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1 A HISTÓRIA, A WEB E O POST: CULTURA ESCRITA NO INSTAGRAM DA CANTORA CAMILA CABELLO 1 Igor Lemos Moreira 2 Resumo: Através da análise de algumas publicações da cantora Camila Cabello pretende-se levantar alguns pontos de análise possíveis do Instagram como fonte de estudo para o(a) historiador(a). Para isso parte-se do campo da Cultura Visual, articulado aos estudos sobre a Cultura Escrita, na tentativa de entender as múltiplas temporalidades que permeiam a composição da rede social da artista manifestadas tanto nas práticas de escrita e na seleção/edição de fotografias, como na composição do próprio aplicativo e na escolha do que é publicado. Considera-se então o Instagram como um veículo de comunicação digital que constrói, através de fotografias, imagens e textos, mensagens elaboradas a partir de relações com o tempo possibilitando discutir noções como representação e construção de “si” a um outro, sendo que ambas articulam intenções culturais, sociais, políticas e políticas. Palavras-Chave: História do Tempo Presente; História Digital; Música Pop; Representação; Construção de “si". Am I just hanging on To all the words she used to say? The pictures on her phone She's not coming home (Camila Cabello; Shawn Mendes. I Know What You Did Last Summer) O trecho da música I Know What You Did Last Summer, apresentado acima, levanta uma prática comum em nossa sociedade contemporânea: o apego ao registro de um presente que rapidamente pode se tornar passado, buscando evitar seu “esquecimento”. Esse apego pode ser observado em práticas de escritas ordinárias seculares como a produção de diários, cartas e bilhetes buscando na escrita uma forma de perenidade do tempo. Porém, nas últimas décadas, tais suportes ditos como “tradicionais” vem encontrando um novo espaço de adaptação e convergência: os meios tecnológicos digitais, com destaque principal a web 2.0. Ainda pouco explorado pelos/as historiadores/as o avanço dos meios digitais no final do século XX e em meados do XXI suscita uma série de dilemas aos pesquisadores do campo das humanidades ao mesmo tempo que fornecem um espaço novo de investigação, sendo que, talvez, um dos seus maiores desafios seja o como lidar com tais fontes. De modo geral este 1 O presente trabalho foi elaborado como atividade final da disciplina “Artes de Ler, Artes de Escrever: história da leitura e da cultura escrita.”, ministrada pela professora doutora Maria Teresa Santos Cunha no PPGH/UDESC durante o primeiro semestre de 2018. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista CAPES-DS e Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: [email protected]

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A HISTÓRIA, A WEB E O POST: CULTURA ESCRITA NO INSTAGRAM DA

CANTORA CAMILA CABELLO1

Igor Lemos Moreira2

Resumo: Através da análise de algumas publicações da cantora Camila Cabello pretende-se

levantar alguns pontos de análise possíveis do Instagram como fonte de estudo para o(a)

historiador(a). Para isso parte-se do campo da Cultura Visual, articulado aos estudos sobre a

Cultura Escrita, na tentativa de entender as múltiplas temporalidades que permeiam a

composição da rede social da artista manifestadas tanto nas práticas de escrita e na

seleção/edição de fotografias, como na composição do próprio aplicativo e na escolha do que é

publicado. Considera-se então o Instagram como um veículo de comunicação digital que

constrói, através de fotografias, imagens e textos, mensagens elaboradas a partir de relações

com o tempo possibilitando discutir noções como representação e construção de “si” a um

outro, sendo que ambas articulam intenções culturais, sociais, políticas e políticas.

Palavras-Chave: História do Tempo Presente; História Digital; Música Pop; Representação;

Construção de “si".

Am I just hanging on

To all the words she used to say?

The pictures on her phone

She's not coming home

(Camila Cabello; Shawn Mendes. I Know What You Did Last Summer)

O trecho da música I Know What You Did Last Summer, apresentado acima, levanta

uma prática comum em nossa sociedade contemporânea: o apego ao registro de um presente

que rapidamente pode se tornar passado, buscando evitar seu “esquecimento”. Esse apego pode

ser observado em práticas de escritas ordinárias seculares como a produção de diários, cartas e

bilhetes buscando na escrita uma forma de perenidade do tempo. Porém, nas últimas décadas,

tais suportes ditos como “tradicionais” vem encontrando um novo espaço de adaptação e

convergência: os meios tecnológicos digitais, com destaque principal a web 2.0.

Ainda pouco explorado pelos/as historiadores/as o avanço dos meios digitais no final

do século XX e em meados do XXI suscita uma série de dilemas aos pesquisadores do campo

das humanidades ao mesmo tempo que fornecem um espaço novo de investigação, sendo que,

talvez, um dos seus maiores desafios seja o como lidar com tais fontes. De modo geral este

1 O presente trabalho foi elaborado como atividade final da disciplina “Artes de Ler, Artes de Escrever: história

da leitura e da cultura escrita.”, ministrada pela professora doutora Maria Teresa Santos Cunha no PPGH/UDESC

durante o primeiro semestre de 2018. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Bolsista

CAPES-DS e Integrante do Laboratório de Imagem e Som. E-mail: [email protected]

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breve ensaio busca levantar algumas problemáticas relativas a esse ponto. Pretende-se explorar

um destes meios tecnológicos digitais ainda pouco explorados no campo da história e que em

sua proposta entrecruza uma série de características de outros suportes de registro e leitura: O

Instagram.

Lançado em 2010 o Instagram é uma rede social online de compartilhamento de fotos

e vídeos. Seus usuários encontram nesse aplicativo um espaço de socialização de fotografias e

curtos audiovisuais, assim como também podem acompanhar a atualização de perfis de amigos,

familiares ou pessoas públicas de seus interesses. Neste sentido, em uma breve análise de alguns

perfis e da proposta do Instagram, poderíamos então dizer que essa rede simbolizaria um novo

suporte para a construção de si de maneira a fazer referência a criação de diários pessoais e

álbuns de fotografias, remontando então séculos XVI e o XIX?

Pois bem, talvez não seja apenas isso. Ao se tornar um espaço predominante público,

mesmo que forneça ao usuário a possibilidade de deixar sua conta fechada para apenas

conhecidos, o Instagram se situa em um espaço de re-invenção constante do eu, uma

oportunidade de construção de uma representação do sujeito nos meios digitais. De maneira

ainda mais complexa, através da possibilidade de um registro imediato e de sua publicação, o

Instagram se situa não apenas como um novo suporte ao álbum de fotografias e/ou ao diário

pessoal, mas pode ser pensado como a confluência entre álbum, diário e relato autobiográfico,

especialmente por permitir que seu usuário construa legendas para as fotografias e vídeos e que

seus seguidores comentem nas/os mesmas/os.

As inquietações acima apresentadas são as balizas que movem este texto. Através da

análise de algumas publicações da artista Camila Cabello, em especial aquelas nitidamente

relativas à sua identidade cubana, pretende-se levantar alguns pontos de análise possíveis do

Instagram como fonte de estudo para a história. Para isso parte-se do campo da Cultura Escrita,

articulado aos estudos sobre a Cultura Visual, na tentativa especialmente de entender as

múltiplas temporalidades que permeiam a composição da rede social da artista manifestadas

tanto nas práticas de escrita, como na composição do próprio aplicativo e na escolha do que é

publicado pela cantora.

Tempo Presente e Cultura Escrita

A História do Tempo Presente como método e campo de estudos emerge, de maneira

institucionalizada, no cenário mundial a partir das grandes catástrofes ocorridas no século

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passado (ROUSSO, 2016). Através de movimentos memorialistas globais e crescentes

demandas sociais por memórias materializadas em filmes, livros, exposições (HUYSSEN,

2014), podemos observar que a marca das grandes guerras e dos conflitos traumáticos ocorridos

no decorrer dos anos de 1900 e início dos 2000, colaboraram para a ascensão de uma nova

forma de lidar com as experiências do tempo. Uma leitura possível seria que nossa sociedade

contemporânea seria pautada por uma aceleração do tempo e marcada pela ascensão do regime

de historicidade presentista onde viveríamos sob um presente que aparenta ser onipotente,

hipertrofiado e alargado, conforme formulou o historiador francês François Hartog (2013).

Fenômeno que remonta a eventos extremamente anteriores aos ocorridos no século XX,

como as grandes navegações e os avanços das redes de comunicação, podemos interpretar que

tal aceleração no tempo e o crescente movimento de colocarmos o presente como elemento

central nas relações entre temporalidades estaria ligado a uma relação mútua entre a sensação

de passagem cada vez “mais rápida” do tempo e o fenômeno mundial de avanço tecnológico

(KOSELLECK, 2006) e de globalização. Neste sentido a noção de aceleração seria não apenas

socialmente construída e uma forma de experienciar o presente, mas também um processo

constitutivo onde o avanço tecnológico causa uma impressão de aumento na marcha do tempo

que, por sua vez, também gera uma necessidade constante de avanço tecnológico virando assim

um eterno ciclo vicioso que começaria, conforme aponta Koselleck, no século XVI culminando

até o atual século XXI.

Um dos principais marcos, se não o principal, das últimas décadas no que se refere ao

desenvolvimento tecnológico certamente foi a internet. Sua emergência nos anos 1960 e sua

popularização a partir de 1990 certamente são fenômenos centrais nas discussões sobre nossa

sociedade contemporânea. Se inicialmente, no contexto da guerra fria, a web possuía função

militar os últimos anos tem demonstrado sua resignificação passando a ser um elemento

cotidiano comum na medida em que estaria presente inclusive nos telefones celulares de uso

pessoal. Com a ampliação do acesso aos mundos digitais, um dos marcos da globalização,

passa-se a existir novas práticas de sociabilidade e comunicação no meio virtual. Tais ações e

relações são chamadas por Pierre Levy (2010) de Cibercultura.

Em poucas palavras podemos pensar a cibercultura enquanto práticas de sociabilidade

e identificações que ocorrem entre usuários nos meios digitais através de processos

comunicacionais mediados pela escrita, a leitura e mais recentemente a oralidade e a audição.

Deste modo, é fundamental que o historiador interessado pelas práticas de sociabilidades

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recentes ou pelo entendimento de nossa cultura contemporânea considere e analise as

implicações da web e seus utilizadores na sociedade. Podemos pensar que “a incorporação de

tais suportes à operação historiográfica pode contribuir para os estudos da história da cultura

escrita no presente, especialmente no que diz respeito às suas formas de produção, veiculação

e apropriação” (SILVA, 2015, p. 33).

Para o historiador Castillo Goméz (no prelo) a Cultura Escrita pode ser observada

enquanto o estudo acerca de práticas de escrita e leitura pensando especialmente as formas

culturais, intelectuais, sociais pelas quais os indivíduos ou grupos constroem sentidos, narram

experiências e registram seu tempo. Não pretendendo ser uma análise apenas da narrativa, os

estudos da cultura escrita tendem a buscar compreender os processos de construção por trás de

tais narrativas sejam estas textuais ou não. Compreendem também que a materialidade e o

suporte influenciam diretamente nestes processos e que os mesmos são entrecruzados por

temporalidades, estando sujeitos a ações de indivíduos diversos, sejam os leitores, editores,

tradutores ou o arquivista.

Camila Cabello: Cubana, Cantora e Ídolo Juvenil no instagram.

Cubana, naturalizada nos Estados Unidos da América, Karla Camila Cabello Estrabao

é atualmente uma das principais cantoras de uma nova geração de artistas ligados ao gênero

pop. Artisticamente conhecida como Camila Cabello, a jovem foi integrante do grupo

estadunidense Fifth Harmony, o qual passa a integrar após uma audição para o reality show The

X-Factor, entre os anos de 2012 e 2016. Foi justamente sua participação no grupo por

aproximadamente 5 anos que permitiu o início de sua carreira como cantora internacionalmente

reconhecida, acumulando prêmios internacionais e reconhecimento de fãs e outros envolvidos

no gênero musical. É através dessa base (fãs, reconhecimento e redes de contatos) criada ainda

como integrante do grupo que Camila resolveu em Dezembro de 2016 romper com o grupo

lançando assim sua carreira solo, evento que foi bastante acompanhado e discutido pela mídia.

Inicialmente a cantora iniciou um processo de “corrida contra o tempo” buscando

aproveitar ainda sua base para lançar-se no mercado do entretenimento, produzindo

rapidamente seu primeiro CD, enquanto outro processo ocorria em paralelo. O ano de 2017 se

inicia com a retomada de um ramo específico da música pop o qual já a algum tempo vinha

sendo deixado de lado pelo mainstream estadunidense: o ritmo latino. O lançamento e

reconhecimento internacional de grupos como a boysband CNCO e o sucesso da canção

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Despacito representaram um problema e uma oportunidade para Camila Cabello que, no início

desse mesmo ano havia apostado seu primeiro lançamento em duas músicas (que integrariam

seu futuro CD) nos “moldes” de seu antigo grupo.

Em meio ao que chamaremos de “boom da música latina” em 2016, mas principalmente

no ano de 2017, Camila lançou oficialmente outras duas músicas que já eram apresentadas por

ela em shows3, mas que não estavam disponíveis em plataformas digitais. Destacando que não

seriam singles, ou seja, não existiria supostamente um esforço por parte da artista ou da

gravadora em divulgar os lançamentos, a cantora lança duas produções que possuem forte

referência musical, rítmica e de composição na música latina sendo uma destas chamada,

inclusive, Havana. A recepção da canção Havana foi surpreendente e rendeu a cantora um

grande reconhecimento entre ouvintes motivando assim que lançasse a música oficialmente

como um single elaborando inclusive um videoclipe.

É justamente no contexto de lançamento de Havana e posteriormente sua elevação ao

status de single que leva Camila Cabello a passar a reforçar publicamente sua herança latina,

afinal a canção faz referência direta a capital de Cuba onde a cantora nasceu. Mesmo que

anteriormente Camila sempre destacasse sua herança como latina, é a partir do ano de 2017 que

a artista passa a não apenas falar, produzir e se envolver cada vez mais no que poderíamos

chamar de “mundo latino”, mas também intensifica publicamente uma imagem de militante

latina frente ao contexto de repressões sociais a migrantes latinos, ameaças políticas e racismos

nos EUA. Analisar a trajetória de Camila Cabello então aponta para uma situação paradoxal

nos Estados Unidos da América nos últimos tempos: a valorização da música dita como Latina

versus políticas lideradas por camadas da sociedade e pelo próprio presidente contra as

populações de origem latina no país.

Uma das plataformas as quais a cantora se utiliza para a construção de si é o Instagram.

De certo modo, o perfil de Camila Cabello relaciona-se a um processo de arquivamento de si,

sempre visando uma leitura pública. Nesse sentido é preciso destacar que,

não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não

guardamos todas as maças da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade,

manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a

certas passagens. (ARTIÈRES, 1998. p. 22).

3 Vale destacar que no início de sua carreira solo Camila Cabello assinou uma parceria com o cantor Bruno Mars

para ser a programação de abertura nos shows da turnê mundial do cantor.

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Contudo, o perfil de uma pessoa ou artista no Instagram, apesar das semelhanças, possui

uma complexibilidade diferente de um diário pessoal ou um álbum de fotografias. Sendo um

diário escrito num processo de construção de si tendo um leitor “imaginado”, seja outra pessoa

ou ele mesmo, ele vincula-se sempre em uma perspectiva futura de utilização. A intenção de

existência de uma “leitura” no Instagram não se situa apenas num futuro possível, mas também

em um presente que é o instante de publicação. Ao postar uma imagem/vídeo acompanhado ou

não de uma descrição inicia-se um processo de invenção de si realizado pela cantora, ou por

qualquer outro usuário, que diz respeito a uma ação no presente, “no calor da hora”, que constrói

no instante esse sujeito e que reverberará em uma representação futura. De maneira aproximada

o diário e o Instagram assemelham-se no sentido de serem instrumentos de tentativa de fixação

do tempo, uma forma de construir uma memória de seu autor (LEJEUNE, 2008.), como também

como um exercício de autoescrita performática (SELIGMANN-SILVA, 2009).

Figuras 1, 2 e 3 - Perfil e Publicações da Cantora Camila Cabello em seu Instagram Fonte: instagram: @camila_cabello

O perfil de Camila Cabello então, com mais de 13,5 milhões de seguidores, demonstra

uma preocupação singular no que diz respeito a sua construção como artista. Nas três imagens

acima observarmos tanto o ponto relativo a uma fixação mediada do presente, como já bem

falado, como a dimensão da autoescritura performática apontando para uma dimensão de

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representação e construção de sua figura pública. Nas postagens acima, Camila reforça uma

imagem de si mesma como preocupada com o mundo em que vivemos e o processo humano de

autodestruição do planeta. Sua escrita, realizada no presente, sob um sentimento que é

materializado de maneira momentânea, vislumbra também um futuro desejado por ela.

Nesse sentido é possível aproximarmos o do Instagram da Operação Midiográfica na

qual “a mídia atua na elaboração, tanto de acontecimentos emblemáticos, como de

conhecimento histórico a partir de narrativas que operam com categorias temporais na fundação

de sentidos” (SILVA, 2011. p.24). No caso da rede social, a Operação Midiográfica lidaria

com ambas as categorias de passado/presente/futuro com três finalidades principais:

publicizar/posicionar-se no presente, fixar e significar um passado (recente ou mais afastado),

e projetar uma imagem de si no/para o futuro. Todas estas finalidades estariam não apenas

expressas nas imagens e nos textos, mas nos processos de seleção, filtragem, editoração, e

descrição desenvolvidos no aplicativo para cada postagem, possibilitando assim se pensar sobre

práticas de cultura escrita e composição narrativa.

Figuras 4, 5 e 6 - Publicações da Cantora Camila Cabello em seu Instagram

Fonte: instagram @camila_cabello

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A valorização e representação de sua identidade cubana é um ponto de destaque no

Instagram de Camila como podemos visualizar acima. Republicando imagens produzidas por

fãs, a artista utiliza o meio digital como espaço de valorização, mas também de comunicação

com os mesmos. O próprio processo de seleção das imagens a serem publicadas no perfil do

Instagram aponta uma ideia de representações coletivas pensando que “são elas que transmitem

as diferentes modalidades de exibição da identidade social ou da potência política tal como as

fazem ver e crer os signos, as condutas e os ritos.” (CHARTIER, 2009. p. 50). Nesse sentido, a

análise do Instagram, através da perspectiva da cultura escrita, possibilita pensar também acerca

de diferentes experiências, ou de estratos de temporalidades, e espaços de disputas e

significações que permeiam os usos dessa rede social.

Considerações finais

Abordar o perfil de Camila Cabello como um estudo de caso permite pensar que nosso

presente é permeado pela confluência de hábitos de escrita, leitura, narração e composição que

articulam distintas temporalidades. Interpreta-se então que, “a leitura das diferentes

temporalidades que fazem que o presente seja o que é, herança e ruptura, invenção e inércia ao

mesmo tempo, continua sendo a tarefa singular dos historiadores e sua responsabilidade

principal para com seus contemporâneos.” (CHARTIER, 2009. p. 68). Articulando uma escrita

do momento, tal qual um diário, com recursos da imagem como um álbum de fotografias, o

Instagram então possibilita ao historiador refletir acerca das relações sociais contemporâneas

dos indivíduos com o tempo vivido, e os desejos de conferir perenidade as experiências vividas

em um contexto de sensação de aceleração do tempo. Junto a isso ainda se observa uma

necessidade constante de compartilhar suas experiências vividas construindo, através disso,

uma representação de si e de suas identificações por meio de operações midiográficas.

Nesse caso, seria possível se retomar e ampliar as contribuições de Ana Mauad (1996,

p. 10), para a qual “do ponto de vista temporal, a imagem fotográfica permite a presentificação

do passado, como uma mensagem que se processa através do tempo”. A expansão dos veículos

de comunicação, a ascensão das culturas participativas (JENKINS; GREEN; FORD, 2014) e

de novas práticas de registro do cotidiano, questões que perpassariam a cultura escrita e a

própria categoria de operação midiográfica, expandiriam essa própria noção de “passado” que

seria presentificado, tornando-o cada vez mais próximo do imediato. A fotografia na era digital,

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como é o caso da rede social Instagram, estaria inserida no contexto do presentismo (HARTOG,

2013), em uma invenção constante de um passado tendo como expectativa um presente

imediatista. Nesse sentido, o registro de um hoje almeja não apenas um futuro distante, mas o

futuro próximo, quase “ao vivo” que tem como perspectiva principal uma espetacularização do

eu (SIBILA, 2016), visando uma construção de si que perpassa as dimensões

passado/presente/futuro.

Tais processos observados, contudo, não estariam separados da própria dimensão da

historicidade dos suportes e das produções simbólicas em torno a construção das imagens. O

que se visualiza em redes sociais como o Instagram, seriam processos que transitariam entre os

diferentes estratos de tempo (KOSELLECK, 2014) que constroem nosso presente, podendo ser

associado a contextos como os processos de consolidação das classes burguesas e da construção

de álbuns fotográficos. Mais que isso, esses processos transitam pelas próprias camadas de

temporalidades uma vez que se relacionam diretamente com a operacionalização das categorias

de experiência e expectativa (KOSELLECK, 2006) na produção destas imagens, com ênfase na

última. Se nutre uma expectativa no momento de publicação destas imagens na rede social que

desponta em uma relação direta entre produtor e observador.

No caso de Camila Cabello, se observar principalmente uma expectativa ligada tanto a

uma construção de si de maneira individualizada, mas também como parte de “algo maior”,

como na ocasião em que publica imagens enviadas por fãs ou de contextos políticos. Nesse

caso, a imagem não se refere a um “eu” individualizado na própria imagem do artista, mas sim

na construção e/ou utilização de outras referências que o representem ou o façam “dar a ver”

(SIBILIA, 2016). Sendo a cantora inserida em uma indústria cultural, no qual a

imagem/representação estaria diretamente associada à sua construção identitária enquanto

artista, dai a própria representação com uma ideia de “latinidade”, gostaria de encerrar essa

breve comunicação com uma provocação. Nesse sentido, talvez seria possível alguns pontos do

processo de massificação das culturas e a construção de uma “sociedade do espetáculo”

(DÉBORD, 1997) onde a ideia de espetacularização não estaria nas imagens e na promoção da

industria necessariamente, mas na própria relação entre sujeitos em seu cotidiano.

No início do século XX, especialmente em função da massificação do cinema, se

visualiza uma alteração no próprio status do que seria ser um artista, em seu sentido mediático

e do mainstream (MACIEL, 2011). Se anteriormente a figura ligada ao cinema, assim como ao

rádio, estaria associada diretamente ao personagem o qual ela desempenharia, a partir desse

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contexto se visualizaria uma inversão de sentido onde o artista ocupa um papel central no

processo. Essa seria a hipótese ligada a noção de star’ system, discutida por Edgar Morin

(1989), para o qual a partir de então a cultura de “divas” ou construção de uma cultura das

“estrelas” emergiria. As considerações do autor perpassariam a ideia de que a partir das

primeiras décadas do século passado, seria possível se observar uma predominância do artista

sob seus personagens interpretados, e muitas vezes de sua própria obra se pensarmos no caso

da música Em outros casos, ambas as dimensões estariam intrinsecamente associadas. Os

veículos de comunicação e a cultura imagética em torno de tais estrelas seria fundamental

durante esse período pois, através de revistas ilustradas, assim como da televisão

posteriormente, se teria uma construção de figuras muito mais próximas.

Nesse sentido, levanto a provocação que abre um espaço ainda mais extenso de

discussão no qual o Instagram seria uma fonte fundamental para compreensão de nossa

contemporaneidade perpassada pelos estratos de tempo (KOSELLECK, 2014). Poderíamos, a

partir dessa discussão, pensar redes sociais, como o caso do Instagram, enquanto não apenas

elementos do processo de construção de novos artistas, mas também como partes fundamentais

na construção desses em perspectiva temporal na medida em que constroem relações próprias

entre passados, presentes e futuros? Essa questão certamente perpassaria os elementos até então

destacados, como a própria ideia de arquivamento do eu, representação de si e diferentes

construções de imagens de si para outros sujeitos projetando uma ideia do indivíduo que será

visto a curto prazo, mas que também, possivelmente, formaria um imaginário a longo prazo.

Partindo dessa compreensão, seria possível remontarmos a Didi-Huberman (1998), que

expande as discussões de Walter Benjamin, para o qual a imagem se refere a um processo

construído em um determinado contexto, cujo seu significado estará também ligado a quem

olharia ou a visualizaria. Dentro desse processo se teria uma produção de interpretação ou uma

leitura acerca desta, perpassando as intenções do sujeito em sua elaboração, mas também as

intenções de construção e o próprio presente vivido visto como diretamente colado a essa

produção em um passado, seja esse próximo ou não. Seria dentro esse debate que as

considerações de Artiéres (1998) sobre construção de si em arquivos pessoais e de Seligmann-

Silva (2009) sobre as escritas sobre si mesmo em diários ou outros suportes, poderiam ser

novamente retomadas. Nesse sentido, voltaríamos a própria questão da cultura escrita, para

considerarmos então que seria impossível se visualizar texto e imagem dissociados em seus

processos construtivos dentro desses jogos temporais no Instagram.

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