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Ensaio produzido por Alexandre Falcão de Araújo, a partir dos relatos de Luciano Carvalho, do coletivo Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes; Fabio Resende, da Brava Cia., e Rogério Tarifa, da Cia. São Jorge de Variedades.

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Page 1: A gestao dos muitos afazeres do teatro

A Gestão dos muitos afazeres do teatro1

Alexandre Falcão de Araújo2

“Ser artista é uma possibilidade que todo ser humano tem,

independente de ofício, carreira ou arte. É uma

possibilidade de desenvolvimento pleno, de plena

expressão, de direito à felicidade.”

Amir Haddad.

1. Antes do fazer

O tema central dos encontros promovidos pelo Centro de Pesquisa e

Formação do Sesc São Paulo foi a gestão de projetos na área teatral mas,

como era de se esperar, os artistas convidados não se restringiram ao tema

strictu sensu, até porque no contexto do teatro praticado pelos grupos Dolores,

Brava e São Jorge não é possível falar de projetos de criação artística

dissociados de um projeto de sociedade como um todo. Luciano Carvalho e

Fabio Resende trouxeram em suas falas um breve histórico do teatro de grupo,

tal como ele se configura em São Paulo e no Brasil. Na perspectiva de ambos o

teatro de grupo é uma experiência ímpar, marginal ao mercado, que busca se

organizar de forma horizontal e coletiva, na contramão da forma mercadoria

vigente no sistema capitalista.

Esta forma surge como alternativa organizacional na luta pela

sobrevivência do fazer teatral, pois em nosso país (e de certa forma em todo o

mundo) não há qualquer tipo de mecanismo capitalista que supra as

necessidades da produção teatral. A empresa-teatro (nos moldes do Teatro

Brasileiro de Comédia - TBC) e o sistema de cotas de ingressos fracassaram.

As leis de renúncia fiscal, vigentes até hoje, concentraram a produção teatral

nas mãos de alguns poucos produtores, que captam a maior parte dos

recursos e perpetuam o mecanismo de transferência de recursos públicos para

o setor privado. Ou seja, o Estado delega aos setores de marketing das

1 Ensaio produzido a partir dos relatos de Luciano Carvalho, do coletivo Dolores Boca Aberta

Mecatrônica de Artes; Fabio Resende, da Brava Cia., e Rogério Tarifa, da Cia. São Jorge de Variedades,

em encontros realizados no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo nos dias 15 de setembro

de 2012 (Dolores) e 27 de outubro de 2012 (Brava e São Jorge), tendo como tema a gestão de projetos

na área teatral. Os encontros foram mediados por Edson Martins Moraes. 2 Mestrando em Artes na Unesp, integrante do coletivo Aliança Libertária Meio Ambiente – ALMA.

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grandes empresas a decisão acerca de quais obras fomentar, e estas

redistribuem estes recursos (oriundos da isenção de impostos) em forma de

“patrocínio” cultural, determinando com critérios prioritariamente

mercadológicos o que deve ou não ser produzido no campo artístico. Trocando

em miúdos: o teatro de grupo ou teatro de pesquisa é insustentável do ponto

de vista mercadológico, não dá lucro, não subsiste dentro da lógica da

produção capitalista e, por isso, precisou lutar por outras formas de

sobrevivência.

Em São Paulo, os grupos se articularam por meio do Movimento Arte

Contra a Barbárie, formado em 1998 em prol de políticas públicas de cultura. O

movimento realizou suas ações mantendo clareza das contradições existentes,

pois o Estado, ao qual se solicitou recursos, em última instância é um ente a

serviço do poder hegemônico, já que vivemos num projeto inacabado de

democracia republicana, que nunca chegou a ser implantada de fato. À época

do movimento houve uma conjuntura política favorável, com abertura do

governo municipal, um vereador sensível à causa do teatro de grupo, pressão

popular e articulação dos grupos em torno da construção coletiva da Lei de

Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, que por fim foi aprovada na

Câmara (Lei Municipal nº 13.279, de 08 de Janeiro de 2002). Apesar de os três

grupos em foco terem surgido antes da citada lei, a estruturação de seus

trabalhos se deu, em grande parte, com recursos advindos da Lei de Fomento.

2. Agrupamentos e espaços para se fazer

Em 1998 surgem a Cia. São Jorge e a Brava Cia. (nessa época com

outra denominação, assumindo o atual nome em 2007) e em 2000 surge o

coletivo Dolores. A São Jorge surge na Universidade de São Paulo (USP), na

zona oeste, região nobre, a Brava nasce na periferia da zona sul da cidade e o

Dolores na periferia da zona leste. Os três coletivos podem ser inseridos dentro

do rol de grupos que, nas palavras de Fábio Resende, buscam fazer uma

“prestação de contas do real” (explicitando as contradições da sociedade),

alinhada com a apresentação daquilo que é desejável, com o anúncio de

possibilidades de transformações (ou ao menos necessidade de

transformações). A história dos grupos denota a procura por aliar qualidade

estética e pertinência política.

Page 3: A gestao dos muitos afazeres do teatro

No período do surgimento da Brava havia apenas dois teatros públicos

na Zona Sul de São Paulo e ambos distantes da extensa periferia da região.

Por isso, o grupo ganhou uma característica mambembe, circulando por

espaços alternativos: ruas, praças, escolas, se apresentando em mais de 300

bairros da região. Há cinco anos a Brava, em parceria com outros grupos da

região, ocupa o Sacolão das Artes, no Parque Santo Antônio, um antigo

sacolão hortifrutigranjeiro, que atualmente mantém intensa programação

cultural, com oficinas de diversas linguagens artísticas, além de apresentações

de teatro, música e outras atividades. O convite para a ocupação partiu de uma

associação de moradores do local e, após, uma série de lutas com as

sucessivas administrações regionais, os grupos ocupantes têm garantido a

cessão de uso do espaço.

A inacessibilidade geográfica e falta de espaços estruturados de arte e

cultura também foi determinante para o enraizamento do coletivo Dolores no

Jardim Triana, zona Leste de São Paulo e levou o grupo a ocupar um antigo

centro desportivo municipal, atual CDC (Clube da Comunidade) Patriarca. O

espaço era um terreno abandonado, com um galpão construído em regime de

mutirão pela comunidade e que na década de 1990, durante a gestão da

prefeita Luiza Erundina, foi utilizado por um clube de mães do bairro para

atividades assistenciais e também acolhia as reuniões do movimento cultural

Vento Leste. Nas gestões municipais seguintes (Paulo Maluf e Celso Pitta) os

grupos foram expulsos do local e o espaço foi fechado. Sem sede fixa e espaço

adequado para suas atividades, o Dolores decidiu retomar a ocupação do

espaço, inicialmente de forma extraoficial e depois oficializando a cessão de

uso do espaço, em conjunto com outros grupos ocupantes, que realizam a

gestão coletiva do local, por meio de uma diretoria comunitária. Atualmente o

espaço acolhe três grupos de teatro que usam o local para seus ensaios e

apresentações, além de grupos de dança, capoeira, artes marciais e outras

atividades socioculturais.

A busca por uma nova relação espacial e por tornar o público parceiro

da criação, levou a Cia. São Jorge a construir uma trajetória que partiu da sala

fechada e chegou às ruas. Apesar de seu primeiro espetáculo (“Pedro o Crú”,

de 1998) ter sido realizado em palco italiano, ele foi construído em linguagem

épica, sem quarta parede. Aos poucos, o grupo foi radicalizando sua pesquisa

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de linguagem, promovendo ocupação alternativa de espaços, como em “Um

Credor da Fazenda Nacional”, de 1999, em que o público se deslocava por

todas as áreas do edifício teatral; até chegar às ruas, em 2007, com “O Santo

guerreiro e o herói desajustado”. Nesse ínterim foi ponto nevrálgico a

montagem de “As Bastianas” (2003), espetáculo criado dentro dos albergues

municipais Canindé e Oficina Boracea. No processo das “Bastianas”, o primeiro

realizado com recursos da Lei de Fomento ao Teatro, o grupo se inseriu no

cotidiano dos albergues e a construção do espetáculo se deu tempo o tempo

todo em relação com o público dos locais.

Desde o “Santo Guerreiro...”, os espetáculos da São Jorge dialogam

diretamente com a rua, em especial as ruas da Barra Funda, onde o grupo há

cinco anos mantém sua sede. Em “Quem não sabe mais quem é, o que é e

onde está, precisa se mexer” o público começa a peça numa itinerância pelas

ruas do entorno da sede do grupo, entra no espaço da própria sede e sai

novamente para a rua para o encerramento da experiência teatral. O trabalho

mais recente da companhia, “Barafonda”, é ainda mais ousado: 40 atores

conduzem as centenas de pessoas do público por 2 km de itinerância pelas

ruas do bairro.

3. Formas de se fazer

Além da relação com o espaço e das experiências de ocupação das

sedes, também ficou evidente nas falas dos palestrantes os princípios dos

grupos no tocante à organização da produção teatral. No caso do coletivo

Dolores, por exemplo, todos recebem de maneira equânime, independente das

funções (diretor, dramaturgo, ator, produtor etc) e há um rodízio de funções

entre os integrantes conforme aptidão, vontade e capacidade de executar.

Além disso, o coletivo tem como princípio não alienar o trabalho de ninguém,

não contratar pessoas de fora do grupo para fazer os serviços de cunho “não-

artístico”, por isso o CDC Patriarca não tem faxineira, cozinheira ou vigia, todos

os que usam o espaço tem que limpar o local e cuidar do mesmo.

Na Brava as funções também são rodiziadas conforme as necessidades

do grupo e, coerentemente com a busca por um teatro contra-hegemônico, a

horizontalidade é um norte para as relações entre os integrantes, no intuito de

seguir na direção inversa do modelo dominante de relações de trabalho.

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Os três grupos assumem a luta simbólica como campo de ação,

disputando o imaginário colonizado pelo capitalismo. Nesse sentido, o desafio

de se relacionar com as comunidades do entorno das sedes é o mesmo: lutar

contra o imaginário dominante, reproduzido pelos veículos de comunicação de

massa, que se manifesta tanto no funk tocado nas festas, quando nos cultos

das igrejas neopentecostais.

Rogério Tarifa relata uma conversa com a filósofa Otilia Arantes, quando

ele percebeu que a metrópole acabou com o sentido de comunidade, pois

apenas sobraram pequenos nichos transitórios de vida comum. Dentro do

campo simbólico e de forma efêmera, os espetáculos apresentados pelos

grupos têm procurado criar estes nichos e abrir novas possibilidades de

relação. Por certo período de tempo a rua deixa de ser um espaço

predominantemente de circulação de mercadorias e passa a ser também um

espaço de encontro, de convívio humano. Foi deste convívio cotidiano com os

moradores do bairro que surgiu a ideia de se fazer o espetáculo “Barafonda” e

os resultados são visíveis: o grupo conquistou espaço junto aos comerciantes

mais antigos e ganhou a aceitação de boa parte da população, o que os

possibilita, por exemplo, fazer uma cena extensa em uma rotatória, em pleno

horário de pico numa sexta-feira à tarde. Alguns vizinhos se tornaram, de fato,

amigos do grupo e integraram-se ao espetáculo, com cenas próprias.

Porém, não há romantismo nesta relação, ao mesmo tempo em que o

espaço vem sendo conquistado junto aos vizinhos, a iniciativa privada também

tem tentado se apropriar da experiência para vender novos empreendimentos e

aumentar ainda mais a especulação imobiliária na região. O risco é de que o

espetáculo sirva para “valorizar” a região e, indiretamente, contribua para a

expulsão dos moradores mais antigos que originaram parte das histórias do

próprio espetáculo. Enfim, é preciso ter consciência das contradições para

enfrenta-las e, se por um lado, a indústria cultural praticamente universalizou

os desejos de consumo em todo o país, por outro lado, as críticas à

perversidade do sistema capitalista também são reconhecíveis em todos os

cantos, como aponta Fábio Resende. Segundo ele, a Brava circulou

recentemente por diversos locais do país com “Este lado pra cima, isto não é

um espetáculo”, uma obra que traz aguçada crítica marxista, e encontrou eco

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não só nas metrópoles, onde as contradições do Capital são mais gritantes,

mas também nas pequenas cidades do interior do norte e nordeste brasileiros.

4. Meios para se sustentar

A despeito das especificidades de cada grupo, a precariedade material é

ainda marca comum de todos, pois por mais premiados e conhecidos que

sejam, os grupos não tem garantida a sua sustentabilidade em médio prazo.

Há poucos programas públicos que financiam este tipo de iniciativas e apenas

um deles é garantido em lei: a Lei de Fomento ao Teatro da Cidade de São

Paulo e por isso, em que pesem os ataques sofridos, tem seguido de forma

ininterrupta desde sua criação até os dias de hoje, independente de quem

esteja gerindo o município no momento.

Por isso, os recursos são intermitentes e os grupos procuram diversas

formas para garantir a continuidade do trabalho e a sobrevivência material de

seus integrantes. É muito comum os integrantes terem vários trabalhos

paralelos e muitos dos artistas são também educadores, tanto por opção,

quanto por necessidade.

Como os grupos desenvolvem uma pesquisa contínua, não preparam

espetáculos conforme os interesses dos possíveis patrocinadores, além disso,

conforme aumenta a radicalidade política das propostas, boa parte dos

potenciais financiadores se afasta, pois não há interesse das empresas em

associar sua marca a determinadas questões polêmicas.

A esse respeito, vale citar o manifesto realizado pelo coletivo Dolores em

15 de março de 2011, quando levou o prêmio Shell de teatro, na categoria

especial, pelo espetáculo “A saga do menino diamante: uma ópera periférica”.

Enquanto Tita Reis, integrante do grupo, recebia a estatueta em forma de

concha e lia uma carta de teor irônico e crítico, Maria Eunice, também

integrante do Dolores, derramava óleo em sua cabeça. Luciano Carvalho

comenta que eles não poderiam simplesmente aceitar o prêmio sem se

posicionar, afinal de contas, o evento era patrocinado por uma petroleira

internacional, que financia ditaduras em várias regiões do mundo, em especial

no Oriente Médio. Luciano faz questão de realçar que o grupo aceitou o

dinheiro da premiação (diga-se de passagem, uma merreca: R$ 8.000,00), pois

esse dinheiro é fruto do trabalho de trabalhadoras e trabalhadores explorados

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pela empresa e foi devolvido à classe trabalhadora em forma de ações

públicas.

5. Rememoração dos motivos de se fazer

Para Rogério Tarifa, os grupos se reúnem também para fazer teatro,

mas, antes de mais nada, para estudar, para se tornar pessoas melhores,

transformar o próprio jeito de viver e, com a arte, transformar também o

entorno. Um dos grandes desafios para a manutenção dessa forma de trabalho

está em encontrar o equilíbrio dinâmico entre produção cultural e criação

artística. A produção cultural é o meio para a criação, mas não deve se tornar

maior que o fim, senão se torna insustentável do ponto de vista do prazer e da

integridade do trabalho dos artistas. A gestão das atividades dos grupos

demanda dos artistas um ritmo de trabalho às vezes insano, que envolve

redação de projetos, inscrição dos projetos nos editais existentes, elaboração

de relatórios, prestação de contas, gestão das sedes (organização do espaço,

limpeza, segurança, manutenção dos equipamentos e instalações etc),

manutenção de programação cultural, estabelecimento de parcerias com o

entorno (moradores, comerciantes, órgãos públicos) etc e reduz o tempo

disponível para o processo de pesquisa, criação, ensaios e até para as

apresentações. Os ritmos e estilos de trabalho necessários para se fazer

produção cultural e criação artística são radicalmente distintos, o que gera

angústia nos grupos. É preciso, em alguma medida, fugir da lógica de trabalho

mercantil para se praticar uma arte contra-hegemônica e essa busca reflete

não apenas um movimento no seio das artes cênicas, mas explicita também a

necessidade de se transformar a estrutura social vigente.

O teatro de grupo da Cidade de São Paulo, com sua qualidade e

relevância social, é um patrimônio do município e deve ser defendido, para

permitir a continuidade, expansão e aprofundamento dessa experiência. Um

dos pontos centrais da luta é a garantia das bases material e política, para que

os grupos avancem além da subsistência precária e intermitente que é

característica do atual cenário paulistano e nacional e tenham condições de

manter um trabalho contínuo. A manutenção dessa forma de se fazer arte e de

se viver depende da continuidade da articulação dos grupos na luta por

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políticas públicas, da criatividade para encontrar alternativas de circulação dos

trabalhos fora das rédeas da indústria cultural e também do apoio público, no

sentido de continuar apostando fichas na validade política, histórica e estética

do fazer teatral coletivo. Na perspectiva dos grupos em questão, continuar

fazendo teatro significa não minar os sonhos de que é possível viver de outra

forma. A grande aposta é no potencial que esta experiência libertária tem de

transbordar para além das fronteiras teatrais e contribuir para a construção de

outra sociedade, mais justa e humana.