a gestão do conflito na produção da cidade contemporânea.pdf

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  • PROJETO TEMTICO FAPESP

    Dezembro 2013

    A gesto do conflito na produo da cidade contempornea: a experincia paulista

    Pesquisador Responsvel: Profa. Dra. Vera da Silva Telles Instituio Sede: Departamento de Sociologia da USP

    Resumo Tomando como referncia emprica mudanas urbanas recentes ocorridas em So Paulo, capital e cidades do interior, este projeto pretende investigar os diferentes nexos que articulam processos de gesto dos espaos urbanos, governo das populaes, instituio de dispositivos securitrios e criao de novos mercados, bem como os campos de conflito que se configuram em torno dessas formas de controle e gesto dos espaos urbanos. A anlise enfatiza a tendncia adoo de estratgias crescentemente militarizadas de gesto de espaos e territrios urbanos considerados de risco. Essas estratgias esto estreitamente relacionadas a uma expansiva policializao de condutas e ao desenvolvimento de dispositivos jurdicos de exceo. Ao debruar-se sobre as mudanas que hoje redefinem o funcionamento dos mercados ilegais e informais da cidade, as operaes securitrias de interveno em espaos urbanos e os impactos decorrentes da poltica de encarceramento em massa, a investigao busca compreender a face atual desse processo de gesto militarizada de espaos urbanos. Sem desconhecer as prticas e as tradies que plasmaram uma concepo militarizada de segurana pblica no Brasil, o que importa assinalar o possvel engate contemporneo entre esse padro histrico de controle social militarizado e as tendncias que impulsionam um urbanismo militar de novo tipo. Desse ponto de vista, trata-se de refletir sobre os desafios que o reforo recproco entre esses processos a um tempo locais e globais pem para a compreenso da face poltica das configuraes urbanas recentes, bem como das modalidades de conflito e contra-condutas emergentes e que entregam os sinais de uma cartografia poltica da cidade, que nos interessa reconstruir ao longo das pesquisas contempladas pelo projeto. Palavras chaves: cidade; conflito urbano; gesto dos ilegalismos; novas formas de controle; gesto militarizada dos espaos urbanos The govern of conflict in the production of the contemporary city: the case of So Paulo

    Main Researcher: Profa. Dra. Vera da Silva Telles Main Institution: Department of Sociology University of So Paulo

    Abstract Based on recent urban changes that have been occurring in the State of Sao Paulo (Capital and selected Municipalities), this research project aims at investigating the different links that might articulate the govern of urban spaces and populations, the emergence of security technologies and the creation of market opportunities. It intends also to elaborate a political cartography of the new configuration of conflicts that takes place in these urban spaces. The analysis will focus mainly on the trend towards the adoption of increasingly militarized strategies of governing urban spaces perceived and constructed as risk spaces. These strategies are closed related to the expansion of the social and penal control nets and the use of legal measures of exception. In order to comprehend the new dynamics that shapes this trend towards militarized urban strategies of govern, the work will research the main changes that take place in the informal and illegal sectors of the market, the patterns that informs the operations of urban interventions and the effects of the policy of mass incarceration in these urban spaces. Taking into account the previous patterns that have been shaping Brazilian social control practices toward the adoption of recurrent military strategies, this study will try to emphasize the contemporary face of these processes through the mapping of the connections between these historically rooted practices and the emergence of an urban militarism of a new kind. From this point of view, it seems important to highlight the challenges that these processes of reciprocal reinforcement between the old and the new - both local and global - might mean to the political reconfiguration of the urban landscape as well as to the resistances that they might trigger off.

    Keywords: cities; urban conflicts; illegalisms; security technologies; new military urbanism

  • 2

    SUMRIO Resumo ........................................................................................................................................................................... 1 I. Enunciado do Problema .............................................................................................................................................. 3

    I.1. Apresentao ....................................................................................................................................................... 3 I.2. Justificativa .......................................................................................................................................................... 7 I.3. Parmetros terico-metodolgicos .................................................................................................................... 13 I.4. Hipteses de pesquisa ........................................................................................................................................ 15 I.5. Objetivos gerais e especficos ........................................................................................................................... 17 I.6. Frentes de pesquisa ............................................................................................................................................ 18

    I.6.1. Pesquisa terico-bibliogrfica ................................................................................................................... 18 I.6.2. Frentes empricas de pesquisa e suas questes .......................................................................................... 19

    I.6.2.A. Os mercados ilegais e informais ....................................................................................................... 19 1. O comrcio ambulante e a gesto dos espaos urbanos ........................................................................ 20 2. Mercados ilegais, suas redes e territorialidades urbanas ....................................................................... 23 3. Os mercados criminais de automveis vistos a partir das periferias ..................................................... 26 4. Trajetrias e carreiras criminais : adolescentes/jovens e mercados criminais ................................... 29

    I.6.2.B. Gesto e conflito nos espaos urbanos .............................................................................................. 32 I.6.2.C Rearticulao dos dispositivos de segurana, punio e encarceramento ......................................... 36

    II. Resultados Esperados e Disseminao .................................................................................................................... 43 III. Cronograma de Execuo do Projeto ..................................................................................................................... 44 IV. Bibliografia ............................................................................................................................................................ 45 V. Equipe e Rede de Interlocutores .............................................................................................................................. 47

  • 3

    I. Enunciado do Problema

    I.1. Apresentao

    O ponto de partida deste projeto est em um conjunto de inquietaes e questes de

    pesquisa, em vrias frentes articuladas de investigao, concernentes lgica securitria que

    parece, hoje, reger as formas de produo e gesto dos espaos urbanos. Mais especificamente:

    tomando como referncia emprica acontecimentos recentes em So Paulo, capital e cidades do

    interior, temos evidncias de dispositivos de controle que parecem combinar, de formas variadas

    conforme contextos e situaes, a lgica militarizada de gesto desses espaos e uma crescente e

    expansiva policializao de condutas.

    Sabemos que, no caso do Brasil, h uma histria e uma tradio que plasmaram uma

    concepo militarizada de segurana pblica. Porm, a novidade dos tempos que correm est nos

    nexos que parecem articular gesto urbana e ordem pblica sob a gide de princpios securitrios.

    Mais concretamente: gesto de espaos urbanos e, em particular, gesto dos espaos vistos como

    lugares de concentrao de atividades e prticas ditas de risco. A gesto dos riscos e de suas

    urgncias a senha que aciona dispositivos de interveno nesses lugares. Interveno que segue,

    sempre e reiteradamente, a lgica da ocupao e das operaes de saturao, associando e, a

    rigor, subordinando a ao social ao policial-militar. Em cada um dos eventos que se

    sucederam nos ltimos anos, uma especial composio de aes policiais ditas de preveno e

    aes sociais ditas de proteo em uma lgica que articula internamente dispositivos de

    normalizao de atividades e condutas, de policiamento e represso. As UPPs no Rio de Janeiro

    e as chamadas Operaes Saturao em So Paulo, em que pesem as diferenas de escala e de

    sucesso entre ambas, podem ser vistas como partilhando um mesmo modelo e uma mesma

    lgica, regida por essa composio e diagrama de relaes que articulam ao social, ao

    policial e dispositivos penais.

    Para alm dessas aes mais espetacularizadas e de forte apelo miditico, essa lgica que

    parece se impor na gesto dos espaos urbanos, acionando a metfora blica da guerra drogas

    e guerra ao crime, tambm guerra ilegalidade do comrcio ambulante (transformado em

    inimigo e ameaa ordem urbana) e, ainda, guerra aos distrbios urbanos, insurgncias como se

    diz em linguagem militar. essa gramtica blica que, em nome das urgncias e em nome da

    defesa da segurana urbana, rege os modus operandi das intervenes nesses espaos ditos de

    risco, transformados no mesmo passo em espaos de exceo.

  • 4

    A gesto militarizada dos espaos e territrios ditos de risco acompanhada por uma

    crescente e expansiva policializao de condutas e prticas indesejveis, condenveis no por

    indicarem alguma infrao legal, mas pelo potencial de risco e ameaa ordem urbana e ao bem-

    estar de suas populaes, de que parecem ser portadoras.1 Os exemplos se multiplicam: da

    chamada lei seca aos episdios recentes de operao policial de combate evaso escolar2,

    passando pela prtica e projetos de toque de recolher para os menores de 18 anos e a internao

    compulsria dos viciados em crack, alm do fechamento e represso a bailes, pontos de encontro

    e convivncia nas periferias da cidade. nessa composio entre a lgica militarizada de gesto

    dos espaos urbanos e a crescente policializao das condutas sujeitas a dispositivos de controle

    e punio, que talvez se tenha uma chave para entender o uso crescente da priso como

    instrumento de gesto de populaes e como dispositivo de controle desses espaos.3 Em outros

    termos: temos aqui uma pista para entender os nexos entre a gesto dos espaos urbanos e a

    exploso da populao carcerria em So Paulo (e no Brasil); nexos entre a gesto militarizada

    dos espaos, a produo de uma cidade securitria e os dispositivos penais de encarceramento

    dos que parecem escapar das regras de normatividade associadas ao, como se diz, projeto de uma

    cidade segura.

    Em relao a essas questes h alguns pontos que precisam ser esclarecidos e que se abrem

    a algumas das hipteses de trabalho que se pretendem desenvolver neste projeto:

    Primeiro ponto: no se trata de uma militarizao e policializao genricas. Em cada uma

    das situaes possvel identificar prticas que acionam e se amparam em normativas jurdicas,

    dispositivos jurdico-institucionais, construes poltico-administrativas que operam em

    situaes e contextos determinados. Em cada qual, h uma mecnica jurdico-institucional que

    preciso averiguar, pois nelas, nas mincias institucionais, como alertam Machado e

    Rodrigues (2009), que vo se instaurando dispositivos de exceo exceo que se torna regra

    que desativam prerrogativas legais, garantias e direitos.

    1 Nesse registro, entra em operao uma noo de ordem, que parte do suposto de uma desordem associada a essas condutas, sendo que as categorias de ordem-desordem aparecem aqui como construes, que no derivam do primado da lei, mas que terminam por funcionalizar a prpria lei para que essas operaes tenham amparo e tenham eficcia nos seus resultados esperados (LHeuillet, 2001). 2 No Itaim-Paulista, novembro 2011: ao coordenada pelo subprefeito do Itaim-Paulista, em apoio a deliberaes do Conselho Comunitrio de Segurana fora-tarefa formada por 30 funcionrios da prefeitura, policiais militares, guardas-civis e conselheiros tutelares, fechou ontem -25/11 as sadas de dois parques, atrs de alunos que matavam aulas ou consumiam drogas. Os locais foram bloqueados por uma hora, at que todas as crianas e adolescentes fossem abordadas, revistadas e tivessem seus dados anotados. FSP, 26/11/2011 3 Essa foi uma concluso de pesquisa que promovida pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e pela Pastoral Carcerria Nacional: essa pesquisa tratou de deslindar o perfil da populao presa e detida nos centros de deteno provisria, transferida recentemente para as carceragens. O relatrio afirma que a priso provisria tem sido usada como instrumento poltico de gesto populacional voltado ao controle de uma camada especifica da populao, os moradores de rua e usurios de droga. Segundo a pesquisa, a responsabilidade pelo descontrole das prises provisrias tambm a de juzes e promotores que corroboram a seletividade e a violncia promovidas pelas policias e raramente questionam a necessidade da priso cautelar. Cf. ITTC, 2012 .

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    o que estamos chamando de gambiarras jurdicas. E so vrias e cada qual teria que ser

    vista na sua prpria lgica e nos efeitos que produz. De um lado, trata-se da desativao do

    campo normativo dos direitos e da cidadania, introduzindo dispositivos de exceo nos

    meandros da ordem jurdica-institucional do Estado de Direito. De outro, isso instaura o que

    poderamos chamar de regimes de visibilidade e regimes de verdade, que constroem as

    evidncias de sua prpria (e suposta) eficcia, os critrios aceitveis de suas razes e

    racionalidade verdades e evidncias que tambm pautam a assim chamada opinio pblica,

    jogando na invisibilidade e ilegitimidade aes de questionamento ou resistncia a esses

    procedimentos.

    Vale indicar algumas das situaes, talvez as mais paradigmticas, do que aqui est sendo

    dito. Em nome da guerra pirataria e combate ao comrcio ilegal nas ruas de So Paulo,

    entrou em operao um muito controvertido acordo da Prefeitura de So Paulo (Gesto Kassab,

    2008-2012) e o governo do Estado, a chamada Operao Delegada: a rigor, um dispositivo

    jurdico-poltico de legalidade duvidosa, que suspende as circunscries legais que definem as

    atribuies da Polcia Militar, de modo a ampliar o seu espao de atuao nesse terreno em que

    as funes de fiscalizao e controle eram de responsabilidade de outras instncias polticas

    (fiscais da prefeitura) e outros rgos de polcia. Sob a lgica tecnologias securitrias como

    modo de gesto do espao urbano, diz Hirata (2012), processa-se a simbiose entre ordem

    pblica e segurana urbana. Na prtica, trata-se, enfatiza Hirata, de uma legislao de exceo

    que amplia os poderes discricionrios da polcia na execuo dessas operaes, alterando as

    formas de controle e os modos de incriminao das transgresses legais ou irregularidades

    urbanas do comrcio de rua.4

    No campo da gesto das assim chamadas populaes em situao de risco, a gambiarra

    jurdica instala-se no corao dos programas sociais da Prefeitura Municipal de So Paulo. Nesse

    caso, trata-se de instrumentos normativos que criaram o chamado Programa de Proteo a

    Pessoas em Situao de Risco (Portaria SMSU 105/2010) e que, em nome da chamada segurana

    urbana, agenciam uma especial composio entre ao policial-repressiva e assistncia social,

    abrindo o espao para toda forma de discricionariedade na gesto das ditas situaes de risco,

    com o objetivo expresso de contribuir para diminuir e evitar a presena de pessoas em situao

    de risco nas vias e reas pblicas da cidade e locais imprprios para a permanncia saudvel das

    4 Sem eufemismos, assim justifica o comandante geral da Policia Militar a eficcia da Operao Delegada: antes o camel desrespeitava (o fiscal da prefeitura ou o Guarda Municipal) porque no havia crime. Ele tinha conscincia de que s estava cometendo uma infrao administrativa [...]. Quando se delega a tarefa de fiscalizao Policia [Militar] ... a partir da ele sabe que, se enfrentar a ordem policial, ele pode ser preso por desacato autoridade. Declarao ao Jornal Estado de So Paulo, 30/01/2011

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    pessoas [...], objetivando a abordagem e encaminhando adequado para cada caso e situao de

    vulnerabilidade encontrada. Ao analisar esse programa, Alessandra Teixeira (2012) nota que,

    para diminuir ou evitar a presena de determinadas pessoas em vias pblicas, a prefeitura previu

    a consecuo de medidas constritivas de liberdade e destacou a Guarda Civil Metropolitana

    (GCM) para essa tarefa: embora no guarde em sua previso originria funes dessa natureza,

    certo que a GCM tem sido recrutada, ao longo dos anos, a desempenhar atividades de polcia,

    notadamente militar, que no esto, contudo, entre suas atribuies constitucionais (Teixeira,

    2012: 333). Isso quer dizer que a ideia do militarismo como fora propulsora penetra diferentes

    mbitos e domnios do Estado, estendendo a noo de vigilantismo para alm do repertrio de

    ao da PM, a fora estadual por excelncia (Id.: 334).

    Em vrios municpios brasileiros, a partir de experincia inaugurada em cidade do interior

    paulista (Fernandpolis, em 2005), medidas de toque de recolher de jovens em espaos

    pblicos, depois das 22 horas, passaram a ser adotadas em vrios municpios paulistas e em

    outros estados do pas. Tal como vem sendo noticiado, por vezes trata-se de portaria judicial (o

    exemplo de Fernandpolis) ou, em outros casos, de leis municipais, mas em todos os casos

    coloca-se em ao, sob o discurso de proteo e tutela, algo prximo a um vigilantismo,

    mobilizando patrulhas compostas por membros do Conselho Tutelar da Infncia e

    Adolescncia, acompanhados por agentes da Policia Civil e da Policia Militar.

    Segundo ponto: essas prticas e esses dispositivos de interveno urbana no ocorrem em

    quaisquer lugares e situaes. H um trao comum que perpassa esses vrios campos de

    interveno e aqui que se especifica uma de nossas hipteses de trabalho: essas formas de

    interveno podem ser vistas como dispositivos de gesto das populaes e dos fluxos urbanos,

    de modo a tornar esses espaos seguros e confiveis na tica dos mercados. Nesse caso, as

    operaes realizadas na chamada Cracolndia e a Operao Delegada no centro da cidade, bem

    como as operaes de remoo de populaes em bairros e favelas nas periferias da cidade5,

    podem nos dar uma chave para entender o que est em jogo na gesto dos espaos urbanos e dos

    territrios ditos de risco: dispositivos para produzir mercados ou criar situaes de mercado,

    relaes de mercado e situaes abertas aos interesses especulativos que vigoram por todos os

    lados. Parece que estamos aqui no cerne do que David Harvey (2004) chama de acumulao por

    despossesso e que encontra justamente nos espaos urbanos o lcus e os instrumentos a serem

    5 Remoes foradas de populaes em regies perifricas vem se multiplicado nos ltimos anos em So Paulo (tambm no Rio de Janeiro e outras cidades) sob medidas ditas administrativas, de estatuto legal nebuloso, em nome de razes igualmente nebulosas (risco, urgncias, defesa da ordem urbana).Em boa parte das situaes registradas, so populaes localizadas em reas de interveno de urbana, ditas de revitalizao ou de melhorias urbanas, mas que desenham a cartografia dos investimentos urbanos e especulao imobiliria.

  • 7

    acionados para a formao e expanso dos mercados (2012). Gesto militarizada dos espaos,

    dispositivos penais e o uso violncia (legal e extralegal) que acompanham essas operaes

    compem uma trade que sinaliza os meios pelos quais as situaes de mercado so fabricadas,

    produzidas e disputadas. Temos aqui os nexos, a serem deslindados, entre dispositivos de

    exceo e a mercantilizao exponencial dos espaos urbanos, e da cidade, em geral.

    Terceiro ponto: em cada um desses campos de interveno, imperam jogos pesados de

    interesses e relaes de fora, que armam campos de conflito, de tenso, de frico, que

    precisariam ser acompanhados. No corao desses campos de forca, esto as gambiarras

    jurdicas e nesse campo que ganha importncia um ativismo jurdico cada vez mais presente

    nesses conflitos, colocando em cena representantes da Defensoria Pblica, mas tambm

    organismos de defesa dos Direitos Humanos, alm de uma gama variada de associaes e

    coletivos de ativistas.

    Em termos mais gerais, seria possvel dizer que esses campos de interveno podem ser

    tomados como dispositivos de gesto da ordem/desordem nos espaos urbanos, a partir do que

    posto e construdo como problema - ameaa, risco a ser gerido. E, ao mesmo tempo, terminam

    por gerar formas abertas ou surdas, de conflito ou, no mnimo, dissonncias na ordem urbana.

    Isso compe algo como uma cartografia poltica da cidade, que ainda precisar ser desenhada e

    bem entendida.

    I.2. Justificativa

    A literatura a respeito vastssima e no nosso objetivo fazer o seu balano. No caso dos

    autores com os quais esse projeto dialoga, a escolha aqui no pretende dar conta de todas as

    questes postas no debate atual, mas de situar, nesse debate, campos de problematizao que

    deslocam, em boa medida, as formas antes estabelecidas de se pensar as relaes entre cidade e

    poltica, cidade e ordem urbana. De maneira geral, em que pesem diferenas de nfases,

    matrizes tericas e contextos empricos de referncia, h um trao comum que perpassa diversos

    autores no reconhecimento de que se trata de novos agenciamentos pertinentes ao que alguns

    chamam de sociedade ps-industrial ou ps-disciplinar e que colocam no centro do tabuleiro

    poltico dispositivos de gesto dos fluxos e circuitos dessa mobilidade ampliada de bens,

    riquezas, mercadorias, pessoas e populaes. um debate que relana, em muitos sentidos, as

    relaes entre cidade, circulao e mobilidade, tema clssico nos estudos urbanos6, mas que

    agora se redefine por inteiro no cenrio contemporneo.

    6 Como diz Brun (1993), as relaes entre cidade e mobilidade de mercadorias, de capitais, de informaes, de ideias, de comportamentos, mas sobretudo de homens, so um tema clssico. Sabe-se qual lugar ocupa o conceito de mobilidade no

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    Se, como diz Topalov (1992), no sculo XIX, as cincias do urbano surgem em torno das

    urgncias postas pelo fenmeno moderno das populaes populaes urbanas, os seus lugares,

    seus modos, formas de vida e insubordinaes; se, como sugere Donzelot (1984), a inveno do

    social foi regida pelo imperativo de tornar governveis populaes em uma sociedade fraturada

    internamente; se as polticas de controle e gesto urbana ento postas em prtica podiam ser

    vistas, como sugere Foucault (1997), como dispositivos que dissolviam as multides confusas

    e as transformavam em multiplicidades ordenadas, essas questes so hoje relanadas. Porm,

    essas questes so relanadas em torno de um outro diagrama de relaes e outros campos de

    problematizao, diferentes daqueles que construram a agenda das polticas urbanas e tambm

    das cincias da cidade, em boa medida em torno dos problemas do trabalho, da moradia e da

    cidadania urbana.

    Se a gesto das populaes a gesto das multiplicidades como diz Foucault (2008),

    surge como problema poltico no sculo XVIII e a matriz das polticas urbanas e do urbanismo

    moderno, justamente nesse registro que parecem se configurar deslocamentos importantes e

    campos de problematizao, que vm pautando debates recentes. a prpria noo de ordem

    urbana que se redefine. E se isso nos importa, porque oferece uma grade de inteligibilidade

    para lidar com as novas formas de controle e gesto dos espaos urbanos, que o ponto de

    partida deste projeto.

    Como mostra Landauer (2009), os modos e figuras dos dispositivos de segurana urbana

    esto hoje regidos no tanto pelos imperativos de fechamentos, proteo e controles em torno de

    supostos espaos criminognicos e lugares de concentrao das classes perigosas (ou sob

    suspeio), mas sim de gesto das mobilidades e seus fluxos, das circulaes e deslocamentos

    nos espaos urbanos. A matriz desses novos agenciamentos encontra-se no nas fortalezas dos

    condomnios fechados, mas justamente nos pontos e lugares em que se sobrepem fluxos e

    circuitos desses movimentos, sejam eles os aeroportos e estaes de trens ou metr, sejam os

    lugares em se realizam eventos (sobretudo os megaeventos) esportivos, festivos ou polticos,

    sejam ainda os lugares de concentrao do comrcio e das finanas. As grades e vigilncias

    continuam a existir, mas elas mudam de funo, diz o autor, operam em uma outra lgica: no

    pensamento dos fundadores da escola de Chicago, notadamente o celebre texto onde Burguess, bem alm de uma simples viso aditiva dos diversos fluxos que enervam a cidade e a associam ao mundo exterior, mostra que a mobilidade um dos fundamentos da sociedade moderna, talvez o principio mesmo de urbanidade. A mobilidade igualmente o elemento chave da analise braudeliana do papel das cidades da emergncia da economia-mundo, e por ai no movimento secular de desconstruo e reconstruo do espao econmico, em todas as suas escalas. Seria fcil multiplicar os exemplos, mostrando que a mobilidade est no corao da quase-totalidade dos problemas que se pem no estudo da cidade e do espao habitado e dos mecanismos de crescimento e de suas disparidades aos seus determinantes e o aporte das polticas do urbanismo, passando pela formao dos valores fundirios e pelos processos da diviso social do espao.

  • 9

    tanto a de interditar e isolar, mas a de filtrar e gerir as populaes e seus tipos, fazer a triagem

    dos que podem ou no passar, das pessoas e comportamentos que respondem (ou no) aos

    credenciais aceitos nesses lugares, construindo em torno desses pontos sensveis o que vem

    sendo chamado de permetros de segurana ou, em alguns casos, zonas de exceo, tais

    como os que vm sendo praticados em torno dos lugares de realizao de grandes eventos

    polticos, esportivos, culturais, comerciais, etc.7

    Mas isso tambm significa dizer que esses mecanismos de controle no incidem sobre

    espaos prvios e previamente organizados na cartografia das cidades. A rigor, diz o autor, a

    prprio desenvolvimento das formas espaciais que organiza a segurana e a ordem urbana, sob

    justamente o princpio ou imperativo de gesto das populaes e seus deslocamentos.

    No por acaso, a gesto das populaes aciona o que vem sendo chamado de

    governamentalidade dos espaos. Na formulao de Sally Merry (2001) trata-se de uma lgica

    de produo da ordem no mais centrada na disciplinarizao dos indivduos (e produo de

    corpos dceis), mas na gesto das populaes por meio da produo de espaos governveis,

    mas tambm protegidos contra todos os que podem ser vistos como ameaa ou portadores de

    comportamentos indesejveis. Em outros termos, o governo das condutas ganha formas

    espacializadas, ao mesmo tempo em que a gesto desses espaos mobiliza dispositivos de

    controle voltados aos indesejveis, figuras inefveis de todos os que so vistos como

    portadores de risco e ameaa a um certo regime de ordem e segurana.

    exatamente dessa perspectiva da produo de "espaos governveis" que se pode

    compreender o retorno contemporneo da velha prtica de banimento em algumas das principais

    cidades do capitalismo global. A reedio surpreendente dessa tcnica de controle social -

    articulada a novas formas arquitetnicas de excluso scio-espacial - volta-se ao controle e

    remoo mais ou menos duradoura de populaes consideradas indesejveis de espaos urbanos

    estratgicos e opera pela adoo de dispositivos jurdicos de exceo de natureza hbrida - civil,

    administrativa e penal.8

    7 Trata-se de um novo tipo de urbanismo, diz o autor, regido pela gesto e triagem dos fluxos, dos deslocamentos e percursos, caracterizado pela sobreposio de permetros de segurana; que induz a uma produo e redefinio constante de espaos, que se deslocam e se reconfiguram conforme os imperativos da gesto das circulaes e deslocamentos; que opera no pela viso panptica, mas por controles pontilhados em lugares estratgicos do territrio urbano, regidos pelo imperativo de responder a uma ordem de perigos e ameaas, que tambm mudaram de figura, na prpria medida em que crimes e delitos se inscrevem cada vez mais em uma geografia que transborda o permetro local das redes transnacionais dos trficos ilcitos e das chamadas economias subterrneas, passando pelo terrorismo internacional, alm da extenso e ampliao do que posto ou assim percebido como incivilidades (quer dizer: comportamentos indesejveis), que escapam da jurisdio das instituies legais e suas tipificaes penais. 8 Essa prtica o resultado de uma engenharia jurdica que visa driblar a declarao de inconstitucionalidade de leis tradicionais que tipificavam a mendicncia e a ociosidade como contravenes penais. O caso norte-americano emblemtico a respeito. A descriminalizao dessas condutas tem levado inmeros municpios, s voltas com o crescimento da populao de sem-teto, a editar regulamentos de natureza civil e administrativa que conferem a autoridades policiais pblicas e privadas a prerrogativa de

  • 10

    O banimento contemporneo restringe a mobilidade urbana de setores desprivilegiados,

    propicia a priso por via transversa de pessoas que originariamente no praticaram condutas

    tipificadas como crimes, fomenta o encarceramento em massa por meio das prises de curta

    durao e contribui para a expanso da rede de controle penal. O decisivo parece estar

    justamente na articulao entre gesto excludente do espao urbano, exceo jurdica e

    policializao de condutas consideradas de risco, tudo em nome de uma certa concepo de

    ordem pblica e de um certo ideal de civilidade.

    Como nota Lianos (2001), essas novas formas de controle, sob a gide da gesto dos riscos,

    termina por acarretar um notvel deslocamento da lei e das instituies judiciais como

    mecanismos de processamento de conflitos e gesto da ordem social. O que visto como desvio

    cada vez mais desconectado de infrao (o crime supe o sistema de direito) e associado

    ameaa. Da a busca de ndices de desvios em relao a um padro de regularidade prprio de

    um lugar determinado. 9 Em outros termos, h algo como uma desativao da dimenso

    normativa da lei e do direito, que passam a ser funcionalizadas sob a tica dos procedimentos

    civis e administrativos de gesto dos espaos urbanos, tais como vimos acima. Mas isso

    tambm que esclarece o atual entrelaamento entre formas de controle e a produo dos espaos

    da cidade e suas formas de vigilncia e monitoramento.

    Segurana, segurana urbana: afinal, do que se trata? Gros (2011) discute justamente as

    mutaes de sentido da noo de segurana no mundo contemporneo, bem como os

    deslocamentos da ordem de problemas que a noo circunscreve. O autor lana mo da noo de

    biossegurana, demarcando as diferenas em relao noo de segurana, tal com foi

    formulada e exercitada sob o signo das figuras modernas do Estado-nao e da ordem

    geopoltica da Europa westfaliana: sem entrar no detalhe do argumento do autor e o modo como

    trabalha as suas vrias dimenses (e avatares, derivas), o princpio de segurana prprio das

    instituies do Estado um elemento da ordem pblica, prima pela conservao de bens e

    pessoas, apoia-se em um sistema de garantias e mobiliza a figura do sujeito de direitos. A

    banir temporariamente pessoas de parques pblicos, bibliotecas, campi universitrios, centros de compras e outros espaos urbanos. O descumprimento da medida implica a possibilidade de recolhimento do infrator priso (Beckett & Herbert, 2008). Autntica gambiarra jurdica, essa nova arquitetura legal permite sancionar criminalmente, pelo descumprimento, condutas ilcitas de natureza civil ou administrativa. No mesmo passo, por no se tratar de regras expressamente reconhecidas como penais, restringe o direito de defesa dos acusados, que no tm direito a advogado, nem tampouco exige a prova das alegaes oferecidas pelas autoridades que impem as ordens. A exceo aqui repousa na inequvoca natureza penal substantiva das medidas de banimento que, no entanto, ao assumirem formalmente a capa de medidas civis e administrativas, operam a suspenso de princpios jurdicos inerentes ao direito de defesa. 9 Vale a citao: essas tendncias contradizem a distino entre comportamento legal e ilegal, que abria margens para comportamentos no-conformes, porm legais. Essas margens perdem todo o sentido, na medida em que as percepes do perigo ignoram a diferena entre o que indesejvel e o ilegal (Id.).

  • 11

    biossegurana opera em outra lgica, em torno de outra ordem de problemas. Responde ao que

    percebido como uma vulnerabilidade construda pelas redes mundializadas, inscrita na ordem

    das coisas, na materialidade das sociedades (e cidades) e dos corpos humanos e de seus

    contextos de vida, afetados pelos riscos e ameaas que circulam e se propagam na prpria

    medida da extenso dessas redes - dos vrus de computador a doenas e contaminaes vrias,

    passando pelas drogas e armas, crimes e terrorismo internacional. Diferente e distncia das

    figuras do sujeito de direitos, tematizando (e problematizando ao mesmo tempo) a impotncia da

    ordem dos direitos e da soberania estatal em lidar com os problemas postos nessa ordem de

    coisas, a biossegurana constri as figura de populaes em situaes de vulnerabilidade

    associadas a riscos mltiplos e, a rigor, proliferantes (pobreza, fome, doena, crime, violncia,

    guerras, catstrofes) que exigem uma vigilncia contnua de sistemas e de homens e aciona a

    lgica da interveno (Gros, 2006).10

    Modos de gesto das populaes, de seus fluxos, de seus movimentos. Concretamente: a

    lgica da interveno e da segurana, a gesto dos riscos em suas vrias modulaes, busca

    assegurar a fluidez dos circuitos, o funcionamento dinmico dos fluxos de populaes, de

    riquezas, de bens, de mercadorias, de informaes, enfim, dessa mobilidade ampliada prpria

    dos mercados globalizados agora liberados dos constrangimentos dos Estados e naes. Mas

    isso tambm que produz uma clivagem transversal ao espao social, entre espaos seguros e

    uma expansiva zona cinzenta habitada por aqueles escapam, se recusam ou esto margem dos

    agenciamentos situados, postos em operao para garantir a segurana de pessoas, lugares e

    contextos. A gesto dos riscos, interveno e segurana cria o seu fora, suas margens, onde

    imperam estados de violncia de que os controles mafiosos dos mercados ilcitos so um

    exemplo (Gros, 2006), ao que poderamos ainda acrescentar milcias, grupos de extermnio, entre

    outros que se poderiam inventariar.

    Nos circuitos entrelaados das redes mundializadas tambm circulam dispositivos, tcnicas,

    tecnologias e expertises militares, experimentadas em regies de ocupao e guerra (Gaza,

    Iraque, sobretudo), que so mobilizadas (e tambm experimentadas) nas operaes de segurana

    nos grandes eventos esportivos mundiais, eventos polticos e fruns globais e que parecem, cada

    vez mais, acionadas como instrumentos de segurana nas cidades transformadas, nesse registro,

    em campo de guerra. No por acaso que a noo de guerra urbana tambm circula e 10 Diferente da poltica (e seus protocolos de discusso, deliberao, negociao), a interveno regida pelos critrios ditos tcnicos de competncia dos especialistas e acionada para restaurar uma ordem ameaada, reestabelecer harmonias rompidas, reparar disfunes, encontrar solues. Interveno social, interveno cultural, interveno sanitria, interveno humanitria, tambm interveno policial e interveno militar: nas peculiaridades de cada campo de atuao, uma mesma lgica, gesto dos riscos, sempre pontual, territorialmente definida, mas sempre deslocante, conforme se redefinem os alvos, os focos, os problemas.

  • 12

    acionada nas situaes percebidas de risco e ameaa nas grandes cidades, ao Norte e ao Sul do

    planta. Essa a matriz do que Graham (2010) chama de novo urbanismo militar. Vale se deter

    nesse ponto, pela sua importncia para as questes que interessam ao nosso projeto.

    Segundo o autor, esse urbanismo militar consiste na colonizao crescente do espao

    urbano e da vida cotidiana nas cidades por uma racionalidade militar, vale dizer, por prticas e

    discursos que tm no centro a noo de guerra. Dessa forma, questes e eventos da ordem do

    cotidiano das cidades so convertidos em assuntos de guerra, em questes militares. Uma viso

    de mundo militarizada vai se espraiando e se combinando de modo particular s racionalidades

    prprias de outras esferas da vida social, como a econmica, a poltica, a jurdica, e assim por

    diante.

    O novo urbanismo militar aparece diretamente vinculado aos modos de gesto das cidades

    e dos conflitos urbanos, bem como dos fluxos econmicos prprios das economias globalizadas.

    De um lado, de se notar a ampliao da noo de guerra, com a consequente eroso das

    fronteiras entre guerra e paz, o civil e o militar, as foras armadas e a polcia, a segurana

    pblica e privada. Transcendendo os limites convencionais do tempo e do espao, a guerra

    urbana parece se converter em guerra permanente e geograficamente ilimitada. Essa a lgica

    blica que parece hoje primar nas formas de gesto do conflito urbano, em nome da guerra s

    drogas, guerra ao crime, guerra ao terrorismo.

    Por outro lado (e ao mesmo tempo), a formao de uma rede global de troca de

    informaes, tecnologia, assessorias e venda de pacotes de militarizao possibilita a

    constituio de uma indstria da militarizao do espao urbano que passa pela mdia, pelo

    cinema, pela indstria automobilstica e do entretenimento. A organizao dos grandes eventos

    esportivos mundiais especialmente reveladora desses processos.

    O emprego cotidiano da racionalidade da guerra e das foras militares na gesto das

    cidades do capitalismo global passa a ser decisivo para a gerao e garantia de continuidade de

    novos negcios, o desenvolvimento das novas tecnologias e formao de mercados. E isso tem

    desdobramentos nos dispositivos de gesto dos espaos e dos conflito urbanos.11

    11 Note-se, por exemplo, o perfil higienista de gesto de espaos urbanos, que se vale da edificao de cordes sanitrios em torno de territrios a serem protegidos e que encontra no aparato militar um elemento estratgico ao patrulhamento de suas fronteiras e segurana seletiva de bens, servios, informaes e pessoas. De novo, e apenas para ficar em um exemplo, essa a lgica que prima na definio dos chamados (e assim definidos) espaos de excluso em torno dos estdios por ocasio da realizao da Copa Mundial de Futebol. Tambm: o chamado direito penal do inimigo, que normaliza procedimento legais de exceo e busca legitimao na retrica e nas prticas de defesa militar, convertendo ilcitos penais comuns em atos de guerra e excluindo sujeitos de direito do universo das protees jurdicas em nome do combate ao inimigo. essa a lgica inscrita na polmica definio de crime de terrorismo, que abre o espao de uma expansiva criminalizao de movimentos sociais e coletivos ativistas. Vale notar: a batalha judicial em torno da definio do crime de terrorismo est aberta no Congresso Nacional brasileiro, sendo que a urgncia dessa definio colocada em razo dos grandes eventos esportivos no pas.

  • 13

    No Brasil, as tendncias que impulsionam o novo urbanismo militar parecem se articular

    de forma complexa ao padro histrico de controle social vigente no pais. Como se sabe, a

    Policia Militar a principal corporao policial do pas, mas a lgica militarizada parece estar

    colonizando os modos de funcionamento, treinamento e comando das Guardas Municipais que,

    em principio, deveriam operar sob outras lgicas. Nos ltimos anos, as chamadas Unidades de

    Policia Pacificadora (UPPs) tm se imposto como modelo, de fortssimo apelo miditico, de

    controle social sob a lgica da ocupao militarizada na gesto dos conflitos urbanos. Em So

    Paulo, a lgica da ocupao militar nos espaos problemticos ou ditos de risco tem sido a

    mesma, acompanhada por um ostensivo aparato militar veculos blindados, helicpteros,

    grupos tticos militares e militarizados, armas pesadas.

    No caso, nos limites deste projeto, de detalhar matrizes histrias, circunstncias e as

    vrias dimenses dessa padro de gesto da segurana no Brasil. No entanto, o que importa

    assinalar o possvel engate contemporneo entre esse padro histrico de controle social

    militarizado e as tendncias que impulsionam o urbanismo militar. O reforo recproco entre

    esses processos suscita a questo dos nexos especficos que os articulam no presente,

    especialmente levando-se em conta que a constelao formada por guerra, mercado e governo

    das populaes no espao urbano se pe hoje para muito alm dos limites geogrficos nacionais.

    I.3. Parmetros terico-metodolgicos

    Esse projeto parte do suposto de que, se verdade que as situaes aqui indicadas trazem

    as marcas de uma histria de longa data, elas no podem ser vistas apenas como permanncia

    dos legados da tradio autoritria de nosso pas. Mas tampouco podem ser tratadas como

    simples replicao, efeito ou impacto de tendncias gerais do mundo contemporneo, tais como

    vm sendo discutidas por vrios pesquisadores em outros pases, ao sul e ao norte do planeta.

    Nos vrios contextos situados em que se pretende tratar essas questes, acreditamos que ser

    possvel deslindar as formas e agenciamentos que se produzem sob a lgica de uma composio

    entre tradies scio-histricas, as transversalidades prprias de um mundo globalizado e as

    circunstncias concretas nas quais essas questes se configuram como campos de

    problematizao e de interveno, tambm de disputas (cf. Ong e Collier, 2005).

    Sem perder de vista as singularidades histricas em que essas questes se inscrevem,

    importante traar o que poderamos chamar de plano de atualidade nas quais essas situaes e

    essas questes se situam. Quer dizer: trata-se de colocar nossas questes em dilogo com a

    ordem de problemas que vem se afirmando no mundo contemporneo. Lgica militarizada de

    gesto urbana, novas formas de controle e policializao de condutas, endurecimento penal,

  • 14

    encarceramento em massa e o lugar da priso como forma de gesto de espaos e populaes,

    so questes presentes no debate contemporneo. Em torno delas perfilam-se os problemas

    pertinentes aos novos ordenamentos scio-urbanos que vm sendo engendrados.

    A rigor, a nossa aposta terico-metodolgica que so esses campos de fora que devero

    orientar e guiar nossas frentes de pesquisa, o atalho, poderamos dizer, para lidar empiricamente

    e teoricamente com as questes aqui assinaladas. Em termos gerais, seguimos aqui as questes

    propostas por Foucault (1984) ao dizer que, para entender a economia das relaes de poder ser

    preciso um modo de investigao que toma como ponto de partida as formas de resistncia aos

    diferentes tipos de poder. Trata-se de analisar as relaes de poder pela via de seus

    enfrentamentos estratgicos, tomando essas formas de resistncia como catalizador qumico

    que permite colocar em evidncia as relaes de poder, ver onde elas se inscrevem, descobrir

    seus pontos de aplicao e mtodos que utilizam. (Foucault, 1984: 301). E isso tem duas faces:

    de um lado, o sinalizador das contra-condutas, para evocar o termo que Foucault lana em

    outro texto ao discutir os dispositivos de governamentalidade (Foucault, 2008) e que podem nos

    guiar no entendimento das linhas de fora que desenham uma cartografia social e poltica dos

    conflitos e tenses que atravessam o mundo social. Por outro lado (e ao mesmo tempo), isso

    supe (e exige) um modo de investigao que se volta s prticas concretas, colocando na mira

    as tecnologias de poder, tcnicas, os procedimentos, os modus operandi dos dispositivos de

    poder situados nesses campos de interveno. Esses campos de interveno pode ser tomados

    como campos de problematizao ou, na formulao de Ong e Collier (2005), espaos-

    problema que produzem seus prprios regimes de verdade, modos de interveno tcnica e

    arranjos institucionais, mas tambm formas de ao e contra-condutas, bem como o campo de

    debate (e dissonncias) que, a partir da, se desdobra.

    Os contextos situados em que esses processos se constelam, compondo-se e interagindo

    com as circunstancias locais, em torno de problemas que se pem concretamente em cada qual,

    abrem um campo frtil de investigao: podem ser tomados, para usar os termos de Saskia

    Sassen (2009), como fronteiras analticas, na prpria medida em que, nesses espaos-problema,

    ordem, lei e direitos esto se redefinindo, em agenciamentos que ainda precisam ser deslindados.

    Para colocar nos termos de Foucault, lugares em que os dispositivos de disciplina, soberania e

    governamentalidade se compem e se articulam no que Collier (2011) chama de topologias de

    poder.

    Tendo como foco emprico So Paulo, capital e interior (algumas cidades), as pesquisas

    devero se desenvolver em contextos situados, buscando deslindar as prticas, agenciamentos,

    os instrumentos e dispositivos postos em operao nesses lugares, tendo como fio condutor os

  • 15

    campos de problematizao, dissonncias, conflitos e disputas que se processam nesses lugares e

    situaes. Obs.: em duas de nossas frentes de pesquisa, pertinentes aos mercados ilegais e

    informais, a perspectiva comparativa ser incorporada, trabalhando a transversalidade das

    questes postas nas cidades de So Paulo e Rio de Janeiro (cf. Item frentes de pesquisa)

    Tomando a cidade como plano de referncia, esse projeto prope discutir a construo dos

    espaos urbanos a partir de trs eixos analticos, que orientam a formulao das hipteses e

    objetivos do trabalho, bem como a articulao entre as diferentes frentes de pesquisa que o

    compem: a lgica militarizada da gesto urbana; as novas formas de controle, sob o signo da

    policializao das condutas; as novas formas de ativismo, em especial, o ativismo jurdico, que

    vm sendo engendradas e ativadas por essas formas de produo e gesto dos espaos urbanos.

    I.4. Hipteses de pesquisa

    So trs as hipteses gerais que se pretende trabalhar neste projeto:

    Hiptese 1. Em primeiro lugar, trata-se de investigar os diferentes nexos que podem articular a

    produo e gesto dos espaos urbanos e a emergncia de novas formas de controle da conduta,

    em especial aquelas relacionadas a estratgias securitrias de preveno e preveno do crime.

    Mais especificamente, no foco deste projeto esto tecnologias de controle que parecem resultar

    da articulao crescente entre um padro excludente de gesto do espao urbano, da adoo de

    medidas de exceo e do objetivo de regular condutas urbanas consideradas de risco, tudo em

    nome de uma certa concepo de ordem pblica e de um certo ideal de civilidade. A inscrio de

    certas condutas nas esferas da desordem e do risco parece passar, cada vez mais, pelo trabalho de

    promoo e venda da cidade e de lugares da cidade como espaos seguros e confiveis para o

    mercado. Nesse tpico, a hiptese que nos interessa explorar diz respeito aos nexos entre formas

    de controle, gesto de espaos urbanos e produo dos mercados (e da cidade como mercado).

    Nessa chave de interpretao, a organizao dos chamados megaeventos globais, tais como a

    Copa do Mundo e as Olmpiadas, faz as vezes de instrumento analtico estratgico, na medida

    em que pe uma lupa sobre os processos de produo e gesto de espaos urbanos

    crescentemente controlados e seletivos na perspectiva do consumidor solvente.

    Hiptese 2. Se verdade que o endurecimento penal e as novas formas de controle inscrevem-se

    na produo e gesto dos espaos urbanos, tm tambm por efeito uma reconfigurao dos

    ilegalismos urbanos e de suas territorialidades. Nesse ponto ser importante recuperar a noo de

    gesto diferencial dos ilegalismos proposta por Foucault. Lembremos: ao cunhar essa noo

    no Vigiar e Punir (1975), Foucault desloca a discusso da tautolgica e estril binaridade

  • 16

    legal-ilegal, para colocar no centro da investigao os modos como as leis operam, no para

    coibir ou suprimir os ilegalismos, mas para diferenci-los internamente, riscar os limites de

    tolerncia, dar terreno para alguns, fazer presso sobre outros, excluir uma parte, tornar til outra,

    neutralizar estes, tirar proveito daqueles (Foucault, 2006, p. 227).12 Colocar no foco de nossas

    pesquisas na reconfigurao dos ilegalismos a via pela qual podemos prospectar os campos de

    tenso e conflito que se produzem nas formas de produo e gesto dos espaos urbanos.

    Essa a hiptese que se pretende explorar: a produo da ordem urbana , a rigor, atravessada

    pelas linhas de fuga que escapam das formas de controle e que circunscrevem, ao mesmo

    tempo, campos de tenso e de conflito que se deslocam nos espaos da cidade. E isso tambm

    faz parte e central para entender as formas de produo e gesto dos espaos urbanos.

    Hiptese 3. As formas de controle inscritas na produo dos espaos urbanos parecem hoje

    configurar campos de tenso e de gravitao de uma conflitualidade urbana, que nos interessa

    investigar. Em termos gerais, nos contextos situados em que se processam essas formas de

    controle, tm se configurado campos de conflito e dissonncias, bem como debates e polmicas

    que, no seu conjunto, fazem deles e de cada um espaos-problema. Os modos de

    problematizao que se processam em cada um deles a questo que nos interessa investigar.

    Mais especificamente, os dispositivos de exceo inscritos na ordem urbana, as gambiarras

    jurdicas de que falamos no incio do projeto, tm dado margem a novas formas de ativismo,

    que operam justamente nesses terrenos incertos entre o direito e a exceo, entre a lei e o

    extralegal. Do ponto de vista deste projeto, nos interessa especialmente o novo ativismo jurdico

    que vem ganhando forma em torno de operadores de direito vinculados Defensoria Pblica do

    Estado de So Paulo. As suas formas de atuao em vrios desses pontos de incidncia dos

    dispositivos de lei e ordem podem nos dar algo como um roteiro de um multifacetado campo

    de disputa que se estrutura na produo da ordem urbana. E isso nos permite avanar a hiptese

    dos dispositivos legais como campo de disputa, ao mesmo tempo em que nos permite deslindar

    as dimenses conflituosas da prpria produo da ordem urbana, nos nexos entre dispositivos

    legais-institucionais, produo da ordem urbana e conflito.

    12 Ilegalismos: no se trata de um certo tipo de transgresso, mas de um conjunto de atividades de diferenciao, categorizao, hierarquizao postas em ao por dispositivos que fixam e isolam suas formas e tendem a organizar a transgresso das leis numa ttica geral de sujeies. Como diz Lascoume (1996), ilegalismos um instrumento de anlise que, no uso que aqui est sendo proposto, permite colocar no mesmo plano de referncia (mas sem dissolv-los em um amlgama confuso) as condutas indesejveis tais como vm sendo objetivadas pelas formas de controle, o comrcio informal que, cada vez mais, parece se situar em terreno ambivalente entre a informalidade e o que passa a ser tipificado como crime, e os mercados ilegais ou criminais que, tambm eles, se reconfiguram em resposta ao endurecimento dos controles e formas de punio, com impactos a serem investigados nas sociabilidades locais nos lugares em que esses mercados se territorializam.

  • 17

    I.5. Objetivos gerais e especficos

    Objetivos gerais:

    1. contribuir para a identificao e a anlise dos nexos que articulam no presente os processos

    de gesto dos espaos urbanos, governo das populaes, instituio de dispositivos

    securitrios e criao de novos mercados;

    2. tomando como fio condutor os campos de conflito e de problematizao que se configuram

    em torno dessas formas de controle e gesto dos espaos urbanos, trazer elementos para uma

    cartografia poltica da cidade.

    Objetivos especficos:

    1. recompor e problematizar as noes de "ordem pblica" e "civilidade" que figuram nas

    justificativas para a adoo de diferentes estratgias de interveno no espao urbano;

    2. analisar os diferentes modos pelos quais a noo de "risco" ganha centralidade nessas

    estratgias de interveno urbana, redefinindo o sentido das expresses "vulnerabilidade" e

    "situaes de risco" e abrindo o caminho para a aproximao crescente entre poltica social e

    poltica de segurana;

    3. discutir a natureza e o alcance do processo contemporneo de militarizao da segurana

    pblica no interior das estratgias de gesto dos espaos urbanos, policializao das condutas

    e criao de novos mercados, com nfase na "inflao semntica" da noo de guerra;

    4. refletir sobre o papel que a adoo de dispositivos jurdicos de exceo joga em diferentes

    estratgias de interveno no espao urbano, bem como identificar e analisar os seus regimes

    de verdade e visibilidade;

    5. situar o desenvolvimento de estratgias de controle seletivo de fluxos e circulaes de

    pessoas, bens, servios e informaes na cidade, com nfase na emergncia de novas formas

    espacializadas de governo da conduta;

    6. indicar os modos pelos quais esses controles de fluxos e circulaes se articulam a diferentes

    estratgias de criao de novos mercados no contexto de um processo mais amplo de

    mercantilizao crescente dos espaos urbanos;

    7. mapear topologias especficas de poder em "contextos situados", tendo em vista as vrias

    possibilidades de articulao entre distintas tecnologias de poder (soberania, disciplina e

    governamentalidade);

    8. reconstruir os fluxos dos mercados criminais urbanos e seus modos de gesto e analisar as

    formas pelas quais eles se articulam ao desenvolvimento de novas prticas de controle e

  • 18

    dispositivos jurdicos de exceo;

    9. discutir o papel reconfigurado da priso nesse novo cenrio, a partir de um posto de

    observao que desloca a viso panptica para os vasos comunicantes que simbolizam a

    experincia prisional muito mais em sua transitividade do que em sua permanncia.

    10. analisar as formas de resistncia que emergem dos campos de conflito que se armam em

    torno desses dispositivos de controle e de exceo e que se tm cristalizado no chamado

    ativismo jurdico de redes e instituies como a Defensoria Pblica;

    I.6. Frentes de pesquisa

    I.6.1. Pesquisa terico-bibliogrfica

    Marcos Alvarez (PP) - USP Laurindo Dias Minhoto (PA) USP

    Mais do que uma pesquisa bibliogrfica, trata-se de uma pesquisa terica voltada a colocar

    nossas questes de pesquisa em sintonia com os debates contemporneos em torno do que vem

    sendo definido como cidade neoliberal. Nesse caso, trata-se de investigar, de um ponto de

    vista terico, os diferentes nexos que podem articular a produo e gesto dos espaos urbanos

    em muitas cidades contemporneas e as lgicas expansivas de mercado. A questo que nos

    interessa investigar: quais seriam os nexos especficos que articulam esses processos securitrios

    aos modos de governo de muitas das cidades do capitalismo global, para alm das

    particularidades que singularizam diferentes contextos locais e o modo peculiar como cada um

    se liga a tendncias de mudana urbana de carter mais geral? Sem a pretenso de responder de

    modo exaustivo a essa indagao, a pesquisa ir procurar lanar luz sobre a forma como algumas

    das tendncias gerais de mudana urbana no capitalismo global direcionam os modos de governo

    das cidades para a adoo de formas seletivas e excludentes de controle do espao urbano que

    esto na raiz dos processos securitrios do encarceramento em massa e do urbanismo militar.

    Por trs da disseminao dessas novas formas de controle parece se encontrar algo como

    uma esttica hegemnica e uma poltica da viso que prescrevem "quem ou o que pode ou no

    pode ser visto" no espao urbano (Coleman, 2004: 28). No centro dessa poltica da viso - dos

    juzos especficos de normalidade e das imagens seletivas de ordem e de civilidade que se quer

    difundir pela organizao do espao urbano - pode-se flagrar, salvo engano, o sujeito econmico

    e o thos empreendedor da governamentalidade neoliberal, tal como analisada por Foucault, e

    entendida aqui como a arte de governar voltada disseminao da forma empresa pelo corpo

    social. Nesse sentido, verifica-se uma espcie de semitica do espao pela qual se trata de extrair

  • 19

    de certos lugares e de inscrever em suas arquiteturas mensagens assecuratrias da ordem,

    destinadas no s dissuaso de potenciais condutas desviantes como tranquilizao de

    consumidores, turistas e empreendedores urbanos (Herbert & Brown, 2006).

    A inscrio de certas condutas nas esferas da desordem e do risco passa cada vez mais,

    salvo engano, pelo trabalho de promoo e venda da cidade e de lugares da cidade como

    produtos de marca. A esse respeito, o insight de David Harvey sobre o sentido do planejamento

    urbano contemporneo tem efeito fulminante: o que est em jogo aqui o poder do capital

    simblico coletivo, das marcas especiais de distino atribudas a certos lugares, com poder

    significativo de direcionamento dos fluxos de capital (2012: 103).

    Desse ponto de vista, trata-se compreender de que maneira as novas formas de controle

    que hoje se disseminam por muitas cidades globais esto estreitamente articuladas instituio

    de juzos de normalidade construdos imagem e semelhana do homo oeconomicus e da

    forma empresa, bem como inscrio no espao urbano de marcas comercializveis de distino.

    Procedimentos de pesquisa: sob coordenao do Prof. Dr. Laurindo Dias Minhoto (PA),

    a pesquisa dever contar com um Bolsista de Iniciao Cientfica encarregado de pesquisa

    bibliogrfica nos campos da sociologia do crime e da punio e das cidades, bem como o

    levantamento de dados sobre intervenes securitrias e encarceramento em massa em cidades

    globais.

    I.6.2. Frentes empricas de pesquisa e suas questes

    Nas trs frentes empricas descritas abaixo, os pesquisadores responsveis e suas

    respectivas equipes apoiam-se em larga experincia prvia de pesquisa, contando com resultados

    que deram origem a significativa produo acadmica sobre os temas em questo. As pesquisas

    aqui propostas tomam, portanto, como patamar e ponto de partida experincias consolidadas em

    anos recentes e em curso na prtica cientfica dos pesquisadores envolvidos.

    I.6.2.A. Os mercados ilegais e informais

    Coordenao: Fernando Salla (PA) NEV-USP

    A hiptese geral que se pretende explorar nessa frente de pesquisa a de que as novas

    formas de controle e gesto dos espaos urbanos tm por efeito uma reconfigurao dos

    ilegalismos urbanos, seus modos de articulao e organizao e suas territorialidades; incidem

    igualmente nas trajetrias dos que so afetados mais diretamente pelos dispositivos de controle e

    punio, notadamente adolescentes e jovens adultos. Nos quatro campos empricos

    contemplados por essa frente de investigao, o objetivo acompanhar e analisar essas

  • 20

    reconfiguraes, entendendo que elas dizem respeito igualmente aos modos como espaos e

    territorialidades urbanas so produzidos como campos de ao, interveno, conflito e disputa.

    1. O comrcio ambulante e a gesto dos espaos urbanos

    Daniel Veloso Hirata (PA) LAPS-USP, NECVU-UFRJ Carolina Grillo (PA) NECVU-UFRJ Carlos Freire doutorando PPGS-USP

    O comrcio ambulante tema importante na gesto e controle dos espaos urbanos das

    principais metrpoles do pas pela sua grande concentrao em reas de intensa circulao de

    pedestres como terminais de nibus, metr, hospitais e centros comerciais; pela concorrncia e

    disputa da riqueza circulante nas cidades com outras formas de comrcio estabelecido; e enfim,

    por ser foco de tenses e conflitos entre agentes pblicos e privados em torno do uso e ocupao

    do solo urbano. No ponto de articulao dessas dimenses, esta pesquisa tem como objetivo

    problematizar as prticas de governo que incidem sobre o comrcio ambulante no que concerne

    lgica de produo e gesto e controle dos espaos urbanos.

    Beneficiando-se da possibilidade de uma perspectiva comparativa entre So Paulo e Rio de

    Janeiro, que por contraste poder iluminar diferenas especficas que marcam a experincia

    paulista, o trabalho de campo ser realizado nos principais centros comerciais das duas principais

    cidades brasileiras: So Paulo, na regio do Brs e da 25 de maro, sobretudo em torno do

    espao conhecido como feira da madrugada; e Rio de Janeiro, no Mercado Popular da

    Uruguaiana e suas adjacncias no centro da cidade. Em ambos os casos, so reas centrais da

    cidade que se tornaram focos privilegiados de interesse e intervenes governamentais e que,

    portanto, passaram por um profundo processo de transformaes nas ltimas dcadas.

    Em nome da guerra pirataria e guerra ao crime organiza-se um combate ao comrcio

    de rua que se inscreve, de ponta a ponta, nos amplos programas de interveno urbana em curso

    em ambas cidades. Trata-se de projetos de renovao urbanstica e desenvolvimento econmico

    das regies centrais, onde se localiza de forma mais intensa o comrcio informal. Sob a lgica da

    competio entre cidades para atrair fluxos econmicos, a represso ao comrcio ambulante

    pode ser vista como parte do dispositivo pelo qual se reorientam os fluxos econmicos que

    passam pelos espaos centrais da cidade. Esses projetos de revitalizao tm uma implicao

    direta nas polticas de gesto dos espaos: em que lugares sero permitidos vendedores

    ambulantes mesmo com incentivos do poder pblico, aonde eles sero apenas tolerados e em

    quais outros eles sero reprimidos a qualquer custo.13

    13 Em So Paulo, grandes projetos de interveno esto em curso na regio central como Nova Luz, Novo Parque Dom Pedro e o Circuito das Compras; no Rio de Janeiro existem igualmente projetos de revitalizao chamados Corredor Cultural,

  • 21

    A pesquisa visa problematizar essas prticas de governo a partir de trs hipteses, com

    uma importante sincronia entre as duas cidades:

    Hiptese 1: a relao que se estabelece entre a maneira como vem se reconfigurando a

    gesto governamental dos espaos urbanos e a recomposio desses mercados em So Paulo e no

    Rio de janeiro. Procuramos demonstrar que uma transformao ocorreu nas ltimas dcadas no

    que tange tanto aos programas de represso e fiscalizao do comrcio ambulante como aqueles

    voltados sua integrao econmica e urbanstica provocando um grande impacto na forma pela

    qual esses mercados se inserem no conjunto das cidades.

    Se a represso ao comrcio de rua uma evidencia incontornvel, sua lgica e modus

    operandi apresenta componentes novos, que no podem ser reduzidos a uma simples reposio

    de uma criminalizao de tempos passados. As intervenes do poder pblico sobre o comrcio

    ambulante passaram a se orientar cada vez mais sob a prerrogativa da militarizao de seus

    instrumentos. De uma maneira geral, so formas de controle que correspondem, em grande

    medida, logica do urbanismo militar (Graham, 2010), operando sob formas de territorializao

    do controle ostensivo, feito por programas que visam a ocupao dos espaos urbanos e de uma

    orientao de carter blico de combate criminalidade14.

    Como consequncia da maior militarizao dos espaos urbanos, claramente observvel

    o confinamento do comrcio ambulante em ambientes fechados, que emerge acompanhado aos

    incentivos formalizao no interior das galerias atravs da figura jurdica do Micro

    Empreendedor Individual (MEI) criada pelo governo federal em 2009. Os instrumentos

    privilegiados so o estimulo forma empresa, o microcrdito e os ambientes fechados, feitos a

    partir de parcerias para ou semiestatais com diferentes organizaes sociais, que constituem toda

    uma srie de programas de incentivo ao empreendedorismo e acesso ao crdito que produz uma

    metamorfose (CASTEL, 1995) dos vendedores ambulantes, de quase-trabalhadores em

    quase-empresas.

    Hiptese 2: essas formas de incidncia governamental acabaram por deslocar o campo da

    gesto dos ilegalismos (Foucault, 1996) e suas territorialidades, por meio de uma redefinio das

    Porto Maravilha e o projeto Bacana. Em ambos os casos, ainda que de maneiras diversas, tais projetos procuram tornar o centro uma regio atrativa para o investimento privado com vistas ao desenvolvimento econmico das cidades. 14 Em So Paulo, houve, primeiro, a mudana de atribuies de responsabilidade pela fiscalizao dos agentes fiscais da prefeitura para a Guarda Civil Metropolitana (GCM) em 2004; depois, em 2009, a delegao das funes de fiscalizao foi transferida a policiais militares (PM) a partir da chamada Operao Delegada. No Rio de Janeiro, em 2009, a recm-criada Secretaria Especial de Ordem Publica (SEOP) lana a chamada Operao Choque de Ordem, que tambm reorganizou a coordenao dos modos de fiscalizao e controle. Sob o imperativo programtico de liberar as ruas para a circulao e de reduzir as aglomeraes em vista da diminuio das situaes potenciais de delito, essas formas de interveno ganham outro sentido, que se sobrepem s normas e legislaes vigentes que regulam a utilizao do espao pblico.

  • 22

    clivagens entre o formal e informal, o permitido e o interdito. De um lado, o comrcio ambulante

    das ruas vem sendo criminalizado em nome do combate pirataria e ao comrcio ilegal. Embora

    a contrafao, como definida judicialmente a pirataria, seja um crime de difcil caracterizao

    que muito raramente resulta em inqurito e judicializao, esta prerrogativa frequentemente

    utilizada como justificativa e artifcio para as aes contra os ambulantes. Uma srie de artigos

    correlatos so mobilizados nessas operaes para o enquadramento dos ambulantes, tais como

    sonegao fiscal, descaminho, risco sade pblica, desacato autoridade, resistncia e at

    formao de quadrilha. De outro lado, isso tem alimentado o mercado imobilirio das galerias

    comerciais ou shoppings populares, aos quais os ambulantes recorrem como alternativa. Em So

    Paulo, a busca pelos pequenos boxes, j coloca o preo do metro quadrado em galerias da 25 de

    maro e do Brs entre os mais caros da cidade. Isso reorienta os conflitos nas duas cidades: da

    disputa pela legitimidade em desenvolver o trabalho no espao pblico para a negociao

    privada de um contrato de aluguel.

    Essas duas formas de interveno, ainda que funcionando a partir de legibilidades

    heterogneas entre si, utilizando instrumentos de ao muito distintas, aparecem de forma

    coordenada e seletiva. Isso significa que uma composio de prticas governamentais bem

    distintas parece convergir em um vetor comum de regulao das condutas. Sendo o

    enquadramento governamental do campo de ao organizado dessa maneira, a distribuio dos

    grupos atuantes conduzida em uma certa direo, segundo certos critrios, que se no definem,

    procuram estabelecer os horizontes normativos de ao dos participantes do setor do comrcio

    ambulante. O fundamental que isso reordena completamente o campo problemtico em torno

    do qual a questo dos vendedores ambulantes se constituiu, alterando o referente oficial de

    definio do que formal/informal, legal/ilegal, lcito/ilcito.

    Hiptese 3: como consequncia das hipteses anteriores, a reconfigurao do campo do

    conflito, construdo no mesmo ponto de incidncia das estratgias militarizadas de controle

    urbano e de empresariamento e acesso ao crdito. Essas intensas transformaes atuais

    reordenam tanto o controle quanto a resistncia na venda ambulante, desativam e reorganizam o

    campo das disputas anteriores. Da mesma forma em que se redefinem os referentes do que

    considerado legal/ilegal, desloca-se tambm o campo do conflito e atuao das organizaes dos

    vendedores ambulantes. De um lado, ser importante entender de que maneira essas

    organizaes passam a atuar de forma distinta, feita por meio de uma gramtica das

    oportunidades empreendedoras, ou disputando os termos mesmos da forma pela qual os

    limiares da formalizao so realizados. De outro, caber ainda entender como se reorganiza a

  • 23

    parcela que no est mobilizada nessas organizaes ou que procuram simplesmente conseguir

    manter suas atividades comerciais em outros espaos.

    Procedimentos de pesquisa: observao etnogrfica; entrevistas com os principais atores

    em ao: comerciantes, ambulantes, fiscais de prefeitura, gestores urbanos; consulta de fontes

    documentais: CPI da Pirataria; Relatrio da Subcomisso sobre a Feira da Madrugada/So Paulo;

    consulta a jornais e revistas e outras fontes que permitam realizar a cartografia dos grupos e

    indivduos citados nos documentos supra citados; acompanhamento do cadastramento dos

    ambulantes em So Paulo e Rio de Janeiro: o cadastramento um momento decisivo de

    incidncia governamental porque estabelece quais trabalhadores sero includos nos espaos

    formalmente destinados venda de mercadorias, assim como os critrios mobilizados e sua

    aplicao efetiva. Em So Paulo isto vem sendo realizado por meio da realocao dos

    vendedores na chamada Feirinha da Madrugada e depois de sua reforma mais recente. No Rio de

    Janeiro, isto foi feito por meio do Cadastro nico dos Ambulantes pela SEOP. A perspectiva

    comparativa permitir avaliar esta importante forma de incidncia normativa das formas de

    governo e as estratgias que os ambulantes mobilizam para se inserir formalmente na atividade.

    Prevemos a participao de um bolsista de Iniciao Cientfica (IC) e um bolsista de

    Treinamento Tcnico (TT).

    2. Mercados ilegais, suas redes e territorialidades urbanas

    Vera da Silva Telles (PP, PR) USP, LAPS Carolina Grillo (PA) NECVU-UFRJ Daniel Hirata (PA) LAPS-USP, NECVU-UFRJ

    A gesto militarizada dos espaos urbanos especialmente evidente no caso das polticas

    de segurana pblica voltadas ao combate ao narcotrfico e ao chamado crime organizado.

    Nas cidades de So Paulo e Rio de Janeiro, a intensificao progressiva da gesto militar dos

    espaos pode ser observada na maneira como o Estado se faz presente nas reas pobres e, mais

    especificamente, naquelas em que h pontos conhecidos de venda de drogas. Tanto o modelo das

    operaes pontuais de incurso policial nas favelas para apreenso de drogas, armas, dinheiro e

    pessoas, quanto a vigente expanso das ocupaes de territrio destinadas implantao das

    Unidades de Polcia Pacificadora (UPPs) inscrevem-se na gramtica blica de promoo da

    ordem pblica. Algo semelhante verifica-se em So Paulo, com a vigncia de polticas de

    segurana cada vez mais direcionadas militarizao dos espaos, a exemplo das assim

    chamadas Operaes Saturao.

    A pesquisa aqui proposta tem como objetivo compreender de que maneira essas polticas

    afetam e produzem reconfiguraes nas dinmicas territoriais da venda varejista de drogas, bem

  • 24

    como nas formas de sociabilidade local dos moradores desses lugares. Trata-se de examinar de

    que maneira as prticas de represso e preveno da criminalidade afetam no apenas o cotidiano

    dos moradores, mas tambm a configurao das formas de territorialidade dos mercados legais e

    a articulao entre diferentes atividades ilcitas.

    Para bem qualificar essas questes, ser importante a perspectiva comparativa entre So

    Paulo e Rio de Janeiro, como estratgia para delinear aspectos mais gerais da tendncia de

    militarizao da gesto urbana e suas implicaes, bem como identificar algumas das

    especificidades locais em ambas as cidades.

    Em ambos os estados, os governos tm aumentado seus investimentos na pauta da

    segurana pblica e apostado mais no policiamento ostensivo do que em dispositivos de

    investigao. As expectativas de reduo da criminalidade apoiam-se no suposto de uma

    preveno pelo efeito dissuasivo do aumento do efetivo, equipamentos e armamento das polcias,

    bem como no crescimento das prises. Apesar de se apresentarem de formas diferentes nas duas

    cidades, a intensificao do aparato repressivo e a crescente lgica militar no controle da venda

    de drogas, so acompanhadas por uma expansiva policializao das condutas em favelas e

    bairros populares.

    Nas favelas ditas pacificadas, no Rio de Janeiro, tm se multiplicado denncias por parte

    de moradores contra abusos de autoridade e ingerncia dos policiais nas formas de utilizao de

    reas de uso comum e espaos pblicos. Proibio de realizao de festas e bailes funks, controle

    do volume de som, revistas policiais frequentes e tambm constrangedoras, invaso de domiclio

    esto entre as queixas mais frequentes. Os pontos de venda persistem e, se os enfrentamentos

    armados dos anos anteriores diminuram, policiais e traficantes terminam por se ajustar para

    compartilhar o mesmo espao.15

    Diferente do Rio de Janeiro, em So Paulo, os grupos de traficantes nunca chegaram a

    exercer o domnio territorial, domnio armado, nos bairros em que atuam. As relaes, portanto,

    entre policiais e traficantes sempre se deram sob outras dinmicas, regidas pelas modalidades

    territorializadas dos mercados de proteo, que seguem, em grande medida, a distribuio das

    delegacias nos bairros perifricos e seus respectivos permetros de atuao (HIRATA, 2012).

    Podemos supor que a intensificao do policiamento intensivo e militar afeta os mercados de

    15 A transao da mercadoria poltica (quer dizer: pagamento de proteo, o arrego em linguagem nativa) continua a primar nessas relaes, ao mesmo tempo em que os traficantes evitam o confronto com policiais, monitorando a sua movimentao, evadindo-se quando eles se aproximam (GRILLO, 2013). Percebe-se, portanto, que alm de interferirem no cotidiano dos moradores, os modos de atuao da polcia contribuem para moldar o funcionamento dos mercados ilegais. Podemos tambm supor que os acertos (e desacertos) entre policiais e traficantes, entre estes e moradores tambm se redefinem, sob formas que interessa averiguar. ainda de se notar que, nas favelas pacificadas, tem aumentado o registro de desaparecimentos e as chamadas mortes no esclarecidas, o que sinaliza uma combinao entre dispositivos legais e extralegais de gesto dos micro-conflitos locais e, em particular, as possveis desavenas na gesto dos negcios ilegais.

  • 25

    proteo e o custo da mercadorias polticas transacionadas nesses locais (entre pagamentos

    regulares e a extorso). Por outro lado, assim como acontece nas favelas pacificadas, mas sob

    outras modalidades e outras logicas territoriais, a combinao de represso e policializao de

    condutas tem se intensificado nos bairros perifricos da cidade de So Paulo: fechamento de

    pontos de encontro de jovens e adolescentes, proibio de bailes funks, revistas policiais, prises

    arbitrrias a pretexto de condutas suspeitas, etc. Os controles sobre os pontos de droga e essas

    modalidades de governo das condutas no acontecem necessariamente nos mesmos territrios

    e tampouco parecem estar internamente articulados na lgica da ocupao militar, como

    acontece no Rio de Janeiro. No entanto, h sobreposies de territrios e de formas de

    interveno das foras da ordem. Nesse caso, interessa averiguar o modo como essas formas de

    controle afetam, de um lado, as estratgias de venda no mercado varejista de drogas e, de outro,

    as formas de sociabilidade dos moradores desses locais, bem como as possveis redefinies dos

    delicados jogos de distncia e proximidade que em So Paulo, tanto quanto no Rio de Janeiro,

    regulam as relaes do moradores com os homens do crime.

    Tanto no Rio de Janeiro como em So Paulo, uma importante bibliografia de referncia e

    pesquisas recentes sugerem pistas a serem exploradas, pertinentes aos nexos entre histria

    urbana, crime (seus tipos, suas formas de articulao, seus modos de atuao) e suas redefinies

    em funo das economias urbanas, mas tambm das formas de controle, dos dispositivos de

    incriminao e punio.16 sob essa perspectiva que interessa averiguar os impactos das novas

    formas de controle social sobre as redes locais da criminalidade e suas respectivas estratgias

    adaptativas desenvolvidas para dar continuidade aos negcios ilegais. Se isso afeta, certamente,

    o cotidiano da vida dos moradores nesses locais, afeta igualmente o modo como as polticas de

    segurana so colocadas em prtica, contribuindo igualmente para mold-las.

    Procedimentos de pesquisa: Em So Paulo, a pesquisa ser realizada em um bairro da

    periferia paulista sob influncia do PCC. No Rio de Janeiro, uma favela ocupada pela UPP, mas

    ainda vinculada ao Comando Vermelho. Em ambos os lugares, a pesquisa ser feita por meio da

    observao participante: alm de frequentar os locais, participar de suas rotinas e eventos sociais,

    16 Ser importante recuperar e ter como referncia uma j vasta bibliografia sobre a criminalidade organizada no Rio de Janeiro, o surgimento das chamadas faces, seus modos de territorializao nas favelas cariocas e as vias pelas quais os ilegalismos populares e prticas criminais diversas passaram, a partir dos anos 1980, a gravitar em torno da economia da droga sob a lgica das faces e suas disputas territoriais. Em So Paulo, trata-se de uma histria mais recente, com diferenas importantes em relao ao Rio de Janeiro, seja pelo seus modos de territorializao, seja pelo fato de no existirem faces concorrentes em disputa pelo controle de territrio e do rendoso negcio das drogas. O chamado Primeiro Comando da Capital (PCC), surgido nas prises paulistas no incio dos anos 1990, passou a deter o controle da economia da droga a partir do anos iniciais da dcada de 2000, espalhando sua presena por boa parte das periferias paulistas.

  • 26

    sero realizadas entrevistas com moradores, pessoas envolvidas em atividades ilegais (trafico,

    roubo) e, na medida do possvel, com policiais que atuam na regio.

    A equipe ser formada por pesquisadores que j realizaram pesquisas nessas regies, tendo

    portanto familiaridade com esses territrios, bem como com as estratgias de pesquisas

    adequadas a esses temas difceis. Em So Paulo, Daniel Hirata e Vera Telles fizeram uma

    pesquisa de longa durao no local escolhido e, sob uma abordagem etnogrfica, trataram dos

    agenciamentos locais da venda de drogas na regio (HIRATA, 2010; TELLES, 2010, 2012;

    TELLES e HIRATA, 2007, 2010). No Rio de Janeiro, Carolina Grillo (2012) realizou um estudo

    etnogrfico, ao longo de mais de dois anos, em um complexo de favelas controlado, na poca da

    pesquisa, pelo Comando Vermelho e, atualmente, sob ocupao da UPP.

    3. Os mercados criminais de automveis vistos a partir das periferias

    Gabriel Feltran (PP) UFSCar, CEM, Cebrap Liniker Giamarin Batista - mestrando PPGAS-Unicamp Jos Douglas dos Santos Silva - mestrando PPGS-UFSCar Marcos Vincius Guidotti Silva - graduando Cincias Sociais UFSCar

    Nesta frente de investigao, que rene pesquisadores que pelo menos desde 2005 se

    interessam diretamente pela questo do mundo do crime nas periferias de So Paulo, se

    pretende mapear empiricamente, de modo exploratrio e a partir de trs territrios distintos da

    regio metropolitana de So Paulo, os modos de funcionamento do mercado de carros e motos

    roubados, a partir de uma perspectiva especfica e pouco estudada na bibliografia: a dos agentes

    incriminados desse mercado, habitantes das periferias da cidade.

    Os pesquisadores partem do pressuposto de que o mercado de automveis tem relevncia

    central para a economia paulista e brasileira tanto pela centralidade com que a poltica de

    incentivo ao transporte rodovirio se estabeleceu nas ltimas seis dcadas no estado e no pas,

    quanto pela atualidade do tema do transporte e mobilidade urbanas para o conjunto do

    crescimento econmico. Alm disso, e em consonncia com outras dimenses do projeto, partem

    das constataes analticas de que as fronteiras entre os mercados legais e ilegais, vistas aqui a

    partir dos mercados de carros, motos e autopeas, se constitui como porta de entrada

    fundamental para as anlises do conflito social e poltico contemporneos.

    Na cidade de So Paulo, metrpole na qual a questo da mobilidade absolutamente

    central inclusive politicamente os automveis so pontos de gravitao da definio de

    potenciais e limites da sociabilidade urbana, mas tambm da demonstrao de capacidade de

    consumo e usufruto de bens socialmente valorizados, o que radicalizado nas periferias urbanas,

    sobretudo a partir da ltima dcada. Os carros e as motos so, h tempos e mais radicalmente

  • 27

    hoje, dada a expanso do consumo destes produtos entre os pobres, alm de garantia patrimonial

    dos proprietrios, bens simblicos de definio de status, marcas de determinado estilo de vida e

    mediadores de interaes sociais, econmicas e polticas as mais significativas.

    Em pesquisa de campo nas periferias urbanas, no apenas percebe-se que se fala muito

    sobre carros e motos, como efetivamente se pode perceber, a partir dessas falas e das formas de

    lidar com os veculos, inmeros agenciamentos entre modos de vida, mercados legais e ilegais,

    bem como os modos de regulao formal-estatal e informal, ilegal ou mesmo criminal dos

    conflitos sociais, econmicos e polticos em questo. Nas periferias da cidade, percebe-se que as

    formas de viver em So Paulo com ou sem carros e motos muito distinta, e demarca circuitos

    urbanos absolutamente dspares; alm disso, nesses ambientes a relevncia de cuidar, lavar,

    incrementar com acessrios, trocar ou comprar os veculos assunto corriqueiro, que atravessa

    geraes sem desconsiderar as particularidades de cada perodo e as mudanas inscritas nas

    mquinas, nem nos modos de obt-las.

    A partir de diversas situaes j obtidas e relatadas em campo, mas tambm de novas

    imerses nos territrios estudados, pretende-se, a partir de pesquisa entre os agentes inscritos nos

    mercados ilegais de carros e motos (adolescentes e jovens que fazem furtos ou assaltos de

    veculos automotores, receptadores e empresrios do ramo de desmanches, alm de revendedores

    de carros e autopeas originalmente furtados ou roubados), compreender: i) os modos de

    funcionamento dos mercados monetarizados de carros e motos roubados, a partir das periferias

    da cidade (agentes, formas de atuao, valores praticados, formas de obteno dos veculos,

    modos de circulao, agenciadores formais e informais, desmanches, etc.); ii) as fronteiras entre

    mercados legais e ilegais de carros e motos ilegalmente obtidos, alm das formas de regulao

    desses mercados, que evidentemente acionam uma imensa gama de atores, dos mais aos menos

    legtimos socialmente (de adolescentes armados a grandes companhias seguradoras, de policiais

    paisana a grandes revendas das grandes marcas, de territrios visados do centro da cidade, s

    mais distantes periferias da metrpole). Aposta-se, enfim, que descrever esses circuitos pode nos

    levar a compreender linhas de fora social, econmica e poltica inscritas centralmente no

    problema social e urbano de So Paulo, articulando descrio de mercadorias e fluxos de capital

    aos seus modos correlatos de subjetivao, territorializao e, sobretudo, regulao poltica e

    espaos e populaes. A questo da violncia est inscrita nessas regulaes centralmente e

  • 28

    serve mesmo como parmetro de definio de que territrios e grupos sociais sero mais ou

    menos incriminados.17

    Procedimentos de pesquisa: A equipe de pesquisadores conduzir etnografias focadas na

    questo dos carros e motos furtados ou roubados, a partir de trs regies distintas da metrpole

    paulista: i) o distrito de Vila Operria (nome fictcio), distrito da Zona Leste da cidade de So

    Paulo, onde dois dos pesquisadores fazem trabalho de campo desde 2005; ii) o municpio de

    Luzia (nome fictcio), na zona oeste da metrpole paulista, onde um dos pesquisadores foi

    morador durante duas dcadas e, atualmente, realiza sua pesquisa de mestrado acerca das

    interaes entre dinmicas criminais e polticas relacionadas regulao dos homicdios; iii)

    uma grande favela da zona sul da cidade de So Paulo, chamada aqui Favela do Ar (nome

    fictcio), na regio de onde provm um terceiro investigador da equipe proposta. Em todos os

    territrios, so diversos os relatos j obtidos a partir de conversas, das mais formais s mais

    informais, com interlocutores diretamente vinculados ou inscritos nos mercados ilegais de carros

    e motos. A pesquisa ora proposta se realizar a partir de um conjunto de quatro procedimentos

    centrais, eminentemente empricos e analticos: i) recuperao sistemtica da cada trecho de

    dirio de campo, entrevista ou situao vivenciada junto a agentes inscritos nos mercados ilegais

    de carros e motos nas periferias; ii) retomada das incurses etnogrficas aos territrios

    p