a guerra dos mundos ou as relações institucionais entre a

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Sociologia Programa de PósGraduação em Sociologia Juliano De Fiore A Guerra dos Mundos ou As Relações Institucionais entre a Homeopatia e a Medicina Científica São Paulo – Maio de 2015

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  • Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Sociologia Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    Juliano De Fiore

    A Guerra dos Mundos ou

    As Relaes Institucionais entre a Homeopatia e a Medicina Cientfica

    So Paulo Maio de 2015

  • 2

  • 3

    Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de Sociologia Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    A Guerra dos Mundos ou

    As Relaes Institucionais entre a Homeopatia e a Medicina Cientfica

    Juliano De Fiore

    Tese apresentada ao programa de Ps-graduao Em Sociologia do Departamento de Sociologia

    da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Univesidade de So Paulo, para a obteno

    do ttulo de Doutor em Sociologia.

    Orientador: Prof. Dr. Sedi Hirano

    So Paulo Maio de 2015

  • 4

    FIORE. J. D. A Guerra dos Mundos ou As Relaes Institucionais entre a Homeopatia

    e a Medicina Cientfica. Tese apresentada ao Departamento de Sociologia da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So paulo,

    para a obteno do ttulo de Doutor em Sociologia.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. ____________________________________________ Instituio: ___________________________

    Julgamento: ________________________________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________ Instituio: ___________________________

    Julgamento: ________________________________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________ Instituio: ___________________________

    Julgamento: ________________________________________ Assinatura: ___________________________

    Prof. Dr. ____________________________________________ Instituio: ___________________________

    Julgamento: ________________________________________ Assinatura: ___________________________

  • 5

    meus pais, Ottaviano e Elizabeth.

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Antes de mais nada, gostaria de agradecer ao meu orientador durante esta

    dura empreitada, o professor Doutor Sedi Hirano, por sua acolhida mais do que

    amistosa, por seu incentivo constante e por sua confiana em minha pessoa e no

    meu trabalho. Sou-lhe realmente muito grato.

    Agradeo tambm ao meu pai e minha me, meus orientadores,

    incentivadores e apoiadores incondicionais, sem eles esse trabalho tambm no

    teria sido possvel.

    Agradeo aos meus sogros pelo inestimvel suporte e minha esposa por sua

    infinita pacincia e assistncia, sou muito afortunado por t-los.

    Por fim, agradeo imensamente agncia CAPES, pelo financiamento desta

    pesquisa, por meio da concesso de uma bolsa de estudos (PROEX), que permitiu

    que 4 anos (2011-2015) fossem dedicados este trabalho.

    Gostaria de deixar umas ltimas palavras para lembrar do saudoso professor

    Antnio Flvio Pierucci, que fez algumas observaes importantes sobre o uso dos

    conceitos de Max Weber empregados nesse trabalho e cujas instigantes conversas

    (nunca suficientemente longas) deixaram um impossvel gosto de quero mais.

  • 7

    Para a Vertigem

    Alma, em teu delirante desalinho,

    crs que te moves espontaneamente,

    quando s na vida um simples redemoinho,

    formado dos encontros da torrente.

    Moves-te porque ficas no caminho

    por onde as coisas passam, diariamente.

    No o moinho que anda: a gua corrente

    que faz, passando, circular o moinho

    Por isso, deves sempre coservar-te

    nas confluncias do mundo errante e vrio,

    entre foras que vem de toda parte.

    Do contrrio, sers, no isolamento,

    a espiral, cujo giro imaginrio

    apenas a iluso do movimento.

    Raul de Leoni. Luz mediterrnea.

  • 8

  • 9

    FIORE. J. D. A Guerra dos Mundos ou As Relaes Institucionais entre a Homeopatia e a Medicina Cientfica. Tese apresentada ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Sociologia.

    RESUMO O Objetivo deste trabalho tratar da Homeopatia e da Medicina Cientfica, e de sua

    convivncia institucional, considerando principalmente o cenrio posterior dcada

    de 1980, quando de sua assimilao pela Medicina Oficial brasileira. O que se

    pretende demonstrar, fundamentalmente, que a Medicina Cientfica e a

    Homeopatia so essencialmente diferentes, e acima de tudo demonstrar que este

    caso particular de relaes institucionais deve ser entendido sob pelo menos duas

    perspectivas, de uma epistemolgica, e de outra sociolgica. Essas duas perspectivas

    so essenciais para entender a moderna relao institucional entre Homeopatia e

    Medicina Cientfica, que acontece num contexto de assimilao institucional da

    Homeopatia pela Medicina Oficial. Ainda que essa integrao nunca possa vir ser

    concretizada completamente, essa assimilao resultado de uma grande mudana

    no universo simblico das culturas ocidentais, principalmente dos conceitos e

    valores ligados ao imaginrio da sade. Neste novo contexto simblico, a cincia

    como instituio ressignificada e e devidamente recontextualizada, em termos de

    cultura popular e senso comum (universo simblico da vida cotidiana), de modo que

    passa a poder acomodar os mais diversos tipos de conhecimentos em seu universo.

    sob a perspectiva do processo de racionalizao e desencantamento do mundo

    que essas instituies so analisadas e a compreenso dos universos simblicos

    mantidos por cada grupo o objetivo central desse trabalho.

    Palavras Chave:

    Homeopatia, Medicina, Cincia, Instituies, Cultura, Sociologia do Conhecimento, New

    Age, Sade, Terapias Alternativas, Contra Cultura, Espiritismo, Epistemologia,

    Processo de Modernizao.

  • 10

    FIORE. J. D. War of the Worlds or The Institutional Relations between Homeopathy

    and Scientific Medicine. Department of Sociology, Faculty of Philosophy, Letters and

    Human Sciences, University of So Paulo.

    ABSTRACT

    This study deals with Homeopathy and Scientific Medicine and focus its

    institutional relationship, especially considering the latter scenario to the 1980s

    decade, after its assimilation by brazilian Official Medicine. It intends to

    demonstrate that Scientific Medicine and Homeopathy are fundamentally and

    essentially different things and, above all, demonstrate that this particular case of

    institutional relations should be understood in, at least, two perspectives:

    epistemological, and sociological. These perspectives are essential to understand the

    modern relationship between Homeopathy and Official Medicine - which takes place

    in a context of institutional assimilation of homeopathy by the Official Medicine

    (although this integration could never come to be fully realized). This assimilation is

    the result of a change in the symbolic universe of western cultures, especially the

    concepts and values linked to the health imaginary. In this new symbolic context,

    science, as an institution, is resignified and recontextualized in terms of popular

    culture and common sense (the symbolic universe of everyday life), allowing to

    accommodate all different types of knowledge in this new resigninified universe of

    science. Its from the process of rationalization and disenchantment of the worlds

    perspective that these institutions are analyzed, and the understanding of the

    symbolic universes maintained by each group is the central objective of this work.

    Key words:

    Homeopathy, Medicine, Science, Institutions, Culture, Sociology of Knowledge, New

    Age, Health, Alternative Therapies, Counter Culture, Spiritism, Epistemology,

    Modernization Process.

  • I

    SUMRIO Captulo 1. Introduo. 13 Captulo 2. Fundamentao Terica a) Enquadramento Institucional do Problema... 18.

    b) Racionalizao, Desencantamento e tica 33.

    Captulo 3. O Universo Simblico da Medicina Cientfica a) O Significado da Cincia em Disputa ..... 42.

    b) Medicina Cientfica - legalidade mdica, educao e classes sociais ..... 72.

    Captulo 4. Homeopatia no Brasil a) O Organom de Hahnemann uma anlise 87.

    b) O Universo Simblico da Homeopatia .. 105.

    c) Jules Benoit Mure e a Chegada da Homeopatia ao Brasil ... 139.

    d) A Relao entre Homeopatia e Espiritismo .... 163.

    e) A Homeopatia e sua Entrada nas Instituies Universitrias ..... 190.

    Captulo 5. O Universo Simblico da Homeopatia Moderna A Homeopatia, Contra Cultura e Sade .. 203.

    Captulo 6. Concluses Universos simblicos paralelos e sua coexistncia no universo plural

    das sociedades modernas 221.

  • II

    - Notas .. 228. - Anexos ... 250. - Bibliografia .... 315.

  • 13

    Captulo 1.

    Introduo

  • 14

    Este trabalho nasceu de uma curiosidade antiga, sobre a natureza do

    conhecimento produzido pelas cincias e como, em essncia, eles so diferentes de

    outras formas de conhecer o mundo. Essa curiosidade tem, claro, um fundamento

    epistemolgico, mas tambm inclui perguntas sobre a forma como as sociedades

    lidam com os vrios tipos de conhecimentos existentes e disponveis. Essa

    curiosidade se divide em quatro ramos: a) Como os conhecimentos so construdos?

    b) Quais so os grupos sociais que os sustentam? c) Por que os grupos sociais

    sustentam esses conhecimentos? d) O que acontece quando conhecimentos

    concorrentes se enfrentam? Essas so as indagaes fundamentais que instigaram a

    produo desse trabalho.

    A histrica disputa institucional entre Medicina Oficial e Homeopatia e a sua

    atual resoluo de diferenas por meio da assimilao legal da Homeopatia pelas

    instituies mdicas brasileiras traz um estudo de caso perfeito para as 4

    perguntas colocadas anteriormente. Afinal, Medicina e Homeopatia so dois tipos de

    conhecimento construdos de modo diferente, possuem grupos portadores bem

    definidos, os quais, por sua vez, produzem sofisticados argumentos legitimatrios

    sobre seu prprio conhecimento e, sobretudo, demonstraram durante centenas de

    anos um claro antagonismo institucional.

    Para produzir uma avaliao dessas instituies e entender o papel

    desempenhado por elas na sociedade realizou-se uma pesquisa que incluiu uma fase

    de levantamento bibliogrfico sobre o tema (focado na histria das ideias), uma fase

    de coleta de dados sobre estatsticas e demografia mdicas no Brasil, uma fase de

    coleta de dados sobre produo de legislao na rea da sade, uma coleta de

    material audiovisual na internet (principalmente palestras sobre homeopatia e

    medicina e entrevistas com mdicos e homeopatas) e uma fase de entrevistas com

    representantes institucionais da homeopatia.

    O trabalho ser apresentado em seis captulos, O segundo captulo expe os

    fundamentos tericos que serviro de base para todas as anlises subsequentes.

  • 15

    Nele se buscar mostrar que a perspectiva assumida nesse trabalho foge

    perspectiva corriqueira dos trabalhos sobre o tema, desenvolvidos principalmente

    pelas reas de sociologia e sade pblica. Tampouco uma perspectiva que

    comporta juzos de valor quanto aos conhecimentos analisados. A perspectiva

    proposta, a da sociologia do conhecimento, elaborada por Peter Berguer e Thomas

    Luckmann (1973), ao lidar com o conhecimento medindo-o e caracterizando-o por

    seu valor intrnseco (quer dizer pelo valor dado a esse conhecimento por seu grupo

    criador e portador) implica que a importncia e o valor de certos conhecimentos

    no podem ser conhecidos usando como parmetros valores que no pertenam ao

    universo deste mesmo conhecimento. Nesta perspectiva de construo social da

    realidade a Medicina e a Homeopatia sero contextualizadas terica e

    historicamente dentro do processo de modernizao das sociedades ocidentais

    assim como sero alocadas em diferentes momentos histricos do processo de

    racionalizao e desencantamento do mundo, na forma como esse processo foi

    proposto por Weber (1944) em Economia e Sociedade e dissecado por Pierucci

    (2013) em O Desencantamento do Mundo todos os passos do conceito em Max

    Weber.

    No captulo 3, se tratar de estabelecer os parmetros a partir dos quais se

    poder falar em uma viso cientfica do mundo e mostrar quais princpios

    epistemolgicos so as bases sobre as quais se constroem as vises de mundo. O que

    se pretende mostrar nesse captulo como se d a compreenso cientfica do

    mundo. Tambm se far um primeiro enquadramento da Medicina Cientfica como

    instituio, avaliando-a pelo ngulo da legalidade mdica, ou seja, analisando a

    questo do monoplio de um saber e de uma prtica profissional, e estabelecendo

    uma perspectiva para avaliar os tipos de relao que esse ramo profissional

    desenvolve com as diferentes classes sociais, e portanto, estabelecendo tambm seu

    carter poltico e de classe.

    O captulo 4 exclusivamente focado na Homeopatia. Nele se far,

    inicialmente, uma anlise do Organon da Arte de Curar de Hahnemann, para

  • 16

    contextualizar o nascimento e o teor do conhecimento homeoptico. Ser feita uma

    anlise dos princpios da Homeopatia, como expostos por Hahnemann, atravs do

    comentrio de pargrafos selecionados da obra. Ento se tratar de estabelecer

    tanto em termos histricos, como em termos simblicos, qual a origem, e como

    formada a viso de mundo da Homeopatia e quais so seus princpios

    epistemolgicos. A histria da Homeopatia no Brasil ser introduzida atravs de um

    de seus mais importantes personagens fundadores, Jules Benoit Mure, e se ver em

    que medida Mure e suas crenas filosficas foram decisivas para o estabelecimento

    de uma Homeopatia de carter verdadeiramente nacional. Tambm ser explorada

    a ligao entre a Homeopatia e o espiritismo, que se relacionaram no Brasil

    influenciando-se mutuamente. E, por fim, se apresentar um quadro histrico, do

    ponto de vista da construo jurdica de uma regulamentao legal para o exerccio

    da Homeopatia no pas, e algumas caractersticas estatsticas relativas atuao de

    mdicos e homeopatas no mercado da sade brasileiro.

    No captulo 5 pretende-se apresentar a profunda relao existente entre os

    valores expressos pelos movimentos contra culturais dos anos 1960 e a

    Homeopatia. Relao possibilitada pela existncia de valores relativos ao conceito

    de sade compartilhados por ambas. Tornados claros todos esses pontos, pode-se

    passar a algumas consideraes finais, a) a respeito da convivncia das duas

    instituies em nossa sociedade, b) a respeito das regras de convivncia

    institucional e c) o papel do estado e da sociedade na regulao legal dessa

    convivncia.

  • 17

    Captulo 2.

    Fundamentao Terica

  • 18

    a) Enquadramento Institucional do Problema

    As instituies da Medicina Cientfica e da Homeopatia encontram-se em

    disputa, seno declarada, pelo menos evidente quanto a isso no restam mais

    dvidas. So inmeros os elementos nas condutas de ambas as instituies que nos

    levam concluso de que no se trata de uma convivncia desinteressada e

    totalmente pacfica, nem no campo da teoria, nem no campo da prtica.i

    Para entender como essas instituies convivem, se enfrentam e se

    posicionam com relao ao conjunto da sociedade, preciso, antes de tudo,

    esclarecer a perspectiva de anlise adotada nesse trabalho. A perspectiva mais

    apropriada para tratar de uma disputa entre definies da realidade , sem dvida, a

    da sociologia do conhecimento, tal como proposta por Berger e Luckmann (1973) em

    seu livro A Construo Social da Realidade.

    O princpio fundamental dessa perspectiva que a realidade em que vivemos

    construda socialmente e, portanto, a sociologia do conhecimento tem como

    objetivo analisar os processos da construo dessa realidade. A realidade define-se

    aqui como uma qualidade pertencente aos fenmenos que reconhecemos serem

    independentes dos nossos desejos, ou seja, fenmenos que no se alteram ao

    desejarmos que eles no existam. E conhecimento a certeza que possumos de que

    determinados fenmenos so reais. A vida cotidiana do homem da rua a sua

    realidade ltima e ele a conhece em seus detalhes, em diferentes medidas e com

    variveis graus de certeza. Entretanto, embora o homem da rua (expresso do

    prprio Berger) tenha como certa sua realidade e seu conhecimento sobre ela,

    diferentes sociedades tomam por certas diferentes realidades, Aquilo que real

    para um monge tibetano pode no ser real para um homem de negcios americano.

    (BERGER; LUCKMANN, 1973, p. 13). A est o papel mais importante da sociologia

    do conhecimento: entender as diferenas observveis entre as sociedades, ou

  • 19

    grupos dentro de uma mesma sociedade, em termos daquilo que admitido como

    conhecimento legtimo por cada uma delas, assim como entender os processos pelos

    quais as respectivas realidades so admitidas como verdadeiras.

    O mesmo vale para a analise de diferentes realidades coexistindo dentro de

    uma mesma sociedade, como o caso da Medicina Cientfica e da Homeopatia -

    embora elas devam ser consideradas tambm sob uma tica mais restrita, a das

    disputas por hegemonia e legitimidade entre grupos de especialistas (um caso

    especial dentro da perspectiva da sociologia do conhecimento de Berger, muito mais

    focada no conhecimento da vida cotidiana e no senso comum do que, propriamente,

    nas ideias altamente elaboradas e abstratas dos especialistas). A sociologia do

    conhecimento se ocupa de tudo aquilo que considerado como conhecimento em

    uma dada sociedade, independente da validade ltima desses conhecimentos

    (BERGER; LUCKMANN, 1973, p. 14). O objetivo da sociologia do conhecimento,

    assim como da sociologia em geral , nos termos de Weber (1944) o conhecimento

    do complexo de significados subjetivos da ao. Embora a sociedade possua uma

    realidade objetiva, ela construda por meio de atividades que, quando executadas,

    expressam claramente um significado subjetivo. Isso faz da realidade uma entidade

    sui-generis, em que facticidade objetiva e significao subjetiva so mutuamente

    retroalimentadas uma pela outra, criando e mantendo a realidade.

    Podemos conceber tanto a Medicina Cientfica como a Homeopatia, nos

    termos de Weber (1944), como coletividades portadoras de realidades, verdades e

    ideologias, diferentes e concorrentes, que habitam mundos de pressupostos

    distintos. Por mais esotricos e distanciados que estes conhecimentos ou realidades

    possam estar dos conhecimentos da banal vida cotidiana, eles se ligam a ela pois

    pertencem a uma viso de mundo particular que concatena todas as esferas da vida,

    incluindo a esfera da vida cotidiana. A vida cotidiana - entre todas as realidades que

    concebemos e das quais participamos durante nossas vidas (a realidade dos sonhos,

    da vida religiosa, das ideias filosficas e cientficas, das artes, etc.) - a mais

  • 20

    concreta e imediatamente apreendida como real, , portanto, a base referencial

    sobre a qual iro se construir e relacionar as outras realidades.

    A vida cotidiana apresenta-se como uma realidade interpretada pelos

    homens e subjetivamente dotada de sentido para eles, na medida em que forma um

    mundo coerente. Ns aprendemos essa realidade, como uma realidade pr-

    ordenada, pois quando nos damos conta dela, ela j se nos apresenta como

    objetivada, isto , constituda de uma ordem de objetos que foram denominados

    anteriormente chegada de qualquer indivduo a este mundo. Estas objetivaes,

    por sua vez, nos so fornecidas pela linguagem que, ao mesmo tempo, objetiva e

    ordena os elementos do mundo, dotando-os de significado para cada um de ns. Ela

    marca as coordenadas da vida em sociedade e enche-a com objetos dotados de

    significao.

    A realidade da vida cotidiana organiza-se em torno do aqui do nosso corpo,

    e do agora do nosso presente, porm, no se esgotando neles e abrangendo

    fenmenos que os transcendem. Assim, a vida experimentada em diferentes graus

    de distanciamento espacial e temporal; podemos nos deslocar do que

    imediatamente apreensvel e diretamente acessvel (do presente onde nos

    encontramos, em que a conscincia dominada por motivos pragmticos) para a

    realidade do mundo em que viveram nossos antepassados ou para o mundo em que

    vivero nossos descendentes. Essa realidade, est claro, se apresenta como um

    mundo intersubjetivo, em que participamos todos como integrantes de uma

    sociedade. Aquilo que sei sobre a realidade tambm sabido pelos outros e todos

    sabem, tacitamente, que h uma correspondncia entre os significados partilhados,

    de maneira que a atitude natural de cada um dar como certa a conscincia geral do

    senso comum, que aquele conhecimento partilhado por todos durante a execuo

    das rotinas normais da vida cotidiana.

    Nesse mundo da vida cotidiana, outras esferas de realidades se apresentam

    nossa conscincia, mas quando comparadas ela, aparecem como campos finitos de

  • 21

    significado, ou seja, como enclaves dentro da realidade (BERGER; LUCKMANN, 1973,

    p. 43) - por exemplo, durante uma pea de teatro, quando a cortina se abre o

    espectador transportado para outro mundo, com seus prprios significados e

    hierarquias bem definidos e codificados para todos, de modo que no tratamos

    atores de teatro como os personagens que eles interpretam fora do tempo e do

    espao de durao de uma pea. Sabemos diferenciar esses mundos e trat-los de

    acordo com suas respectivas realidades. Todos os campos finitos de significado

    caracterizam-se por desviar a ateno da realidade da vida cotidiana, mas mesmo

    nos desvios mais radicais, como aqueles que promovem uma transformao na

    tenso da conscincia (como, por exemplo, os fornecidos pela experincia do xtase

    ou transe mstico/religioso) a realidade da vida cotidiana mantm sua situao de

    realidade dominante.

    Na criao desses campos, a linguagem tem um importante papel, pois como

    por meio dela que objetivamos nossas experincias, e sua raiz est fincada na

    prpria vida cotidiana, ela faz com que tudo que seja expresso por seu intermdio

    faa referncia ltima a este mundo a partir do qual ela se originou. Ou seja, os

    significados da linguagem continuam fazendo referncia s objetivaes da vida

    cotidiana mesmo quando esto objetivando realidades de campos finitos de

    significado. Dessa forma, a linguagem traduz constantemente as experincias no

    pertencentes vida cotidiana para o seu mbito, fazendo dela a referncia ltima

    para a anlise de qualquer realidade. Essa caracterstica de traduo evidencia-se

    quando, por exemplo, um fsico nos diz que sua teoria sobre o conceito de

    tempo/espao no pode ser expressa de forma exata por meio das lnguas naturais,

    dificuldade essa tambm experimentada pelo artista e pelo mstico.

    A expressividade humana produz incessantemente objetivaes, ou seja ela

    se manifesta atravs dos produtos da atividade humana que adquirem um

    significado pblico, por meio do qual se manifestam os processos subjetivos de seus

    produtores. E a realidade da vida cotidiana s possvel por causa da existncia das

    objetivaes que tornam o mundo organizvel e explicvel.

  • 22

    Outra importante caracterstica da linguagem que, apesar dela originar-se

    nas situaes face a face, ou seja da relao entre dois ou mais indivduos se

    comunicando nas situaes da vida cotidiana, ela facilmente se destaca dos

    significados puramente relacionados essas situaes. Isso significa que ela possui a

    capacidade de comunicar significados que no so expresses diretas da

    subjetividade do aqui e agora, mas significados que expressam extrapolaes e

    abstraes que podem no ter nenhuma relao direta com a realidade da vida

    cotidiana (caso das significaes filosficas, artsticas, cientficas ou religiosas).

    Neste sentido, a linguagem atua como repositrio objetivo de vastas acumulaes de

    significados e experincias que podem ser preservados no tempo e transmitidos s

    geraes futuras. No entanto, mesmo sem ligao direta com o mundo que nos

    rodeia, os significados objetivados pela linguagem tornam-se reais quando

    expressos.

    A reciprocidade, qualidade inerente da lngua, permite o acesso direto de

    todos subjetividade de todos. Ao mesmo tempo, quando algum se expressa

    verbalmente, est objetivando significados tanto para os outros como para si

    prprio, reforando e legitimando a realidade desses significados. Essa perspectiva

    segue na direo que propunha Vigotski (1987) em seu livro Pensamento e

    Linguagem, onde estabelece que a fala deve ser considerada como um mecanismo

    que transforma o pensamento em realidade. Essa caracterstica da linguagem de

    atribuir status de realidade aos significados que cria deve-se, entre outras coisas, ao

    fato de que a linguagem se apresenta aos indivduos como uma facticidade externa

    Em outras palavras, apesar do indivduo construir internamente uma estrutura

    lingustica e aquilo que ele expressa ser uma verso pessoal da significao das

    coisas do mundo, a linguagem aprendida como algo anterior nossa existncia,

    que j possui uma estrutura pr-determinada, social e historicamente, que nos

    coage a entrar em seus padres. Dessa forma, podemos dizer que a linguagem molda

    as ideias, no sentido de que estabelece a forma como as ideias devam ser expressas

    e como elas podem ser relacionadas.

  • 23

    A linguagem no s permite objetivar um infinito nmero de objetos e

    experincias, como tem o papel fundamental de tipificar as experincias e os

    objetos, transformando a experincia pessoal numa categoria annima que permite

    que as agrupemos em categorias mais gerais que podem ser relacionadas. Como

    exemplo, podemos nos referir aos vocbulos que expressam relaes de parentesco.

    O pai, a me, os primos, a sogra, o cunhado, representam tanto pessoas concretas

    para cada indivduo, como tambm expressam categorias gerais annimas que so

    compreensveis e utilizveis por todos os integrantes da sociedade elas possuem

    tanto um contexto individual como social. Sendo capaz de transcender o aqui e o

    agora, a linguagem estabelece uma ponte entre diferentes zonas existentes dentro

    da realidade da vida cotidiana e as integra numa totalidade dotada de sentido. Desse

    modo, a linguagem pode referir-se a experincias pertencentes a campos finitos de

    significado e abarcar esferas separadas da realidade. A linguagem faz uma integrao

    entre todas as sub-realidades e a realidade dominante da vida cotidiana por isso,

    quando algum interpreta linguisticamente um sonho, est transpondo a realidade

    do sonho para a realidade da vida cotidiana, integrando-o em sua ordem. Assim, o

    sonho passa a ser dotado de sentido nos termos da realidade da vida cotidiana.

    A significao lingustica alcana, na linguagem simblica, seu maior

    desprendimento do aqui e do agora, na medida em que permite a objetivao de

    elementos inacessveis experincia da vida cotidiana (BERGER; LUCKMANN, 1973,

    p. 61)1. A religio, a filosofia, a cincia e a arte so os sistemas simblicos mais

    importantes desse gnero de linguagem e mostram como, apesar de no

    pertencerem diretamente a realidade da vida cotidiana, podem influenci-la

    decisivamente.

    A linguagem constri campos semnticos, que so zonas de significao

    linguisticamente circunscritas; exemplos de campos semnticos so o conhecimento

    de uma lngua, de uma disciplina como a biologia ou o conhecimento implicado em

    um ofcio profissional. Torna-se possvel, por meio dos campos semnticos,

  • 24

    construir acervos sociais especializados de conhecimento que podem ser

    transmitidos e mantidos ao longo de sucessivas geraes.

    O acervo do conhecimento social tem, entre outras coisas, o papel de fornecer

    ao indivduo informaes sobre sua situao e seus limites, permitindo sua

    localizao e seu manejo dentro da estrutura social. Esse acervo, porm, no

    partilhado de modo uniforme, pois como a vida cotidiana dominada por motivos

    pragmticos, os conhecimentos voltados para as competncias pragmticas dos

    desempenhos de rotina tem uma grande proeminncia. Os indivduos de uma

    sociedade desempenham diversos papeis e ocupam diferentes posies dentro da

    estrutura dessa sociedade, de forma que suas necessidades pragmticas so muito

    diversas, assim como os conhecimentos implicados na execuo das respectivas

    rotinas cotidianas. As rotinas cotidianas so executadas como frmulas algortmicas

    que determinam de que forma proceder em cada situao tpica que se apresenta, e

    os conhecimentos necessrios estas execues so determinados por questes

    pragmticas. Um vendedor que trabalha usando o telefone, precisa conhecer

    somente certos aspectos funcionais do telefone, ligados s necessidades de sua

    atividade (como saber utilizar o aparelho para fazer ligaes, o que fazer em caso de

    problemas no aparelho, como encontrar nmeros de telefone, como fazer ligaes

    DDD ou a cobrar). No que diz respeito ao usurio do telefone, tudo que estiver fora

    do mbito das necessidades pragmticas para sua utilizao, no despertam

    nenhum interesse, ou seja, ningum procurar saber, em termos tcnicos e

    cientficos, como se d o processo de funcionamento dos telefones, a no ser que

    trabalhe diretamente com isso.2

    O arcabouo social do conhecimento diferencia a realidade por graus de

    familiaridade, assim, conhecemos muito bem aquilo que diz respeito s nossas

    atividades cotidianas, mas conhecemos as coisas de uma forma cada vez mais geral e

    imprecisa quanto mais elas se afastam de nossos setores habituais. A vida cotidiana,

    ao estabelecer os conhecimentos necessrios para sua sustentao, cria, dentro do

    arcabouo geral do conhecimento de uma sociedade, uma sobreposio de

  • 25

    realidades particulares que expressam a esfera de ao daquele indivduo ou grupo

    e determinam sua realidade pessoal ou grupal.

    Do ponto de vista da institucionalizao de uma viso de mundo preciso

    destacar a relao existente entre a construo de um corpo de conhecimentos e sua

    tradicionalizao como campo legtimo e permanente de conhecimentos (em nosso

    caso os corpos de conhecimento envolvidos na construo das instituies da

    Medicina Cientfica e da Homeopatia). Em outras palavras, precisamos entender

    como um campo de conhecimentos ou uma realidade se tornam instituies

    permanentes das sociedades. Ao empregar o termo permanente deve-se ressaltar

    que permanncia no significa que um conhecimento, uma vez estabelecido,

    permanea inalterado para todo o sempre, significa, pelo contrrio, que, para se

    estabelecer, o conhecimento deve ser suportado por um grupo coeso que mantenha-

    o sempre atualizado de acordo com as necessidades pragmticas do grupo deve,

    portanto, ser constantemente manejado e atualizado para continuar expressando as

    vises e necessidades de seu grupo portador. Essa a nica forma de qualquer

    instituio manter-se como permanente.

    Qual, ento, a gnese da institucionalizao dos campos finitos de significado e

    como se d a construo de uma cosmoviso que articule as diversas instituies da

    sociedade em um mundo coerente, dotado de significao tanto objetiva como

    subjetiva? Para responder a essas perguntas, precisamos, primeiro, entender o

    processo de institucionalizao em si, pois a instituio a base sobre a qual se

    assentam os significados sociais objetivados e, portanto, a prpria realidade.

    A institucionalizao tem relao com rotinizao, ou seja, com a facilitao

    da execuo das atividades de rotina. Tem relao tambm, em uma outra instncia,

    com historicidade e controle. A institucionalizao ocorre sempre que h uma

    tipificao recproca de aes habituais; no sentido de tornar as aes de todos os

    implicados em algo previsvel, trivial, cotidiano e padronizado. A capacidade de

    prever as aes de terceiros aquilo que permite que, no dia a dia das nossas

  • 26

    relaes com os outros, possamos dizer l vamos ns de novo para mais um dia de

    trabalho. Dizer que institucionalizao implica em historicidade, significa apontar

    que tanto as instituies so produtos de um processo histrico especfico, como

    dizer que elas so aprendidas pelos indivduos como instituies j objetivadas e

    portanto pr-existentes a ns e independentes de ns, de forma que so dotadas de

    uma facticidade externa e apreendidas, portanto, como uma realidade, que nos

    precede e vai nos suceder. Ao tornar-se uma entidade histrica, a instituio faz com

    que as aes habituais dos indivduos deixem de ser simplesmente previsveis e se

    tornem uma receita a ser seguida; passamos do l vamos ns de novo para o

    assim que as coisas so feitas (BERGER; LUCKMANN, 1973, p. 85). Por isso, dizer

    que um segmento da atividade humana foi institucionalizado, significa dizer que foi

    submetido ao controle de um grupo social. Somente a partir deste momento que

    podemos falar de um mundo social, no sentido de uma realidade ampla e dada, com

    a qual o indivduo se defronta como se estivesse se defrontando com o mundo

    natural. As instituies, assim como as lnguas naturais, so apreendidas como fatos

    evidentes da natureza (note-se que as chamamos de lnguas naturais) e seu carter

    convencional no imediatamente acessvel. Assim, o mundo institucional

    experimentado pelos indivduos como uma realidade objetiva. Considerando,

    porm, que o mundo institucional nada mais do que a atividade humana

    objetivada, evidencia-se a natureza dialtica dessa relao - em que o homem, o

    produtor do mundo social, tambm um produto dele.

    Para que uma instituio possa ser mantida ao longo do tempo necessrio

    que ela seja legitimada, ou seja, explicada e justificada. Nesse ponto, o indivduo e

    sua biografia pessoal tem um papel importante, pois para poder legitimar algo para

    terceiros precisamos, antes de mais nada, consider-lo legitimo ns mesmos. As

    instituies existentes dentro de uma mesma sociedade no devem

    necessariamente ser integradas em um nico sistema coerente, elas podem coexistir

    com base em desempenhos independentes e o indivduo que faz a integrao dos seus

    vrios significados formando uma consistncia lgica que possa ser integrada de

    forma coerente na histria biogrfica do indivduo. Nessa medida, a conscincia

  • 27

    reflexiva do indivduo que impe uma qualidade lgica ordem institucional (tanto

    Tenbruck, como Weber, diriam que a necessidade de coerncia interna da estrutura

    social tem suas razes no carter significativo da ao humana). Uma vez que o

    indivduo j socializado apreende o mundo social como uma realidade consistente e

    totalizadora, ele se ver constrangido a explicar seu funcionamento nos termos

    dessa mesma realidade. Se podemos dizer que as instituies so integradas em

    alguma instncia, a instncia das biografias individuais, onde elas se encontram

    repertorizadas como partes relacionadas de um universo subjetivamente carregado

    de sentido.

    Tendo um conhecimento sido objetivado socialmente, isto , como corpo de

    verdades universalmente vlidas sobre a realidade, qualquer desvio institucional

    assume o carter de distanciamento da realidade ao mesmo tempo em que qualquer

    contestao a ela s poder ser feita em seus prprios termos (BERGER;

    LUCKMANN, 1973, p. 93).

    Um elemento importante, que contribui para a formao de estruturas de

    controle social das instituies, a criao de papeis sociais. A ordem institucional

    consiste na tipificao de desempenhos individuais voltados a finalidades

    especficas. Mas no s as aes dos indivduos, como tambm o so as formas de

    agir, so especificadas e tipificadas determinando o como e o por quem as coisas

    podem ser feitas. Existe consenso em torno de quais os quesitos necessrios para

    algum desempenhar uma tarefa particular (ser mdico por exemplo) assim como

    sobre o que pode e o que no pode ser feito e como proceder em cada situao

    tpica. Como a tipificao das formas de ao requer que que haja nelas um sentido

    objetivo, tambm ser criado um vocabulrio especfico para tratar das relaes e

    dos elementos implicados no desempenho desses papeis e objetiv-los. No curso da

    ao ocorre uma identificao da personalidade do agente com o sentido subjetivo

    da ao, determinando sua auto compreenso do sentido objetivo socialmente

    atribudo a ao. No difcil perceber que quando muitas objetivaes se

    acumulam para o mesmo indivduo, como mdico, marido, lder da congregao

  • 28

    crist, pai, eleitor, filho, contribuinte, corintiano, reservista, sndico, etc., um grande

    setor da autoconscincia estrutura-se em termos destas objetivaes, constituindo

    um EU social, que o indivduo experimenta como distinto do Eu em sua totalidade.

    S podemos falar realmente em papeis quando as tipificaes ocorrem dentro de um

    acervo objetivado de conhecimentos comum a uma coletividade de atores. no

    desempenho dos papeis que as pessoas participam do mundo social, assim como

    no desempenho dos papeis que o mundo se torna subjetivamente real para elas e a

    instituio pode manifestar-se como experincia real para todos.

    Os papeis tambm tem a importante funo de ordenar os diversos setores

    do conhecimento contidos no acervo comum de um grupo, isso quer dizer que

    dependendo dos papeis que desempenha, o indivduo introduzido a um

    determinado tipo de conhecimento e no a outro isso tem como resultado duas

    implicaes: a) cria-se uma distribuio social do conhecimento e b) vemos

    surgimento de especialistas, necessrios para lidar com o crescente nmero de

    campos de conhecimento especializados necessrios manuteno das instituies.

    A anlise dos papeis importante para a sociologia do conhecimento por que por

    meio deles que se d a ligao entre os universos macroscpicos de significao de

    uma sociedade e o universo subjetivo dos indivduos.

    Nas sociedades ocidentais modernas, formadas em grande parte por uma

    mistura multicultural e com um elevado grau de diviso e especializao do

    trabalho, o universo global (que poderamos chamar tambm de cosmoviso)

    pouco coeso, ao contrrio das sociedades menos especializadas em que as

    instituies mais importantes reinam mais ou menos incontestes sobre todos os

    atores, integrando-os em uma nica explicao da realidade, nas sociedades

    modernas a ordem institucional fragmentada, o que significa dizer que algumas das

    instituies mais importantes da sociedade no so partilhadas igualmente por

    todos, mas existem grupos que coexistem e concorrem com explicaes alternativas

    para os mesmo fenmenos, como o caso da coexistncia das vrias religies, e

    como o caso da coexistncia da Medicina Cientfica e da Homeopatia (e das

  • 29

    medicinas e teraputicas alternativas em geral). Essa segmentao institucional cria

    sub-universos de significao socialmente separados e resulta de uma acentuada

    especializao dos papeis sociais. Esses sub-universos e suas coletividades

    portadoras convivem, como escolas rivais, em competio pluralista de forma

    costumeira nas sociedades modernas. Como resultado dessa multiplicidade de

    perspectivas sobre a coerncia total das instituies sociais, temos o problema de

    que torna-se impossvel legitimar globalmente uma ordem institucional simblica

    estvel para toda a sociedade.

    O fenmeno da especializao do conhecimento cresce junto com a

    complexidade dos sub-universos, que vo se tornando cada vez mais inacessveis,

    at que se tornam enclaves completamente hermticos, vedados a todos os no

    iniciados em seus mistrios. O mdico um exemplo perfeito desse especialista, que

    vive a contradio na qual aos no iniciados (seus pacientes) vedado qualquer

    acesso a um real conhecimento, ao mesmo tempo em que se tem de faz-los admitir

    a legitimidade da instituio daquele mesmo conhecimento. Existem vrias tcnicas

    usadas pela medicina para fazer subjugar os pacientes: intimidao, propaganda,

    mistificao e manipulao de smbolos de prestgio. Os pacientes acabam, grande

    parte das vezes, sendo persuadidos, afinal, pelos benefcios prticos da obedincia.

    J os iniciados tem de ser mantidos operando dentro das fronteiras institucionais, o

    que exige, como nos mostrou Kuhn (1998), no caso do universo da cincia,

    procedimentos prticos e tericos pelos quais possvel reprimir a tentao de seus

    integrantes de escaparem do sub-universo (Karl Popper um bom exemplo de

    teorizador desses mecanismos de legitimao).

    A legitimao um problema que surge quando as objetivaes da ordem

    institucional tem que ser transmitidas, ela tem como funo tornar as objetivaes

    de 1 ordem que foram institucionalizadas, objetivamente acessveis e

    subjetivamente plausveis para todos, dando dignidade normativa a seus

    imperativos prticos e dizendo ao indivduo por que realizar uma ao e no outra e

    por que as coisas so como so. Podemos distinguir analiticamente 4 graus de

  • 30

    legitimao: o 1) a prpria lngua, que ao designar j legitima; o 2) contm

    proposies tericas rudimentares, como explicaes mitolgicas e provrbios; o

    3) contm teorias explicitas pelas quais um setor institucional legitimado em

    termos de corpo diferenciado de conhecimento ( a esfera dos especialistas) e so

    transmitidas por meio de procedimentos iniciticos formais; e o 4) so os universos

    simblicos, corpos de tradio terica que integram diferentes reas de significao

    e abrangem a ordem institucional em uma totalidade simblica. No universo

    simblico todos os setores da ordem institucional acham-se integrados num quadro

    de referncias global, constituindo um verdadeiro universo, dentro do qual toda a

    experincia humana pode ser concebida (BERGER; LUCKMANN, 1973, p. 131-132).

    Ele a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente

    reais e mesmo as extrapolaes do cotidiano nele esto contidas so e explicadas

    nos seus termos. neste nvel, do universo simblico, que devemos considerar as

    legitimaes do campo da Medicina e da Homeopatia, pois eles se do dentro de

    campos definidos que so articulados dentro de uma viso mais global de realidade.

    A legitimao um mecanismo conceitual de conservao dos universos

    institucionais e demonstra ser de grande importncia principalmente quando uma

    instituio encontra-se em situao de concorrncia ou contestao dentro de sua

    prpria sociedade. Quando verses divergentes do universo simblico institucional

    comeam a ser partilhadas pelos habitantes de uma mesma sociedade, temos, na

    prtica, um embate entre diferentes realidades (e portanto verdades). Ao ter sua

    condio de realidade do universo simblico contestada, a instituio se v

    ameaada tanto teoricamente, em suas objetivaes e subjetivaes, como

    institucionalmente, pois a prpria ordem institucional est sendo ameaada, quando

    se questionam seus preceitos e justificativas. O surgimento de universos simblicos

    alternativos sempre constitui uma ameaa, pois o simples fato de existirem j

    demonstra que o universo contestado no a nica soluo possvel disponvel para

    explicar os mesmos problemas. Este um confronto que se instaura,

    fundamentalmente, com vistas a aquisio de poder, o poder de fixar na sociedade a

    sua definio ltima de realidade e instaurar-se como instituio dominante.

  • 31

    Como dito anteriormente, toda instituio cria mecanismos e instrumentos

    para se autoperpetuar e combater seus hereges. Na realidade, o aparecimento da

    heresia, em geral, o primeiro impulso para a criao de uma conceitualizao

    terica dos universos simblicos ameaados. Os mecanismos conceituais

    construdos para a proteo dos universos simblicos servem no apenas para

    legitim-los como podem acabar por alter-los, dadas as convenincias do combate.

    A propsito dos mecanismos gerais de manuteno dos universos simblicos,

    preciso dizer que, nas sociedades modernas, a instituio dA Cincia deu um

    passo extremo no sentido da secularizao e complicao dos instrumentos de

    manuteno do universo; ou seja, aniquilou o contedo sagrado que atribua sentido

    aos elementos da vida cotidiana ao mesmo tempo em que dificultou (dada sua

    enorme complexidade) o acesso ao conhecimento que d um novo sentido para esse

    universo. Assim, a vida cotidiana ficou privada de sua legitimao sagrada, e perdeu

    uma inteligibilidade terica que permite fazer a integrao do universo simblico

    em uma totalidade.3 Disso resulta que os membros da sociedade no sabem mais

    como fazer para manter conceitualmente seu universo simblico de forma coerente.

    Considerando a importncia dos mecanismos conceituais de manuteno dos

    universos preciso apontar a tipificao das duas estratgias institucionais mais

    comuns: a teraputica e a aniquilao. A teraputica serve para lidar com indivduos

    e seus desvios e dissidncias internas, sendo um instrumento de controle social. Sua

    funo impedir que os integrantes de uma instituio desviem sua conduta ou

    migrem para outros universos. Thomas Samuel Khun nos fornece um bom quadro

    do que pode ser essa teraputica ao formular seu conceito de a cincia normal

    praticamente uma receita de manuteno do status quo institucional. Por ter como

    funo a correo de desvios, a teraputica precisa necessariamente elaborar e

    trabalhar com uma teoria da dissidncia que explique como entend-la e como

    corrigi-la. A aniquilao, por sua vez, serve para lidar com instituies concorrentes,

    destina-se a combater ameaas externas s fronteiras de seu universo. Poderamos

  • 32

    cham-la tambm de uma legitimao negativa, na medida em que nega a realidade

    de qualquer fenmeno que no se ajuste ao seu universo. Normalmente uma

    tentativa de aniquilao se expressa inicialmente por meio da atribuio de um

    status ontolgico inferior realidade concorrente e seus defensores, pode apelar

    tambm pelo uso da polcia, ou simplesmente pode manifestar-se por meio de

    desprezo difuso e pela tentativa de criao de uma aura de invisibilidade em torno

    do oponente mais fraco.

    No conflito entre grupos de especialistas, as teorias legitimadoras esto

    muito distantes das aplicaes prticas da vida cotidiana, de modo que os tericos

    precisam substituir provas prticas por provas abstratas. Como resultado, temos

    que no possvel convencer a todos meramente por meio de argumentos. Nesse

    processo de convencimento, todos os artifcios imaginveis podem ser aplicados,

    inclusive o uso da legislao e da fora policial. Fica evidente que quanto mais

    abstratas e complexas forem as justificativas para legitimar um universo simblico,

    mais elas precisaro de suporte social, posto que no so evidentes nem

    demonstrveis. No caso de uma competio, as teorias dos diferentes especialistas

    encontraro ecos e afinidades com diferentes grupos sociais que, no caso de se

    associarem a estas teorias, se tornaro suas coletividades portadoras. Nestas

    circunstncias, o poder pragmtico da teoria torna-se extrnseco, ou seja, a teoria

    mostra sua superioridade no em virtude de suas qualidades intrnsecas, mas em

    virtude da sua aplicabilidade aos interesses sociais de seu grupo portador. As

    realidades concorrentes podem experimentar diferentes situaes: manter-se em

    concorrncia, simplesmente coexistir, ser aniquiladas, ser absorvidas e integradas

    pela tradio hegemnica ou ser segregadas internamente, por exemplo, mantendo-

    se ligadas estritamente a grupos marginais.

    Como as definies tradicionais da realidade tendem a inibir a mudana

    social, na mesma medida em que o desmoronamento da aceitao indisputada do

    monoplio acelera-a, existe uma enorme afinidade entre os partidrios do status

    quo e os especialistas em tradies monopolistas de manuteno do universo. A

  • 33

    sociedade pluralista, no entanto, tem maior tendncia a aceitar bem as mudanas,

    pois o pluralismo solapa a resistncia mudana das definies tradicionais da

    realidade, encorajando a inovao e o ceticismo. interessante notar que,

    analogamente ao pluralismo, a cincia moderna a primeira tradio que estabelece

    que no h tradio na esfera da construo do conhecimento. Sua tradio no

    permitir que nenhum campo do conhecimento se mantenha inalterado

    indefinidamente ela estabelece regras, pelas quais se obrigado a assumir uma

    nova tradio praticamente de forma peridica e sistemtica.

    Quando uma particular definio da realidade se liga a um interesse concreto

    de poder, ento podemos dizer que temos uma ideologia - um lao de solidariedade

    que congrega para a ao. Para tanto preciso, tambm, que ela esteja ligada a uma

    classe ou categoria social especfica. Tanto a Medicina Cientfica como a Homeopatia

    devem ser encaradas dessa forma, pois carregam em si ideologias identificveis

    como parte essencial de seu universo simblico e grupos sociais delimitveis.

    nestes termos que nos propomos a olhar para a Medicina Cientfica e para a

    Homeopatia. Antes, porm, vamos considerar ainda alguns outros aspectos tericos

    que sero utilizados para tratar do tema.

    b) Racionalizao, Desencantamento e tica.

    Este trabalho tem como um de seus objetivo compreender a mudana scio-

    institucional, ocorrida no interior das faculdades de medicina do pas, que permitiu

    a assimilao das prticas homeopticas pelos currculos oficiais das faculdades de

    medicina brasileiras. Evento que toma forma na segunda metade do sculo XX, mas

    que se tratava de algo absolutamente impensvel e institucionalmente indefensvel

    durante a primeira metade deste mesmo sculo. O quo defensvel isso se tornou

    uma de nossas questes, pois por defensvel entendemos legitimvel nos termos de

    manuteno do status quo de um universo simblico e, como j foi dito, em termos

    de definies especializadas que buscam legitimar universos simblicos, ambas as

  • 34

    instituies (devido a sua prpria lgica interna) so impermeveis aos argumentos

    de sua antagonista.

    Para desenhar o cenrio que se pretende apresentar como base da relao

    entre esses dois saberes institucionalizados e suas respectivas coletividades

    portadoras, nos valeremos de trs conceitos criados e introduzidos na sociologia por

    Max Weber: a) o processo de racionalizao e desencantamento do mundo (e todos

    os processos que ele acompanha, cria, embasa e/ou refora, como os processos de

    urbanizao, cientifizao, especializao e fragmentao, burocratizao,

    intelectualizao, etc.); b) o conceito de tica da convico; e c) o conceito de tica

    da responsabilidade estes dois ltimos, usados como ferramentas para estabelecer

    uma etologia profissional, ou seja, sero utilizados para descrever, discernir e

    posicionar posturas profissionais dentro de uma relao poltico-institucional

    travada entre os representantes destas duas instituies.

    O processo de desencantamento e racionalizao tem um papel explicativo

    global e podemos consider-lo, afinal, como uma explicao sobre a natureza geral

    de diversos processos sociais e no apenas de um processo particular em si.

    O que nos propomos agora, tecer observaes preliminares sobre estes trs

    conceitos para mostrar como eles so enquadrados teoricamente na construo do

    argumento que pretende-se utilizar na anlise do problema.

    Um dos pontos centrais da argumentao terica deste trabalho uma

    distino entre Homeopatia e Medicina Cientfica fundada na ideia de que estas

    instituies so representantes de correntes de pensamento cuja gnese se deu em

    diferentes momentos do processo de racionalizao e desencantamento do mundo,

    mais especificamente durante o perodo que compreende o intervalo entre os

    sculos sculo XVII e o XX, na Europa e nas Amricas; e que, portanto, representam

    vises de mundo muito diferentes, a primeira vista incompatveis e, aparentemente

    (teoricamente, mas no socialmente) antagnicas. Este o motivo pelo qual se

  • 35

    decidiu por denominar a Medicina de Cientfica em oposio Homeopatia e no

    somente de Medicina Oficial. O termo Cientfica usado aqui tem a inteno de

    estabelecer uma circunscrio definida, demarcando um universo simblico

    especfico.4

    A Homeopatia e a Medicina Cientfica so instituies que se antagonizam no

    mbito de uma disputa por legitimidade e status. Isso se d principalmente por que

    so prticas que possuem princpios epistemolgicos diferentes porm lidam com o

    mesmo objeto (a sade) e disputam o mesmo pblico. O Como se conhece um objeto

    o elemento determinante que definir a forma final que ter o conhecimento

    produzido sobre esse mesmo objeto. E exatamente a forma que cada uma das

    instituies procede na forma de produzir conhecimento e legitim-lo que as torna

    absolutamente inconciliveis, em termos tericos, uma com a outra. por ser

    incompatvel, por princpio, com a Medicina Cientfica que a Homeopatia no se

    coloca simplesmente como mais uma das reas do conhecimento da Medicina

    Cientfica5, mas sim como uma Medicina Alternativa Medicina Cientfica,

    apresentando uma interpretao e uma abordagem de sade e doena

    profundamente diferentes daquela apresentada pela sua antagonista. Estas vises

    de mundo no so somente propostas diferentes de abordagem e interpretao de

    um objeto, mas de diferentes universos simblicos que congregam pessoas por meio

    de ideais epistemolgicos diferentes com vistas uma ao social ideologicamente

    orientada e com uma finalidade econmica.

    Como entendido o processo de desencantamento e racionalizao e qual

    sua importncia para a construo terica do argumento que est sendo proposto

    para essa anlise? Pois bem, o conceito til na sua forma mais restrita6, visto

    como um processo de mudana de valores sociais, onde o mundo, uma vez,

    encantado (animado, sagrado) e mgico ou seja, regido por foras anmicas e

    sujeito lgica da magia e do poder carismtico de certos homens sobre os espritos

    que regem, coordenam, organizam e decidem o destino do mundo e suas coisas

    passa, gradualmente, ao longo das geraes, a ter seu significado organizado por

  • 36

    outra lgica, que destitui o universo de seu significado mgico e sagrado anterior,

    aniquilando seu significado metafsico e sua alma. O processo de racionalizao do

    mundo, evento paralelo e simultneo ao processo de desencantamento e

    dessacralizao das foras da natureza, sofre uma enorme influncia do

    desencantamento do mundo natural, pois sua lgica de funcionamento passa a

    obedecer outros parmetros. Como disse o prprio Weber, toda ao originada por

    motivos religiosos ou mgicos , tambm, na sua forma original, uma ao racional

    (WEBER, 1944, p. 328). O que distingue, ento, a ao racional da cincia moderna,

    da ao racional mgico religiosa, seno que estas aes racionais, apesar de

    perseguirem o mesmo fim (dominar as foras da natureza), empregam lgicas e

    meios diferentes para ating-lo: uma est sujeita a lgica do mundo natural

    encantado e animado e a outra no.

    Somente ns, a partir do ponto de vista de nossa atual

    concepo da natureza, distinguiramos imputaes causais

    objetivamente verdadeiras ou falsas e consideraramos as ltimas

    irracionais e sua ao correspondente como mgica. (WEBER, 1944,

    p. 328). 7

    Presente no processo de racionalizao e desencantamento do mundo, a

    figura do intelectual (ou mais abstratamente uma tendncia intelectualista) encerra

    caractersticas que ajudam a entender certos aspectos da formao do universo

    simblico que engloba a Homeopatia. Diz Weber sobre os intelectuais:

    A salvao que busca o intelectual sempre uma salvao da

    indigncia interior e, por isso mesmo, mais distante da vida por um

    lado, e por outro possui um carter mais sistemtico que aquele

    voltado salvao de necessidades exteriores, caracterstica dos

    extratos no privilegiados. O intelectual busca, por caminhos cuja

    casustica chega ao infinito, dar um sentido nico sua vida; busca

    unidade consigo mesmo, com os homens e com o cosmos. ele que cria

  • 37

    uma concepo de mundo como um problema de sentido. Quanto

    mais o intelectualismo rechaa as crenas mgicas, desencantando

    assim os processos do mundo, fazendo-os perder seu sentido mgico,

    de forma que eles so e acontecem, mas nada significam, to mais

    urgente se faz a exigncia de que o mundo e o estilo de vida,

    alberguem em sua totalidade um sentido e possuam uma ordem.

    (WEBER, 1944, p. 403). 8

    esta necessidade de sentido na vida que, nas sociedades modernas e

    pluralistas e multiculturais, d mais fora s diversas instituies concorrentes e

    diversificao de interpretaes da realidade. Quando a realidade oficial no

    compreensvel ou completamente compreensvel (caso dos conhecimentos

    cientficos modernos) esta busca por um significado que d um sentido mais geral

    vida leva os indivduos buscarem explicaes mais enquadrveis em seu prprio

    universo simblico.

    Este o sentido que pretendemos dar ao processo de desencantamento e

    racionalizao do mundo. E sua importncia para a pesquisa proposta est, em

    parte, atrelada mudana de significado que este processo atribui s coisas do

    mundo, mas tambm nos outros processos que o desencantamento e a

    racionalizao do mundo acompanham, iniciam e reforam, como a urbanizao das

    sociedades, a especializao do conhecimento, a cientifizao do conhecimento, a

    formalizao institucional do conhecimento, a burocratizao do conhecimento,

    enfim, tudo aquilo que operou na evoluo daquilo que hoje reconhecemos por

    instituies universitrias.

    No parece insensato supor que a revoluo cientfica iniciada no sculo

    XVII9 (com uma nova proposta de viso de mundo) no s um produto do processo

    de racionalizao e desencantamento do mundo, como teve que combater contra o

    universo epistemolgico da razo anterior para conquistar espao e adeso social.

    Luta essa, que, na realidade, tornou-se uma constante, pelo menos no mbito das

  • 38

    instituies universitrias que, ao laicizar-se, despojar-se de toda bagagem mgica e

    religiosa do conhecimento, entraram em embate com todos os conhecimentos

    baseados nessa lgica anterior. Esse embate, na esfera do conhecimento pode ser,

    em certa medida, representado pela moderna relao entre a Medicina Cientfica e a

    Homeopatia. neste contexto de embate poltico e terico que os conceitos

    weberianos de tica da convico e tica da responsabilidade nos servem como

    ferramenta de anlise.

    Como entende-se os conceitos de tica da convico e de tica da

    responsabilidade e qual a importncia destes conceitos para a construo do quadro

    terico da pesquisa proposta? Ao contrario do conceito de processo de evoluo

    intelectual, e portanto de um conceito que descreve um movimento de evoluo de

    ideias que, por sua vez, sero a fora motriz de diversas aes sociais, os conceitos

    de tica da convico e da responsabilidade lidam diretamente com as motivaes

    que engendram os preceitos desses comportamentos ticos.

    Ora, uma disputa intelectual sobre convices, travada no campo das

    instituies universitrias e, portanto, de carter tanto poltico como intelectual, no

    pode deixar de suscitar imediatamente a suspeita de que para entender as

    motivaes dessa disputa necessrio separar a natureza de cada uma das condutas

    implicadas, pois elas se regem por preceitos diversos. Assim, a distino weberiana

    entre convico e responsabilidade, ticas que nascem de vocaes diferentes,

    aponta que as aes motivadas por cada uma dessas ticas segue diferentes

    condicionantes. Claro que convico no exclui responsabilidade ou vice-versa e no

    campo do real temos sempre uma mistura de condutas e diversos condicionantes

    ticos formar uma determinada ao social10. Porm, possvel distinguir as

    diferentes motivaes de uma determinada ao, e conseguir, assim, enquadr-la

    teoricamente.

    Sendo a tica da Convico o cdigo de conduta do cientista, do pesquisador

    e do professor (cujo compromisso para com a verdade) e a tica da

  • 39

    Responsabilidade o cdigo de conduta do ator poltico (cujo compromisso para

    com os objetivos pragmticos da sua comunidade)11, torna-se inevitvel que, numa

    disputa como aquela entre a Medicina Cientfica e a Homeopatia, estas ticas se

    misturem ambiguamente nas atitudes e opinies dos envolvidos, pois se trata de

    uma disputa que engloba dois campos simultaneamente: o poltico e o cognitivo, o

    campo das aes e o campo das ideias. Por isso, o estudo de uma disputa desse tipo

    precisa ser executado sob ambas perspectivas: tanto a social e histrica como a

    epistemolgica.

    No podemos estranhar este emaranhamento de condicionantes ticos, pois

    o que eles demonstram realmente que ideias, vises de mundo e ideologias, que

    representam verdades sociais e atuam como convices de grupos que as

    defenderiam, portanto, com base na tica da convico, so defendidas por suas

    comunidades portadoras tambm aos modos da tica da responsabilidade, pois os

    destinos de ambos (uma verdade e seu grupo portador) esto ligados

    indissoluvelmente at a morte da instituio dessa mesma verdade.

    Para nossas indagaes, enquadrar aes e opinies de acordo com os reais

    motivos que as inspiram o principal papel do conceito de vocao implicado na

    definio dos termos tica da convico e tica da responsabilidade.

    Afinal, poderamos considerar que a entrada da Homeopatia nas faculdades

    de medicina e seu parcial enquadramento aos preceitos institucionais dela mostram

    uma tenso entre estas duas ticas por parte de ambos os grupos (mdicos e

    homeopatas). Isso se d na medida em que, ao pertencer aos quadros institucionais

    das faculdades de medicina, os homeopatas passam a contar com a proteo

    institucional tanto das universidades quanto dos rgos de representao de classe.

    Esta proteo, no entanto, tende a ser ambgua, posto que seus mecanismos de

    legitimao de conhecimentos so inadaptveis um ao outro completamente (e,

    como veremos mais adiante nesse trabalho, essa assimilao no pode se dar seno

    de forma parcial e incompleta). Por estas razes a defesa da homeopatia dentro das

  • 40

    instituies universitrias problemtica exatamente por opor diretamente as

    ticas da convico (nos preceitos e bases de sua instituio) e da responsabilidade

    (para com as regras internas de proteo e manuteno do status quo dessa mesma

    instituio) o que poderia, at mesmo, indicar a existncia de uma falha ou

    deformao nos mecanismos teraputicos da Instituio da Medicina Cientfica para

    lidar com dissidentes epistemolgicos internos.

  • 41

    Captulo 3.

    O Universo Simblico da Cincia

  • 42

    a) O Significado da Cincia em Disputa

    Uma das chaves para se entender, tanto a prpria estrutura da Homeopatia

    moderna em termos de construo de um discurso legitimatrio, como a entrada da

    Homeopatia nas instituies universitrias (medicina, veterinria, odontologia e

    agronomia), compreender o uso de um conceito chave, de central importncia

    para esse fenmeno, que o emprego dos termos cincia e cientfico na essncia

    de seus discursos. Pois a adequao ao uso dessa terminologia e do consequente

    manejo de alguns elementos desse universo simblico por parte da Homeopatia, que

    permite a sua fuso com a instituio da Medicina Cientfica, no mbito das

    instituies universitrias.

    Para compreender o uso que no s a Homeopatia, mas as vrias instituies

    ligadas produo de conhecimentos formais, fazem destes conceitos, necessrio

    que se defina, antes de mais nada, o que ele significa exatamente para cada grupo

    que dele se utiliza. Pois seu significado, em termos de usos sociais, no uniforme,

    quer dizer, cada instituio os reveste de significados diferentes, reinterpretando-

    os de acordo com seus pressupostos institucionais bsicos. verdade, tambm, que

    estes conceitos de cincia e cientfico tem um componente de forte teor histrico

    ou seja, podemos identificar claramente a construo dos diferentes significados

    atribudos estes termos em diferentes perodos da histria do pensamento

    ocidental - e portanto em diferentes etapas do processo de racionalizao e

    desencantamento do mundo como proposto por WEBER (1941). Para contextualizar

    mais claramente as modernas posies sobre o significado destes conceitos, vamos

    lanar mo das trs citaes1 a seguir:

  • 43

    "Estou convencido de que no fundo da teoria psicanaltica existe um importante fundo de verdade. Mas acredito tambm que, justamente por no ser falsificvel, ela se encontra ainda em fase pr-cientfica. Poderia um paciente fazer uma afirmao ou exibir um comportamento que fossem absolutamente irreconciliveis com as ideias da psicanlise? Se a resposta 'no', a psicanlise no uma verdadeira cincia."

    Murray Gell-Man, em "O Quark e o Jaguar".2 "Esta srie de conferncias tem como ttulo 'Para uma Cincia Geral do Homem'. Este ttulo no visa uma cincia no sentido contemporneo e um tanto degradado do termo - computao algortmica e manipulao experimental - ou ento no sentido de cincia positiva, da qual qualquer trao de reflexo teria sido cuidadosamente apagado, e sim no seu sentido antigo que se refere ao saber concernente ao homem e que inclui todos os enigmas que a simples palavra 'saber' suscita logo que a interrogamos. Enigmas que se multiplicam quando lembramos que este saber do homem (genitivo subjetivo e possessivo); portanto que o homem simultaneamente objeto e sujeito deste saber."

    Cornelius Castoriadis - abertura da conferncia "Antropologia, Filosofia e Poltica." Universidade de Lausanne, 11 de maio de 1989.3

    "A alta estima pela cincia no est restrita vida cotidiana e mdia popular. evidente no mundo escolar e acadmico e em todas as partes da indstria do conhecimento. Muitas reas de estudo so descritas como cincias por seus defensores, presumivelmente para demonstrar que os mtodos usados so to firmemente embasados e to potencialmente frutferos quanto os de uma cincia tradicional como a fsica. Cincia poltica e cincias sociais so lugares comuns. Os marxistas tendem a insistir que o materialismo histrico uma cincia. De acrscimo, a cincia bibliotecria, cincia administrativa, cincia do discurso, cincia florestal, cincia de laticnios, cincia de carne e animais e mesmo cincia morturia so hoje ou estiveram sendo recentemente ensinadas em colgios ou universidades americanas."

    Alan F. Chalmers, em "O que Cincia Afinal".4

    Estas citaes no foram escolhidas ao acaso, com elas pode-se mostrar que

    h um claro desacordo em pauta, e tambm apontar elementos que do indcios das

    bases sobre as quais se assentam cada uma das concepes defendidas pelas partes

    em desacordo.

  • 44

    Quem so estes senhores e porque eles tem opinies to diferentes acerca do

    que podemos chamar de conhecimento cientfico? De um lado temos Cornelius

    Castoriadis, um antroplogo, defendendo uma viso de cincia que podemos dizer

    descendente de uma tradio epistemolgica aristotlica - que considera cientfico

    todo conhecimento organizado em base racional e transmissvel pelo ensino. Como

    nos disse Castoriadis, seu ttulo 'Para uma Cincia Geral do Homem' "(...) no visa

    (buscar) uma (perspectiva de) cincia no sentido contemporneo e um tanto

    degradado do termo (...) e sim (uma perspectiva de cincia) no seu sentido antigo (...)"

    que muito prximo ao significado dado originalmente filosofia como cincia.

    Vejamos o que dizia Aristteles (384-322 a.c.) em tica a Nicmaco:

    O conhecimento cientfico um juzo sobre as coisas universais

    e necessrias, e tanto as concluses da demonstrao como o

    conhecimento cientfico decorrem de primeiros princpios (pois

    cincia subentende apreenso de uma base racional). Assim sendo, (...)

    o que pode ser cientificamente conhecido passvel de demonstrao,

    enquanto a arte e a sabedoria prtica versam sobre coisas variveis.

    (...) Por outro lado, julga-se que toda cincia pode ser ensinada e seu

    objeto, aprendido. (ARISTTELES, 1979, Vol. 2, p. 145)

    E conclui: "De quanto se disse resulta claramente que a sabedoria filosfica

    um conhecimento cientfico combinado com a razo intuitiva daquelas coisas que so

    mais elevadas por natureza." (ARISTTELES, 1979, Vol. 2, p. 143).

    Murray Gell-Man, um fsico de partculas, que prope uma viso de cincia

    elaborada com base na tradio epistemolgica estabelecida por Karl R. Popper

    (1902-1994), cuja filosofia bebeu da tradio cientfica estabelecida pelo absoluto

    sucesso da epistemologia surgida a partir da fsica newtoniana. A colocao

    "justamente por no ser falsificvel" nos indica isso claramente, j que Popper

    propunha exatamente que s a verificao, pela falsificao, de um experimento

    que pode comprovar a veracidade de um conhecimento e conferir-lhe a legitimidade

  • 45

    da cincia. Em sua Autobiografia Intelectual, a propsito do mtodo de demarcao

    indutivo proposto por Bacon, ele coloca a questo da seguinte maneira:

    (...) eu tinha em mos... um critrio de demarcao mais

    satisfatrio: testabilidade ou falseamento. Era-me possvel, pois, deixar

    de lado a induo... Alm disso, eu estava em condies de aplicar os

    resultados do mtodo de tentativa e erro de maneira tal que a

    metodologia indutiva fosse substituda pela dedutiva. (...) De acordo

    com essa concepo, as teorias cientficas, se no forem refutadas,

    devem continuar com o carter de hiptese ou conjecturas. (...)

    Esclareceu-se, portanto, dessa maneira, toda a questo do mtodo

    cientfico e, com ela, a questo do progresso cientfico. O progresso

    consistia num movimento em direo a teorias que sempre nos dizem

    mais - teorias de contedo sempre maior. Entretanto, quanto mais uma

    teoria afirma, tanto mais ela exclui ou probe, de modo que crescem as

    oportunidades para seu falseamento. Assim a teoria de maior contedo

    a que admite as provas mais severas. (POPPER, 1977. P. 86).

    A citao de Chalmers contextualiza o choque conceitual: nem toda forma de

    conhecimento pode ser considerada, do ponto de vista epistemolgico, uma

    modalidade de conhecimento cientfico, apesar facilidade com que todos os campos

    do conhecimento institucionalizado se auto proclamam cientficos. Este choque

    apresenta dois campos de anlise, um epistemolgico, que reside na compreenso

    das diferenas com que os vrios campos de pesquisa processam e organizam as

    ideias na busca de conhecimento, e outro sociolgico, que diz respeito necessidade

    que todos os campos do conhecimento institucional contemporneo tem de se

    intitular como cientficos para legitimarem e validarem sua instituio socialmente

    em termos de adequao ao universo simblico hegemnico das instituies

    universitrias (da mesma forma que durante a idade mdia, na Europa, qualquer

    campo do conhecimento institucional que quisesse ter alguma chance de sucesso e

    adeso social precisaria dizer-se alinhado igreja catlica e s teses bblicas). Aps a

  • 46

    revoluo newtoniana, que transformou a fsica do sculo XVII naquilo que ela foi

    at o incio do sculo XX, todos os campos do conhecimento passaram a t-la como

    molde epistemolgico de referncia e como exemplo de um conhecimento

    verdadeiramente cientfico. A partir de ento, palavra 'cientfico' se perpetuou

    socialmente como sinnimo de seriedade, racionalidade, objetividade,

    previsibilidade e, porque no dizer, verdade.

    Sendo a fsica dos sculos XVII e XVIII o personagem central de divulgao do

    sucesso de uma nova mentalidade, a palavra cincia acabou por ser associada e a

    designar principalmente s cincias dedicadas aos estudos da natureza, tornando-

    as o modelo exemplar daquele tipo particular de forma de conhecer o mundo. O

    sucesso dessa nova mentalidade se deve principalmente s consequncias sociais

    geradas por ela. No campo das cincias da natureza, novos conhecimentos gerados

    por esta viso de mundo permitiram melhoras materiais sensveis no mundo da

    sociedade: durante os sculos XVII, XVIII e XIX as sociedades conheceram grandes

    mudanas fundamentais na sua vida cotidiana geradas pelo desenvolvimento das

    pesquisas nas reas das cincias naturais como a fsica e a matemtica (nos feitos de

    engenharia e mecnica, como a construo de mquinas vapor e o uso da

    eletricidade para fins domsticos), como a qumica (com novas tinturas e tecidos e a

    produo de novos materiais usados na indstria, ela tambm resultado da

    influncia dessa nova forma de pensar na estrutura social que organiza a produo

    de bens), como a geografia e a geologia (que, ao estabelecerem novos parmetros

    para o conhecimento do planeta, geraram toda uma nova cartografia gerando

    segurana nos deslocamentos do homem por mar por terra), como a medicina (com

    a criao das vacinas e de tratamentos cada vez mais eficientes no

    reestabelecimento da sade das pessoas, aumentando a expectativa de vida em

    geral) e tantos outros campos do conhecimento. Foi o impacto causado pelos

    resultados e consequncias desta nova forma de conhecimento que, alterando

    sensivelmente (para melhor) a vida das sociedades (em termos de conforto

    material, expectativa de vida e perspectivas de desenvolvimento econmico)

    garantiu a incontestvel legitimidade, para o conjunto das sociedades ocidentais, do

  • 47

    conhecimento cientfico. Devemos sublinhar enfaticamente que o sucesso dessa

    nova modalidade de conhecimento no se deveu diretamente pela concordncia de

    todos com seus novos princpios epistemolgicos, mas sim pelos desdobramentos

    prticos causados pelo surgimento desses conhecimentos - que ensejaram o

    desenvolvimento de novas tecnologias que por sua vez promoveram melhorias

    diretas na vida das pessoas e instituies. Sua legitimao tem, portanto, raiz na

    questo sociolgica e sua natureza na raiz epistemolgica, ambas no podem ser

    dissociadas, nem entendidas sem referncia outra.

    A confuso moderna em torno do significado da palavra cincia tem uma raiz

    histrica clara - o fato de que o termo mudou de significado durante o sculo XX, e

    essa mudana se deveu ao aparecimento de uma nova epistemologia. Durante a

    maior parte da histria do pensamento ocidental, da Grcia Clssica, no sculo V a.c.

    at o sculo XIX (e portanto ao longo de 2.400 anos), o emprego do termo cincia foi

    usado na forma dada por Aristteles. Modernamente o termo cincia, mesmo para

    definies menos restritivas do que a falsificao de Popper, imporia padres de

    prova que excluiriam vrias cincias aristotlicas como a metafsica, a esttica e a

    prpria filosofia. , portanto, na oposio destes dois significados distintos

    atribudos a um mesmo termo que se deve em grande parte esta confuso. Assim,

    nos encontramos diante de uma confuso semntica, que s pode ser resolvida se

    entendermos o moderno significado que assumiu a palavra cincia e o quo

    diferente ele de seu significado anterior.

    Modernamente, o que quer, exatamente, dizer 'A Cincia'? Tirando sua

    atribuio social de 'selo de qualidade' para legitimao de disciplinas, o termo 'A

    Cincia' designa muitos campos do conhecimento e nenhum em particular. Ao

    mesmo tempo que designa como cincia a fsica, o faz com a sociologia que, no mais,

    no tem aparentemente nada em comum com a fsica. Embora a fsica, a qumica, a

    biologia, a medicina e a sociologia possam ser consideradas cincias particulares, o

    termo 'A Cincia' no designa nenhuma delas especificamente. Ela aparenta unir

    uma certa classe de conhecimentos sob a gide de uma metodologia que permitiria

  • 48

    estabelecer se um conhecimento foi gerado de forma cientfica, bastando, para tanto,

    verificar se ele foi adquirido por meio dessa mesma metodologia. Mas 'A Cincia'

    no uma entidade concreta, no existe um conjunto axiomtico de conhecimentos

    que represente 'A Cincia' e permita s 'cincias particulares' participarem, de

    forma inequvoca, desse universo. Nesse sentido, o mtodo cientfico no existe,

    pois no designa nenhum mtodo em particular. Ele , na realidade, a consequncia

    (em suas infinitas formas concretas possveis, ou seja nos mtodos empregados

    pelas vrias cincias particulares) de uma forma particular de entender o mundo.

    Qual poderia ser a unidade distinguvel comum a todos esses

    conhecimentos? Esta unidade, est claro, no poderia ser dada por um objeto de

    estudo, pois cada campo tem o seu, nem tampouco poderia ser dada por um

    mtodo, pois ele deve se adequar especificamente ao objeto de cada disciplina para

    ser eficaz. Assim, tal unidade s pode ser encontrada em uma forma particular de

    encarar e entender o funcionamento do mundo e o tipo de conhecimento que dele

    pode ser extrado. Isso implica dizer que a cincia , acima de tudo, uma viso do

    mundo (um universo simblico), uma forma peculiar de olhar e entender tudo

    aquilo que nos cerca.

    Uma viso adequada para enquadrar 'A Cincia' aquela que Granger (1994)

    chamou de "diversidade de mtodos e unidade de viso." (GRANGER, 1994, P. 41). A

    diversidade de mtodos fcil de compreender, parece mais ou menos bvio que,

    por exemplo, a paleontologia tenha mtodos de trabalho diferentes daqueles

    utilizados pela sociologia, pois cada uma estuda e procura coisas diferentes - uma

    procura entender a histria atravs do estudo de registros fsseis a outra entender

    o funcionamento das sociedades atravs do estudo de suas instituies. Assim,

    ningum estranha que enquanto o socilogo entrevista pessoas o paleontlogo cava

    buracos procura de ossos. Mas qual a unidade de viso que une o socilogo em

    sua entrevista ao paleontlogo em seu buraco?

  • 49

    Existem algumas caractersticas fundamentais que devem, necessariamente,

    ser partilhadas pelos conhecimentos que se pretendam cientficos e que partilhem

    desta peculiar viso de mundo. O primeiro deles que A Cincia (a forma cientfica

    de conhecer) procura representar a realidade objetiva do mundo. Ela deve dedicar-

    se busca de uma viso da realidade que no seja explicada por devaneios de nossa

    imaginao. A imaginao deve trabalhar na elaborao de conceitos que sirvam

    para descrever e organizar dados que resistam s nossas fantasias. Outra

    caracterstica importante, para no dizer central, que A Cincia visa descrever e

    explicar os fenmenos que estuda e, assim, poderamos dizer que a preocupao

    central da viso de mundo da Cincia a compreenso dos fenmenos. Um terceiro

    trao fundamental, necessrio Cincia, a preocupao voltada aos critrios de

    validao dos conhecimentos que ela produz. Ou seja, esses conhecimentos

    precisam ser constantemente confirmados ou refutados, atravs de experimentos,

    ao longo do tempo, sempre que alguma nova concepo tente se impor com

    explicaes diferentes.

    Sob este enfoque,

    (...) A Cincia no constitui um conceito aplicvel diretamente

    ao mundo das experincias, ela um meta-conceito que no serve

    para operar diretamente com eventos ou experimentos particulares,

    mas para lidar com a representao das ideias que coordenam a

    compreenso destes conceitos (DE FIORE, 2003, p.6)

    trata-se portanto, de uma cosmoviso (ou um universo simblico nos termos

    de BERGER e LUCKMANN) que serve como base articulao das explicaes de

    cada campo cientfico particular.

    A viso de mundo dA Cincia tem uma histria filosfica prpria, que se

    origina, aparentemente, l pelos finais do sculo XV, na Renascena, com o

    aparecimento do movimento humanista (cujo cone Leonardo Da Vinci). H nesse

  • 50

    perodo, uma mudana de foco no mundo do conhecimento, a curiosidade dos

    homens se desloca da autoridade para a natureza e a dimenso humana assume

    uma nova posio de centralidade no pensamento filosfico (mudana que podemos

    caracterizar como constituinte chave do processo global de racionalizao e

    desencantamento por que passou a cultura europeia). A filosofia de ento assumia

    um carter humanstico e naturalista (que,