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A grande decoração de quadratura no Brasil:algumas reflexões sobre sincronia e diacronia Giuseppina Raggi Università Degli Studi di Bologna É com muita pena que eu não possa estar presente neste Congresso para apre- sentar pessoalmente o meu trabalho. A amizade, porém, permite-me de estar “como presente” graças à voz e a presença do amigo e professor Luciano Migliaccio. Há uma expressão italiana que diz “non tutto il male viene per nuocere” e eu aproveito desta inesperada situação para começar o jogo a que quero vos convidar. Eu estou aqui através do Luciano pois, lendo ele o meu trabalho, é como se eu es- tivesse a lê-lo. Ainda por cima ele é italiano, isto significa que entende tudo mesmo quando escrevo ou falo errado em português, conhece bem os meus estudos e per- feitamente bem o assunto que quero tratar. Porém, dado por certo tudo isto, esta minha comunicação que está sendo lida agora nunca será transmitida como se eu estivesse aqui convosco. Parece banal, mas talvez nem tanto sequer, pois isto aju- da-me a começar minhas reflexões sobre a sincronia. Poderíamos dizer que este jogo de “presença não presente” ou de “não pre- sença presente” mostra afinidades com “as formas da forma”, isto è com o processo através do qual um mesmo conteúdo artístico muda conforme às condições criadas no preciso momento do seu acontecer. Não se trata simplesmente da modalidade de transmissão destas informações, mas também da elaboração criativa das mesmas. A critica histórico-artística possui muitos métodos para analisar as obras de arte: a analise estilística, iconográfico e iconológica, a analise social das relações entre artistas e encomendantes, a analise do processo de produção de objetos artís- ticos muito cara à critica latino-americana. Quando comecei a estudar assuntos artísticos luso-brasileiros encontrei no li- vro de George Kubler uma fonte de grande interesse para mim. Achei, na interpre- G. Kubler, La forma del tempo – storia dell’arte e storia delle cose, Milano 976

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A grande decoração de quadratura no Brasil:algumas reflexões sobre

sincronia e diacronia

Giuseppina RaggiUniversità Degli Studi di Bologna

É com muita pena que eu não possa estar presente neste Congresso para apre-sentar pessoalmente o meu trabalho. A amizade, porém, permite-me de estar “como presente” graças à voz e a presença do amigo e professor Luciano Migliaccio.

Há uma expressão italiana que diz “non tutto il male viene per nuocere” e eu aproveito desta inesperada situação para começar o jogo a que quero vos convidar. Eu estou aqui através do Luciano pois, lendo ele o meu trabalho, é como se eu es-tivesse a lê-lo. Ainda por cima ele é italiano, isto significa que entende tudo mesmo quando escrevo ou falo errado em português, conhece bem os meus estudos e per-feitamente bem o assunto que quero tratar. Porém, dado por certo tudo isto, esta minha comunicação que está sendo lida agora nunca será transmitida como se eu estivesse aqui convosco. Parece banal, mas talvez nem tanto sequer, pois isto aju-da-me a começar minhas reflexões sobre a sincronia.

Poderíamos dizer que este jogo de “presença não presente” ou de “não pre-sença presente” mostra afinidades com “as formas da forma”, isto è com o processo através do qual um mesmo conteúdo artístico muda conforme às condições criadas no preciso momento do seu acontecer.

Não se trata simplesmente da modalidade de transmissão destas informações, mas também da elaboração criativa das mesmas.

A critica histórico-artística possui muitos métodos para analisar as obras de arte: a analise estilística, iconográfico e iconológica, a analise social das relações entre artistas e encomendantes, a analise do processo de produção de objetos artís-ticos muito cara à critica latino-americana.

Quando comecei a estudar assuntos artísticos luso-brasileiros encontrei no li-vro de George Kubler uma fonte de grande interesse para mim.� Achei, na interpre-

� G. Kubler, La forma del tempo – storia dell’arte e storia delle cose, Milano �976

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tação proposta pelo historiador, uma via para me distanciar da minha formação italiana e para adquirir aquela maior liberdade de visão necessária para compreen-der as obras de quadratura quer portuguesas quer brasileiras. A heterogeneidade entre elas era tão grande e, ao mesmo tempo, apresentava “algo de familiar” –ao meu olhar italiano- que se repetia nas pinturas por mim analisadas.

Posso afirmar, agora, que o livro de Kubler indicou-me outra perspectiva através da qual olhar o tema dos meus estudos, dando-me uma sugestão que enriqueceu e ampliou o meu leque de visão e aumentando assim a minha possibilidade de compre-ender a complexidade do objecto da minha investigação que ia aumentando de modo proporcional -e em se paradoxal- ao intensificar os meus esforços para entende-la.

Estas dificuldades sobre o método ajudaram-me a ganhar maior flexibilidade e ousadia frente aos hábitos mentais – meus principalmente, mas gerais também – da “forma de pensar”.

Agora tenho dúvidas que a história da arte (incluindo a ibero-americana) seja também “a história das coisas”, tal como não acho útil pensar a realização de obras de arte como um processo de produção, mesmo quando é atuado pelo trabalho de oficinas. O que mais atraí-me, é a idéia de “processo criativo”. Isto distingue, ao meu ver, a produção das coisas da das obras de arte: a criatividade, mesmo que seja a do pintor escravo do mosteiro beneditino do Rio de Janeiro que realiza a pintura do tecto da capela-mor da igreja da ordem de Olinda, pintura que nunca tinha atraído antes o interesse dos historiadores.�

Esta afirmação traz consigo a questão de definir o que é a “criatividade”. Que signi-fica, então, ser criativo? Como se distingue o processo criativo de outro tipo de “fazer”?

Nem me atrevo sequer tentar responder a esta complexa pergunta no breve es-paço desta comunicação, mas queria lançar para a discussão algumas sugestões.

Quando se fala numa forma artística como a quadratura luso-brasileira, que tem evidentes relações com a quadratura italiana, fala-se, justamente, em modelos. A preocu-pação principal é, normalmente, distinguir o grau de maior ou menor compreensão do modelo e a distancia estético-qualitativa entre a fonte e a ri-produção ou entre a fonte e a re-interpretação graduando sobre esta medida, e segundo a “perspectiva de visão” de cada historiador (que propende, em geral, a ser “monofocal”, isto é uma espécie de “ide-ologia estética”), o juízo negativo ou positivo, pro-europeu ou antagónico-europeu ou, no caso luso-brasileiro, as vezes “puramente” português. Ao meu ver, permanecermos no âmbito das oposições (“ou é isto ou é aquilo”) não ajuda a resolver os enigmas mais inte-ressantes, alias nos constringe a passar o tempo na cansativa operação de “hiper-definir” os nossos pensamentos em relação aos dos outros e não em relação à dinâmica relação com a “realidade complexa” do objecto dos nossos estudos.

� G. Raggi, A longa deriva da ilusão: o pintor António Telles e o tecto da capela-mor de São Bento em Olinda no contexto da pintura de perspectiva no Nordeste brasileiro, in F. Lameira (coord,), V Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte, actas do colóquio (Faro, setembro de �00�), Faro �00�, pp. 383-403

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Exemplo muito significativo do saudável “desinteresse pela definição” vem diretamente do período que estudamos e, especificamente, do espanhol António Palomino. Ainda não foi devidamente estudada a relação entre a produção teórica de Ferdinando Bibiena e os tratados de Andréa Pozzo. Apesar de serem ambos quadraturistas e scenografos, eles partem de visões que, no âmbito italiano, são de fundamental importância para compreendermos a diversidade e a dinâmica com-plexa estabelecida no mesmo campo da quadratura. Os Bibiena são os herdeiros da tradição bolonhesa desenvolvida pelos pintores Angelo Michele Colonna e Agostino Mitelli bem conhecidos por António Palomino. No seu tratado de �7�4, o artista e tratadista espanhol junta com plena nonchalance, na mesma lamina, as soluções apresentadas por Andrea Pozzo no seu Perspectiva pictorum et architec-torum à fig. 88 do tomo primeiro (na lamina de Palomino, fig.�) e à fig. 55 do se-gundo tomo (fig. 3) com a exemplificação de um método utilizado por Colonna e Mitelli (fig. 4) nos casos em que, como escreve o próprio Palomino, “la longitud del salon no es tanta que necesite de dividirse en porciones, mas la bastante para haber de buscar algun efugio, por huir lo agrio de los extremos, se podría usar una prac-tica admirable, de que usaron Colonna y Mitelli, en semejantes sítios, y es, reducir la perspectiva de cada lado á su punto particular, que llaman puntos transcenden-tales, tan ligados entre sí todos quatro, que no se embaraza el uno al outro, como se ve na presente figura 4”3. É interessante sublinhar que nenhuma fonte bolonhesa,

3 A. A. Palomino de Castro y Velasco, Museo pictórico y Escala óptica, Madrid �7�5 y �7�4, tomo II, liv. VIII, cap. IV, p. ��4. Ver também D. García Cueto, La estancia española de los

Fig. 1: A. Palomino, lamina em Museo pic-tórico y Escala óptica, �7�4

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conhecida até agora, registra esta “practica admirable”. Além disto chamo a aten-ção sobre a maneira de Palomino de decorar a balaustrada tirada do tratado do Pozzo (fig.�) com elementos típicos da tradição de quadratura bolonhesa, o que nunca acontece na Itália.

Assim, em Espanha, logo nos primeiros decênios do século XVIII, encontramos a demonstração, até consagrada ao nível teórico, da facilidade com que se conec-tavam diferentes tradições italianas sem alguma problematização respeito ao que, nesta conexão, se perdia, se misturava ou se modificava em relação à origem dos modelos. Conforme às necessidades podia-se “pescar” livremente agora dessa, agora daquela tradição dos mestres italianos.

No que diz respeito à quadratura portuguesa, talvez, mais do que “liberdade” em aplicar os diferentes modelos (pois a “liberdade”, em principio, implica o profundo conhecimento da regra) se poderia falar numa certa “liberalidade” na aplicação da tradição quadraturística italiana, isto é numa certa facilidade de utilizar tradições de escolas diferentes de quadratura. Não só os confins entre modelos são mais frágeis, mas é comum até a troca entre âmbitos pictóricos que, em Itália, dificilmente se cruzam.

Neste sentido julgo o caso de António Simões Ribeiro em Salvador da Bahia de extremo interesse.

Nestes últimos anos a critica histórico-artística foi concorde em atribuir ao pintor português a quadratura dos dois tectos dos altares laterais da igreja baiana de

pintores boloñeses, Agostino Mitelli y Angelo Michele Colonia, 1658-1662, Granada �005

Foto 2: Conjunto decorativo do in-terior da igreja de São Francisco em Salvador, destacando a obra pictó-rica de António Simões Ribeiro

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São Francisco pintados entre �74� e �7434. O facto dele ter pintado o tecto da nave da igreja amplia de forma inesperada a centralidade deste pintor na historia da arte brasileira. Durante a minha última viagem a Salvador, que fiz neste ano, resultou evidente, ao meu olhar, reconhecer o estilo deste artista nas pinturas dos caixotões da nave. Escrevendo sobre o assunto5, descobri que neste mesmo ano de Luís de Moura Sobral6 propus a mesma atribuição e que Vítor Serrão7 a tinha lançado como hipótese desde de �003 sem porém, pelo que eu saiba, ter voltado a ocupar-se de forma mais especifica do assunto. A publicação da foto de um caixotão angu-lar publicada de recente por Magno Mello e atribuída ao Ribeiro não tem comen-tário critico correspondente sobre o tecto da nave no texto8. O que mais desperta o meu interesse é analisar como o pintor português se integra no processo de realiza-ção das obras de grande decoração que envolviam varias igrejas do Terreiro de Jesus na altura da sua chegada de Lisboa. Além da actividade e da cronologia já conhecida da sua obra, no Livro dos Guardiões do convento de S. Francisco chega-se a saber que entre os anos de �733 e �738 “pintou-se e dourou-se os três lanços do forro da igreja”. Sabe-se também que Ribeiro chegou na Salvador em �735 e

4 Contrariamente à afirmação recente do Magno Mello, que assinala como novidade esta atribuição, já avançada há anos por muitos historiadores (M. Mello, A difusão do modelo bacherelliano no Brasil: António Simões Ribeiro em Salvador (�735/�745), in F. Farneti, D. Lenzi (coord.), Realta e illusione nell’architettura dipinta. Quadraturismo e grande de-corazione nella pittura di età barocca, Firenze �006, p. 484). A retomada também, por parte de M. Mello, da hipótese de Carlos Ott sobre o “pintor vindo de Roma” (Ivi, p. 483) é discussão já ultrapassada pela critica que se dedicou ao assunto nestes últimos anos a partir dos ensaios de Vítor Serrão (cfr. V. Serrão, O barroco, Lisboa �003 com bibliografia precedente). Ver também G. Raggi, Il viaggio delle forme: la diffusione della quadratura nel mondo portoghese del Settecento, in F. Farneti, D. Lenzi (coord), L’architettura dell’inganno. Quadraturismo e grande decorazione nella pittura di età barocca, actas do congresso (Ri-mini, novembro de �00�), Firenze �003, pp. �77-�90; G. Raggi, ‘Um estilo áulico indipen-dente’: características e funções da quadratura. Algumas considerações entre Itália e Brasil”, in S.Gomes Pereira (coord), Anais do VI Colóquio luso-brasileiro de história da arte, actas do colóquio (Rio de Janeiro, outubro de �003), Rio de Janeiro �004, vol. I, pp. �4�-�55; G. Raggi, Arquitecturas do engano: a longa conjuntura da ilusão / Architetture dell’inganno: il lungo cammino dell’illusione, Universidade de Lisboa – Università degli studi di Bologna, tese de doutoramento, �004, � vols. 5 Ver os meus estudos G. Raggi, O paradoxo espacial da quadratura: o caso de António Simões Ribeiro na Bahia (1735-1755), in “Murphy”, no prelo; Arquiteturas pintadas: a gran-de decoração baroica bolonhesa e sua difusão em Portugal e no Brasil no século XVIII, in “Desegnio”, no prelo; Lo spazio ricreato di Agostino Mitelli: realtà virtuale ante litteram?, in F. Farneti, D. Lenzi, Realtà e illusione nell’architettura dipinta. Quadraturismo e grande decorazione nella pittura di età barocca, actas do congresso (Lucca, maggio �005), Firenze �006, pp. 43-50 6 L. de Moura Sobral, António Simões Ribeiro (act. �7�6-�755) and the art of Painting in Salvador, Bahia, in The arts e the portuguese colonial experience, actas do colóquio (New York, março de �006), no prelo 7 V. Serrão, O Barroco, Lisboa �003, p. �55, o autor escreve: “em �745 estava ainda em activi-dade, pois pintou […] e ainda, segundo cremos, o tecto da nave da igreja de São Francisco”.8 M. Mello, op. cit., fig. � p. 486

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fica a fazer a analise do tecto para o estudo pontual de todas as pinturas da nave, embora, à uma primeira analise visual, parece-me que, pela sua homogeneidade, se possa atribuir o inteiro conjunto ao Ribeiro. O que quero sublinhar é a capaci-dade de António Simões de responder às exigências da situação, encontrando o tecto já estruturado por complexas molduras. Assim chegado de Portugal, ele dedi-ca-se à pintura do tecto em caixotões integrando depois, entre o jogo refinado da decoração em talha dourada da capela-mor e da nave, a pintura de quadratura dos tetos das capelas laterais. Olhar o conjunto como “sistema global”, descubrir as nuances do trespassar da luz sobre as varias formas decorativas, seguir as dinâmi-cas do jogo entre as diferentes tipologias de grande decoração (caixotões, talha, quadratura) é exercício encantador para a visão activa. Passando horas na igreja, ia-me perguntando: qual “sincronia” permitiu criar este conjunto (ao meu ver o mais belo interior das igrejas brasileiras) ? Qual concerto de eventos, intenções, ideias, potencialidades, possibilidades concretizaram-se graças à presença de An-tónio Simões Ribeiro? Conhecemos melhor a “diacronia”: os tempos das obras, a chegada do pintor, a sua formação e cultura, a situação que encontrou, as catego-rias estilísticas e as cronologias das diferentes tipologias decorativas.

Naqueles dias em Salvador, continuava a tentar imaginar a “sincronia” que permitiu a um pintor português, que trazia consigo “a novidade” da quadratura, de se integrar perfeitamente no working progress do Terreiro de Jesus, onde os enco-mendantes estavam a promover as maiores campanhas decorativas do século, es-colhendo, com “liberalidade”, de utilizar o “conhecido” em formas “novas” (a ta-lha e a maneira de compor os tectos em caixotões), e de integrar harmoniosamente o “novo”, a quadratura, dentro daquelas formas “re-novadas”9.

Infelizmente, até agora, não conhecemos a data certa da quadratura pintada por Ribeiro no tecto da ex-biblioteca dos Jesuítas. Seja como for, é interessante notar

9 Para a analise desta transformação ver G. Raggi, op. cit., in “Murphy”

Foto 3: A. S. Ribeiro, Pintura de quadratura do tecto, particular, ex-biblioteca do Jesuí-tas, Salvador

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que os Jesuítas foram os primeiros a acabar a decoração dos interiores da sua igreja e sacristia, sempre em relação amigável-concorrencial com o Cabido da Sé, e que, querendo pintar a biblioteca, não escolheram a formula dos caixotões mas optaram pela arquitectura pintada. Remando a outro meu estudo onde, neste ano, apresentei a idéia do “paradoxo espacial” criado pela quadratura, propondo de ver na sua “es-pacialidade complexa” o motivo do seu sucesso e da sua difusão no Brasil.

Baseando-me sobre as considerações desenvolvidas naquele meu estudo e analisando a globalidade e a dinâmica do desenvolvimento da actividade pictórica de António Simões Ribeiro em Salvador, avanço aqui a atribuição ao pintor do tecto, infelizmente muito repintado, da igreja da ordem terceira de Santo Domin-gos, situada no mesmo Terreiro de Jesus e atribuída por Carlo Ott ao José Joaquim da Rocha. Esta atribuição ao Ribeiro aguarda a confirmação da investigação em arquivo que, espero, actuar no próximo futuro. No clima de troca criativo entre Franciscanos, Jesuítas, Provedores da casa da Misericórdia, Cabido da Sé, sem es-quecer a antiga igreja de São Pedro dos Clérigos, os irmãos da Ordem Terceira de Santo Domingos podem ter sido estimulados à emulação chamando, eles também, António Simões Ribeiro a nobilitar sua igreja através da novidade suntuosa, e eco-nomicamente menos dispendiosa, da quadratura.

A afinidade não só estilística das figuras mas da concepção geral das arquite-turas pintadas por Ribeiro, por exemplo, na biblioteca jesuíta permitem inserir esta obra na biografia artística do pintor.

Além destas considerações estilísticas e de analise visual, a atribuição encontra sua própria justificação interna na fascinante noção de “sincronia”: algo que os even-tos, os actos de cada pessoa envolvida na empresa, as condições do momento con-tribuem a criar naquele exato momento e que se pode tentar compreender só tendo em conta todas as componentes que intervêm, de fato, naquela precisa e, por si úni-ca, situação. Os modelos, o estilo dos artistas, a capacidade pratica, o conhecimento teórico, as categorias criticas... tudo isto são categorias críticas utilizadas e úteis no estudo dessas obras, mas que não chegam a explicar “como” se criou, por exemplo, a insólita pintura do tecto de São Pedro dos Clérigos a Recife ou a refinada visão da Assunção da Virgem na igreja de S. Francisco aqui em Ouro Preto.

Como já propus noutro estudo�0, esta pintura de Athaíde é, ao meu ver, a última explosão do “espaço da maravilha” no tempo da conclusão da sua vitalidade secular no Brasil. Uma espécie de espantosa manifestação “sincrônica” de todo o “conheci-do”, chegado ao longo do século anterior (XVIII) e que se foi depositando aos poucos e por vias inúmeras e multiplices. Na aparente contradição formal da “definição” desta obra, determinada pela vontade da critica de enquadrar numa categoria critica “fecha-da” a complexidade da arte de Minas Gerais, esconde-se, ao meu ver, o maior fascino das obras mineiras, pois na contradição esconde-se o paradoxo e, no paradoxo, a via para alcançar “outras compreensões” e nestas “outras compreensões”, creio eu, escon-de-se o sentido mais vivo e profundo do “processo criativo”.

�0 G. Raggi, op. cit., in “Designio”

Giuseppina Raggi - 4�3

Foto 4: A. S. Ribeiro (atr.), Pintura de qua-dratura do tecto, igreja da Ordem Tercei-ra de S. Domingos, Salvador

Como se, dentro da dimensão das relações de causa e efeito, operassem tam-bém outras modalidades de inter-relação entre os homens: sensação e intuição principalmente, isto é maneiras de perceber e viver a realidade que se influenciam entre si e que se organizam em equilíbrio harmónico durante a realização artística segundo forças dinâmicas muito mais activas da mera aplicação do saber teórico. Por isso é tão difícil (e extremamente fascinante) colher a “complexa realidade” das obras brasileiras do período colonial. Os modelos ajudam a realização das obras mas só a “actuação pratica do saber”, quaisquer que seja o nível de saber, é “co-nhecimento” de verdade.

E quando o conhecimento chega a ser “actuação pratica da sabedoria”, no sentido mais amplo do termo, então, talvez, aqui se encontre, uma vez mais, o sentido ainda mais vivo e ainda mais profundo da “criatividade”. Aquela criativida-de que só “a presença” permite. Por isso agradeço ao Luciano que deu vida a esta minha comunicação, de outro modo impossível sem a sua “presença presente”. Obrigada então ao Luciano e a todos vocês.