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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS ESCOLA DE MÚSICA E ARTES CÊNICAS
CURSO DE ARTES CÊNICAS / LICENCIATURA
LARISSA STTÉFANY DE PAULA GUEDES
ERA UMA VEZ UM CIRCO:
A HISTÓRIA DO CIRCO LAHETO
GOIÂNIA 2013
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LARISSA STTÉFANY DE PAULA GUEDES
ERA UMA VEZ UM CIRCO:
A HISTÓRIA DO CIRCO LAHETO
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao curso de Artes Cênicas da Universidade
Federal de Goiás como requisito parcial para
obtenção do título de Licenciatura Plena em
Artes Cênicas.
Orientador: Prof. Ms. Hélio Nogueira Fróes
GOIÂNIA
2013
3
Este trabalho é dedicado a todas as pessoas de circo, de hoje, de outros tempos, e aos que ainda virão. Especialmente ao pessoal do Circo Laheto. À Seluta Rodrigues, Maneco Maracá (Valdemir de Souza) e família.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço em primeiro lugar a minha mãe, Helaine Paula, que sempre foi meu
modelo de caráter e índole, a quem admiro profundamente e faço questão de
dedicar todas as minhas conquistas.
À Urânia Maia, minha grande amiga e educadora, que com sua generosidade e
acolhimento me guiou pelos complexos caminhos da vida acadêmica.
À Hélio Fróes, meu orientador e parceiro, que com sua gentileza e
sensibilidade, apontou-me os melhores caminhos para a escrita.
À todos os meus amigos e companheiros de turma, em especial Aline Freire,
Lorena Fonte, Marcos Dávila e Urânia Lima, pelo companheirismo, apoio e
dedicação que sempre demonstraram.
À todos os meus companheiros do circo de rua, do circo itinerante e do circo
escola.
Aos meus companheiros de vida e arte, pela presença e inspiração.
À memória do Palhaço Palito, que muito fez pelo Circo Laheto.
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“Pensamos demasiadamente, sentimos
muito pouco. Necessitamos mais de
humildade que de máquinas. Mais de
bondade e ternura que de inteligência.
Sem isso, a vida se tornará violenta e
tudo se perderá.” (Charlie Chaplin).
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar e relatar a história do Circo Laheto e
sua prática de ensino aprendizagem. Desta maneira, o primeiro capítulo terá
um cunho introdutório, dando enfoque para a apresentação da história do
Circo, desde sua idealização. O segundo descreverá as produções artísticas do
grupo, dentre espetáculos e prestações de serviços. Enquanto o terceiro
demonstrará o processo de ensino aprendizagem do circo-escola Laheto. A
pesquisa, classificada como exploratória, descritiva e explicativa, consolidou-se
por meio de investigações bibliográficas, documentais e através de estudo em
campo, incluindo entrevistas e registros fotográficos. Através desta monografia,
pretendo contribuir para que haja o preenchimento de possíveis lacunas
existentes no curso de Artes Cênicas, criando uma ponte entre o fazer
acadêmico e o conhecimento empírico das artes circenses. Almejo ainda que
este material sirva como fonte para futuras pesquisas relacionadas ao tema,
colaborando também para a perpetuação e fortalecimento da memória do circo
enquanto tradição, bem como a importância do trabalho desempenhado pelo
circo social.
Palavras-chave: circo, circo social, arte-educação, Laheto.
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ABSTRACT
This work aims to investigate and report the story of Circo Laheto and practice
of teaching and learning. Thus, the first chapter will have an introductory nature,
focusing for presenting the history of the circus, from its conception. The second
will describe the artistic productions of the group, among spectacles and
services. While the third will demonstrate the process of teaching - learning
circus school Laheto. The survey, classified as exploratory, descriptive and
explanatory, was consolidated through bibliographic, documentary and through
field study, including interviews and photographic records investigations.
Through this thesis, I intend to contribute so there filling possible gaps in the
course of Performing Arts, creating a bridge between the academic and
empirical knowledge to circus arts. Still crave that this material serves as a
source for future research related to the topic, also contributing to the
perpetuation and strengthening of the circus tradition while memory as well as
the importance of the work performed by social circus.
Keywords: circus, social circus, art education, Laheto.
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SUMÁRIO DE FIGURAS
Figuras 1 e 2: Os fundadores do grupo - Maneco Maracá, Seluta Rodrigues,
André Urapuã e Ery Ferreira. Fonte: Acervo do Circo Laheto. ....................... 18
Figura 3: As primeiras aulas no Centro Comunitário do bairro - antes da
instalação da lona no espaço do Instituto Dom Fernando – 1996. Fonte: Acervo
fotográfico do Circo Laheto. ............................................................................. 19
Figura 4: Grupo de crianças do Instituto Dom Fernando – 1998. Fonte: Acervo
fotográfico do Circo Laheto. ............................................................................. 20
Figura 5: Espaço sendo preparado para instalação da lona – 2004. Fonte:
Acervo fotográfico do Circo Laheto. ................................................................. 21
Figura 6: O arte educador Fábio Nunes esticando a lona para ser levantada -
2004. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. ........................................... 22
Figura 7: Construção das demais dependências – 2004. Fonte: Acervo
fotográfico do Circo Laheto. ............................................................................ 22
Figura 8: Montagem da nova lona do Laheto. Fonte: Acervo fotográfico do
Circo Laheto. ................................................................................................... 24
Figura 9: Flyer do I Festival de Circo Social da Nossa América – 2010. Fonte:
http://grupolaheto.blogspot.com.br/2010/09/i-festival-de-circo-social-da-
nossa.html. Acesso em 20/11/2013. ................................................................ 88
Figura 10: Arte educador Renato da Silva com cerca de nove anos de idade.
Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. ..................................................... 30
Figura 11: Artistas e ex-alunos do Laheto. Apresentação do espetáculo Circo,
Magia e Estripulia. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. ....................... 33
Figura 12: Danilo Lúcio, o palhaço Arrelia, em um de seus números do
espetáculo Acroloucos. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. ............... 34
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Figura 13: Trupe do Laheto em número com saltos acrobáticos, no mesmo
espetáculo. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. ................................ 34
Figura 14: Cena que representa a chegada dos povos que constituíram o
nosso estado. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. ............................. 35
Figura 15: “A colheita do milho para fazer pamonhas”, representado por um
número com malabares. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. .............. 35
Figura 16: Número de trapézio representando as mocinhas do campo. Fonte:
Acervo fotográfico do Circo Laheto. ................................................................. 35
Figura 17: Número de pernas-de-pau: as influências indígenas em Goiás.
Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. ..................................................... 35
Figura 18: Entrega do Prêmio Itaú Unicef – 2013. Fonte: Acervo fotográfico do
Circo Laheto. .................................................................................................... 38
Figura 19: Início das aulas em mais um semestre no Circo Laheto – recepção
dos alunos. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto. .................................. 40
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 11
1. O CIRCO CHEGOU: A HISTÓRIA DO CIRCO LAHETO
1.1 - O circo pelo mundo e suas origens no Brasil........................................... 12
1.2 - Laheto, um circo goiano........................................................................... 17
1.3 - O Circo Social e os fundamentos do Laheto............................................ 24
2. HOJE TEM ESPETÁCULO: O CIRCO LAHETO E SUA ARTE EM CENA
2.1 - As relações profissionais, familiares e afetivas no Circo Laheto.............. 29
2.2 - As produções do Circo Laheto: prestação de serviços, produtividade
artística e espetáculos do grupo....................................................................... 31
3. UMA ESCOLA DE CIRCO: O PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM
DO CIRCO LAHETO
3.1 – Os processos pedagógicos do Circo Laheto e seus desdobramento...... 39
3.2 – Desafios e possibilidades educacionais do circo escola......................... 42
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 47
REFERÊNCIAS................................................................................................ 48
ANEXOS
1 – Entrevista I.................................................................................................. 50
2 – Entrevista II................................................................................................. 56
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INTRODUÇÃO
A vontade de investigar sobre a trajetória e a linha de trabalho do
Circo Laheto brotou de meus interesses pessoais. Há alguns anos estudo e
pratico modalidades das artes circenses. Tudo o que permeia o ambiente do
circo me desperta interesse de alguma maneira. Sendo assim, almejando dar
continuidade às minhas pesquisas nesta área, surgiu a anseio de decompor a
história e a metodologia de ensino do Circo Laheto em trabalho monográfico.
Unindo-se a essa vontade, encontra-se também a necessidade de
enaltecer a beleza e a importância do trabalho que o Circo Escola Laheto vem
desenvolvendo ao longo dos anos. Bem como a bravura de seus idealizadores
que mantem vivas as tradições circenses e a coragem de seu pessoal, que dá
suporte para que os ideais de aprendizagem em arte-educação possam se
concretizar no cotidiano das crianças e adolescentes amparadas pela
instituição.
Outra possibilidade que vislumbro ao realizar esta investigação é a
de suprir uma das carências deste curso de Artes Cênicas: a falta de material
específico sobre circo. Uma vez que o curso possui esta nomenclatura, deveria
abarcar também conhecimentos da área circense, bem como outras
modalidades de artes cênicas que não citarei neste relato. É de suma
importância que a universidade possua um acervo bibliográfico voltado às artes
circenses, para que futuramente possa servir como fonte de pesquisa a outras
pessoas, e também para que a história do circo se perpetue e se fortaleça.
Visto que existem ainda poucos registros sobre circo e circo-escola
no Brasil, e em especial sobre o Circo Laheto, gostaria de contribuir para o
acervo bibliográfico deste tipo de assunto. Creio que será também uma
importante contribuição para a comunidade circense do estado de Goiás.
É ainda de meu interesse dar prosseguimento a essa pesquisa em
um projeto de mestrado, abordando posteriormente questões de âmbito
subjetivo, tais como a importância do trabalho coletivo no desenvolvimento da
autoconfiança e autoconhecimento; o despertar para o sentimento de
alteridade a partir da aprendizagem de determinadas técnicas circenses, entre
outras possíveis abordagens de cunho pedagógico.
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1. O CIRCO CHEGOU: A HISTÓRIA DO CIRCO LAHETO
1.1 -– O circo pelo mundo e suas origens no Brasil
Você já foi ao circo? Se a resposta for positiva, o leitor, muito
provavelmente, irá se identificar com este trabalho. Contudo, se a resposta for
negativa, não se desespere, pois sempre há tempo de deixar-se arrebatar pela
magia de um espetáculo circense. Mesmo quem nunca tenha ido a um circo,
poderá se familiarizar com essa leitura. Afinal, especialmente nos dias atuais,
ele está presente em muitos lugares. Não é preciso estar debaixo de uma lona
para ser contagiado pelos incríveis feitos circenses. Malabaristas nas ruas,
fazendo mirabolâncias nos semáforos pela cidade; palhaços nas praças e
parques, abrindo roda, tocando instrumentos malucos, mexendo com os
passantes; acróbatas e bailarinos aéreos se apresentando em eventos
diversos: tudo isso é circo! E ele pode estar onde menos esperamos.
O circo é democrático. Nele cabem todas as diferenças, encontram-
se todas as idades, as classes sociais, as cores de pele, as profissões, as
orientações sexuais e tantas outras distinções. Nele também cabem e se
adaptam inúmeras modalidades artísticas. E quando se ouve a célebre frase
que costuma dar início aos espetáculos: “Respeitável público, com vocês, o
maior espetáculo da Terra!”, não duvide. Mesmo com as mais precárias
estruturas que um circo possa ter, poderá ser de fato o maior espetáculo de
todos, pois o circense dará tudo de si para que o público saia de seu show
impressionado e maravilhado. Não importa que seja uma pequena lona ou uma
grande companhia, a magia do circo é universal e fala todas as línguas.
Aqui, contarei a história do Laheto, que é muito mais do que
somente um circo. É uma escola e uma provedora de oportunidades para
aqueles que estão à margem de uma sociedade segregada e cheia de valores
deturpados.
Para compreender melhor a magnitude e a peculiaridade do ofício
circense, voltemos brevemente aos primórdios. Ruiz diz que “a rigor é muito
difícil, de fato, precisar a data de origem dos espetáculos, em recintos abertos
ou fechados, que marcam o surgimento do gênero” (1987, p.14). Entretanto
acredita-se que o circo teve suas origens na China a mais de cinco mil anos. A
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acrobacia era uma das formas de treinamento dos guerreiros orientais. Através
das técnicas acrobáticas, podia-se aperfeiçoar a força, a agilidade e a
flexibilidade. Com o passar do tempo essas qualidades se uniram á
graciosidade, a beleza e a sutileza dos movimentos, deixando de ser um
coadjuvante dos exercícios preparatórios para as batalhas, para se tornar uma
arte mais específica, peculiar.
Pelo mundo, anos mais tarde, a arte circense foi se alastrando e
incorporando novas formas, sendo influenciada por diversas tendências e
culturas distintas. No Egito, exibiam-se os animais ferozes que eram
capturados em terras conquistadas pelos exércitos dos faraós. Na Grécia
Antiga, o equilíbrio mão a mão, as paradas de mão, o contorcionismo e os
números de força eram modalidades olímpicas. Sátiros davam origem ao que
hoje seria o palhaço, fazendo o público rir e se divertir com suas artimanhas e
truques. Os Sátiros ou Faunos eram representações de seres mitológicos,
metade homem, metade bode. Personagens muito recorrentes nos “dramas
satíricos”, peças leves que o teatro grego apresentava como complemento e
alívio cômico de uma trilogia trágica. Na Índia, junto ás danças e músicas,
números com saltos e contorcionismo fazem parte dos rituais sagrados há
milênios. Em Roma, foi erguido o Circo Máximo, que foi destruído por um
incêndio, e deu lugar anos mais tarde ao Coliseu, onde eram apresentadas
extravagâncias que divertiam o público romano, tais como batalhas entre
gladiadores, exibição de animais exóticos e engolidores de fogo1.
Diversos grupos mambembes circulavam pela Europa do século
XVIII, sobretudo na França, na Inglaterra e na Espanha. Os artistas se
apresentavam improvisadamente em feiras, praças e outros locais públicos
durante séculos. Não era ainda o circo como o conhecemos hoje, não havia
lona nem arquibancadas. Eram apenas números de variedades, como os
vaudevilles2 ou a comédia dell’arte3, onde eram apresentadas atrações como,
1 Mais informações sobre a origem do circo podem ser encontradas na obra Hoje tem
espetáculo? As origens do circo no Brasil (1987), de Roberto Ruiz.
2 Os Vaudevilles eram espetáculos de variedades composto de uma miscelânea de números
sem relação entre si, como apresentações musicais, números cômicos, danças, acrobacias, mímica, e outros.
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danças acrobáticas, números com cavalos e doma animal, malabarismo,
habilidades incomuns, truques de ilusionismo e até mesmo exibição de
anomalias humanas4.
O primeiro circo europeu moderno surge através do trabalho de
Philip Astley, inglês, nascido em 1742. Astley foi sargento da cavalaria real e ao
sair do exército fundou o primeiro manejo para cavalos, que inicialmente era
uma pista de equitação com barreiras para saltos e transformou-se
posteriormente em um picadeiro de forma circular, que, devido a força
centrifuga, proporcionava melhores condições de equilíbrio para os cavaleiros e
o domínio dos equinos. Além disso, o formato circular possibilitava uma melhor
visão do espetáculo ao público.
Aos poucos outros artistas foram se incorporando aos espetáculos
de Astley, como os Ferzi, uma trupe de acrobatas famosos da época. Esse tipo
de entretenimento ficou famoso entre a aristocracia europeia da época. Foi
então que Philip, vendo sua ideia deslanchar e desejando cada vez mais
espectadores, resolveu inserir em seus shows atrações como clowns,
ventríloquos, dançarinas, e outras vertentes de variedades artísticas.
Transformou mais tarde a escola de equitação em um anfiteatro de artes, o
Astey’s Royal Amphitheater, onde permaneceu a pista para espetáculos
equestres e foi construído um palco para apresentações diversas. Circus foi o
nome dado pelos ingleses a este local, que fazia referência ao caminho das
carroças.
Os artistas mambembes encontraram no Astey’s Royal
Amphitheater, uma oportunidade para migrar das praças, ruas e locais
públicos. Afinal era um espaço específico para as artes, com uma boa
infraestrutura, e, além disso, recebiam um pagamento periódico pelo trabalho.
Philip Astley não abriu mão da disciplina militar que lhe foi ensinada
no exército. Os trajes pomposos e impecáveis, o rufo dos tambores, as vozes
de comando e outras tradições militares (que permanecem até hoje) faziam
3 A Comédia Dell’Arte foi uma forma de teatro popular improvisado, que começou no séc. XV
na Itália e desenvolveu-se posteriormente na França. Manteve-se popular até o séc. XVIII.
4 Mais informações sobre a origem do circo podem ser encontradas também na Biblioteca
Virtual de São Paulo.
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parte dessa rigidez disciplinar adotada pelo ex-sargento. Somente os melhores
cavalariços e artistas da época se apresentavam em seu circo. De 1793 e
1795, Astley deixou o circo para voltar às frentes de batalha. Morreu em 1814,
em Paris, aos 72 anos.
As origens das artes circenses no Brasil devem-se principalmente à
imigração de artistas estrangeiros para o país. Juntando-se a estes, alguns
ciganos e suas famílias também foram precursores e mantenedores dessa arte
por aqui. Alguns historiadores e pesquisadores, como Alice Viveiros de Castro
afirmam que o surgimento do circo no Brasil se deu a partir do início do século
XIX.
No Brasil, a partir do início do século XIX, registra-se a presença de várias famílias circenses europeias, trazendo a “tradição” da transmissão oral dos seus saberes. A organização do circo, dos diferentes lugares para os quais os artistas migraram, foi marcada pelas relações singulares estabelecidas com as realidades culturais e sociais específicas de cada região ou país, sem quebrar a forma de transmissão do saber: familiar, coletiva e oral. Esta forma perdura até os dias de hoje, particularmente nos grupos circenses itinerantes da lona. (CASTRO, 2009, p.25)
Entretanto, Ruiz, faz uma ressalva, dizendo que “na verdade,
registros diversos afirmam que saltimbancos já existiam no Brasil desde o
século XVII, mas sempre agregados a apresentações teatrais.” (1987, p.21)
Ainda segundo Ruiz, o circo, a bem dizer, nos moldes que
conhecemos hoje, se consolidou apenas no século seguinte. E como nome
registrado somente em 1828. O circo de Manoel Antônio da Silva é o primeiro
que aparece.
A tradição circense brasileira assegura que o primeiro grande circo a
chegar ao Brasil foi o Circo Bragassi, em torno de 1830. Contudo, nos
interiores do Brasil a fora, já haviam pequeninos circos de pau-a-pique. Tudo
era improvisado.
A vinda dos primeiros circos parece que estimulou muitos mais lá por fora, correndo mundo a noticia de que havia bastante dinheiro a ganhar por aqui, e, assim, eles foram vindo e formando as grandes famílias circenses que iriam construir o circo brasileiro. (RUIZ,1987, p.21)
A lista dos pioneiros é grande. Circenses e famílias vindas de todas
as partes do mundo, principalmente de Portugal, França, Espanha, Itália e
Argentina, foram alicerçando o Circo no Brasil, afrontando os tempos difíceis e
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resistindo à implacável e hipnotizante presença da Televisão. Enfim, firmaram
uma tradição circense em terras brasileiras.
O circo no Brasil é de origem humilde, por assim dizer. Lonas
pequenas, com um espaço que procurava ser versátil, com uma maior
mobilidade estrutural, em relação ás grandes companhias circenses que tinham
espaços específicos para cada um de seus números artísticos. Essa
versatilidade surgiu da necessidade de adaptação conforme as circunstâncias
que o circo encontraria para prosseguir com seus espetáculos diários, sendo
que, nem sempre se podia contar apenas com os números circenses. O palco
e o picadeiro desses pequenos circos também abrigavam outros tipos de
atrações artísticas como shows musicais e peças teatrais.
Os palhaços eram e são ainda hoje, peças fundamentais para os
espetáculos circenses. Na maioria dos circos eles têm papel de destaque.
Funcionam, sobretudo, como elementos “coringas”, que estão sempre
preparados para dar suporte no acontecimento de alguma eventualidade que
possa por em risco o pleno andamento do show (alguma falha técnica ou
humana, algum atraso na entrada da próxima performance, algo atípico que se
sucede na platéia, etc.). Em geral, e principalmente nas famílias de tradição
circense, o ofício de ser palhaço era passado de pai para filho5.
Apesar dos aspectos tradicionais, é presumível que o circo sempre
tenha um caráter saltimbanco, de inovação e incorporação de novas técnicas,
de acolhimento de novas modalidades, completamente influenciável por novas
tendências, reciclando-se e reinventando-se a cada época, tornando o público
cada vez mais próximo, como diria Bolognesi em sua obra “Circo e Palhaços
Brasileiros”:
O espetáculo circense é plenamente aberto e receptivo às mais diversas e contrastantes manifestações culturais. Ele não se rege pelo estigma da obra enclausurada em si mesma; ele não se deixa levar pelo referencial estético da obra dada à apreciação. O circo incorpora em seu espetáculo o público. (BOLOGNESI, 2009, p.250)
5 Podem ser encontradas mais informações sobre a origem do circo no Brasil em: Hoje tem
espetáculo? As origens do circo no Brasil (1987), de Roberto Ruiz; Palhaços (2003), Circo e Palhaços Brasileiros (2009), de Mario Fernando Bolognesi; Respeitável Público... O Circo Em Cena (2009), de Ermínia Silva e Luiz Alberto de Abreu.
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Hoje, nos deparamos com outras maneiras do fazer circense.
Podemos encontrar escolas de circo espalhadas por todo o Brasil. Geralmente,
os fundadores e/ou professores dessas instituições, legalizadas ou informais,
são pessoas de circo, com tradição familiar ou não. Por afinidade de áreas,
algumas pessoas com formação em Educação Física, Teatro, Dança e afins
também fazem parte desse corpo docente. Essas escolas podem ser
profissionalizantes ou não, dependendo do interesse de cada aluno, e também
da proposta da própria escola. No caso do Circo Laheto, veremos, adiante, que
a proposta é antes de tudo, formar seres capazes de exercer a cidadania,
aprendendo valores humanos através da arte. Integrando projetos pedagógicos
à pratica e o convívio com as modalidades circenses, o Laheto vem
trabalhando a cerca de vinte anos com crianças e adolescentes em situação de
risco da cidade de Goiânia. É um trabalho muito importante para a sociedade
como um todo, pois além de tirar esses jovens das ruas e de um ócio nada
criativo, o circo abre janelas de esperança para que meninos e meninas
possam fazer das artes circenses uma profissão.
1.2 – Laheto, um circo goiano
Seluta Rodrigues morava em Goiânia, e participava de um grupo de
teatro popular chamado Pau-a-Pique. Em 1993, este grupo resolveu fazer um
festival de teatro comunitário. Para este festival, veio do Mato Grosso o
Maneco Maracá (Valdemir de Souza). Os dois se conheceram e começaram
um namoro desde então. Maneco logo teve que voltar para a terra onde vivia,
mas não pôde deixar de convidar a moça para passar uma temporada em
Santa Terezinha-MT. Ela foi e lá mesmo já combinaram de viver juntos. A
primeira ideia era que Seluta se mudasse para o Mato Grosso. Mas em março
de 1994, foi o Maneco que se mudou para Goiânia. Nesse mesmo ano, o casal
começou a montar o que na época era o Grupo de Teatro Laheto. Ambos
cheios de ideais, querendo discutir política, educação e outros assuntos
através da arte. Neste período, contaram com a parceria de dois rapazes que
ajudaram a fundar o grupo: André Urapuã, que também veio do Mato Grosso,
onde já desenvolvia um trabalho com comunidades indígenas; e Ery Ferreira,
ator e radialista goiano, formado pela Universidade Federal de Goiás.
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Figura 1 - Os fundadores do grupo - Maneco Maracá, Seluta Rodrigues, André Urapuã e
Ery Ferreira. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
Figura 2 - Idem. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
Entretanto, nesse período da capital goiana, trabalhar com circo
ainda era muito novo e a linguagem circense era pouco explorada. Ficaram
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como grupo de teatro por um tempo, com nome registrado e tudo, mas logo
depois mudaram para Circo Laheto, pois o trabalho que se fazia estava muito
mais voltado para o circo do que para o teatro. O público goianiense então
começou a conhecer o trabalho do grupo e a se interessar pelas oficinas e
números de circo. Em 1996, Maneco foi convidado para desenvolver um
projeto de extensão na Universidade Católica (atual PUC), no Instituto Dom
Fernando6, que existe ainda hoje. Foi ele quem começou a Escola de Circo
Dom Fernando. Um pouco depois, convidaram também a Seluta para participar
do projeto. Com muito esmero, o casal criou e cultivou tudo o que ainda há por
lá, incluindo as plantas, com alguns recursos da universidade e a ajuda da
comunidade.
Figura 3 - As primeiras aulas no Centro Comunitário do bairro - antes da instalação
da lona no espaço do Instituto Dom Fernando - 1996. Fonte: Acervo fotográfico do Circo
Laheto
6 O Instituto Dom Fernando (IDF) foi criado pela Sociedade Goiana de Cultura em março de
1995. Pensado inicialmente como Instituto de Educação Ambiental, Cultural e Cidadania, o IDF preparou-se no ano de 2005 para incorporar a criação de um instituto capaz de abranger as dimensões das Ciências Humanas e dos diversos programas de extensão da Universidade Católica de Goiás, voltados para as áreas da infância, adolescência, juventude e família.
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Figura 4 - Grupo de crianças do Instituto Dom Fernando. Entre elas, os arte educadores
Fábio Nunes e Renato da Silva – 1998. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
Houve uma ampla adesão da população local. Logo conseguiram
aprovar projetos de leis de incentivo à cultura, atraíram alunos, firmaram
parcerias. Contudo, no ano 2000 a coordenação do instituto mudou, e com ela,
mudou-se a filosofia de trabalho. Então o casal se deu conta de que a forma de
trabalho deles não era mais compatível com a da instituição e desvincularam o
projeto.
Um novo capítulo dessa história se iniciaria ali, com a mudança do
Instituto Dom Fernando para o Parque da Criança7. Ainda no ano 2000, a
convite de Adair Meira, que era quem coordenava o parque na época,
mudaram-se para a área superior, onde atualmente funciona a Associação dos
Magistrados. Neste tempo, o parque estava em fase de revitalização.
Pode-se dizer que foi a partir daí que nasceu de fato o Circo Laheto.
Agora, com o novo espaço, o projeto se tornaria independente, começaria a
trabalhar com recursos próprios. Porém, como toda independência demanda
7 O Parque da Criança é uma área estadual que se encontra na região leste de Goiânia, bem
ao lado do Estádio Serra Dourada. Este espaço sofre hoje um impasse judicial acerca de uma possível especulação imobiliária. Espera-se do Governo Estadual uma posição favorável à permanência do parque, que abriga hoje além do Circo Laheto; a Feira do Cerrado, que privilegia artesãos locais; a ASMEGO (Associação dos Magistrados do estado de Goiás); e outros órgãos públicos.
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abdicações e concessões, assim também foi com a equipe do Laheto. Seluta
relembra: “Então vieram as dificuldades, porque a gente não tinha
equipamento, não tinha nada. E aí de ‘vagarinho’ nós fomos comprando as
coisas, com o dinheiro de cada apresentação que fazíamos” (informação
verbal)8. Os primeiros alunos do circo nessa nova “casa” foram as crianças e
adolescentes que já participavam do projeto quando este acontecia nas
dependências do Dom Fernando, que, por terem estabelecido uma grande
afinidade com o casal de artistas/educadores, não quiseram abrir mão dessa
convivência.
Mais adiante, em 2004, foram fatidicamente despejados da área
superior do parque, e transferiram-se para a parte de baixo, onde permanecem
até hoje. Ficaram aproximadamente entre 2004 e 2005 construindo a estrutura
que se tornaria a sede do Circo.
Figura 5 - O espaço sendo preparado para instalação da lona – 2004. Fonte: Acervo
fotográfico do Circo Laheto.
8 Entrevista concedida por CARVALHO, Seluta Rodrigues de. Entrevista I. (set. 2013).
Entrevistador: Larissa Sttéfany de Paula Guedes. Goiânia, 2013. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita nos Anexos desta monografia.
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Figura 6 - O arte educador Fábio Nunes esticando a lona para ser levantada - 2004. Fonte:
Acervo fotográfico do Circo Laheto.
Figura 7 - Com lona já instalada, construção das demais dependências – 2004. Fonte:
Acervo fotográfico do Circo Laheto.
Esta foi uma fase muito difícil, como nos confidencia Seluta. Muita
coisa se perdeu, entre equipamentos e materiais de trabalho. Por algum tempo,
até que o novo espaço ficasse pronto, a própria residência do casal serviria de
escritório improvisado para os assuntos do Circo. As atividades práticas
tiveram que ser interrompidas nesse período, pois não havia tempo e nem local
para que acontecessem. Os ânimos estavam todos voltados para esta
empreitada. Mas finalmente, em 2005, houve a reinauguração do Circo Laheto,
e desde então nunca mais pararam. O grupo foi crescendo, se multiplicando,
tomando forma e identidade, até tornar-se o que é hoje: uma incrível “família”
cheia de felizes agregados.
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E por falar em relações familiares, Seluta Rodrigues relata da
seguinte forma a relação do Circo com sua família:
Bom, a nossa família se confunde com o circo, né. Não se sabe onde termina e onde começa o Circo Laheto. Uma vez, conversando com uma terapeuta minha, ela me disse que o Laheto estava até na nossa cama! (risos). Só que já melhorou muito, hoje, com a maturidade, a gente já consegue diferenciar as coisas. Inclusive as nossas próprias funções aqui dentro. Porque antes era uma mistura, uma confusão. Atualmente nós já definimos o que é responsabilidade de cada um, e ficou bem mais tranquilo assim. (informação verbal).
9
Seluta e Maneco têm dois filhos, uma menina de quinze anos e um
menino de seis. Hoje, a mais velha, Dalila, já tem uma função no circo.
Trabalha como “brinquedista”10. Além de ser também uma importante artista
para a trupe, pois consegue executar praticamente todos os números dos
espetáculos, podendo dar suporte e/ou substituir diversos artistas se preciso
for. Apaixonados pelo circo, Dalila e o pequeno Andirê, que já começa a dar
seus primeiros passos na perna de pau, representam de fato a primeira
geração circense da família.
Ao falar sobre a conquista da lona, Seluta conta que já haviam
conseguido uma loninha, bem pequena, fruto de um convênio feito com a
Universidade Federal de Goiás. Esta, por sua vez, era emprestada em troca de
ações feitas pela equipe do circo para a instituição, como apresentações,
montagem e desmontagem da tenda em eventos, etc. Ficaram por muito tempo
com a loninha da UFG. Mais adiante, escreveram um projeto para uma
organização espanhola chamada Manos Unidas11, solicitando recursos para a
compra de uma lona própria. Uma moça que veio da Espanha para conhecer o
circo gostou do projeto, o encaminhou para a ONG e argumentou em nome do
grupo. Conseguiram enfim a aprovação e a captação do dinheiro. Com esse
9 Entrevista concedida por CARVALHO, Seluta Rodrigues de. Entrevista I. (set. 2013).
Entrevistador: Larissa Sttéfany de Paula Guedes. Goiânia, 2013. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita nos Anexos desta monografia.
10 Brinquedista é uma pessoa capacitada para atuar em vários segmentos de uma
brinquedoteca. No caso do Laheto, brinquedista é a pessoa que cuida e disponibiliza os brinquedos para as crianças nas horas de lazer e descanso, ou de atividades com os mesmos.
11 A Manos Unidas é uma organização não governamental católica espanhola que promove e
apoia o desenvolvimento do Terceiro Mundo. Esta ONG trabalha para erradicar as causas estruturais que produzem problemas como: a fome, a má nutrição, a pobreza, a doença, o subdesenvolvimento e a falta de educação. Colaboram com o desenvolvimento das comunidades e pessoas de varias nações espalhadas pelo mundo.
24
recurso puderam comprar duas lonas (uma maior e outra menor) e também
montar uma biblioteca que dá suporte a um programa de incentivo à leitura de
impacto muito relevante para a comunidade atendida.
Figura 8 - Montagem da nova lona do Laheto. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
De lá para cá, com o passar do tempo e ao sabor dos
acontecimentos, o circo vem se sustentando como pode. Apesar de todas as
dificuldades que o grupo enfrenta para sobreviver, pagar seus funcionários e
executar seu importante trabalho junto à comunidade, o que não falta é boa
vontade e disposição. Atualmente, mantém-se da seguinte maneira:
escrevendo projetos, aprovando alguns, outros não; recebendo doações
diversas; contando com a ajuda de voluntariados e a bem-aventurança de sua
equipe.
1.3 – O Circo Social e os fundamentos do Laheto
Na atualidade, o conceito de Circo Social está sendo largamente
difundido pelo Brasil e pelo mundo. Existe uma vasta diversidade de
concepções metodológicas desenvolvidas sobre esta ideia. Entretanto, pouco
se sabe sobre a origem exata desse conceito e sobre as condições do seu
aparecimento. Neste tópico, pontuarei sobre o que significa Circo Social, para
além da união de técnicas circenses à crianças e jovens de classes
desfavorecidas, como se subentende em uma abordagem rasa. Em entrevista
com Valdemir de Souza (Maneco Maracá), pude conhecer um pouco mais
sobre o surgimento desta que se consolidou como uma nova modalidade
circense. Ele destaca:
25
A partir das informações que nós temos, tudo indica que o Circo Social nasceu no meio dos movimentos populares mesmo, como um mecanismo de diálogo com as comunidades de base. Nasceu dentro da Igreja. Como no Araguaia, por exemplo, quando nós começamos, tanto o teatro quanto o circo era uma forma de aproximar dos povos da floresta, dos índios, dos posseiros e tal, levando a arte e buscando um diálogo, naturalmente com um conteúdo político e pedagógico inseridos. (informação verbal).
12
De acordo com as informações colhidas na entrevista, o Circo Social
no Brasil teve início dentro da Igreja, uma vez que os primeiros núcleos dessa
variante surgiram em Pernambuco, com um bispo ligado à igreja católica; no
Rio de Janeiro, com Betinho13; e no Araguaia com Dom Pedro Casaldáliga14,
adepto da teologia da libertação15.
Atualmente o conceito de Circo Social se tornou algo bastante
relevante, pois conseguiu ser instituído como um novo modelo de circo, sendo
inclusive contemplado por um edital que atende suas especificidades, que são
diferentes do Circo de Rua16 e do Circo Itinerante17. Maneco também nos conta
sobre como foi difícil obter a aceitação do circo social perante o tradicionalismo
do circo itinerante. Muitos artistas tradicionais dizem que o indivíduo somente
pode ser legitimado como circense se o conhecimento for transmitido
hierarquicamente, através das gerações. Valdemir acredita que tal resistência
12
Entrevista concedida por SOUZA, Valdemir de. Entrevista II. (set. 2013). Entrevistador: Larissa Sttéfany de Paula Guedes. Goiânia, 2013. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita nos Anexos desta monografia.
13 Herbert José de Sousa, o Betinho, foi um importante ativista social brasileiro. Mineiro,
formado em sociologia, jamais se esqueceu das causas sociais a que se dedicava. Mobilizou-se contra a ditadura militar, e durante o governo de João Goulart defendeu as reformas de base, principalmente a reforma agrária.
14 Dom Pedro Casaldáliga, nos anos setenta, foi nomeado como administrador apostólico da
prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Era adepto da teologia da libertação, obteve larga visibilidade mundial por sua intrépida resistência contra a ditadura militar. Escreveu vários poemas e obras sobre ecologia, antropologia e sociologia.
15 Em termos simplificados, a Teologia da Libertação seria a tentativa de uma interpretação das
Escrituras Sagradas através da ótica dos pobres. Um movimento apartidário, com uma doutrina de perspectiva mais humanista.
16 O referido “Circo de Rua” é formado por artistas que se apresentam em lugares alternativos,
geralmente locais abertos como praças, calçadas, semáforos, e outros. Podem se apresentar sozinhos ou em grupos. Ao fim dos shows é de costume “passar o chapéu” para recolher as contribuições em dinheiro do público.
17 O Circo Itinerante também é chamado de Circo Tradicional. São geralmente famílias que
trabalham e moram nas dependências do próprio circo, e o acompanham aonde for.
26
em relação a essa nova modalidade é um processo natural, e advém de
pensamentos mais antigos, ultrapassados, que nos dias atuais já estão
bastante amenizados devido ao diálogo perene entre as vertentes. Quando
questionado sobre as principais diferenças entre o “tradicional” e o “social”,
Maneco respondeu da seguinte maneira:
O Tradicional tem uma característica de possuir números mais ousados, talvez não tão bem elaborados, mas ousados. O Circo Social se preocupa com a elaboração de um bom número, com uma performance teatral, com um conteúdo pedagógico e um artista mais bem preparado politicamente, criticamente... enfim. O circo de caráter social é uma ferramenta que educa através de uma perspectiva de educador popular, que sai da academia pra ir para uma coisa mais “copo a corpo”, mais próxima da população, da oralidade, com um diálogo menos formal, que é mais gostoso de trabalhar. (informação verbal)
18
Ainda sobre o conflito entre modalidades, Valdemir destaca que
essa disputa se acentua ainda mais por questões como a destinação das
verbas públicas. Entretanto, hoje, apesar de certas divergências políticas e
estéticas, se assim podemos dizer, a relação entre ambos os segmentos
circenses mostra-se bastante harmônica.
Atualmente, o Circo Laheto é um dos principais articuladores da
região Centro Oeste em termos de movimento circense. Participam com
frequência de debates e frentes de trabalho que visam uma construção política
maior para a classe; dialogando tanto com o circo de rua, quanto com o
itinerante. Maneco presidiu por algum tempo a ASFACI19, que é, inclusive, uma
associação de famílias e artistas tradicionais de circo.
O Laheto integra um importante circuito: a Rede Circo do Mundo
Brasil20. Esta cadeia de organizações relacionadas ao fazer circense se
18
Entrevista concedida por SOUZA, Valdemir de. Entrevista II. (set. 2013). Entrevistador: Larissa Sttéfany de Paula Guedes. Goiânia, 2013. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita nos Anexos desta monografia.
19 A ASFACI, Associação de Famílias e Artistas Circenses, fomenta debates e encontros
circenses para discutir os problemas e apresentar propostas de solução para a melhoria da classe dos trabalhadores circenses, além de organizar espetáculos e mostras artísticas que promovam a divulgação da memória do circo. Para maiores informações acesse: www.asfaci.org.br.
20 A Rede Circo do Mundo Brasil, foi criada em outubro do ano 2000. Nasceu da confluência de
diferentes organizações relacionadas ao fazer circense. Desde sua fundação a RCM-Brasil vem favorecendo o intercâmbio de conhecimentos e ações em torno de um desejo comum: o destaque do potencial dos jovens quanto a seu próprio desenvolvimento e seu papel enquanto cidadãos. Para maiores informações acesse: www.circodomundo.org.
27
encontra presencialmente uma vez por ano – em média – e mantém um
diálogo perene no campo virtual.
A partir desses contatos e articulações com movimentos e artistas
de todo o país, o Laheto tem conseguido promover e intermediar uma série de
encontros, festivais, espetáculos, mesas redondas, palestras, minicursos,
oficinas e tantas outras atividades de interesse da classe artística,
possibilitando um intercâmbio com intelectuais e profissionais da arte do Brasil
e do mundo.
Um exemplo a ser citado foi a realização do primeiro Festival de
Circo Social da Nossa América, que ocorreu no ano de 2010, na cidade de
Goiânia. Este encontro, que contou com a presença de vinte e uma
organizações do país inteiro. Promoveu, acima de tudo, o resgate de
personalidades que foram primordiais para o surgimento e a consolidação
desse tipo de movimento. Como o canadense Paul Laporte21, que foi quem
recebeu o primeiro projeto de Circo Social que se tem notícia. Criou ainda a
possibilidade da participação ativa dos jovens nas diversas atividades.
O encontro também trouxe alguns educadores do Cirque du Soleil22,
e significou uma incrível oportunidade para que diversos artistas goianos e a
comunidade em geral pudessem ter contato com um universo tão distante. Este
festival foi, sem dúvida, um grande marco deixado pelo grupo no cenário
regional e nacional.
21
Paul Laporte foi um dos precursores do programa Circo do Mundo e atua como educador em circos e escolas circenses no Canadá.
22 O Cirque du Soleil é uma grande companhia circense com sede em Montreal, Quebec-
Canadá. Considerada a maior e mais notória companhia de circo moderno da atualidade. Apresenta-se simultaneamente em várias partes do mundo, com espetáculos que exibem uma estética impecável em todos os sentidos. Abarca em seu contingente artistas de todo o globo.
28
Figura 9 - Flyer do evento. Fonte: http://grupolaheto.blogspot.com.br/2010/09/i-festival-de-
circo-social-da-nossa.html. Acesso em: 20 nov. 2013.
Conforme consta em seu estatuto, o Laheto é um grupo que tem
como cerne os estudos, trabalhos e pesquisas focalizadas em políticas de
assistência a crianças e adolescentes oriundas de famílias em situação de
risco e vulnerabilidade socioeconômica. A associação tem as seguintes
finalidades:
a) Dinamizar atividades artísticas e socioeducativas a fim de melhorar e servir a comunidade;
b) promover seminários, pesquisas, curso de formação cultural, debates e apresentações de espetáculos em âmbito público e particular a fim de elevar o nível de pesquisa, da compreensão do nosso processo cultural e reconduzir a arte ao seu lugar de importância no contexto do mundo atual.
23
Posterior a estes interesses, mas não menos importante, está o
investimento na formação e na capacitação de artistas circenses e arte-
educadores. Objetivando a preparação de profissionais habilitados em
multiplicar e solidificar a proposta educacional do grupo, o Laheto proporciona
uma educação integrada por meio das artes circenses. Desta maneira,
promove também o aprendizado da cidadania no convívio coletivo, através de
preceitos éticos que são inseridos a todo o momento no cotidiano do projeto.
23
ESTATUTO DO CIRCO LAHETO, Goiânia, 2004, p. 3, cap. I, Art. 5.
29
2. HOJE TEM ESPETÁCULO: O CIRCO LAHETO E SUA ARTE EM CENA
2.1 – As relações profissionais, familiares e afetivas no Circo Laheto
No capítulo anterior, Seluta Rodrigues revela em uma pequena
passagem, um pouco de como se dá a relação de sua família com o Circo
Laheto. Ela diz que no começo as relações familiares e profissionais se
misturavam, mas que com o passar do tempo estas questões foram se
organizando. Maneco e Seluta, bem como os demais funcionários,
compreendem e exercem com muita clareza suas funções específicas dentro
do grupo.
O casal têm dois filhos que também participam do cotidiano do circo.
O filho menor ainda está iniciando sua prática com as atividades circenses, e
participa do projeto Mais Educação24, que acontece pelas manhãs, durante o
período letivo. A filha mais velha atua como “brinquedista” no período matutino,
e também como artista em espetáculos e ações do Laheto.
O grupo mantém uma visível relação de companheirismo e
afetividade, que se assemelha a qualquer vida familiar: desfrutam dos bons
momentos, mas também têm seus conflitos internos, o que é absolutamente
normal quando o assunto é aprender a viver junto. É notória a cumplicidade e a
parceria que o grupo demonstra, como parceiros de cena, ou como arte-
educadores, mas principalmente como amigos, ou ainda – ouso dizer – como
irmãos.
Observo que o maior legado que o Circo Laheto deixa para o mundo
é imaterial. Atualmente, a maior parte do corpo de educadores e monitores do
projeto é composta por ex-alunos – em boa parte, jovens que viviam ou vivem
em situação de risco nas periferias da cidade. Essas pessoas, que agora são
capazes de assumir funções de grande responsabilidade no circo-escola, em
outros tempos também foram crianças rebeldes, de gênio difícil, como as que
hoje são assistidas pelo projeto, e que, através do trabalho realizado pelo
Laheto tornaram-se seres humanos muito mais sensíveis e comprometidos. E
24
O Mais Educação é um programa que contribui para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens, ampliando o tempo e o espaço educativo dos alunos da rede de ensino público do Brasil.
30
esse é somente um dos fatores que comprovam o poder de transformação do
indivíduo através da educação, da arte e da afetividade.
Em entrevista, os ex-alunos que hoje atuam como arte-educadores
e monitores, são unanimes em dizer que o circo proporcionou mudanças
significativas em suas vidas. A maioria deles veio de famílias que viviam, ou
ainda vivem em situação de vulnerabilidade social e econômica. Muitos
declaram que se não fosse pelo circo, provavelmente estariam evolvidos com
drogas ou com o crime. Alguns desses ex-alunos, hoje estudam na Escola
Nacional de Circo25, no Rio de Janeiro. Isso tem um significado muito
importante para o grupo, uma vez que essa conquista só pôde se concretizar
graças ao processo de formação que o Circo institui, atrelado ao esforço de
cada um.
Ressalvo que é de extrema importância, tanto para a equipe do
circo, quanto para as crianças e adolescentes assistidas pelo projeto, que haja
essa oportunidade da “troca de papeis”. Quero dizer, os jovens que outrora
foram alunos e ocupam hoje o lugar de professores, servirão de exemplo para
aqueles que queiram seguir o mesmo caminho.
Figura 10 - Arte educador Renato da Silva com cerca de nove anos de idade. Fonte:
Acervo fotográfico do Circo Laheto.
25
A Escola Nacional de Circo (ENC) foi fundada em 1982 e tem sede no Rio de Janeiro. É uma
das mais importantes instituições de formação circense no país.
31
Quanto ao êxodo dos colaboradores do projeto, há de se
compreender que isso faz parte de um processo natural, e denota, inclusive,
um reflexo evidente do tipo de formação praticada pelo grupo. É claro que cada
“perda” deixa uma lacuna sentimental temporária. Entretanto, é justamente
esse um dos grandes legados do Circo Laheto. E é principalmente neste
aspecto que a equipe deixa transparecer mais uma vez a semelhança com as
relações familiares. Em entrevista, Maneco comenta a saída de um dos seus
“braços direitos” no circo: Fábio, o palhaço Zé Linguiça, que atualmente
trabalha no Instituto Dom Fernando.
Muita gente veio falar: “ah, mas e agora como é que vocês vão ficar sem ele?”. Então eu falei: “se eu não educar pra que isso aconteça, eu perco meu papel de educador”. A gente sente muito a saída sim, mas veja bem, ele saiu ganhando um salário melhor, que nós não tínhamos condições de dar, e depois entraram dois no lugar dele! Quer dizer, nós temos muita clareza de que o objetivo do projeto é esse mesmo. (informação verbal)
26
Como enfatiza o diretor do Circo, o papel do educador excede os
protocolos óbvios, podendo fazer com que seja um grande agente estimulador
da ascendência pessoal do educando. É como um pai que cria o filho para a
vida, para o mundo, e não para si.
2.2 – As produções do Circo Laheto: prestação de serviços, produtividade
artística e espetáculos do grupo
O Circo Laheto oferece uma série de serviços vinculados às artes
circenses. Além das produções artísticas, o grupo aluga equipamentos e
aparatos como lonas e arquibancadas. Também faz locações do seu espaço
físico para vários tipos de acontecimentos, que vão de shows musicais a
conferências, passando por vernissages, festas de aniversário e outros.
Sua equipe artística é preparada para atuar em diversos segmentos,
tais como:
Recepções de eventos (acolhida dos convidados);
Intervenções lúdicas (descontraída interferência artística em
eventos e situações de naturezas diversas);
26
Entrevista concedida por SOUZA, Valdemir de. Entrevista II. (set. 2013). Entrevistador: Larissa Sttéfany de Paula Guedes. Goiânia, 2013. A entrevista na íntegra encontra-se transcrita nos Anexos desta monografia.
32
Ações promocionais (intervenções direcionadas para a promoção
de determinados produtos, serviços, marcas, instituições, empresas
e similares);
Oficinas circenses (workshops para empresas ou turmas
específicas envolvendo o uso de técnicas circenses);
Apresentações motivacionais (exibições que promovem e elevam
a satisfação das pessoas, geralmente, em ambientes de trabalho);
Participações em vídeos institucionais (usados para divulgar uma
marca, um empresa, um produto, etc. Comumente utilizada para
exibições em eventos, sites institucionais ou em vias midiáticas,
como radio, televisão e internet).
Para comemorações infantis o grupo oferece: recepção dos
convidados, shows com palhaços, números circenses variados (malabares,
manipulação de objetos, acrobacias de solo e aéreas, apresentações em
perna-de-pau, etc.), intervenções recreativas e mini oficinas.
Além do enfoque artístico, o pessoal do circo recebe uma
preparação técnica para que possa dar manutenção e fazer a montagem /
desmontagem correta dos equipamentos, tanto de uso pessoal quanto de uso
coletivo. O cuidado com a segurança é uma constante no cotidiano dos
funcionários, aprendizes e artistas do Circo. Este é um quesito de relevância
fundamental, uma vez que as atividades circenses oferecem um alto risco,
inclusive de morte, se não executadas corretamente.
A produtividade artística do grupo destaca-se pela preocupação com
as questões éticas e socioculturais unidas ao lúdico, reforçando o propósito de
transformação social através da arte. O Circo Laheto está presente em
diversos nichos do cenário cultural goiano. Participam de festivais de circo e
teatro; firmam parcerias com instituições, grupos e artistas locais; organizam e
participam de festas populares diversas; promovem apresentações e ensaios
abertos para a comunidade em geral; articulam intercâmbios com outros
grupos e artistas pelo país; e produzem admiráveis espetáculos circenses.
A trupe do Circo possui três espetáculos completos até o presente
momento: “Circo, Magia e Estripulia”, “Acroloucos” e “História de Goiás no
Picadeiro”. O primeiro é um show de variedades circenses, que se caracteriza
33
pela versatilidade e talvez seja o que mais se aproxima do tipo de
apresentações dos circos itinerantes. Circo Magia e Estripulia permite uma
organização mais flexível, e se adapta de acordo com a disponibilidade dos
artistas e seus respectivos números, sendo assim, demanda um rigor mais
ameno em relação ao ritmo e frequência de ensaios.
Figura 11 - Artistas e ex-alunos do Laheto. Apresentação do espetáculo Circo, Magia e
Estripulia. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
O espetáculo Acroloucos, trabalha os números tradicionais de circo,
como palhaçarias; perna-de-pau; malabares; acrobacias de solo e aéreas, com
um estilo bem contemporâneo. É uma exibição dinâmica e instigante. A
ousadia dos saltos executados pelos acrobatas deixa o público impressionado
e inquieto todo o tempo. A mescla de técnicas circenses e teatrais, que é uma
marca presente nas produções do Circo, também é fundamental para este
espetáculo, pois os artistas precisam estar atentos tanto à representação de
seus personagens, quanto com a execução correta dos números.
Vale salientar que a trupe é estimulada a estar em revezamento
constante, de maneira que todos os participantes têm de saber representar os
personagens e executar os números uns dos outros. Essa é uma forma de
ficarem sempre preparados para qualquer eventualidade.
34
Figura 12 - Danilo Lúcio, o palhaço Arrelia, em um de seus números do espetáculo
Acroloucos.
Figura 13 – Trupe do Laheto em número com saltos acrobáticos, no mesmo espetáculo.
Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
História de Goiás no Picadeiro, por sua vez, é um espetáculo que
contou com o patrocínio da Petrobras27, por meio da Lei Rouanet28, e apoio da
Universidade Federal de Goiás. Estreou em abril de 2009. Ganhador do
Festival Internacional Goiânia Em Cena29 no mesmo ano, este é, sem dúvida,
um dos mais importantes trabalhos do grupo, pois firmou importantes parcerias
e levou a obra da trupe a várias regiões diferentes do país.
Fruto de pesquisas a cerca de todo o processo de ocupação do
território goiano, o História de Goiás destaca os cinco principais momentos
históricos do Estado, desde a formação até o povoamento, destacando as
tradições e peculiaridades do povo goiano. Esses momentos são: a residência
indígena na região, a chegada dos bandeirantes, a ascensão e decadência do
27
A Petrobras é uma empresa de energia reconhecida mundialmente por sua excelência em tecnologia. Por meio de apoio e financiamento direto e indireto, a empresa incentiva a produção, difusão e circulação de expressões culturais variadas. 28
A Lei Rouanet, ou Lei Federal de Incentivo à Cultura (nº 8.313 de 23 de dezembro de 1991), institui políticas públicas para a cultura nacional. 29
O Festival Internacional de Artes Cênicas, acontece desde 2001 e promove a aproximação das três linguagens cênicas: teatro, circo e dança. O Festival tem, como um de seus objetivos, proporcionar uma visão panorâmica da produção cênica em âmbitos regional e nacional.
35
ciclo do ouro, o coronelismo na tradição das fazendas goianas e as marcas da
contemporaneidade.
Ao utilizar uma perspectiva de linguagem circense, o espetáculo
propõe uma inovadora maneira de difundir a memória sociocultural de Goiás e
dos povos que o constituíram, além de fazer um resgate da tradição goiana,
desde os tempos antigos até a contemporaneidade. A ideia de valorizar a
cultura local faz parte da trajetória do grupo desde a sua criação. Em sua
essência, o circo absorve, recria, agrega e produz referências culturais
múltiplas. Segue abaixo, algumas fotos deste espetáculo:
Figura 14 – Cena que representa a chegada dos povos que constituíram o nosso estado.
Figura 15 – “A colheita do milho para fazer pamonhas”, representado por um número
com malabares.
Figura 16 – Número de trapézio representando as mocinhas do campo.
Figura 17 – Número de pernas-de-pau: as influências indígenas em Goiás.
Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
Para compor o seu repertório musical o grupo preferiu a música
brasileira com tons regionais, para tanto se utilizando de instrumentos e ritmos
36
típicos do Centro Oeste como o cururu30, a catira31 e a moda de viola caipira. A
trilha sonora é toda inédita, e foi especialmente desenvolvida para este
espetáculo pelo músico Beirão32. A preparação teatral para o elenco e a
concepção dos figurinos foram realizadas pela Cia Nu Escuro33. A montagem e
circulação de História de Goiás no Picadeiro dá continuidade ao trabalho
educativo e sociocultural que o Laheto vem desenvolvendo ao longo dos anos.
Trabalho este que foi meritoriamente premiado em várias ocasiões.
Dada a importância do assunto, aproveito para enumerar os prêmios
recebidos pelo Circo Laheto até a presente data. Os dados a seguir foram
concedidos por Seluta Rodrigues, coordenadora pedagógica do circo:
1 PRÊMIO ITAÚ UNICEF – Ano 2013 – Concedido pela Fundação Itaú em
parceria com a UNICEF pelo desenvolvimento de ações
socioeducativas, estimulando o ingresso, regresso, permanência,
aprendizagem e participação de crianças e adolescentes na escola
pública.
2 PRÊMIO ANU – Ano 2013 – Concedido pela Central Única das
Favelas/CUFA.
3 PRÊMIO CAREQUINHA DE ESTÍMULO AO CIRCO – ANO 2012 –
Concedido pela Fundação Nacional de Artes/FUNARTE.
4 MEDALHA DO MÉRITO LEGISLATIVO PEDRO LUDOVICO TEIXEIRA
– Ano 2010 – Concedida pela Assembleia Legislativa de Goiás em
reconhecimento pela dedicação e empenho na defesa e promoção dos
Direitos Humanos em nosso Estado.
30
O cururu é uma dança folclórica típica da região Centro-Oeste (especialmente difundida no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul). Também pode ser somente cantada, com o ritmo marcado pela viola. 31
A catira, que também pode ser chamada de cateretê, é uma dança folclórica brasileira, em que o ritmo musical é marcado pela batida dos pés e mãos dos participantes.
32
Beirão Neves é um músico nordestino radicado em Brasília. O compositor, cantor e instrumentista, inova a música popular incorporando influências modernas, sem abandonar as raízes nordestinas. Beirão é dono de uma personalidade bastante irreverente e costuma imprimir essa marca também em sua obra musical. 33
A Cia Teatral Nu Escuro é um coletivo de atores/encenadores que trabalha desde 1996 e consolidou-se como uma das principais companhias teatrais do Centro-Oeste.
37
5 PRÊMIO LUDICIDADE PONTINHO DE CULTURA – Ano 2010 –
Concedido pelo Ministério da Cultura.
6 PRÊMIO CAREQUINHA DE ESTÍMULO AO CIRCO – Ano 2009 –
Concedido pela Fundação Nacional de Artes/FUNARTE.
7 PRÊMIO DE MELHOR ESPETÁCULO “História de Goiás no Picadeiro”
– Ano 2009 – Concedido pelo Festival Internacional Goiânia em Cena
2009, organizado pela Secretaria Municipal de Cultura.
8 TROFÉU SOCIEDADE GOIANA – Ano 2008 – Concedido pelo
Jornalista Arthur Rezende na 11º edição do lançamento de Agenda
Sociedade Goiana como destaque cultural.
9 TROFÉU CONSTRUINDO TRADIÇÕES – Ano 2008 – Concedido pelo
IX Festival de Artes de Goiás Cultura, Arte e Público do Instituto Federal
de Goiás/IFG.
10 PRÊMIO LUDICIDADE PONTINHO DE CULTURA – Ano 2008 –
Concedido pelo Ministério da Cultura.
11 PRÊMIO CAREQUINHA DE ESTÍMULO AO CIRCO – Ano 2008 –
Concedido pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE.
12 DIPLOMA DE DESTAQUE CULTURAL – Ano 2008 – Concedido pelo
Governo do Estado de Goiás e pelo Conselho Estadual de Cultura de
Goiás.
13 PRÊMIO ITAÚ UNICEF – Ano 2007 – Concedido pela Fundação Itaú em
parceria com a UNICEF pelo desenvolvimento de ações
socioeducativas, estimulando o ingresso, regresso, permanência,
aprendizagem e participação de crianças e adolescentes na escola
pública.
14 PRÊMIO ENTIDADE AMIGA DO CONSUMIDOR NA
RESPONSABILIDADE SOCIAL – Ano 2007 – Concedido pelo
Movimento das Donas de Casa.
38
15 TROFÉU GOIÂNIA EM CENA – Ano 2007 – Concedido pelo Festival
Internacional de Artes Cênicas de Goiânia/GO como destaque cultural.
16 PONTO DE CULTURA – Ano 2005 – Concedido pelo Ministério da
Cultura pelo programa Cultura Viva.
17 PRÊMIO ITAÚ UNICEF – Ano 2005 – Concedido pela Fundação Itaú em
parceria com a UNICEF pelo desenvolvimento de ações
socioeducativas, estimulando o ingresso, regresso, permanência,
aprendizagem e participação de crianças e adolescentes na escola
pública.
Figura 18 - Entrega do Prêmio Itaú Unicef – 2013. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
39
3. UMA ESCOLA DE CIRCO: O PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM
DO CIRCO LAHETO
3.1 – Os processos pedagógicos do Circo Laheto e seus desdobramentos
A logística do Circo Laheto é dividida em três patamares: artística,
administrativa e pedagógica. Neste capítulo tratarei especialmente da terceira,
tendo como base a narrativa de Seluta Rodrigues, que é a principal
responsável pela coordenação pedagógica do circo. Em entrevista, ela
descreve como acontece esta organização.
Do início do projeto a presente data, houve um longo processo de
adaptação e observação das demandas mais urgentes. A formação docente
sempre foi uma preocupação constante e recebe uma atenção especial. As
manhãs das sextas-feiras são destinadas ao estudo com os monitores e arte
educadores. Nessas ocasiões são feitas leituras, debates, avaliações sobre os
exercícios aplicados e outras ações relativas às práticas educacionais do circo.
As atividades pedagógicas do Laheto são organizadas a partir de um
tema geral, selecionado anualmente, que é desmembrado em subtemas
mensais. O tema escolhido para este ano foi o “corpo”, e deu origem ao
“Projeto Corpo no Circo”, que se subdividiu em quatro temas transversais:
ética, relações de gênero, cidadania e atitudes pacificadoras.
Em um semestre há em média quatro subtemas (um por mês), que
podem ser prolongados de acordo com a necessidade, se estendendo ao mês
seguinte. Dentro da temática mensal é elaborado um planejamento semanal, a
ser aplicado para cada turma.
O processo de ensino aprendizagem do Laheto não descarta o
conhecimento que o aluno traz consigo. Pelo contrário, procura agregar novas
informações e transformar, ou aprimorar o que o aprendiz já possui.
O circo possui um convênio com a Universidade Federal de Goiás,
que o habilita a ser um campo de estágio para muitos cursos da instituição,
permitindo que professores e estagiários de cursos como o de Pedagogia,
Matemática e Artes Cênicas auxiliem nessa sistematização didática e no
desenvolvimento dos trabalhos com os alunos.
40
Outro convênio, feito com a Secretaria Municipal de Educação,
garante a permanência de Seluta Rodrigues como coordenadora pedagógica
do circo. Neste acordo é estipulada uma quantidade de crianças a serem
atendidas pelo projeto. O que levou o grupo a se tornar parceiro da Escola
Municipal Bárbara de Souza Morais, situada na região do entorno.
Atualmente, o Laheto atende algumas crianças e adolescentes das
comunidades vizinhas e, sobretudo, da instituição supracitada. Através do
Programa Mais Educação, o circo promove ações socioeducativas oferecidas
aos jovens gratuitamente no contra turno do período letivo, ou seja, os alunos
da primeira fase pela manhã, e os da segunda fase à tarde. Dentre as
atividades oferecidas estão, aulas de percussão, de leitura e contação de
histórias, de teatro, de matemática e de recreação, onde são inseridas as
modalidades circenses. Além disso, a equipe do circo também promove
viagens e passeios culturais/recreativos com os alunos.
Figura 19 - Início das aulas em mais um semestre no Circo Laheto – recepção dos
alunos. Fonte: Acervo fotográfico do Circo Laheto.
As turmas são divididas em três estágios: iniciante, intermediário e
profissional. O grupo matinal de iniciantes (de seis a onze anos) é subdividido
em três conforme a faixa etária, para facilitar o planejamento das atividades,
que são adaptadas de acordo com a linguagem própria de cada idade. Mas em
geral, as atividades são essencialmente lúdicas e descontraídas.
41
No período vespertino participam os adolescentes do intermediário,
mas também há uma turma de iniciantes, devido à necessidade de demanda.
Neste grupo mais avançado, que ainda não é uma equipe em caráter
profissionalizante, é cobrada uma postura diferente dos alunos. Os professores
são mais exigentes em relação às técnicas circenses e outras competências,
como já se pressupõe.
Os alunos que se destacam e se interessam em prosseguir com as
atividades circenses seguem para o grupo profissional. Para tanto, o aprendiz
se submete a uma prova, onde é avaliado mediante diversos critérios, tais
como a força física, a coordenação motora, o domínio das habilidades, a
relação com a plateia, a execução adequada dos números e exercícios, etc.
Outros quesitos também são observados, como o comportamento em equipe, o
relacionamento familiar e o desempenho escolar. Estes alunos
estudam/treinam nas segundas-feiras à noite, nas quartas, sextas e sábados à
tarde.
O sistema pedagógico do Laheto se diferencia dos demais à medida
que respeita o tempo de aprendizagem de cada indivíduo, permitindo que este
se desenvolva de acordo com seu próprio ritmo, capacidade e interesse. Esse
diferencial favorece uma formação completa do ser humano, que é um dos
preceitos do grupo. Caso o jovem não esteja à vontade em uma turma mais
avançada, poderá regressar ao grupo anterior e permanecer nele por tempo
indeterminado, até que se sinta preparado para ir adiante. Ou, ao contrário,
poderá avançar antes da média de tempo estimada.
No Laheto, há uma constante preocupação em aplicar as teorias e
os valores éticos à prática do dia-a-dia. Esses ensinamentos estão inseridos
nas ações mais simples do cotidiano. A exemplo disso posso citar um fato que
me chamou a atenção durante meu campo de estágio no circo. As crianças,
após o almoço, que é servido todos os dias, lavam espontaneamente os
utensílios que usaram (pratos, talheres e copos). É claro que sempre há um
monitor por perto para auxiliar, ou para relembrar a importância deste ato, que
parece simples, mas está imbuído de significados importantes.
A aprendizagem se dá, acima de tudo, pelo exemplo. A relação de
respeito entre alunos e professores é reciproca, e, mesmo que um aluno
42
desrespeite um educador ou funcionário, este não irá desrespeitá-lo de volta,
ou diminuí-lo, pois se compreende que isso faz parte do processo de formação
do aprendiz.
O posicionamento da equipe do circo-escola deixa claro que não se
deve desassociar a didática dos valores éticos. Esta tendência dialoga bastante
com os pensamentos de Paulo Freire:
Não é possível pensar os seres humanos longe, seque, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o se caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio a formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. (FREIRE, 1996, p. 37)
Este sistema particular e diferenciado que o grupo vem
desenvolvendo ao longo dos anos não segue um padrão curricular inflexível, e
é antes de tudo uma troca mutua e satisfatória da experiência humana, tanto
para os educandos quando para os educadores. Todos ensinam e todos
aprendem, ou, como diria o próprio Freire, “ninguém educa ninguém, ninguém
educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
(FREIRE, 2006, p. 78)
Sendo assim, o modelo de trabalho do Circo Laheto funciona
também como uma incubadora para que novas possibilidades educacionais
possam surgir, se desenvolver e serem experimentadas. Trabalhos como este
são, sem dúvida, uma luz de esperança para que se comece a pensar uma
nova maneira de ensinar, mais eficaz e atual, renovando os velhos hábitos, que
muitas vezes não acompanham o dinamismo e as urgências da vida moderna.
3.2 – Desafios e possibilidades educacionais do circo escola
O ambiente circense é uma escola à parte e poderia por si só,
cumprir inúmeras funções de uma instituição de ensino. Além das
competências específicas, também podem ser absorvidos pelos alunos
preceitos para a vida. Aprendem-se valores éticos e sociointeracionistas que
refletem diretamente na forma com que o indivíduo se comporta e se relaciona.
Esses valores são transmitidos de maneira natural, a partir do convívio entre as
pessoas envolvidas nesse ambiente e a partir das atividades desenvolvidas,
43
que em sua maioria exigem cumplicidade, cooperação e respeito. A partir dos
preceitos aprendidos no âmbito circense, consegue-se enxergar a educação
sobre outras perspectivas, uma vez que os envolvidos podem se tornar
pessoas mais sensíveis e humanizadas. Portanto, em poucas palavras, pode-
se dizer que o circo também é um formador de caráter.
Sobre a associação do circo à educação como uma possibilidade
pedagógica, Silva e Câmara destacam que:
O ensino da arte circense como atividade pedagógica possui valores imensuráveis, pois, além de um completo desenvolvimento corporal, agregam-se valores do conhecimento artístico e cultural. O saber circense ultrapassa o conhecimento técnico, e, dentro de uma experiência itinerante e cooperativa, se transforma em filosofia de vida. (2004, p. 7)
A equipe do Laheto vem trilhando os caminhos da arte educação há
anos, e consequentemente, disseminando essa filosofia transformadora. Esta
estrada se constrói através da experiência prática e de estudos contínuos.
Parte dessa construção provavelmente se deu de maneira intuitiva, por
tentativa e erro (e acertos), graças à criatividade e boa vontade das pessoas
que se dispuseram a edificar essa história. Isso certamente não aconteceu por
opção, mas também por falta de um modelo sistematizado para a formação
específica da área. Pode se dizer que Escola de Circo Laheto é uma pioneira
na educação circense em Goiás. E como em todo histórico de pioneirismo,
muitos desafios foram driblados para que pudessem chegar até aqui.
O ensino das artes circenses enquanto pretexto para uma
abordagem pedagógica diferenciada cumpre sua função. Porém, quando o foco
é a preparação direcionada para o profissional do circo, nota-se que existe
ainda uma lacuna muito grande.
Recentemente em Goiânia, precisamente em 14 de setembro de
2013, os circenses que atuam em Goiás reuniram-se para discutir as
prioridades da área setorial a fim de encaminha-las à Conferência Estadual de
Cultura. Este debate suscitou três ações prioritárias, que seriam as mais
urgentes para o presente momento vivido pela classe. A primeira seria a
necessidade de implantar uma formação continuada que oportunize o
desenvolvimento dos jovens talentos por meio de cursos técnicos
profissionalizantes oferecidos em Goiás.
44
A segunda ação consistiria em implantar um programa anual de
fomento ao circo, oriundo do Fundo Estadual de Cultura34, que concedesse um
financiamento aos projetos dos segmentos de circo escola, circo itinerante e
circo de rua. Este incentivo serviria para contemplar várias necessidades da
categoria, dentre elas, a aquisição de lonas e equipamentos; a realização de
eventos; a criação, renovação e circulação de números e espetáculos; a
relevância e reconhecimento do mérito artístico; a formação específica;
pesquisa; e manutenção de companhias e grupos.
A terceira ação, por sua vez, oficializaria a separação dos
segmentos que atualmente estão condensados na área de Artes Cênicas
(Circo, Teatro e Dança), assegurando a cada um deles uma representação
direta, que contemple suas especificidades.
Todas estas proposições são de extrema importância para que o
circo de modo geral, e especialmente o circo escola, sejam reconhecidos como
uma categoria singular, fazendo com que recaia sobre ela um olhar
diferenciado, que atenda suas necessidades reais.
Durante o debate, diversas colocações ressaltaram que, no âmbito
do ensino superior, quando se é ofertada a formação em Circo nos cursos de
Educação Física, Dança e Artes Cênicas, as especificidades da arte e da
tradição circense são negligenciadas. Perdem-se, por exemplo, aspectos
importantes da linguagem característica do circo, como a comicidade, visto que
na maioria das vezes a abordagem é meramente “física”.
Maneco diz em entrevista que a formação em circo deveria ser
pensada com bastante clareza, sendo de extrema importância a criação de um
currículo específico para tal. Ele também propõe que se discuta, por exemplo, o
que diferenciaria o circo nas Artes Cênicas, aproveitando para reforçar uma
inquietude latente: a existência de uma grande lacuna nos cursos acadêmicos,
uma vez que a graduação Artes Cênicas, sobretudo em Goiás, não abrangem
a temática circense.
34
O Fundo Estadual de Cultura (FEC) é um instrumento de apoio a ser somado à Lei de Incentivo à Cultura e a outros mecanismos de financiamento. Tem como objetivo estimular o desenvolvimento cultural nas diversas regiões do país, com foco prioritário voltado para as cidades do interior. É destinado aos projetos que, tradicionalmente, encontram maiores dificuldades de captação de recursos.
45
Ainda há muito que ser pensado e discutido a cerca da formação em
circo. Contudo, existem no país pesquisadores e pessoas da área circense que
buscam minimizar as deficiências vivenciadas pelos multiplicadores desta arte.
Entre eles está Rodrigo Matheus35, que é diretor do Circo Mínimo e codiretor do
CEFAC (Centro de Formação Profissional em Artes Circenses – SP), e foi um
dos primeiros a propor que se desenvolvesse um currículo mínimo para a
formação circense no Brasil.
Levando em conta que, para ser um arte-educador circense é
preciso compreender todo o mecanismo de um circo, o currículo mínimo para
esta área exigiria mais do que conhecimentos teóricos e históricos. Um
requisito básico é que esse educador domine as técnicas em relação à prática
das modalidades circenses, e se especialize em uma ou mais delas. Também
necessitaria conhecer o tipo específico de acrobacia própria da linguagem, que
por sua vez se confunde com a da Educação Física e/ou da Ginástica Artística,
mas não é a mesma. Precisaria ainda saber noções básicas de anatomia
humana para que não cometa imprudências com relação ao uso e ao desgaste
do corpo.
Além disso, o indivíduo também deverá compreender sobre a
montagem e desmontagem da estrutura e dos equipamentos de um circo, bem
como a manutenção dos mesmos, questões que envolvem o domínio da
capatazia36, e requerem uma atenção especial em relação à segurança.
As proposições acima são demonstrações das necessidades
inerentes ao processo de ensino aprendizagem circense. Mas é claro que se
precisa fazer um amplo debate para a definição dos parâmetros curriculares
mínimos à formação continuada em Circo, levando em conta principalmente a
sua linguagem e natureza específicas.
O circo em nosso estado é carente de tradição e história,
principalmente se o compararmos a outros segmentos artísticos como o Teatro
35
Rodrigo Matheus já foi trapezista. Hoje também trabalha como ator, professor e diretor de
espetáculos que misturam circo e teatro. Foi o idealizador da Central do Circo. Atuou e dirigiu espetáculos no Brasil, Inglaterra, França, Austrália, Alemanha, México, Colômbia e Argentina, entre outros.
36 O termo “capatazia”, neste caso, designa o conhecimento e o domínio técnico em torno do
aparato estrutural de um circo (ferragens, cordas, lonas, equipamentos e outros).
46
e a Dança, que, por estarem mais bem organizados acabam por conseguir
benefícios dos quais o circo ainda não desfruta, ou ao menos não com
constância. Com exceção da Lei Goyazes37 e da Lei Municipal de Goiânia38,
que ampara alguns (poucos) projetos, o apoio conferido ao fazer circense ainda
é bastante desproporcional. Mesmo assim essas leis de incentivo sempre
aprovam as propostas com recursos mínimos. Isso atesta uma falta de atuação
real do poder público no estímulo aos projetos circenses.
Portanto é urgente que se sistematize o conhecimento da cultura
circense, pois as novas gerações das famílias de circo não demonstram mais o
mesmo interesse em conservar-se como antigamente. E isso é bem
compreensível, visto que é cada vez mais difícil viver desta arte nos dias
atuais. Mas é também preocupante, pois a tradição circense correria o risco de
perder-se em meio a novos tempos.
Sendo assim, torna-se cada vez mais imprescindível que a categoria
se una e se organize. Desta maneira teremos maiores oportunidades no
mercado de trabalho, e um maior amparo por parte das políticas públicas,
podendo fazer valer nossos direitos como cidadãos e profissionais. Sinto que
este é um momento histórico para a classe circense em nosso estado e o Circo
Laheto, que é composto de pessoas que querem fazer a diferença na
sociedade e no mundo em que vivem, representa a força transformadora da
arte. Portanto, respeitável público, seja como for, uma coisa é sempre certa: o
espetáculo não pode parar!
37
A Lei Goyazes é um dos principais fomentos à cultura para trabalhos artísticos do estado de
Goiás e foi instituída pela Lei n° 13.613.
38 A Lei Municipal de Incentivo à Cultura regulamenta os incentivos fiscais para
projetos culturais nos municípios.
47
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta monografia é resultado de uma intensa pesquisa de campo,
bibliográfica, documental e empírica. O Circo Laheto, por ser de um importante
representante do circo social em nosso estado, serviu-me como pretexto para
desenvolver um trabalho que ajudasse a preencher uma lacuna acadêmica.
Sua concretização não apenas destaca a história e a importância do
circo, especialmente em Goiás, mas também nos faz reviver um pouco de
nossa infância, por se tratar de um assunto tão lúdico e prazeroso.
Fazer um registro sobre a trajetória e a organização pedagógica do
Laheto é também uma maneira de reverenciar e enaltecer este que é um
belíssimo projeto social e cultural, que possivelmente servirá de modelo para
tantos outros que possam surgir.
Neste sentido, desejo que esse material sirva como fonte para
futuras pesquisas relacionadas, colaborando também para a perpetuação e o
fortalecimento da memória do circo enquanto cultura e tradição, bem como a
importância e os desdobramentos do trabalho desempenhado pelo circo social.
Este torna-se então, um singelo legado que ofereço em especial à
comunidade artística, com o desejo de que a arte prospere a cada dia, e possa
alcançar lugares e objetivos jamais imaginados. Avante!
48
REFERÊNCIAS
Biblioteca Virtual de São Paulo. História do Circo. Disponível em:
<http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/especial/docs/200803historiadocirco.pdf>
Acesso em 08/set/2013.
BERTHOLD. Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva,
2004.
BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
__________, Mario Fernando. Circo e Palhaços Brasileiros. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2009.
BORTOLETO, Marcos Antônio Coelho et al. Introdução à pedagogia das
atividades circenses. Jundiaí: Fontoura, 2008.
____________ Marcos Antônio Coelho; DUPRAT, Rodrigo Mallet. Educação
Física escolar: pedagogia e didática das atividades circenses. Revista
Brasileira de Ciência do Esporte, v. 28, p.171189, jan. 2007. Disponível em:
<http://www.rbceonline.org.br/revista/index.php/RBCE/article/view/63/71>.
Acesso em: 12 set. 2013.
CARVALHO, Seluta Rodrigues de. Entrevista concedida a Larissa Sttéfany de
Paula Guedes. Goiânia, 09 set. 2013.
CASTRO, Alice Viveiros de. Textos da pesquisadora. Disponível em:
<http://centraldocirco.art.br/>. Acesso em: 26 ago. 2012.
DIAS, Fabu. Textos do educador circense. Disponível em:
http://www.fabudias.com.br/single.html>. Acesso em: 10 jul. 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
______, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1988.
RUIZ, Roberto. Hoje tem espetáculo? As origens do circo no Brasil. Rio de
Janeiro. INACEN. 1987.
49
SILVA, Ermínia. Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e Teatralidade
Circense no Brasil. Editora Altana. 2007.
______ Ermínia; ABREU, Luiz Alberto de. Respeitável Público... o circo em
cena. Rio de Janeiro: Editora FUNARTE, 2009. Disponível para download em
<http://www.funarte.gov. br/edicoes-on-line/>. Acesso em: 10 set. 2013.
_______ Ermínia; CÂMARA, Rodrigo Sette. O ensino da Arte Circense no
Brasil. Breve Histórico e algumas reflexões. I Encontro Funarte de Escolas
de Circo, na cidade do Rio de Janeiro, em dezembro 2004. Disponível em:
http://www.pindoramacircus.com.br/textos/textos.asp.> Acesso em: 12 set.
2013.
SOUZA, Valdemir de. Entrevista concedida a Larissa Sttéfany de Paula
Guedes. Goiânia, 24 set. 2013.
50
ANEXOS
ENTREVISTA I
Entrevista com Seluta Rodrigues de Carvalho
Data: 09 de setembro de 2013
Local: Circo Laheto – Goiânia-GO.
Larissa - Como você conheceu o Maneco?
Seluta – Eu já participava de um grupo de teatro popular chamado “Pau-a-
Pique”. Aí esse grupo promoveu um encontro de teatro comunitário aqui em
Goiânia, e o Maneco veio do Mato Grosso pra participar desse encontro:
Festival de Teatro Comunitário. E nós nos conhecemos aqui, começamos a
namorar – isso foi no mês de novembro, no feriado do dia 15. Em dezembro ele
voltou pra cidade dele e me convidou pra passar o natal e ano novo lá, e eu fui.
A partir daí a gente já combinou de passar a viver juntos, e a primeira ideia era
eu mudar pra lá, porque ele tinha um emprego na cidade, já trabalhava com
teatro.
Larissa – Então o Maneco não tem tradição circense?
Seluta – Não. Tradição não. Ele fez capacitação, e começou com movimentos
populares mesmo. Mas aí não deu certo o trabalho dele lá e nós combinamos
de ele vir para cá. No começo de março ele já se mudou pra Goiânia. Eu
costumo dizer a ele que ele se mudou só com uma esteira, porque lá tem muita
influência indígena, né. Santa Terezinha, no Mato Grosso, tem uma aldeia bem
vizinha. Então ele trouxe muita coisa de índio (esteira, pilão, cestos...). (risos).
Larissa – Bom, aproveitando este gancho da conversa, eu gostaria de
saber o que significa Laheto?
Seluta – Laheto é uma palavra Carajá. É aquele símbolo que tem ali na
entrada (porta de entrada do circo). Ele se parece muito com um cocar, mas
não é um cocar. Faz parte de um ritual de passagem da infância pra vida
adulta, porque os índios Carajás não tem adolescência. Então eles se enfeitam
com esse adereço (na cor rosa e preto), e fazem a dança do Laheto, que é
esse ritual de passagem.
Continuação da história do Maneco e da Seluta, agora juntos em Goiânia.
Seluta - Então, aí o Maneco mudou-se para cá e nos começamos a namorar –
isso foi em 1993. Em 1994, nós começamos a montar o grupo. Os dois cheios
de projetos, e ideias de discutir politica, discutir educação... Aí nos criamos o
51
que na época era o Grupo de Teatro Laheto. Só que era muito novo esse
negócio de circo aqui em Goiânia e as peças que a gente montava tinha muito
mais haver com circo do que com teatro. Depois nós mudamos pra Circo
Laheto. Existe um conflito até hoje na Receita Federal, porque o primeiro
registro estava como Grupo de Teatro Laheto. Então fomos vendo que a
linguagem era muito mais circense. As técnicas, a procura do público era muito
mais pelas oficinas, pelos números de circo do que de teatro. Em 1996, o
Maneco foi convidado para desenvolver um projeto de extensão na
Universidade Católica (atual PUC), no Instituto Dom Fernando, que existe até
hoje. O Maneco foi quem começou a Escola de Circo Dom Fernando. E um
pouco depois eles me convidaram também. A estrutura da escola até hoje é a
mesma. Tudo o que tem lá fomos nós que criamos, e até as plantas fomos nós
que plantamos. Isso tudo junto com a comunidade. Foi um projeto muito
interessante, teve uma adesão bem grande da comunidade, nós conseguimos
aprovar projetos, conseguimos alunos, etc. Só que em 2000, mudou a
coordenação da universidade. Na época era o Washington Novaes, o
coordenador do Instituto Dom Fernando. Aí ele saiu e com essa mudança
mudou-se também a filosofia de trabalho, e nós não quisemos mais trabalhar
com eles. Então nós desvinculamos o projeto e viemos parar aqui no Parque
da Criança. Foi aí que o Laheto ganhou independência, começou a trabalhar
com os próprios recursos. Antes era tudo no nome da universidade, não era
bem o Laheto, né. Eram só as pessoas Maneco e Seluta, que trabalhavam lá.
E aí vieram as dificuldades, porque a gente não tinha equipamento, não tinha
nada, e aí de “vagarinho” nós fomos comprando as coisas, com o dinheiro de
cada apresentação que fazíamos. No projeto de lá havia uma grande
quantidade de adolescentes que já tinham uma afinidade com a gente. Quando
nós mudamos para cá eles vieram junto.
Larissa – Como vocês conseguiram se estabelecer nesse espaço do
Parque da Criança?
Seluta – Nós fomos convidados pelo Adair Meira, da fundação Pró-Cerrado,
que na época era quem coordenava o parque. Nesse tempo o Parque da
Criança estava em fase de revitalização. Nós começamos lá em cima, onde
hoje é a ASMEGO (Associação dos Magistrados do Estado de Goiás), mas aí
fomos despejados de lá e viemos pra essa parte de baixo. Nós ficamos mais ou
menos entre 2004 até 2005 construindo aqui. Tivemos que parar as atividades
durante esse tempo. Foi uma fase muito difícil. Muita coisa estragou: materiais,
equipamentos... Foi mesmo bem difícil. Por muito tempo a sede do circo
funcionou na nossa própria casa. Em 2005 nós reinauguramos e a partir daí
nunca mais paramos. O grupo foi crescendo, crescendo – eu falo pro Maneco
que desde a inauguração o telefone nunca mais parou de tocar (risos).
Larissa – Quando vocês se mudaram pra cá, já tinham uma lona?
52
Seluta – Já tínhamos uma loninha, pequena. Nós fizemos um convênio com a
Universidade Federal, que tinha uma lona e a emprestava pra gente. Em troca
nos fazíamos apresentações pra eles, armávamos a tenda em eventos quando
eles precisavam. Nós ficamos por muito tempo com essa lona da universidade.
Então nós fizemos um projeto com a Manos Unidas, que é uma organização da
Espanha, pedindo uma lona. E conseguimos, através de uma moça que veio
de lá pra conhecer o circo, levou o projeto e argumentou por nós. Aí eles
liberaram o recurso pra podermos comprar a tenda. Com esse dinheiro deu pra
comprar duas lonas, uma menor e uma maior. Daí pra cá então a gente veio
“se virando”, escrevendo projeto, as vezes aprovando, as vezes não... e por aí
vai.
Larissa – Seluta, qual a relação do Circo com a sua família?
Seluta – Bom, a nossa família se confunde com o circo, né. Não se sabe onde
termina e onde começa o Circo Laheto. Uma vez, conversando com uma
terapeuta minha, ela me disse que o Laheto estava até na nossa cama! (risos).
Só que já melhorou muito, hoje, com a maturidade, a gente já consegue
diferenciar as coisas. Inclusive as nossas próprias funções aqui dentro. Porque
antes era uma mistura, uma confusão. Atualmente nós já definimos o que é
responsabilidade de cada um, e ficou bem mais tranquilo assim.
A nossa filha hoje tem 14 anos – estávamos no Dom Fernando ainda
quando ela nasceu. A gente fala que ela é a única circense tradicional da
família, porque ela nasceu no circo, né. (risos). Eu tenho uma gravação dela
com três anos, se apresentando com o pai dela em uma esquete de palhaço, lá
no Centro de Convenções pra duas mil e tantas pessoas. Com quatro anos ela
já se apresentava na perna de pau. Muito peralta! A Dalila é bem apaixonada
pelo circo. O meu outro menino é mais “molenga”, não é tão agitado quanto
ela. Mas a Dalila hoje é uma artista muito importante no circo, porque ela
consegue fazer praticamente todos os números, e ela já até começou a
trabalhar aqui. Agora em agosto estávamos precisando de alguém pra
trabalhar de “brinquedista”, porque de manhã temos muitas crianças pequenas
que nem sempre aguentam ficar o tempo todo nas atividades, as vezes querem
brincar um pouco, fazer outra coisa. Era um sonho que eu tinha: ter alguém pra
disponibilizar e cuidar dos brinquedos. E ela está muito feliz com essa
atividade.
Larissa – Como funciona a organização pedagógica do Laheto?
Seluta – Bom, nós temos a organização administrativa, artística e a
pedagógica, que é a que mais me compete acompanhar. A gente tem a parte
de formação dos arte-educadores, que é feita toda sexta-feira de manhã, onde
nós fazemos leituras, avaliamos as atividades da semana e fazemos um
53
planejamento conforme o tema do mês. As vezes estudamos também em
outros dias da semana das onze ao meio dia, que é o horário de intervalo entre
as aulas da manhã e da tarde. Organizamos os temas mensalmente. Trazemos
um tema geral, por exemplo, trabalhado esse semestre, que foi o corpo. Nós
temos um convênio com Universidade Federal e a professora Karine, que
coordena o estágio de pedagogia, nos auxilia bastante com os projetos, o
desenvolvimento do trabalho, etc. Ela, juntamente com as estagiárias ficaram
responsáveis por trabalhar esse tema: o corpo. Nesse semestre trouxemos
quatro subtemas, que tiveram início em agosto e que vamos encerrar agora em
novembro, dentro do tema mensal que foi “cidadania”.
Então a gente estuda os temas e faz o planejamento de como eles
deverão ser aplicados com os alunos. Temos um planejamento anual, um
semestral e um semanal a partir do tema geral e dos subtemas. Mas esses
subtemas apesar de serem mensais, podem ser estendidos, dependendo da
avaliação que fizermos. As vezes, se nós compreendermos que não foram bem
trabalhados, continuamos no próximo mês e assim por diante. É um
planejamento bem flexível. Aí depois que a gente estuda – nós, educadores –
fazemos uma reflexão em termos de metodologia, pra saber como é que nós
vamos aplicar esses temas pras crianças, como vamos desenvolver as
atividades, sempre de uma forma lúdica né, pois afinal nós somos um circo e
temos esse dever. É sempre um momento muito legal, muito criativo. A gente
trabalha muito com teatro, com leitura, com animação... Pegamos um tema e
bolamos atividades pesando em adequar também a linguagem de acordo com
a faixa etária, né, porque temos o grupo das crianças e dos adolescentes. E
isso tudo sem descartar o que os alunos já sabem, o que já trazem na
“bagagem”.
Larissa – Seluta, como era no início e como é agora?
Seluta – Nós fomos aprendendo muito. A gente sempre teve muito cuidado
com a formação de quem passa por aqui, e nós fomos cada vez mais
aperfeiçoando, né. Sempre tivemos essa preocupação de trabalhar os temas
de maneira lúdica. E de lá pra cá viemos aprimorando a metodologia,
conciliando as necessidades que o grupo trazia, observando qual era a
54
demanda dos alunos, no sentido de ver qual tema seria mais interessante de
ser trabalhado com cada grupo, vendo o que eles já nos traziam...
Larissa – Eu queria saber como foi que vocês sentiram a necessidade de
trabalhar com as turmas outras competências, como português e
matemática?
Seluta – Bem, a necessidade surgiu a partir das dificuldades que os alunos
apresentavam no desempenho escolar. E foi uma maneira de incentivar
mesmo, pra que eles leiam mais, tenham contato com livros e textos
diferenciados, porque a gente sabe que esse universo está um pouco distante
deles, e muitos não tinham acesso à leitura. Então a nossa biblioteca surgiu pra
suprir essa necessidade. É um local onde eles possam escolher o que querem
ler, levar os livros pra casa, dividir com a família.
Essa biblioteca, como você já sabe, nós conseguimos através de um
projeto que escrevemos para a organização Manos Unidas. Nós conseguimos
esse recurso pra montar a biblioteca, e hoje ela é mantida por meio de doações
de todo tipo. Temos também um convênio com a secretaria de educação que
nos envia cem livros por ano, o que ainda é muito pouco. E assim vamos
levando.
Em 2008 ou 2009 a gente recebeu a proposta de um convênio com
a Faculdade de Matemática da UFG, que propôs um projeto de extensão pra
cá: Matemática no Circo. A partir daí começaram a vir os bolsistas pra ajudar
nessa questão. Eles tinham a proposta de fazer com o que os alunos
deixassem de ver a matemática como um bicho de sete cabeças, e passassem
a entender como poderiam usa-la na vida prática. Eles usaram as atividades do
circo como pretexto pra experimentar uma maneira lúdica de ensinar a
matemática. E deu bastante certo.
Larissa – Como vocês lidam com as expectativas diferentes dos jovens
em relação à profissionalização no circo? E como acontece a transição do
circo social para o circo profissional?
Seluta – Eu acho muito interessante lidar com essas diferentes expectativas.
Até porque o objetivo inicial do projeto não é a profissionalização, mas sim a
formação humana e artística deles, o desenvolvimento da sensibilidade, etc. É
um ou outro aluno que quer trilhar por esse caminho da profissionalização.
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Então a proposta inicial é ampliar as possibilidades de formação
deles. Por isso nós temos três grupos diferentes. O grupo da iniciação, que é
um espaço organizado pra eles desenvolverem atividades artísticas, lúdicas, de
proteção à infância. Nesse grupo ninguém nem pensa em formação
profissional ainda. Essa turma é pra crianças de até onze anos. Depois dessa
idade eles passam pra parte da tarde, ainda no grupo de iniciação. Tem alunos
que ficam muito tempo nesse grupo. Uns ficam dois, três anos, sem pressa.
Mas aí tem sempre uns alunos que já começam a cobrar mais dos professores,
querendo ir além. Pra esses nós criamos o grupo intermediário. Os alunos
transitam de uma turma pra outra de acordo com o interesse e o desempenho.
Tem aluno, por exemplo, que ficam alguns anos no iniciante e não passa para
o intermediário, porque não é o foco dele, ou porque não está pronto ainda.
Outros não. Ás vezes com um ano no iniciante já passam para o grupo dos
intermediários, ou até menos de um ano. Aí os professores já cobram deles
outra postura. As técnicas circenses são mais avançadas, as acrobacias são
mais “pesadas”, etc. Tem alunos que se arrependem e voltam pra trás (para o
iniciante), pois veem que não era aquilo que eles queriam, acha os treinos
muito pesados, enfim. Mas se a gente vê que o aluno realmente quer seguir
adiante, tem o perfil pra avançar mais, se tem interesse de participar dos
espetáculos, a gente coloca na turma dos profissionais. Nós fazemos uma
seleção, como uma prova mesmo. Eles apresentam o que sabem, nós
avaliamos e os aprovamos ou não. E esses alunos que passam para o grupo
profissional tem que ter um bom desempenho em todos os sentidos, não só no
aspecto das técnicas circenses, mas também na convivência com a equipe, na
escola e no relacionamento familiar. Isso porque não adianta a pessoa ser um
grande artista e uma pessoa medíocre. A gente quer que o desenvolvimento
seja completo, que o aluno cresça em todas as áreas. Então esses alunos que
estão lá na ponta (no grupo profissional) tem que estar muito bem preparados,
pois são eles que vão defender o nome do Laheto em festivais; que vão
participar mais das viagens, dos espetáculos; que vão cuidar dos figurinos e
dos equipamentos; vão montar e desmontar os cenários, as estruturas; e muito
provavelmente se tornarão nossos arte-educadores e monitores no futuro.
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ENTREVISTA II
Entrevista com Valdemir de Souza (Maneco Maracá)
Data: 24 de setembro de 2013
Local: Circo Laheto – Goiânia-GO.
Larissa – Bom, primeiramente eu gostaria de saber o que é o Circo
Social?
Maneco – O que ele é pra mim ou o que ele representa hoje?
Larissa – As duas coisas.
Maneco – Bem, vou falar um pouquinho só do surgimento pra você entender. A
partir das informações que nós temos, tudo indica que o Circo Social nasceu no
meio dos movimentos populares mesmo, como um mecanismo de diálogo com
as comunidades de base. Nasceu dentro da igreja. Como no Araguaia, por
exemplo, quando nós começamos, tanto o teatro quanto o circo era uma forma
de aproximar dos povos da floresta, dos índios, dos posseiros e tal, levando a
arte e buscando um diálogo, naturalmente com um conteúdo político e
pedagógico inseridos. Acho que hoje esse conceito se tornou algo muito forte,
porque ele acabou sendo inserido dentro de uma modalidade de circo. Já
temos um edital que contempla o Circo Social, o Circo de Rua, e o Circo
Itinerante.
Larissa – É interessante você ter falado neste termo: Circo Itinerante. Nós
temos a mania de dizer muitas vezes “Circo Tradicional”, como se as
modalidades do Circo Social não fossem as mesmas e o rigor igualmente
o mesmo. Criando até uma disputa entre as duas vertentes.
Maneco – Na verdade houve uma disputa terrível para a aceitação do Circo
Social enquanto flexível. Mas hoje em dia o diálogo já conseguiu ser mais forte.
Acho que em todas as manifestações há sempre um ciúme mesmo quando
surgem coisas novas. Nós somos muito mais resistentes com o novo do que
imaginamos. Mas acho que hoje há uma boa aceitação. O Tradicional tem uma
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característica de possuir números39 mais ousados, talvez não tão bem
elaborados, mas ousados. O Circo Social se preocupa com a elaboração de
um bom número, com uma performance teatral, com um conteúdo pedagógico
e um artista mais bem preparado politicamente, criticamente... enfim. O circo
de caráter social é uma ferramenta que educa através de uma perspectiva de
educador popular, que sai da academia pra ir para uma coisa mais “copo a
corpo”, mais próxima da população, da oralidade, com um diálogo menos
formal, que é mais gostoso de trabalhar. Bom, só pra concluir: então o Circo
Social no Brasil surge como movimento que nasceu dentro da igreja – não sei
se você já ouviu falar da Teologia da Libertação – que era uma proposta de
igreja que rezasse menos mas que dialogasse mais com o povo. Estou falando
isso porque os três primeiros núcleos de circo surgiram em Pernambuco, com
um bispo ligado à igreja; com o Betinho, no Rio de Janeiro; e no Araguaia, com
Dom Pedro Casaldáliga.
Larissa – Eu queria saber um pouco sobre como se dá a relação do Circo
Laheto com os outros circos e movimentos desse tipo no Brasil.
Maneco – Eu acho que o Laheto é um dos principais articuladores da região
Centro Oeste, em termos de movimento circense. Participamos dos debates
que visam uma construção política maior para a classe; dialogamos tanto com
o circo de rua, quanto com o itinerante. Eu fui inclusive o presidente de uma
associação de artistas tradicionais, a ASFACI, apesar de ser do Circo Social.
Bom, nós conseguimos, por exemplo, trazer para um festival de
teatro de rua que tivemos a pouco tempo em Goiânia, o Rodrigo Matheus, que
atualmente é um dos principais pensadores na área do circo – ele foi a primeira
pessoa a pensar um currículo mínimo para a formação circense no Brasil.
Estamos intermediando também a vinda da Alice40 para o festival “Goiânia em
Cena”.
Larissa – Você poderia falar um pouco sobre esse currículo mínimo?
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Aqui o termo “número” designa um quadro, uma parte de um espetáculo circense.
40 Alice Viveiros de Castro, diretora teatral especialista em circo. Autora de “O Elogio à
Bobagem”, escreveu também outras obras e artigos relacionados aos saberes circenses.
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Maneco – Hoje nós precisamos ter muito claro o que é que seria a formação
circense. O que nos diferencia nas artes cênicas, por exemplo? E aí é uma
grande crítica, porque o curso de Artes Cênicas não tem circo. Acho que é uma
lacuna ainda, e estamos em debate para tentar corrigir isso. Agora com relação
ao currículo, é preciso entender todo o mecanismo do circo pra ser um artista
circense. Além da história do circo, das teorias que o envolvem, também tem a
questão da capatazia; da armação da lona; de conhecer todo o equipamento,
toda a ferragem necessária da estrutura – como é que se monta e desmonta as
coisas –; conhecer o nosso tipo específico de acrobacia, que muitas vezes se
confunde com a da Educação Física, mas não é a mesma; da diferenciação
entre acrobacias de solo e aéreas, e um série de outras modalidades
circenses. E também as etapas de formação (quantos anos de estudo são
necessários), que é bastante extensa. Nós não temos ainda o circo enquanto
formação superior, né. E por isso precisamos de um currículo mínimo para
conseguir nos legitimar.
Larissa – Podemos dizer que a ENC (Escola Nacional de Circo) é o que
mais se aproxima de uma formação superior em circo no Brasil?
Maneco – A Escolha Nacional, apesar de ser um bom curso, ainda não garante
um registro de formação técnica e nem superior. Mas é o que mais se aproxima
mesmo de um curso superior em termos de circo no Brasil. Inclusive, nós
articulamos bem com a escola, já temos quatro dos nossos lá!
Larissa – Fale um pouco sobre o conflito com o Circo Social e o
Tradicional, ou Itinerante.
Maneco – Houve um conflito muito grande. Por causa da destinação das
verbas públicas, da questão da própria estética do espetáculo, das
características de cada tipo de artista. Muitos tradicionais dizem que só podem
ser legitimados como artista circense se o conhecimento for transmitido de
geração pra geração. Só que isso se foi, faz parte de um registro do passado,
né, as coisas mudaram. E hoje nos temos uma relação bastante harmônica.
Inclusive recebemos muitas visitas do pessoal de circos itinerantes por aqui.
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Larissa – Por favor, conte-me sobre o festival de Circo Social que vocês
organizaram.
Maneco – Nós participamos da “Rede Circo do Mundo Brasil” onde vinte e uma
organizações do país inteiro fazem parte dessa rede, que se articula em média
uma vez por ano presencialmente, e mantem um diálogo perene virtualmente.
Então em 2010 aconteceu o primeiro Festival de Circo Social da Nossa
América, que ocorreu em Goiânia, com o comparecimento dessas vinte e uma
organizações. Contamos inclusive com o a presença de alguns educadores do
Cirque du Soleil. E isso foi um marco, porque criamos a possibilidade dos
jovens participarem, de conhecermos outras escolas, outras experiências,
firmando essa característica de movimento popular, com uma visão mais
política e pedagógica. Conseguimos resgatar as pessoas que começaram esse
tipo de movimento no final dos anos 70, no Araguaia, outros do Rio de Janeiro,
do Pernambuco... e trouxemos até o cara que recebeu o primeiro projeto de
circo social que se tem notícia no mundo, um canadense chamado Paul
Laporte. Enfim, foi mesmo um marco, um encontro muito bacana.
Larissa – Bom, mudando um pouco de assunto, e pra finalizar essa
entrevista, gostaria que você falasse sobre o tipo de relação que vocês
têm com os alunos, e com os ex-alunos que viraram professores aqui no
circo. Existe uma relação de afetividade, ou somente profissional?
Maneco – Bem, no sentido de afetividade eu digo que é uma via de mão dupla,
né. Porque criar esses laços não depende só de nós, depende deles também.
Eu particularmente tenho o maior carinho e me sinto contemplado por cada um
que está desenvolvendo as suas atividades aqui no circo. Até teve uma saída
recente, que foi o Fábio41. Muita gente veio falar: “ah, mas e agora como é que
vocês vão ficar sem ele?”. Então eu falei: “se eu não educar pra que isso
aconteça, eu perco meu papel de educador”. A gente sente muito a saída sim,
mas veja bem, ele saiu ganhando um salário melhor, que nós não tínhamos
41
Fábio Nunes é o palhaço Zé Linguiça. Quando ainda trabalhava no Laheto, funcionava como o “braço direito” do Maneco nas atividades do circo.
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condições de dar, e depois entraram dois no lugar dele! Quer dizer, nós temos
muita clareza de que o objetivo do projeto é esse mesmo.
Temos agora quatro meninos nossos que foram pra Escola Nacional
de Circo, no Rio. Semana passada, teve o aniversário da Dalila, nossa filha,
aqui no circo, e todos vieram. E a gente os recebeu com o maior carinho do
mundo. Pra nós é uma alegria muito grande, poder intermediar isso, esse
intercâmbio, sem perder as relações de afetividade. Dá muito orgulho.