territórios de conflito: representações desde a cidade medieval europeia, ......

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p. 0 TERRITÓRIOS DE CONFLITO: REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS DA VIOLÊNCIA NA CIDADE DE SÃO PAULO PELO MOVIMENTO PUNK Andre Abreu da Silva Orientador: Valter Martins (PPGH Universidade Estadual do Centro-Oeste) Palavras-chave: São Paulo; violência; movimento punk. Os percursos da violência trilhados pela juventude Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. Bertolt Brecht Das imagens mais recorrentes elaboradas a partir do senso comum, e posteriormente descritas e reproduzidas a respeito dos movimentos de cultura contemporânea da juventude suburbana, entre eles o movimento punk, são quase sempre tingidas pela simbologia da violência. A estigmatização do jovem como vetor de uma suposta violência epidêmica, em boa parte resultado da propaganda massiva dos órgãos de imprensa e dos meios de comunicação de massa, tem garantido a contínua reprodução de um discurso condenatório e seletivo, atribuindo à juventude, de preferência pobre e periférica, uma considerável fração do peso e da culpa das práticas da violência cotidiana nos centros urbanos. Contudo, os fatos históricos 1 não podem desmentir, absolutamente, estas imagens construídas da violência juvenil. Em boa parte, prática bastante associada a traços de uma ‘cultura da virilidade’, de uma expressão ritualística social e de autoafirmação observada nas classes populares através da história, com o predomínio de jovens do sexo masculino. Desde a cidade medieval europeia, protegida por suas muralhas e pacificada através de suas normas de conduta internas, e uma cultura de urbanidade que exaltava o privilégio da segurança, não foi capaz de absorver a todos que almejavam respirar seus ares ordeiros. Do lado de fora dos muros, uma cultura de ‘subúrbio’ era reproduzida pelos excluídos, desobedientes da lei, vagabundos e os demais não assimilados pela urbe (MUCHEMBLED, 2014 p. 90 - 91). 1 Daqui em diante, as discussões e os referenciais teóricos sobre a violência na História, principalmente tendo a juventude ocidental periférica como protagonista, serão baseados na obra de MUCHEMBLED (2014).

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p. 0

TERRITÓRIOS DE CONFLITO: REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS DA VIOLÊNCIA NA

CIDADE DE SÃO PAULO PELO MOVIMENTO PUNK

Andre Abreu da Silva

Orientador: Valter Martins

(PPGH – Universidade Estadual do Centro-Oeste)

Palavras-chave: São Paulo; violência; movimento punk.

Os percursos da violência trilhados pela juventude

Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.

Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.

Bertolt Brecht

Das imagens mais recorrentes elaboradas a partir do senso comum, e posteriormente descritas e

reproduzidas a respeito dos movimentos de cultura contemporânea da juventude suburbana, entre

eles o movimento punk, são quase sempre tingidas pela simbologia da violência.

A estigmatização do jovem como vetor de uma suposta violência epidêmica, em boa parte resultado

da propaganda massiva dos órgãos de imprensa e dos meios de comunicação de massa, tem

garantido a contínua reprodução de um discurso condenatório e seletivo, atribuindo à juventude, de

preferência pobre e periférica, uma considerável fração do peso e da culpa das práticas da violência

cotidiana nos centros urbanos.

Contudo, os fatos históricos1 não podem desmentir, absolutamente, estas imagens construídas da

violência juvenil. Em boa parte, prática bastante associada a traços de uma ‘cultura da virilidade’,

de uma expressão ritualística social e de autoafirmação observada nas classes populares através da

história, com o predomínio de jovens do sexo masculino.

Desde a cidade medieval europeia, protegida por suas muralhas e pacificada através de suas normas

de conduta internas, e uma cultura de urbanidade que exaltava o privilégio da segurança, não foi

capaz de absorver a todos que almejavam respirar seus ares ordeiros.

Do lado de fora dos muros, uma cultura de ‘subúrbio’ era reproduzida pelos excluídos,

desobedientes da lei, vagabundos e os demais não assimilados pela urbe (MUCHEMBLED, 2014 p.

90 - 91).

1 Daqui em diante, as discussões e os referenciais teóricos sobre a violência na História, principalmente tendo a

juventude ocidental periférica como protagonista, serão baseados na obra de MUCHEMBLED (2014).

p. 1

Apesar de situar-se sob constante vigilância, na hipótese de possíveis atos de desobediência ou

eventualidade de transgressão da disciplina local imposta pelo poder citadino, os habitantes do

mundo ‘de fora’ estabeleceram racionalidades, códigos de sociabilidade e condutas peculiares.

A defesa da honra em praça pública, a virilidade e a masculinidade eram valores defendidos, se

fosse necessário, até a morte. A violência no universo popular possuía legitimidade, inclusive

perante os poderes governantes. No caso do descumprimento de algum destes princípios da

moralidade regente no período, a violência era tolerada, e havia uma contemporização ainda maior

se caso o legitimado a cometer tal ato violento fosse um jovem, que atuaria na defesa de sua

honradez e pela imposição de fazer-se forte e vigoroso na cena pública.

Os incidentes e assassinatos eram mais frequentes nos dias destinados às festas populares nos

calendários, momentos em que a concentração popular era maior e estimulava os jovens machos a

disputas por espaço e se destacar dos demais, elementos de rituais masculinos de aprendizagem para

a sobrevivência na vida adulta (MUCHEMBLED, 2014 p. 120).

No final da Idade Média, refletida por transformações das práticas jurídicas na Europa ocidental, são

implementadas algumas medidas civilizatórias, como sistemas de multas contidas em leis mais

rígidas visando a diminuição dos ‘crimes de sangue’.

Também se intensifica a repressão, que conduz a um aumento significativo das punições e suplícios

aos infratores, além de procedimentos inquisitórios temerosos que resultavam em castigos públicos

e, muitas vezes, em pena capital. Naquele mesmo momento, deu se início a um enquadramento mais

rigoroso da juventude pelos poderes estabelecidos (MUCHEMBLED, 2014 p. 94 - 100).

Mais adiante, precisamente no início do século XVII e depois no decorrer do século XIX,

acompanhando a consolidação dos Estados Modernos e mais adiante dos Estados Nacionais, ocorre

uma tendência de ‘domesticação’ da violência (MUCHEMBLED, 2014 p. 195 - 238) que a reduz

sensivelmente dos espaços públicos, mas não a erradica do cotidiano social. Neste recorte temporal,

nota-se uma queda considerável dos casos de homicídio na Europa, tornando-os residuais após a

segunda metade do século XX (MUCHEMBLED, 2014 p. 295).

Tal declínio nas taxas de homicídio não teria talvez alguma relação com os empreendimentos

colonizatórios europeus na América, África e Ásia a partir do século XVI até os processos de

descolonização dos países do continente africano na segunda metade do século XX, transferindo

boa parte da prática da ‘violência legítima’ destes Estados (MUCHEMBLED, 2014 p. 197) para os

locais colonizados?

p. 2

Um dos fenômenos presentes na retomada das gangues de rua europeias a partir do final dos anos de

1950 remete aos scuttlers da cidade de Manchester na Inglaterra, ativos do final do século XIX ao

início do século XX. Jovens organizados em grupos que combatiam outros agrupamentos, ou

indivíduos isolados, atacando uns aos outros com pedras, facas e demais objetos.

Pertencentes às classes operárias do período, atuavam na defesa de sua sobrevivência perante as

hostilidades da vida adulta, e na exibição de sua virilidade e honra. Mentalidade herdada

diretamente da tradição dos jovens rurais e das classes populares medievais.

Hegemonicamente do sexo masculino, mas com grupos de garotas presentes, os scuttlers deveriam

saber demonstrar sua brutalidade e a capacidade de se fazer respeitar na cena urbana.

As gangues scuttlers ofereciam um espaço de convívio distintivo aonde seus membros adquiriam os

valores predominantes no grupo, aonde forjavam uma identidade tradicional e conservadora de suas

classes de origem. Por conta disso, comumente não questionavam em nenhum momento a ordem

estabelecida, mas lutavam pela crença numa tentativa de autoafirmação perante sua própria

condição, em disputa com outros agrupamentos.

É relevante ressaltar que as gangues scuttlers representavam uma minoria dos filhos procedentes das

classes operárias, das quais a maioria dos jovens não se identificava com estes grupos.

As sucessões históricas observadas em matéria de violência correspondem-se a afirmação da

supremacia masculina e do machismo.

Com o incessante declínio da violência física, ela tornou-se residual no século XX na Europa, sendo

que uma grande parte dos jovens contemporâneos são capazes de controlar a agressividade e desviá-

la para confrontos simbólicos, principalmente através do esporte ou da expressão intelectual e

artística.

Os indivíduos transgressores da regra são rotineiramente originários de locais pouco favorecidos,

onde o uso da força e a ostentação da virilidade se conservam como valores imprescindíveis.

(MUCHEMBLED, 2014 p. 280 - 283).

Partindo destes pressupostos, a violência através da História tem ocupado os vácuos de cidadania

nem sempre garantida, tanto pelas políticas governamentais históricas quanto pelas democracias

mais recentes, e deste modo tem se disseminado com mais frequência entre os elos mais suscetíveis

e vulneráveis da hierarquia social. Neste caso, a violência praticada pelos jovens suburbanos,

invariavelmente membros de uma parcela minoritária desta categoria, se configura numa condição

de negação, nem sempre consciente, de uma ordem histórica da qual o indivíduo muitas vezes não

p. 3

se vê representado em seus símbolos civilizatórios, tampouco inserido de forma verdadeiramente

participativa em suas estruturas.

As hordas de jovens que agem com violência no cenário urbano são fenômenos que se repetem

continuamente na história do ocidente (MUCHEMBLED, 2014 p. 283), mas agora inseridos em

uma lógica de urbanização hegemônica.

Após os scuttlers, os anos do pós-guerra a partir do final da década de 1950 foi testemunha do

retorno das gangues e bandos adolescentes, que agora se desenvolvem num ambiente urbano que,

apesar da ausência de guerra, é subordinado quase que completamente ao cotidiano do trabalho

embrutecedor e enfadonho, e a lógica do consumo de bens materiais (MUCHEMBLED, 2014 p. 284

- 285).

A pulsação vertiginosa das ruas, a ausência de espaços de sociabilidade e lazer acessíveis, o

desajuste perante a escola, e a massificação em larga escala são fatores agravantes.

As gangues ofereciam aos jovens um espaço de reconhecimento e aceitação coletiva, uma noção de

pertencimento, acolhimento e segurança nas etapas de desenvolvimento rumo às adversidades do

mundo adulto. Um autêntico “refúgio contra a hostilidade, a incompreensão ou a exclusão”

(MUCHEMBLED, 2014 p. 287).

Os blousons noirs e a geração posterior dos loubards nos anos de 1970, originários das ditas

‘classes perigosas’ dos subúrbios franceses, os teddyboys ingleses, nozens na Holanda, skinn knuttar

na Suécia, stiliagues soviéticos, foram também expressões patentes do ressurgimento da rebeldia

jovem nos últimos anos da década de 1950 e início dos anos de 1960 (MUCHEMBLED, 2014 p.

284).

A partir deste cenário de protagonismo e rebeldia da juventude, a indústria cultural apropria-se do

tema, personificando representações inéditas da juventude para o cinema, a música e a literatura.

Foram projetados alguns ícones na tentativa de representação destes jovens pelos ascendentes meios

de comunicação de massa, como o ator de cinema James Dean em ‘Rebelde sem Causa’ de 1955

(MUCHEMBLED, 2014 p. 284), a escalada do rock com o icônico cantor Elvis Presley em 1954

(FRIEDLANDER, 2006 p. 70 - 73), o movimento literário Beatnik composto por escritores como

Jack Kerouac que lança em 1957 a obra On the Road (ROSÁRIO, 2012 p. 10), entre outros. A partir

desta circularidade, florescem os movimentos de contracultura nos Estados Unidos e na Europa.

Neste recorte temporal, destaca-se uma curva ascendente de efervescência política e revolucionária

em diversas localidades, onde podemos destacar os movimentos de descolonização dos países

p. 4

africanos, entre eles a guerra de libertação da Argélia iniciada em 1954, o triunfo dos jovens

rebeldes na Revolução Cubana em 1959, o surgimento dos situacionistas franceses2, e um pouco

mais adiante os provos holandeses3, movimentos distintos da juventude que adquiriram contornos

políticos mais radicais, que anos mais tarde exerceriam influência e envolvimento direto nos

acontecimentos de Maio de 1968 na França4.

O retorno das gangues, inserida também neste contexto de questionamento da autoridade e das

ordens vigentes, que em casos específicos poderiam inclusive vislumbrar um horizonte de

transformação e subversão do status-quo, não possuíam desejos revolucionários ou de

transformação sistêmica em sua maior parte (MUCHEMBLED, 2014 p. 288), mas acima de tudo

garantir, mesmo que através da força, acesso aos símbolos de poder, e defender seus espaços de

convivência e sociabilidade na cidade.

‘Território e sexualidade constituem os principais pontos identitários. Qualquer que seja o tipo de

bando, o espaço vivido coletivamente possui uma importância extraordinária’ (MUCHEMBLED,

2014 p. 288).

As gangues se territorializam através de códigos de conduta próprios e símbolos de identidade

específicos nas vestimentas, na fala, nos gestos, e em maneiras particulares de apropriação do

espaço urbano, este muitas vezes segregado ao uso dos populares por estratégias dos poderes civis

locais, governamentais e planejamentos urbanísticos separadores.

Estas condutas de ocupação territorial das gangues como, por exemplo, confrontos com grupos

rivais, pichações e demarcações, muitas vezes são transportados pelos seus membros dos subúrbios

para localidades diversas, preferencialmente nas áreas centrais da cidade (MUCHEMBLED, 2014 p.

288 - 289). Áreas de domínios regionais de grupos específicos em constante tensão e disputa, que

invariavelmente resultaria em conflitos violentos. Regiões estas que, por outro lado, ofereciam

algum amparo solidário mútuo para os excluídos rebeldes que, em si, constituíam uma minoria

(MUCHEMBLED, 2014 p. 290) dentre a massa de marginalizados invisíveis do cotidiano dos

subúrbios e periferias das cidades.

2 Sobre a Internacional Situacionista e sua relação específica com o movimento punk, ver a publicação brasileira de

Stewart Home lançada em 1999, Assalto à cultura: Utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do século XX. 3 Um panorama preciso sobre a trajetória deste movimento, ver Provos: Amsterdan e o nascimento da contracultura, de

Matteo Guarnaccia, lançado no Brasil em 2001. 4 Dois relatos distintos sobre o Maio de 68 francês podemos encontrar em Paris: Maio de 68, escrito pelo coletivo inglês

Solidarity um mês após os acontecimentos, traduzido e lançado no Brasil em 2003. O outro é a publicação de Angelo

Quattrocchi e Tom Nairn, O começo do fim: França, Maio de 68, lançado no Brasil em 1998.

p. 5

Na contemporaneidade, o ressentimento dos jovens da periferia excluídos dos oásis da sociedade de

consumo e seus respectivos símbolos de reconhecimento e enquadramento, invariavelmente

poderiam encontrar na prática da violência o meio simples para a obtenção do que lhes é negado

social e culturalmente na maior parte do tempo. Situação que tem sido agravada, principalmente em

períodos de perdas de direitos sociais, desemprego e crises causadas por recessões econômicas

cíclicas das economias ocidentais liberais.

A cidade de São Paulo, a violência e o movimento punk

Violência é o que vejo em todo ponto da cidade

Pessoas que se matam a toa por qualquer banalidade

Elas que às vezes pensam que estão fazendo grande coisa

Brigando por qualquer motivo, aniquilando outro ser vivo

Maldito é esse mundo e imbecis são essas pessoas

Que lutando pela sobrevivência acabam gerando mais violência.

(Lixomania, Violência e Sobrevivência, 1982).

Início dos anos de 1980. O Brasil vive sob o comando do último presidente da ditadura civil militar.

Anêmico mas ainda alerta, o regime observa desde o enterro do Ato Institucional Nº 5 em 1979

(FAUSTO, 2000 p. 272) a saída gradual de seus opositores da sombra da ilegalidade, e uma

vigorosa retomada das ruas pelas movimentações políticas pró-democracia.

Em uma roupagem inédita, a resistência popular e os trabalhadores são animados por um ‘novo

sindicalismo’, aglutinador de multidões a cada assembleia convocada. As greves tem adesão de

massa (FAUSTO, 2000 p. 276-282). As cidades industriais do ABC paulista fervilham. A sociedade

civil, movimentos sociais e operários clamam pelo fim da repressão e pela volta da democracia.

Diretas Já! Mas quem manda ainda é a ditadura.

Na cidade de São Paulo, pequenos grupos jovens têm circulado pelas ruas e, invariavelmente,

chamado certa atenção na cena urbana do momento.

Oriundos em sua maior parte das periferias da cidade, os punks carregam consigo uma linguagem

simbólica própria. Nas vestimentas, no andar, nos gestos provocativos, os punks reproduzem nos

espaços que ocupam, não importa aonde for, uma parcela da cultura suburbana e operária que os

constitui em sua essência, algumas vezes adquirindo contornos radicalmente politizados, outras,

representando valores e construções simbólicas e estéticas específicas de seu meio, muitas vezes

sem qualquer posicionamento ideológico conscientemente declarado, ou de militância político-

partidária definida.

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Tudo acontece na perifeira

Brigas, mortes na periferia

Tiros, sangue na periferia

Na periferia

Tudo acontece na periferia

Bagulho corre direto na periferia

Fazemos muita anarquia na perifeira, na periferia

Tudo acontece na periferia

Periferia.

(Ratos de Porão, Periferia, 1984).

Com exceção das abordagens temáticas polêmicas carregadas de ironia ácida, entre eles a violência

como assunto recorrente nas composições musicais, nas poesias e nas discussões reflexivas

empreendidas pelos integrantes do movimento punk, não têm se mostrado de maneira mais

abrangente uma apologia das práticas violentas ou discursos de ódio nestas produções. Pelo

contrário, a violência tem constituído na maioria das vezes objeto de desconstrução, preocupação e

crítica, apesar do contato constante, da repressão policial, e das ameaças cotidianas nas vivências de

boa parte dos grupos.

Vida violenta, a cada esquina uma cruel batalha

De uma cidade grande

Não acreditamos, não acreditamos,

Não acreditamos na violência

Só vejo pessoas mal encaradas

Revólver na cintura, cassetete na mão

Não acreditamos, não acreditamos,

Não acreditamos na violência

(Olho Seco, Vida Violenta, 1985)

Apesar de elemento estruturante e assunto recorrente nas construções culturais do movimento, não

há indícios significativos de estímulos e discursos explicitamente incentivadores das práticas

violentas.

A violência como fator influente e determinante da cultura do movimento punk, e de boa parte de

seus integrantes, geralmente tem sido expiada artisticamente através dos acordes ríspidos, ritmos

acelerados e letras de protesto contidas nas concepções sonoras e musicais.

Nas festas, a ritualística das danças vibrantes e quase convulsivas, ao som das bandas ao vivo ou da

discotecagem eletrônica com fitas cassetes de punk rock gravadas em casa, os levam ao êxtase,

numa energética e empolgante agitação. Costumes espontâneos talvez para aliviar as pressões,

festejar e, ao mesmo tempo, procurar depurar as violências presentes em suas rotinas diárias.

Em alguns casos, a presença de gangues rivais nas mesmas festas, somadas muitas vezes ao

consumo excessivo do álcool, terminava em tumultos e brigas.

p. 7

Tem violência em Bruxelas, tem violência em Moscou, tem violência em Nova Iorque

E também no Brasil

Têm vinganças religiosas, têm vinganças de raças, têm vinganças de governos

Tenho medo da guerra

Mas quem se importa? Mas quem se importa?

Eu me importo, eu me importo

Pela paz, pela paz

Pela paz em todo mundo

Mais o ódio se espalha, mais aumenta a fome

Mais as vidas são tiradas de dentro dos homens

São mais armas para o mundo, são mais filmes violentos

São crianças aprendendo, matar ou morrer.

(Cólera, Pela Paz em Todo Mundo, 1986).

Os choques e conflitos decorrentes do contato entre diferentes grupos que eventualmente se

encontravam nos mesmos espaços em momentos determinados, muitas vezes têm oferecido algum

pretexto para se construir externamente uma imagem do movimento punk como grupos de

‘vândalos’, ‘arruaceiros’, e uma tentativa de marginalização pretensamente justificada por

acontecimentos e atos sucedidos isoladamente, e que em sua grande maioria não condizem com as

práticas essenciais dos grupos pertencentes ao movimento. Análises muitas vezes sensacionalistas e

sem a profundidade e atenção necessárias para o entendimento da heterogeneidade e complexidade

do movimento punk. Agentes que atuam coletiva ou individualmente, que produzem cultura, que

apesar de enfrentar toda sorte de dificuldades e obstáculos, têm garantido espaços para a expressão

autêntica de uma juventude invisível, em sua maior parte, que habitam os grandes centros urbanos.

Oportunidade para se relacionar, participar e sentir-se pertencente a um grupo, com sociabilidades

específicas de acordo com seus comportamentos, códigos e símbolos próprios.

Apesar da demonstração pública de um discurso de afastamento das iniciativas de atitudes violentas,

os integrantes do movimento punk estão, ao mesmo tempo, muito distantes de integrar grupos

pacifistas em sua totalidade. A rebeldia e a revolta contida nas denúncias direcionadas aos poderes

que os oprimem de maneira severa cotidianamente, conservam em seus gestos uma prática de

violência residual derivada da cultura suburbana e operária dos jovens dos períodos históricos

anteriores, que também eram sistematicamente criminalizados e, de certo modo, culpabilizados

pelas suas condições materiais de existência e seus modos próprios de viver. Contudo, estas

analogias devem ser examinadas com cautela, e com as devidas ressalvas das particularidades

culturais, temporais e de lugar destes agentes, já discutidas de maneira introdutória no decorrer

deste trabalho.

p. 8

Os punks são legítimos herdeiros da marginalidade seminal dos scuttlers e loubards, passando pela

acidez politizada e revolucionária dos situacionistas, até a recepção da influência direta, que depois

se tornou mútua, de seus contemporâneos europeus. Ao lado destes últimos, foram responsáveis por

uma das construções culturais que melhor representou, e continua representando, uma parcela

considerável da vida cotidiana dos jovens das periferias e dos subúrbios urbanos em toda sua

autenticidade. Produções culturais em sua grande parte elaboradas de maneira autônoma e

independente, que naturalmente se distinguem das construções simbólicas usuais da juventude

determinadas pelos interesses da indústria cultural, quase sempre influenciada pelos apetites do

mercado.

Os fatos sobre a relação íntima da juventude com a violência são históricos e concretos. Mas, a

construção simbólica que atribui as práticas de violência principalmente a estereótipos específicos,

estigmatizando principalmente os jovens pobres e periféricos, na maioria das vezes, de forma

generalizada e imprecisa e, seletivamente excluir destas imagens outras categorias e agrupamentos

sociais, também não têm sido historicamente produzidas? E atualmente, quais seriam os interesses

envolvidos nestas construções que, invariavelmente, posicionam a juventude das periferias como

alvo principal do controle, da vigilância, do enquadramento constante e da desconfiança permanente

da sociedade?

[Figura 1 – Fanzine 1999 #2, São Paulo – SP, 1983. Arquivo pessoal]

p. 9

[Figura 2 – Fanzine Alerta Punk #3, São Paulo – SP, 1983. Arquivo pessoal]

[Figura 3 – Fanzine Diário Punkpular, São Paulo – SP, 198?. Arquivo pessoal]

p. 10

[Figura 4 – Fanzine Factor Zero #1, São Paulo – SP, 1983. Arquivo pessoal]

p. 11

[Figura 5 – Capa do LP Pela Paz em Todo Mundo, Cólera, Ataque Frontal, 1986. Arquivo pessoal]

p. 12

Publicações, fontes iconográficas e sonoras

1999 FANZINE. Ed. 02, São Paulo – SP, 1983.

ALERTA PUNK FANZINE. Ed. 03, São Paulo – SP, 1983.

CÓLERA. Pela Paz em Todo Mundo. In: Pela Paz em Todo Mundo, LP - Ataque Frontal, 1986.

DIÁRIO PUNKPULAR FANZINE. São Paulo – SP, S/D.

FACTOR ZERO FANZINE. Ed. 02, São Paulo – SP, 1983.

LIXOMANIA. Violência e Sobrevivência. In: Violência e Sobrevivência, LP - Independente, 1982.

OLHO SECO. Vida Violenta. In: Botas, Fuzis e Capacetes, LP - New Face Records, 1985.

RATOS DE PORÃO. Periferia. In: Crucificados pelo Sistema, LP - Punk Rock Discos, 1984.

Referências bibliográficas

FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2000.

FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma história social. Rio de Janeiro: Record, 2006.

GUARNACCIA, Matteo. Provos: Amsterdan e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad,

2001.

HOME, Stewart. Assalto à cultura: Utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do século XX. São

Paulo: Conrad, 1999.

MUCHEMBLED, Robert. A História da violência – Do fim da idade média aos nossos dias. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2012.

QUATTROCCHI, Angelo; NAIRN, Tom. O começo do fim: França, Maio de 68. Rio de Janeiro:

Record, 1998.

ROSÁRIO, André Telles do. Pé nas encruzilhadas: Trajetos e traduções de On The Road pela

América Latina. Recife: o autor, 2012.

SOLIDARITY. Paris: Maio de 68. São Paulo: Conrad, 2003.