto em que a fotografia foi produzida.

A análise que Mauro produziu de seus escritos após a finalização do curso abriu espaço para que o professor indicasse relações entre os saberes que já possuía e as ressignificações que produziu no decorrer do curso e constituiu-se em um texto rico e de maior densidade.

Independentemente de saber se os conhecimentos que o sujeito manifestou em seu texto escrito foram adquiridos no curso ou não, importa ressaltar que o olhar retrospectivo sobre a própria produção no momento de avaliação permitiu ao professor sistematizá-los e analisá-los em um contexto que favoreceu a percepção de um processo.

Consciente da complexidade das relações entre saberes relacionados ao o que ensinar e aqueles da docência, penso ser importante comparar a análise que realizei dos escritos acima àquela das três versões do plano de aula requisitadas aos participantes do curso e que foram produzidas pelo docente, uma vez que, quando recebi as primeiras versões dos planos de aula dos professores, algumas indagações estavam guiando meu olhar: que relações seriam estabelecidas por esses sujeitos entre os conteúdos abordados teoricamente e nos exercícios de produção de imagem e os saberes que possuíam a respeito do ensino de História?

Ao analisar o processo como um todo (da primeira até a terceira versão do plano de aula), foi possível configurar um quadro das principais características de um processo de reflexão, instaurado dentro de um percurso no qual o como fazer ganhou uma relevância diferente.

A primeira versão do plano de aula de Mauro (MPA1-P5)38 segue abaixo.

38 Aqui a sigla de identificação utilizada tem a seguinte conotação: M (Mauro), PA (plano de aula), sendo o número que aparece ao final correspondente àquele da versão do plano de aula.

Page 85: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

84

MPA1-P5 [apresentada no 3º encontro].

Imagem Utilizada no plano de aula:

Identificação da imagem: Revolta da Vacina;

Autoria: Leônidas Freire;

Data de Produção: 1904;

Local de publicação: O Malho;

Turma(s) com a(s) qual(is) pretende utilizar: 901; 902.Conteúdos que pretende abordar:

1 - A Revolta da Vacina;

2 - Manifestações populares de 2013.

Estratégias que mobilizará ao usar a imagem:

1 - Breve apresentação da charge de Leônidas Freire;

2 - Memorização e registro individual dos elementos constitutivos da imagem;

3 - Socialização das lembranças em grupos de três ou quatro alunos;

4 - Reconstrução, por escrito, da cena observada;

5 - Reapresentação da charge;

6 - Leitura de fragmentos dos textos validados pela imagem;

7 - aula expositiva sobre a Revolta da Vacina;

8 - Contextualização do tema.

Page 86: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

85

Essa produção me foi apresentada pelo docente no 3º encontro e, em orientação individual, no mesmo dia, fiz algumas sugestões que objetivaram possibilitar que o mesmo promovesse uma ressignificação de seus saberes pela mobilização em um contexto de uso de algumas das noções com as quais havíamos trabalhado no curso até aquele momento. Para mim, a produção de uma tematização que mobilizasse o professor foi desafiante, tendo em vista a complexidade que se colou frente à produção apresentada e ao exíguo tempo de diálogo que possuíamos.

À primeira vista, encontramos indícios dos saberes específicos muito diferentes daqueles expressos em relação ao conceito de imagem e fotografia e seus usos no ensino de História. Enquanto que na atividade 1, Mauro mobilizou de forma proficiente definições que consideraram conceitos complexos relacionados à imagem, na CPA1 não é possível vislumbrar a consideração dos mesmos. O que temos é um plano de aula centrado no professor, listando o que ele fará durante todo o processo. No diálogo com o professor Mauro, destaquei esse aspecto e perguntei-lhe onde estava o aluno. A pergunta teve como meta promover um deslocamento do olhar do ensino para a aprendizagem, colocando em foco o aluno e as ações e aprendizagens que ocorreriam durante o trabalho. Aqui estávamos centrando as reflexões na dimensão das concepções de ensino/aprendizagem entrecruzadas àquelas da História e do uso de imagens.

Foram feitas indagações também no concernente às possibilidades que a comparação entre dois momentos históricos distintos, pois a mesma não estava clara no plano apresentado, uma vez que as manifestações de 2013 às quais se referia tinham um alvo muito diferente daquele da Revolta da Vacina em 2010. Além disso, questionei-o no sentido de adotar estratégias que tornassem a imagem um documento histórico a ser examinado e problematizado pelos próprios alunos, potencializando o desenvolvimento da noção de empatia histórica e evidência.

Do diálogo travado no terceiro encontro resultou a 2ª versão do plano de aula (CPA2), a qual segue abaixo.

Page 87: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

86

MPA2-P5 [apresentada no 4º encontro][mesma imagem de MPA1-P5]

Conteúdos que pretende abordar:

01. A participação social na Revolta da Vacina e nas manifestações populares ocorridas no Brasil em 2013. Estratégias que mobilizará ao usar a imagem:

1 - Problematizar o tema, baseado na produção fotográfica das manifestações populares de 2013;

2 - Ouvir com a turma a música “Vacina Obrigatória”, interpretada por Mario Pinheiro;

3 - Distribuir a letra da música para os alunos preencherem os espaços em branco, enquanto escutam-na pela segunda vez;

4 - Fazer um estudo do vocabulário da época com o auxílio de um dicionário e/ou da internet, em dupla;

5 - Apresentar a charge de Leônidas Freitas sobre a Revolta da Vacina;

6 - Pedir para as duplas identificarem alguns trechos da letra da música de Mario Pinheiro na imagem produzida por Leônidas Freitas;

7 - Responder, coletivamente, as seguintes questões:

a) O que a população pensava a respeito da vacinação obrigatória?

b) Como as autoridades são retratadas na letra da música?

c) A quem é destinada a crítica à vacina obrigatória?

8 - Comparar por escrito, individualmente, as formas de manifestações populares, baseados nas fotografias e na charge sobre a Revolta da Vacina;

9 - Avaliar a produção escrita e divulgar os resultados para os alunos.

O professor Mauro inseriu, nesta versão, o termo “problematizar” (item 1) advindo de nosso diálogo e relacionado a reflexões didáticas que contextualizam o ensino de História na perspectiva da investigação. O trabalho desenvolvido na sala com os professores do curso teve início justamente pela problematização de imagens da escravidão (gravuras e fotografias) com questões que induziram à análise estética e à formulação de questões de investigação, as quais conduziram, posteriormente, ao registro de suposições de

Page 88: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

87

resposta (em duplas) e posterior mapeamento de fontes bibliográficas que poderiam fornecer dados para levantarmos dados que pudessem apoiar a leitura daquelas imagens.

Assim, na ação de formação, “problematizar” implicava em formular indagações a partir das imagens e logo no início do trabalho, uma vez que “não existem fatos, nem história, sem um questionamento; neste caso, na construção da história, as questões ocupam uma posição decisiva”.39 Apesar do termo ter sido inserido como sinônimo de “contextualizar” e “introduzir”, penso que sua inserção dá indícios da reflexão que o professor teceu sobre como relacionar passado e presente centrando na ideia de revolta, significante que, aparentemente, ele havia estabelecido como eixo para estabelecer relações entre os dois períodos históricos, como me levou a crer a proposta de comparação formulada no item 8 de MPA2-P5.

Identifiquei também uma estrutura fortemente marcada pela lógica do exercício, em que os estudantes apareciam como executores de tarefas nas quais o resultado tinha pouca relação com aprender História.40 É o que se pode perceber nas propostas de atividades dos itens 3 e 4 de MPA2-P5, em que o sentido pode estar sendo guiado pelas ideias de “manter a atenção” dos alunos (item 3) e “melhorar a compreensão” pelo “deciframento” do texto (item 4).

Na comparação de MPA1-P5 com MPA2-P5, retomei mais uma vez o porquê de relacionar a imagem das manifestações de 2013, tematizando o conceito de documento histórico e enfocando o conceito de imagem em sua relação com o ensino de História. Destaquei, também naquele momento, o risco de anacronismo presente no uso daquela imagem, pois ela poderia induzir a pensar as sociedades do passado com conceitos contemporâneos.

O diálogo resultou na produção de MPA3-P5.

39 PROST, Antoine. Doze lições sobre a História. Campinas: Autêntica, 2008, p. 75.40 Cf. AISENBERG, Beatriz. Usos de la escritura en la enseñanza de la Historia.

Revista Opsis, v. 13, n. 1, p. 45-52, 2013.

Page 89: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

88

MPA3-P5 [apresentada após o 8º encontro][mesma imagem de MPA1-P5]

Conteúdos que pretende abordar:

1 - A participação social na Revolta da Vacina.

Estratégias que mobilizará ao usar a imagem:

1 - Projetar na tela a charge de Leônidas Freitas sobre a Revolta da Vacina a fim de, coletivamente:

a) Identificar o cenário, os atores sociais e os elementos da cena;

b) Caracterizar as expressões das personagens;

c) Levantar alguma(s) hipótese(s) sobre o (s) motivo(s) dessa revolta.

2 - Distribuir a letra da música “Vacina Obrigatória”, interpretada por Mario Pinheiro para, em duplas e\ou grupos de três:

a) Preencher os espaços em branco durante a apresentação da música;

b) Fazer um estudo do vocabulário da época com o auxílio de um dicionário e/ou da internet;

c) Relacionar alguns trechos da letra da música com a imagem produzida por Leônidas Freitas.

3 - Aula expositiva sobre a Revolta da Vacina, tendo em vista:

a) Analisar o contexto;

b) Verificar a(s) hipótese(s) levantada(s) pelos alunos;

c) Apresentar os motivos e o desfecho dessa revolta.

4 - Responder, individualmente, as seguintes questões:

a) O que a população pensava a respeito da vacinação obrigatória?

b) Como as autoridades são retratadas na letra da música?

c) A quem é destinada a crítica à vacina obrigatória?

d) Comparar as condições de saúde e higiene do início do século XX com as condições de saúde e higiene hoje em dia.

5 - Avaliar a produção escrita e divulgar os resultados para os alunos.

Page 90: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

89

A centralidade ainda permanece sobre o ensino, pois identificamos no plano de aula uma forte tendência a descrever o que o professor fará, com poucas pistas sobre em que situações os alunos serão imersos e que processos reflexivos serão potencializados. No entanto, percebe-se uma mudança substancial na proposta de análise inicial da imagem, a qual incorporou as estratégias de leitura de imagem na perspectiva do documento histórico, trabalhadas nos primeiros encontros do curso. Embora o sujeito a quem as orientações se dirijam ainda seja o professor, o docente negritou a palavra “coletivamente” destacando que a realização da tarefa envolveria os alunos. Na perspectiva apresentada no curso, destacou-se o papel mediador do docente que, a priori, planejaria situações em que os alunos fossem levados a realizar exercícios de descrição, mobilizando conhecimentos que já possuíssem e registrando suas suposições. As ações dos alunos nesse plano de aula, porém, não são detalhadas, demonstrando necessidade de se refletir mais profundamente sobre os processos cognitivos que estariam envolvidos em toda a atividade proposta.

Um outro elemento importante observado foi a retomada da aula expositiva, presente em MPA1-P3, mas que havia sido retirada na versão seguinte. Nessa última versão, o docente reinsere a mesma a partir do questionamento feito sobre a necessidade de se promover sistematizações periódicas dos saberes que os estudantes estariam elaborando ao longo do processo de estudo da imagem apresentada.

Quando comparamos as versões do plano de aula (MPA1, MPA2 e MPA3) àquelas da Produção 1 (MP1, MP6, e comentários avaliativos), bem como aos saberes que se explicitaram nas fotografias produzidas por Mauro, vislumbra-se que os saberes relacionados à imagem se encontravam apartados daquilo que era proposto para a ação docente em sala de aula.

Pareceu-me, dessa forma, que o domínio teórico de um certo conteúdo não implicou necessariamente em uma “tradução” didática mecânica, o que pode corroborar para desmistificar a ideia de que o domínio conceitual de um certo conteúdo implica, necessariamente, em uma prática de ensino que avance em relação a concepções

Page 91: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

90

empiristas de ensino-aprendizagem. Os indícios identificados podem remeter a todo um processo de reflexão que é gradual porque complexo, multifacetado, sobre o como ensinar, configurado no encontro teórico de referenciais da Teoria da História, da Historiografia, da Didática geral e específica, além dos objetivos do ensino de História na escola, realçando a função formativa do mesmo. No caso específico do trabalho com imagens concorrem ainda conhecimentos relacionados à Filosofia, à Sociologia e à Semiótica.

Considerações finaisA comparação das três produções e da análise que o

professor empreendeu de sua própria produção reforça a ideia de que os professores não se limitam a executar currículos, mas também os elaboram, definem e reinterpretam a partir do que pensam, do que acreditam, daquilo que valorizam.41 Além disso, não se pode esquecer que as reflexões tecidas pelo professor de História encontram-se imersas na cultura escolar e necessariamente marcadas pela forma escolar,42 e pelos constrangimentos da disciplina escolar.

A possibilidade de produzir registros durante o curso e de retomá-los, revisando-os em contextos mediados pela escrita e pelo diálogo com o formador, pareceu potencializar o exercício de reflexão sobre o próprio trabalho, elemento considerado central em práticas que visam a formação de docentes na perspectiva do intelectual crítico reflexivo. Pela sua qualidade de memória, foi possível instaurar, a partir do registro escrito, uma relação de diálogo do sujeito com seus saberes de maneira consciente e mediada.

Observando a avaliação que Mauro faz de sua produção e as várias versões do plano de aula que elaborou, vem à tona a percepção de que o processo reflexivo exige tempo e contexto. É preciso também

41 Cf. PIMENTA, Selma Garrido. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In.: PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (org.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.

42 VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, p. 7-47, 2001.

Page 92: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

91

um fazer situado, inserido na escola e no diálogo com o formador de maneira significativa. A escrita, por suas qualidades de fixidez e de registro, pode favorecer e apoiar a configuração desse processo de criação em que se transforma a ação docente em contextos reflexivos.

Quero ressaltar, por conseguinte, que as práticas de formação em cursos de curta duração necessitam inserir situações em que o professor possa tornar sua própria produção, configurada em processo, como objeto de análise. Procurei elencar neste texto algumas das potencialidades que o registro escrito pode oferecer nesse sentido, destacando que a relação mediada entre pensamento e linguagem inclui a palavra como signo, instrumento convencional de natureza social, e a analogia básica entre signo e instrumento repousa na função mediadora que os caracteriza.43 Esse pressuposto é o que me permite afirmar a necessidade de promover situações de diálogo mediadas pela escrita como estratégia favorecedora de processos de formação em serviço.

Assim, invisto na potencialidade da agência docente como forma de combate às práticas tecnicistas e aos projetos que as referendam, uma vez que “a agência docente é um empreendimento agonístico, audacioso, marcado por incerteza, resolução e tentativa, um esforço que pode agir às margens da verdade científica sobre nós próprios”.44

Referências Bibliográficas:AISENBERG, Beatriz. Usos de la escritura en la enseñanza de la Historia. Revista Opsis, v. 13, n. 1, p. 45-52, 2013.

ALARCÃO, Isabel. Formação reflexiva de professores: estratégias de Supervisão. Porto: Porto Editora, 1996.

ANHORN, Carmen Teresa Gabriel. Um objeto de ensino chamado História: a disciplina de História nas tramas da didatização. Rio de Janeiro: PUC, 2003.

43 Cf. VYGOSTY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Cortez, 2001.44 Cf. PIGNATELLI, Frank. Que posso fazer? Foucault e a questão da liberdade

e da agência docente. In.: SILVA, T. T. (org.) O Sujeito da Educação Estudos Foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.

Page 93: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

92

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia, arte, técnica e política. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CAIMI, Flávia E. Aprendendo a ser professor de história. Passo Fundo: Editora UPF, 2008.

CHARLOT, Bernard. Relação com o saber, formação de professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005

GEJÃO, Natália G. Gejão. A fotografia como mediador cultural na construção do conhecimento histórico escolar. Antíteses, v. 2, n. 3, p. 257-267, 2009.

GHEDIN, Evandro; FRANCO, Maria Amélia Santoro. Questões de método na construção da pesquisa em Educação. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

IGLESIAS, F. Javier Mercán; PÉREZ, Francisco F. G. Una metodologia basada en la Idea de investigacion para la enseñanza de la Historia. Revista Didáctica de las Ciencias Sociales, 1987.

KNAUSS, Paulo. O desafio de fazer História com imagens: arte e culutra visual. ArtCultura, Uberlândia, v. 8, p. 97-115, 2006.

LAROSSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002.

LAVILLE, Claude. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa em ciências humanas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

LEITE, Miriam Moreira. Retratos de família. São Paulo: Edusp/ Fapesp, 1993.

LERNER, Delia. Situações de “dupla conceitualização”. In.: CARDOSO, B.; LERNER, D.; NOGUEIRA, N.; PEREZ, T. Ensinar: tarefa para profissionais. Rio de Janeiro: Record, 2007.

LIMA, Solange Ferraz; CARVALHO, Vânia Carneiro de. Fotografia: Usos sociais e historiográficos. In.: PINSK, Carla B.; LUCA, Tânia de. O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009.

MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. In.: SILVA, Marcos A. da. Repensando o ensino de História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986.

MENEZES, Ulpiano B. de. Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, proposta cautelares. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 11-36, 2007.

MOLINA, Ana Heloisa. Ensino de História e imagens: possibilidades de pesquisa. Domínios da Imagem, Londrina, ano I, n. 1, p. 15-29, 2007.

Page 94: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

93

PIMENTA, Selma Garrido. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In.: PIMENTA, Selma Garrido; GHEDIN, Evandro (org.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez, 2002.

PIGNATELLI, Frank. Que posso fazer? Foucault e a questão da liberdade e da agência docente. In.: SILVA, T. T. (org.) O Sujeito da Educação Estudos Foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.

POUPART, Jean [et. al.]. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

POZO, Juan I. Solução de problemas: aprender e resolver, resolver para aprender. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

PRATS, Joaquín. Ensinar História no contexto das Ciências Sociais: princípios básicos. Revista Educar, Curitiba, Especial, p. 191-218, 2006.

PRATS, Joaquín. Geografia e História: investigación, innovación y buenas prácticas. Barcelona: Graó, 2011.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a História. Campinas: Autêntica, 2008.

SAUTCHUK, Inez. A produção dialógica do texto escrito: um diálogo entre o escritor e o leitor interno. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

TARDIF, Maurice. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade, São Paulo, ano XXI, n. 73, 2000a.

TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação para o magistério. Rev. Bras. Educ., n.13, p. 05-24, 2000b.

TRÈPAT, Cristófol-A. Procedimientos en Historia. Un punto de vista didáctico. Barcelona: Graó, 1996.

TORRUELLA, Maria Feliu; CARDONNA, F. Xavier H. 12 ideas claves: Enseñar y aprender história. Barcelona: Graó, 2011.

VYGOSTY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Cortez, 2001.

VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, p. 07-47, 2001.

Page 95: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,
Page 96: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

95

Museus em diálogosPaulo Henrique Martinez1

Em longa entrevista publicada no Brasil, em 1986, o escritor argentino Jorge Luís Borges fez uma observação que nos orienta na reflexão sobre as múltiplas possibilidades e meios de comunicação social que permeiam a atuação dos museus. Segundo Borges, o “diálogo tem que ser uma pesquisa e pouco importa que a verdade saia da boca de um ou da boca de outro”. As oportunidades de diálogos devem ser valorizadas e buscadas como formas de acesso e de ampliação da construção de conhecimentos.

As instituições culturais e, particularmente, os museus dispõem de uma capacidade dialógica incessante. A promoção do diálogo como intenção de conhecimento construído interativamente atende a outras expectativas culturais. Os diálogos facilitam a comunicação com a emissão e recepção sucessivas de mensagens, de dados e informações, orientam indivíduos, instituições e sociedades, no tempo e no espaço, educam e humanizam o cotidiano da vida social. O diálogo como iniciativa individual e coletiva de compreensão e de conhecimento nutre outras redes de sociabilidade, de pensamento e de racionalidade.

A formação de públicos de museus encontra nas diferentes possibilidades e práticas de diálogo uma estratégia eficaz na educação do olhar e da sensibilidade e na compreensão a partir de objetos e de suas representações sociais em museus de todos os tipos, sejam de arte ou de história natural, de arqueologia ou técnico-científicos. Há inúmeras caminhos indutores de oportunidades profissionais, de melhor aproveitamento dos acervos museológicos e de envolvimento comunitário nas instituições museológicas. A seguir são abordadas quatro frentes de diálogos que os museus desenvolvem com alguma regularidade e criatividade na promoção de diálogos com o público que os

1 Professor na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Departamento de História, campus de Assis.

Page 97: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

visitam. São elas: as ações educativas, as exposições, os diálogos interculturais e atividades voltadas para o turismo.

Ação educativa nos museus.O museu é irmão da escola. A educação está na origem

dos museus. Ela é a essência própria das instituições museológicas. O museu surge para reunir, exibir, tocar a sensibilidade e a consciência do visitante, instruindo espontânea e deliberadamente. As ações educativas e a comunicação com o público são funções incontornáveis em todo e qualquer museu, grande ou pequeno, temático ou não, local ou nacional.

Museu e escola nasceram juntos, no mesmo momento da vida europeia – tomemos como baliza temporal o século XVIII – em que a valorização do racionalismo, da consciência e da liberdade do indivíduo caminhou de mãos dadas com o esforço de preparação consciente da vida social para os destinos individuais e coletivos. Destinos que se abriam à experimentação, à observação e ao conhecimento integrado das diferentes partes do mundo, em inúmeras dimensões: geográficas, físicas, biológicas e, sobretudo, culturais. Destinos que se abriam ao consumo de novos alimentos, diferentes matérias-primas, costumes diversos e valores éticos, religiosos, estéticos, econômicos e políticos. Museu e escola conheceram trajetórias institucionais variadas ao longo do tempo e em diferentes países.

A educação no museu é distinta da educação escolar, é mais livre e aberta. No museu a ação educativa volta-se para a descoberta, ao questionamento, a interpretação, a compreensão, mobilizando sempre que possível todos os sentidos humanos e não apenas a cognição intelectual. Atualmente a ação educativa assume papel destacado no estabelecimento de novas relações com os visitantes e o público de museus, conferindo a eles maior atenção institucional. Esta atenção, inegavelmente, é um dos traços constitutivos da museologia no século XXI.

A prioridade ao público escolar é estratégia com inúmeras possibilidades de inovação pedagógica e institucional. Ampliam-se

Page 98: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

97

as oportunidades de inclusão social e no atendimento de demandas educacionais, culturais, de lazer e turismo. A educação nos museus envolve conceitos, valores, práticas e saberes que são compartilhados com o público nas exposições, em publicações impressas e eletrônicas e nas atividades culturais. A ação educativa propicia que os visitantes façam, livre e criativamente, a integração entre os conhecimentos individuais, de grupos específicos e das sociedades com os saberes dos museus. O resultado é a permanente renovação nas experiências e nas sensibilidades do público ambientadas nos espaços museológicos.

A promoção da autoconsciência, da apropriação e da reelaboração individual e coletiva do conhecimento confere múltiplos sentidos às ações educativas nos museus. A formação e a transformação das pessoas tornam-se processo regular e contínuo de articulação e de interação de interesses, da curiosidade e do espírito crítico. A formação continuada converte-se em elemento ativo e dinâmico nos museus. Ela permite atender tanto a necessidades profissionais, como a de professores, técnicos e gestores de museus, quanto a demandas e expectativas do público escolar, da visitação espontânea, de inclusão social e da cidadania de diferentes segmentos sociais. O desenvolvimento de habilidades intelectuais e da criatividade dos agentes educadores e do público visitante toma impulso em contato com diferentes objetos, acervos e coleções presentes nas instituições, em exposições e nas ações educativas. Multiplicam-se as situações de ensino e aprendizagem e as possibilidades de ação educativa nos museus. Em médio e longo prazos uma viva cultura de museus também pode desencadear novas oportunidades econômicas, de geração de emprego e renda, no turismo e no desenvolvimento local e regional.

Vê-se logo que a eficácia da ação educativa resulta antes da busca de novas relações com o público nos museus e menos da sua tipologia – arte, histórico, ciências, militar ou outra – de seu acervo, recursos tecnológicos ou do alcance de suas atividades – local, regional, nacional, internacional. Todo museu tem algo a revelar, uma experiência a oferecer, acontecimento ou relato memorável, conhecimentos que incitam a percepção e a sensibilidade humana para o desconhecido, a diferença, a novidade. É esta condição comum

Page 99: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

98

a todo e qualquer museu, espaço de encontro e de compartilhamento, que contribui para torná-lo interessante aos diferentes públicos e à visitação periódica. A ação educativa em museus estabelece e renova canais de comunicação entre os museus e a sociedade.

O interesse dos museus pelo público visitante é o principal fator para estimular e expandir o interesse do público visitante pelos museus e as exposições. Trata-se de desenvolver essa equação. O fio condutor do trabalho com o público é o diálogo aberto e constante. É preciso ouvir e compreender o que move a atração e o afastamento do público dos museus. A identificação de necessidades específicas e das expectativas dos visitantes e do potencial para a ampliação da frequência é o primeiro e decisivo passo. Horários, acessibilidade, segurança, comunicação e linguagem são itens de atenção e de revisão constante.

É recomendável que o conjunto das atividades educativas seja registrado em um documento escrito. A sua edição visa a facilidade da difusão impressa e digital e a orientação técnica e prática no dia a dia do trabalho. O plano de ação educativa é um instrumento importante no desenvolvimento da atuação imediata e de curto prazo. É desejável que o plano posteriormente se desdobre na formulação de uma política que inclua as ações de médio e de longo prazos e diretrizes gerais que as oriente. A política de ação educativa vincula-se diretamente ao plano museológico das instituições, contribuindo para a explicitação de seu papel social e a identidade pública do museu.

O objetivo do plano de ação educativa do museu é precisamente torná-la uma prática institucional, regular e permanente, dotada de padrão de qualidade pedagógica, técnica e cultural.

O plano de ação educativa indicará o público alvo de suas atividades. A opção pelo público escolar, por exemplo, vai conduzir o museu e a ação educativa ao contato e ao diálogo frequentes com escolas, alunos e professores. Uma vez aberto o canal de comunicação entre as escolas e os museus, haverá crescente interação com as propostas para a educação básica nacional, com os projetos político-pedagógicos da rede oficial de ensino e de escolas privadas, com os

Page 100: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

99

conteúdos transversais e específicos das diferentes disciplinas que compõem a grade curricular e as expectativas dos estudantes e que se renovam a cada ano escolar e mudança de faixa etária. Neste exemplo, as ações educativas abordariam temas como a cultura afro-brasileira e indígena, meio ambiente, direitos humanos entre outros temas relevantes. Cartilhas, oficinas, experiências, exposições temporárias podem ser preparadas para a realização ampla e efetiva da ação educativa nos museus.

A viabilidade das práticas de ação educativa é maior quando organizadas e regidas por parâmetros, mínimos que sejam, apontados em um plano adequado à realidade do museu. Na impossibilidade de o museu dispor de um setor educativo institucionalizado, o que demandaria recursos, contratação de pessoal, infraestrutura, material de consumo e profissionais especializados, há que se buscar alternativas concretas e possíveis. Estas existem e tornam o plano de ação educativa peça fundamental na sua consecução. A esmagadora maioria dos museus é formada pelas instituições de pequenas dimensões e, quase sempre, locais e regionais. Os acervos costumam ser heterogêneos e temáticos. Geralmente, são fruto da perseverança de colecionadores ou resultados de situações peculiares como a existência de sítios históricos e arqueológicos, atuação de entidades públicas e privadas, como associações, empresas e órgãos técnicos. Criados e mantidos por prefeituras municipais padecem a falta de assistência generalizada em instalações precárias e inadequadas.

Os pequenos museus não podem abrir mão de seu papel social e da valorização cultural do patrimônio e do acervo de que dispõem, ainda que não contem com os recursos financeiros, materiais e profissionais ideais. Professores da educação básica e universitários poderão ser envolvidos em parcerias, projetos comuns, trabalho voluntário e os próprios projetos político-pedagógicos de escolas e de cursos superiores muitas vezes contemplam essa aproximação entre educação e museus. Há um grande contingente de educadores e que pode ser incorporado nas práticas e ações educativas nos museus. A conversão destas possibilidades e oportunidades em atuação concreta requer algum treinamento inicial, a formação continuada de

Page 101: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

100

profissionais nas escolas e em instituições culturais, contribuindo para o crescimento da cultura de museus em cidades e regiões pelo Brasil afora.

O enlace se dá no plano de ação educativa do museu, renovando a centralidade e a sua importância estratégica. A existência e a divulgação do plano, por um lado, permite que o museu tenha um conjunto definido de ações educativas e, por outro, que professores ou profissionais em trabalho voluntário sejam engajados nas atividades que se realizam em espaços museológicos. As universidades podem cooperar oferecendo orientação científica, técnica e pedagógica pela atuação de seus especialistas e pesquisadores tanto na elaboração do plano quanto nas práticas de sua implantação.

O plano de ação educativa deve partir do consagrado princípio da educação para todos. Ainda que tenha definido o seu público prioritário, o museu não pode evitar a ampliação e a diversificação de visitantes. O estabelecimento de metas claras e precisas, exequíveis e previstas em cronogramas de atividades assegura a sua realização e a participação do público. O museu poderá desenvolver ações em programações já consolidadas, como a Semana de Museus e a Primavera dos Museus, promovidas pelo Ministério da Cultura. Um plano de trabalho periódico, semanal ou mensal, pode conter as atividades previstas e ações possíveis de serem desencadeadas em colaboração, parceiras e projetos específicos.

É importante lembrar que a identidade educacional do museu é o aprendizado com objetos, coleções e o patrimônio. Aprender com os objetos é a prática fundadora dos museus. Todo esse trabalho deve ser submetido a avaliações periódicas e sistemáticas, em colaboração com o público, para que as ações educativas possam ser readequadas, renovadas e enriquecidas em seus aspectos técnicos e pedagógicos.

O plano de ação educativa orienta o exercício e a disseminação destas ações nos museus em escala local, cotidiana e pontual. É um procedimento fecundo e necessário e que resulta na multiplicação de efeitos positivos na vida educacional e cultural das instituições museológicas. As escolas, o público visitante e a cidade

Page 102: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

101

são igualmente beneficiadas com esta revigorada atenção. É nas exposições que esta conduta institucional ganha suporte e adquire visibilidade concreta.

Exposições: o fazer e o dizer.O componente lúdico é essencial na realização de exposições.

Na ausência do lúdico, o jogo de emoções que as exposições em museus podem evocar não entra em movimento, não se realiza. Este jogo de emoções é acionado a partir da composição de elencos de objetos, imagens, testemunhos e documentos, de lembranças e de sensações. A identificação, seleção, e a apresentação de tais elencos mobiliza a imaginação e a criatividade na elaboração de exposições em museus e demais espaços de cultura. Requer o conhecimento de acervos, de coleções e de objetos que poderão compor um enredo discursivo. O enredo dará sustentação às narrativas das exposições, sejam elas de caráter histórico, artístico, biográfico, técnico-científico, ficcional, entre outras possibilidades. A intenção e o gesto, a ideia e a ação, alertam e preparam a mente, o corpo e o espírito, constituem o fazer da exposição museológica e propõem espaços físicos e visuais para a visitação pública.

A narrativa nas exposições é também complexa em sua estrutura pois estará sempre amparada em pesquisas, ideias, valores, interpretações e análises. E em muitas informações. Informações de origem textual, oral e imagética, sensoriais, materiais e abstratas. O material expositivo disponível, acessível e selecionado é parte fundamental na concepção e na montagem de exposições. A tipologia dos acervos e das coleções oferece, de antemão, o leque de oportunidades para a criação de enredos e de narrativas. A combinação, articulação, comparação e contrapontos, conferem identidade e acabam por distinguir as exposições, as equipes gestoras, técnicas e pedagógicas dos museus e as próprias instituições culturais. A comunicação simbólica e a experiência sensorial cutucam a mente, o corpo e o espírito, constituem o dizer da exposição museológica e propõem espaços mentais e sensoriais para a visitação pública.

Page 103: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

102

Mário Chagas, além da política dos museus, costuma fazer menção à poética dos museus. A obra do poeta João Cabral de Melo Neto nos possibilita refletir sobre a proposição daquele museólogo e professor. Partimos do livro Museu de tudo, publicado em 1975. Os poemas ali reunidos definem-se por duas variáveis: de um lado, parecem escapar à funcionalidade do rigor e do esforço da poética cabralina e, de outro, oferecem temática e variação lúdicas. Daí o título, museu, de tudo. Um livro sobre a liberdade poética e sobre a liberdade da linguagem poética do próprio autor. Um livro no qual pontuam a variedade e a casualidade, “sem risca ou risco”, no trabalho realizado. Um livro não sobre a realidade social objetiva mas sobre a linguagem poética. Ao tomar a própria linguagem como realidade, o poeta nos leva a pensar no trabalho que se realiza na linguagem dos museus e nas exposições.

A obra de João Cabral de Melo Neto pode nos auxiliar na orientação de tarefas e na concepção de exposições museológicas. A sua poesia distingui-se tanto pela dimensão artística, propriamente dita, do seu fazer poético, quanto pela dimensão social, de abertura para a percepção do mundo, de rigor e de conhecimento, presentes no dizer do poeta. O fazer e o dizer de sua poesia combinam-se, e de tal maneira, que o seu trabalho poético nos inspira em outro “aprendizado com a linguagem”, aquela dos museus, e estimula a experimentação e a criatividade em exposições museológicas. São os sentidos de educação e de aprendizado, de ensinamentos e de lições, técnico e existencial. Sentidos apreendidos pelo empenho no exercício e no esforço, contínuos e sistemáticos, distintivos da obra do poeta pernambucano, que a tornam oportuna e de interesse para o trabalho em museus.

Em essência, sugere o professor João Alexandre Barbosa, nosso guia no universo cabralino, o trabalho poético de João Cabral de Melo Neto, consiste em árduo e persistente aprendizado de compreensão e de expressão por parte do poeta, daquele que faz e diz, que compõem e escreve versos e poemas. O domínio da linguagem poética requer, então, o desenvolvimento de habilidades técnicas no fazer e no dizer. Esta é a trilha que se abre na aquisição de habilidades para a concepção de exposições museológicas, a busca desta articulação

Page 104: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

103

no conhecimento, na comunicação e na experimentação direta com objetos, o simbólico e as sensações. A arte do ofício que, a partir do trabalho poético, se ilumina e realiza o trabalho das exposições, em particular, e o museológico, em geral. Uma educação pela pedra transmutada em uma educação pelos objetos.

Uma museologia e uma expografia, cabralinas, ambas, poderiam ser enunciadas aqui? E seriam elas atraentes? E também viáveis? Entendo que práticas museológicas e a concepção de exposições inspiradas na obra poética de João Cabral são possíveis e passíveis de experimentação, de serem postas em prática. Possibilidades e desafios que se fazem acompanhar, umas dos outros, em interação, seja complementar, seja em contraponto. Compõe-se aqui uma fecunda atividade de geração, de aquisição e de comunicação de conhecimentos na realização de exposições em museus, de fora para dentro dos objetos. Opera-se uma interação dinâmica na percepção intelectual, na experiência sensorial e existencial na visitação às exposições em museus, de dentro para fora dos objetos. E transita-se da realidade material e simbólica dos objetos para a realidade da linguagem museológica e, logo, desta para a realidade existencial dos profissionais e dos visitantes de museus.

Esta “operação cabralina” promove uma redução do real, concreto ou imaginário, tangível ou intangível, à linguagem, seja ela poética ou museológica. A extração desta realidade essencial e a sua expressão, no seio da própria linguagem, devolve ao leitor-visitante, o significado essencial – lembrança, informação, emoção, conhecimento, sentido, indagação, inspiração, diversão – guardado nos objetos, uma vez que lhe permite extrai-lo, de dentro para fora, do objeto para o indivíduo, do museu para as instituições e grupos sociais – a escola e os estudantes, a excursão e os turistas, a cidade e os moradores etc. – da cultura para a sociedade, do espaço visual, interativo e circunscrito, para o tempo histórico e da experiência do mundo. Ao poeta coube extrair a essência da palavra: da faca, da lâmina, o corte. Ao profissional e ao visitante de museu compete extrair a essência do objeto, conhecendo-o, e dado a conhecer, na exposição.

Page 105: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

104

O ensaísta Mikhail Bakhtin observou que a poesia não se reduz à elaboração da palavra e que sobre qualquer material pode haver poesia. Ao aceitar essa proposição do crítico russo, pensamos por analogia o trabalho com a linguagem museológica. A palavra poética compõe o verso tanto quanto o objeto no museu compõe a exposição. Em sociedades como a brasileira em que há escassez de fontes históricas escritas sobre a população pobre e oprimida, sobre povos indígenas e outros grupos sociais, como profissões que desapareceram e a infância, por exemplo, distintos testemunhos e registros da vida social podem ser mobilizados em exposições. A tradição oral, a memória coletiva, artefatos variados, temáticas, simbolismos, representações, técnicas de criação nas artes e no trabalho, formas de pensamento, compõem conjuntos de oportunidades para a interação e a aprendizagem entre diferentes gerações que se realizam em museus e exposições.

O patrimônio e a herança cultural são sucessivamente reinventados e recriados pelas novas gerações em busca da expressão de sentidos, de sentimentos e de comportamentos individuais e coletivos. Significados metafóricos e simbólicos são confeccionados juntamente com os artefatos e a estética que lhes dão origem e conferem lugar na vida social. A construção de sentidos sociais que transitam entre o ambiente habitado, a tecnologia e a imaginação inventiva pode ser observada com nitidez em sociedades e culturas milenares e são inspiradoras para a melhor compreensão de traços da cultura ocidental. A exposição possibilita a passagem da compreensão dos fatos sociais, testemunhos e objetos exibidos em museus, para a compreensão de seus significados culturais, históricos e políticos. Exposições são experiências práticas, individuais e coletivas, de construção de conhecimentos, de reflexão crítica e de momentos lúdicos, de lazer, diversão e entretenimento. Exposições museológicas propõem o diálogo entre diferentes países, regiões e grupos sociais, promovendo o conhecimento e a valorização da diversidade cultural das experiências humanas no mundo.

Page 106: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

105

Museus e diálogos interculturais.Em novembro de 2015 a UNESCO apresentou um conjunto

de princípios e de diretrizes para a orientação e o estímulo a políticas públicas e institucionais na proteção e promoção dos museus e das coleções museológicas, sua diversidade e papel na sociedade. Estas recomendações são também um marco referencial na série de instrumentos internacionais sistematicamente elaborados nos últimos anos. Até então, a UNESCO havia formulado um documento sobre museus, contendo instruções práticas para a sua organização e funcionamento, em 1959. Estes documentos compõem o elenco de sucessivas abordagens relativas ao aprimoramento da gestão do patrimônio cultural. Elas são destinadas a diferentes esferas: técnica, administrativa, pedagógica, institucional, científica, social e a serviços operacionais, como legislação, acesso, segurança, comunicação, cooperação.

Vistos em perspectiva cronológica estes documentos são testemunhos da contínua mutação na concepção, na preservação e nos usos sociais do patrimônio, em geral, e dos museus, em particular. Neste encadeamento histórico de pensamentos e de ações figuram, por exemplo, as noções de Patrimônio Mundial da Humanidade (1972) e de biodiversidade (1992), o engajamento do patrimônio na promoção do desenvolvimento sustentável (1996), a valorização de manifestações do patrimônio imaterial (2003), a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais (2005). A recomendação para a proteção e a promoção de museus e coleções busca assegurar a sua integridade física, mediante a preservação, o inventário de peças e acervos e a divulgação de bens culturais em risco de perda e de destruição. O papel social das coleções é destacado, no plano regional e comunitário, como fonte de inspiração, transmissão, participação e capacidade de autoproteção dos museus.

Os museus, a diversidade de suas coleções e os papeis sociais que desempenham implicam na definição de múltiplas políticas que resultam em suas respectivas proteção e promoção. No âmbito das políticas de preservação comparecem a contenção do tráfico ilícito

Page 107: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

106

de bens culturais, a conduta ética e profissinal e a adoção de planos museológicos que orientem, entre outras, as ações institucionais de preservação. A normatização nacional e os protocolos internacionais apontam caminhos na formação de equipes técnicas, administrativas e pedagógicas, e quanto às estruturas físicas, conceituais, funcionais e financeiras. A busca de critérios de excelência na organização e na realização de atividades demandam inventários, catálogos, comunicação e interatividade. São medidas que os recursos da tecnologia digital tornam, dia a dia, mais acessíveis, recorrentes e eficazes em sua execução.

No âmbito dos papeis sociais destacam-se a salvaguarda de identidades individuais e coletivas e da diversidade cultural nos museus, mediante a promoção dos Direitos Humanos, da sustentabilidade ambiental, das culturas indígenas, da igualdade de gênero, do combate à discriminação, à intolerância e à violência. Ações para a ampliação, a diversificação e a inclusão de públicos na visitação aos museus e exposições, a acessibilidade física em suas instalações e intelectual dos conhecimentos e da interpretação das culturas, são também propostas reiteradas pela UNESCO, em 2015. A cooperação como prática social e institucional é amplamente estimulada. Há recomendações para esta colaboração pelo intercâmbio e a disseminação de boas práticas, o refinamento de legislação nacional, a formação de equipes técnicas, de setores e de profissionais especializados, estratégias de financiamento e de maior articulação dos museus nas políticas gerais de cultura.

As possibilidades de diálogos interculturais foram renovadas e ampliadas. O diálogo intercultural foi estimulado como estratégia para suturar as feridas políticas das duas Guerras Mundiais da primeira metade do século XX. Em 1946, a UNESCO surgiu como iniciativa supranacional para desempenhar este papel. Na década de 1990, o diálogo intercultural voltou a ser convocado, agora para facilitar as trocas econômicas e as relações internacionais, após o fim do Guerra Fria e da ameaça nuclear que assombraram o mundo na segunda metade do século XX. No século XXI, o acirramento de tensões sociais, dos impactos de crises econômicas e ambientais, de guerras regionais e dos fluxos

Page 108: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

107

migratórios reposicionaram o diálogo intercultural na agenda política e cultural em escala mundial. Na base da promoção do diálogo intercultural está a ideia de unidade biofísica do planeta, da vida e da experiência humana e da sua expressão, material e imaterial, na diversidade cultural dos povos, distribuídos no tempo e no espaço das inúmeras sociedades ao redor do mundo.

A interação entre culturas que conhecemos atualmente é resultado, em larga medida, mas não só, da expansão colonial ocidental ocorrida a partir do século XV. A colonização europeia do continente americano é um marco histórico referencial. Na década de 1980, as sociedades e os estados nacionais que surgiram com o fim do colonialismo europeu, como respostas e esforços de superação de seus efeitos seculares, exibiam um mosaico de culturas aos olhos do mundo. A opressão, o racismo, a violência, a segregação cultural, social e mesmo espacial de grupos étnicos e religiosos, as migrações e os deslocamentos populacionais e a correspondente reivindicação de direitos fundamentais, como a liberdade e a paz, fizeram da diversidade cultural e do diálogo intercultural questões políticas de amplo alcance social no século XXI.

A construção de sociedades democráticas incorporou proposições e novas práticas sociais, diferenciadas e voltadas, sobretudo, para o combate ao etnocentrismo. A expressão das comunidades, ações afirmativas de inclusão e de participação social, legislação e reformas educacionais, foram algumas políticas públicas recorrentes. O reconhecimento de diferenças culturais e as relações entre culturas distintas, de grupos e classes sociais aos idiomas e religiões, fomentam diversas iniciativas interculturais. O desafios e o convite aos diálogos interculturais perambulam em todas as cidades, brasileiras ou estrangeiras. Trata-se de uma diversidade historicamente relegada, entregue à própria sorte, fora do alcance de políticas sociais. A diversidade cultural permanece submetida a ideais homogeneizadores do estado-nação, do sistema escolar, do mercado consumidor, da religião e de políticas culturais. Em conjunto estes ideais têm reiterado práticas de absorção, assimilação e coexistência passiva das diferenças culturais, inibindo-as, individual e coletivamente.

Page 109: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

108

A redefinição do papel ativo e inovador dos museus na sociedade pede compartilhamento de ideias, experiências e informações sobre e a partir de diferentes expressões culturais. Há uma demanda crescente por diálogos interculturais. Os museus são espaços públicos de grande potencial para a cooperação e a mediação de diálogos interculturais, pontos de encontro de pessoas, lugares, objetos e representações de diferentes culturas. A ampla e acelerada circulação de indivíduos, saberes, bens culturais e de mercadorias, distintivas da sociedade globalizada do século XXI, faz da mobilidade um fenômeno cotidiano, visível em migrações, na transmissão de dados e imagens, no comércio, ou exposições. A exposição “Guerreiros de Xi’an”, em 2003, superou 800 mil visitantes, em São Paulo, aproximando-nos da alteridade e das diferenças culturais da China, por exemplo.

O contraste cultural desperta atenção, dinamiza a busca e a difusão de conhecimentos, abrindo perspectivas na compreensão das distintas formas de vida social e humana. Ao preservarem e promoverem as suas coleções, os museus estimulam formas de solidariedade, parcerias e cooperação interinstitucionais na busca de encontros e intercâmbios culturais. Abrem-se aos técnicos, gestores, pesquisadores e visitantes de museus oportunidades na formação educacional, estética, profisisonal e política. A diversidade cultural torna-se alicerce para a compreensão da complexidade social e dos conhecimentos híbridos, na desobstrução de passagens e conexões de diálogos interculturais, tão necessários à cidadania e assentados em práticas da democracia.

Turismo e sustentabilidade.O protagonismo institucional, cultural e pedagógico dos

museus encontra no turismo outra dinâmica frente de atuação, além de desafiadoras situações técnicas e profissionais. Museus dão acesso à cultura local e regional, estimulam a aprendizagem no sistema educativo e fora dele, oferecem espaços e atividades de lazer, promovem a qualificação profissional, demandam a manutenção e

Page 110: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

109

o aprimoramento contínuo de infraestrutura operacional, de bens e serviços.

A presença de museus no incentivo às atividades turísticas resulta em cooperação e diálogo profissional entre estes dois setores estratégicos na vida social e econômica, a cultura e o turismo. A expansão do turismo associado à cultura, em geral, e aos museus, em particular, contribui direta e indiretamente para a implantação e a eficácia de políticas públicas. A redução da pobreza e da violência, a perseverança de tradições comunitárias, a valorização do patrimônio local e regional, o fortalecimento das identidades coletivas, a promoção da diversidade biológica e cultural, entre outras dimensões, são efeitos que proporcionam a afirmação sustentável de diferentes territórios, de relações sociais e culturais, em áreas urbanas e rurais, em comunidades tradicionais, pequenas e médias cidades e nas regiões metropolitanas.

No Brasil, uma importante referência jurídico-política para esta articulação encontra-se no Estatuto de Museus, de janeiro de 2009. O Estatuto de Museus aponta o potencial transformador que educação, lazer e turismo podem adquirir em ações multisetoriais e coordenadas. Não há turismo sem cultura. A maior aproximação dos museus com o público residente no município, em distritos e comunidades locais, e com o público não-residente, seja do turismo receptivo, organizado e espontâneo, seja de trabalhadores e moradores temporários, como estudantes, vendedores, técnicos especializados, visitantes externos e ocasionais, torna-se o ponto central deste encontro e dos diálogos que são estabelecidos a partir dele.

Em 2014, O Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) disponibilizou para acesso público e gratuito o manual Museus e Turismo, contendo orientações e atividades para o que denominou “estratégias de cooperação” entre os dois segmentos. Ao promover o ecoturismo, o turismo cultural e o turismo pedagógico, do público escolar e universitário, o IBRAM buscava expandir o direito à cultura, assegurado a todo cidadão brasileiro pela Constituição federal de 1988. O documento dava realce também ao impacto econômico do turismo. As atividades turísticas geram inúmeras e diversificadas demandas no consumo de bens e serviços, tanto os de luxo quanto

Page 111: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

110

os de massa. Segundo os dados disponíveis, naquele momento, pelo Ministério da Cultura, os museus empregavam diretamente mais de 20 mil pessoas. Os números traziam também desafios, como o aproveitamento do potencial de ampliação em ambos setores, de um lado, e de outro, o desenvolvimento do turismo no Brasil em perspectiva responsável e sustentável.

A proposta do IBRAM fez eco ao sentimento disseminado com a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), ocorrida em julho de 2012, no Rio de Janeiro. A primeira década do século XXI assistiu ao nascimento de várias iniciativas de alcance internacional dedicadas à proteção e promoção do patrimônio cultural e natural. Elas visaram a assegurar os direitos culturais, a inclusão social, o desenvolvimento sustentável, a ética cidadã e os direitos humanos, além de incentivar a cooperação entre os países na consecução destes objetivos.

O IBRAM esteve alerta tanto aos rumos da economia globalizada quanto às perspectivas que se abriam para as atividades culturais associadas às atividades turísticas. Os dados então disponíveis pelo Instituto indicavam que 41% dos museus brasileiros eram municipais. Os museus municipais no interior do país, em geral, costumam receber poucos visitantes, residentes ou não residentes. Na grande maioria as exposições são o único meio de comunicação e de diálogo entre os museus e o público. A exposição única e duradoura, intocada, pode resultar na perda de atrativos e de estímulos à visitação. A persistência e elevação dos custos de manutenção predial e financeira, a redução e o afastamento sistemático do público unem-se contra essas instituições. Elas perdem interesse e deixam de ser apreciadas pela população, prefeitos e secretários, equipes técnicas e, sobretudo, os turistas.

As propostas do IBRAM para ampliar a participação dos museus na difusão do turismo no Brasil estão voltadas para projetos e ações que busquem a valorização da experiência dos visitantes. Esta diretriz torna o visitante dos museus peça chave no conjunto de ações museológicas e complementar nas atividades turísticas. É recomendada a programação de ações que sejam realizadas fora dos edifícios

Page 112: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

111

institucionais e a identificação de “pontos de memória” local e regional, promovendo a difusão e a preservação dos territórios de identidades históricas, étnicas, religiosas e tradicionais, o patrimônio ambiental urbano e natural, as paisagens culturais e a memória social. A elaboração de roteiros culturais foi indicada como estratégia para operar uma transição do roteiro turístico convencional para a experiência turística com acervos, ambientes e instituições, colocando em evidência anseios, expectativas e curiosidade dos visitantes dos museus.

A renovação frequente das exposições, bem como o crescente atendimento especializado, a integração do museu na paisagem urbana e social das cidades, elevam o prestígio e a difusão dos museus municipais. Trata-se de envolver a população local, turistas, visitantes, escolas e poderes públicos, promovendo parcerias e ações que resultam no atendimento do interesse coletivo. A definição de políticas de museus é o maior e mais eficiente investimento para o aproveitamento do potencial turístico existente nos acervos e nas instituições museológicas. Muitas parcerias podem acontecer para torná-las polos de atração de público variado. No mundo globalizado em que as facilidades nas comunicações, a preocupação com o bem-estar social e o consumo de massa promovem o ecoturismo, os roteiros culturais e históricos, a maior inserção social dos museus nas cidades brasileiras, a adoção de boas práticas na gestão dos patrimônios dos museus e na formação de seus profissionais são incontornáveis.

Vivemos um momento favorável para aproveitar os impactos positivos dos museus em termos econômicos e sociais. O turismo nos museus está em ascensão. No caso brasileiro, está diminuindo o monopólio do turismo de sol e da praia. Um país megadiverso em população, cultura, biomas e ecossistemas reúne também outros atrativos turísticos. Este potencial pode ser valorizado com o aumento da visitação pelas distintas faixas etárias e variação no perfil de público, turistas, terceira idade, crianças, escolas, múltiplos segmentos sociais. Uma perene e dinâmica programação educacional, propaganda e divulgação na mídia, o estabelecimento de roteiros museológicos locais e regionais, de circuitos culturais, são também

Page 113: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

112

alavancas promocionais para a maior integração entre museus e turismo. O apoio técnico e a formação de profissionais podem derivar de parcerias e da cooperação com as universidades, o IBRAM, o Conselho Internacional de Museus (ICOM), o Ministério da Cultura, as secretarias estaduais e municipais de cultura, além de organizações não-governamentais, de pesquisadores e especialistas.

É preciso e desejável, pelas possibilidades que se abrem ao bem-estar social, ligar os museus ao turismo e, logo, ao desenvolvimento econômico e humano. Desta associação poderá resultar a criação de novos empregos, a melhoria da qualidade de vida, o fortalecimento da cidadania, o aprimoramento da educação e do ensino escolar, a consciência e a preservação ambiental e cultural, e maior integração social pelas práticas da tolerância, do respeito mútuo, do conhecimento, da cooperação e da solidariedade. A disseminação da cultura artística, científica e humanística, da apreciação e do lazer sem a degradação das paisagens e das áreas urbanas e rurais, são integradas aos potenciais de desenvolvimento regional sustentável.

ConclusãoA promoção de diferentes estratégias de comunicação e de

diálogos constitui um caminho fecundo para a preservação, a difusão, a valorizações de acervos e da diversidade cultural em museus. Ações educativas, exposições, contatos interculturais e atividades turísticas são algumas dimensões de atuação institucional dos museus em perspectiva ampla e de caráter multidisciplinar.

Os processos educativos e o exercício da cidadania combinam-se no trabalho interpretativo da visitação, colocando em destaque a memória, a identidade e a construção social do conhecimento. A historicidade do tempo e da vida coletiva é compreendida em ações práticas e simbólicas, uma mediação constante que transita entre experiência, memória, sensações, curiosidade, interesse lúdico e intelectual pelo passado. A interação com o patrimônio é algo vivo e não o congelamento do tempo, é

Page 114: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

113

precisamente a busca de inserção no tempo histórico da existência social e cultural de indivíduos, de comunidades, de classes e de sociedades distintas. As ações educativas nas esferas patrimonial, estética e ambiental, por exemplo, proporcionam aos visitantes de exposições e de museus o trabalho prévio de interpretação histórica, de memórias identitárias e de divulgação científica.

Os diálogos abertos em museus também poder constituir oportunidades de participação comunitária no planejamento territorial, rural e urbano, e no desenvolvimento local e regional. A inclusão e a promoção social na preservação do patrimônio cultural, em geral, e museológico, em particular, dão maior consistência às práticas de conservação, de conhecimento e de qualificação profissional em instituições culturais, nas políticas públicas e de desenvolvimento local e regional. A proximidade e a participação comunitária, como moradores de bairros, distritos e cidades, escolas, movimentos sociais sustentam atrativos e estruturas para a recepção de visitantes de museus.

O turismo pode dar impulso para a conservação e a promoção do patrimônio. Cidades, monumentos, espaços, roteiros, bens e serviços culturais são também produtos de consumo de massa, indutores do mercado de trabalho e da qualidade de vida. O historiador José Newton Coelho Meneses observa que os atrativos históricos e artísticos, cultural e natural, ainda são “substrato essencial do setor turístico”.

As universidades públicas podem desempenhar papel ativo na realização de diálogos em museus. Há uma dimensão permanente de ensino, de pesquisa e de reflexão sobre tantas e múltiplas experiências. O potencial de parcerias institucionais na cooperação técnica, pedagógica e científica, do patrimônio museológico como fonte e documentação histórico-sociológica e do estudo de perfil do público oferece inúmeras possibilidades de pesquisa básica e aplicada voltadas para a educação, a cidadania e o desenvolvimento humano.

Page 115: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

114

Referência Bibliográfica:INSTITUTO Brasileiro de Museus: Museus e turismo: estratégias de cooperação. Brasília: IBRAM, 2014.

LEGISLAÇÃO sobre museus. 2º edição. Brasília: Câmara dos Deputados/Edições Câmara, 2013.

BAKHATIN, Mikhail & DUVAKIN, Viktor. Mikhail Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Trad. D. M. Mondardo. São Carlos: João & Pedro, 2008.

BORGES, Jorge Luís. Borges em diálogo. Trad. E. Zagury. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

CHAGAS, Mário. A imaginação museal. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/IBRAM 2009.

COELHO, Teixeira.  O que é indústria cultural. 13º edição. São Paulo: Brasiliense, 1989.

LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”, IN IDEM. História e Memória. Trad. B. Leitão. Campinas: Unicamp, 1990, p. .

MELO Neto, João Cabral de. Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

MENESES, José Newton Coelho. História e turismo cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

REIS, Ana Carla Fonseca. Economia da cultura e desenvolvimento sustentável. Barueri/SP: Manole, 2007.

SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do patrimônio cultural em cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

VASCONCELOS, Camilo de Mello. Turismo e museus. São Paulo: Aleph, 2006.

Page 116: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

115

O ensino de história, entre o local e o global: relato de experiência docente e esboço de uma

metodologia para sala de aulaJiani Fernando Langaro1

Introdução O presente trabalho problematiza algumas experiências

docentes, obtidas no trabalho cotidiano de sala de aula e de orientação, na área de história regional e local, no curso de História da Universidade Federal de Uberlândia, Campus do Pontal (localizado em Ituiutaba-MG)2, entre os anos de 2010 e 2013. O foco da discussão reside no ensino de história regional e local, um dos tópicos das disciplinas ministradas, para o qual, inicialmente, tivemos dificuldade em encontrar bibliografia, não por sua escassez, mas em virtude da maior parte dela se ater à análise de legislação ou de material didático, sendo as propostas didáticas muito teóricas e vagas. Uma das questões centrais com que nos deparamos foi com o fato dos temas concernentes à área serem secundários no ensino fundamental e médio; na maioria dos estados apenas são ensinados nos anos iniciais, momento em que a prioridade é a alfabetização. Os profissionais que ministram essas aulas não costumam possuir graduação em história e, frequentemente, se queixam da necessidade de uma melhor formação.

1 Bacharel e licenciado em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU e doutor nesta mesma área pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Professor adjunto dos cursos de licenciatura e de bacharelado em História e do Programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de História – FH, da Universidade Federal de Goiás – UFG. Contato: [email protected].

2 Ituiutaba é um município mineiro que conta com aproximadamente cem mil habitantes, localizado na divisa com o estado de Goiás. Sua economia é basicamente agropecuária e agroindustrial e ainda sofre para recuperar-se da crise da década de 1980. É pólo microrregional, sendo considerada a principal cidade do “Pontal do Triângulo Mineiro”, e sedia diversas instituições públicas, entre elas, uma universidade federal e outra estadual. A esse respeito, ver: BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ituiutaba. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ituiutaba/panorama>. Acesso em: 10 de agosto de 2018a.

Page 117: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

116

A partir das questões com que nos confrontamos, procuramos, junto com os discentes das disciplinas ministradas, esboçar uma proposta de ensino que permitisse prepará-los, minimamente, para trabalharem história regional e local na educação básica. O elemento central dessa proposta é orientar os profissionais de história a construir um espaço para o ensino de história local e regional nos níveis em que atuam, articulando essas dimensões com o global.3 Simultaneamente, acolhemos a orientação de um trabalho de conclusão de curso, para dar conta das questões envolventes ao ensino de história regional e local nos anos iniciais do ensino fundamental. A ideia não era desautorizar o importante trabalho realizado pelos professores formados em Pedagogia ou no antigo curso de Magistério, mas oferecer subsídios para o aprimoramento de suas atividades.

Optamos por sistematizar, neste texto, os principais pontos para o ensino de história local e regional nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio, esboçados a partir das oficinas realizadas com os discentes da graduação em história, sem nos eximir de discutir as questões pertinentes a esse ensino nos anos iniciais do nível fundamental, motivo pelo qual abordaremos também a experiência de orientação. Antes disso, porém, explicitaremos as premissas teórico-metodológicas que orientaram todo o trabalho realizado.

Um trabalho ancorado em concepções específicas de história e de ensino.

O trabalho em sala de aula e nas orientações sempre se ancorou em concepções bastante específicas sobre história, cidade, região e ensino, as quais serviram de orientação, ao longo de todas as atividades. Ao trabalhar com história regional e local, tínhamos em mente a proposta de fazer uma história do Brasil que rompesse com a hegemonia dos grandes centros urbanos, tomados, muitas vezes, como polos quase exclusivos de decisão política e econômica, definidores

3 Utilizamos o termo global para denominar as escalas espaciais maiores que a local e a regional, podendo significar o espaço nacional ou mesmo mundial, portanto, o sentido aqui empregado é de macro espacialidade.

Page 118: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

117

dos rumos da história do Brasil, enquanto para o restante do país se reserva o papel de reverberar o que ocorre nas grandes urbes, quando não a pecha de “grotões”.

Reflexão nesse rumo é feita por Janaína Amado, para quem a história do Brasil pode emergir do estudo de suas mais diferentes regiões.4 Ela também nos alerta para os riscos dos historiadores do regional caírem nos clichês, tratando a região estudada como exótica ou torna-la refém da refutação de estereótipos, esvaindo-se, com isso, a vivacidade de sua dinâmica própria e complexa de existência, em articulação com espacialidades mais amplas, evidentemente. Nesse sentido, não caberia ao historiador perder-se em discussões que envolvam modernidade e arcaísmo, dentre outras já padronizadas na área.

Contribuição seminal para a formação de nossas concepções de história local e regional, provém dos trabalhos de Déa Ribeiro Fenelon, para quem a cidade emerge na história por meio da cultura urbana, terreno de conflitos sociais e de diversidade:

partindo de várias dessas reflexões, buscamos propor investigações sobre as questões da cidade e da cultura urbana. Se compreendemos a cidade como o lugar onde as transformações instituem-se ao longo do tempo histórico com características marcantes, queremos lidar com estas problemáticas como a história de constantes diálogos entre os vários segmentos sociais, para fazer surgir das múltiplas contradições estabelecidas no urbano, tanto o cotidiano, a experiência social, como uma luta cultural para configurar valores, hábitos, atitudes, comportamentos e crenças. Com isto, reafirmamos a ideia de que a cidade nunca deve surgir apenas como um conceito urbanístico ou político, mas sempre encarada como o lugar da pluralidade e da diferença, e por isto representa e constitui muito mais que o simples espaço da manipulação e do poder.5

O elemento central da concepção de cidade da autora é a

4 Cf. AMADO, Janaina. O Grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, São Paulo, n. 14, p. 125-136, 1995.

5 FENELON, Dea Ribeiro. Apresentação. In.: BOSI, Antônio de Pádua. Os “sem gabarito”: experiência de luta e de organização popular de trabalhadores em Monte Carmelo/MGB nas décadas de 1970/1980. Cascavel: Edunioeste, 2000, p. 7.

Page 119: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

118

ação humana e, enquanto tal, todas as vidas humanas se encontram em um mesmo patamar de importância, não existindo razões para hierarquias entre as diferentes urbes, pois as culturas urbanas são diversas entre si, e não divididas entre algumas de maior importância e outras de menor. Essa perspectiva aparece claramente na apresentação feita pela autora ao livro de Antônio de Pádua Bosi:

registrar, portanto, as experiências de luta de trabalhadores rurais e de lavadeiras na região de Monte Carmelo, no Triângulo Mineiro, fez valer a importância de se identificar, para além dos grandes centros urbanos ou pólos considerados vanguarda da classe trabalhadora e daí merecedores de destaque exclusivo na construção das tipologias de lutas do período [décadas de 1970 e 1980], alguns indícios importantes, para descobrir em lugares tão distantes e tão diversos, reflexões sobre momentos, lutas e ações tão significativas quanto aquelas, onde o movimento social foi demarcado e esquadrinhado em vários estudos, livros e teses. Realizar e concretizar propostas de história local ou micro história não significa perder-se nas dimensões absolutas da parte, mas valorizá-la como elemento esclarecedor do todo, do geral e do conjunto das proposituras do movimento social.6

Tal concepção vai ao encontro da discussão sobre história local promovida por Raphael Samuel, em texto clássico sobre a temática, para quem a historiografia que trata do local costuma atrair a atenção de um público considerável, por tratar de temas mais próximos da realidade vivida pelos pesquisadores e pelos leitores, entretanto, muitas vezes, esse potencial acaba sendo desperdiçado pelo historiador, que opta pelo mimetismo, ao repetir os temas-clichês de trabalhos que lhe antecederam ou pela tipologia documental em voga, em detrimento de construir um trabalho original.7

Na visão de Samuel a chave para se construir uma história local de qualidade, vívida e aprazível à leitura, seria o trabalho com fontes que permitissem o estudo da ação humana na história. Isso se

6 FENELON, Dea Ribeiro. Apresentação... Op. cit., p. 11.7 SAMUEL, Raphael. História local e história oral. Revista Brasileira de

História, São Paulo, v. 9, n. 19, p. 219-243, 1990.

Page 120: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

119

traduziria em considerar a cultura como categoria central, entendida no sentido antropológico, como maneiras de viver, que não se constituem de forma pacífica, mas em meio a conflitos. É assim que o autor refuta a concepção de comunidade, muito presente em estudos que tomam o local como recorte:

especificamente, a noção de ‘comunidade’, apesar de usada livremente, é, ou deveria ser, problemática. Na história urbana, é pouco mais do que uma ficção conveniente, que só pode ser preservada ao concentrar-se nos eventos cívicos e municipais. Na zona rural, ela frequentemente leva uma suposição não justificada de equilíbrio que talvez o historiador deva questionar, ao invés de afirmar: é possível morar no mesmo lugar enquanto se habita mundos diferentes, seja como marido e mulher, pai e filho, empresário e empregado. [...] Ao invés de pressupor a existência do equilíbrio, seria melhor se os historiadores explorassem alguns de seus determinantes e distinguissem interesses que eram conflitantes daqueles que, de alguma forma, foram compartilhados.8

O autor chama a atenção para as diferenças existentes no interior de uma localidade e nos permite confrontar pré-conceitos, como aquele que concebe a dimensão local como dotada de sociedades homogêneas. Além disso, Samuel também nos alerta para que pensemos a esfera local como “uma janela para mundo”,9 a fim de não isolar os lugares, tratando-os como se não tivessem relações com outras dimensões mais amplas da realidade social.

Foram essas concepções que nos orientaram no trabalho com os discentes e na elaboração da nossa proposta de ensino em história local e regional. Para concretizá-la, não nos olvidamos de sistematizar parâmetros conceituais para a educação e o ensino de história, uma vez que toda metodologia pressupõe uma visão sobre ambas.

Para esse trabalho, Educação e experiência de E. P. Thompson,10 foi nosso grande ponto de partida, ao lembrar-nos que

8 SAMUEL, Raphael. História local e história oral... Op. cit., p. 228.9 Ibidem, p. 229.10 THOMPSON, Edward P. Educação e Experiência. In.: THOMPSON, Edward

Page 121: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

120

todos os agentes envolvidos na educação são dotados de experiência social – conceito que também influenciou Fenelon e Samuel – e que, portanto, suas vidas não começaram no momento que adetraram à sala de aula. Conforme destaca, ignorando essa premissa, por muito tempo, o trabalho educativo restringiu-se ao disciplinamento e à inculcação de valores dominantes sobre os grupos populares, ao invés de professores e alunos fazerem convergir suas experiências em sala de aula.

Outro conceito-chave para compreendermos a dinâmica educativa foi cultura escolar, cunhado por Dominique Julia, que, por meio daquela noção, compreende o conjunto práticas, normas e valores que regem o espaço escolar.11 Isso significa que a escola não é lugar de simplificação ou de vulgarização de conteúdos científicos, mas um ambiente dotado de dinâmica própria e de grande complexidade. Isso, no entanto, não significa a imposição unidirecional de formas de controle:

contrariamente às idéias recebidas, o estudo histórico das disciplinas escolares mostra que, diante das disposições gerais atribuídas pela sociedade à escola, os professores dispõem de uma ampla liberdade de manobra: a escola não é o lugar da rotina e da coação e o professor não é o agente de uma didática que lhe seria imposta de fora.12

O autor entende que os educadores desempenham um papel criativo no ambiente escolar, tendo alguma margem para reelaborar os elementos pré-determinados, tanto no tocante às práticas ali adotadas quanto aos conteúdos. Nas palavras do autor: “o manual escolar não é nada sem o uso que dele for realmente feito, tanto pelo aluno como pelo professor”,13 portanto, a cultura escolar não é algo imposto externamente aos agentes históricos, mas construída por eles, de maneira viva e dinâmica.

Apesar de seguirem linhas diferentes, ambos autores têm em comum chamar a atenção para a importância em reconhecer

P. Os românticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 13-47.11 JULIA, Dominique. A Cultura escolar como objeto histórico. Revista

Brasileira de História da Educação, Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-43, 2001.12 Ibidem, p. 33.13 Ibidem, p. 32, grifos do autor.

Page 122: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

121

o espaço escolar como prenhe de vivências e de conhecimentos, construídos e reconstruídos nas práticas cotidianas. Entendemos que a escola, portanto, é terreno de cultura e de experiência social, vivida, construída e transformada nas relações nela estabelecidas.

As discussões sobre ensino de história, por seu turno, enveredaram por diferentes caminhos. No Brasil, apesar da diversidade de proposições, parece ser consensual entre os mais diferentes pesquisadores da área que o ensino história não pode mais se basear no simples repasse de conteúdos obtidos em livros didáticos e apostilas.14 Desde a década de 1980, pelo menos, têm sido gestadas alternativas a esse tipo de didática, como já propunha a obra de Cabrini [et. al.], que apresenta uma proposta de história temática, cujos conteúdos deveriam ser levantados junto aos alunos, a partir de suas trajetórias de vida.15 Em lugar de adotar livros didáticos ou apostilas, os professores construiriam seus materiais didáticos, fazendo largo emprego de fontes primárias e da escrita de textos, visando despertar nos educandos a reflexão crítica da realidade que os cerca.

Mais recentemente, Claudia Sapag Ricci propôs a “pesquisa como ensino” de história, metodologia que desloca o foco dos conteúdos prontos para a iniciação aos métodos de investigação histórica, aumentando a qualidade da pesquisa no ambiente escolar, frequentemente limitada à transcrição de informações.16 Dentro dessa proposta, o trabalho com fontes primárias ganha um espaço primordial e rompe-se com a dicotomia existente entre o ensino e a pesquisa, reafirmando a sala de aula como local de produção de conhecimento, e não apenas de transmissão.

Circe Bittencourt é outra expoente da proposta de uso de

14 No interior dessa extensa bibliografia, destacamos: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004; RICCI, Claudia Sapag. Pesquisa como ensino: Textos de apoio. Propostas de trabalho. Belo Horizonte: Autêntica, 2007; FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. São Paulo: Papirus, 2003.

15 Cf. CABRINI, Conceição; CIAMPI, Helenice; VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; BORGES, Vavy Pacheco. Ensino de História: revisão urgente. São Paulo, Educ, 2005.

16 Cf. RICCI, Claudia Sapag. Pesquisa como ensino... Op. cit.

Page 123: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

122

diferentes linguagens no ensino de história, sem, no entanto, defender a abolição dos livros didáticos ou mesmo a estrutura clássica dos conteúdos históricos.17 Trabalhando com a concepção de cultura escolar, a autora defende um equilíbrio entre as formas de trabalho docente já cristalizadas e as propostas inovadoras, como a variação de recursos em sala de aula. Outra categoria central, para a autora, é representação, através dela, compreende que todo aluno chega à escola dotado de um repertório de representações do passado, cabe ao professor não ignorá-lo, mas iniciar seu trabalho com o levamento dessas representações. Após essa etapa, deve-se pensar em estratégias didáticas que visem colocar os discentes em contato com representações diferentes das suas, não no sentido de desautorizar seus conhecimentos prévios, mas para acrescentar-lhe algo novo.

A autora exemplifica sua concepção de trabalho docente, ao relatar a experiência de estagiários supervisionados por ela, que, seguindo essa metodologia, trabalharam no ensino fundamental com o tema escravidão. Primeiramente, através de desenhos, levantaram as representações que os discentes possuíam sobre os escravos, o resultado foi um conjunto de imagens em que os escravos apareciam como vítimas da violência escravocrata. Após essa etapa, os estagiários apresentaram aos discentes outras imagens, de pinturas feitas por viajantes, tais como Jean-Baptiste Debret, também retratando a violência sofrida pelos escravos e cenas cotidianas em que a subalternidade dos cativos ficava evidente. Com essas imagens, discutiram o lugar social e o contexto em que foram produzidas, chamaram a atenção para seu caráter de olhar externo ao grupo. Por fim, propuseram aos discentes o contato com outras representações, elaboradas pelos próprios escravos, músicas que foram gravadas no começo do século XX, com idosos libertos. As canções traziam diferentes elementos dos viveres dos escravos, além da melancolia e da violência, também apresentavam a resistência, a fuga para o quilombo e outras dimensões da vida que revelam os escravos como agentes da história e não como meras vítimas passivas e inertes do sistema escravista.

O relato de experiência trazido por Bittencourt foi

17 Cf. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit.

Page 124: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

123

extremamente importante para a atividade desenvolvida. Embora não tratasse diretamente do ensino de história regional e local, apresentava uma metodologia para o trabalho com fontes de pesquisa em sala de aula que muito poderia ajudar em nossa tarefa.

Mais próxima de nossos intentos, foi a experiência de Marlene Rosa Cainelli.18 A autora relata as atividades desenvolvidas em projeto realizado na rede de educação básica municipal de Londrina-PR, em que alunos da graduação em história puderam ministrar aulas nos anos iniciais do ensino fundamental. Amparada nas concepções teóricas da didática da história,19 a autora pretendia fazer uma intervenção educacional nessa importante fase da vida das crianças, quando elas formulam noções de tempo histórico e aprendem a produzir narrativas. O principal intento era romper com as concepções de história que costumam ver o passado como um retrato imperfeito do presente, dentro de uma concepção evolutiva-linear de melhoria contínua da realidade social.

Dessa maneira, a atividade se iniciou com uma aula sobre a fundação da cidade de Londrina, ocorrida na primeira metade do século XX, e a presença indígena anterior à colonização do local, processo contextualizado dentro da dinâmica da história do Brasil, iniciada ainda no período colonial, de conflitos entre europeus e indígenas. Após a discussão do conteúdo em sala de aula, os alunos fizeram uma visita ao centro de documentação da Universidade Estadual de Londrina, para discutir a temática da colonização da região. Conforme relata Cainelli,20 inicialmente foi apresentado o acervo de

18 CAINELLI, Marlene Rosa. A construção do pensamento histórico em aulas de história no ensino fundamental. Tempos históricos, Cascavel, v. 12, p. 97-109, 2008.

19 Sobre os temas didática da história e consciência histórica, uma pequena amostra de trabalhos pode ser encontrada em: CERRI, Luis Fernando. Os conceitos de consciência histórica e os desafios da didática da história. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 93-112, 2001; RÜSEN, Jörn. Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 1, n. 2, p. 7-16, 2006; SCHMIDT, Maria Auxiliadora; GARCIA, Tânia Maria Braga. Pesquisas em educação histórica: algumas experiências. Educar em Revsita, Curitiba, v.22, n. especial, p. 11-31, 2006.

20 CAINELLI, Marlene Rosa. A construção do pensamento histórico em aulas de história no ensino fundamental... Op. cit.

Page 125: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

124

jornais da entidade, cuja tecnologia de produção levou os alunos a compararem as técnicas do passado com as atuais, principalmente os computadores, dentro de uma compreensão evolutiva e linear do tempo. Na sequencia, foram apresentadas aos discentes fotografias de Londrina em décadas anteriores, que as interpretavam como uma cidade pequena, tranquila e pacífica, dentro dos clichês projetados sobre os pequenos núcleos urbanos. Na sequencia, mostrou-se a eles os processos-crime da época, demonstrativos da violência existente em décadas como a de 1930, causando espanto nas crianças, algo que os incentivou a rever seus próprios conceitos e a construção linear do tempo a que estavam acostumados.

Nesse caso, pudemos constatar como a autora não levou para sala de aula narrativas prontas, fechadas sobre si mesmas, ao invés disso, realizou uma série de atividades que incentivavam a turma a rever seus próprios conceitos, ou seja, à reflexão crítica e produção de novos conhecimentos. Ao mesmo tempo, a articulação entre os temas nacionais com os locais, com todos os riscos que esses paralelos implicam, facilitou a compreensão dos conteúdos estudados em história.

Todos esses elementos, apesar da diversidade de perspectivas existentes entre os autores, nos auxiliaram a pensar em caminhos para o ensino de história local e regional. Assim, se por um lado sentíamos a falta de metodologias claras e de relatos de experiência que servissem de exemplo de trabalhos já feitos na área, por outro notávamos que havia uma farta bibliografia oferecendo instrumental para a construção de alguma proposta.

Sobre o ensino de história local: uma experiência de orientação.

A orientação de um trabalho de pesquisa é uma experiência profissional e humana ímpar, uma oportunidade de dialogar com outros pesquisadores e de descobrir coisas novas junto com os orientandos. De acordo com Khoury, Peixoto e Vieira a orientação de uma pesquisa é o momento em que duas experiências diferentes

Page 126: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

125

– a do orientando e a do orientador – passam a caminhar juntas.21 Nesse aspecto, a orientação não é uma relação em que um professor especialista – conhecedor profundo do tema pesquisado – submete seu orientando, transformado em mero aprendiz, mas uma relação de trocas, em que ambos aprendem e geram conhecimentos novos. Assim, o orientador é um interlocutor privilegiado da pesquisa e não alguém que sabe previamente os resultados que serão alcançados por meio do trabalho de investigação.

Foi nesse espírito que acolhi a orientação de Tatiane Helena da Costa, cujo trabalho de conclusão de curso em História se intitulou: Como um conto de fadas? Reflexões sobre o ensino de história local nos anos iniciais da educação fundamental (Ituiutaba-MG/1980-2006).22 O objetivo da pesquisa era construir um trabalho sobre ensino de história local – sem entrar no mérito regional – a partir dos referenciais e métodos da pesquisa histórica, realizando, no entanto, um diálogo interdisciplinar com a Educação. O escopo do trabalho foi sondar possibilidades sobre como era ministrado o ensino de história local nos anos iniciais do nível fundamental, na cidade de Ituiutaba, para, posteriormente, esboçar uma proposta de intervenção didática.

Para atingir tal meta, as fontes orais foram de vital importância, por permitirem o diálogo com os professores. Ao longo do ano de 2011, Costa entrevistou cinco professoras, algumas na ativa, outras já aposentadas, com idades entre 44 e 64 anos de idade, atuantes na cidade entre as décadas de 1980 e 2000. Optou, portanto, por um trabalho qualitativo e não por pesquisa quantitativa e, com esse pequeno grupo, procurou aprofundar a investigação sobre a temática em tela, construindo uma relação de confiança com as narradoras. Esse contato foi extremamente fértil, além das entrevistas, a autora conseguiu levantar cadernos de planejamento e até mesmo participar como monitora de atividade prática com os alunos. Os cadernos,

21 Cf. KHOURY, Yara Aun; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo. A pesquisa em história. São Paulo: Ática, 2007.

22 COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas? Reflexões sobre o ensino de história local nos anos iniciais da educação fundamental (Ituiutaba-MG/1980-2006). Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba-MG, 2013.

Page 127: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

126

por sua vez, eram ricamente acompanhados de materiais obtidos em cursos de formação e outros que serviam como recurso didático para o trabalho em sala de aula.

Tomando como princípio que a escola é lugar de interação entre seres humanos, dotados de uma experiência social e de vida prévia, o primeiro passo da pesquisa foi conhecer melhor as professoras, suas trajetórias profissionais e de vida, além de sua formação. Do contrário, elas seriam tratadas não como trabalhadoras, mas como autômatos, tendo suas vidas reduzidas ao que acontece no interior do espaço escolar. Essa foi a parte mais sensível do trabalho, quando ganharam destaque mulheres que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, conseguiram estudar e construir suas carreiras docentes a duras penas, vencendo dificuldades enormes, como a pobreza, o ingresso precoce no mercado de trabalho e os preconceitos de uma sociedade brasileira machista, que preconizava o lar como espaço ideal para as mulheres. Entrementes, essas docentes se desdobraram em múltiplas jornadas de trabalho, como mães, donas de casa e como professoras (e antes de serem professoras, como empregadas domésticas e/ou do comércio).

Sobre as práticas pedagócias delas, as narrativas frisam muito o uso de diferentes linguagens e trabalhos de campo, como parte dos recursos pedagógicos. De acordo com a autora:

também pudemos constatar, sobre a vida das professoras dentro do ambiente escolar, como seu ofício é permeado por uma cultura própria, repleta de valores, normas e códigos. Uma questão que nos chamou a atenção, foi o esforço das docentes em construir uma imagem positiva de si, em suas narrativas orais, apresentando-se como profissionais dinâmicas e inovadoras. Assim, elas enfatizavam as atividades realizadas fora de sala de aula ou que requeressem alguma metodologia que fugisse do uso exclusivo da “lousa e do giz”. Percebemos, no entanto, que nem todas as atividades apresentadas se referiam especificamente ao ensino de história local, o que nos leva a questionar do porque dessas professoras terem essa necessidade de se afirmarem.

Existem muitos fatores envolvidos nesse processo, como a necessidade de responder às constantes críticas que o

Page 128: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

127

trabalho docente recebe, inclusive da universidade, fator que certamente contribuiu para a maneira como elas constituem suas falas. Porém, existem outros elementos importantes, constituintes de suas narrativas, que têm como base sua experiência social como docentes. É fato, que o grande foco dos anos iniciais do ensino fundamental é a alfabetização e o desenvolvimento do raciocínio lógico, o que faz com que a História seja algo secundário, nesse nível. Fica perceptível que as entrevistas se tornaram espaços de lutas dessas professoras, para validar o trabalho que realizam, defendendo aquilo que conseguem realizar – a alfabetização e o desenvolvimento do raciocínio lógico – dentro das condições de trabalho que possuem.23

Como destaca Portelli as narrativas orais apresentam “não tanto o que acontece materialmente com as pessoas, mas o que as pessoas sabem ou imaginam que possa suceder”,24 e, portanto, as falas das professoras devem ser lidas menos como retratos fiéis das aulas ministradas e mais como o tipo ideal de didática nutrida pelas docentes, elementos dos quais a autora era muito consciente e considerou na análise, não tomando as fontes orais como expressão de verdades factuais inquestionáveis, mas considerando-as em sua subjetividade.25

Tatiane Helena da Costa, por sua vez, constatou um grande apego aos métodos ativos e ao ensino baseado nos círculos concêntricos,26 pedagogia que, de acordo com Bittencourt pensa a educação fundamental de forma gradativa, partindo do eu, das dimensões espaciais mais imediatas (como a vizinhança, a cidade) para então chegar naquelas mais distantes, como o país e o mundo.27 Havia também, conforme Costa uma resistência a propostas de mudanças nessa forma de ensino, como aquela que sugeria o ensino de história do Brasil nos anos iniciais.28 Formações continuadas, que propunham

23 COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas?... Op. cit., p. 132.24 PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: narração, interpretação e significado

nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n. 2, p. 70, 1996, grifos do autor.25 Ibidem.26 Cf. COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas?... Op. cit.27 Cf. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit.28 Cf. COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas?... Op. cit.

Page 129: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

128

a adoção de outras pedagogias, como a “libertadora” inspirada em Paulo Freire, serviam como um verniz novo, ou subsumiam coadunadas aos círculos concêntricos, amplamente enraizados nas vivências profissionais das docentes.

Disso decorriam alguns problemas, constatados por Costa, como o fato do ensino de história local ser eclipsado pela preocupação com a geografia física. Além disso, quando ensinada, a finalidade era pragmática e oficiosa, envolvendo saberes muito elementares, como ensinar o aluno a se localizar nas ruas do bairro em que vive ou conhecer a lista de nomes de prefeitos da cidade.29

Diante desse diagnóstico, Costa esboçou uma proposta de ensino, e o ponto de partida foi reconhecer que o apego ao método de ensino baseado nos círculos concêntricos era parte da cultura escolar vivida pelos professores e da experiência social em que suas práticas profissionais se forjaram, pois, segundo afirma: “afinal de contas as docentes entrevistadas já possuem uma experiência, que não pode ser despojada, mas deve ser aprimorada”.30 Ignorar esse apego ou construir uma proposta que os atacasse frontalmente seria elaborar uma metodologia tomando como base elementos externos aos docentes, a qual seria potencialmente fadada ao fracasso.

Assim, Tatiane Helena da Costa propôs uma metodologia para a realidade de Ituiutaba-MG, que tivesse alguma identidade com a prática pedagógica dos professores, sem, no entanto, esquecer o necessário protagonismo dos discentes. O ponto de partida para a ação seria uma pesquisa, proposta aos alunos, acerca de suas trajetórias familiares, que permitiria o mapeamento dos diferentes grupos sociais presentes na sala de aula. Na sequencia, se trabalharia a história local tomando como base esses grupos, delineando suas trajetórias e histórias, na cidade, em articulação com a história do Brasil, tarefa para a qual a autora propõe o uso de fontes históricas na sala de aula.31

Para tornar a proposta mais concreta, Costa escolheu um

29 Cf. COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas?... Op. cit.30 Ibidem, p. 130, grifos da autora.31 Ibidem.

Page 130: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

129

grupo, os negros de Ituiutaba, para detalhar melhor os passos da ação didática. Ela possuía uma relação muito íntima com esse grupo social, do qual era integrante e detinha muito conhecimento, tendo a temática a atraído ao longo de toda a graduação. Disso resultou um conjunto de saberes que muito a auxiliaram não somente a dar conta do contexto a ser trabalhado, mas também a ter conhecimento de onde existiam fontes históricas, acessíveis e utilizáveis em sala de aula. A aula proposta pela autora trataria da origem da presença negra na cidade, o século XIX e a escravidão, muitas vezes negada na região ou tratada como mais branda, que aquela da região das minas. Em uma articulação com os temas envolventes ao Brasil colonial e imperial, se articularia o passado da cidade com processos históricos mais amplos, como a diáspora africana e a escravidão no Brasil, sem, no entanto, resumir a trajetória do grupo a esse contexto.32

As fontes seriam obtidas em materiais de fácil acesso, como livros de historiadores autodidatas, ricamente documentados com fontes primárias, presentes nos acervos das bibliotecas municipal e escolares. Para cada tipo de fonte, os professores aplicariam a metodologia adequada, realizando, ainda, uma leitura a contrapelo desses materiais,33 uma vez que os negros, enquanto grupo minoritário, muitas vezes têm suas presenças eclipsadas, sendo necessário um olhar investigativo para percebê-los. É o caso de fotografias ilustrativas às obras de história local, em muitas delas as pessoas negras aparecem, embora não sejam o foco principal, pois as imagens foram feitas com a intenção de registrar paisagens urbanas ou famílias integrantes dos grupos dominantes locais, todavia, permitem um trabalho de pesquisa, desde que devidamente orientado pelos professores.

A autora tomou o cuidado de incluir em sua proposta um momento para sistematização das atividades realizadas. Sensível à faixa etária dos alunos, propõe a elaboração de desenhos e, em seguida,

32 Cf. COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas?... Op. cit. Constatamos essa versão durante uma visita guiada ao museu antropológico local.

33 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In.: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-232.

Page 131: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

130

a escrita de um texto, como forma de exercitar diferentes formas de produzir, narrar e expressar conhecimento. De acordo com a autora:

mesmo detendo poucas fontes, torna-se possível questionar o passado da cidade e semear nos alunos um espírito investigador e crítico, o qual contribuirá para que, futuramente, com linguagem mais elaborada, eles possam ser capazes de construir, a partir da investigação e do uso de documentos históricos, um conhecimento com base em outras perspectivas não sendo apenas História oficial da cidade, sendo capazes de produzir narrativas históricas diferenciadas sobre a formação da cidade.34

O ponto central de toda a proposta é a substituição do foco nas espacialidades – um dos problemas decorrentes da adoção das metodologias de ensino baseadas nos círculos concêntricos – e colocar em primeiro plano os diferentes grupos sociais que vivem na cidade. Dessa forma, Costa atingiu algo que sempre consideramos importante, a construção de conhecimentos que não somente tratem da história do espaço onde se localiza a cidade, mas que coloque em primeiro plano as histórias das pessoas que vivem nela, em um país como o Brasil, marcado por intensos deslocamentos humanos, esse dado não é desprezível.35 É preciso, pois, colocar em conexão a história local e o ensino desta, com as trajetórias e identidades dos moradores de cada lugar, sob pena de se produzir e ensinar histórias que tratem da cidade, entretanto, de forma completamente deslocada da experiência de seus habitantes.

Em seu conjunto, o trabalho de Tatiane Helena da Costa oferece aos professores dos anos inciais do ensino fundamental uma interessante proposta para a sala de aula, que precisa ser colocada em prática, avaliada e aprimorada, evidentemente. Trata-se de um importante ponto de partida para a realização de um trabalho bastante conectado com os objetivos atualmente traçados para a educação básica, cujo ponto de chegada ainda está por construir, sendo a prática educativa o lugar para isso.36

34 COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas?... Op. cit., p. 129.35 Ibidem.36 Ibidem.

Page 132: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

131

Oficinas sobre ensino de história local para graduandos em história: outra experiência docente.

Após conhecermos o trabalho de Costa (2013), seu diagnóstico e proposta para os anos iniciais do ensino fundamental, uma questão permanece candente: como realizar o ensino de história local e regional nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio?37 O tema é bastante secundário em muitos currículos municipais e estaduais e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)38 não dá mostras de reverter tal perspectiva. Portanto, a história regional e, principalmente, a história local costumam ser comprimidas nos anos iniciais do ensino fundamental pela preponderância da geografia física e de uma educação para o civismo, enquanto nos níveis posteriores é eclipsada pelo ensino de história geral e do Brasil.

Pensando nessa questão, já presente no começo da década de 2010, se construiu um esboço de proposta de ensino para os anos finais do ensino fundamental e para o ensino médio, preocupada em como os historiadores poderiam colaborar com a presença da história local e regional nas salas de aula. Essa foi a origem das oficinas com os discentes da disciplina “História regional e local”, do curso de história da UFU de Ituiutaba-MG, pensando não somente em atender a um item do ementário,39 mas também em contribuir para a formação deles, como futuros professores de história.

Para tanto, seria tomado como foco os conteúdos de história geral e do Brasil, dominantes na maioria das propostas curriculares para, com base neles, se realizar um diálogo com a história regional e local. Evidentemente que nem todos os temas permitem essa articulação, tampouco a recomendação era de que se desenvolvesse esse trabalho com todos os temas ensinados para uma turma, existindo necessidade de se operar uma seleção.

37 COSTA, Tatiane Helena da. Como um conto de fadas?... Op. cit.38 Até o presente momento somente foi aprovada a BNCC para o ensino fundamental.

A esse respeito, ver: BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é base. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf>. Acesso em: 8 de agosto de 2018c.

39 Ibidem.

Page 133: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

132

Outra questão central, para o esboço da proposta, é o trabalho com fontes históricas na sala de aula, como insiste a bibliografia referente ao ensino de história, discutida anteriormente. As fontes seriam referentes a temas locais e regionais, garantindo uma articulação com o conteúdo de história geral e do Brasil, sem subsumir a ele. Todavia, levamos em consideração o que Bittencourt frisa:

os documentos tornam-se importantes como um investimento ao mesmo tempo afetivo e intelectual no processo de aprendizagem, mas seu uso será equivocado caso se pretenda que o aluno se transforme em um “pequeno historiador”, uma vez que, para os historiadores, os documentos têm outra finalidade, que não pode ser confundida com a situação de ensino de História.40

Dessa forma, o trabalho com fontes, no ensino de história, difere da pesquisa na área, bem mais rigorosa, profunda e devotada à produção de conhecimentos inéditos. Ao invés disso, em sala de aula se realizam exercícios, que pretendem também produzir saberes, mas dentro de outros parâmetros, no intuito dos alunos compreenderem melhor a disciplina histórica e sua forma de produção, para que fique clarividente como ela está em constante construção. Ou seja, enquanto no ambiente acadêmico o foco é a pesquisa científica que busca resultados originais, no espaço escolar a centralidade das preocupações deve ser ocupada pelo aprendizado que será proporcionado ao educando. O novo que deve ser buscado na sala de aula é aquilo que se projeta como novidade para o aluno e que lhe acrescenta algo positivo, em termos de conhecimento, e não necessariamente aquilo que é inédito à comunidade acadêmica.

Entretanto, a grande questão que sempre persegue a pesquisa e o ensino de história regional e local é aonde encontrar fontes, pois muitas cidades não possuem arquivos públicos organizados e disponíveis para consulta. Mesmo quando os possuem, a grande questão é como trabalhar com essas fontes, que carecem de contextualização e um trato metodológico mínimo, para que a atividade docente não se resuma à mera reprodução das informações mais evidentes disponíveis

40 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit., p. 328.

Page 134: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

133

no documento. Além disso, o trabalho docente é extenuante, a jornada de trabalho se concentra nas horas trabalhadas em classe e desprestigia a preparação das atividades, portanto, outra questão se relaciona a como fazer um trabalho com fonte em sala de aula que tenha qualidade e seja planejável e exequível dentro das limitações vividas pela maioria dos docentes das redes de ensino.

A maioria das propostas para o uso de linguagens no ensino de história advogam projetos e ações mais longas e elaboradas, de difícil desenvolvimento rápido e prático no espaço de uma aula. Muitos deles são completamente descolados da experiência dos professores e da cultura escolar vigente em nossos espaços educacionais. As oficinas foram pensadas como atividades mais simples, que pudessem ser incorporadas pelos docentes às suas rotinas de classe e serem desenvolvidas em um ou dois períodos de cinquenta minutos de aula, sem, com isso, impedir aqueles mais entusiastas que tivessem como pretensão tomar este esboço como um ponto de partida para um projeto mais longo.

Pensando na realidade de Ituiutaba, os levantamentos feitos por discentes da disciplina, em anos anteriores, com professores das escolas da cidade, principalmente os dos anos iniciais do nível fundamental, onde o ensino desses temas era efetivamente realizado, encontrou queixas generalizadas sobre a falta de acesso a materiais de apoio, especialmente sobre os conteúdos de história da cidade e, para supri-la, os docentes relatavam utilizar até mesmo listas telefônicas em sala de aula.

Em termos de narrativas sobre a história da cidade e da região, Ituitaba contava com alguns livros escritos por historiadores autodidatas, de difícil utilização em classe, além de um livro didático da década de 1970. Em termos de historiografia acadêmica, a cidade havia sido tema de poucas dissertações de mestrado, mas, existia um rico acervo de monografias feitas como trabalho de conclusão de curso, nas graduações em história oferecidas pela Fundação Educacional de Ituitaba (cuso extinto no começo da década de 2000) e pelo Campus do Pontal da UFU. Essas monografias poderiam servir como um rico material de instrução para os professores e, com seu formato sintético, permitiria aos profissionais de história a leitura

Page 135: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

134

de muitos títulos diferentes, algo também necessário, haja vista ser uma literatura monográfica e não uma narrativa linear da história, um de seus grandes méritos, potencial indutor de uma concepção de tempo diferente para o ensino. Cada monografia é acompanhada de muitas fontes de pesquisa, transcritas e disponibilizadas para acesso do leitor e que o professor poderia utilizar em uma atividade didática. Cada tema e fonte é acompanhada da devida contextualização, os documentos costumam ser caracterizados em termos de quem os produziu, com qual finalidade e em quais circunstâncias. Todo historiador, frequentemente encontra dificuldades para obter essas informações, problema também verificado no acesso às fontes, muitas vezes indisponíveis a um público amplo.

Dentro do conjunto maior de trabalhos existentes sobre a cidade, escolhemos quatro, para exemplificar o que buscamos com a presente proposta. Todos eles foram defendidos nas duas primeiras levas de monografias produzidas entre os anos de 2011 e 2012, no âmbito do curso de licenciatura e de bacharelado integrado, da Universidade Federal de Uberlândia, Campus do Pontal e estão disponíveis para consulta em seu respectivo Laboratório de Pesquisa e Ensino de História (LAPEH). São, portanto, trabalhos inaugurais da pesquisa naquele curso, reveladoras da vocação institucional para a pesquisa da cidade e de seu entorno. Em cada uma delas exploraremos um tipo de fonte: imprensa, fotografia, narrativas orais e obras de historiadores autodidatas.

O primeiro trabalho a ser destacado é o de Mara de Fátima Marques Dutra, Mulheres em Ituiutaba nos anos 1960: memórias e imprensa local (2011), orientado pela Profª. Drª. Ângela Aparecida Teles.41 O estudo integra a linha de história das mulheres e procura desvendar as imagens, memórias, trajetórias e sociabilidades femininas na cidade, durante a década de 1960. Para tanto, confronta a feminilidade construída pela imprensa local com narrativas orais de mulheres que vivenciaram aquele período. A problemática da autora

41 DUTRA, Mara de Fátima. Mulheres em Ituiutaba nos anos 1960: memórias e imprensa local. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba-MG, 2011.

Page 136: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

135

era entender como aquele período de agitação social e de mudanças nos costumes foi vivenciado pelas mulheres de Ituiutaba, tendo como hipótese de que os novos ventos de transformação sopraram de maneira muito fraca sobre o local.

A monografia de Dutra permite um trabalho interessante de diálogo entre história contemporânea e história local, tomando a imprensa como fonte de pesquisa.42 De acordo com Laura Antunes Maciel, uma das questões centrais para o trabalho do historiador com imprensa é não incorporar acriticamente seu discurso, mas situá-la dentro da experiência social em que é produzida, que envolve tanto relações comerciais como de poder,43 preocupação que Dutra também compartilhava, quando desenvolveu sua pesquisa.44 Um dos jornais analisados pela autora se intitula Município de Ituiutaba, e foi publicado entre 1967 e 1970, por ação direta da gestão municipal. Ao contrário do que se poderia pensar inicialmente, o impresso não tem formato de diário oficial ou de informe das ações da prefeitura, e sim o de um jornal comercial. Não se encontra no acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional e a única forma de consultá-lo é no acervo físico da Fundação Cultural de Ituiutaba. A autora analisa especificamente uma coluna da publicação, assinada por “Maria José”, devotada ao universo feminino e à cobertura de eventos sociais. Em uma das edições, a colunista discute moda:

vestido bermuda para o calor. Sim! ele serve para tudo o que você fizer enquanto houver claridade no céu. Desde de ir a feira, ir as compras, ir ao cinema, ir a um chá informal na casa de sua melhor amiga. Há uma luta contra o calor. As armas são várias e os exércitos também. Hoje estamos sugerindo que você guerrilheira que combate pela elegância o uniforme da campanha: vestido BERMUDA. Mas, por favor, não confunda ‘vestido bermuda’ com ‘vestido calça’.45

42 Cf. DUTRA, Mara de Fátima. Mulheres em Ituiutaba nos anos 1960... Op. cit.43 MACIEL, Laura Antunes. Produzindo notícias e histórias: algumas questões

em torno da relação telégrafo e imprensa – 1880/1920. In.: FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun. (org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004, p. 14-40.

44 Cf. DUTRA, Mara de Fátima. Mulheres em Ituiutaba nos anos 1960... Op. cit.45 MUNICÍPIO DE ITUIUTABA apud DUTRA, Mara de Fátima. Mulheres em

Page 137: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

136

Trata-se de uma matéria com dicas de vestuário, que procurava introduzir novas peças, como calças e bermudas, por muito tempo associadas ao masculino ou até mesmo à promiscuidade (no caso da bermuda, por mostrar as pernas). Para quebrar possíveis resistências, a articulista faz a defesa do uso da peça e o relaciona ao calor, permitindo um profícuo trabalho sobre as relações de gênero na sala de aula. Além disso, possibilita um diálogo com conteúdos de história contemporânea, como analisa a autora:

no final da década de 1960, com o acirramento das tensões da Guerra Fria, a Guerra do Vietnã e os movimentos estudantis, a moda incorporou elementos da rebeldia juvenil transformando em mercadoria utopias políticas. Maria José estava em sintonia com tais mudanças. Sua fala transforma guerrilheiras em mocinhas que combatem pela beleza.46

A monografia, portanto, chama a atenção para elementos que poderiam passar despercebidos pelos professores, se eles somente lessem o jornal, e faz uma conexão entre dois eventos da década de 1960, os costumes em sua relação com o vestuário e a Guerra do Vietnã. O trabalho com a matéria em sala de aula pode mostrar como o conflito se tornou mercadoria, na forma de tendência da moda, problematizando um elemento cada vez mais importante na vida dos adolescentes. Além disso, destacaria como essas relações não estariam distantes do local em que vivem os alunos, como se a história sempre acontecesse longe da vida deles.

Trabalhar com um fragmento de jornal como o citado anteriormente não impede ao docente de realizar um trabalho adequado às metodologias de uso de linguagens em sala de aula. De acordo com Maria Alice de Oliveira Faria, antes de se trabalhar com o conteúdo de jornais, é importante apresentar o formato de um jornal aos alunos, com suas seções e colunas.47 Tal medida é muito importante, principalmente quando levado em consideração a presença da imprensa eletrônica na vida dos alunos, em que o jornal Ituiutaba nos anos 1960... Op. cit., p. 41.

46 DUTRA, Mara de Fátima. Mulheres em Ituiutaba nos anos 1960... Op. cit., p. 41.47 FARIA, Maria Alice. Como usar o jornal na sala-de-aula. São Paulo:

Contexto, 1999.

Page 138: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

137

como um todo coerente fica eclipsado, face às matérias separadas, compartilhadas em redes sociais e aplicativos de comunicação. Nesse aspecto, na impossibilidade de se manusear um jornal da época (arquivos não permitem empréstimos), tal atividade poderia ser feita com jornais contemporâneos, de diferentes formatos, tanto da grande imprensa como de veículos de informação alternativos. Para esse trabalho, também seria importatante uma confrontação dos jornais contemporâneos com outros do período estudado, muitos deles disponíveis na hemeroteca digital. Assim, o docente poderia ampliar o escopo da análise, para depois afunilar em matérias e/ou fragmentos específicos de um jornal, se assim julgar pertinente.

Por outro lado, Bittencourt aponta para a importância de se estudar o jornalista que produziu as matérias, um recurso importante para não tratá-las como uma reprodução fiel do fato (algo humanamente impossível).48 Esse é um tema delicado, quando se pensa em imprensa regional, pois a maioria das matérias não são assinadas e, mesmo para as que o são, nem sempre é possível descobrir detalhes sobre um colunista ou articulista, pois muitos deles são profissionais que permanecem em uma cidade enquanto estiverem vigentes seus contratos com uma determinada administração pública municipal. Caso seja do interesse do professor, esse pode ser um ponto de partida para um projeto de pesquisa escolar, sobre a imprensa da cidade.

Quanto ao trabalho de Dutra, muitas outras possibilidades se abrem, como o trabalho com imagens, a autora explora as construções do feminino em anúncios de eletrodomésticos, pacotes de férias e em imagens ilustrativas dos jornais da década de 1960.49 Todas elas podem ser utilizadas pelos professores, para uma profícua discussão sobre propaganda e cultura visual na história da cidade. A própria monografia pode ser exibida em sala de aula, não no intuito de utilizá-la como material didático, mas como uma maneira de expor

48 Cf. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit.49 Cf. DUTRA, Mara de Fátima. Mulheres em Ituiutaba nos anos 1960... Op. cit.

Por vários motivos não trabalhamos essas imagens neste texto, além dos recortes necessários a todo trabalho, essa iconografia é protegida por direitos autorais, o que impede sua reprodução.

Page 139: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

138

aos discentes como funciona a pesquisa em história, atividade que já realizamos, com revistas e obras acadêmicas, a fim de responder ao questionamento de discentes do ensino médio, sobre como o professor obtinha conhecimentos que não estavam no livro didático adotado pela classe.

Outra monografia é a de Lara Denise Muntaser, Imigração árabe para Ituiutaba na primeira metade do século XX (2011), orientada pela Profª. Drª. Dalva Maria de Oliveira Silva, que realiza importante trabalho com fotografias, narrativas orais e livros de memórias, sobre a imigração de asiáticos do Oriente médio para a cidade.50 Todo o trabalho serve a uma importante articulação entre a história contemporânea e a história local, principalmente no que tange à fragmentação do Império Turco-Otomano, a descolonização daquela região da Ásia e aos conflitos que se seguiram, principalmente os de ordem religiosa, apontados pelos entrevistados como principal motivo para os deslocamentos rumo ao Brasil. Outra questão que fica patente no trabalho é a mudança de ofício, pois a maioria dos imigrantes era de famílias agricultoras na Ásia, passando a lidar com o comércio somente no Brasil, graças ao apoio de patrícios já estabelecidos, donos de casas comerciais em São Paulo, que forneciam mercadorias consignadas para os recém-chegados trabalharem como mascates nas regiões mais interioranas, fator apontado por muitos como incentivador da mudança para Minas Gerais. Dessa forma, a autora põe por terra o mito realimentado pelo senso comum de que sírio-libaneses teriam o comércio em seu DNA.

As entrevistas orais foram produzidas pela própria autora – que é descendente de imigrantes árabes e também soube levar sua experiência de vida para a pesquisa histórica, não sem problematiza-la à luz de metodologia adequada –, dentro das normas e diretrizes para o trabalho com tal fonte. Os entrevistados e suas trajetórias de vida e deslocamentos são apresentados no texto, cujas memórias também foram problematizadas em seu caráter subjetivo e de construção.

50 Cf. MUNTASER, Lara Denise. Imigração árabe para Ituiutaba na primeira metade do século XX. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba-MG, 2011.

Page 140: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

139

Uma das entrevistas foi realizada com Muhammad Khalil Muntaser, nascido em Jerusalém em 1930 e emigrado para o Brasil em 1947, onde trabalhou como mascate e comerciante. Em uma das passagens da narrativa, gravada em 4 de outubro de 2009, o entrevistado contava como se deu a decisão de deixar a Palestina:

Eu tinha vinte e poucos anos. Tinha meu esposa, meus filhas, mãe, irmãos. Meu pai já tinha morrido muitos anos. Eu saí de lá porque mãe fala assim: você vai embora, ou você morre nesse guerra. Não quis ficar. Pega navio, vem vindo embora [...]. Eu não sabe pra onde vai. Eu só sai. Eu vem vindo. Passê por treze países. Em Itália pega navio, viaja quarenta e três dias [...] Andê com mala na mão, passei fome. Tinha dólar no bolso, mas não sabia falar. Andava sozinho. Sentava na mala e chorava, chorava. Chegava em lanchonete, com fome, via gente pedindo comida, apontava o dedo e pedia igual. Assim comia. Comida diferente, não achava bom. Tinha saudade de comida árabe, tempero árabe.51

A narrativa oral se refere à guerra ocorrida entre judeus e árabes, na sequencia da criação do Estado de Israel.52 O entrevistado relata a vivência de alguém que deixou o Oriente Médio por conta dos conflitos e se tornou um refugiado de guerra. Mais do que trazer números e dados, como geralmente os materiais didáticos fazem para tratar dos conflitos no século XX, o uso desse tipo de fonte, em sala de aula, permite realizar aquilo proposto por Samuel,

o historiador pode fazer com que a pedra de toque se torne a experiência real da vida das pessoas, [...] dar identidade e caráter à pessoas que, normalmente, permaneceriam como meros nomes numa lista de rua ou registro paroquial,53

ou seja, trazer para o centro da narrativa histórica as formas como os seres

51 Muhammad Khalil Muntaser apud MUNTASER, Lara Denise. Imigração árabe para Ituiutaba na primeira metade do século XX... Op. cit., p. 31.

52 Cf. GRINBERG, Keila. O mundo árabe e as guerras árabe-israelenses. In.: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste. (org.). O século XX: O tempo das dúvidas. Do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 97-132.

53 SAMUEL, Raphael. História local e história oral... Op. cit., p. 232-233.

Page 141: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

140

humanos viveram os processos históricos, com as diferentes e conflitantes percepções do vivido, além da dimensão sensível da existência humana, de modo a romper com a construção de uma história homogênea e linear, preocupada em explicar como a história aconteceu.

Para tanto, também é preciso considerar a forma como o narrador recompõe sua memória,54 em uma entrevista, no presente. Nesse aspecto é interessante a forma como Muhammad Khalil Muntaser narra a saída da Palestina, como uma decisão não unicamente sua, mas familiar, com a iniciativa partindo de sua mãe. Deixar a Palestina é uma necessidade premente, haja vista o risco de morrer em campo de batalha. Dessa maneira, ele procura demonstrar que não foi um homem que abandonou a esposa, os filhos e os demais parentes, mas alguém que não teve outra opção senão fugir. A solidão e o desamparo seriam o preço a ser pago pela sobrevivência, além de servirem de testemunhos do sofrimento vivido em decorrência daquela decisão. Assim, mesmo sem usar o conceito, o narrador se constitui como um refugiado de guerra e não como imigrante, elemento que somente pode ser captado caso se leve em consideração os elementos que permeiam a subjetividade de uma narrativa oral.55

Nesse caso, o trabalho com as narrativas orais em classe se limitaria à análise e interpretação de passagens das entrevistas, opção válida dentro das rotinas escolares, embora nenhum impedimento exista para que os docentes realizem um projeto mais amplo, que

54 De acordo com Thomson as memórias estão em constante movimento nas mentes das pessoas, sendo recompostas para atender a questões e necessidades do presente. Cabe ao historiador analisar esses processos de recomposição, como forma de entender os parâmetros dentro dos quais uma narrativa oral foi produzida. Cf. THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias. Projeto História, São Paulo, n. 15, p. 51-71, 1997; Idem. Quando a memória é um campo de batalha: envolvimentos pessoais e políticos com o passado do exército nacional. Projeto História, São Paulo, n. 16, p. 277-96, 1998.

55 Segundo Portelli a maior riqueza das narrativas orais reside em sua subjetividade, ou seja, no fato delas não reproduzirem um acontecimento fidedignamente. Como argumenta o autor, a forma de narrar e a subjetividade de um relato oral explicitam os valores e a cultura do grupo social do narrador, podendo ser muito útil para se compreender como as pessoas vivenciam, de maneiras diversas e até mesmo antagônicas, um mesmo processo histórico. Cf. PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos... Op. cit.

Page 142: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

141

incluiria a produção de entrevistas por alunos. Nesse caso, é preciso lembrar que o uso de narrativas orais em pesquisas escolares é diferente do acadêmico, como lembra Ricci, não exigindo o mesmo rigor e sim uma adequação ao nível dos alunos.56 Uma atenção necessária, nessa situação, seria de que as entrevistas fossem gravadas – algo fácil nos tempos atuais, com a população de celulares e smartphones entre os adolescentes, todos eles detentores de tecnologia para gravação de áudio –, uma vez que trabalhar com questionários não é, necessariamente, fazer história oral.

Quanto às fotografias presentes no trabalho, seu uso é bastante secundário e tem a finalidade de complementar a discussão. Nesse aspecto, a obra revela muito o que é o trabalho de pesquisa em história e cidade, quando, não raro, precisamos juntar “cacos”, tal qual os arqueólogos, para construir conhecimentos minimamente coerentes, ao invés de poder trabalhar com grandes séries documentais. No caso de fotografias, é frequente não ser possível precisar o fotógrafo, ou, se as imagens são encontradas no acervo de algum profissional da fotografia, não ser possível definir quem são os figurantes.

Figura 1: Representantes da Colônia Sírio Libanesa Tijucana. Fonte: Acervo de Lara Denise Muntaser.

56 RICCI, Claudia Sapag. Pesquisa como ensino... Op. cit.

Page 143: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

142

A imagem que mais chama a atenção é um painel de fotografias, intitulado Representantes da Colônia Sírio Libanesa Tijucana (Figura 1),57 encontrada pela autora em uma vidraçaria, que no passado havia pertencido a uma das famílias imigrantes. O pôster contém os sobrenomes dessas famílias e fotografias de seus integrantes, especialmente aquelas que alçaram os estratos dominantes da sociedade local, ao centro, destaca uma imagem da participação da colônia em desfile cívico na cidade. Boris Kossoy apresenta toda uma metodologia para o uso da fotografia como fonte histórica, com atenção para o enquadramento que o fotógrafo deu e a postura dos figurantes na foto, como que a construir uma narrativa por meio da imagem.58 Claudia Ricci, por sua vez, chama a atenção para que professores trabalhem com os alunos as diferenças entre fotografias e outros tipos de imagens, para que estas não se confundam.59 Lembra também que devemos desconstruir a noção de que as fotos reproduzem com precisão a realidade, tratando-a como produto da subjetividade do fotógrafo. Frisa que é preciso discutir com os discentes os diferentes aspectos da fotografia, tais como: autoria, técnicas de produção, uso de fotos pelos meios de comunicação, a presença de séries de imagens em arquivos, direitos autorais, dentre outros. Segundo destaca, a análise dessas imagens não se faz sozinha, mas depende das questões que são elaboradas em sala de aula e várias são as atividades possíveis de serem desenvolvidas a partir da análise fotográfica, como a produção de textos sobre as imagens, comparações entre o retratado e o cotidiano do aluno, a escrita de cartas para os figurantes e a pesquisa na imprensa sobre o tema das imagens.

Acreditamos, porém, que fotografias como as do painel não se enquadrem perfeitamente no modelo metodológico apresentado por tais autores. Entretanto, mais produtivo que os profissionais de história destacarem seu uso, é aprenderem a lidar com as

57 Apesar de informal, tijucano é o gentílico mais popular na cidade, utilizado para definir os moradores de Ituiutaba-MG.

58 KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ática, 1989; KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia. In.: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 41-47.

59 Cf. RICCI, Claudia Sapag. Pesquisa como ensino... Op. cit.

Page 144: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

143

especificidades de cada acervo fotográfico. No caso do painel, pode-se tomá-lo como tentativa de criação de uma imagem oficial para o grupo, sendo central para isso a atuação de membros da “colônia” – entidade criada para representar os imigrantes –, mais do que a ação do fotógrafo ou dos figurantes, uma vez que as fotografias são muito diversas entre si, foram visivelmente produzidas em ocasiões diferentes e, portanto, não apresentam unidade, ou seja, a narrativa visual do painel foi elaborada menos no momento de registro das fotos e mais naquele de sua reunião e organização para figurar no quadro.

Um cruzamento entre o painel e as narrativas orais apresentadas no trabalho seria muito profícuo para discutir as questões identitárias dos imigrantes, na cidade. Atenderia, de certo modo, a sugestão de Bittencourt de fazer uma análise que associe imagens e textos (neste caso, a transcrição da entrevista).60 Nas fotos, todos os figurantes estão ricamente vestidos, o requinte é marcante em várias fotografias, enquanto em outras temos imagens de formaturas, representando a aquisição de níveis elevados de formação educacional por membros de famílias imigrantes. Não são retratos de refugiados de guerra recém-chegados, de mascates que sobrevivem parcamente do comércio ambulante na zona rural, ninguém figura em tais fotografias sentado sobre uma mala chorando, pois, não é esta imagem que a colônia quer construir na cidade. A identidade construída localmente é de pessoas que superaram as dificuldades enfrentadas no imediato pós-imigração e ascenderam socialmente, possivelmente um recurso para apresentarem-se como pessoas honradas e batalhadoras, que estariam, contemporaneamente, colhendo os frutos de seu esforço e trabalho. Como aponta Hall, as identidades são múltiplas, não existindo apenas a étnica ou nacional de forma isolada, sem a necessária convivência com outras mais, como as de gênero ou, no caso estudado, de classe.61

Para a realização desse trabalho, no entanto, seria importante que o professor evitasse levar para a classe uma narrativa

60 Cf. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit.61 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:

DP&A Editora, 2011.

Page 145: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

144

pronta, a fim de não repetir, com a história local, vícios que povoam o ensino de outros temas. Seria importante a realização de questões, por exemplo, ao painel, se poderia perguntar como os imigrantes aparecem nas imagens. Por que não existem imagens de pobreza na representação criada pela colônia sobre os imigrantes? Será que todos os imigrantes ascenderam socialmente ou existe um referencial de classe no interior dessa entidade? Imigrantes menos abastados não aparecem na imagem ou talvez escolheram as melhores roupas para figurar nas imagens? Por que é importante demonstrar formaturas e aquisição de determinados níveis de escolaridade e diplomas?

Conforme aponta Bittencourt, uma das diferenças do uso de fotografias em sala de aula para com a pesquisa acadêmica, é que uma investigação toma séries de imagens para análise, enquanto sugere para os professores de história, trabalharem com poucas fotografias em sala de aula, explorando-as em profundidade.62 Uma das imagens que muito chama a atenção é a da participação da “Sociedade Beneficente Árabe Brasileira” em um desfile cívico local. Nela, um jipe reboca um carro alegórico no formato de navio, adornado com bandeiras de países como Líbano e Síria. Os figurantes estão finamente trajados a caráter, representando a imigração, tendo a faixa com o nome da entidade acima de si, indicando que, no período em que a foto foi registrada (entre as décadas de 1950 e 1970), os imigrantes já estavam em condições de prestar assistência a outros grupos sociais, ao invés de precisarem dela. Essa fotografia demonstra a importância da experiência de deslocamento intercontinental para a construção identitária do grupo. É bem possível que, narrar a imigração e as grandes dificuldades vividas ao chegar ao Brasil seja um traço dessa identidade, pois, como nos lembra Portelli, diversos grupos criam narrativas sobre ritos de iniciação, com o relato de experiências fundantes.63 Isso pode explicar o porquê dos imigrantes quererem lembrar experiências tristes e incômodas, pois, elas podem ajudar a valorizar as melhorias vividas em momentos posteriores de suas trajetórias de vida e assim colaborar para a compreensão de que a

62 Cf. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit.63 Cf. PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos... Op. cit.

Page 146: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

145

mudança valeu a pena, recompondo as memórias traumáticas para se sentirem bem com o presente, além de disputar espaço e afirmarem-se socialmente nos locais em que estão inseridos.64

Lembramos, novamente, que essas imagens podem ser somente o ponto de partida de um projeto mais amplo, que foque em outros grupos sociais da cidade. Outra alternativa é enveredar pelos caminhos da história da fotografia e explorá-la como prática social, para tanto, a exploração da figura dos fotógrafos e de seus acervos pode ser muito importante. A título de exemplo, quando trabalhamos na UFU de Ituiutaba, tomamos conhecimento da existência, em décadas anteriores, de fotógrafos itinerantes, que faziam visitas periódicas às fazendas, quando então tiravam fotos ou traziam aquelas que já haviam sido reveladas. Essas são práticas sociais interessantes, que podem servir de mote para se compreender melhor a sociedade da região, em sua dinâmica histórica.

Quanto ao tema do trabalho de Muntaser, é possível fazer um paralelo com os conflitos contemporâneos no Oriente Médio e a questão dos refugiados, que já passa a ser chamada de crise imigratória em muitos países.65 Todavia, é preciso tomar muito cuidado para não se cometer anacronismos, do contrário, perde-se a dinâmica de transformação das sociedades ao longo do tempo, passando-se a conceber o tempo histórico como repetição ou apenas como um conjunto de permanências.

As duas últimas monografias, que tratamos a seguir, são extremamente importantes, como forma de atender à obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, conforme versa a lei 11.645/2008.66 O trabalho de Iza Costa, intitulado Memórias e histórias de negros em Ituiutaba nas décadas de 1930/60 (2011) e orientado pela Profª. Drª. Ângela Aparecida Teles, é uma referência importante para

64 Cf. THOMSON, Alistair. Recompondo a memória... Op. cit.; Idem. Quando a memória é um campo de batalha... Op. cit.

65 Cf. MUNTASER, Lara Denise. Imigração árabe para Ituiutaba na primeira metade do século XX... Op. cit.

66 BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 10 de agosto de 2018.

Page 147: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

146

se pensar a vida de homens e mulheres negras no período posterior à abolição, e corrigir o vício de se confundir história e cultura afro-brasileira com a escravidão.67 A autora, também partícipe do grupo social estudado, explora a presença negra na cidade, em meio a um período de intensas transformações, quando ocorreu uma ampliação da área urbana da cidade, principalmente entre as décadas de 1950 e 1960, com o advento da produção rizícula.

Entretanto, o período que serve de recorte temporal à obra possui menos relação com as transformações econômicas ocorridas na região e mais com os marcos de memória trazidos pelos narradores entrevistados pela autora, que faz amplo uso da história oral. Em tais narrativas, locais como o bairro Junqueira, a praça Treze de Maio e o Palmeira Clube, são eleitos como lugares privilegiados nas memórias dos narradores, sendo eles problematizados como territórios identitários do grupo, pois, segundo afirma:

tais grupos investem seus territórios de uma história singular, de uma especificidade onde a memória, a tradição e as práticas sociais coletivas se cruzam e se interpenetram.68

Além disso, a autora explora os sentidos das recordações da participação em festas, como a Congada, uma das marcas da comunidade negra na cidade, que possui grande relação com a praça, sem ignorar os relatos de preconceitos e os processos de exclusão vividos por seus membros.

É assim que a autora estuda a criação do Palmeira Clube, entidade recreativa, criada pela comunidade negra de Ituituaba-MG, ainda na década de 1920, como resposta à exclusão e ao preconceito existente na cidade, servindo como lugar de sociabilidade e de organização política do grupo. Segundo Iza Costa:

O clube, que na década de [19]40 se torna a principal forma de associação negra do município, congregou todos

67 Cf. COSTA, Iza. Memórias e histórias de negros em Ituiutaba nas décadas de 1930/60. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba-MG, 2011.

68 Ibidem, p. 32.

Page 148: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

147

os praticantes das mais diversas crenças e estabeleceu na memória coletiva do grupo um marco fundador das conquistas,69

portanto, a entidade se tornou um grande elemento de coesão e de resistência do grupo. Entre as memórias do clube, emergem outras, como de Delcides Silvério Simões, nascido em 1929, mestre de obras e pintor de casas, que começou a trabalhar aos dez anos de idade como pedreiro (além de ter tido experienciado o trabalho industrial local), entrevistado em junho de 2009. Ele relata contatos da comunidade local com movimentos políticos negros, atuantes no país, durante a década de 1930:

Legião negra, o nome da associação deles era este, ficaram impressionados com a nossa organização, com o nosso pensamento de melhorar as coisas para o negro... Eu acho que foi em 32, eu não me lembro bem, vieram de Campinas pra se reunir com a gente, foi na casa do senhor... na 13 com a... e ele era um homem branco, mas que estava sempre ajudando a gente fosse em caso de polícia, de casa pra morar, arrumar emprego e ele até pensava também igual, eles falavam que era importante a gente ter um lugar para reunir, e falavam muito em educação, que os meninos tinham que ir pra escola, que só estudando a gente podia melhorar a vida, eu não me lembro bem, acho que eu tinha uns dez pra treze anos, mas foi que a dona Isolina Arruda, a Etelvina, Maria Arruda, Geralda Arruda, Zé Abadio da Costa, Jerônimo Bento de Castro, o Mica, Antônio Teodoro de Lima, seu avô senhor Vicente, começaram a pensar mesmo na construção de um clube, uma escola.70

O trecho da narrativa oral citada pode servir para um bom trabalho em sala de aula e permite uma conexão interessante com o contexto nacional da época. A Legião Negra foi um dos movimentos de brasileiros afrodescendentes, atuante na década de 1930, período de efervescência da ação política e cultural do grupo, que acabou por se organizar também na cidade de Uberlândia, no Triângulo Mineiro.

69 COSTA, Iza. Memórias e histórias de negros em Ituiutaba nas décadas de 1930/60... Op. cit., p. 50.

70 SIMÕES apud COSTA, Iza. Memórias e histórias de negros em Ituiutaba nas décadas de 1930/60... Op. cit., p. 50-51.

Page 149: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

148

Campinas-SP era um dos polos dessas organizações, cidade que contava também com a atuação da imprensa negra desde princípios do século XX.71 As temáticas envolventes a esses movimentos podem ser trabalhadas em articulação com a história local, não somente pelo fato dos negros da cidade terem tomado contato com a Legião Negra, mas por conta de sua capacidade de organização como grupo. A narrativa, por exemplo, revela a importância do clube como local não somente para lazer e sociabilidade, mas também para organização coletiva. Além disso, aponta para outros elementos dessa capacidade organizativa pouco visíveis, pois assentados em práticas cotidianas, como a rede de contatos para conseguirem empregos, casas para alugar e apoio jurídico. Essas ações também configuram-se em ações políticas, resultantes de uma politização do cotidiano,72 realizada por diferentes sujeitos históricos, com forma de contornar processos de dominação.

Por outro lado, a própria fala de Delcides Silvério Simões é permeada por questões políticas, presentes na subjetividade que impregna a fala. Conforme aponta Portelli: “recordar e contar já é interpretar”,73 ou seja, a escolha de assuntos e enfoques, realiza pelo narrador, não é aleatória, bem como também não o é a forma como ele relata os fatos vividos no passado. Essa é uma dimensão que precisa ser trabalhada em sala de aula, pois, ao trazê-la para sua fala sobre o clube, o narrador tenta mostrar como a entidade foi criada dentro de uma dimensão política, que se articula com a instalação da escola. Ao analisar essa fala, não se deve colocá-la em termos de verdade ou de mentira, se a fundação do clube aconteceu, de fato, dentro de um projeto político consciente ou se foi para atender às demandas de lazer da comunidade (algo plenamente legítimo), mas refletir sobre como o entrevistado constrói, com sua narrativa, toda uma ambiência política para a entidade, trazendo para ela a presença dos legionários, que atestariam o quão avançada era a visão de futuro e a organização da comunidade negra local. Assim, Simões ajuda a construir uma

71 Cf. DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p.100-122, 2007.

72 Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000.

73 PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos... Op. cit., p. 60.

Page 150: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

149

identidade e uma trajetória positiva para o grupo, como quem muito lutou para a melhoria de vida do negro na sociedade local, destacando inclusive nomes de quem estaria à frente da organização comunitária, cujo foco da ação política seria a inclusão social através da educação, amplamente compartilhada pelos movimentos negros da primeira metade do século XX, no Brasil.

Essa é mais uma possibilidade para a análise de narrativas orais em sala de aula, que pode também ser o ponto de partida para um projeto mais amplo, de produção de narrativas orais. No caso específico dessa cidade, seria possível cruzar as fontes orais com material audiovisual e realizar saídas a campo, principalmente no período da Congada. As possibilidades são múltiplas e cabe ao professor organizar um trabalho que atenda às suas necessidades e aos objetivos traçados para seu ensino de história.

O último trabalho, de Gláucia Silva Souza, intitulado Óbitos de escravos. São José do Tijuco e Nossa Senhora do Carmo do Prata, século XIX: perspectivas de pesquisa e documentação, orientado pelo Prof. Dr. Aurelino José Ferreira Filho, também auxilia a atender ao exigido pela Lei 11.645/2008, no que tange ao ensino de história e cultura afro-brasileira.74 A autora trabalha com registros de óbitos e com narrativas de historiadores autodidatas, sobre os anos finais da escravidão, como forma de precisar as condições de vida e de saúde de escravos, comparando-os com os trabalhadores livres pobres, nas localidades de Ituiutaba (chamada de São José do Tijuco, no século XIX) e Prata-MG. Portanto, um tema prenhe de possibilidades de articulação com conteúdos de história do Brasil, como escravidão no período Imperial e Abolição e que pode acrescentar algo muito interessante ao tema, pois discute tal processo histórico em uma região periférica do Império.75

74 Cf. SOUZA, Gláucia Silva. Óbitos de escravos. São José do Tijuco e Nossa Senhora do Carmo do Prata, século XIX: Perspectivas de pesquisa e documentação. 2012. 67 f. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba-MG, 2012.

75 Cf. RIBEIRO JÚNIOR, Florisvaldo Paulo. A civilização interiorizada. História e Perspectivas, Uberlândia, n. 31, p. 33-57, 2004; Idem. Memórias cativas de um Triângulo negro. Revista Opsis, Catalão, v. 3, n. 1, p. 87-99, 2003.

Page 151: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

150

Apesar de serem os registros de óbitos uma fonte instigante, nos concentraremos mais nas narrativas de historiadores autodidatas, por ser um material de mais fácil acesso dos docentes. Além disso, a simples transcrição dos registros pode não ser a forma ideal de trabalhar com esse material em sala de aula, pois se perde muito do saber que o contato direto com a fonte proporcionaria aos alunos, principalmente com sua forma peculiar, escrita em letras manuscritas, com material e estilo de época.

Quanto aos livros de história local produzidos fora da academia, toda cidade os possui e, como já afirmamos, Ituiutaba não foge à regra. No meio acadêmico existe um debate sobre como conceituar os autores dessas obras, Ana Claudia Brefe os chama de memorialistas,76 enquanto Astor Antônio Diehl, de historiadores diletantes.77 Preferimos, no entanto, nos referir a eles como historiadores autodidatas, como forma de caracterizar a formação em história que realizaram por conta própria.

Uma das obras analisadas por Souza é a revista Acaiaca,78 que produziu uma edição especial, com conteúdo histórico, em comemoração ao cinquentenário da cidade, em 1953.79 Na ocasião, foram publicados textos contendo relatos sobre a escravidão local, de autoria de um dos historiadores autodidatas locais, Camilo Chaves,80

76 Cf. BREFE, Ana Claudia Fonseca. A cidade inventada: A Paulicéia construída nos relatos dos memorialistas (1870-1920). 1993. 155f. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas-SP, 1993.

77 Cf. DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e imagem. Bauru: Edusc, 2002.

78 De acordo com Menezes , essa revista era uma publicação da Imprensa Oficial do estado de Minas Gerais, com circulação entre 1948 e 1957. Incialmente se dedicava à crítica artística e literária, porém, após a eleição de Juscelino Kubitscheck de Oliveira como governador, em 1951, passou a elaborar edições especiais dedicadas às cidades do interior, cujas matérias levantavam informações e produziam textos históricos sobre a urbe em destaque, saltando a quantidade de páginas, de cada número, de uma média de oitenta para 160 laudas. Cf. MENEZES, Lucas Mendes. “Uma revista que honra a cultura de Minas”: A política mineira através da Acaiaca (1948-1957). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, Rio Grande, v. 2, n. 4, p. 201-214, 2010.

79 Cf. SOUZA, Gláucia Silva. Óbitos de escravos... Op. cit.80 A principal obra de Camilo Chaves é Caiapônia: Romance da terra e do

Page 152: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

151

filho de uma tradicional família da região, que chegou a integrar o senado estadual de Minas Gerais, instituição da Primeira República. A autora fez uso desse material por ser um “dos poucos relatos de memorialistas que permeavam o universo escravo”,81 e que serviu para complementar seu quadro de fontes, uma vez que a

dimensão da violência no mundo escravista muito dificilmente foi registrada nos documentos eclesiásticos. Até porque à Igreja local era recomendado não se envolver em qualquer caso que a deixasse em dificuldades com a classe senhorial.82

Sendo assim, ela seleciona passagens relatam homicídios de escravos, no ano de 1874:

tríplice crime de grande repercussão na época foi de certo fazendeiro abastado, daqui o qual desvairado pelo ciúme, certa noite enluarada atraiu a esposa ao quintal, apunhalando-a e enterrando-a em seguida. No dia seguinte, notada sua falta pela mãe da vítima, esta deu o alarma. Instaurado processo, 2 escravos foram arrolados como testemunhas capazes de elucidar o mistério. Atendendo à intimação judicial, mandou o senhor que os 2 escravos fossem ao arraial com gargalheira de ferro ao pescoço, ajoujados e tangidos pelo feitor. Este, cumprindo ordens do amo, ao passarem pela ponte do Tijuco, à vista do arraial, (a primeira ali existente), jogou os dois infelizes n’água, os quais morreram afogados. Pouco tempo depois convolou ele as segundas núpcias. Contam os antigos que mais tarde andando o mesmo senhor pela caçada pelas margens do Tijuco, ao entrar n’água rasa para colher uma capivara, faltou-lhe apoio, morrendo também afogado fulminado pela justiça divina que tarda mas não falta...83

O texto, de fácil acesso para professores que desejassem trabalhá-lo na íntegra com seus alunos, permite a discussão de

homem do Brasil Central (1943), da qual provavelmente foram extraídos os textos para compor a edição especial da revista Acaiaca de 1953, em homenagem ao cinquentenário de Ituiutaba.

81 SOUZA, Gláucia Silva. Óbitos de escravos... Op. cit., p. 58.82 Ibidem, p. 59.83 CHAVES apud SOUZA, Gláucia Silva. Óbitos de escravos... Op. cit., p. 58.

Page 153: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

152

inúmeros temas, tais como: a justiça no século XIX; as relações de gênero no período; a violência perpetrada contra escravos; as relações de poder no mundo rural e a figura do patriarca; valores que permeiam a cultura popular, como a crença na justiça divina, tema que pode ter sido inserido no texto como alerta às famílias dos grupos dominantes da sociedade – como a do autor – para que façam uso contido de seus poderes, pois um dia serão julgados por seus crimes, senão pela justiça terrena, mas por Deus.

A autora, de maneira bastante sagaz, faz uma leitura a contrapelo dos textos, escritos originalmente para contar passagens pitorescas da história local, para discutir mortes violentas de escravos – outra causa de falecimento, objeto de estudo da monografia –, além de utilizar a narrativa para contextualizar a escravidão na região. Segundo a autora, o relato é um testemunho do poder exercido pelos senhores sobre os escravos e do tratamento arbitrário que recebiam. Todavia, a autora não deixa de abordar as formas de resistência dos cativos, não os tratando como meras vítimas, conforme vemos na passagem a seguir:

crime rumoroso pela importância social da vítima foi à morte de D. Alexandrina, primeira esposa do Capitão Camilo Roiz Chaves, de Campina Verde, ocorrido na sua fazenda, e na ocasião ausente. Foi ela assassinada no leito, a golpes de machado por 3 escravas rebeladas Ângela, Romana e Maria. Julgadas e condenadas sofreram pena capital na Vila de Uberaba, conforme processo arquivado em Prata. A última mulatinha nova, apavorada comoveu até as lágrimas da multidão que assistia a cena.84

Nesse trecho, as escravas aparecem como as autoras do crime, mas, diferentemente do senhor de escravos da citação anterior, foram processadas e condenadas à morte. Tal passagem pode servir para várias discussões em classe – lembrando que elas devem ter como base perguntas geradoras de reflexão –, tais como: a relação entre o assassinato da senhora e as práticas de resistência escravas; a pena de morte existente no Brasil no século XIX; a forma como os escravos lidavam com a escravidão em suas vidas cotidianas, tão bem

84 CHAVES apud SOUZA, Gláucia Silva. Óbitos de escravos... Op. cit., p. 59.

Page 154: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

153

exploradas por Sidney Chalhoub em Visões da Liberdade;85 dentre outras tantas possibilidades.

A confrontação entre os dois trechos poderia ser muito interessante para se pensar a justiça da época, desde que o docente reconstruísse com seus alunos o universo das relações cotidianas entre senhores e escravos. Sendo bem trabalhado, o episódio poderia servir para colocar em xeque a tese de que a escravidão era branda para os cativos domésticos. Poderia ser mote para um interessante projeto que confrontasse aquele passado com o tempo presente, articulando violência, justiça e relações étnico-raciais. Entratanto, esse tipo de trabalho requer muitos cuidados dos professores, quando não conduzidas devidamente, as discussões em sala podem acabar por reafirmar preconceitos

Por fim, em termos regionais, a monografia de Souza ajuda a dissipar a tese de que a escravidão foi branda no Triângulo Mineiro. Mesmo a constatação da autora, de que as condições de vida e de saúde dos cativos e dos trabalhadores livres pobres pouco diferiam, pode ser lida como o testemunho das duras relações de trabalho vigentes na região, na segunda metade do século XIX.86 Mesmo sendo essa uma discussão referente à história daquela região, certamente nos instiga a pensar em questões semelhantes, em outras localidades do país, sendo a sala de aula local válido para se pensar essas e outras temáticas.

Considerações finaisGostaríamos de fechar este texto com um alerta acerca

da ideia, muito arraigada entre os professores, de que esfera local é mais próxima do aluno, que outras, como a nacional e a mundial. José Henrique Rollo Gonçalves já destacou como essa ideia pode ser enganosa, pois, nossos alunos mantém contato diário com diferentes mídias e essas possuem o poder de tornar presentes na vida deles diversos elementos que não compõem a dimensão local de

85 Cf. CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

86 Cf. SOUZA, Gláucia Silva. Óbitos de escravos... Op. cit.

Page 155: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

154

suas existências.87 Notamos algo à respeito no trabalho com ensino médio, havia um interesse incomum pela Antiguidade Oriental, principalmente sobre aquele que se convencionou chamar de Império Persa. Conversando melhor com os alunos, constatamos que eles eram adeptos de um jogo eletrônico em que as civilizações antigas eram tema central. Os conhecimentos obtidos em sala de aula tinham o objetivo de municiar-se de informações para melhorar o desempenho no game. Assim, o conteúdo não era distante, mas compunha a vida cotidiana dos educandos.

Por outro lado, não é muito adequado pensar que relacionar os temas ensinados com a história local seja garantia de desabstração do conteúdo, um recurso para facilitar seu entendimento. Muitas das questões concernentes a essa história são bastante complexos, e podem ser também de difícil assimilação pelos discentes. Um exemplo disso é o trabalho com povos indígenas, mesmo que existam populações vivendo na cidade no período contemporâneo, sua dinâmica cultural não é a mesma de séculos atrás. Dialogar com culturas tão diferentes, em períodos tão diversos, é um desafio que exige uma grande capacidade de reflexão, não sendo uma tarefa simples ou menor que a de ensinar temas de história geral e do Brasil.

A questão central no ensino de história local e regional, bem como desta proposta, é a de realizar um movimento dialógico, entre diferentes escalas espaciais, com base nas quais se estuda história.88 Em nossa experiência na educação básica, de maneira geral, nos deparamos com duas posturas dos educandos face à história local e regional: aqueles que gostam da área e outros que a rejeitam. Entre os que apreciam o ensino de temas referentes à cidade e à região, a proposta aqui esboçada é um meio de satisfazer a vontade deles em aprender mais sobre o lugar onde vivem. Para aqueles que, geralmente, são resistentes a esse campo, pode ser uma forma de dissipar os preconceitos que o tratam como algo menor no interior das áreas da história e demonstrar como as espacialidades mais próximas também

87 Cf. GONÇALVES, José Henrique Rollo. Alguns problemas do ensino escolar de história regional. História Ensino, Londrina, v. 4, p. 53-75, 1998.

88 Cf. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit.

Page 156: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

155

são dotadas de historicidade, cuja complexidade se equipara às de outras escalas de estudos da história, e que sua compreensão pode ajudar-nos a entender o mundo em que vivemos, tanto nas escalas micro como macro.

Para ambos, a proposta pode reforçar a ideia de que a história não é uma experiência exterior a eles, mas algo que, ao mesmo tempo, os cerca e da qual fazem parte, sendo suas existências e as das pessoas dos lugares onde vivem tão importantes quanto àquelas dos seres humanos que viveram nos contextos que servem como grandes temas da história. E essa é a grande contribuição do esboço de prática de ensino realizado neste texto, o de quebrar hierarquias que, muitas vezes, são realimentadas pelo próprio ensino de história e que podem criar nos educandos a impressão de que existem e existiram vidas e experiências mais importantes que outras, mas importante que as suas.

Referências bibliográficas:AMADO, Janaina. O Grande mentiroso: Tradição, veracidade e imaginação em história oral. História, São Paulo, n. 14, p. 125-136, 1995.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In.: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ituiutaba. Disponível em: < https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/ituiutaba/panorama>. Acesso em: 10 de agosto de 2018a.

BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 10 de agosto de 2018b.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular: Educação é base. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf>. Acesso em: 8 de agosto de 2018c.

BREFE, Ana Claudia Fonseca. A cidade inventada: A Paulicéia construída

Page 157: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

156

nos relatos dos memorialistas (1870-1920). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, 1993.

CABRINI, Conceição; CIAMPI, Helenice; VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; BORGES, Vavy Pacheco. Ensino de História: revisão urgente. São Paulo, Educ, 2005.

CAINELLI, Marlene Rosa. A construção do pensamento histórico em aulas de história no ensino fundamental. Tempos históricos, Cascavel, v. 12, p. 97-109, 2008.

CERRI, Luis Fernando. Os conceitos de consciência histórica e os desafios da didática da história. Revista de História Regional, Ponta Grossa, v. 6, n. 2, p. 93-112, 2001.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Ed. Vozes, 2000.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

COSTA, Iza. Memórias e histórias de negros em Ituiutaba nas décadas de 1930/60. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba, 2011.

COSTA, Tatiane Helena da. “Como um conto de fadas”? Reflexões sobre o ensino de história local nos anos iniciais da educação fundamental (Ituiutaba-MG/1980-2006). Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba, 2013.

DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e imagem. Bauru: Edusc, 2002.

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p.100-122, 2007.

DUTRA, Mara de Fátima. Mulheres em Ituiutaba nos anos 1960: memórias e imprensa local. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba, 2011.

FARIA, Maria Alice. Como usar o jornal na sala-de-aula. São Paulo: Contexto, 1999.

FENELON, Dea Ribeiro. Apresentação. In.: BOSI, Antônio de Pádua. Os “sem gabarito”: experiência de luta e de organização popular de trabalhadores em

Page 158: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

157

Monte Carmelo/MG nas décadas de 1970/1980. Cascavel: Edunioeste, 2000.

FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. São Paulo: Papirus, 2003.

GONÇALVES, José Henrique Rollo. Alguns problemas do ensino escolar de história regional. História Ensino, Londrina, v. 4, p. 53-75, 1998.

GRINBERG, Keila. O mundo árabe e as guerras árabe-israelenses. In.: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste. (org.). O século XX: O tempo das dúvidas. Do declínio das utopias às globalizações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2011.

JULIA, Dominique. A Cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Rio de Janeiro, n. 1, p. 9-43, 2001.

KHOURY, Yara Aun; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo. A pesquisa em história. São Paulo: Ática, 2007.

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ática, 1989.

KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia. In.: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico. São Paulo: Hucitec, 1998.

MENEZES, Lucas Mendes. “Uma revista que honra a cultura de Minas”: A política mineira através da Acaiaca (1948-1957). Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Rio Grande, v. 2, n. 4, p. 201-214, 2010.

MUNTASER, Lara Denise. Imigração árabe para Ituiutaba na primeira metade do século XX. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba, 2011.

PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n. 2, p. 59-72, 1996.

RIBEIRO JÚNIOR, Florisvaldo Paulo. A civilização interiorizada. História e Perspectivas, Uberlândia, n. 31, p. 33-57, 2004.

RIBEIRO JÚNIOR, Florisvaldo Paulo. Memórias cativas de um Triângulo negro. Revista Opsis, Catalão, v. 3, n.1, p. 87-99, 2003.

RICCI, Claudia Sapag. Pesquisa como ensino: Textos de apoio. Propostas de trabalho. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

RÜSEN, Jörn. Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir

Page 159: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

158

do caso alemão. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 1, n. 2, p. 7-16, 2006.

SAMUEL, Raphael. História local e história oral. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 19, p. 219-243, 1990.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora e GARCIA, Tânia Maria Braga. Pesquisas em educação histórica: algumas experiências. Educar em Revsita, Curitiba, v. 22, n. especial, p. 11-31, 2006.

SOUZA, Gláucia Silva. Óbitos de escravos. São José do Tijuco e Nossa Senhora do Carmo do Prata, século XIX: Perspectivas de pesquisa e documentação. 2012. 67 f. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Universidade Federal de Uberlândia, Faculdade de Ciências Integradas do Pontal, Ituiutaba, 2012.

THOMPSON, Edward P. Educação e Experiência. In.: THOMPSON, Edward P. Os românticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

THOMSON, Alistair. Quando a memória é um campo de batalha: envolvimentos pessoais e políticos com o passado do exército nacional. Projeto História, São Paulo, n. 16, p. 277-96, 1998.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias. Projeto História, São Paulo, n. 15, p. 51-71, 1997.

Page 160: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

159

O mangá no ensino de História: possibilidadesTânia Regina Zimmermann1

Márcia Maria de Medeiros2

Talles Murilo Alves Bispo3

Uma das maiores preocupações dos professores de História atualmente é inovar o ensino de sua disciplina através de novos elementos e utilizando novas linguagens: nesse sentido, no presente texto conjugamos esforços para alcançar este resultado. Enquanto linguagem que contém especificidades o mangá (um tipo de história em quadrinhos) pode ser utilizado como mecanismo de assimilação de conhecimentos com base em uma metodologia que facilita a difusão de conhecimentos.

Para inovar na prática do ensino de História, o mangá deve estar atrelado a eventos históricos e para tal sugerimos a utilização de dois textos específicos: Zero Eterno e Gen, Pés Descalços. Uma das possibilidades de seu uso decorre da facilidade didática na difusão do saber, pois os acontecimentos históricos sobre a Segunda Guerra Mundial adquirem outros contornos, olhares e significados possibilitando uma releitura desse processo histórico através dos mangás aqui analisados.4

1 Doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2010) com créditos concluídos pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e estágio de pós-doutorado pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professora titular da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul no curso de História e no Mestrado em Educação.

2 Possui graduação em História pela Universidade de Passo Fundo (1996), mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999) e doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (2006). Professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) nos cursos de Turismo, Química Industrial e Enfermagem. Professora permanente do programa de Mestrado Profissional em Ensino em Saúde da UEMS.

3 Acadêmico do curso de História da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul.

4 Este capítulo alude a fusão de dois artigos publicados nas seguintes revistas: Interfaces da Educação e Trilhas da História.

Page 161: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

160

Tem sido recorrente admitir que as práticas de ensino de História nas salas de aula aduzem a percalços e incertezas, na medida em que professores não têm encontrado como destinatários alunos interessados na transmissão de saberes por meio do aprendizado tradicional. Neste sentido, a construção de conhecimentos, por intermédio dessa transmissão claudicante de saberes tem sido prejudicada, tanto que novas reformulações nos métodos de ensino-aprendizagem começaram a ser abordadas como alternativas viáveis para o sucesso na captação de conhecimentos históricos pelos alunos.

Tais reformulações tendem a ofertar aos alunos motivações de aprendizagem para que essa construção de conhecimentos se torne frutífera e satisfatória. Nesse sentido, a história em quadrinhos, mais especificamente os mangás, constituem mais um aditivo didático para renovação e enriquecimento do ensino, fazendo com que se amplie o leque de possibilidades de práticas disponíveis aos educadores. Através deste recurso temos uma multiplicidade de temas a serem abordados, facilitando também o entendimento de saberes culturais, ideológicos e identitários.5

A aceitação dos quadrinhos junto ao público infanto-juvenil abriu a possibilidade do uso dessas histórias para a difusão de princípios e ideologias,

com o objetivo de formar (ou incutir) valores, transmitir conhecimentos, resgatar conceitos de cidadania e identidade nacional, através do destaque às construções históricas e consideradas como relevantes à nação e ao sentimento nacional.6

Convém ressaltar que em seus primórdios, o uso dos quadrinhos em sala de aula foi mesmo proibido. Acreditava-se que

5 Aqui, a identidade faz menção ao que se entende como “cultura como identidade”. Terry Eagleton antevê a possibilidade da cultura se ligar ao próprio indivíduo, conseguindo, inclusive, revelar o seu espírito, na medida em que este desenvolve aquela sensação de pertencimento a um lugar. Cf. EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. 2 ed. São Paulo: Unesp, 2011.

6 CERRI, Luis F.; BONIFÁCIO, Selma de F. O Ensino da História e as Histórias em Quadrinhos: algumas considerações. In.: Anais do VI EDUCERE, Congresso de Educação da PUCPR, Curitiba: Champagnat, 2006, p. 3443.

Page 162: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

161

eles deturpariam a mente de crianças e jovens e acabaram por ser considerados ameaça a uma formação moral saudável.7

Mas, qual a relevância do uso deste tipo de produção textual para o ensino de História? Uma leitura destes textos permite perceber que pululam diferentes experiências as quais podem fortalecer a construção de outros olhares históricos sobre a Grande Guerra. Igualmente, muitos dos estudos críticos tendem ou tenderam a denunciar as formas da opressão existentes no passado e no presente, deixando, porém, de enfatizar a importância dos relatos sobre os pormenores, dos sopros de existência como exemplificado pelos personagens Gen e Myabe. Sobre as pequenas narrativas, Foucault considera:

não posso me impedir de pensar em uma crítica que não procurasse julgar, mas que procurasse fazer existir uma obra, um livro, uma frase, uma ideia. Ela acenderia fogos, olharia a grama crescer, escutaria o vento e tentaria apreender o voo da espuma para semeá-la. Ela multiplicaria não os julgamentos, mas os sinais da existência, ela os provocaria, os tiraria de seu sono. Às vezes, ela os inventaria? Tanto melhor, tanto melhor. A crítica por sentença me faz dormir. Eu adoraria uma crítica por lampejos imaginativos. Ela não seria soberana, mas vestida de vermelho. Ela traria a fulguração das tempestades possíveis.8

Nesse sentido, o texto literário dá vida, faz existir e traz configurações que contornam e conformam o objeto sem esquadrinhamentos conceituais. Também abre portas para novos acontecimentos interpelados pelas subjetividades, haja vista, por exemplo, o posicionamento dos personagens em relação ao poderio militar japonês e americano, o qual não passa incólume nas narrativas. O discurso de ambos os mangá Gen, Pés Decalços e Zero Eterno nos mune de um olhar atento ao breve, ao minúsculo e àquilo que é sensível às singularidades da experiência e das diferenças humanas.

7 Cf. MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. 3 ed. São Paulo, SP : Brasiliense, 1994.

8 FOUCAULT, Michel. Le philosophe masqué. Dits et Ecrits. v. II. Paris: Gallimard, 2001, p. 925..

Page 163: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

162

Para se desenvolver essas idiossincrasias é necessário trabalhar as histórias em quadrinhos por meio de uma metodologia capaz de reunir a cultura histórica do Japão e as ideias que os alunos irão desenvolver com os conteúdos abordados. Na medida em que a narrativa histórica deságua numa aprendizagem de consciência histórica dos alunos, problematizando-os a respeito da existência e promovendo a interconexão com uma cultura diversa, o ensino de História alcançará seu objetivo metodológico:

para que haja certo grau de plausibilidade no uso de histórias em quadrinhos com temas históricos torna-se necessário, além do conhecimento de sua linguagem específica enquanto documento produtor de evidências históricas, o confronto entre as narrativas históricas gráficas que já seguem uma estrutura fundamentada na epistemologia da História. Possivelmente este confronto narrativo permitirá a potencialização, nos estudantes, da capacidade de narrar historicamente por meio das histórias em quadrinhos com temas históricos.9

Através da problematização das subjetividades, para além dos estudos psicológicos e ou psicanalíticos, questionamos as práticas por meio das quais os indivíduos se constituem em relação aos códigos morais, crenças, valores, disposições éticas, emoções e diferentes sentimentos. Nesse sentido, Foucault observa que a subjetividade é fruto de vários elementos sociais sendo assumida e vivida pelos indivíduos em suas existências particulares. Para o autor, a palavra pode ser entendida como a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, através do qual ele se relaciona consigo mesmo.10

Nessa questão das subjetividades as obras Gen Pés Descalços e Zero Eterno também desenvolvem conceitos de cidadania e identidade nacional, pois através dos personagens, os textos reportam-se as

9 FRONZA, Marcelo. A Intersubjetividade e a Verdade na Aprendizagem Histórica de Jovens Estudantes a partir das Histórias em Quadrinhos. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012, p. 8-9.

10 FOUCAULT, M. A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade. In: MOTTA, M B. da (org.). Ditos e Escritos II e V. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2004, p. 236.

Page 164: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

163

construções históricas da guerra no Pacífico e das relações de poder envolvendo o comando militar, sendo que tais questões também são relevantes à nação e ao sentimento nacional japonês. Daí seu sucesso editorial.

Estas histórias em quadrinhos inserem-se nas novas tendências do ensino e pesquisa, ou seja, em outras possibilidades de se narrar e reconstruir uma história tão distante e também esquecida. Mas de onde vem essa produção literária? Os mangás são tributários do teatro de sombras japonês, conhecido como Oricon Shohatsu. Este tipo de teatro remonta ao período feudal do Japão e, por meio de suas encenações, artistas viajantes contavam histórias tradicionais do país.11

Devido à popularidade destas histórias, aos poucos, elas foram sendo registradas em rolos de papel e tecido contendo o texto e a ilustração. Com os avanços tecnológicos o processo da xilogravura12 e da litogravura13 foi perdendo espaço para os jornais e revistas, garantindo acesso de grande parte da população a estes textos. Sua expansão ocorreu no início do século XX, sendo impressas no formato de livros e em papel jornal, o que ampliou o número de leitores no Japão.

Após a Segunda Guerra Mundial, os mangás receberam incentivos governamentais através do Plano Marshall, pois foram entendidos enquanto recurso político e ideológico. Na década de 1980, Marc Ferro já observava a relação entre os meios de comunicação e manipulação de uma versão única dos fatos históricos em duas obras A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação, de 1983, e A história vigiada, de 1989.14

11 Cf. LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá. Revista USP, São Paulo, n. 52, p. 176-188, 2002.

12 De acordo com o Dicionário Aurélio, xilogravura é uma gravura aberta na madeira, ou seja, corresponde a arte de gravar em madeira. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/xilogravura. Acesso 13 de fevereiro de 2018.

13 De acordo com o Dicionário Aurélio, litografia corresponde à arte de desenhar e escrever em pedra para, a partir deste processo, obter reproduções no papel. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/litografia. Acesso em: 13 de fevereiro de 2018.

14 Cf. FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989; FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação.

Page 165: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

164

A influência dos quadrinhos vindos dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, e também das charges e outros cartuns influenciaram os artistas japoneses, chamados de mangakás, e assim os personagens que compõe o mangá adquiriram características específicas como olhos grandes; queixo pontiagudo e arredondado; além disso, não há regra fixa sobre o número de quadrinhos para cada página. Um dos artistas representativos desta arte foi Osamu Tezuka (1928-1989), responsável por criar histórias como Astro Boy e a Princesa e o Cavaleiro. Mesmo sendo traduzidos para a cultura ocidental, os mangás são lidos de trás para frente assim como da direita para a esquerda e geralmente há uma página explicitando isso ao leitor.

As informações trazidas até aqui revelam o impacto que o mangá causou na população nipônica, vendendo milhares de exemplares em todos os lugares, com vários gêneros e para todas as idades, tornando-se um sucesso em todo o país. Por conta desses ajustes, no século XIX, os quadrinhos com moldes europeus foram trazidos para o Japão através de Charles Wirgman do jornal Japan Punch. Posteriormente, George Bitot, também trouxe essa arte para a revista Tobae.15

Por intermédio de uma linguagem informal, utilizando de onomatopeias e balões que extravasam as páginas dando voz aos personagens, o mangá consegue revitalizar o ensino de História, mais precisamente da história contemporânea, como pode ser observado por meio da utilização dos mangás Zero Eterno e Gen Pés Descalços.

Quanto ao uso das onomatopeias16, sua origem está ligada diretamente com o aparecimento da televisão. Anteriormente nos quadrinhos, os autores adicionavam símbolos através dos quais expressavam uma ação (gotas caindo do rosto de um personagem representavam calor ou medo, por exemplo) a fim de trazer mais autenticidade para a história narrada. Mas o advento dos desenhos

São Paulo: IBRASA, 1983.15 Cf. LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá... Op. cit.16 De acordo com Luyten onomatopeia, (do grego onomatopoiía), significa

“imitar, reproduzir, interpretar sons e barulhos usando o sistema gráfico escrito que cada língua oferece”. Cf. Ibidem, p. 179.

Page 166: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

165

animados, através dos quais as ações eram representadas de forma mais, fez com que os artistas que produziam mangás sentissem a necessidade de dinamizar seu trabalho. Assim, ocorreu a introdução das onomatopeias nas histórias, oferecendo um novo olhar sobre aquela arte, fazendo o leitor imaginar o som daquela cena conforme a sua imaginação.

Para Luyten, o uso da onomatopeia enquanto recurso tornou-se um dos elementos que contribuíram para a identificação dos quadrinhos enquanto tal, tornando-se um de seus elementos específicos.17 Com isso formou-se a trilogia simbólica dos quadrinhos.18 Neste sentido, a autora nos reporta a visão de Luis Gasca:

quando os fonemas de uma palavra descrevem ou sugerem o objeto ou a ação que significam, estamos diante de uma onomatopeia. […] Para aumentar sua expressividade, as onomatopeias dos comics receberam com frequência um tratamento gráfico privilegiado, de grande visibilidade, tamanho e relevo plástico de modo que não foi possível eliminá-las das vinhetas nas traduções dos comics exportados dos Estados Unidos que contribuíram decisivamente para universalizar muitas onomatopéias de origem inglesa.19

As onomatopeias nas histórias em quadrinhos americanas apresentam um maior número de códigos sintéticos comparado ao contexto francês e espanhol. Estes códigos estão ligados diretamente ao fonema da língua: no inglês, por exemplo, alguns sons representam coisas bem específicas às quais estão unidos diretamente quando da cena demonstrada no quadrinho. Para Luyten:

assim, algumas onomatopeias têm a mesma tradução linguística que o som que elas expressam. De acordo com isso, a palavra slam, por exemplo, tem seu significado como um ato de bater a porta. Quando aparece nos quadrinhos, slam significa uma porta sendo fechada com energia. Seguindo esse

17 Cf. LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá... Op. cit.18 GAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos: linguagem e semiótica. São Paulo:

Criativo, 2014, p. 155.19 GASCA apud LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá...

Op. cit., p. 179.

Page 167: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

166

exemplo, há muitos outros como: crack (tradução: quebrar, arrebentar; nos quadrinhos significa objeto partindo-se); sniff (aspirar audivelmente pelo nariz; nos quadrinhos, fungar); splash (espirrar, esguichar; nos quadrinhos, pessoa ou objeto caindo na água); gulp (tragar, engolir, devorar, sufocar; nos quadrinhos, engasgar). Portanto, nas histórias em quadrinhos, essas palavras conservam seu significado somente como um signo visual, isto é, elas se tornam apenas uma convenção na linguagem quadrinizada que pode ser internacionalmente reconhecida em seu contexto.20

Em cada idioma, a onomatopeia tem uma característica distinta, gerando vários arquétipos de histórias em quadrinhos. No Japão, as diferenças para com os quadrinhos ocidentais “vão desde os aspectos puramente linguísticos até os visuais”.21 Nos mangás os níveis da fala estão diretamente ligados as questões de respeito e deferência. Para Luyten, “isso tem a função de amenizar todas as possíveis situações de atrito social, ou então para demonstrar delicadeza e respeito a determinados status socialmente aceitos de maneira geral e expressos principalmente através de diferenças na forma verbal.” .22 Na língua nipônica são tantas as variações onomatopaicas que houve a necessidade de criação de dicionários especializados sobre o tema. Luyten informa sobre o assunto:

segundo um deles, A Practical Guide to JapaneseEnglish Onomatopoeia & Mimesis, de 390 páginas, com exemplos e muitas explicações, o termo onomatopeia é definido da seguinte forma: ‘São palavras que imitam os sons feitos por seres animados ou inanimados como o riso de uma pessoa (uma gargalhada), sons de animais (coaxar de um sapo), um objeto quebrando ou batendo’.23

No Japão existem duas categorias diferentes de onomatopeias: giseigo, que são onomatopeias de vozes; e giongo, que

20 LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá... Op. cit., p. 180.21 LEITÃO, Renata Garcia de Carvalho. Representações dos sons nos mangás.

In.: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo; CHINEN, Nobu. Intersecções acadêmicas: panorama das 1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos. São Paulo: Criativo, 2011, p. 54.

22 LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá... Op. cit., p. 180.23 Ibidem, p. 181.

Page 168: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

167

imitam sons tais como o um bater de sino, por exemplo. Por outro lado, há a inclusão de uma nova categoria chamada de mimeses, que é definida como

como palavras que expressam, em termos descritivos simbólicos, os estados ou condições de seres animados ou inanimados, assim como mudanças, fenômenos, movimentos, crescimentos de árvores e plantas na natureza.24

Neste campo novo existem postas mais duas categorias: gitaigo, significando aparência da natureza e gijogo, trazendo as emoções humanas ou sentimentos. Tanto quanto nas três formas de línguas escritas no Japão, essa combinação permanece harmoniosa nos mangás, trazendo um sentimento único ao ler uma obra, através do qual tudo se torna imersivo para o leitor desfrutar da melhor maneira possível.25

Esse equilíbrio estético da arte é rompido quando o mangá é traduzido para outra língua, tirando as interatividades criadas pelas onomatopeias japonesas, pois apenas naquele idioma a cena funciona com o som singular da realidade nipônica. Com isso, de acordo com Lyuten, algumas coisas podem ficar sem sentido:

a grande diferença entre o estilo (a forma) ocidental de representar os sons e a forma japonesa é que no mangá a onomatopeia está tão integrada na estrutura do quadrinho que lhe dá um especial efeito visual harmônico e estético. Há uma harmonia perfeita entre o desenho das personagens, o cenário e as onomatopeias expressas no silabário em katakana. Às vezes é difícil distinguir – para um olho não acostumado à leitura japonesa – qual é um e qual é o outro. É o que eu designo de a estética do som.26

Luyten também explica sobre a importância dos quadrinhos em sala de aula:

ao contrário do que muitos pedagogos apregoam, os quadrinhos exercitam a criatividade e a imaginação da criança quando bem utilizados. Podem servir de reforço à

24 LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá... Op. cit., p. 181.25 Cf. Ibidem.26 Ibidem, p. 181.

Page 169: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

168

leitura e constituem uma linguagem altamente dinâmica. É uma forma de arte adequada à nossa era: fluida, embora intensa e transitória, a fim de dar espaço permanente às formas de renovação.27

A citação acima reforça as possibilidades do uso do mangá enquanto ferramenta pedagógica, enriquecendo o estudo de História em sala de aula. Vemos que esse material, além de ter ótimo aproveitamento no ensino, estimula a criatividade do estudante, fazendo-o aprender de forma mais dinâmica e divertida. Por mais que o mangá não represente temas históricos seus leitores se envolvem com a leitura para, a partir dela, construir suas histórias, juntando elementos verídicos com o intuito de moldar o universo em que a história se passa. Enquanto recurso aditivo, os quadrinhos podem ser utilizados de forma interdisciplinar conforme nos alude Luyten:

em virtude de aceitação e do uso generalizados, as histórias em quadrinhos foram introduzidas em livros didáticos como recurso adicional à aprendizagem. Passaram a ser instrumentos de ensino para adultos e, principalmente para crianças. E tratam de assuntos os mais diversos, como Matemática, Comunicação e Expressão, Ciência, Físicas e Biológicas, História, Moral e Civismo, Religião e outros temas de interesse da escola.28

Essas histórias em quadrinhos podem aumentar consideravelmente o interesse dos estudantes no aprendizado sobre determinada matéria, porque são dinâmicas, com várias imagens que chamam a atenção de leitor. Entretanto, devem ser aplicadas como auxiliar e não como substituto para materiais como o livro didático. Também é preciso observar que a inserção desse quadrinho pressupõe o preparo adequado e o conhecimento prévio, para que a obra não passe apenas como um chamariz e não um material pedagógico concreto.

Segundo Viana, os mangás têm tudo que é necessário para tornarem-se um excelente apoio pedagógico em sala de aula.29

27 LUYTEN, Sonia M. Bibe. O que é História em Quadrinhos? São Paulo, 1985, p. 8.

28 Ibidem, p. 55.29 Cf. VIANA, Lázaro Rennan de Sousa. O uso do mangá como material de

Page 170: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

169

Eles podem ser aplicados de várias formas: seminários, pesquisas, produções escritas, etc. Sua aplicabilidade dependerá do quanto o professor é capaz de explorar a obra e suas mais variadas interpretações sobre a História que ela abrange.

Mangá Zero Eterno e Gen Pés Descalços.Ambos os mangás analisados neste capítulo, estão

ambientados no Japão cujo contexto histórico reporta a Segunda Guerra Mundial. Sobre o contexto especifico no Pacífico, essa guerra começou na Ásia em 1937 e atingiu de forma diferenciada as diversas sub-regiões do continente asiático.

O Japão da Revolução Meiji alijou do poder político o regime considerado feudal do shogunato Tokugawa. No início desse processo, o país apresentava-se isolado no cenário internacional devido efeitos dos Tratados Infames de comércio os quais comprometiam o desenvolvimento econômico do Japão. Após 1868 uma nova elite assumiu o país prometendo reformas econômicas, aceleração da industrialização e a constituição de uma armada forte. Esse processo foi conduzido pelos zaibatsu, correspondentes aos grandes monopólios econômicos. Com isso, o Japão expandiu-se pela Ásia guerreando com a China em 1894 e com a Rússia em 1904 alcançando algumas vantagens territoriais e econômicas.30

O Japão não teve uma participação expressiva no contexto da I Guerra Mundial, mas declarou guerra a Alemanha e invadiu militarmente a China ocupando possessões que pertenciam aos germânicos. Com o final da guerra, o Japão enviou suas pretensões ao Tratado de Versalhes e a Conferência de Washington. Estas foram recusadas e assim iniciava as rivalidades entre EUA e Japão. Para os japoneses um acordo com

ensino de História do Japão: Uma análise da veracidade na obra Rurouni Kenshin. Monografia (Trabalho de Conclusão de curso de Literatura em Letras-Japonês). Departamento de Línguas Estrangeiras da UnB, Brasília, 2013

30 Cf. RODRIGUES, Gabriela. O conflito na Ásia. In.: PADROS, Enrique; RIBEIRO, Luis D. T.; GERTZ, René. Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: Editora Folha da História, 2000.

Page 171: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

170

os norte-americanos representava sua subordinação.31 Após a I Guerra Mundial o Japão obteve alguns benefícios como o fornecimento de produtos para a Europa desabastecida.

O Japão intencionava dominar grande parte da Ásia para obter matérias primas e alimentos, escoar produtos industrializados bem como a formar um espaço vital de defesa para seus interesses imperialistas na região. O espaço vital era concebido a partir das premissas do geógrafo Ratzel32. O grande atraso no desenvolvimento econômico capitalista japonês em relação aos moldes de alguns países no ocidente serviu de mote para novos rumos na política do país. Tal conceito foi fundamental diante do contexto histórico japonês, que havia acabado de passar pelo seu processo de modernização e necessitava de uma base para justificar e se afirmar enquanto Estado, através de um processo de crescimento, expansão e dominação capitalista.

Com a grande depressão de 1929 no Japão fortaleceram-se setores nacionalistas conservadores (exército e capitalistas monopolistas), os quais tinham interesses imperialistas. Nesse contexto, os japoneses invadem a China em 1937 ocupando a cidade de Nanquin, capital do país e sede do governo. Essa invasão chinesa pelo Japão deixou entrever um modelo de fascismo nipônico.33 Segundo Leandro Konder o sistema procurou se fortalecer durante a implantação do capitalismo monopolista de Estado favorecendo a concentração de capital.34 Quanto as demais características deste modelo Konder expõe que:

31 Cf. RODRIGUES, Gabriela. O conflito na Ásia. In.: PADROS, Enrique; RIBEIRO, Luis D. T.; GERTZ, René. Segunda Guerra Mundial... Op. cit.

32 Ratzel que foi um estudioso do Estado moderno, cuja existência se consolidava na defesa e expansão do seu território. Para justificar o imperialismo elaborou o conceito de espaço vital, segundo o qual haveria condições espaciais e naturais para a manutenção e consolidação de alguns Estados modernos. Ver: MOREIRA, Ruy. O que é Geografia. São Paulo : Brasiliense, 1990, p. 72.

33 O fascismo é aqui entendido como um sistema autoritário de dominação que surge na fase imperialista do capitalismo e não foi exclusivo de países como a Itália e Alemanha.

34 Cf. KONDER, Lenadro. Introdução ao Fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 1997.

Page 172: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

171

é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara ‘modernizadora’ guiada pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório.35

Seguindo tais pressupostos, destacam-se no Japão as ideias de superioridade racial e de pureza da raça, a valorização das virtudes militares, a forte hierarquia, o culto ao imperador, dissolução dos partidos e fim dos sindicatos. Porém, o fascismo japonês também tendia a revelar aspectos de continuidade com a cultura milenar do país na qual não havia uma política de terror e uma doutrina de massa tal qual no fascismo alemão. Segundo Moore, o fascismo precisava ser analisado quando associado ao desenvolvimento capitalista:

o grande negócio necessitava do fascismo, do patriotismo, do culto ao imperador e do militarismo, tal como o exército e os patriotas necessitavam de que a grande indústria levasse a cabo o seu programa político.36

O grande negócio visava a ação militar imperialista do Japão que teve continuidade com o ataque a base de Pearl Harbor no Havaí e em 1942 no Pacífico. Enquanto potência inimiga da China (que era, na época, aliada dos EUA), o Japão passa por boicotes econômicos e embargos comerciais. Até 1940, o país consegue resistir aos interesses dos Aliados através de pactos com a Alemanha e Itália.

Os interesses imperialistas em choque empurravam o Japão para uma guerra com os EUA principalmente após o ataque a base militar de Pearl Harbor. Sabe-se que não era uma investida surpresa para os norte-americanos e sim serviu para conformar a opinião pública dos EUA em relação a participação do país na guerra.37 Após vitórias japonesas em 1942, a situação mudou a partir do segundo

35 KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 53.

36 MOORE apud Cf. RODRIGUES, Gabriela. O conflito na Ásia. In.: PADROS, Enrique; RIBEIRO, Luis D. T.; GERTZ, René. Segunda Guerra Mundial... Op. cit., p. 182.

37 Cf. PADROS, Enrique; RIBEIRO, Luis D. T.; GERTZ, René. Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: Editora Folha da História. 2000.

Page 173: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

172

semestre desse ano e o país se voltou para a defesa interna. O Japão não conseguiu se reestruturar para a guerra com os EUA, pois suas fontes de matérias-primas estavam fora da ilha. Isso dificultava as comunicações e intercâmbios japoneses devidos ao controle marítimo dos EUA naquela região.

A partir de 1944 somam-se os fracassos militares japoneses com várias vitórias americanas em Iwo e Okinawa (territórios do Japão).38 A resistência nipônica se compunha também pelos kamikazes conhecidos como pilotos suicidas e isto serviria como argumento para os EUA lançar as duas bombas atômicas sobre o país. Tratou-se de um conflito em que a tecnologia e a capacidade de reconversão industrial revelaram a capacidade e superioridade dos norte-americanos no Pacífico.

No romance Zero Eterno (Eien no Zero no original) apresenta-se a história dos kamikazes. Este texto foi publicado em 2006 por Naoki Hyakuta e tornou-se um fenômeno editorial no Japão. O romance virou um mangá através da arte de Souichi Sumoto. No Brasil foi publicado pela editora JBC em cinco volumes. A adaptação para o cinema em 2013, levou a liderança das bilheterias do Japão com mais de 8 bilhões em arrecadação. Em 2015, a trajetória de Kentaro Saeki em busca da história de seu avô kamikaze foi adaptada para a TV, em uma minissérie de três capítulos.

Na trama narra-se a história de Kentaro Saeki, um jovem de 26 anos que sente sua vida estagnada. Ele fora reprovado no Exame Nacional de Advocacia, e com isso o rapaz começa a buscar uma nova motivação de trabalho e também acadêmica. A mudança ocorre quando sua irmã Keiko o contrata para pesquisar quem foi Kyuzo Miyabe, avô de ambos que batalhou nos céus da Guerra do Pacífico, pilotando um caça Mitsubishi A6M Zero, e morreu em missão pelo Tokkotai, a esquadra de pilotos suicidas durante a Segunda Guerra Mundial.

Quanto ao autor do mangá Gen Pés Descalcos, Keiji Nakazawa sua relação com a II Guerra Mundial é mais complexa pois ele, viu seu pai e dois irmãos morrerem no dia 06 de agosto de 1945

38 RODRIGUES, Gabriela. O conflito na Ásia... Op. cit., p 185.

Page 174: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

173

na cidade de Hiroshima. Sua mãe e irmã pereceram depois em razão da radioatividade. O autor, diante das ambiências de guerra, do pós-guerra e das agruras experenciadas, decide não olvidar os aspectos históricos desse processo, e transforma-os em um novo tipo de recurso a ser utilizado para “contar” a história. O mangá em questão é parte de sua vida e da vida de milhares de japoneses.

A obra Gen Pés Descaços (Hadashi no Gen) foi publicada de 1973 a 1986 na Weekly Shonen Jump, revista japonesa que vendia, em média, 1,6 milhões de exemplares semanalmente. Segundo Yokota, a grande quantidade de cartas dos leitores endereçadas para Gen também são referências preciosas do impacto do mangá. Logo o título se estabeleceu como um mangá de sucesso, conforme atesta o jornalista Takashi Yokota e então de história descartável em uma revista semanal, a obra foi republicada no formato encadernado.39 Posteriormente o quadrinho foi inserido como material didático nas escolas japonesas, além de ter virado filme e anime em 1976. Voluntários do Project Gen se organizaram para a tradução em vários idiomas. Recentemente a editora Choubunsha revelou que a obra vendeu mais de 10 milhões de exemplares e foi traduzida para diversos países.

O mangá chegou no Brasil entre 2000 e 2001 pela Conrad Editora com os quatro volumes originalmente traduzidos pelo Project Gen para o inglês. A editora relançou a obra em sua versão completa com dez volumes pela tradução do japonês. Este mangá também se caracteriza pelo modo de condução da trama ser parecido com muitos romances históricos40, cujas histórias também ocorrem no tempo presente, com muitos diálogos, e com trechos de flashback. Embora a saga seja extremamente longa, contando com quase 2 mil páginas, as poucas palavras permitem uma rápida leitura.

Uma das características em comum aos dois mangás é o uso recorrente de emoções e ações exageradas, páginas inteiras com onomatopeias e imagens de uma só cena que ocupam toda a página. No mangá Gen Pés Descalços e Zero Eterno a violência é recorrente

39 Cf. NAKASAWA, Keiji. Gen Pés Descalços. v. 2. Trad. DrikSada. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2011, p. 2.

40 O conceito de romance histórico aqui utilizado segue a premissa de G. Lukács.

Page 175: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

174

em várias páginas. Segundo Spiegelman a violência é comum nos quadrinhos japoneses, mas não dista dos produtos estadunidenses.41

É comum, ao longo desses mangás repetição de palavras e signos que reproduzem esse contexto de violências cotidianas, caracterizando mais umas das estruturas dos quadrinhos por meio da quebra de objetos, som de batidas, espirros, socos, etc. Os primeiros quadrinhos no Japão não possuíam essa arte. O simbolismo também é característico do mangá japonês. Em Gen aparece o trigo e o sol como símbolos de vida e instrumentos que dão o ritmo a história de Nakazawa do começo ao fi m da história.

Imagem 01: Trigo no simbolismo da vidaImagem 01: Trigo no simbolismo da vida

Fonte: NAKASAWA, 2011, vol. 10, p. 256.

O trigo enquanto símbolo da vida alude que o personagem Gen também resista as agruras da II Guerra Mundial cujo sofrimento permita que “ele cresça alto e resistente” conforme as palavras de seu pai. A imagem de Gen observando o pisoteamento do trigo corroboram para que ele lute pela sua vida e de seu país. O sol nascente na primeira imagem, também traz um simbolismo que remete a possibilidade de reconstruir o Japão sob novas perspectivas, sobretudo sem guerras.

41 NAKASAWA, Keiji. Gen Pés Descalços. v. 1... Op. cit., p. 1.

Page 176: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

175

De acordo com Cerri e Bonifácio, as histórias em quadrinhos caracterizam-se pelo uso de dois elementos comunicacionais, ou seja, a imagem e a escrita e possuem também as seguintes características:

ao limitar e congelar uma ação que, na realidade, é ininterrupta, o artista exercita a habilidade de narrar uma história com vários segmentos que, somados, fornecem uma estrutura narrativa completa. Desse modo, podemos inferir que os quadrinhos constituem uma linguagem, sobretudo interativa, pois precisa capturar e conduzir a atenção do leitor, fazendo com que o autor imprima e dite as regras da sequência narrativa. Além desses aspectos, há outros elementos referentes à linguagem dos quadrinhos, como o uso de balões e onomatopéias. Ao tomarmos a escrita como foco de análise, podemos afirmar que um recurso fundamental e marca registrada dos quadrinhos é o uso dos balões, que vêm a caracterizar a presença das emoções, pensamentos e diálogos nas histórias.42

No caso específico dos mangás analisados neste trabalho, observamos que os autores fazem uso expresso dessas figuras para apresentar a forma como as personagens interagem. Através dos balões, das onomatopeias e dos desenhos existe uma aproximação entre os personagens, os acontecimentos ao redor deles e o público leitor, o qual é trazido para a história podendo participar dela através desses elementos que permitem a sua livre interpretação.

Zero Eterno e Gen, Pés Descalços são mangás que abordam um período importante da história da humanidade o qual, pelo alcance do conflito, possui tantas fontes e formas de se contar. Por isso, nos mangás as tramas passam a capturar a atenção e aos poucos a empatia dos leitores para com o enredo e o roteiro.

O ensino de história também proposita que lapidemos a memória com finalidade de enveredarmos por práticas inventivas e libertárias em relação ao presente. Entende-se que não há uma metodologia única em relação ao uso do mangá no ensino de história. O planejamento ancorado na criatividade dos professores dará o mote

42 CERRI, Luis F., BONIFÁCIO, Selma de F. O Ensino da História e as Histórias em Quadrinhos... Op. cit., p. 3446.

Page 177: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

176

para vencermos a opacidade de um ensino enfadonho e desconectado dos anseios geracionais. Isto porque, de acordo com Todorov:

ela [a literatura] nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano.43

A introdução do mangá no ensino de história oportuniza o conhecimento de outra forma organizacional de uma obra e consequentemente a imersão em outros códigos culturais, daí o despertar da curiosidade. Também se operacionaliza seu uso com algum conteúdo em questão e anelante a diversificação de linguagens no ensino de história. Da compreensão do possível conteúdo do mangá a temas correlatos, ao uso como uma fonte da qual emergem análises variadas sugestiona-se a criação de um novo mangá pelos alunos em uma tarefa grupal, mas atinente às inquietações do tempo presente.

Neste sentido, acompanhamos as prerrogativas propostas por Todorov, o qual preconiza que a literatura pode servir como um instrumental para ajudar os alunos a compreender melhor o cotidiano no qual vivem e interagem, fazendo-o de forma mais densa e mais eloquente.44

Considerações Finais Gen, Pés Descalços e Zero Eterno são mangás singulares em

relação às demais publicações porque abordam um período nefasto da história da humanidade trazendo uma nova forma de relato sobre o fato ocorrido, através de um olhar diferente, praticamente um olhar “de dentro” da história, já que os personagens principais sofrem de forma direta as consequências de uma ação que não atenta para os pequenos sopros de narrativa, conforme preconizado por Foucault.45

43 TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009, p. 24.44 Ibidem.45 Cf. FOUCAULT, M. A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade...

Op. cit.

Page 178: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

177

Os horrores desse período de guerra devem ser reconstruídos com novas narrativas históricas. Basta para isso pensar na frase inicial que marca o primeiro volume do mangá Zero Eterno e que diz: “não é um passado tão distante. Apesar disso... é uma era que não mais vive em nossas memórias”.46

Nesse sentido, as obras pretendem apontar os sentimentos, as subjetividades e as representações de quem viveu no período e sentiu a sua manifestação, tratando desses processos quase como um testemunho, uma memória que não deve ser esquecida. Daí a relevância das subjetividades na história. Os mangás Zero Eterno e Gen Pés Descalços munem os estudantes de um olhar atento ao breve, ao minúsculo e aquilo que é sensível as singularidades da experiência e das diferenças humanas.

Por meio destes olhares é que podemos rever algumas abordagens dadas sobre personagens suicidas ou sobreviventes, pois seu conteúdo emocionante nos ensina muitas coisas. Nos quadrinhos brota nossa consternação ao conhecer os horrores da Grande Guerra, a atuação dos kamikazes e dos efeitos da bomba atômica.

Sobre as minúcias do discurso Nakasawa nos aufere que há uma tendência de entender que a bomba caiu, mas a palavra “caiu” é muito simples, ou seja, como se fosse uma chuva.47 Mas se entendermos que a bomba foi lançada denota-se responsabilidade e protesto contra governos como o japonês que durante o pós-guerra se omitiu de compensar as vítimas e suas famílias, sobretudo de Hiroshima e Nagasaki e os Estados Unidos que após a bomba e ocupação do Japão escondeu a realidade dos efeitos da bomba.

Em relação ao ensino de história urge interpelar novas metodologias que o tornem prazeroso e um elemento de construção de consciência histórica. Para Rüsen, o aprendizado histórico pode ser compreendido como um processo de construção de sentidos sobre a experiência temporal. Esse processo envolve diferentes dimensões

46 HYAKUTA, Naoki; SUMOTO, Souichi. Zero Eterno. v. 5. São Paulo: Editora JBC, 2015, p. 5.

47 NAKASAWA, Keiji. Gen Pés Descalços. v. 3... Op. cit., p. 3.

Page 179: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

178

das experiências de passado dos sujeitos no coletivo ou individual. Este autor ainda destaca que o aprendizado pode ocorrer através do desenvolvimento de três aptidões: experiência (capacidade de olhar o passado e diferenciá-lo do presente); interpretação (capacidade de reduzir diferenças); e orientação (interpretação do passado para a orientação no futuro.48

No mangá esses conhecimentos podem ser articulados para que o estudante compreenda o passado e o presente, projete questões para o presente e o futuro, sobretudo a perspectiva de um mundo sem guerras. Conforme o crítico de mangás Ishiko, hoje em dia os livros escolares pouco referenciam o contexto histórico e os efeitos da bomba. “Numa realidade assim, obras como estes mangás exercem importante função”.49

O mangá pode servir como um elemento para que o professor de história problematize a sua prática docente ao inserir um processo de ensino voltado para a interdisciplinaridade, fazendo par com os quadrinhos. Assim, seria possível comparar, por exemplo, a apresentação sobre as questões que envolvem a Segunda Guerra Mundial trazidas pelo livro didático (considerando-o como “história oficial”) e as questões apresentadas pelo mangá. Em que elas se correlacionam? Como elas podem ser interpretadas? Corroborando com Todorov a lógica seria observar a construção de processos dialógicos onde os seres humanos apresentar-se-iam como protagonistas da sua própria história, da sua própria narrativa.50

A inserção de um pouco de leitura prazerosa embora trágica, de ficção, de imaginação a exemplo deste mangá são possibilidades pelas quais pouco trilhamos no ensino de história. Se ainda há muitas indagações e também desafios em uma sociedade marcadamente caracterizada pelo uso constante dos meios de comunicação, principalmente pelas crianças e adolescentes, então essas linguagens

48 RÜSEN, Jörn. Experiência, interpretação, orientação: as três dimensões da aprendizagem histórica. In.: SCHIMIDT, Maria Auxiliadora, BARCA, Isabel, MARTINS, Estevão. Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. p. 79-91.

49 NAKASAWA, Keiji. Gen Pés Descalços. v. 3... Op. cit., p. 2.50 Cf. TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo... op. cit.

Page 180: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

179

do cotidiano possibilitam e, talvez, nos instiguem a reverter um ensino enfadonho e ir além dos limites dados na formação profissional e, assim, quiçá se aventurar na literatura quadrinizada japonesa.

Nesse sentido Gen, Pés Descalços e Zero Eterno configuram-se numa nova possibilidade de ensino de História Contemporânea, sobretudo daquela história posta no esquecimento tanto pelos orientais como ocidentais ou com versão única. Os inúmeros recursos visuais e a construção da linguagem dão novos contornos às experiências daqueles que viveram o contexto da guerra e delineia outras causas pelas quais se lutou.

Vale ressaltar conforme preconiza Barthes que o texto literário possui em si três grandes forças a serem exploradas pelos professores, a mathesis, a mimesis e a semiosis.51 No sentido proposto por este artigo, o mangá Zero Eterno e Gen, Pés Descalços permite que a literatura trabalhe nos interstícios da história propiciando um saber que diz algo sobre a história propriamente dita, mas muito sobre o ser humano, alvo essencial da subjetividade.

Referências Bibliográficas:BARTHES, Roland. A Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989.

CERRI, Luis F., BONIFÁCIO, Selma de F. O Ensino da História e as Histórias em Quadrinhos: algumas considerações. In: Anais do VI EDUCERE, Congresso de Educação da PUCPR, Curitiba : Champagnat, 2006, p. 3442-3454. Acesso em novembro de 2015.

DICIONÁRIO Aurélio. Xilogravura. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/xilogravura. Acesso: 13 de fevereiro de 2018.

DICIONÁRIO Aurélio. Litografia. Disponível em: https://dicionariodoaurelio.com/litografia. Acesso 13 de fevereiro de 2018.

EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. 2 ed. São Paulo: Unesp, 2011.

FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

51 Cf. BARTHES, Roland. A Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1989.

Page 181: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

180

FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação. São Paulo: IBRASA, 1983.

FOUCAULT, M. A Ética do Cuidado de Si como Prática da Liberdade. In.: MOTTA, M B. da (org.). Ditos e Escritos II e V. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

FRONZA, Marcelo. A Intersubjetividade e a Verdade na Aprendizagem Histórica de Jovens Estudantes a partir das Histórias em Quadrinhos. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012.

GAGNIN, Antonio Luiz. Os quadrinhos: linguagem e semiótica. São Paulo: Criativo, 2014.

HYAKUTA, Naoki; SUMOTO, Souichi. Zero Eterno. São Paulo: Editora JBC, 2015, 5 vol.

KONDER, Lenadro. Introdução ao Fascismo. São Paulo: Expressão Popular, 1997.

LUYTEN, Sonia M. Bibe. Onomatopéias e mímesis no mangá. Revista USP, São Paulo, n. 52, p. 176-188, 2002.

LUYTEN, Sonia M. Bibe. O que é História em Quadrinhos? São Paulo, 1985.

MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

MOREIRA, Ruy. O que é Geografia. São Paulo : Brasiliense, 1990.

NAKASAWA, Keiji. Gen Pés Descalços. Trad. DrikSada. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2011, 10 vol.

PADROS, Enrique; RIBEIRO, Luis D. T.; GERTZ, René. Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: Editora Folha da História. 2000.

RODRIGUES, Gabriela. O conflito na Ásia. In.: PADROS, Enrique; RIBEIRO, Luis D. T.; GERTZ, René. Segunda Guerra Mundial. Porto Alegre: Editora Folha da História. 2000, p. 177- 189.

RÜSEN, Jörn. Experiência, interpretação, orientação: as três dimensões da aprendizagem histórica. In.: SCHIMIDT, Maria Auxiliadora, BARCA, Isabel, MARTINS, Estevão. Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 79-91.

TODOROV, Tzvetan. A Literatura em Perigo. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

VIANA, Lázaro Rennan de Sousa. O uso do mangá como material de ensino de História do Japão: Uma análise da veracidade na obra Rurouni Kenshin. Monografia (Trabalho de Conclusão de curso de Literatura em Letras-Japonês). Departamento de Línguas Estrangeiras da UnB, Brasília, 2013

Page 182: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

181

O Espaço da África no Ensino de História: demandas sociais e políticas públicas para livros

didáticos.Mírian Cristina de Moura Garrido1

IntroduçãoO que conhecemos sobre a África? Quais são as imagens

que nos vem a mente quando pensamos nesse continente? Será que conseguimos, como ex-alunos, lembrar em que contextos e conteúdos África nos foi apresentada? Aos formados em História, qual foi o espaço do continente ao longo da sua formação? Qual o espaço da África na sua prática como professor?

O crescimento e fortalecimento dessas discussões estão diretamente ligados a oficialização de uma das mais antiga e unânime demanda do movimento negro contemporâneo2, isto é, a obrigatoriedade do ensino da História da África e dos afro-brasileiros. Consideramos que o decreto da Lei 10.639 em 2003 reconhece a legitimidade da demanda social, gera expectativas, amplia o consumo de obras sobre a temática, bem como, exige do Estado incentivos e reorganizações de diversas ordens.

1 Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista, UNESP/Assis. Desenvolve pesquisas sobre livros didáticos, identidade, biografias e afrodescendentes. Parte das reflexões apresentadas foram fomentadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) processo nº 2013/14210-7. Contato: [email protected].

2 O termo “movimento negro contemporâneo” é adotado respeitando a divisão proposta por Petrônio Domingues, para quem, a década de 1970 viu florescer um novo tipo de movimento negro, tendo sua visibilidade ampliada com a formação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, 1978, posteriormente renomeado para Movimento Negro Unificado. Cf. DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007. Para acessar os discursos de parte desses indivíduos indicamos, ainda, a importância de obras como a de: ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC-FGV, 2007.

Page 183: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

182

Incentivados por essas questões iniciais e pela responsabilidade do Estado na reparação histórica com um segmento social, apresentamos a seguir reflexões sobre como a temática “África” se apresenta como demanda social e sua presença nas políticas públicas educacionais contemporâneas.

O esforço envolve ângulos privilegiados para quem deseja compreender possíveis vias para inserção ou revisão de conteúdos no ensino. Não pretende, porém, esgotar possibilidades explicativas, pelo contrário, o texto deseja contribuir e fomentar novas abordagens e discussões.

O espaço do Ensino de África nos discursos do movimento negro.A demanda do ensino da História da África e do afro-

brasileiro surge, primeiramente, entre militantes da causa negra. Muitos desses, também parte dos quadros universitários brasileiros. Para ratificar a afirmação basta observar documentos e discursos produzidos por esses indivíduos.

Assim, a Carta Princípios do Movimento Negro Unificado, aprovada em 1982, apresentava:

RESOLVEMOS juntar nossas forças e lutar por:

- defesa do povo negro em todo os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais através da conquista de:

- maiores oportunidades de emprego;

- melhor assistência à saúde, à educação e à habitação;

- reavaliação do papel do negro na História do Brasil;

- valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização, folclorização e distorção;

- extinção de todas as formas de perseguição,exploração, repressão e violência a que somos submetidos;

Page 184: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

183

- liberdade de organização e de expressão do povo negro;3

Lélia Gonzalez, uma das vozes mais proeminentes sobre raça defendia que as:

[civilizações africanas] são omitidas no interior de uma sociedade como a nossa, que é constituída por cerca de 60% de descendentes de africanos. Desconhecemos totalmente a história das culturas e das civilizações africanas, e nos afirmamos num país europeu. [...] Não é com teorias e práticas pedagógicas que esquecem, que omitem a História das populações negras e indígenas no nosso país, não é com isso que se vai construir uma Nação.4

Intelectuais como Regina Pahim Pinto asseveravam:a educação está calcada nos valores do colonizador. A língua, os heróis, a história e mesmo a religião que lhes ensinam [aos alunos negros], não têm nada a ver com seu universo [...] a consequência mais grave desse processo de inculcação de novos valores [...] é a introjeção da sua inferioridade, da sua imagem negativa.5

A grosso modo, militantes e acadêmicos, afiançam que a educação brasileira está calcada na base de uma sociedade escravista, tendo tradicionalmente privilegiado posturas e conteúdos que pouco contribuem para a compreensão da formação da sociedade brasileira, bem como, de uma educação que valorize a auto identificação positiva da parcela negra da sociedade.

Em outros temos, se numericamente os afrodescendentes representam 54% da população brasileira, não se justifica a ausência da História da África no ensino regular. E nos referimos a uma história africana que apresente passado e presente; que seja capaz

3 GONZALÉZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982, p. 65-66.

4 Diário da Assembleia Nacional Constituinte – Suplemento ao n. 62. [7º Reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas deficientes e Minorias], p. 121-122. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/sup62anc20mai1987.pdf#page=1201987. Publicado em: 20 de maio de 1987.

5 PINTO, Regina Pahim. A Educação do Negro: uma revisão da bibliografia. Cadernos de Pesquisa Carlos Chagas, São Paulo. n. 62, p. 28, 1987.

Page 185: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

184

de revelar aspectos culturais, mas apresentar o desenvolvimento de conhecimento de ordens variadas; que ao optar por explicar um dado fenômeno não o faça adotando a perspectiva europeia, fazendo crer que processos endógenos se operam por mero efeito; que explore subjetividades, atitudes, e concepções de vida diversas e dentro de seus contextos de produção. Enfim, que rompa com presentismos, racismos, estereótipos.

Gostaríamos de ir um pouco além nesse raciocínio. Sabemos que a proeminência de conteúdos ligados a Europa foi uma opção ideológica e deliberada,6 as revisões nos conteúdos escolares, portanto, justificam-se uma vez mais, pela necessidade de ampliarmos os sujeitos históricos e nosso conhecimento de outras histórias possíveis.

Para reversão dessa realidade, militantes se articularam em entidades, organizações não governamentais, assessorias municipais e estaduais, marcaram presença no seio de partidos políticos, na discussão da Constituição Federal de 1988, e ocuparam Ministérios (caso da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade). Dessa ação política, no que tange a questão do ensino, conquistaram na Constituição de 1988 o reconhecimento no ensino da pluralidade na formação da sociedade brasileira (Art. 242, § 1º) e, anos depois, a introdução da História da África e do afro-brasileiro.7

África e Ensino nas políticas para livros didáticos.Com a aprovação da Lei 10.639/2003 o discurso do

movimento negro – em específico o que relaciona a necessidade de conhecer a história africana e afro-brasileira de forma positiva para uma auto representação positiva – ganha credibilidade e visibilidade.

6 Sobre a institucionalização da ciência e disciplina História no Brasil aconselhamos a leitura de: GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, p. 5-27, 1988.

7 Cf. GARRIDO, Mírian C. M. Nas constituições dos discursos sobre afro-brasileiros: uma análise histórica da ação de militantes negros e dos documentos oficiais voltados a promoção do negro brasileiro (1978 a 2010). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade Estadual Paulista, 2017b.

Page 186: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

185

Ao mesmo tempo, o Brasil operava o maior programa de compras de livros didáticos do mundo,8 e que, desde de 1995 (PNLD/1997), era responsável também pela avaliação desse produto.9 No que circunscreve o volume financeiro demandado pelo Programa vale, como esforço ilustrativo, observar as cifras dispendidas em 2017. No ano foram gastos 958.738.216,28 milhões de reais para compra de 118.740.638 exemplares de livros destinados ao ensino fundamental (os dois ciclos), para o ensino médio, a compra de 6.830.011 exemplares resultou no gasto de 337.172.553,45 milhões, totalizando para o ano de 2017 um investimento em compras de livros didáticos no total de 1.295.910.769,73 bilhão de reais. (Portal do FNDE, acesso em 20 dez 2017).

Com relação a avaliação dos livros didáticos, uma fonte bastante pertinente são os Editais de Convocação do PNLD. Os documentos constituem-se numa espécie de “regra do jogo”, nos quais estão discriminadas as condições de participação e características desejáveis e que implicam em aprovação e, potencialmente, compra dessas obras.

Para as reflexões operadas nesse texto, realizamos um levantamento dos Editais do PNLD – de diferentes níveis de ensino e gêneros didáticos – disponíveis no site do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, vinculado ao Ministério da Educação. No total, temos 25 Editais de Convocação distribuídos da seguinte maneira: (6 Editais/apenas 4 contemplam História) Ensino Médio; (4) Ensino Fundamental Ciclo II; (6) Fundamental Ciclo I; (3) Educação de Jovens e Adultos; (1) Alfabetização na Idade Certa, no âmbito do ciclo I do EF; (1) Campo, para escolas situadas ou anexas as áreas rurais, âmbito do ciclo I do EF; (2) obras complementares, também

8 Cf. CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. O mercado do livro didático no Brasil: da criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) à entrada do capital internacional espanhol (1985-2007). Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-graduação em Educação, PUC-SP, 2007.

9 As avaliações envolvem diversos aspectos de uma obra didática. Características como material utilizado na produção e formação profissional do(s) autor(es), por exemplo, constam entre as preocupações dos Editais de Convocação do PNLD. Nesse capítulo, porém, daremos ênfase às questões relacionadas ao conteúdo do livro didático presentes em alguns desses Editais.

Page 187: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

186

denominadas comumente de paradidáticos, ambos no âmbito do ciclo I do EF; (2) Dicionários de Língua Portuguesa.10

Os dados apontam que o PNLD tem atuado com maior intensidade no ensino fundamental ciclo I, portanto, com grande atenção para a alfabetização. Demonstram, ainda, que o público alvo e campos de atuação tem sido ampliado, assim, em 2013 (cujo edital foi publicado no ano de 201111) temos o primeiro PNLD – até o momento único – destinado exclusivamente às escolas das áreas rurais, por exemplo.

Por sua vez, a leitura das obras que serão analisadas e/ou adquiridas pelo PNLD e explicitada nos Editais, assinala, igualmente, mudanças na grade curricular. Assim, nos dois PNLD’s 2011 (ciclo II EF e EJA), foram aceitas inscrições de coleções já tradicionais para esse nível de ensino (Matemática, Português, Ciências, Geografia e História) somadas ao ensino de língua estrangeira (Espanhol e Inglês). O PNLD 2013 (ciclo I EF), por sua vez, inaugura o credenciamento de obras de História Regional e Geografia Regional. No âmbito do Ensino Médio, o PNLD 2015 traz a preocupação com análise das disciplinas de Matemática, Biologia, Física, Química, Língua Portuguesa, Línguas Estrangeiras (Inglês e Espanhol), Geografia, História, Sociologia, Filosofia e Arte – essa última, pela primeira vez para esse nível e incorporada no Ensino Fundamental ciclo II, no PNLD 2017.

Mas os apontamentos até aqui operados ainda pouco contribuem para a questão central desse texto, afinal, qual o espaço da África no ensino de história? Para tal, proponho a seguir analisar os Editais destinados a análise/compra de livros didáticos para o Ensino Médio já realizadas pelo PNLD.12

10 O número não representa a totalidade de avaliações realizadas pelo PNLD, apenas indica os disponíveis no site para análise. O fato, contudo, não invalida o esforço, graças a abrangência das edições acessíveis.

11 No geral, o Edital de Convocação do PNLD é publicado, aproximadamente, 2 anos antes da obra chegar nas escolas para consumo dos estudantes. Recebe, contudo, a nomenclatura do ano que circula, não o de publicação do Edital.

12 Trata-se apenas de um recorte. Em trabalho desenvolvido no mestrado o mesmo recorte foi operado, portanto, nos sentimos mais confiantes ao permanecer nesse nível de ensino.

Page 188: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

187

No total são quatro Editais de Convocação, referentes aos anos 2007, 2012, 2015 e 2018. Uma busca inicial foi realizada pelas palavras-chave “África”,13 “10.639” e “Parecer CNE/CP n°003 de 10/03/2004”. O resultado é o exposto na tabela:

Palavra-chave “África”

Edital Seção que menciona Texto do documento Pág.

Programa Nacional do Livro Para o Ensino Médio -

PNLEM - 2007

Critérios Comuns > Critérios

Eliminatórios

Todas as obras deverão observar os preceitos legais e jurídicos (Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n°10.639/2003, [...] o Parecer CNE/CO n°003/2004, de 10/03/2004 e Resolução n°1, de 17 de junho de 2004).

35

Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2012 -Ensino Médio

Respeito à legislação,

às diretrizes e às normas

oficiais relativas ao

ensino médio

(2) Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as respectivas alterações introduzidas pelas Leis n°10.639/2003, n°11.274/2006, n°525/2007 e n°11.645/2008;

19

(5) Resoluções e Pareceres do Conselho Nacional de Educação, em especial, o Parecer CEB n°15, de 04/07/2000, o Parecer CNE/CP n°003, de 10/03/2004 e a Resolução CNE/CP n°01 de 17/06/2004;

19

Critérios Eliminatórios para História > Manual do

Professor

(2) orienta o professor sobre as possibilidades oferecidas para implantação do ensino de história da África, da história e cultura afro-brasileira e das nações indígenas.

30

13 Na busca pela palavra-chave África, os Editais PNLD 2012 e 2015 apresentam uma ocorrência cada na área de Biologia. Consta em ambos: “divulga conhecimentos biológicos para a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos no contexto de seu pertencimento étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos” (PNLD2012, p.37; PNLD2015, 64). Contudo, não foram incorporadas na tabela por estarem fora do componente curricular discutido no texto, no caso, História. Ainda assim, mostra a pouca “aderência” da discussão nos diferentes disciplinas.

Page 189: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

188

Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2015 -Ensino Médio

Respeito à legislação,

às diretrizes e às normas

oficiais relativas ao

ensino médio

(2) Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, com as respectivas alterações introduzidas pelas Leis n°10.639/2003, n°11.645/2008 e n°11.525/2007;

40

Parecer CNE/CP n°003 de 10/03/2004 - Aborda assunto relativo às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana;

40

Critérios Eliminatórios

específicos para o

componente curricular História

Desenvolve abordagens qualificadas sobre a história e cultura da África, dos afrodescendentes, dos povos afro-brasileiros e indígenas, em consonância com as leis 10.639/2003 e 11.645/2008;

55

Critérios Eliminatórios

específicos para o

componente curricular História > Manual do Professor

(2) orienta o professor sobre as possibilidades oferecidas para implantação do ensino de história da África, da história e cultura afro-brasileira e das nações indígenas, considerando conteúdos, procedimentos e atitudes.

56

Page 190: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

189

Programa Nacional do Livro Didático PNLD 2018 -Ensino Médio

Respeito à legislação,

às diretrizes e às normas

oficiais relativas ao

ensino médio

b.1. Lei 10.639/2003 - obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”;

33

f.2. Parecer CNE/CP n°003 de 10/03/2004 e Resolução CNE/CP n°01 de 17/06/2014 - Aborda assunto relativo às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana;

33

Critérios Eliminatórios

específicos para o

componente curricular História

Desenvolve abordagens qualificadas sobre a história e cultura da África, dos afrodescendentes, dos povos afro-brasileiros e indígenas, em consonância com as leis 10.639/2003 e 11.645/2008, tratando esses sujeitos na sua historicidade e mostrando sua presença na contemporaneidade de forma positiva;

47

Critérios Eliminatórios

específicos para o

componente curricular História > Manual do Professor

(2) orienta o professor sobre as possibilidades oferecidas para implantação do ensino de história da África, da história e cultura afro-brasileira e das nações indígenas, considerando conteúdos, procedimentos e atitudes.

48

Fonte: Editais de Convocação PNLD’s 2007; 2012; 2015; 2018, organizado por Garrido.

O primeiro Edital, PNDL 2007, foi publicado no ano de 2005, portanto, próximo do decreto da Lei 10.639/2003 e do Parecer CNE/CP n°003 de 10/03/2004, que institui a Diretriz Curricular para as Relações Étnico-Raciais. Na mesma linha de raciocínio, para participarem em 2005 do processo, as obras precisariam já terem sua edição escrita e definida. Portanto, podemos atribuir a essa proximidade a limitada preocupação com temas relacionados a África, africanos e afro-brasileiros no Edital e nos livros didáticos

Page 191: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

190

aprovados.14 Mesmo assim, existe a menção a Lei e ao Parecer, fato que se repete nos outros três editais.

No Edital do PNLD 2012, além da instrução para observação da Lei 10.639 e Parecer CNE/CP n°003 de 10/03/2004, o documento apresenta como critério eliminatório que o manual do professor “oriente sobre as possibilidades oferecidas para implantação do ensino de história da África, da história e cultura afro-brasileira e das nações indígenas”.15 Consideramos que existe uma avanço, ao abordar instruções aos professores, mas uma orientação que não contribui diretamente para a renovação de conteúdos consagrados, afinal, ainda que a obra traga pouca – ou nenhuma – contribuição sobre os temas, ela não seria desclassificada por esse motivo, pois, a instrução é clara “oriente possibilidades” aos professores!

O leitor pouco habituado com a leitura de editais, em especial os de convocação do PNLD, poderá achar o texto monótono e inalterado. Mas essa é uma falsa impressão. Em pesquisa anterior, observamos que as alterações realizadas em editais subsequentes, no geral, buscam solucionar problemas identificados na avaliação anterior16. Portanto, ainda que pareçam poucas as alterações, elas são significativas, se comparadas em perspectiva.

Os dois últimos Editais vão ao encontro desse argumento. Em ambos permanece a instrução para o manual do professor, mas acrescido – desde o PNLD 2015 – que a orientação à eles deve ser efetivada “considerando conteúdos, procedimentos e atitudes”.17

14 A dissertação de mestrado “Escravo, africano, negro e afrodescendente” ratifica a informação. Cf. GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017a.

15 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para Inscrição no processo de avaliação e seleção de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático 2012 – Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010, p. 30.

16 Foi assim, por exemplo, que autores consagrados entre os professores deixaram de figurar nas listas de aprovação do PNLD, pois, o Edital de Convocação PNLD 2008, p.6, ítem 5.3.2.8 passou a exigir diploma do autor na área de formação.

17 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da

Page 192: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

191

Observe, não bastou indicar em 2012 que deveriam ser “orientado possibilidades”, foi necessário complementar quais seriam as ordens dessas possibilidades a serem observadas, no caso, “conteúdos, procedimentos e atitudes”.

Contudo, o mais significativo nos dois últimos editais está na incorporação de critério de eliminação relacionado ao livro regular – cujo destino é o estudante – no que tange conteúdo. Desta feita, determinam os Editais:

Desenvolve abordagens qualificadas sobre a história e cultura da África, dos afrodescendentes, dos povos afro-brasileiros e indígenas, em consonância com as leis 10.639/2003 e 11.645/2008.18

Desenvolve abordagens qualificadas sobre a história e cultura da África, dos afrodescendentes, dos povos afro-brasileiros e indígenas, em consonância com as leis 10.639/2003 e 11.645/2008; tratando esses sujeitos na sua historicidade e mostrando sua presença na contemporaneidade de forma positiva.19

Primeiro, observamos que a mesma lógica permanece no excerto, ou seja, editais subsequentes apresentam alterações que buscam aprimorar a avaliação e, consequentemente, os livros didáticos. Em segundo lugar, enfim, mais de dez anos depois da aprovação da lei, um Edital de Convocação do PNLD cobra alteração de conteúdo de livro didático. Ademais, se ambos indicam o desenvolvimento de abordagens qualificadas, o mais recente edital vai além, e aborda um

Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2015. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2013, p. 56; Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2018. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2016, p. 48.

18 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2015... Op. cit., p. 55.

19 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2018... Op. cit., p. 47.

Page 193: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

192

dos argumentos mais presentes dos que defendem a História africana e afro-brasileira: a necessidade de realizar esse estudo pela perspectiva desses sujeitos, de forma positiva e contínua.

A análise, porém, estaria incompleta se não levássemos em conta os Guias de Livros Didáticos do PNLD. Se os Editais são o princípio da relação editoras/governo/avaliadores o Guia é a ponta desse processo. Composto das resenhas dos livros aprovados nas avaliações, esses documentos podem desvendar, uma vez mais, as alterações nas obras didáticas. Desta feita, analisamos os Guias referentes aos Editais aqui apresentados, portanto correspondentes aos anos 2008, 2012, 2015 e 2018.20

Em 2008 foram aprovadas dezenove coleções, número que se repete em 2012 e 2015, mas baixa para treze em 2018. Se os números permanecem, as coleções, contudo, diversificam-se significativamente. Das dezenove coleções aprovadas e apresentadas no Guia do PNLEM 2008, apenas 6 constam entre as aprovadas no Guia do PNLD 2018.21 Destas, três coleções mudaram de editora, portanto, ainda que preservem autores são obrigados a alterar suas obras; as outras três coleções – aprovadas nas quatro edições do PNLD ensino médio – correspondem aos autores mais comprados no PNLD 2008.22

Ou seja, o primeiro, segundo e terceiro campeões de vendas em 2008 são, também, os únicos que permanecem aprovados em todas as edições do PNLD destinados ao ensino médio já realizadas e, possivelmente, bem quistos pelos professores.23 Dada a

20 Sobre as tramas que envolvem a feitura das Resenhas, conferir: ALVIM, Yara Cristina. O livro didático na batalha de idéias: vozes e saber histórico no processo de avaliação do PNLD. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.

21 A sigla PNLEM passou a ser suprimida graças a formulações internas do Programa, sendo universalizada a sigla PNLD para diferentes níveis de ensino.

22 As informações sobre quantidade de obras compradas e suas identificações foi disponibilizada para a pesquisadora no ano de 2010 pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, e foram sistematizadas e apresentadas na dissertação de mestrado de Garrido defendida em 2011 e publicada em 2017. Cf. GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente... Op. cit.

23 A compra dos livros didáticos é, segundo Edital PNLEM 2007, resultado da

Page 194: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

193

representatividade desses autores e obras, vale a pena observar o que as resenhas dos Guias diziam sobre conteúdo de África entre eles.

A resenha da coleção de Patrícia do Carmo Ramos Braick e Myriam Becho Mota que integra o Guia 2008 menciona uma única vez a palavra “África”. Na página 58 do documento, afirma “Desenvolve a presença de conteúdos a respeito da História da África”, mas complementa com uma ressalva pouco positiva:

contudo, ao se propor a dar conta de um conteúdo muito vasto, com grande quantidade de informações, a obra incorre em algumas simplificações explicativas.24

Na resenha presente no Guia PNLD 2018 a coleção “História das cavernas ao terceiro milênio” menciona a palavra “África” seis vezes (quatro delas no sumário da obra) e africanos outras quatro vezes. Nesse Guia de Livros, informações pertinentes a África, africanos e indígenas são apresentados – com destaque no texto – em parágrafo específico em cada uma das resenhas. E sobre a coleção em questão, esse parágrafo indica o atendimento a essas questões de forma adequada, pois há reconhecimento da “legitimidade e a necessidade de indígenas e negros por direitos”.25 Ainda segundo o documento, a formação individual desses grupos são respeitadas, bem como, a luta pela posse e manutenção da terra.

Para Gilberto Cotrim, “África” aparece uma única vez em 2008. Ao final da resenha, o texto indica “observa desequilíbrio entre os conteúdos selecionados, particularmente a ausência de conteúdos específicos sobre América hispânica e África”,26 ainda que a mesma resenha tenha indicado que existe “em algumas temáticas,

escolha dos professores e da negociação FNDE com os titulares de direitos autorais. Cf. Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. História: catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio: PNLEM 2008. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007, p. 12.

24 ibidem, p. 58.25 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da

Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2018... Op. cit., p. 91.

26 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. História... Op. cit., p. 81.

Page 195: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

194

sujeitos históricos como escravos, africanos, sertanejos, cangaceiros e marinheiros”.27

Em contrapartida, a resenha da coleção “História Global” no PLND 2018 indica em sua abertura que os livros apresentam de forma integrada conteúdos relativos a Europa, África, Ásia, América e Brasil. Mencionada quatro vezes o termo África, o parágrafo específico sobre esse tema indica que ele está presente em todos os volumes, “apresenta história, cultura e contribuições do negro; diversidade no cotidiano, combate ao etnocentrismo; resistência negra; e sujeitos negros positivados ao longo da coleção”.28 Mas há uma ressalva, pois, segundo a resenha essa temática não é frequente nas atividades pedagógicas.

Para Gislaine Campos Azevedo Seriacopi e Reinaldo Seriacopi, a Resenha de 2008 apresenta a palavra “África” duas vezes, em ambos os casos para elogiar a incorporação da História da África na coleção, pois

ela [a obra] oferece, também, subsídios para ampliar e aprofundar os conhecimentos do aluno sobre processos históricos relacionados a regiões e povos que, em geral, recebem pouca atenção nos livros didáticos, como é o caso da História da África e da Ásia,29

e ainda, “reforçando-se novos olhares lançados à História da escravidão e das relações raciais nas Américas, no passado e no presente”.30

Em 2018 a obra parece ter preservado sua atenção com a integração de África e Ásia – recebendo tal menção na página 23 -. Nesse documento, África é mencionada quatro vezes e africanos uma vez. O parágrafo específico para considerações sobre a Lei 11.645, destaca

27 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. História... Op. cit., p. 79.

28 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2018... Op. cit., p. 37.

29 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. História... Op. cit., p. 49.

30 Ibidem, p. 47.

Page 196: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

195

o uso de conteúdos e estratégias pedagógicas “para desconstrução de práticas e ideias racistas ou preconceituosas”,31 e aponta quais são esses conteúdos: processo de escravização, memórias de resistência, política de respeito a diversidade, inserção das comunidades afro-brasileiras na sociedade brasileira, história dos povos ascendentes das gerações que chegaram ao Brasil.

Desses dados algumas considerações são necessárias. De certa forma, há atualização dessas obras, em consonância, com debates que tem aflorado na educação – caso da temática África. Provavelmente, o fato contribuiu para a subsequentes aprovações dessas coleções. Contudo, observamos que as resenhas destacam, em especial, a história dos africanos no Brasil e dos afrodescendentes, assim, na inviabilidade de analisar os livros propriamente, fica difícil afirmar com certeza que África – em diferentes aspectos, cronologias e concepções de mundo – é apresentada nessas coleções.

Sobretudo, a análise dos Editais e dos Guias, nos permitem observar como uma demanda social se apresenta enquanto política pública. Possibilita, ainda, observar a dinâmica particular desse processo.

Reflexões FinaisQuando iniciamos esse texto propomos algumas questões

sobre o espaço da África em nossas recordações e, no caso dos professores, na nossa formação e atuação. Podemos responder parcialmente essas questões e pedimos a permissão para tal. A autora desse capítulo realizou sua graduação entre os anos de 2003 e 2006, portanto, concomitante a aprovação da Lei 10.639/2003, logo, a renovação da grade curricular estava ainda por ser feita; guardava da África apenas imagens distorcidas, estereotipadas e que estavam via de regra ligadas a “fatalidade” contemporânea do continente; se quer Egito havia sido apresentado como parte da África ao longo do

31 Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2018... Op. cit., p. 26.

Page 197: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

196

ensino básico; seu contato com a história do continente veio pela via “indireta”, com interesses voltados para o afro-brasileiro foi descobrir que os africanos eram e são inspiração para movimentos sociais brasileiros; partiu daí sua busca pelos conteúdos e revisão de suas práticas docentes.

Mas se essa é a experiência da autora, não podemos dizer que é a realidade atual e universal. Seja por pressão dos movimentos sociais ou do adensamento das discussões acadêmicas – ao nosso ver, correlacionados –, as informações sobre África aparecem com maior regularidade e qualidade que a dez ou quinze anos. Isso não significa que a questão esteja resolvida, não está. A grade curricular universitária, assim como, os conteúdos didáticos permanecem exibindo a superioridade dos conteúdos ligados a história europeia. Mesmo a formação dos professores universitários que ministram disciplinas sobre África ainda precisa ser aprimorada.32 Mas caminhamos para a melhora desse cenário.

Por último, cabe salientar: o que define a qualidade de uma aula ou do ensino de um conteúdo é, acima de tudo, a atuação do professor. É necessário que os docentes – muitos formados antes da legislação que determinou o ensino de África nas escolas – compreendam a importância de conhecer e ensinar História da África. Mesmo argumento compete para afro-brasileiros e indígenas. Para tal, faz-se necessário permanecermos vigilantes e discutindo essas questões fulcrais.

Referências Bibliográficas:ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Histórias do movimento negro no Brasil: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC-FGV, 2007.

ALVIM, Yara Cristina. O livro didático na batalha de idéias: vozes e saber

32 Sobre o assunto, considerações podem ser obtidas na tese de doutorado de Cintia Diallo (2017), cujo esforço buscou compreender a formação de docentes que ministram disciplinas de África e afro-brasileiros, conteúdos e concepções dessas disciplinas, oferecidas em universidades públicas do estado do Mato Grosso do Sul.

Page 198: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

197

histórico no processo de avaliação do PNLD. Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.

CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. O mercado do livro didático no Brasil: da criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) à entrada do capital internacional espanhol (1985-2007). Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-graduação em Educação, PUC, 2007.

Diário da Assembleia Nacional Constituinte – Suplemento ao n. 62. [7º Reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas deficientes e Minorias] Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/sup62anc20mai1987.pdf#page=1201987 Publicado em: 20 de maio de 1987.

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, v. 12, n. 23, p. 100-122, 2007.

GARRIDO, Mírian C. M. Escravo, africano, negro e afrodescendente: a representação do negro no contexto pós-abolição e o mercado de materiais didáticos (1997-2012). São Paulo: Alameda, 2017a.

GARRIDO, Mírian C. M. Nas constituições dos discursos sobre afro-brasileiros: uma análise histórica da ação de militantes negros e dos documentos oficiais voltados a promoção do negro brasileiro (1978 a 2010) Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual Paulista, 2017b.

GONZALÉZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988.

PINTO, Regina Pahim. A Educação do Negro: Uma Revisão da Bibliografia. Cadernos de Pesquisa Carlos Chagas, São Paulo, n. 62, 1987.

Fontes

Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2015. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2013.

Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para o processo de inscrição e avaliação

Page 199: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

198

de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2018. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2016.

Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para Inscrição no processo de avaliação e seleção de obras didáticas a serem incluídas no Catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio – PNLEM 2007. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2005.

Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Edital de Convocação para Inscrição no processo de avaliação e seleção de obras didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático 2012 – Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010.

Secretaria da Educação Básica, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. História: catálogo do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio: PNLEM 2008. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.

Secretaria da Educação Básica. Guia de livros didáticos: PNLD 2012: História. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2011.

Secretaria da Educação Básica. Guia de livros didáticos: PNLD 2015: História: Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria da Educação Básica, 2014.

Page 200: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

199

História do corpo na sala de aula: os novos domínios da história e a transversalidade

Fernando Lucas Garcia de Souza1

IntroduçãoDesde o movimento impulsionado pela Escola dos Annales,

que tem seu início na década de 1930 na França, a historiografia se vê em constante reformulação. A inauguração da chamada história-problema – perspectiva historiográfica que abandona a concepção de que a história deveria apenas narrar os fatos, defendendo antes que a história deveria buscar explicações e compreender os fenômenos históricos a partir da formulação de hipóteses – traz consigo uma série de transformações na prática dos historiadores.

Dentre elas, a aproximação com outras áreas do conhecimento como a sociologia e a antropologia; o empreendimento de novos métodos de pesquisa; o distanciamento de uma história centrada em grandes personagens e seus feitos; e sobretudo, o que mais nos interessa nesta discussão, a inserção de novos objetos no escopo das investigações dos historiadores. Essas reformulações internas ao campo historiográfico sofreriam efeito das – e produziriam efeito nas – transformações sociais externas.

O intenso século XX parece ter produzido um deslocamento das disputas em sociedade: dos movimentos que se pretendiam totalizantes, como os dos trabalhadores, centrados no ideal marxista da luta de classes, para a fragmentação identitária das reivindicações, sobretudo pós-Maio de 68, como o movimento negro, o movimento feminista, o movimento LGBTQI+, entre outras lutas sensivelmente mais específicas que as demandas anteriores.

Como aponta Jean-Jacques Courtine: é disso que o corpo foi investido no contexto das lutas

1 Doutorando em História pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail: [email protected]

Page 201: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

200

travadas pelos direitos das minorias no decorrer da década de 1970: um lugar importante de repressão, um instrumento crucial de libertação, a promessa de uma revolução.2

Como o reduto último da individualidade, sobretudo após a modernidade o corpo é percebido como locus de disputas entre o indivíduo e a sociedade, empreendidas em torno de sua posse. Nesse contexto, transformado em instrumento político, o corpo é significado, disciplinado e submetido, assim como é ressignificado, transgredido e torna-se espaço de resistência. Acompanhando estas transformações, e talvez justamente no anseio de compreendê-las ao passo que as vivenciam, é que os historiadores se debruçam sobre esses novos objetos.

Neste contexto é que emerge a partir da década de 1980 a História do Corpo, como um domínio da chamada Nova História Cultural. Especialmente após a fundação da revista Body and Society, em 1995, o corpo ganha definitivamente o status de objeto de investigação histórica e sociológica.3

Diante da tardia emergência de uma História do Corpo surge o aparente paradoxo. Por que só agora nos atentamos para o nosso mais antigo instrumento de interação com o mundo? Por que só a partir dos anos de 1980 é que a história se interessa sistematicamente pelo corpo? As respostas parecem indicar a trilha do pensamento cartesiano, que dividiu “espírito” e “corpo”, legando a este último uma condição secundária.4 Essas fronteiras parecem apagadas no século XX, período que segundo Merleau-Ponty, “restaurou e aprofundou a questão da carne, isto é, do corpo animado”.5

Assim, na entrada do século XXI o corpo passa a reivindicar

2 COURTINE, Jean-Jacques. Introdução. In.: CORBIN, Alan; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 9

3 BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2008, p. 95.

4 COURTINE, J-J. Introdução... Op. cit., p. 7.5 MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris: Gallimard, 1960.

Page 202: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

201

um lugar central nas análises teóricas. Com isso concorda Courtine ao afirmar que “as lutas políticas, as aspirações individuais colocaram o corpo no coração dos debates culturais, transformaram profundamente a sua existência como objeto de pensamento”.6 Tomando o corpo como objeto de análise – muitas vezes não centrando essas análises no corpo, mas atravessando-o, para usar um termo de Foucault – teóricos como o próprio Michel Foucault, Dave Le Breton, Merleau-Ponty, Alain Corbin, Georges Vigarello, Jean-Jacques Courtine, Denise Bernuzzi Sant’Anna, Michele Perrot, entre outros, produziram e produzem uma série de reflexões acerca do corpo, compondo uma virada em direção ao corpo no campo das ciências humanas,7 fazendo emergir uma série de pesquisas nas quais se busca compreender o corpo masculino, o feminino, o transexual, o corpo atlético, o corpo desviante, o corpo tatuado, o corpo obeso, o corpo abusado, o corpo sobre o qual se exerce um poder de assujeitamento, entre outras percepções possíveis.

Outro ponto fundamental é o que diz respeito às identidades. O problema de como se produzem as identidades na pós-modernidade me parece central na compreensão da sociedade e seus conflitos. Por essa razão, pensar a História do Corpo passa imperativamente por discutir os regimes de produção das identidades e suas transformações históricas, e vice-versa.

Neste sentido, a proposição de Stuart Hall é um caminho interessante. Para o autor de A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, a sociedade ocidental moderna construiu sua compreensão do corpo a partir de três estágios distintos, gerando o que Hall chama de três sujeitos, historicamente situados: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

De forma sintética, é possível dizer que sujeito do Iluminismo é aquele entendido como um sujeito unificado, centrado, racional e dotado de um núcleo que o acompanhava desde o nascimento. O sujeito sociológico é entendido como ainda possuindo

6 COURTINE, J-J. Introdução... Op. cit., p. 9.7Cf. BURKE, P. O que é história cultural?... Op. cit., p.95

Page 203: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

202

um núcleo, porém, entende-se ali que esse núcleo não era autônomo ou autossuficiente, mas sim formado a partir das relações sociais, da interação entre o indivíduo e a sociedade. O sujeito pós-moderno, por sua vez, é descentrado, destituído de um núcleo mais estável, sendo a partir de então “composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas”. Essa descentralização teria produzido um sujeito cuja identidade é móvel, instável, fragmentária. Identidade que a partir de então “é definida historicamente, e não biologicamente”.8

Se a premissa de Hall estiver correta, os sujeitos da contemporaneidade são os ditos pós-modernos, detentores não de uma, mas de múltiplas identidades convivendo pacifica ou conflituosamente em nosso corpo, e manifestando-se a partir dele, acrescentaria. Essa proposição é fundamental para pensar a História do Corpo, e mais ainda, sua utilização em sala de aula, visto que o estudante que ali encontraremos é parte deste universo fragmentado. Sendo a escola e o processo educacional um campo também de produção das identidades, de construção do modo de pensar, de entender e de se relacionar com o mundo por parte do sujeito, entender os conflitos e possibilidades identitárias do estudante é passo fundamental. Daí a História do Corpo como possibilidade em sala de aula, o que discutiremos a seguir.

História do corpo em sala de aula, por quê? Ensino de história e consciência histórica.

A questão da emergência de novos domínios historiográficos, como a História do Corpo e seus temas, traz à necessária reflexão da função social da história e mais especificamente, de como instrumentalizar esses novos temas em sala, conferindo-lhes sentido tanto no que tange à vida prática do estudante e da comunidade escolar, quanto dentro de uma relação com os conteúdos tradicionalmente ensinados na escola.

8 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014. p. 10-12.

Page 204: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

203

O teórico alemão Jörn Rüsen, ao investigar os processos de produção do conhecimento histórico e a cientificidade do método praticado pelos historiadores, levanta a questão da consciência histórica – ou pensamento histórico – e de como o conhecimento acerca da história é produzido pelos historiadores. Sua proposição é sintetizada no esquema abaixo:

Fonte: RÜSEN, J. Razão Histórica... Op. cit., p. 35.

Rüsen propõe que a ciência histórica tem como ponto de partida a “carência humana de orientação do agir e do sofrer os efeitos das ações no tempo”.9 Segundo o autor, as motivações das investigações históricas são externas ao campo historiográfico, ou seja, são produto de interesses gerados pela sociedade em compreender seu passado.

Trata-se do interesse que os homens têm – de modo a poder viver – de orientar-se no fluxo do tempo, de assenhorear-se do passado, pelo conhecimento, no presente. Interesses são determinadas carências cuja satisfação pressupõe, da parte dos que as querem satisfazer, que esses já as interpretem no sentido das respostas a serem obtidas.10

9 RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história; os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UNB, 2001, p. 30.

10 Ibidem, loc. cit.

Page 205: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

204

É interessante que nos detenhamos sobre essa questão, pois ela será fundamental para pensarmos a possibilidade, a viabilidade e mesmo a necessidade ou utilidade da discussão de novos temas em sala de aula, cerne de nossa discussão.

Se o nosso interesse pelo passado é resultante de nossas carências de orientação no presente – dos problemas com os quais lidamos na contemporaneidade – isso nos remete a questão de que respostas à essas carências, ou seja, a produção de conhecimento acerca de determinado tema na historiografia, terminam por desempenhar uma função, que é aquela sintetizada por Rüsen no quadro anterior como a de orientação existencial.

Se observarmos novamente o esquema de Rüsen, veremos que há um corte entre a vida prática e a ciência especializada. Para o autor, o conhecimento histórico possui uma circularidade. Ou seja, as ideias de pesquisa são fruto de demandas advindas de fora do campo historiográfico, da vida prática dos sujeitos. Essas motivações geram pesquisas que nos permitem compreender melhor determinado aspecto do passado e, por consequência, do presente. Assim, elas ultrapassam novamente o campo científico retornando para a vida prática com a função de orientar os indivíduos em sua existência, a partir do que Koselleck chamará de “campo de experiência”.11

Aceitando a premissa de Rüsen e entendendo que a emergência da História do Corpo e seus novos temas – estritamente ligados à questão da produção das identidades na pós-modernidade, como propusemos – é resultado das carências de orientação da sociedade, expostas na problemática dos novos movimentos sociais descritos no início do texto, cabe discutir a história ensinada como potencial instrumento na satisfação dessas carências, ou seja, como resposta aos interesses e necessidades da sociedade em ampliar a compreensão de sua relação com o mundo.

Me refiro à história ensinada aqui, aludindo a autoras que

11 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ Ed. PUC-Rio, 2006, p. 308.

Page 206: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

205

defendem a especificidade do saber histórico escolar,12 como uma produção intelectual que dialoga com a acadêmica, mas que é dotada de particularidades que dizem respeito justamente ao que Rüsen chamaria de função de orientação, ou seja, da instrumentalização do conhecimento histórico para a construção de uma consciência histórica específica, a partir de um lugar de pertença e das características próprias do universo escolar do estudante, distinto – mas não oposto ou negacionista – do conhecimento histórico produzido pela historiografia acadêmica.

Este é outro ponto importante quando pensamos na inserção de novos temas e problemáticas oriundas do campo da historiografia no saber escolar: a compreensão da especificidade da História escolar. Para Bittencourt, a História escolar é parte integrante de um conjunto de disciplinas instituídas como fundamentais na escolarização, tendo se transformado no curso do tempo quanto aos métodos, conteúdos e finalidades. Segundo a autora, ainda que se reformule constantemente, essas disciplinas são parte de um sistema educacional que possui especificidades no processo de produção dos saberes. Esse saber próprio é chamado por Bittencourt de conhecimento escolar, um conhecimento que é produzido no interior de uma cultura escolar, que compreende a escola como um lugar de produção de conhecimento, possuidora de objetivos próprios.13

Se concatenarmos essas ideias, vislumbraremos possibilidades e desafios para a utilização da História do Corpo em sala de aula.

Possibilidades, se entendermos que a emergência da História do Corpo na contemporaneidade é resultado de uma demanda social, de uma carência de orientação que incita esses novos temas de pesquisa. Tendo a história a função de orientação existencial, se faz desejável que esses temas figurem entre as discussões produzidas na escola, no processo educacional.

12 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009; FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. Campinas: Papirus, 1993.

13 BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História... Op. cit., p. 33-38.

Page 207: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

206

Desafios, uma vez que ao aceitarmos ser o conhecimento escolar dotado de particularidades e construído no interior de uma cultura escolar cujas especificidades não devem ser ignoradas, faz-se imprescindível pensar o “como” dessa inserção. Neste sentido, minha proposta é a transversalidade.

História do corpo, para quê? Transversalidade nos PCN’S e a instrumentalização da História do corpo na construção de

sentido.Os Parâmetros Curriculares Nacionais apresentam os Temas

Transversais como um instrumento de viabilização de um projeto educacional comprometido com a construção da cidadania. A fim de atingir este objetivo, cinco pontos foram destacados: a Ética, a Pluralidade Cultural, o Meio Ambiente, a Saúde e a Orientação Sexual.14

Propondo os Temas Transversais como uma possibilidade de uma abordagem menos formalista do ensino e mais diretamente atrelados à realidade do estudante e seus problemas, os PCN’s pensam a transversalidade – assim como a interdisciplinaridade – como a possibilidade de uma concepção do conhecimento que consideram a complexidade do real e as relações que o compõem, ao contrário de entender o conhecimento como um “conjunto de dados estáveis, sujeitos a um ato de conhecer isento e distanciado.15

Como aponta José Alves de Freitas Neto, a proposta da transversalidade vai além da fragmentação dos conteúdos e disciplinas, direcionando o processo educativo aos temas propostos, temas que por sua vez constituem elementos norteadores da elaboração de conteúdos, objetivos e programas educacionais.

Nas palavras de Neto, A proposta é estabelecê-los como objetivos finais, que serão tratados em todas as disciplinas, aproximando-as do

14 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares nacionais. Temas Transversais: Orientação Sexual. Brasília: MEC/SEB, 1997, p. 15.

15 Ibidem, p. 31.

Page 208: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

207

cotidiano dos alunos, para que se evite, de alguma forma, o distanciamento entre os conhecimentos apresentados pelo professor e a expectativa e a necessidade dos alunos.16

A proposta então é que os Temas Transversais contribuam para a construção de sentido no todo do processo educativo. Não se trata de dedicar uma aula à cada determinado período para discutir cidadania, pluralidade cultural ou educação sexual, por exemplo. Pelo contrário, esses temas devem atravessar o conteúdo formal e as discussões propostas em sala de aula.

No caso de nossa disciplina escolar, a História, pensamos que as possibilidades de efetivação da transversalidade são bastante amplas, e dizem respeito à função social própria da história: a de conferir sentido à existência humana no tempo, o que Rüsen chama de consciência histórica.

Não há história sem o sujeito humano. A consciência da existência temporal e influência do passado na constituição do presente são característica de nossa espécie. Menos comum, ao menos fora do campo historiográfico, é a consciência de que o presente também determina a maneira como interpretamos o passado. Neste sentido, como afirmou Hobsbawm, em alusão à Croce, “toda história é história contemporânea disfarçada”.17

Não é o nosso objetivo entrar aqui no debate acerca da produção historiográfica, mas sim de um momento distinto, aquele em que o conhecimento produzido retorna à vida prática, no movimento descrito por Rüsen como capaz de cumprir uma orientação existencial, ou seja, de conferir sentido ao presente pelo conhecimento do passado.18 É essa que pensamos ser a possibilidade de atuação da disciplina de História no interior da cultura escolar, como conhecimento escolar.

16 FREITAS NETO, José Alves. Transversalidade. In.: KARNAL. Leandro (org.). História na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003, p. 59.

17 HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 244.

18 Cf. RÜSEN, Jörn. Razão histórica... Op. cit., p. 35.

Page 209: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

208

Se como já dissemos, o conhecimento histórico escolar é dotado de especificidades e se a História como campo de conhecimento é capaz de contribuir no suprimento das carências de orientação existencial – e particularmente julgo que sim – então é útil que pensemos em meios capazes de potencializar essa construção de sentido.

E é aí que nossa proposta de instrumentalizar a História do Corpo na direção da educação transversal se faz interessante. A transversalidade só será possível, contudo, se pensarmos a disciplina não como um fim em si mesma, mas como um instrumento de produção dessa consciência histórica. Os PCN’s nos apontam que

a transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa, uma relação entre aprender na realidade e da realidade de conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real (aprender na realidade e da realidade).19

Ora, se a função da transversalidade é conferir sentido à educação e os conteúdos sistematizados a partir de sua conexão com os elementos vivenciados e percebidos pelo estudante na vida real, o que pode ser mais transversal que o corpo? Se há algo que permanece, entre todas as rupturas infringidas às sociedades humanas ao longo da história, esse algo é o corpo. Se o corpo é objeto de estudo privilegiado quando discutimos as relações de poder e os projetos de submissão do indivíduo à sociedade – vide a obra de Foucault e seu enfoque na análise da loucura, do sistema prisional e jurídico, da sexualidade, etc. – ele consequentemente é também uma possibilidade de forja da consciência histórica no estudante.

Perceber como as relações com o corpo mudaram ao longo da história, assim como perceber como algumas dessas estruturas relacionais permanecem, são um instrumento rico para a formação dessa consciência. Neste sentido, os temas transversais propostos nos PCN’s são um excelente ponto de partida para se compreender as

19 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares nacionais. Temas Transversais... Op. cit., p. 31.

Page 210: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

209

rupturas e permanências não apenas na relação do sujeito com o seu próprio corpo, mas como a relação da sociedade com o corpo do sujeito.

Quando discutimos pluralidade cultural, por exemplo, é imprescindível que compreendamos que a cultura não é um elemento que paira sobre a sociedade, como uma neblina etérea e desconexa das estruturas e infraestruturas. Pelo contrário, a cultura se inscreve e é inscrita na realidade da vida prática. É sentida no corpo!

Basta lembrar que processos históricos de escravização de indígenas e africanos ocorreram nas colônias americanas sob um suporte cultural que envolvia o discurso religioso e o científico. O primeiro alegando a exclusiva legitimidade da crença metafísica predominante na Europa – o cristianismo – e a consequente necessidade de conversão e adestramento espiritual de indígenas e africanos por meio do trabalho, justificativa para a escravização. O segundo, postulando pressupostos hoje sabidamente pseudocientíficos como a suposta superioridade – moral e intelectual – de um grupo étnico em relação a outros, pensamento especialmente impregnado no conceito de civilização.

Se a escravidão é tópico imprescindível ao conteúdo tradicional de História do Brasil – e disso não há dúvidas – esse processo que legalmente se encerra em fins do século XIX precisa fazer sentido ao estudante contemporâneo. E a discussão da transversalidade e da História do Corpo é potencializadora dessa construção de sentido, especialmente em um país no qual o racismo permanece como preconceito estrutural em sua sociedade, mesmo mais de um século pós-abolição.

É no corpo, precisamente no fenótipo, que esse preconceito se manifesta. Atualmente, não há mais suporte legal algum para afirmação de práticas racistas – pelo contrário, sua manifestação é crime previsto em lei e deve ser denunciada e punida – e ainda assim, os sujeitos negros sentem, diariamente por meio de (e em) seu corpo, a permanência do racismo. O sentem quando são preteridos em relações sociais ou afetivas, quando são hostilizados ou alvo de piadas – que nada tem de brincadeira, pelo contrário, são manifestações veladas de

Page 211: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

210

preconceito – quando são alvo das ações policiais por terem o perfil do suspeito.20 Onde, se não no corpo se sente o racismo estrutural? Quão presente ainda se faz esse racismo, ainda que sutilmente, na imposição de um padrão de beleza europeizado, branqueado, que nega legitimidade à cor da pele e as características fenotípicas como o cabelo, nariz e boca do indivíduo negro em detrimento de uma construção midiática da beleza branqueada?

Daí a importância de instrumentalizar a História do Corpo em favor dos temas transversais de modo desnaturalizar fenômenos que são construção social, dizem respeito à pluralidade cultural e étnica. Não há possibilidade da construção da democracia em um país que não reconheça e abrace a diversidade. Não se trata de ser utópico, trata-se de ser coerente. Trata-se de sensatez. E propomos que instrumentalizar a História do Corpo em favor dos temas transversais é um caminho eficaz e desejável no alcance dessa educação que confira sentido à existência do sujeito.

História do corpo, como? Uma proposta didática de transversalidade.

Até aqui defendemos a utilização da História do Corpo no trabalho com a transversalidade, buscando apresentar perspectivas do porquê e para quê de sua aplicação, ou seja, a justificativa teórica e as possibilidades metodológicas de sua operacionalização. Apresentaremos agora uma proposta didática de como fazê-lo, a partir de experiências práticas que desenvolvemos em sala de aula na Educação Básica.

Ao propor a Orientação Sexual como tema transversal, os PCN’s afirmam que o tema

20 Há uma série de estudos e reportagens que discutem o racismo institucional nas polícias brasileiras. Entre os exemplos, citamos: https://w w w . c o r r e i o b r a z i l i e n s e . c o m . b r / a p p / n o t i c i a / c i d a d e s / 2 0 1 6 / 0 3 / 3 1 / interna_cidadesdf,524959/a-cor-da-pele-interfere-na-acao-policial-dizem-pesquisadores.shtml. Acesso em 27 de julho de 2018; e https://lunatenorio.jusbrasil.com.br/artigos/114873464/estudo-sobre-violencia-policial-revela-racismo-institucional-na-pm-de-sp. Acesso em 25 de julho de 2018.

Page 212: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

211

engloba as relações de gênero, o respeito a si mesmo e ao outro e à diversidade de crenças, valores e expressões culturais existentes numa sociedade democrática e pluralista. Pretende contribuir para a superação de tabus e preconceitos ainda arraigados no contexto sociocultural brasileiro.21

Entre seus objetivos gerais para o tema da Orientação Sexual, os PCN’s propõem que o estudante capaz de:

conhecer seu corpo, valorizar e cuidar de sua saúde como condição necessária para usufruir prazer sexual; reconhecer como construções culturais as características socialmente atribuídas ao masculino e ao feminino, posicionando-se contra discriminações a eles associadas; reconhecer o consentimento mútuo como necessário para usufruir prazer numa relação a dois; proteger-se de relacionamentos sexuais coercitivos ou exploradores.22

O que os PCN’s propõem, portanto, é que as discussões de gênero atravessem os conteúdos das diversas disciplinas. O que apresentaremos a seguir, a partir de um exemplo prático do que realizamos em sala, é uma das possibilidades dessa articulação.

O conteúdo escolar escolhido foi o Primeiro Reinado e a Constituição de 1824. A abordagem transversal procurou discutir a condição das mulheres no período, adequando-se à proposta da transversalidade que problematiza por meio de preceitos políticos e de gênero, problemáticas inerentes ao exercício da cidadania.

Neste sentido, centrar a discussão na História do Corpo permitiu às alunas e aos alunos conferir sentido ao conteúdo histórico, relacionando-o com sua realidade e gerando um debate profícuo acerca da cidadania, da igualdade, dos direitos das mulheres, da estruturação do pensamento patriarcal na Constituição de 1824 e suas permanências na sociedade contemporânea.

Na sequência didática referida, trouxemos aos alunos

21 BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares nacionais. Temas Transversais... Op. cit., p. 287.

22 Ibidem, p.311.

Page 213: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

212

tópicos fundamentais da Constituição de 1824 e a forma como sua elaboração se relaciona com a cultura e com o projeto de país em curso na época de sua outorga. Entre os tópicos fundamentais selecionamos: a afirmação da religião Católica Apostólica Romana como a oficial do Estado; a instituição do voto censitário, baseado na comprovação de determinada renda e o princípio da igualdade formal.

A partir destes elementos, comuns aos conteúdos escolares e às análises historiográficas, problematizamos a condição de ser mulher no Brasil Império, procurando indicar as permanências e rupturas destes processos na contemporaneidade.

A exemplo disso, a oficialização da Igreja adquire um sentido fundamental na maneira como os homens e mulheres se percebiam e eram percebidos no Império. No que diz respeito à condição feminina, a tradição católica é historicamente conservadora. O reconhecimento dessa prática como oficial não diz respeito apenas às questões metafísicas, mas também à manutenção de determinada ordem social.

Submissão feminina, recusa ao prazer sexual e associação da figura feminina à luxúria, ao pecado e à queda da humanidade, são componentes mitológicos que influenciam diretamente a concepção de masculino e feminino nas sociedades cristãs. Desnaturalizar essas noções proporciona a crítica ao modelo patriarcal de sociedade que exalta a figura masculina em detrimento da feminina.

Por sua vez, a questão do voto censitário também nos informa a exclusividade masculina na participação eleitoral, além da restrição de voto à detentores de determinada renda mínima:

Para os padrões da época, a Constituição de 1824, a despeito de ter sido “outorgada”, foi até avançada: podiam votar todos os homens a partir de 25 anos com renda mínima anual de 100 mil-réis. Os libertos votavam nas eleições primárias, e o critério de renda acabava por não excluir do direito de voto a maior parte da população pobre, uma vez que a maioria dos trabalhadores ganhava mais de 100 mil-réis por ano. Por fim, analfabetos também tinham direito a voto.23

23 SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma

Page 214: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

213

Para nosso intento, porém, coube problematizar em sala de aula a maneira como a participação feminina sequer foi discutida, não apenas nesta Constituição como também na primeira carta constitucional da República, em 1891. A conquista definitiva do direito ao voto feminino só viria em 1932.

Outra questão prevista na constituição diz respeito à igualdade formal. Seja entre ricos e pobres, homens livres e escravos ou entre homens e mulheres livres, a condição de igualdade só vigorava formalmente. Na prática, persistia – e deve ser problematizado junto com os alunos em que medida ainda persiste – a oposição entre masculino e feminino.

A sociedade imperial percebia homens e mulheres como destinados a ocupar espaços diferenciados. Ao homem, percebido como pertencente ao domínio da razão, caberia o espaço público, a política, os negócios, a rua. À mulher, cujo pensamento da época apregoava o predomínio da emoção, restava o espaço privado, o cuidado da casa e uma educação voltada à formação da boa esposa.

Mais do que apenas restringir-se à esfera legal ou atuar na mentalidade social, essas noções influenciavam diretamente a vida prática. Às mulheres, era vetada a possibilidade da circulação pública sem o acompanhamento de um homem, seja o pai, irmão ou esposo, no caso da mulher casada. A propósito do casamento, havia para ambos os sexos a necessidade da permissão dos pais. Na prática, essa permissão parece ter funcionado como coerção feminina.

Como exemplo disso, a maioridade era estabelecida aos 21 anos, mas a necessidade de autorização para o casamento masculino se estendia até os 25. O que a primeira vista pode sugerir uma maior autonomia feminina, que em tese só dependia dessa autorização até os 21 anos, acaba por revelar uma sociedade na qual as mulheres eram dadas em casamento muito antes disso. Aos 21 anos, caso um arranjo não tivesse já sido elaborado pela família, tal mulher era considerada velha para o casamento.

biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 308.

Page 215: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

214

A extensão dos 25 anos aos homens sugere ainda uma dinâmica social na qual a figura masculina era detentora de maior tempo livre do compromisso do casamento. Além disso, o casamento, para a mulher, geralmente representava a transferência de controle social, do controle parental para o marital.

Além dessas questões, foi possível ainda debater com os alunos em sala às restrições às vestimentas, gestos ou outras formas de autonomia feminina. Como exemplo, trouxemos debates para além do livro didático, como trechos de artigos publicados em revistas de História, como o que segue:

Nada de decotes ou panos que chamassem atenção dos homens, apenas a do marido; nada de mostrar os dedos dos pés, era considerado obsceno; nada de perfumes e cheiros fortes, sorrir demais e mostrar os dentes bonitos ou sorrir de menos para não mostrar os dentes feios era condenável. A vaidade feminina era menosprezada pelo homem e pela sociedade.24

Fragmentos como estes foram articulados ao próprio livro didático utilizado pela escola, como o seguinte, acerca da Princesa Leopoldina:

Seus cabelos louros estavam sempre penteados, em cachos ou coque, emoldurando um rosto perfeito. Nos retratos, sua indumentária revelava que a cintura fina era esmagada por cintos, as saiam abriam em evasées [...]. Os decotes diurnos eram pequenos e arredondados. Para a noite, a linha nua do pescoço se prolongava até os largos decotes que morriam nos ombros.25

As possibilidades analíticas aí presentes, como a constatação das permanências em torno da construção idealizada da figura feminina e a imposição de padrões de beleza, comportamento e pensamento às mulheres, foram articuladas à outras citações do livro didático, como aquela que se trazia uma nota da Imprensa Brasileira no Império sobre

24 ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Rio de Janeiro: Edunbr, 1993, p. 53.

25 TREVISAN, Gerson. Crescer em Sabedoria: 8 ano. Livro 2. São Paulo: Editora Mackenzie, 2016, p. 53.

Page 216: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

215

Amélia de Leuchtenberg, segunda esposa de Dom Pedro I, que era descrita como uma mulher pura, casta e fiel. Ao articular essa afirmação com a reportagem publicada em 2016 pela revista Veja, sobre a esposa do então Vice-Presidente Michel Temer, ali descrita como bela, recatada e do lar, foi possível discutir em sala as permanências acerca da tentativa de submissão feminina manifesta no corpo por meio das restrições, dos gestos e dos processos de embelezamento.

A articulação destes elementos nos permitiu promover um debate em sala, no qual foi possível colocar em movimento e conferir sentido tanto ao conteúdo escolar, apontando para as permanências e rupturas no processo histórico, como aos objetivos da transversalidade anteriormente citados: a desnaturalização da diferença entre masculino e feminino e o reconhecimento de sua construção social, a necessidade do consentimento nas relações à dois, exemplificadas nos arranjos de casamento, entre outras possibilidades analíticas que foram sendo construídas em debate, inclusive pelas alunas e alunos.

Considerações finaisPor fim, gostaríamos de apontar que inúmeras outras

propostas didáticas são possíveis. Aqui, nos restringimos a uma delas, na intenção de demonstrar por meio da experiência em sala de aula, a possibilidade de articulação de temas que encontram certa dificuldade de circulação para além de um público especializado de leitores, os historiadores profissionais. Procuramos simultaneamente, a partir da transversalidade, evitar a percepção desses temas como notas anedóticas ou curiosidades históricas, e sim como elementos fundamentais na compreensão das sociedades do passado, bem como de nossa própria sociedade.

É neste sentido que pensamos a viabilidade da História do Corpo em sala de aula, extrapolando os domínios do campo acadêmico, instrumentalizada na construção chamada consciência histórica, atuando como elemento de aproximação entre estudante e conteúdo, entre presente e passado, conferindo sentido à experiência histórica dos sujeitos.

Page 217: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

A História no entretecer das práticas de ensino

216

Referências:Fontes:

CORREIO BRASILIENSE. Cor da pele interfere na ação policial, dizem pesquisadores. Correio Braziliense. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia /cidades/2016/03/31/interna_cidadesdf,524959/a-cor-da-pele-interfere-na-acao-policial-dizem-pesquisadores.shtml. Acesso em: 27 de julho de 2018.

LINHARES, Juliana. Marcela Temer: bela, recatada e do lar. Revista Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/. Acesso em: 25 de julho de 2018.

LUNA, Ylena Tenório. Estudo sobre violência policial revela racismo institucional na PM de SP. JusBrasil. Disponível em: https://lunatenorio.jusbrasil.com.br/artigos/114873464/ estudo-sobre-violencia-policial-revela-racismo-institucional-na-pm-de-sp. Acesso em: 25 de julho de 2018.

TREVISAN, Gerson. Crescer em Sabedoria: 8 ano. Livro 2. São Paulo: Editora Mackenzie, 2016.

Bibliografia:

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia. Rio de Janeiro: Edunbr, 1993.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares nacionais. Temas Transversais: Orientação Sexual. Brasília: MEC/SEB, 1997.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2009.

BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2008.

COURTINE, Jean-Jacques. Introdução. In.: CORBIN, Alan; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do Corpo: As mutações do olhar: O século XX. Petrópolis: Vozes, 2011.

FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História Ensinada. Campinas: Papirus, 1993.

FREITAS NETO, José Alves. Transversalidade. In.: KARNAL. Leandro (org.). História na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003.

Page 218: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,

Ilsyane do Rocio Kmitta, Suzana Arakaki, Viviane Scalon Fachin (org.).

217

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto – Ed. PUC-Rio, 2006.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris: Gallimard, 1960.

RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história; os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Ed. UNB, 2001.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Page 219: A História no Entretecer - Editora Milfontes Historia no...reconfigurá-la, como bem pondera Keith Jenkins (2011; 2014). Isso implica no fato de que não há mais, por parte dos historiadores,