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A HEGEMONIA CIENTÍFICA NORTE-AMERICANA E A ORGANIZAÇÃO DE SEU ENSINO SUPERIOR: A LEGITIMAÇÃO DE UM MODELO PARA A REFORMA UNIVERSITÁRIA DE 1968? Silvana Aparecida Bretãs – Universidade Federal de Sergipe [email protected] O intento do presente estudo é analisar a organização da política científica norte- americana e de sua estrutura institucional de educação superior para, assim, procurar verificar a força de seu ethos científico nos contornos da Reforma do Ensino Superior brasileiro de 1968 bem como, o modo pelo qual se expandiu e se diversificou a estrutura institucional deste nível de ensino no Brasil. Trata-se, portanto, de uma análise teórica sobre a política educacional, sob a orientação da hegemonia científica dos EUA Neste sentido, procura avançar além do debate de caráter político e econômico que sempre justificou a diversidade desse setor social, e jogar luz sobre o projeto científico presente no debate nacional e também na reforma universitária que, ao ser implantada, estruturou a citada diversificação de organização institucional. São fenômenos de difícil explicação, dada a complexidade da relação entre ciência e sociedade, bem como a implicação dessa relação com a organização do conhecimento em instituições universitárias, não universitárias, associações científicas e laboratórios de pesquisas, sejam eles públicos ou privados. O primeiro boom expansionista desenvolveu-se concomitantemente à explosão educacional em toda a América Latina, em todos os níveis de ensino e do reinvestimento da ciência e tecnologia como alavancas do desenvolvimento das forças produtivas e econômicas. Nos estudos de Gentilini (2001, p.23), tratou-se de um imenso esforço das políticas públicas das décadas de 1950,1960 e 1970, adotadas para os países da América Latina, cuja idéia fundamental era que a educação representava investimento considerado no conjunto dos projetos de modernização da economia conduzidos pelos Estados latino- americanos. Com isso, o Ensino Superior e as instituições congêneres são alvos de novos projetos políticos educacionais. Para Pastore (1971, p.6), trata-se também de um período de grande profusão das teorias econômicas com tendência a demonstrar que a educação exerce forte impacto no crescimento e no desenvolvimento de uma sociedade. No entanto, o autor enfatiza que os efeitos positivos preconizados em tais teorias resultaram em

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A HEGEMONIA CIENTÍFICA NORTE-AMERICANA E A ORGANIZAÇÃO DE SEU ENSINO SUPERIOR: A LEGITIMAÇÃO DE UM MODELO PARA A REFORMA UNIVERSITÁRIA DE 1968?

Silvana Aparecida Bretãs – Universidade Federal de Sergipe [email protected]

O intento do presente estudo é analisar a organização da política científica norte-

americana e de sua estrutura institucional de educação superior para, assim, procurar

verificar a força de seu ethos científico nos contornos da Reforma do Ensino Superior

brasileiro de 1968 bem como, o modo pelo qual se expandiu e se diversificou a estrutura

institucional deste nível de ensino no Brasil. Trata-se, portanto, de uma análise teórica

sobre a política educacional, sob a orientação da hegemonia científica dos EUA

Neste sentido, procura avançar além do debate de caráter político e econômico que

sempre justificou a diversidade desse setor social, e jogar luz sobre o projeto científico

presente no debate nacional e também na reforma universitária que, ao ser implantada,

estruturou a citada diversificação de organização institucional.

São fenômenos de difícil explicação, dada a complexidade da relação entre ciência e

sociedade, bem como a implicação dessa relação com a organização do conhecimento em

instituições universitárias, não universitárias, associações científicas e laboratórios de

pesquisas, sejam eles públicos ou privados.

O primeiro boom expansionista desenvolveu-se concomitantemente à explosão

educacional em toda a América Latina, em todos os níveis de ensino e do reinvestimento da

ciência e tecnologia como alavancas do desenvolvimento das forças produtivas e

econômicas. Nos estudos de Gentilini (2001, p.23), tratou-se de um imenso esforço das

políticas públicas das décadas de 1950,1960 e 1970, adotadas para os países da América

Latina, cuja idéia fundamental era que a educação representava investimento considerado

no conjunto dos projetos de modernização da economia conduzidos pelos Estados latino-

americanos.

Com isso, o Ensino Superior e as instituições congêneres são alvos de novos

projetos políticos educacionais. Para Pastore (1971, p.6), trata-se também de um período de

grande profusão das teorias econômicas com tendência a demonstrar que a educação exerce

forte impacto no crescimento e no desenvolvimento de uma sociedade. No entanto, o autor

enfatiza que os efeitos positivos preconizados em tais teorias resultaram em

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disfuncionalidades no sistema social porque não foram cotejados de investimentos

qualitativos em sua expansão.

Para a construção argumentativa de nossa análise, estes estudos nos indicam duas

questões que nos importam: 1) O primeiro boom expansionista ocorreu nas décadas de

1960 e de 1970, o que nos ajuda a uma delimitação histórica do processo de modernização

da sociedade brasileira e, especialmente, do sistema de Ensino Superior. Assim, podemos

também precisar melhor o modelo econômico e social no qual a política brasileira se

espelhava para avançar na racionalização e modernização de suas instituições econômicas,

sociais e culturais. 2) É minimamente sintomático verificar que, no momento de maior

profusão das teorias econômicas que sustentavam a tese de direta correspondência entre

investimento educacional e desenvolvimento econômico e social, maior foi o descompasso

entre esses dois fatores, apesar de toda orientação e modelos de implantação de políticas

sociais visando à concomitância entre investimento educacional e retorno econômico e

social. A questão é saber se o desenvolvimento deve ter seu ponto de partida no mundo do

trabalho ou se pode ocorrer a partir de fora, através de construções cautelosas e maciças de

uma estrutura jurídica e formal que guia os desenvolvimentos necessários da sociedade em

questão (GRAMSCI, 2000b, p.242).

Quanto ao primeiro apontamento, podemos entender que a expansão da oferta de

ensino ocorria em um momento de transformações de concepção científica e de

organização do conhecimento nas instituições de pesquisa e ensino em todos os países mais

avançados. Assim, ao estudarmos autores especialistas no assunto (ARAPIRACA, 1982;

CUNHA, 1986; FÁVERO, 1991; GOERGEN, 1998; PASTORE, 1971; NORONHA, 1998;

SCHWARTZMAN, 1999; SGUISSARDI & SILVA Jr, 2001; TEIXEIRA, 1976;

VAIDERGORN, 1995, etc.), também podemos observar que, enquanto a universidade

européia incorporava a pesquisa científica unificada por um saber geral, no Brasil, “as

tentativas de ruptura com um modelo de ensino chamado humanístico em direção a um

modelo moderno, científico e profissionalizante não conseguem ultrapassar a perspectiva

estreita e utilitária de ciências e ensino” (NORONHA, 1998, p.47).

Esse fenômeno é contraditório porque vem no contexto de um movimento mais

amplo que tem levado o País a se desvencilhar dos laços que se vinculam à tradição

européia e a modelar-se mais e mais ao modo norte-americano. Inserida no contexto social

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mais amplo, tal mudança no Ensino Superior, ao ser aplicada no Brasil, é acompanhada por

um descompasso político, ideológico e social que influencia diretamente na estruturação

das universidades e na educação superior (SCHWARTZMAN, 2000, p.18).

Esse processo se constitui num denso tema que ainda desafia a pesquisa

educacional. Sérias contribuições intelectuais têm apontado para reflexões importantes para

o desvelamento do complexo tabuleiro desse período. Para os nossos propósitos, acatamos

as teses de intelectuais brasileiros a despeito da Reforma Universitária de 1968 (as de

Marilena Chauí, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero e Luís Antonio Cunha), cujo

princípio fundamental é demonstrar como a racionalização científica do tipo empresarial

operou as transformações da universidade em nome de sua modernização e racionalização.

Na tentativa de manter nossa análise um pouco mais livre de imprecisões, dois

aspectos são importantes ressaltar: 1) quando citamos o movimento de desvinculação

cultural do Brasil em relação aos países europeus para os EUA, não estamos entendendo

que esse processo se deu de forma imediata, absoluta e sem resistência. Ao contrário, um

processo dessa ordem requer tempo para sua consolidação e gerações de estudiosos para

revelar todas as suas facetas; portanto, apenas estamos delimitando suas possíveis origens e

destacando características históricas do ponto de vista da organização do Ensino Superior

que possam contribuir com a presente análise. 2) A Reforma Universitária de 1968 não é

em si a expressão exclusiva da influência norte-americana sobre o sistema de ensino

universitário, mas não resta dúvida de que, no mínimo, simbolicamente, foi o coroamento

de todo o processo que se iniciou quando a elite nacional se vinculou ao capital estrangeiro.

Assim, podemos pensar sobre um dos aspectos da modernização do Ensino Superior

que redimensiona a relação entre universidade e cultura. Para Chauí (1980, p.44), há duas

maneiras de instrumentalizar a cultura: a primeira, através de uma supervalorização de

ações, modo de vestir, objetos de consumo que padronizam os sentimentos e desejos dos

indivíduos, sem os quais ele é excluído socialmente. A segunda é confundir conhecimento e

pensamento. Conhecer é assimilar um conjunto de informações e de idéias já estabelecidas,

enquanto pensar é a ação de enfrentar pela reflexão novos questionamentos cujo sentido

ainda não está dado em parte alguma, mas precisa ser produzido pelo trabalho reflexivo.

Para a autora, a modernização da universidade instrumentalizou a cultura na medida em que

“reduziu toda esfera do saber à do conhecimento, ignorando o trabalho do pensamento.

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Limitando seu campo ao saber instituído, nada mais fácil do que dividí-lo, distribuí-lo e

qualificá-lo. Em uma palavra: administrá-lo”.

Na análise de Fávero (1991, p.25), o golpe militar representou um amplo processo

de reformulação estrutural do Estado, com o objetivo de acelerar o desenvolvimento

econômico do País através da industrialização e do estímulo ao setor privado nacional e

estrangeiro. As Forças Armadas redefiniram seu papel, no qual o princípio da defesa

nacional foi substituído pelo de segurança nacional, o que caracteriza uma ação mais

abrangente da defesa das instituições internas com um forte caráter psicossocial e da

preservação do desenvolvimento e estabilidade política interna. É neste contexto que se

reproduziram os Relatórios Atcon e Meira Mattos com profundo significado ideológico no

campo educacional.

Continua, Fávero, demonstrando que a concepção de conhecimento nos relatórios se

definia a partir da idéia de que há um saber universal, neutro, absoluto e verdadeiro – a

ciência –, e o poder é daqueles que mais detêm o conhecimento. Sob este conceito,

desencadeou todo o processo de reorganização da reforma universitária, segundo a qual a

universidade deveria ser baseada no modelo empresarial, cujas finalidades deveriam ser as

de rendimento e eficácia (op.cit., p.27).

O que a autora revela, de maneira mais inovadora, é que a orientação administrativa

dividia o sistema de ensino segundo os princípios taylorista e fordista da gerência científica

aplicada ao mundo do trabalho. Entenda-se: aplicada ao mundo do trabalho, mas altamente

inspirada pelo racionalismo científico porque traduz a aplicação da ciência à organização

do trabalho. Não se trata apenas de associação da ciência à técnica industrial, como

demonstramos no capítulo anterior, mas é, além disso, a matemática científica, a métrica, a

lógica, a verificação sistemática, a comprovação através de provas rigorosamente testadas

que invadem a organização do trabalho da fábrica. E do mundo da fábrica para o mundo da

ciência que, agora, parece mais submetida à esfera da infra-estrutura, porque se

instrumentalizou tão extraordinariamente e porque se fragmentou na relação entre

conhecimento e pensamento, operando transformações internas no campo universitário.

Assim, a relação das teorias econômicas com desenvolvimento educacional explica-

se em termos de quantificação dos dados educacionais eivadas de posições ideológicas

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pouco explicitadas, que reduzem a prática educacional a um fator de produção1. O Ensino

Superior, nesta perspectiva, é atrativo como investimento de capital humano à medida que

pode formar cientistas para desenvolver pesquisas aplicadas ao mercado global e de

interesse do capital industrial e estatal.

No entanto, no que diz respeito ao modelo de racionalização científica e à

organização institucional norte-americanas, que serviram de base para a Reforma

Universitária de 1968, Cunha (1988, p.22) ainda afirma que, embora tenham sido

implementadas por essa política, as proposições deste modelo já vinham sendo gestadas

desde a década de 1940. Sua tese pode ser assim resumida:

A concepção de universidade calcada nos modelos norte-americanos não foi imposta pelo USAID com a convivência da burocracia da ditadura, mas, antes de tudo, foi buscada, desde o fim da década de 40, por administradores educacionais, professores e estudantes, principalmente aqueles, como um imperativo da modernização e, até mesmo da democratização do Ensino Superior em nosso País. Quando os assessores norte-americanos aqui desembarcaram, encontraram um terreno arado e adubado para semear suas idéias.

Uma breve síntese se faz necessária a partir das teses apresentadas: Chauí nos fala

de uma reforma universitária que instrumentaliza o conhecimento bem ao modo da teoria

tradicional, acrescentada aos rigores metodológicos da cientificidade aplicada ao mundo do

trabalho (tal como expôs Albuquerque Fávero), e Cunha confirma a antecipação e a

preparação do terreno a este projeto antes mesmo de ser implantado. Portanto, podemos

pensar que o processo de modernização da universidade e de Ensino Superior brasileiro

implicou mudanças organizacionais não só em sua estrutura administrativa, como também

no próprio modo de exercer seu papel social de produzir e difundir os conhecimentos

científicos e culturais.

Por outro lado, tais mudanças não ocorreriam de dentro da universidade para a

sociedade em geral, pois o processo de acumulação capitalista brasileiro já se delineava nos

padrões de acumulação monopolistas nacionais e internacionais assentados no País a partir

1 Para uma análise mais detida das diferentes mediações entre práticas educativas e modo capitalista de produção, remeto aos estudos de FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva – São Paulo: Cortez, 1985.

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da década de 1950 (OLIVEIRA, 1989, p.79). Este “preparo de terreno”, como sugere

Cunha, refere-se não só aos pensadores que pretendiam transformar a universidade, mas

também ao movimento de implantação de um pólo industrial com forte aporte tecnológico

aliado ao capital internacional2, o que transforma, sobremaneira, as instituições sociais que

podem oferecer recursos humanos, trabalho aplicado e base tecnológica para o

desenvolvimento pretendido.

Desse modo, é interessante observar a força do ethos científico norte-americano no

qual se filiou a reforma do Ensino Superior brasileiro, bem como o modo pelo qual se

assentou no tempo e no espaço deste mesmo nível de ensino no contexto sócio-econômico

brasileiro. Considerando o “terreno” aqui cultivado com suas configurações próprias que

possibilitaram ora absorver o ethos, ora resistir a ele. E, por fim, há que compreender como

se acomodaram tais transformações.

A concepção de ciência e de mundo norte-americano

No ensaio “Ciência como vocação” de Max Weber (1993, p.20), há um trecho

substancial do que podemos entender pelo domínio do processo de racionalização e

intelectualização liderado pela sociedade norte-americana que muito dimensiona essa nova

concepção de ciência e de mundo. Pela agudeza da análise, vale atentar para suas palavras:

Tal como se dá com outros setores de nossa vida, a universidade alemã se americaniza, sob importantes aspectos. Estou convencido de que essa evolução chegará mesmo a atingir as disciplinas em que o trabalhador é proprietário pessoal de seus meios de trabalho (essencialmente, de sua biblioteca). No momento, o trabalhador de minha especialidade continua a ser, em larga medida, seu próprio patrão, à semelhança do artesão de outrora, no quadro de seu mister próprio. A evolução se processa, contudo, a grandes passos.

Weber está identificando um novo “espírito” que se apossa da antiga atmosfera

histórica que unificou o ensino e a pesquisa das universidades alemãs e que tendem a

2 Sobre os processos de acumulação capitalista da sociedade brasileira no período de 1950 a 1960, remeto o leitor aos textos de OLIVEIRA, F. A economia da dependência imperfeita. RJ: Graal, 1989 e SINGER, P.Interpretação do Brasil: uma experiência histórica de desenvolvimento. s/d.

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transformá-las em empresas do “capitalismo estatal” (op.cit., p 19). A universidade que

serviu de modelo para o mundo no final do século XIX e início do século XX é, agora,

transformada gradativamente na condução e na realização da prática científica. O discurso

transformou-se do saber geral e unificado para o saber especializado por área de

conhecimento, e o cientista se sobrepôs ao professor universitário com uma qualificação

compatível com as exigências do mercado. Desaparece, também, a livre escolha de

pesquisar o que se quer ou o que é relevante; em seu lugar, surge a figura do “projeto de

pesquisa” submetido à burocracia estatal, do centro de pesquisa e dos órgãos de fomento. A

divulgação científica através de livros e revistas, além de estímulo, se definiu como sinal de

magnificação do cientista e de sua universidade. Aliados a estes aspectos, juntaram-se aos

institutos de pesquisa e às universidades os setores produtivos responsáveis pela produção

do conhecimento, o que redimensionou a imediata aplicação dos descobrimentos científicos

ao mundo da produção. Não é difícil entender por que a ciência se aproximou do mundo da

política e, por ele, também passou a ser determinada.

Essas são algumas novas características que definem uma profunda mudança do

caráter da ciência e sua relação com a sociedade, bem como a organização e a

institucionalização do conhecimento. Nos últimos cinqüenta anos do século passado, os

vultosos investimentos científicos foram de iniciativa governamental e maciçamente

voltados para o armamento bélico e para as investigações militares. É o período da pós-

Segunda Guerra Mundial, marcado pela luta entre o mundo capitalista e o socialista e sob a

nervosa tensão da guerra-fria, iniciada pelo lançamento do Sputinik, disputada pela ameaça

de lançamento de mísseis e, posteriormente, pela à crise do petróleo.

A ascensão dos EUA e da ex-União Soviética à liderança do desenvolvimento

científico e tecnológico foi possível pela existência dos capitais estatal e privado

disponíveis aos seus investimentos e relacionados à distribuição do poder político e

econômico que desenhavam as duas potências em relação ao mundo. Esse desenvolvimento

está estreitamente vinculado ao capitalismo norte-americano.

As conseqüências que daí decorrem, são bastante sérias: primeiro porque a ciência

tem caído no setor capitalista do mundo, sob o controle de pequenas firmas monopolistas,

e, segundo, porque, “nos EUA, as universidades já estão em suas mãos; seus representantes

fazem parte de organismos governamentais, de onde conseguem os fundos e concedem as

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subvenções estatais” (op.cit. p 432). Estes resultados trazem uma importante implicação das

descobertas científicas que guardam altos segredos cujo controle escapa cada vez mais das

mãos de cientistas competentes e independentes.

A pesquisa, a divulgação dos seus resultados e dos fins de seus investimentos não

têm lugar no debate público, pois se transformaram em verdadeira arma de competição do

capitalismo e cindiram, deste modo, o próprio mundo da ciência: de um lado, pesquisas

envolvendo elevados interesses comerciais que circulam em meios restritos e, de outro,

pesquisas “democratizadas” que devem ser divulgadas com sentido “didático” para a

formação de novos pesquisadores. Do ponto de vista da historiografia da ciência, surge uma

questão teórica de difícil formulação, pois a ciência sempre se caracterizou por uma

atividade social menos suscetível às forças econômicas, religiosas, política e ideológicas,

tal como já discutimos no capítulo anterior. Sabemos que a lógica interna da ciência tem

capacidade de conduzir seu próprio desenvolvimento, mas, paradoxalmente, quanto mais

incrementou e intelectualizou as forças produtivas capitalista, mais submeteu a sua

autonomia às necessidades do sistema industrial.

A organização científica que os EUA projetam ao mundo, não está limitada ao seu

próprio desenvolvimento interno, como nunca esteve, é certo. Mas, agora, a relação de seu

desenvolvimento com as condições de produção material do capitalismo industrial e estatal

encontra-se em uma fase de maior estreitamento não observado em outros períodos de

avanços científicos.

Na análise de Gramsci (2001, p.208) sobre americanismo e fordismo, encontramos

uma importante formulação sobre a etapa da história industrial que, por ora, nos ajuda

também a construir um referencial analítico para a história da ciência na hegemonia norte-

americana. Os conceitos de americanismo e fordismo foram utilizados pelo autor italiano

para mostrar a necessidade imanente desta sociedade em chegar a uma organização de

economia programática3 e que, em sua forma mais completa, está livre das camadas

fossilizadas das classes parasitárias própria da “tradição” européia. Esta é a razão principal

que permitiu uma base sadia para a indústria e para o comércio, e conseguiu concentrar

toda a vida do País na produção industrial.

3 Com a expressão “economia programática”, Gramsci (2001, p.367) se refere ao planejamento socialista. Para ele, tanto o americanismo quanto o fascismo acolhem elementos da programação econômica na tentativa de conservar o capitalismo.

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A inexistência das classes sedimentadas da nobreza européia é a condição histórica

para mais facilmente racionalizar a produção e o trabalho. Não é sem razão que, depois da

instalação da Ford Motor Company, em 1903, o fordismo assinala uma etapa fundamental

na organização do processo produtivo industrial no capitalismo. Para Gramsci (2001,

p.248), trata-se de um “fenômeno das ‘massas’ cuja explicação [...] não é mais do que a

forma desse tipo de sociedade ‘racionalizada’, [que] domina mais imediatamente a

superestrutura e estas são ‘racionalizadas’ (simplificadas e reduzidas em número)”.

A aplicação e a utilização da ciência na sociedade norte-americana racionalizada, tal

como definida por Gramsci, nos permitem aferir que seu estado cognitivo reconhece a

importância da ciência em sua estreita vinculação às necessidades das empresas capitalistas

incorporada à base industrial. E, por outro lado, a ciência e os cientistas são detentores de

um estatuto epistemológico científico, marcado fortemente pelo pragmatismo sóbrio e

severo dos pioneiros protestantes4.

Diferentemente do que ocorreu com a ascensão alemã na liderança do

desenvolvimento científico no final do século XIX, que bebeu nas fontes filosóficas do

criticismo kantiano5, e demonstrou autonomia e independência em relação à sua infra-

estrutura, os Estados Unidos vincularam a prática científica ao complexo industrial militar

e, com isto, reorganizaram toda a sua estrutura político-institucional de Ensino Superior, na

qual a característica do líder pesquisador se destaca não somente pela sua capacidade

intrínseca como cientista, mas também pela sua “capacidade de se impor como

coordenador, de motivar, de coligar com seus pares, de planificar, de gerir o projeto e,

sobretudo, de convencer os virtuais agentes financiadores da relevância do tema de

investigação que propõe” (BAIARDI, 2000, p.191).

Se a universidade alemã unificou ensino e pesquisa porque pretendia uma reflexão

4 O termo pragmatismo foi introduzido na filosofia em 1898, por um relatório de W. James a California Union, em que ele se referia à doutrina exposta por Peirce (1878), onde declarava ter inventado o nome de pragmatismo para a teoria segundo a qual “uma concepção, ou seja, o significado racional de uma palavra ou de outra expressão, consiste exclusivamente em seu alcance concebível sobre a conduta da vida”. Não é sem razão que, praticamente 20 anos mais tarde, Dewey, adepto da doutrina, utiliza o termo instrumentalismo para “conceber o conhecimento e a prática como meios para tornar seguros, na experiência, os bens que são coisa excelentes de qualquer espécie” (ABBAGNANO,2000, p.224). 5 Suas principais teses são: 1) a formulação crítica do problema filosófico; 2) a determinação da tarefa da filosofia como reflexão sobre a ciência e, em geral, sobre as atividades humanas e 3) a distinção fundamental no domínio do conhecimento, entre os problemas relativos à origem e ao desenvolvimento no conhecimento do homem e o problema da validade do próprio conhecimento (ABBAGNANO, 2000, p.224).

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filosófica sobre a ciência, a universidade norte-americana se desobrigou desta reflexão

filosófica e instituiu a separação entre ensino e pesquisa, pois seus resultados, agora, já não

podem nem mesmo ser divulgados pelos meios de ensino, uma vez que seus interesses

estão determinados pelos lucros econômicos e políticos da luta intercapitalista.

Mas, ainda assim, não podemos afirmar que a infra-estrutura da produção industrial

tenha determinado o desenvolvimento científico. Voltemos ao nosso eixo de análise

descrito no capítulo anterior e, segundo o qual, para historicizar a constante empreitada de

racionalização e intelectualização do processo civilizatório, se requer que a ciência seja

compreendida, expondo sinteticamente os problemas nascidos no processo de

desenvolvimento da cultura geral. Esta, só parcialmente, se reflete na história da ciência, a

qual, todavia, é fonte máxima para criticar aquele processo, demonstrar seu valor real ou o

significado que tiveram como elos superados de uma cadeia. Assim procedendo, fixa os

problemas novos e atuais ou a colocação atual de velhos problemas (GRAMSCI, 2000,

p.101).

O incremento científico-tecnológico, substancialmente fundamentado pelo

racionalismo cientificista e vigorosamente patrocinado pelo capital monopolista, segundo

seus interesses, é a fase mais recente de um longo processo que começou com a própria

instrumentalização da ciência, uma fase que é apenas mais intensa do que as anteriores e se

manifesta sob formas mais diversificadas e fragmentárias na organização e na

institucionalização do conhecimento científico, ou seja, especificamente, do Ensino

Superior.

Entre os países mais industrializados, foram os EUA que criaram o sistema mais

complexo para aplicar política de ciência e tecnologia.

Trata-se de dezenas de organizações, algumas atuando em paralelo, na esfera do poder executivo e legislativo, com funções de assessoria, conselho, agência de fomento e execução. Todas elas interagem com a universidades e centros de pesquisa que não fazem parte da rede pública, o que, dentro do espírito do pluralismo e concorrência, amplia consideravelmente a capacidade do Estado de interferir nos rumos do desenvolvimento científico e tecnológico (BAIARDI, 1996, p.183).

A partir da década de 1950, a organização da pesquisa passa a impor uma estrutura

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piramidal muito complexa, e as decisões coletivas que envolvem a comunidade científica

local, não são mais uma escolha individual. Inaugura-se, nesta mesma fase, outra

característica própria do sistema norte-americana que é a colaboração entre as instituições

públicas e as privadas, dada a indiscutível qualidade destas últimas (Harvard, por exemplo),

mantidas por doações filantrópicas, que estimulam o setor privado a investir em ciência e

tecnologia (op.cit., 186).

Outro fator, absolutamente importante a se destacar no desenvolvimento da ciência

e tecnologia nos EUA, deve-se à massa de imigração de cientistas e intelectuais europeus,

especialmente alemães, que se viram obrigados a deixar seu país e suas universidades por

conta da perseguição nazista e fascista de Hitler e Mussolini, e a se instalarem nos EUA,

contribuindo efetivamente para alavancar o progresso da ciência neste país.

Ao findar a década de 1950, fica consolidada a hegemonia científica norte-

americana. O Ensino Superior é um reflexo do emprego do modelo fordista e da concepção

pragmática de racionalizar e fragmentar ensino e pesquisa, de separar o cientista do

professor, submetendo a organização do conhecimento aos interesses comerciais,

industriais e estatais. A universidade como um incremento da qualificação profissional é,

sem a menor dúvida, aspiração dos jovens norte-americanos devido à possibilidade de

ascensão social e econômica que ela representa.

A organização e a institucionalização da ciência norte-americana

No início do século XX, os EUA eram ainda um país basicamente rural e agrícola

com um setor industrial crescente. Com o decorrer do século, uma série de mudanças

sociais e econômicas passa a mudar o cenário de forma significativa: eletrificação da

agricultura, surgimento das grandes indústrias automobilísticas, siderúrgicas, elétricas e

petrolíferas, migração da população rural para a cidade, migração da população negra do

sul para o norte industrializado, acompanhada pela imigração européia durante e depois da

II Guerra Mundial, e também da forte imigração dos mexicanos e centro-americanos nos

meados da década de 1950. Os Estados Unidos participaram das duas grandes guerras que

não se desenrolaram em seu território e conseguiram se impor enquanto potência mundial

graças ao desenvolvimento de sua indústria bélica.

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Acrescenta-se a estes fatos, o impulso para o acelerado desenvolvimento da ciência

e tecnologia norte-americanas devido ao Projeto Manhattan, que teve seu nascimento

determinado por uma carta enviado por Albert Einstein ao presidente dos Estados Unidos,

Franklin Roosevelt, superestimando a capacidade da Alemanha em desenvolver a bomba

atômica, fazendo com que os Estados Unidos tomassem a dianteira dando início à produção

de armas nucleares (BAIARDI, 2000, p.176)

As transformações econômicas e sociais operam de forma fundamental no mercado

de trabalho da sociedade norte-americana, caracterizada por uma estrutura fortemente

piramidal, como é próprio do capitalismo avançado, e disputada por aqueles que possuem

maior grau de escolarização. Desse modo, a importância da educação superior é

supervalorizada no contexto social mesmo que, na realidade, tenha servido como puro

artifício de seleção de moços e moças para o mercado altamente tecnológico e científico. A

relação que Wolff (1993, p.13) faz entre mercado e educação superior norte-americana, é

assim expressada:

[...] o ponto ao qual você chega na pirâmide de renda nos Estados Unidos é determinado quase que inteiramente por quão bem seu emprego lhe paga. E o nível de salário ao qual você pode realisticamente almejar é determinado, mais do que qualquer outra coisa, por quanto você tenha educação. NÃO por quanto você sabe, ou por quão competente você é! Isso é com toda probabilidade um assunto à parte6.

O mercado como elemento determinante da qualificação do trabalhador contribuiu,

sobremaneira, para a criação de um sistema complexo de faculdades e universidades

públicas e privadas que, de modo bem específico, é inaugural na história das instituições de

Ensino Superior. Temos, então, as academias de artes liberais de caráter confessional, em

sua maioria, que lecionam ensino liberal amplo. Na verdade, trata-se de uma adaptação das

universidades inglesas, como as de Cambridge e Oxfort, que são as mais antigas e

tradicionais de todo o sistema. No século XIX, são criadas as academias denominadas bens

de raiz, cuja função era ensinar aos estudantes da classe trabalhadora os aspectos científicos

de sua profissão. As universidades são tributárias do modelo alemão que integra a pesquisa

6 Destaque do autor.

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ao ensino, mas com uma visão pragmática de formação profissional. Finalmente, paralelos

a essas instâncias de formação, estão os colégios universitários, academias militares e

institutos técnicos, que são cursos de graduação fragmentados em bacharelados e

licenciaturas, cuja gestão é de caráter privado, e as pesquisas aí desenvolvidas devem

contribuir financeiramente para o patrimônio e manutenção da universidade (BROWN;

MAYHEN, 1967, p.29). Todo este complexo institucional prestigia a pesquisa como

atividade precípua de suas atividades.

Os dois autores citados não podem ser tomados como críticos do Ensino Superior

norte-americano. Seus escritos servem, quando muito, como informação sobre o sistema e,

por isso, nos valemos de uma citação para demonstrar a influência que o modelo europeu, e

mais propriamente o alemão, exerceu sobre as instituições de Ensino Superior:

A idéia de que uma universidade deve concentrar suas energias em pesquisa e no preparo dos alunos para o bacharelado, é uma concepção alemã que foi trazida pelos milhares de americanos que foram à Alemanha em busca de um ensino mais adiantado, durante o século XIX. Os estudantes, ao regressaram, puseram estas idéias em prática na então criada Universidade de John Hopkins, na cidade de Chicago e também na Universidade de Stanford. A crença de que o ensino liberal é valioso para qualquer vocação ou profissão, é uma idéia renascentista, baseada no que era julgado de importante para o preparo intelectual de um cavalheiro. A noção de que uma universidade deve preparar pessoas para as profissões menos elevadas, é uma norma americana que se origina no seu ideal democrata. O papel do Ensino Superior como instrumento7 da política nacional é o resultado da evolução8 científica e do clima do pós-guerra e de constantes crises (op.cit. ,p.15)

Junto à diversificada rede de instituições de Ensino Superior, um novo elemento

singulariza esse sistema de ensino: não se trata apenas de diplomar profissões que eram

meramente técnicas e não existentes nas universidades européias e, especialmente, nas

alemãs; é um elemento de caráter filosófico, científico-tecnológico que se desenvolve num

estágio extensivo e intensivo do capitalismo em proporções mundiais. Ocorre que a

tecnificação das relações sociais, em todos os níveis, se universaliza, e a racionalização

cientificista opera ao modo da racionalização do mercado, das empresas, do aparelho

7 Grifos nossos. 8 Grifos nossos.

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estatal, do capital, da administração das coisas, de gente e idéias (IANNI, 2001, p.21). A

universidade se vincula visceralmente ao mundo da produção industrial e pós-industrial e

deixa, cada vez mais, de ser uma instituição social para ser uma instituição de mercado.

O sistema de Ensino Superior norte-americano se multifaceta para compor com o

estado de coisas da modernidade através do discurso eclético e pragmático. Um dos

principais teóricos desse modelo – Dr. Clark Kerr (1963) - assim defende a universidade:

Hoje a universidade norte-americana que seja grande é [...] toda uma série de comunidades e atividades mantidas juntas por um nome comum, um quadro de diretor comum e finalidades relacionadas [...] A multiversidade abre os seus braços a estudantes de praticamente todos os níveis de posse, status social e habilidades inatas9.

O verniz do ideal democrata toma a sociedade como algo pluralista e repleta de

oportunidades para quem queira nela ingressar através do mercado de trabalho e da

almejada qualificação educacional, mas, na verdade, o que muda substancialmente é o

sentido da universidade. Para Wolff (2001, p.56),

A multiversidade, como o nome sugere, não revela nada da unidade de lugar, finalidades e organização política, que caracterizava as antigas universidades. No seu âmago está uma faculdade de graduação e programa de graduação – ou talvez muitas faculdades e programas de graduação. Mas ela se estende em todas as direções, englobando escolas profissionais, institutos de pesquisa, programas de treinamento, hospitais, escolas primárias, fazendas e laboratórios, em várias cidades, estados e até mesmo outros países. A universidade da Califórnia terá provavelmente uma ramificação na Lua antes que o século acabe.

Não há mais argumentos, a não ser históricos, para a compreensão da fragmentação

do caráter universitário que se operou na sociedade norte-americana. A racionalidade

capitalista tomou o rumo do encaminhamento da pesquisa e transformou o ensino em mera

transmissão de técnicas de área de conhecimento escolhidas pelos alunos, transmissão que é

disciplina da aprendizagem:

Acompanhadas desse caráter que tomou o ensino universitário, outras faces 9 Kerr apud Wolff (1993, 55 – 70)

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compõem o diversificado campo de instituições universitárias norte-americanas. A

principal delas é que as universidades particulares e públicas não polarizam em termos de

prestígio e estratificação social tal como acontece no caso brasileiro. Elas são definidas

entre públicas e privadas mais por se dividirem entre confessionais e não confessionais.

Ambas sofrem interferência sistemática do caráter pragmático e eclético acima indicado,

comandadas pelas escolhas de pesquisas determinadas por forças da indústria e do

comércio e do forte poder governamental que sanciona e aprova os propósitos a que ela

servirá. A tal ponto que, dificilmente, sobra espaço para a elaboração crítica e avaliação

independente, pois tudo se justifica pelas necessidades criadas pelo desenvolvimento

científico e tecnológico10.

A universidade se constituiu num projeto concebido à luz da produtividade e

rendimento da adequação do mercado de trabalho. Para os propósitos de nossa análise,

gostaríamos de fixar esta idéia porque ela pode nos ajudar, e muito, para compreender a

característica multifacetária do Ensino Superior brasileiro. Pensamos, assim, ter apontado

uma possibilidade de análise para a compreensão desse complexo caleidoscópio do Ensino

Superior brasileiro.

O projeto de modernidade e modernização da ciência e do Ensino

Superior brasileiro

O que hoje se transformou no modelo de cientificidade e de Ensino Superior, não

passa, na verdade, de um prolongamento orgânico e de uma intensificação da

instrumentalidade científica da teoria tradicional, iniciada no continente europeu, que

apenas assumiu uma nova epiderme na sociedade americana. Neste sentido, já estamos

convencidos de que a sociedade brasileira também se “americanizou”, e entendemos que o

fez também de modo bastante especial, com relação à racionalidade do sistema de Ensino

Superior. Parece, então, que chegamos ao momento de recolocar a questão gramsciana, ou

seja, “se [...] pode [os EUA] (e, portanto, deve) ‘acelerar’ o processo de educação dos

10 Mas não nos deixemos levar pelo niilismo total. O mesmo campo diversificado tem possibilitado a emergência de mentes críticas e suficientemente inteligentes para se oporem a um estado de coisas, até porque a sociedade norte-americana construiu uma concepção de cidadania, de conquistas efetivas de direitos, deveres e sentimento de homens e mulheres livres.

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povos e dos grupos sociais mais atrasados, universalizando e traduzindo de modo adequado

a sua nova experiência” (GRAMSCI, 1999, p.86). É interessante notar que Gramsci não

responde negativamente a essa questão, mas alerta que não podemos procurar essa resposta

no modo de pensar mecânico e reacionário, tal como “pedagógico-religioso”, ou seja, que

um povo é feito uma criança que se encontra numa fase primitiva da vida e do pensamento,

pressupondo que a religião é boa por si só e deveria, então, oferecer a catequese para o

povo. Para o filósofo da práxis, a necessidade de “acelerar” o processo de educação de

povos e grupos sociais atrasados é tão necessária quanto contingente, uma necessidade

histórica e não absoluta.

É justo que uma sociedade mais avançada ofereça como modelo suas leis de

desenvolvimento a outra, mas que isso não seja tomado pela sociedade atrasada como uma

profissão de fé, mas, ao contrário, a necessidade deve ser recebida com rebeldia. O que

significa dizer que ela é um fato filosófico-histórico contra essa necessidade, isso porque

contribuirá para reduzir o tempo de imposição cultural; induzirá os povos e grupos sociais

menos avançados a refletirem sobre si mesmos, a se auto-educarem e, por fim, porque a

própria resistência demonstra um período superior de civilização e pensamento (op.cit.;

p.87).

A força da imposição cultural e dos processos de racionalização das ações, relações,

instituições, organizações e formações sociais norte-americanas sobre a sociedade brasileira

deve, de todo modo, ser sempre bem analisada, porque implica modos próprios e

hegemônicos de uma sociedade capitalista e capitalizada sobre uma sociedade em vias de

acumulação capitalista. Este estudo, ao tratar da história da educação do Ensino Superior

em seus nexos com o projeto científico posto em questão a partir da década de 1950,

considera necessário delimitar, mesmo que de forma descritiva, como estava constituído o

estado cognitivo da sociedade brasileira e, mais precisamente, o estatuto epistemológico da

ciência e dos cientistas nela inseridos.

A julgar pela disparidade das forças políticas e econômicas das sociedades em

questão, parece que não haveria outra perspectiva senão entender que o processo de

dominação se deu por uma submissão cega e muda de um país sob o outro. Mas essa

perspectiva empobrece qualquer poder de análise. É preciso considerar que o modo de

desenvolvimento da produção capitalista sempre apresentou as conotações internacionais,

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multinacionais, transnacionais e mundiais, desenvolvidas no interior da acumulação

originária do mercantilismo, colonialismo, imperialismo, da dependência e da

interdependência (IANNI, 2001, p.14). O padrão de racionalização que acompanha esse

desenvolvimento “saltou da Europa aos Estados Unidos da América do Norte. Em forma

errática e contraditória, no curso dos anos, décadas e séculos, esse padrão se estende pelos

outros países ou povos, compreendendo continentes, ilhas e arquipélagos” (op.cit, p.146).

Não estamos falando apenas de imposição cultural de um país sobre o outro ou de

um povo sobre outro, mas do próprio desenvolvimento do capitalismo que, segundo Ianni

(op.cit., p.149)

Desde o mercantilismo, o colonialismo e o imperialismo, vastos processos por meio dos quais se tecem laços, comunicações, redes, geoeconomias e geopolíticas desenhando o mapa do mundo, sempre compreendendo culturas e civilizações também muito diferentes entre si e das ocidentais, desde esses vastos processos todo o mundo foi sendo permeado por padrões, valores, instituições e organizações mais ou menos característicos do capitalismo.

Decorre daí, que é necessário não perder essa perspectiva sem, contudo, abandonar

os processos singulares e próprios da sociedade brasileira e, mais propriamente, da ciência

e do Ensino Superior do país. Nesse aspecto, podemos considerar que, no Brasil dos anos

cinqüenta, já havia uma organização relativamente complexa de instituições científicas que

desenvolviam pesquisas em diferentes áreas do conhecimento, contando com órgãos de

fomento à pesquisa e algumas universidades definidas nos modelos modernos de ensino e

pesquisa da Europa do século XIX e dos EUA do século XX (MOTOYAMA, 1978 – 1981;

SCHWARTZMAN, 2001). No entanto, isso não nos assegura afirmar que se assentou na

história da ciência no Brasil um espírito autônomo, livre, com bases epistemológicas

capazes de guiar os investimentos em pesquisa e erguer suas instituições num processo

próprio de desenvolvimento científico, baseado nas reais necessidades da sociedade

brasileira.

Para perfilar o modelo de racionalidade que presidiu a ciência moderna no Brasil,

torna-se necessário delimitá-lo no tempo. Sabemos que sua origem deita raízes já no

período Imperial com a vinda de D. João VI, que cria o Jardim Botânico, em 1808, a fim de

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“aclimatar as plantas originárias de outros países, bem como o cultivo de sementes para a

melhoria de produtos agrícolas” (NORONHA, 1998, p.98). Os princípios que nortearam

sua fundação e seus objetivos não ultrapassavam os interesses do aparelho estatal e o uso

imediato que dele se poderia retirar.

O projeto de ciência e de Ensino Superior, no contexto da modernização da

sociedade brasileira, nasce marcado pelos ranços do atraso da sociedade escravocrata.

Muito embora, contrariando as expectativas, foi esse projeto o responsável por fazer surgir

o desenvolvimento da pesquisa que, algumas décadas mais tarde, se transforma em centros

de pesquisa de alto nível e de formação de novas gerações de cientistas. É importante que

se lembre, também, que é daí que surgem importantes nomes de cientistas brasileiros que

trabalharam ao lado de colaboradores estrangeiros que aqui vieram e se estabeleceram

como cientistas e também contribuíram para a formação das novas gerações. No entanto,

essas gerações e centros de pesquisa não se consolidaram sem antes enfrentar crises

relacionadas às suas finalidades imediatistas, falta de financiamento e migração de talentos

científicos de um centro para outro ou de um centro para os laboratórios industriais.

Trata-se de uma constituição social e histórica que traz profundas conseqüências

para os diferentes setores da coletividade nacional. Na ciência e no Ensino Superior, essa

assertiva não é mero efeito discursivo, pois fatores, como crescimento urbano,

industrialização, política de dependência econômica do capital internacional e imposição da

transformação do processo social do trabalho, exigem a ampliação dos quadros técnico-

administrativos dos diversos setores da economia, a fim de superar a sociedade “arcaica” e

chegar ao ideal de sociedade moderna. Assim ocorreu que, nos últimos anos do século XIX

e início do século XX, na área da saúde, foram criados os institutos voltados ao combate às

epidemias que assolavam os centros urbanos. Mais tarde, na década de 1920 do século

passado, surgiram os institutos de pesquisas agrícolas em defesa do desenvolvimento da

agricultura e da pecuária e, depois de 1930, a criação de institutos de pesquisas

tecnológicas, como exigência do parque industrial que já se esboçava no Brasil. Todos, de

um modo ou de outro, traduziram-se em criações para responder às urgências da política

sanitária, do setor agrário e, por fim, em resposta à demanda crescente da indústria. Isso

significa que a contribuição que a ciência e tecnologia possam dar a um país em

desenvolvimento, tem seus limites na orientação que a própria sociedade dá a esse

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desenvolvimento.

Como ficou demonstrado mais acima, a origem das atividades de pesquisa no Brasil

está relacionada aos institutos de ciências naturais. O desenvolvimento dessas atividades

ingressou, a partir da década de 1930, nas instituições universitárias, as quais, em alguns

casos, acabaram por incorporar os antigos institutos. A organização universitária fundada

na tradição continental européia, orientada para a preparação profissional de uma pequena

elite, cujos princípios básicos consistiam na pesquisa científica, foi uma idéia de difícil

aceite neste País.

O que importa ressaltar aqui é que, apesar da existência dessas universidades, o que

prevalece é a justaposição de escolas de Ensino Superior que, não obstante, continua suas

atividades de modo isolado (VAIDERGORN, 1995, p.33). Esse processo tardio da

organização universitária e da institucionalização da pesquisa científica nesse espaço social

mostra que o Ensino Superior brasileiro se consolidou, em grande parte, sobre uma

estrutura administrativa e técnico-científica de escolas superiores isoladas, de caráter

específico, com um corpo docente e discente determinado. Desse modo, é justo supor que o

espaço social da universidade e da educação superior no Brasil se tornou bastante

diversificado e constituído por setores que se orientam por racionalidades diferentes e, por

vezes, antagônicas (SILVA Jr, 1999).

Esse espírito científico vai, aos poucos, tomando contornos cada vez mais nítidos,

porque decorrentes das características da própria formação social brasileira e, também, do

próprio modus operandi da ciência no mundo pós-industrializado. A racionalidade

cientificista e mecanicista conquistada e demonstrada pela assombrosa coerência entre o

conjunto de hipóteses e aplicações experimentais, não poderia ser absorvida pela frágil base

científica brasileira, senão como mera aplicação às urgentes necessidades do estado de

coisas que constituíam essa realidade.

Mesmo no advento dos anos de 1950, quando a economia brasileira expande sua

capacidade industrial além da produção de maquinário para a própria indústria, de bens de

consumo duráveis e não duráveis, e ingressa, finalmente, no círculo do capitalismo

mundial, na medida em que atrela o capital nacional ao internacional11, a comunidade

11 Baseamos nossas afirmações nos estudos de Francisco de Oliveira, cujo foco de análise é o esgotamento do padrão de acumulação capitalista da economia brasileira, iniciada na segunda metade dos anos 50. Cf. OLIVEIRA, Francisco. A economia da dependência imperfeita – 5. ed. - Rio de Janeiro: Graal, 1989.

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científica, ainda assim, padece de uma firme consolidação de financiamento, de estruturas

institucionais para a pesquisa e, principalmente, pela ausência de noções epistemológicas

que constituem a ciência normal, tal como definida por Kuhn (2000).

No livro Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil

do sociólogo Simon Schwartzman (2204, p. 12), com todo o seu olhar de respeito aos

cientistas que, sempre atuaram em condições adversas, revela seus êxitos extraordinários

nessa atividade especial. Não obstante, relaciona-os ao mito de Sísifo, tamanha são as

dificuldades trilhadas por aqueles indivíduos de boa educação que empregam com

entusiasmo o melhor de sua inteligência e criatividade para fazer ciência.

Nesse autor, encontramos fases graduais de difusão da ideologia cientificista a qual

impregnou o espírito da ciência no Brasil, e a partir dele orientou a política para esse fim.

Segundo Schwartzman (op.cit. , p.22), a primeira fase corresponde ao período anterior à

segunda Guerra Mundial, demonstrada por sérias tentativas de criar novas instituições

universitárias. A segunda fase é o período pós-guerra, definido pela tentativa de modificar a

estrutura tradicional da instituição militar. E, finalmente, mais típica dos anos de 1960 e

1970, a fase que se caracterizou por criar nichos isolados e protegidos para a ciência e

pesquisa.

Já se passavam algumas décadas da fundação da Academia Brasileira de Ciência e

da Associação Brasileira de Educação (1916 e 1922, respectivamente) e mantinha-se acesa

a defesa de uma universidade brasileira. Entre as longas décadas do debate sobre a função

social de produzir pesquisa, formar profissionais em bases científicas, elevar-se ao mais

alto aspecto da cultura humana e aplicar os conhecimentos para o desenvolvimento do País,

vários modelos de universidade e institutos de pesquisas foram se estruturando no Brasil.

Em 1961, depois do modelo uspiano e da federalização das instituições de Ensino

Superior, foi criada a Universidade de Brasília, cujos mentores intelectuais foram Anísio

Teixeira e Darcy Ribeiro. Esta universidade tinha o objetivo de oferecer substância cultural

a Brasília e tornar-se agência supraconsultora do governo, sem se limitar a constituir um

grupo de servidores do governo (SCHWARTZMAN, 2001, p.13).

É neste contexto institucional científico que o Brasil ingressa na terceira fase de

difusão da ideologia cientificista, mas, agora, sob a batuta dos consultores norte-americanos

e do interesse do capital nacional e estrangeiro. Como já dissemos, o fazer científico

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assume novos contornos delineados pelo ethos mercantil e, deste modo, orienta a pesquisa,

o seu valor, seu financiamento, o papel do cientista e a própria estrutura institucional.

A partir de 1964, agências governamentais de planejamento econômico, como o

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE, e a Financiadora de Estudos e

Projetos – FINEP, investem no campo da ciência e tecnologia no intuito de colocar essas

atividades em favor do desenvolvimento econômico, mediante investimentos substanciais.

O investimento governamental é um fato histórico inédito no Brasil, decorrente da política

científica desenvolvida tanto nos EUA quanto na antiga URSS, no período da guerra-fria.

Paralelos a essas agências, setores do governo ampliam sua extensão e redefinem

suas ações e seus esforços orçamentários, como é o caso do Ministério do Planejamento e

do Conselho Nacional de Pesquisa e Tecnologia. O primeiro se constituiu palco de difíceis

negociações entre pesquisadores e militares, guiados por orientações opostas. O segundo é

redimensionado em sua estrutura técno-burocrática devido a uma massa orçamentária

jamais experimentada (SCHWARTZMAN, 2004, p.4).

Assiste-se, assim, à criação e à valorização dos centros de tecnologia avançada

compondo verdadeiros oásis de investigação científica e tecnológica e, por outro lado, não

obstante a declaração da indissociabilidade entre pesquisa e ensino, separa-se, no interior

das universidades, a pesquisa científica do ensino da ciência.

No primeiro caso, apoderando-se dos já existentes institutos de pesquisa de alta

capacidade tecnológica12, os militares brasileiros, inspirados na ideologia de segurança

nacional e no clima da guerra-fria, aprofundam sobremaneira as relações de intercâmbio

científico com o EUA. Reconhecem que esse projeto só se realizará tendo em vista a

formação de quadros técnicos e estrategistas militares para colocar em prática as idéias do

“Poder Marítimo”, “Poder Aeroespacial” e “Poder Terrestre” para assegurar a doutrina de

Segurança Nacional e o desenvolvimento potencial das indústrias siderúrgicas e bélicas

nacionais13. O oásis de investigação científica referido anteriormente diz respeito ao

conhecimento de alto interesse do capital estatal e industrial e constitui, por isso, segredo de 12 Tais como: Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA (1950), Escola de Engenharia (1950), Escola Politécnica de São Paulo (1903), Instituto Militar de Engenharia (1959) e Escola Superior de Guerra (1948). Só para citar alguns (VARGAS,1994). 13 Está-se falando da Companhia Belgo – Mineira e Usina de Volta Redonda (décadas de 1930-40), que são indústrias siderúrgicas. Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. – EMBRAER (1965), Engenheiros Especializados S.A. (1965), Avibras (1961), Bernadini Indústria e Comércio (1932) que são indústrias bélicas (VARGAS,1994).

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Estado. É a ciência hard, cujas altas cifras administram conhecimento no mercado

industrial e financeiro com pouca, ou nenhuma, publicização de seus investimentos e

resultados. A ciência aqui traduz-se em know-how, e sua regulamentação depende das leis

de patentes. Dois elementos capazes de criação instrumental quase que sem limites e, no

entanto, também capazes de confiscar o conhecimento da própria comunidade científica,

por sua linguagem matematicamente hermética e ser seus interesses financeiros, que

movimentam este mercado bélico.

No caso brasileiro, foram os militares que assumiram os postos mais avançados nos

laboratórios tecnológicos e, mesmo nos congêneres universitários, foram estabelecidos

convênios com os órgãos militares. O aporte científico-tecnológico é de origem norte-

americano, e todos cientistas consultados ou convidados para compor quadros técno-

científicos, em sua esmagadora maioria, eram deste país e vinculados a institutos que

geravam modelos para os do Brasil (VARGAS, 1994, p.283-399).

Quanto às universidades, já conhecemos um pouco esta história: sob o ponto de

vista organizacional, a Reforma Universitária de 1968 introduziu elementos extraídos da

universidade de pesquisa norte-americana: foram instituídos os departamentos no lugar de

cátedras e implantado o sistema de créditos sob o prisma da racionalidade instrumental em

termos de eficiência técnico-profissional; foram implantadas também as instituições de

pesquisa, os programas de pós-graduação, que conferem grau de mestre e doutor e um

“ciclo básico” nas universidades. Foi nessa reforma que se estabeleceu a indissociabilidade

entre ensino e pesquisa, definida como o verdadeiro modus operandi do Ensino Superior. A

universidade seria o lócus privilegiado para sua realização, visto que os institutos isolados

não são capazes de propagar a “universalidade” da ciência. Mas esse pressuposto, longe de

se constituir em consenso e critério de valorização da pesquisa e do ensino, criou

verdadeiras cisões no interior da universidade, pois a distribuição de recursos, a partir de

“linhas de pesquisa”, favoreceu os grandes laboratórios e as equipes de pesquisa, mas não

fazia muito sentido para as humanidades nem para a pesquisa teórica e fundamental

(CHAUÍ, 2001, p.34). Nesse sentido, a universidade dedica-se a produzir mais pesquisa

“aplicada” e, cada vez menos, pesquisa “pura” (RIBEIRO, 1986, p.27).

À esteira dessa cisão, as agências de planejamento econômico no campo da ciência

e tecnologia se dedicavam a identificar grupos promissores de pesquisas e fornece-lhes

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apoio direto através de contratos tanto dentro quanto fora da universidade. Enquanto isso,

na universidade pública, os recursos disponíveis fluíam completamente fora do seu

controle, pois

começaram a coexistir departamentos bem mantidos e bem pagos, dotados de pessoal qualificado, ao lado de programas deficientes – os primeiros mais preocupados com pesquisa e ensino de pós-graduação; os últimos, ligados a escola e cursos tradicionais em nível inferior de pós-graduação (SCHWARTZMAN, 2002, p.8).

Estabeleceu-se, assim, um sistema de dois patamares não somente entre as

instituições de Ensino Superior, mas também dentro de cada uma delas, o que Chauí (2001,

p.97) classificou de modernização oferecida como oposição que combate a democratização

porque separa ensino de pesquisa, direção e execução, trabalho e governo universitário,

bem ao modo dos processos racionalizados e cientificistas do mundo do trabalho para o

mundo da ciência. Nesse aspecto, entendemos que o projeto científico brasileiro ingressa na

lógica instrumental de alto aporte tecnológico e do interesse do capital internacional, tal

como já discutimos no final do primeiro capítulo e início deste.

Essa fase transcorreu no contexto dos anos de 1960, que representam, para a

sociedade brasileira, um importante marco nas mudanças ocorridas na estrutura econômica,

política e social do País. É a década herdeira de um nítido processo de industrialização de

aporte tecnológico avançado, bancado pelo capital estrangeiro e sob a égide das

multinacionais. Um movimento acompanhado por um processo acelerado de urbanização

da população e, conjuntamente, de organizações político-sociais, tais como os partidos

políticos e sindicatos de trabalhadores da indústria.

Tais mudanças pressionam o sistema de Ensino Superior a oferecer maior número

de vagas para uma extensa camada de jovens que vislumbravam a possibilidade de ocupar

novas vagas em postos mais privilegiados da estrutura de trabalho, fenômeno já pesquisado

por outros autores do ponto de vista da estrutura econômica e política. Em decorrência de

nossos estudos, cabe aqui entender que as características próprias do projeto científico

posto em questão a partir da década de 1950, no Brasil, permite que a diversificação do

sistema de Ensino Superior se efetive não só na universidade e nos institutos tecnológicos,

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como também numa estrutura de instituições periféricas a esse sistema central, com a

finalidade apenas de desenvolver ensino.

A grande expansão da rede privada de Ensino Superior destinada apenas para o

ensino, através de institutos e faculdades isoladas, e a diversificação de racionalidade

organizativa de cada uma destas instituições corresponderam ao caráter fragmentário da

atividade científica, desenvolvida numa sociedade que não reconhece o valor da ciência e

dos cientistas como via de desenvolvimento de suas próprias forças sociais. A política

científica, desenvolvida no Brasil a partir dos anos sessenta, hierarquizou de uma maneira

muito complexa a estrutura de distribuição e produção do conhecimento. Mesmo as

universidades que, bem ou mal, eram instituições tradicionais de pesquisa, são

paulatinamente fragmentadas. Portanto, a massificação do Ensino Superior através das

instituições não-universitárias também corresponde a esta cisão tanto da ciência quanto da

organização institucional de distribuição do conhecimento. Não são redes tão separadas

assim... na verdade, são faces de uma mesma moeda.

Parece-nos, que o fato de que a experimentação e instrumentalização da ciência se

generalizar na vida mais cotidiana dos indivíduos, criou uma necessidade muito intensa de

não só cultivar pequenos celeiros de gênios para desenvolver projetos sofisticados de

ciência e tecnologia, mas, tão igualmente, tem-se a necessidade de formar os usuários da

ciência, equipados de técnicas, de automatismos corporais e psíquicos que os tornam

propícios e aptos a tomar a lógica da cientificidade como uma prática normativa, sem,

contudo, ao menos, desconfiar dos difíceis processos de construção de conceitos da ciência

e de suas leis.

As instituições que apenas desenvolvem ensino não fazem outra coisa, senão formar

esse usuário que, de certo modo, corresponde à extrema instrumentalização da

racionalidade científica contemporânea e, por isso, deve estar cognitivamente preparado

para agir dentro desta lógica. Não estamos falando apenas que ele deve saber acessar um

terminal eletrônico, mas deve guiar-se no racionalismo métrico, comparável, previsível,

calculável e metódico próprio do cientificismo contemporâneo. Senão, como o mundo da

experimentação científica, assenhorado do seu poder de criar infinitamente, poderia

continuar triunfando?

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Aos poucos, todas as organizações de Ensino Superior, ao seu modo, revelam-se

compatíveis com esse padrão de racionalização. Só que no caso brasileiro, marcado pelo

histórico drama dos ímpetos de modernização que se sucedem pela via ideológica ou pelos

ranços do autoritarismo (FAORO, 1992, p.8). Desse modo, vão sendo conduzidos pela elite

nacional sem, contudo, deixar que a população se beneficie dos possíveis avanços.

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