a gênese do corpo desconhecido - kuniichi uno

147
livro_KUNIICHI.indd 1 19/07/12 16:44

Upload: analuz08

Post on 22-Oct-2015

375 views

Category:

Documents


20 download

TRANSCRIPT

livro_KUNIICHI.indd 1 19/07/12 16:44

FUTURE ART BASESUPORTE EXPRESSIVO PARA RUPTURAS A-SIGNIFICANTESSÉRIE EDITADA POR PETER PÁL PELBART E AKSELI VIRTANEN

livro_KUNIICHI.indd 2 19/07/12 16:44

O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

Gilles Deleuze e Félix Guattari

livro_KUNIICHI.indd 3 19/07/12 16:44

livro_KUNIICHI.indd 4 19/07/12 16:44

livro_KUNIICHI.indd 5 19/07/12 16:44

TRADUÇÃO CHRISTINE GREINERCOM A COLABORAÇÃO DE ERNESTO FILHO E FERNANDA RAQUEL

PREFÁCIO CHRISTINE GREINER

n-1publications.org

livro_KUNIICHI.indd 6 19/07/12 16:44

TRADUÇÃO CHRISTINE GREINERCOM A COLABORAÇÃO DE ERNESTO FILHO E FERNANDA RAQUEL

PREFÁCIO CHRISTINE GREINER

livro_KUNIICHI.indd 7 19/07/12 16:44

A GÊNESE DE UM CORPO DESCONHECIDO THE GENESIS OF AN UNKNOWN BODYKuniichi Uno

Prefácio: Christine GreinerEdição bilíngue: Português – InglêsSão Paulo 2012

n-1 ediçõesSão Paulo | HelsinkiSÉRIE FUTURE ART BASEISBN 978-952-6611-01-3

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro e finlandês, n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

Projeto Gráfico: prod.art.br Érico Peretta e Ricardo Muniz FernandesImagem: Karolina KuciaRevisão do original: Véronique PerrinTradução para o português: Christine Greiner com a colaboração de Ernesto Filho e Fernanda RaquelRevisão do português: Ana GodoyRevisão de impressão: Maruzia Dultra

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. n-1publications.org

Impresso em São Paulo | Agosto, 2012

n-1 edições agradece à Aalto University pelo apoio na publicação deste livro.

livro_KUNIICHI.indd 8 19/07/12 16:44

Prefácio11

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVAChristine Greiner

Apresentação15

Kuniichi Uno

19 1. AS PALAVRAS E NIJINSKY

23 2. VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

443. HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

48 4. CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO

DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

695. ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

816. O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

937. UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

1078. DOIS TEATROS

1199. VITALISMO E BIOPOLÍTICA

12710. TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

13511. A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 9 19/07/12 16:44

11

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA

livro_KUNIICHI.indd 10 19/07/12 16:44

11

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA

Há uma grande lacuna editorial no Brasil (e na maioria dos países ocidentais) no que diz respeito aos pensadores japoneses contemporâneos. Quando se fala em “filosofia japonesa”, as referências mais citadas são divididas entre autores da chamada Escola de Quioto (interessados em releituras da fenomenologia europeia), e aqueles que trafegam entre a religião e a filosofia, com ênfase no budismo, no zen budismo e no shintoísmo. Não raramente, a filosofia japonesa aparece também diluída em pesquisas mais gerais acerca de uma certa filosofia “oriental” ou “asiática”.

Uno Kuniichi1 (宇野邦一)transita por outras redes. Pode ser considerado um pensador contemporâneo, se lembrarmos da definição proposta por Giorgio Agamben inspirada pelas considerações intempestivas de Nietzsche. O contemporâneo, neste contexto, é aquele que não adere a sua época. Trava uma relação anacrônica e defasada com o tempo e por isso mantém um olhar crítico, capaz de ver através da escuridão.

Mais do que um filósofo no sentido clássico, Uno é um pensador que faz exercícios filosóficos para navegar – solitário e errante – pela literatura, pela dança, pelo teatro, pelo cinema e pela filosofia.

Não é fácil mapear as suas procedências, nem seguir o seu rumo. Ele não tem nenhuma base estável. Desliza por intertextualidades entre Rimbaud, Artaud, Deleuze, Foucault, Nietzsche, Bergson, Benjamin, Bataille, Tanaka Min, Hijikata Tatsumi, Genet, Beckett, Kafka, Pasolini, Nijinsky e Clarice Lispector, dentre muitos outros artistas pensadores dessa mesma família de inquietações e angústias.

A escolha e a afeição pela língua francesa, na qual foram originalmente escritos quase todos esses ensaios, tem a ver com os anos que passou em Paris, para fazer o mestrado e depois o doutorado, finalizado em 1980, na Universidade de Paris VIII, sob a supervisão de Gilles Deleuze.

1 No Japão costuma-se usar o sobrenome na frente do nome. Para a tradução em português mantive esta ordem, seguindo os textos originais. [N. da T.]

livro_KUNIICHI.indd 11 19/07/12 16:44

12 13

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA

Desde então, Uno traduziu para o japonês obras fundamentais de Deleuze e de Deleuze e Guattari (Foucault, Mille Plateaux, Le Pli, L’Épuisé, L’Anti-Oedipe, L’Image-temps), de Artaud (Pour en finir avec le jugement de Dieu, Les lettres de Rodez, Les Tarahumaras) e de Beckett (Compagnie, Mal vu mal dit, Pour en finir encore).

Como explicou em entrevista a D’Istria2, a opção pela língua francesa não foi apenas uma contingência da sua história, mas também representa a busca da liberdade para escapar à opressão de sua língua materna, o japonês – embora este seja o idioma com o qual consegue se revelar mais intimamente.

Em francês, algumas palavras (como os advérbios), certos tempos verbais (que expressam um presente contínuo) e pontuações (vírgulas e reticências), reforçam sua narrativa poética sempre inacabada. São percepções que se articulam umas às outras num fluxo contínuo, nada determinista.

Em japonês a lógica gramatical é outra. Como explicou em um ensaio publicado em 2007, no número 29 da revista francesa Multitudes, a língua japonesa não possui pronomes relativos como o francês (qui, que, dont, lequel, laquelle...). Algumas palavras também não contam com uma tradução literal, como é o caso de “representação” e “sentidos”. Para traduzir a obra de Deleuze e outros autores franceses, foi preciso encontrar soluções que não se restringiam à tradução dicionarizada, que lhe parecia muito limitada. Uno sempre esteve muito mais interessado em captar um certo ritmo, as sutilezas e fissuras do pensamento.

Com seus amigos dançarinos (especialmente Hijikata Tatsumi e Tanaka Min) aprendeu a perceber o corpo a partir do movimento. É dessa transgressão corpórea, nem sempre evidente nos discursos filosóficos, que somos convidados a participar ao ler sua obra. Uma revolução interna, potente, que desestabiliza todo tipo de hierarquia e autoridade (Deus, Governo, Instituições, Modelos de Pensamento).

Sua narrativa fragmentada nasce sempre da vida por um fio, da metamorfose e da ambivalência: o homem que se desumaniza e se descobre

2 Ver K. Yann, Penseurs japonais, dialogues du commencement, Paris, Éditions de l’éclat, 2006, p. 88.

livro_KUNIICHI.indd 12 19/07/12 16:44

12 13

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA

homem, o movimento que teima em se pronunciar no corpo morto, o caos que gera criação...

Uno escreveu dezoito livros3. Os ensaios incluídos nesta coletânea apresentam, portanto, uma pequeníssima amostra de sua obra. Ao fazer o exercício de traduzi-los para o português percebi algo que me deixou encantada e extremamente intrigada: quando escreve sobre um artista ou filósofo, Uno parece diluir, logo de saída, a distância entre aquele que analisa... e o “outro”. Seu texto abandona a dicotomia sujeito/objeto uma vez que já nasce contaminado e pronto para assumir uma nova qualidade empática de existência.

Assim, ao analisar Artaud, Uno é tomado por um devir Artaud. O mesmo acontece quando analisa Deleuze, Nijinsky, Hijikata, Genet, Beckett, Bergson e Lispector.

Por isso é impossível traduzi-lo sem mergulhar de maneira absolutamente imprudente na escuridão desses artistas geniais. Agradeço a Ernesto Filho e a Fernanda Raquel4 por me ajudarem nesta jornada bastante intensa. Sem a colaboração deles não teria conseguido finalizar a tradução no prazo esperado.

Para encerrar essa breve introdução e apresentar a Gênese de Um Corpo Desconhecido nada melhor do que dar voz a uma das autoras favoritas de Uno Kuniichi. Aquela que fez a literatura brasileira adentrar a escuridão do corpo e o pulsar da vida no limite...

3 Imi no hate eno tabi (Viagem ao fim dos sentidos), 1985; Kaze no Apocalypse (Apocalipse do vento), 1985; Soto no ethica (Ética de fora), 1986; Konseikei (Sistema do Caos), 1988; Yotei fuchouwa (Desarmonia pré-estabelecida), 1991; Monogatari to hichi (Narração e não-saber), 1993; Hizuke no nai danpen kara (Dos fragmentos sem datas), 1992; Genet no kiseki (O milagre de Genet), 1994; Artaud, shikou to shintai (Artaud pensamento e corpo), 1997; Shi to kenryoku no aida (Entre a poesia e o poder), 1999; Tasharon jyosetsu (Discurso sobre o outro), 2000; Deleuze ryudou no tetsugaku (Deleuze: filosofia do fluxo), 2001; Han-rekishi-ron (Contra a história), 2003; Hakyoku to uzu no kousatsu (Reflexão sobre a catástrofe e o turbilhão), 2004; Tannaru-seino-tetsugaku (Filosofia de uma vida simples), 2005; Eizou shintai ron (Imagem e corpo), 2008; Hearn to Yakumo (Hearn e Yakumo), 2009.4 Ernesto Filho traduziu os ensaios de número 6, 7, 10 e 11; e Fernanda Raquel os de número 2 e 8.

livro_KUNIICHI.indd 13 19/07/12 16:44

14 15

“Este livro é como um livro qualquer.

Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma formada.

Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz

gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai

aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro

nada tira de ninguém.

A mim, por exemplo, [ele]

foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.”5

C. L.

Christine Greiner

5 Clarice Lispector escreveu esta epígrafe em 1964 para os possíveis leitores de A Paixão segundo G. H.

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA

livro_KUNIICHI.indd 14 19/07/12 16:44

14 15

APRESENTAÇÃO

A maior parte desse livro, mais ou menos filosófico, gira em torno da dança, do teatro e do problema do corpo e da biopolítica. Os dançarinos e seus escritos me inspiraram muito, sobretudo para pensar e repensar o que é o corpo − a vida vivida pelo corpo. A dança se infiltrou, ao mesmo tempo, na escrita e na própria carne do meu pensamento. Comecei a descobrir algo como uma mesma dança em todos os textos filosóficos ou literários que têm me arrebatado desde há muito tempo.

A existência do corpo, que concebi como a problemática de toda uma vida filosófica, foi mais uma vez recuperada como “corpo sem órgãos”, de acordo com Antonin Artaud e Gilles Deleuze. Para mim, esta questão do corpo abriu um campo imenso através do qual tudo está ligado a tudo, uma vasta tessitura de problemas a partir da qual questiono se não há um estatuto especial da vida que corresponda a esse corpo; e também que tipo de tempo, que tipo de agenciamento de forças diferentes essa vida abre ao revelar um campo político ou social ainda a ser descoberto.

A dança não somente desloca ou “desterritorializa” a imagem do corpo ao introduzir esse corpo em outra dimensão (que pode ser a do corpo sem órgãos que a atravessa), mas essa imagem revela também uma imagem de tempo sem medida que iguala a ordem ou as ordens da vida vivida pelo corpo fora dos padrões. Estamos, portanto, dentro e diante de um imenso caos, mas também dentro e diante dos cristais que correspondem a esse corpo, a essa vida e seu tempo. Os pensamentos se revelam como esses cristais.

Este livro é composto de ensaios que escrevi em francês. Meus livros e a maior parte dos ensaios críticos escrevi em japonês, com ideogramas que foram adotados da China Antiga e fonogramas fabricados e simplificados. Mas minhas propostas são muitas vezes inspiradas por autores franceses (sobretudo Artaud e Deleuze), cujos livros traduzi e decifrei há muito tempo. Nesse meio tempo, me aconteceu de reescrever e repensar em francês esses textos para publicá-los em uma revista estrangeira ou falar em um colóquio,

UMA FILOSOFIA INTEMPESTIVA

livro_KUNIICHI.indd 15 19/07/12 16:44

16 17

expondo assim meus escritos em japonês1. A maior parte desses textos é acompanhada de lembranças de viagens a Montreal, Paris, Lille, Cerisy-la-Salle (Normandia), Taipei, São Paulo, Rio de Janeiro.

Esses textos se dispersaram e eu esqueci a maior parte dos lugares onde foram publicados. Mas as lembranças de viagens e encontros estão sempre vivas em mim, como se os textos fossem pretextos para essas ocasiões. E no verão de 2010, em Paris, de repente tive essa ideia de reunir o que eu havia escrito em francês. Pensei nos meus amigos estrangeiros que tiveram a gentileza de querer ler meus livros sem saber ler em japonês, mas sendo capazes de ler em francês. O que pude fazer foi rever e retocar meus escritos filosóficos ou críticos em francês. Para formar um volume com esses textos dispersos em espaços e tempos diferentes, foi preciso dar, senão uma unidade, ao menos uma consistência que pudesse agenciá-los. Uma frase que encontrei em A imagem-tempo de Deleuze foi o fio condutor, um germe para esse livro preocupado com temas que formaram um conjunto fluido de “sementes dançantes”:

“... se o cinema não nos dá a presença do corpo, e não pode nos dar, é também porque propõe um outro objetivo: ele estende sobre nós uma ‘noite experimental’ ou um espaço branco, ele funciona com ‘sementes dançantes’ e uma ‘poeira luminosa’, ele afeta o visível de uma obscuridade fundamental, e o mundo de uma suspensão que contradiz toda percepção natural. Assim, o que ele produz é a gênese de um ‘corpo desconhecido’ que temos atrás da cabeça, como o impensado no pensamento, nascimento do visível que ainda se esconde à visão.”2

Meus agradecimentos são infinitos a Christine Greiner e a Peter Pál Pelbart, que tiveram a ideia de traduzir e publicar este livro – que poderia não ter existido e agora terá a chance de ver uma luz distante. E também a Melissa

1 A referência desses textos já publicados encontra-se no final do volume.2 Optamos aqui por fazer uma tradução livre desta passagem de A imagem-tempo. O mesmo trecho presente no ensaio “Tempo: a parte de fora da imagem” foi citado de acordo com a tradução brasileira. [N. da T.]

As referências bibliográficas serão dadas tal como aparecem no texto original do autor. Serão seguidas, entre colchetes, do equivalente traduzido em português, quando existir, e com a indicação da página, sempre que possível. [N. do E.]

livro_KUNIICHI.indd 16 19/07/12 16:44

16 17

McMahon, que fez a tradução para o inglês. Agradeço ainda muitíssimo a Véronique Perrin, que revisou os textos, escritos primeiramente em um francês “bárbaro”.

12 de janeiro 2012, Tóquio

Uno Kuniichi

livro_KUNIICHI.indd 17 19/07/12 16:44

19

AS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 18 19/07/12 16:44

19

AS PALAVRAS E NIJINSKY

1. AS PALAVRAS E NIJINSKY1

“Era como se qualquer coisa tivesse tentado me lacerar a alma, sem conseguir.”

Tolstoi, Diário de um louco

1.

Vida, morte, sentimentos. O diário que Nijinsky escreveu, em plena migração para o “país da loucura”, é composto por três capítulos que sustentam seus títulos. Como se nada importasse para ele além desses três temas. Com certeza, em seu diário estão gravadas com clareza as fatias de universos variados que ele atravessou com a qualidade de um dançarino único no mundo, e também com a qualidade de dançarino despossuído de sua dança pela guerra e pela política. Mas estas fatias de universo compõem, como fragmentos flutuantes, o universo do diário, para convergir finalmente em direção à vida, à morte, aos sentimentos. A vida, a morte e os sentimentos são as únicas unidades, os únicos sujeitos de seu pensamento. Ele diz que escreve este diário para explicar o que é “o sentimento”. O sentimento é princípio da vida, tanto quanto se constitui como a diferença entre a vida e a morte. Pode ser equivalente ao afeto spinoziano. Para Spinoza, o corpo nada mais é do que o poder de ser afetado. E para Nijinsky, escrever é sempre um ato endereçado ao sentimento. “Compreenda que quando escrevo, não penso – Eu sinto”.

A escrita de Nijinsky é reduzida estritamente ao mínimo. Ela não é nem simplista, nem ingênua. Nele, o espírito viveu o instante que se aproxima de um certo valor mínimo (chamá-lo de valor máximo daria no mesmo). É preciso tentar pensar um valor-limite da relação, dos sentidos, da representação. O

1 Este artigo nasceu entre as diversas belas páginas que falam de Nijinsky em O anti-Édipo. Foi extraído do livro de Uno Kuniichi, Kaze no Apocalypse (Apocalipse do Vento), publicado pela Seidosha, em Tóquio, em 1985, e traduzido do japonês por Véronique Perrin. Há uma tradução francesa do Diário de Nijinsky, publicada pela Gallimard, bem como uma tradução brasileira, publicada pela Rocco, mas escolhemos retraduzir as passagens citadas a partir da edição japonesa. [N. da T.]

livro_KUNIICHI.indd 19 19/07/12 16:44

20 21

“Eu” diminui na medida em que ele se aproxima deste valor-limite. Ele escreve nos confins do valor-limite. O espírito que se aproxima do valor limiar escreve para vencer a velocidade louca. É por isso que não há no Diário de Nijinsky nem retórica, nem narração, nem lógica, nem mesmo poesia. As condições mínimas que compõem o espírito ou a consciência devem ser confirmadas. Aqui não há mais o pensamento em relação a um conteúdo. Aqui são medidas as condições mesmas do espírito. Enunciado e diálogo, em uma dimensão que desnuda a disposição mínima, que constitui a ossatura do espírito, questionam a disposição, que constitui as condições mínimas dos sentidos. Ele nomeia “sentimento” a oscilação que preenche esta disposição. Mas o mínimo é também o máximo. Na disposição mínima do espírito, o sentimento se abre como força potencial máxima fora do sujeito. “Eu sou um touro, um touro ferido. Eu sou Deus sem o touro. Eu sou Apis. Eu sou Índio. Eu sou Índio Pele-Vermelha. Eu sou Negro. Eu sou Chinês. Eu sou Japonês. Eu sou estrangeiro. Eu sou o viajante. Eu sou um pássaro dos mares. Eu sou a árvore de Tolstoi.”

Dizer que o significante é arrancado do significado, o sintagma absorvido pelo paradigma, que um tipo de catástrofe semiótica se produz, será insuficiente. A gramática carrega a si mesma, a identidade prolifera quase sem limite. A contestação é feita à gramática como aos sentidos.

2.

Nijinsky vai além ao escrever o princípio do terceiro excluído. Ele é Cristo. Ele é o Anticristo. Pela rejeição da identidade através do espírito, ele está profundamente arraigado ao lado do Anticristo. “O olhar de Cristo fixa pacificamente, ao passo que meus olhos se divertem por todo o lado. Eu sou um ser ‘que se movimenta’ e não um ser ‘que não se move’. Tenho hábitos diferentes daqueles de Cristo. Ele ama a imobilidade. Eu amo a mobilidade e a dança.” Nijinsky, “o Anticristo”, é atravessado por uma vontade de movimento inexaurível. E é esta vontade de movimento que forma a artéria da escritura de Nijinsky. O que ele chama de sentimento nada mais é que o movimento ou a onda que preenche, que atravessa o corpo humano. O Deus de Nijinsky está dentro de Nijinsky. Ou ainda, Nijinsky transformado em Deus habita o

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 20 19/07/12 16:44

20 21

touro. E Deus transformado em touro habita Nijinsky. Nijinsky transformado em Deus se introduz em todos os tipos de coisas. Porque Deus está nele. Doravante, Deus não é mais princípio de um conhecimento seletivo, hierárquico, nem a transcendência ou a ameaça de todas as identidades. A identidade é espalhada, tudo se infiltra em tudo, tudo se funde. Um grande recipiente está contido num recipiente menor que, por sua vez, aprisiona em si inúmeros recipientes maiores e menores. “Eu sou carne e sentimento. Deus em carne e em sentimento. Não, não Deus, mas homem...” “Eu” é Deus e não é Deus. A identidade de mim mesmo, assim como Deus como princípio de identidade, é destruída. Mas a carne e o sentimento escapam a priori da identidade. A carne e o sentimento engendram a diferença sem cessar, eles são movimento atravessado pela diferença. É por isso que não podem fixar nenhum sentido, nenhuma imagem, nenhuma forma. “Nós somos os ritmos”, diz Nijinsky. Os sentidos se situam sempre sob a fronteira, face a face com a onda proliferante da diferença. Não há identidade, apenas ritmos. Se quisermos ler no Diário de Nijinsky os fundamentos de sua dança, não vamos encontrá-los a não ser aqui: na incessante repulsão à reverência da coagulação do mesmo, da determinação de uma imagem. Mesmo nas fotos onde ele se imobiliza em uma pose, a imagem de Nijinsky é aureolada com linhas de forças difíceis de determinar e conseguir revelar uma forma, o que lá está é a gênese do movimento. Mesmo a imobilidade ainda é continuação do movimento. O diário não testemunha a dança consagrada por Deus, a dança sagrada, mas a dança que continua a diferença.

3.

No Diário de Nijinsky aparecem com frequência expressões que comportam uma antinomia, e talvez haja pessoas que verão aí sintomas de esquizofrenia, sempre expostas às situações de double bind.2 Mas, ao repetir o paradoxo que diz “eu” é Deus e não é Deus, Nijinsky entende certamente alguma coisa que

2 Uno opta por usar o termo inglês double bind tal como aparece na obra de Gilles Deleuze. Por isso, após consultá-lo, decidi manter da mesma forma na tradução em português. Trata-se de termo cunhado por Gregory Bateson para designar um relacionamento em que entram em jogo mensagens contraditórias (entre mãe e filho, por exemplo), e que estaria na origem de quadros esquizofrênicos. [N. da T.]

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 21 19/07/12 16:44

22 23

escapa ao double bind. É a partir daí que uma gramática, que se pode chamar de estratégia esquizofrênica, toma forma. Esta estratégia está diretamente ligada ao desejo da dança. A dança se destaca de uma identidade determinada pela narração, da mimese que é inseparável dos códigos do balé, aparentemente abstratos e dominados por esta mesma mimese. Para Nijinsky, dançar se afasta da imitação, da narração e do formalismo superior delimitado por tudo isso, por ser sem cessar, ilimitadamente, um devir qualquer coisa. É por isso que ele conseguiu quase não dançar, como na representação de L’Après midi d’un Faune. Sem saltos, sem proezas técnicas, como observou Rodin. Não ser fauno, nem não ser fauno, mas devir fauno. Ele é Cristo e Anticristo. Ou ainda, ele não é nem Cristo, nem Anticristo. Só importa o devir Cristo. O tema do Fauno está orientado para a gênese e as transformações de um lugar que não é nem animal, nem deus, nem homem. A ambivalência da escritura de Nijinsky combina com o processo de sua dança. À medida que este processo se acelera e prolifera, ele se aproxima do estado de hebefrenia. O diário é preenchido por este processo e se torna o lugar onde ressoam as vozes inumeráveis que afluem de todas as direções, um lugar para uma alma dilacerada, vertiginosamente agitada, inquieta.

4.

Ele experimenta a distância perpetuamente movente em relação às palavras pronunciadas. “É de propósito que eu simulo a loucura, para obter aquilo que quero.” “Para vos fazer sentir que eu não sou nervoso, eu interpreto o papel de um homem doente dos nervos.” O Diário seria o único lugar onde ele tenta escrever a verdade rejeitando a gesticulação e a representação? Além disso, o que surpreende é seu diário não cessar de falar do ato de escrever. No momento mesmo no qual ele agarra seus próprios atos e palavras como uma gesticulação e se descreve enquanto escreve isso, ele parece tentar sem parar deslizar para fora. Como se escrever sobre a escritura permitisse, enfim, timidamente, perfurar um platô sólido de pensamento. Ele faz uma aposta com sua mulher: “Eu prometi lhe dar cem mil francos se ficar confirmado que meus nervos estão doentes, como ela supõe.”

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 22 19/07/12 16:44

22 23

A aposta é feita novamente nos fundamentos de seu diário: se seus nervos são doentes, as palavras que ele escreve são todas colocadas em questão. O dinheiro necessário para o caso de ele perder a aposta e dever pagar a sua mulher, ele quer colocar na Bolsa. Ele quer ganhar muito e colocar a Bolsa em bancarrota. Com Deus ao meu lado, isso funcionará. E mesmo admitindo que Deus não esteja ao meu lado, Deus está em mim. Talvez eu seja Deus em pessoa. Meus nervos não estão doentes. “Deus me mostrou o que são os nervos.” O que Nijinsky busca neste instante da escritura é se sentir como uma “aposta”. Não se trata da aposta de Pascal concernente à existência de Deus. Também não se trata de uma alternativa entre o verdadeiro e o falso. Se eu sou capaz de pensar, minha mente pode estar ou não em bancarrota, esta é a aposta. Eu sou louco, ele diz. Eu não corro o risco de estar louco, ele completa. Mesmo louco, ele escolhe o devir. Sempre pesando constantemente a possibilidade de pensar, de tornar-se louco, ele continua a tecer uma membrana de palavras cheia de paradoxos. Esta membrana se torna uma muralha que protege do buraco negro. Um dia ele sobe sozinho até o cume de uma montanha e grita em francês: “Palavra!”

5.

“A caneta com a qual escrevo é um presente de Natal de minha mulher.” “Eu escrevo porque Deus quer.” “Eu preferiria que meus escritos fossem fotografados ao invés de impressos. Já que a tipografia não tem nada a ver com a escrita... escrever à mão é bom. Isso dá uma impressão de vida e a personalidade realça.” “Ao mesmo tempo em que escrevo posso pensar em outra coisa.” “Minha mulher tem medo que eu escreva coisas imperdoáveis. Eu rio enquanto a vejo chorar porque sei bem o que isso significa. Eu queria consolá-la, mas minha mão não para de escrever. Minha mulher olha entre meus dedos e lê o que eu escrevo. Eu tenho vontade de lhe dizer que se ela quer ler antes de todo mundo basta ela aprender russo. Mas como na realidade eu não quero que leiam o que escrevo, não quero que ela aprenda russo. Eu não quero fazê-la ler antes das outras pessoas. Talvez eu publique esse livro imediatamente.” “Eu escrevo com a minha sensibilidade.” “Eu quero falar, e

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 23 19/07/12 16:44

24 25

não escrever um romance. Os romances compreendem mal os sentimentos. Num livro eu busco a verdade, não a história.” “Eu quero amar os homens e ser compreendido. É por isso que gostaria de falar todas as línguas. Mas eu não posso, então escrevo. Meu diário talvez seja traduzido.” “Eu quero escrever sem nervosismo, calmamente. Mas como não é necessário mostrar a beleza da escritura, não quero escrever lentamente. Eu não escrevo à mão para o prazer das pessoas. Eu não escrevo para escrever um livro, mas para pensar. Como nunca escrevi, tenho uma mão que se cansa. Mas eu vou me habituar rapidamente, eu penso. Como tenho dor de cabeça, escrevo de qualquer jeito, em desordem. Qualquer pessoa, vendo minha caligrafia, dirá que são letras de um doente dos nervos. Porque as letras são dispersas. Meu pensamento não é nervoso – Ele desliza sossegadamente, sem tempestade.” “Eu queria descrever meus passeios. Eu gosto de passear sozinho. Nós somos todos sós. Nós somos os ritmos. Nós somos você, nós somos eles. Eu queria dizer você está com vontade de dormir. Não, eu digo. Eu escrevo, escrevo, escrevo. Eu queria dizer às pessoas que não devemos fazer isso. Eu queria dizer-lhes que não podemos fazer isso. Eu quero escrever. Eu escrevo.” “Eu decidi não fazer nada.” “Deus me disse para não fazer outra coisa, apenas escrever minhas impressões. Eu escreverei.” “Eu tenho vontade de viajar, de beber, de comer. E depois de anotar minhas impressões. Eu escrevo tudo que vejo e escuto.” “Eu tremo de frio, eu não posso escrever. Eu sou incapaz de escrever. Eu corrijo minha escrita porque acho que ela é ilegível. Entrando no quarto de dormir, eu me arrepio antes de ver. Não havia travesseiro na minha cama, as cobertas estavam dobradas. Eu desci e decidi não dormir. Eu não tinha acabado de escrever minhas impressões. Eu não posso escrever. Porque meu corpo todo é invadido pelo frio. Eu pedi a Deus para me ajudar porque sinto dor na mão e não posso mais escrever à mão. Eu queria escrever bem.” “Eu não quero escrever para discutir ou demonstrar. Eu gostaria de explicar. Eu quero salvar a humanidade. Como não entendo grande coisa da arte de escrever, não sonho em me gabar desse livro.” “Eu não escrevo para o meu prazer; não arrisco ter prazer a despejar na obra seu dinheiro e seu tempo. É preciso escrever bastante para compreender o que significa escrever. É um trabalho difícil: cansa ficar sentado, dá câimbra nas pernas, o braço fica duro. A visão enfraquece, respira-se mal. O ar do quarto fica abafado. Esse tipo de vida deve antecipar a morte.”

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 24 19/07/12 16:44

24 25

6.

Assim, Nijinsky jamais perde de vista o ato de escrever, o sujeito que escreve, a letra escrita. Também insiste em ser Deus sem ser Deus, ou que Deus está nele como ele está em Deus, ele vai e vem entre o dentro e o fora da escrita. Quer dizer que ele faz o vai e vem entre os dois enunciados: “Eu sou em Deus” e “Escrevo que sou Deus”. “Escrevo que sou Deus” anula “Eu sou Deus” e “Eu não sou Deus”, e os dissolve em uma mesma superfície. O “Eu” absorve as proposições e se torna um ritmo pulsante para fora da significação. O fato de que ele escreve sobre a escrita o faz deslizar em direção a um lugar afastado da verdade, do discurso, da forma, da representação. Revirando inteiramente o double bind como estratégia de escrita, no momento mesmo em que escreve sobre a escrita, ele capta o double bind da própria escrita. Através desta reiteração, pela alternância entre a “escrita” e o “escrever sobre a escrita”, a escritura forma um plano único e intenso. O enunciado “Eu sou Deus” desliza para o exterior da dimensão que reconhece a dicotomia entre o verdadeiro e o falso, entre a realidade e a ilusão. “Eu sou Deus” não tem a ver com megalomania, não é nada além do detonador que aciona as identidades ilimitadas, ou melhor, as séries de vizinhanças do tipo “Eu sou Egípcio, Indiano, Negro, Japonês...” Ou ainda, as palavras se deixam escapar aos sentidos (para significar é preciso fazer funcionar identidades exclusivas) e vêm alargar esse plano que confirma sempre os paradoxos. “Eu sou A. Eu sou B. Eu sou C...”, “Eu sou A e não sou A.”, “Eu sou A. Eu escrevo que sou A.”, certamente ameaçando a gramática e a lógica. Mas, ao mesmo tempo, a superfície intensa que torna possíveis as palavras, a zona onde os sentidos se reduzem à zero é confirmada, e tudo se desloca enquanto ritmos através de diferenças ínfimas, os enunciados formam uma vizinhança sem demarcações. Aqui só importam o movimento e a gênese. Todas as identidades, no interior da repetição de enunciados paradoxais, se transformam em aproximações ou analogias sem fronteiras.

7.

Nijinsky se lembra de Diaghilev como um ser diabólico, mefistofélico. Já que Nijinsky é o menino que se vende ao diabo e que, com a alma dilacerada, é

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 25 19/07/12 16:44

26 27

abandonado pelo diabo, errante pelas fronteiras da loucura, tenta uma modesta vingança contra o diabo. De acordo com o Diário, no momento em que Nijinsky contrai tifo, Diaghilev obriga-o a viver com ele. “Eu comia laranjas. Como tinha sede, pedia laranjas a Diaghilev. Ele me dava duas ou três. Eu adormecia com uma laranja na mão. Quando me levantava, a laranja estava no chão, toda amassada. Eu tinha dormido muito tempo. Eu não compreendia o que tinha se passado. Eu havia perdido a consciência. Eu tinha medo de Diaghilev, mas não da morte. Eu me dizia que era a febre tifoide.” Confiando sua dança e seu corpo à Diaghilev, Ninjinsky escapa da pobreza e se torna o dançarino do século; casando-se bruscamente, ele é mandado embora por Dighilev e, na adversidade, logo se entrega à loucura. Se tentarmos analisar Nijinsky à maneira de Freud analisando a “paranoia” do presidente Schreber, tal argumento ganha importância primordial. De acordo com Freud, se o presidente Schreber via Deus em seu delírio, era porque o impulso da libido homossexual invertia o médico Flechsig, que foi o primeiro a lhe examinar, substituindo Flechsig por Deus. Essa pulsão é certamente inseparável no paciente com complexo de Pai. E uma tal pulsão homossexual é igualmente ligada a uma fixação regressiva do “amor de si” através da qual é preciso passar, uma vez por todas, na primeira infância. A laranja é o falo. O Deus de Nijinsky será supostamente homossexual, será o Pai do qual ele foi separado na sua infância etc.

Há efetivamente no Diário de Nijinsky páginas que falam de Diaghilev e de Deus. Ele comete “de propósito” uma falha no nome de Diaghilev. É para mostrar que caçoa de Diaghilev e que começa a esquecer. Ele busca evitar que Deus venha após Diaghilev. “Eu não quero que haja uma semelhança entre Deus e Diaghilev.” Decide então escrever Deus com minúscula. Freud verá em tal notação uma combinação explícita de paranoia religiosa e de pulsão homossexual. Mas se tentamos entender por que Nijinsky escreve, o que ele busca alcançar enquanto escreve, não podemos nos deixar levar por este jogo de associações cujo resultado é conhecido desde o início. Ele comete um erro proposital no nome próprio de Diaghilev. Através da maiúscula, Diaghilev se encontra na posição de Deus e Deus, escrito em minúscula, se torna um nome comum. De fato, é uma operação mínima da escrita. A esquizofrenia identificará Deus e Diaghilev como substituindo o Pai. No entanto, Nijinsky

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 26 19/07/12 16:44

26 27

embaralha essa identidade. Ele desmonta um sujeito chamado Diaghilev e coloca esse sujeito no lugar vazio de Deus. Quanto a Deus, ele é jogado em séries avizinhadas que se conectam infinitamente e se tornam uma molécula, uma força infinita em movimento. Assim, por essa transformação semântica ínfima, é designada a dissolução do sujeito, a inversão do nível abstrato e do nível concreto, a gênese de um espaço intenso e intensivo. O abstrato (Deus) se torna uma força e uma velocidade que convidam a conexões livres. O concreto (imagem do sujeito) se dissolve e começa a vagar como uma molécula invisível. Será preciso ler o Diário de Nijinsky não como um caso patológico, isto é, como signos que remetem a uma patologia, mas como o “pesa-nervos”3 de Nijinsky, através do qual um espírito que acaba de perder todas as suas identidades tenta, pelas margens, controlar a explosão da diferença, ordenar os fluxos. A loucura total é perder toda identidade. Nijinsky se pergunta constantemente se ele se tornou verdadeiramente louco, ele aposta. O sujeito que se pergunta se é louco não pode ser classificado nem na loucura, nem na razão. Uma escrita deste tipo está numa topologia do espírito que não se pode doravante localizar. Desde logo, como a escrita é a própria intensidade, medir a intensidade do espírito é designar o espírito que não pode ser agarrado, a não ser como intensidade. Assistimos aqui a uma formação que não é dos vestígios de desabamento do espírito, mas a de um plano sólido que resiste ao próprio desabamento. Aparece aqui uma zona de transição, fronteira entre a loucura e a razão, substrato invisível à imagem, insituável, sem densidade, que não admite as categorias da loucura e da razão, e que não poderia ser representada através de uma linha de demarcação.

8.

Nijinsky não podia se desfazer do pensamento de que havia se vendido a Diaghilev por causa da pobreza. Era assombrado pela ideia de que sua dança era uma “dança de prostituído” porque ele devia cobrar o corpo que a dançava. No mundo, o corpo, o desejo, o dinheiro são trocados sem cessar. Ele não pode

3 Pesa-Nervos é o nome de um livro de Artaud. Uno aprofunda a análise desta obra no quinto ensaio “Esse pequeno nada entre os limites.” [N. da T.]

AS PALAVRAS E NIJINSKYAS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 27 19/07/12 16:44

28 29

abandonar sua ideia de ganhar uma fortuna na Bolsa. Para ganhar grandes benefícios quer destruir a Bolsa. Valor de uso e valor de troca da dança. O corpo dançante, ele mesmo, está preso no ciclo de circulação de bens. A singularidade absoluta que constitui o corpo acaba por ser mascarada. Através da dança, assim como através do trabalho, os corpos circulam no mundo como quantidades homogêneas decodificadas, como fluxo. Nijinsky amaldiçoa a troca e tenta conservar a singularidade fora da troca. Para ele, nada é equivalente a nada. As vizinhanças e conexões infinitas que ele produz em seu diário não exigem equivalência. Dar, fazer proliferar o dom, ele não deseja nada além disso. Um mundo onde nada é trocado. Não existe referência de valor (dinheiro) situada em um nível superior aos mercados, e as equivalências que ele mede não existem. Tudo se diferencia, avizinha, conecta-se. Desde logo o dom se concebe como uma circulação que rejeita a identidade exclusiva, a centralidade, a hierarquia. Os dispositivos de identidade, tais como a representação ou o sujeito, não funcionam mais aqui. Fazer circular apenas a singularidade. Fazer ressoar, fazer bifurcar os fluxos e produzir ainda a singularidade. Ao tornar sempre qualquer coisa possível, Nijinsky rejeita o valor, a representação e a troca. Ele gostaria de destruir a Bolsa. É por isso que decide ir e participar da troca.

Ele não aceita que um objeto, um corpo, um signo se tornem “significantes” transparentes que encerram um significado como aquele que o identifica. Ele quer abolir a troca que depende da identidade. Quer desordenar a troca presente em todos os mercados dos sentidos, do desejo, do dinheiro. Mas quando ele diz “Eu sou a vida”, quando ele quer destruir a Bolsa, Nijinsky não busca fazer como Jesus, que “entrou no templo e expulsou dali todos os que nele vendiam e compravam. Derrubou as mesas dos cambistas e as bancas dos vendedores de pombas.” (Mateus, 21:12). O acontecimento que é Nijinsky surgiu no interstício do capitalismo, do Estado, das guerras e das revoluções do século XX como uma “desterritorialização” do desejo da dança. Sua esquizofrenia é mais ambivalente em face da troca de mercadorias que ela se cobra para esta desterritorialização. Para destruir a troca é preciso participar dela. O corpo de Nijinsky se localiza neste paradoxo. Sua dança, no capitalismo desterritorializante que desliza por toda a parte, é, ela mesma, a conclusão de uma assombrosa desterritorialização. E logo ele reencontra a ele mesmo, enquanto desterritorialização excessiva, no exterior do mundo que

AS PALAVRAS E NIJINSKY AS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 28 19/07/12 16:44

28 29

se desterritorializa. Para além da desterritorialização acelerada, ele salta. Ou pode acabar por aniquilar-se.

9.

“A árvore de Tolstoi é a vida”, escreveu Nijinsky. Encontra-se em um dos últimos romances de Tolstoi, Journal d’un Fou, muitas passagens que têm boa ressonância com o Diário de Nijinsky. As crises deste louco começam quando ele deixa sua cidade para comprar um terreno distante. O fato de comprar um terreno e emigrar de seu território torna-se um motivo para sua loucura. “Mas porque pude vir para tal lugar? Onde estou me levando? Por que eu fujo? Em direção a quê? Eu quero fazer alguma coisa medonha, mas não posso fugir. Eu estou sempre comigo. E é este comigo que me atormenta. Eu sou ele e eu estou inteiro aqui. Um lugar, Penza ou outro lugar qualquer, não me acrescenta, nem me tira nada. Mas eu estou cansado de mim, desta coisa que se chama eu, eu não posso mais suportar. Isso me atormenta. Eu queria dormir e me esquecer, mas não posso. Não se pode escapar de si mesmo.” Compreender tal frase como uma forma de vergonha de si mesmo ou de pessimismo força a reler o texto do ponto de vista de um sujeito que existiria indubitavelmente, quer dizer, como uma expressão de si. É ler um tolstoismo na obra de Tolstoi. Este texto se perde num horizonte onde o ordenamento mesmo do sujeito está exatamente fissurado. Em seguida, as crises deste personagem são sempre acompanhadas da questão: “Onde estou?” A compra e a venda de um terreno é uma das trocas desterritorializantes através da qual é preciso desterritorializar até “si mesmo”, amalgamado à terra. Ou seja, no instante em que ele escreve “eu” ele já abandonou a terra. No ato de comprar um terreno estão englobados de forma ambivalente a desterritorialização (deslocamento) e a reterritorialização (retorno). Esta ambivalência se funde em outra com a traição para com a terra, o sentimento de culpa para com os camponeses. É que no ato de comprar um terreno são englobados, ao mesmo tempo, a troca e a negação da troca, a terra e a negação da terra. Tal ambivalência acaba por se fundir em um acesso de loucura com a ambivalência da vida e da morte. “À primeira vista, a morte pode parecer aterrorizante, mas se refletimos atentamente sobre a vida, é a vida confrontada à morte que parece terrível. Como se, de uma maneira estranha, a

AS PALAVRAS E NIJINSKY AS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 29 19/07/12 16:44

30 31

vida e a morte fossem uma coisa só. É como se qualquer coisa tivesse tentado me dilacerar a alma, sem conseguir.” Desterritorializado pelo fato de devir “si mesmo” e desterritorializante para além deste “si mesmo”, ao mesmo tempo em que nos entregamos a uma vida escancarada de cortar a respiração, viramos em direção à morte. O desejo de ultrapassar a troca, de destruir a troca, por sua vez, pertence à vida, mas uma vida tão excessiva que não podemos mais conservá-la. Chega-se ao ponto em que, vista do exterior, ela parece a chegada da morte, o aniquilamento, a parada completa. Nijinsky recusa a troca da vida e da morte. A delimitação, a representação e a fixação, destinadas a reduzir, conservar, domesticar a vida, são ressentidas como um sistema de morte. O fato de que “a vida e a morte são apenas um” revela um grau de intensidade da vida quase intolerável. No entanto, a vida e a morte não devem em nenhum caso ser intercambiáveis. É preciso perpetuar o movimento e a gênese. Plano de intensidades preenchido de double bind e zona de movimentos ambivalentes, o processo de sempre devir qualquer coisa é uma estratégia para não trocar jamais a vida contra a morte. Todos os movimentos ambivalentes abrem a diferença entre a vida e a morte, e se voltam para a proliferação. O sentimento é o espectro da diferença, bem mais complexo para ser trocado. Por causa de sua velocidade e de sua intensidade diferentes da troca capitalista, decodifica a troca capitalista e forma uma zona exterior ao câmbio.

10.

Então Nijinsky passeia mais e mais. Ele passeia e escreve. Cada passeio é uma experimentação. A cada uma de suas saídas, ele testa se ainda é ele mesmo. Talvez ele não possa mais voltar a si. O menor afastamento de sua casa é uma grande aposta, tanto para Nijinsky como para o louco de Tolstoi. Uma pequena saída é uma excursão, um desafio no qual pode se perder para sempre, uma viagem experimental. Mas é preciso sair apesar de tudo. Para se perguntar “Onde estou?” Ou ainda para perguntar ao mundo “Onde não sou eu?” Eles não começam a se mexer para salvaguardar ou confirmar um “si mesmo”. Trata-se de sair de “si mesmo” voluntariamente, sem ser possuído pela loucura, de unir-se, confundir-se, ecoar muitos sujeitos. Trata-se de avançar para além da alternativa entre ser louco ou não ser louco. Ao se mover, Nijinsky sente várias

AS PALAVRAS E NIJINSKY AS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 30 19/07/12 16:44

30 31

vezes a diminuição de suas forças, a proximidade da morte, mas de repente as forças voltam, ele fica excitado. Indo e vindo num espaço de tempo infinito entre o máximo e o mínimo, ele desliza para fora do sujeito nomeado “si mesmo” ou da representação, e se torna um movimento sem limite, uma intensidade sem limite. Ele não sabe o que vai fazer, nem aonde quer ir. Bruscamente, apresenta-se uma nova alternativa. “Eu pensei que, para mudar completamente a minha vida, era preciso que eu fosse para um quarto que eu acabara de encontrar. Eu fui lá deliberadamente. Mas eu devia entrar movido por alguma força desconhecida.” No entanto, uma vez experimentada, a desterritorialização não para mais. Entrar não mudará nada. Após muitas tentativas, ele experimenta a provação da viagem. Em todos os seus deslocamentos, ele cinde seu si mesmo ao expô-lo ao mundo e, em uma velocidade assustadora, ele reflete sobre todas as questões possíveis. Então, um dia, escuta “Deus” lhe dizer: “Volta para casa e diz a tua mulher que você enlouqueceu.” Durante o mesmo passeio, ele viu manchas de sangue sobre a neve. Para Nijinsky este sangue é uma provação para saber se ele acredita em Deus. É para fazê-lo sentir sua presença que Deus lhe mostrou os rastros de sangue. Várias vezes em seguida ele retorna ao lugar onde tinha visto o sangue. A cada vez escuta a voz de Deus. Ele se aproxima uma primeira vez da casa, retorna a esta marca sangrenta, volta à casa correndo desesperadamente. Mas o passeio de Nijinsky é uma viagem na qual se joga com a vida e a morte, uma provação de “Deus”, uma experimentação de “si mesmo”, uma dimensão da “loucura”. Por isso ele leva a termo uma voz estranha, como um profeta seduzido pelo deserto.

11.

Dentro de pouco tempo ele percebe não mais os imperativos breves, mas uma voz que começa a lhe falar verdadeiramente. Inúmeras vezes ela soa como uma voz idêntica à voz de Deus ouvida durante seu passeio, mas não é uma voz que vem das alturas. É o “Deus” que está nele, e cada vez que esta voz diz “eu” “Deus” é dividido entre ele mesmo e “Deus” em Nijinsky, como Nijinsky é dividido entre ele mesmo e o “Deus” que está nele. Esta voz interior é, com certeza, o monólogo de Nijinsky, a voz de seu duplo, uma voz que não se sabe a quem pertence e que fala como um parente, um amigo, uma alucinação que faz falar

AS PALAVRAS E NIJINSKY AS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 31 19/07/12 16:44

32 33

de Deus. É o coração de todas as vozes que pertencem a uma pessoa. “Eu sou Deus que está em você. Se você quiser me compreender, eu estou a seu dispor. Eu sei o que você pensa. Ele está aqui. Ele está vendo você. Eu quero que ele lhe veja.” “Eu”, “você”, e “ele” se avizinham, se alternam, tornam-se intensidades que ignoram a identidade. A voz de Deus, que a cada passeio ditou e profetizou laconicamente, agora faz vibrar e interpenetrar os pronomes e os transforma em ondas de multiplicidade alternando sem cessar. “Eu” e “Deus” conectando-se e fundindo-se. No momento em que ele escuta tal voz, o diário de Nijinsky já está provavelmente na fronteira extrema da loucura. Essa voz é projetada em um lugar onde todas as estratégias de escrita de Ninjinsky parecem desmoronar e convergir. A voz de “Deus” não indica um estado de crença, nem um retorno ao panteísmo. O dançarino, que não pode ser outro senão um Anticristo, por sua paixão pelo movimento, infiltra a lógica do movimento (ou da gênese) em todas as dobras da escritura. Tocando a própria vida, ele destrói a gramática. Fazendo proliferar os paradoxos e escrevendo sobre escrever, ele molda a escrita como uma membrana resistente de palavras, subtraída da verdade assim como da representação. O valor mínimo dos sentidos e o valor máximo do movimento coexistem. Assim que esta membrana se rompe, não resta nada mais a enterrar no caos indiferenciado, e quando ela se espessa demais, não se pode tocar nem mesmo a vida. Esse plano intenso não cessa de preencher a voz de “Deus em mim”. Escrever será uma escolha que se volta em direção à ressonância desse mundo sem sujeito, uma prática para viver o exterior do mundo construído como interior, o exterior da linguagem inseparável deste interior. A escrita se apresenta subitamente como uma linguagem universal, como palavras que desterritorializam a língua. Paradoxo e double bind são as estratégias para conquistar uma linguagem universal. Desarticular os sentidos, a identidade, a doutrina, a representação, a troca, mesmo se não podemos capturá-los, fazer da linguagem uma membrana intensa preenchida de ondas como singularidade ou multiplicidade, que não podemos designar com palavras, produzir um plano de ressonância de vibrações do mundo, fazer vibrar a “voz de Deus” que não pertence a ninguém, que não tem identidade própria, quando compreende tudo isso Nijinsky não era mais Nijinsky. Ele era um salto. “A alegria, e não o terror.” Ou melhor, terror e alegria de uma só vez.

AS PALAVRAS E NIJINSKY AS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 32 19/07/12 16:44

32 33

“Minha filha canta ‘Ah ah ah!’ Eu não compreendo os sentidos, mas eu sinto o que ela quer dizer. Ela quer dizer tudo. Ah! Ah! – é a alegria, e não o terror.”

AS PALAVRAS E NIJINSKY AS PALAVRAS E NIJINSKY

livro_KUNIICHI.indd 33 19/07/12 16:44

35

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 34 19/07/12 16:44

35

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

2. VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

1.

O que é cruel é, antes de tudo, o pensamento. Pensar é cruel para Artaud. Pensar, que consistiria nos fatos de dividir, compor, associar, determinar, diferenciar, identificar, transforma-se em processo estranho, indeterminável. Pensar é cruel, porque, se conseguimos pensar, este pensamento nos invade, penetra nosso ser, rompe toda a espessura de nossa vitalidade, o emaranhado interminável de nossas sensações e de nossas memórias, tudo o que é gravado no corpo. Pensar jamais se exerce sem acompanhar uma forma de poder e violência, o que Artaud nomeará mais tarde “de micróbios de Deus”. Mas pensar é cruel, sobretudo, porque nunca conseguimos pensar como se deve. E é na impossibilidade, ou na terrível paralisia do pensamento, que Artaud descobre e redescobre a crueldade.

Quando ele não consegue pensar, e isso é o que diz repetidamente em sua correspondência e em seus textos, ele mostra que o pensamento nunca é o que se entende por essa palavra. Pensar é cruel, mas não poder pensar também é cruel e, finalmente, pensar, para Artaud, consiste em nunca conseguir pensar, na medida em que um pensamento nunca faz o espírito funcionar com algumas regras conhecidas, mas reencontra a cada vez materiais e corpos desconhecidos. Cortar, perfurar, ferir, minar, esquentar, esfriar, abrir, empilhar ‒ com um infinito de variações ‒ são atos, necessariamente, intermináveis, incontornáveis. É por isso que pensar e não pensar é quase coextensivo, e constituem o mesmo processo para Artaud, e é esta coextensividade que rende crueldade ao pensamento.

Aqui uma passagem da correspondência com Jacques Rivière em que cada palavra explora todos os aspectos da crueldade do pensamento. “Eu sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento me abandona em todos os níveis. Do fato simples do pensamento ao fato exterior de sua materialização nas palavras. Palavras, formas de frases, direções interiores do pensamento, reações simples do espírito, eu estou em busca constante do meu ser intelectual. Quando, então, consigo alcançar uma forma, por imperfeita que

livro_KUNIICHI.indd 35 19/07/12 16:44

36 37

seja, fixo-a no temor de perder todo o pensamento. Eu estou abaixo de mim mesmo...”1 Sim, ele está abaixo de si mesmo. Portanto, todas essas palavras se dirigem de maneira afirmativa para baixo dele mesmo, da unidade pessoal, de seu pensamento, das formas, para os níveis inferiores da razão, de maneira obstinada e intensa. Falando da “materialização do pensamento nas palavras”, Artaud designa, sem dúvida, o pensamento como o processo mais profundo que trabalha a matéria. No pensamento e nos esforços de pensar, ele sofre uma estranha violência e, ao mesmo tempo, inflige a violência ao pensamento. É assim que o pensamento é cruel. Aquele que pensa, o que pensamos e o próprio pensamento sofrem igualmente a crueldade. Esta crueldade mina e transforma o sujeito e o objeto do pensamento e, sem dúvida, a própria condição do pensamento.

Sabemos que o sofrimento e a doença têm um sentido determinante para a vida, a criatividade e todas as experiências de Artaud. Sua “terrível doença” poderia ser definível em termos psiquiátricos. Mas, literalmente, ele “trabalha” sua doença, tanto que ela se singulariza de maneira inqualificável, e em sua experiência do pensamento ele criou uma relação quase extraordinária com o sofrimento. Mais uma vez a história de um artista mártir ou de um poeta maldito? Certamente ele o era. Esta é uma das razões pelas quais sempre nos interessamos por Artaud. Mas seu sofrimento não era o preço a pagar pela criação. Ele sofreu ao mesmo tempo por ser capaz de pensar e por não ser capaz de pensar. O sofrimento em Artaud é um verdadeiro trabalho de transformação do pensamento. Quem pensa? Quem sofre deste estado impossível e absurdo por pensar? Sou eu ou meu espírito ou meu corpo ou meus nervos que sofrem? A crueldade é um questionamento de tudo isso e, acima de tudo, a indicação do colapso do que seria um sujeito do pensamento.

Mas é preciso finalmente dizer que a crueldade nomeia qualquer coisa que ultrapassa e transborda a dimensão do pensamento. O pensamento é cruel porque ele sempre afronta o que vem de seu exterior, o que é impensável, o que continua a ameaçá-lo, manifestando-se como caos ou desordem. A crueldade do pensamento é um signo da invasão do estrangeiro. O que é

1 A. Artaud, Correspondance avec Jacques Rivière, in Oeuvres complètes, Editada por Paule Thévenin, tomo I a XXVI, Paris, Gallimard, 1956-1994, tomo I* (segunda edição de 1970), p. 24.

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 36 19/07/12 16:44

36 37

estrangeiro, como já vimos, é a matéria e o corpo sem os quais o pensamento não existiria, mas também todas as forças, todos os fluxos que atravessam o corpo e a matéria. No interior do pensamento, a crueldade significa a mutação de tudo o que caracteriza o pensamento, do que condiciona o sujeito e o objeto do pensamento, incluindo a linguagem. Mas a crueldade é, no fundo, o signo do que é estrangeiro ao pensamento, de uma cruel abertura do pensamento ao exterior.

Em todos os textos poéticos dos anos 1920, o tema da crueldade e do pensamento está sempre presente, embora Artaud não acentue explicitamente a crueldade como conceito-chave – o que realizará com o teatro da crueldade. E porque se trata da poesia, apesar da resistência e da vigilância contra todas as normas estéticas ou formais implicadas na poesia como gênero literário, a crueldade diz respeito essencialmente à linguagem. A mesma operação violenta efetua-se sobre a língua, tanto quanto sobre o pensamento. Evidentemente, a linguagem não é apenas um instrumento ou um sistema de signos para o pensamento. A linguagem é o corpo do pensamento, a parte quase material do pensamento. O pensamento faz uso da linguagem, mas a linguagem bloqueia e paralisa o pensamento. Artaud sempre concebeu na linguagem algo de injusto, envenenado, doente, hostil. Aqui uma passagem de O Umbigo dos Limbos. “Deixe sua língua, Paolo Uccello, deixe sua língua, minha língua, minha língua, merda, quem é que fala, onde você está? Além, além, Espírito, Espírito, fogo, línguas de fogo, fogo, fogo, coma sua língua, cão velho, coma sua língua, coma etc., eu arranco a minha língua.”2 Trata-se, desse modo, de arrancar ou comer a língua como linguagem e a língua como órgão situado na boca. De toda maneira, as palavras são concebidas em seu limite como pura vibração corporal e simultaneamente como puro objeto paralisado. A linguagem é o corpo do pensamento, mas, em relação ao corpo orgânico, ela pertence ao incorpóreo. Para Artaud, ela está, portanto, sempre localizada no limiar entre o corpóreo e o incorpóreo. Sua escrita poética constitui uma operação difícil sobre este limiar, no qual o corpo e a linguagem são, ao mesmo tempo, colocados em risco.

2 A. Artaud, “Paul les oiseaux, ou La place de l’amour”. Ombilic des limbes, in Oeuvres complètes, tomo I*, op. cit., p. 54.

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 37 19/07/12 16:44

38 39

Além disso, a crueldade se efetua primeiro sobre o pensamento e, quase ao mesmo tempo, sobre a linguagem, mas através da linguagem que constitui o corpo opaco e ameaçador do pensamento. O que importa, finalmente, é ainda uma outra coisa. Esta outra coisa é exatamente o próprio corpo, o corpo como organismo. Mas de que corpo, de que tipo de relação com o corpo se trata? “Eu o cultuo”, escreveu Artaud, “não o ser, mas a carne.”3 Sabemos que é com esse culto da carne que ele busca sua Odisseia, sua viagem apocalíptica ao México, à Irlanda e à Rodez. Evidentemente, seu culto à carne não é nem elogio ao erotismo, nem afirmação dos prazeres que afetam o corpo, nem uma simples apologia à realidade corporal. Quando ele diz em um texto escrito em 1925: “eu me libero desse condicionamento de meus órgãos tão mal ajustados ao meu eu”4, manifesta muito claramente seu ódio aos órgãos, isto quer dizer que ele cultua a carne, mas detesta os órgãos. Através deste culto paradoxal, ele problematiza o corpo de uma maneira completamente original. E a crueldade de Artaud nunca será compreensível se for concebida fora desta problemática do corpo, insustentavelmente paradoxal.

Ao traçar a linha da crueldade, do pensamento à linguagem, da linguagem ao corpo, ele desloca seu questionamento para uma dimensão teatral. É aí que sua problemática da crueldade concretiza-se e cristaliza-se de outra maneira, diferente da escrita. Mas o memorável é que, em quase todos os seus textos poéticos e em suas cartas que investigam sua própria crise do pensamento, buscando, descrevendo, operando a crueldade no pensamento, ele continua a dramatizar o pensamento. Tudo o que se passa no pensamento, no seio da crueldade, assemelha-se a eventos geológicos, vulcânicos, com imagens de gelo, pedra, metal, fósforo, carbono, enxofre, fogo e terra. E, de repente, esse espaço é preenchido por figuras delgadas, fragmentadas, móveis, trêmulas e extremamente sensíveis como cordas, fitas, filamentos, membranas, radicelas etc., sobretudo nervos. Sua poesia trata sempre de um teatro do pensamento, sem o qual jamais haveria o teatro da crueldade, e no teatro do pensamento as personagens são, frequentemente, pedras ou metais.

3 A. Artaud, Fragments d’un journal d’enfer, in Oeuvres complètes, tome I*, op. cit., p. 116.4 Ibidem, p. 26.

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 38 19/07/12 16:44

38 39

2.

A escrita de O teatro e seu duplo sempre nos surpreende. O primeiro ensaio começa pelos arquivos que relatam a peste e seu terror, mas é para dizer, enfim, que a peste se iguala ao teatro, que ela não é causada pelo corpo dos micróbios, mas pelo corpo engajado no teatro. Fora a peste, nesse livro, há vários catalisadores, se não metáforas, para cristalizar um novo conceito de teatro: o teatro balinês, a alquimia, uma pintura de Lucas van Leyden, “As Filhas de Loth” etc. Muitos disseram que a teoria de Artaud é tão abstrata, tão extrema, que ela não seria muito aplicável a uma encenação concreta, que o próprio Artaud não conseguiu sem ir até o limite de sua prática em cena, e o que ele pretendeu não era exatamente teatro, era mais um outro tipo de performance. Eles provavelmente estavam certos. Mas ler Artaud requer um outro tipo de razão ou mesmo de desrazão.

O teatro e seu duplo não é um manual para um novo teatro. Certamente todos podem tirar lições para reinventar seu próprio manual. Mas, mesmo que, na catástrofe do pensamento, ele nunca tenha escrito um tratado de nova filosofia, não se trata de redefinir a metodologia para renovar o teatro. Se bem que Artaud, às vezes, teve ideias bem viáveis do ponto de vista técnico. O núcleo do livro é muito mais catastrófico. Esse livro pretende introduzir uma catástrofe no teatro ocidental tradicional e no corpo coexistente a ele. Se Artaud ainda desejava ser um homem de teatro nesta recusa ao teatro já realizado, era porque, para ele, esta catástrofe poderia, ela mesma, ser o próprio teatro. O teatro não existe na sala de espetáculos, nem na cena. Artaud descobre o teatro no plano da crueldade que continua a trabalhar o pensamento e a impossibilidade do pensamento. E ele bem sabe que este plano não se limita apenas à dimensão do pensamento e pode se estender aos fenômenos naturais como erupções vulcânicas. Para ele, é necessário que o teatro atinja esta dimensão da crueldade que atravessa o pensamento e a natureza. Deve-se introduzir uma catástrofe no teatro, por exemplo, através do que a peste traz consigo; o teatro trabalha a crueldade. A crueldade trabalha o teatro.

Aqui uma lista de crueldades. “No fogo de vida, no apetite de vida, no impulso irracional para a vida, há uma espécie de maldade inicial: o desejo de Eros é uma crueldade, pois passa por cima das contingências; a morte é

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 39 19/07/12 16:44

40 41

crueldade, a ressurreição é crueldade, a transfiguração é crueldade, pois, em todos os sentidos e num mundo circular e fechado, não há lugar para a verdadeira morte, pois uma ascensão é um dilaceramento, pois o espaço fechado é alimentado de vidas e cada vida mais forte passa através das outras, portanto as devora num massacre que é uma transfiguração e um bem. No mundo manifesto, e metafisicamente falando, o mal é a lei permanente, e o bem é um esforço e já uma crueldade acrescida à outra.”5 Mas, diante de todas essas crueldades, ele não se permite permanecer apenas como um espectador pessimista. Trata-se de relançar e recriar nesta “maldade original”. A guerra e o incesto serão temas privilegiados para o teatro da crueldade. Trata-se, principalmente, de redescobrir e reinventar o corpo humano no jogo terrível entre as forças da vida e da morte. Trata-se de fazer vibrar o corpo além de seus limites orgânicos, social e historicamente organizados. É neste insólito projeto que Artaud lança o teatro. E não tentou apenas lançá-lo num caos ou numa catástrofe. Através dos textos de O teatro e seu duplo, ele busca, explorando todo o caos que transborda do sistema de vida ocidental, um outro plano que manifestaria uma outra ordem, uma outra economia de forças vitais. O teatro balinês inspira a ideia deste plano, desta forma que regula os informes, desta ordem que atravessa as ondas, os fluxos, os ruídos, as lacunas, as dobras, no seio das quais a vida acontece, o corpo se inventa. Escrevendo sobre o teatro balinês, Artaud descobre e produz a imagem de outro corpo que vive com seus órgãos e seus nervos, outro modo de troca e circulação com o exterior. De acordo com esta imagem, a crueldade não é apenas terrível, catastrófica, é também criativa e quase eufórica, como modo de abertura bem elaborado.

3.

Mas, por uma absoluta necessidade, a crueldade não podia ficar somente no plano teatral. Durante o período de internação, mais conhecido por suas cartas e seus cadernos de Rodez, e depois durante sua última estada em Paris, a crueldade continua a trabalhar o corpo e a alma de Artaud. Ele mesmo não

5 A. Artaud, “Lettre sur la cruauté” (1932), Le théâtre et son double, in Oeuvres complètes, tomo IV, op. cit. p. 100 [“Cartas sobre a crueldade” (1932), O teatro e seu duplo, tradução de Teixeira Coelho, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 120].

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 40 19/07/12 16:44

40 41

para de trabalhar a crueldade. Sim, ele continua a trabalhar, apesar da crise do espírito, ele continua a inventar e a reinventar um trabalho singular não só resistente à crise, mas também trabalhando e investigando esta própria crise. E todo esse trabalho é para redescobrir e refazer o corpo, e é praticado pela escrita tanto quanto pelo desenho. A escrita é, muitas vezes, lançada em um jogo puramente sonoro, uma espécie de glossolalia. As palavras, os traços que realizam os desenhos, os gritos que surgem entre as palavras como estranhas linhas de fuga deixando a língua, tudo isso se encaminha em busca de um corpo: um corpo verdadeiro em sua exata realidade, seu dinamismo puro, sua vitalidade nua. Um dia ele nomeia este corpo como corpo sem órgãos. Assim, todos os pensamentos, todas as experiências, mesmo o delírio, operam como um imenso trabalho singular, sem descanso, para realizar este corpo. O próprio Artaud articula de uma maneira fulminante o que é este trabalho. Faz-se seu corpo por si mesmo, com a mão. “Porque os cataplasmas não nasceram do espírito santo e sim da aplicação manual, a vontade não é um fluido, é um gesto, a espessura é a consequência de um trabalho de empurrão, de petrificação, e não de um espírito.”6 Uma outra citação: “Eu sempre disse: aqui se reencontrará, mas eu nunca soube como e eu não o preparei com antecedência/ mas coloco outra coisa sobre o momento/ porque eu trabalhei o corpo, e não o espírito.”7

O que é diferente do primeiro período em que a crueldade é descoberta no colapso e na mutação extraordinária do pensamento, e diferente ainda do segundo período, articulado pelos manifestos do teatro da crueldade, é que agora seu trabalho do corpo e sobre o corpo realiza-se em um campo mais vasto que é, de todo modo, histórico. De uma maneira muito condensada, sua reflexão apoia-se na história do corpo. Tudo o que ele escreveu em suas centenas de cadernos apresenta-se como um apocalipse do corpo, tanto que ele continua a pensar constantemente em como o corpo foi roubado, martirizado, torturado, deformado, suprimido de uma maneira quase irrecuperável. O Cristo, as doutrinas, os misticismos, as metafísicas, as ciências, as políticas, tudo o que é social, a medicina e os hospitais psiquiátricos são responsáveis por isso. A vida humana, suas forças vitais, incluindo a libido ou o desejo, é

6 Ibidem, p. 51.7 Ibidem, p. 61.

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 41 19/07/12 16:44

42 43

moldada nas redes institucionais da vigilância, da organização ou da exclusão. A sexualidade é também uma inimiga para Artaud, na medida em que ela é igualmente uma forma de vida organizada, manipulada e governada. O corpo é roubado, a vida está em outro lugar. Mas, se esta posição em face do corpo e da vida não representa, de modo algum, uma nova versão da utopia ou do além, é porque Artaud jamais desiste de seguir seu trabalho singular sobre o apocalipse do corpo. Seu trabalho sobre o corpo continua até o fim, onde o corpo trabalha o ser para que o corpo exista realmente. É por isso que a escrita é entrecortada, escondida, intensificada, acelerada, sempre colocando em questão o sentido, a gramática, a forma. É preciso que o corpo se revele sobre a linguagem sem intermediários, e que a linguagem se abra ao corpo no vai e vem entre o cheio e o vazio, para esvaziar o corpo das instituições ou das organizações e para preenchê-lo apenas do que está entre ou fora das instituições e das organizações. O Estado, a sociedade, o exército, a escola, a medicina, a cultura são inimigos do corpo. Artaud foi longe demais, ao ponto de chegar a uma imagem de um corpo irrealizável, esvaziado de todas as possibilidades reais, como já se disse suficientemente a propósito de seu teatro da crueldade.

Mas trata-se do corpo mais do que do ser. Posso apenas citar Artaud: “A necessidade de fazer um corpo, aqui está o que libera as pretensões da inexistência ao não ser/ e que permite saber como do corpo sem espírito se passa ao corpo/ porque a questão não se coloca/ de espessar ao mais espesso do mais espesso sem transferência.”8 “Ser supostamente uma dose, uma pausa, uma espécie de síncope mortal que defina a natureza, ordene em natureza e qualidade, diferencie a qualidade, o valor,/ entre valor e qualidade ordene o homem a fim de lhe impregnar o suficiente/ para desencorajá-lo a se aborrecer/ resmungar, vomitar e protestar, para desencorajá-lo de qualquer coisa que não seja um estado ou uma coisa, mas que seja o fato de que ele não é uma coisa, mas um corpo, que é acima de tudo e unicamente um corpo...”9

A medicina pretende saber o que é o corpo, a biologia também, a neurologia também. De uma outra maneira, os atletas conhecem os limites do corpo, os pacientes tornam-se conscientes de outros estados do corpo, os amantes

8 A. Artaud, Cahiers du retour à Paris (août-septembre 1946), in Oeuvres complètes, tomo XXIII, op. cit., p. 257.9 A. Artaud, Oeuvres complètes, tomo XXVI, op. cit., p. 82.

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 42 19/07/12 16:44

42 43

também, de uma outra maneira, e o que a filosofia ou a sociologia sabem? A psicanálise pretende saber muito sobre coisas do inconsciente, mas o que ela sabe sobre o corpo? O que é o corpo? Será esta uma falsa questão à qual é impossível responder, apesar de que ter um corpo é, para todo mundo, um dos fatos mais banais?

Mas, considerando até o fim o problema do corpo na crueldade, Artaud o questiona, em seu entendimento mais aberto, em sua flutuação infinita. Para ele, o que é infinito é o mais concreto, mais real. O corpo em sua crueldade não encerra todas as questões da vida, de estar nas fronteiras, mas se abre à virtualidade de uma comunicação aberta e densa ao máximo. A crueldade em sua busca do corpo dirige-se, assim, para uma comunidade realizada através deste corpo, como novos vasos comunicantes.

Em Rodez, após se converter ao cristianismo, ao “cristianismo das catacumbas”, segundo Artaud, atravessa uma série de enfermidades do corpo, e é refletindo profundamente sobre a encarnação de Cristo que ele redescobre sua posição em relação ao corpo, tanto que ela marcou suas expressões poéticas e teatrais. Pensando sobre a encarnação, ele se reencarna. “Dilatar o corpo de minha noite interna”, disse ele, em Pour en finir avec le jugement de Dieu. Inimigo do espírito, da alma e da linguagem, qual o partido do corpo? Artaud opõe seu corpo ao corpo orgânico como objeto biológico, médico, higiênico etc, o corpo, para ele, é algo que sempre se distingue do corpo como objeto determinado, contornável. O corpo designa uma diferença que se evidencia, que se espessa constantemente em matéria flutuante, abrindo-se aos agenciamentos e às conexões, a todas as crueldades que lhe atravessam. É um plano imanente que se adensa ao se abrir, que se desterritorializa ao se recolher. “Dilatar o corpo de minha noite interna”10, exterioridade invaginada, dobrada dentro, interioridade extirpada, aberta. O corpo é a única matéria desmaterializada para Artaud. Ele é o inconsciente do inconsciente, ou a única consciência do inconsciente. Tudo o que Artaud viveu, ele o fez para descobrir a realidade deste “corpo da noite interna”.

10 A. Artaud, Pour en finir avec le jugement de Dieu, in Oeuvres complètes, tomo XIII, op. cit., p. 94.

VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE VARIAÇÕES SOBRE A CRUELDADE

livro_KUNIICHI.indd 43 19/07/12 16:44

45

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 44 19/07/12 16:44

45

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

3. HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

Durante sua vida, Hijikata já era uma figura mítica no meio artístico de vanguarda do Japão nos anos 1960-1970. Desde sua morte, em 1986, os mitos em torno dele subsistem até hoje. Mas suas influências na dança (e no teatro) são cada vez menos visíveis, por outro lado; Hijikata é cada vez mais mistificado, e já não se compreende qual era realmente a questão que sua vida, sua dança, suas pesquisas, suas experiências, suas tentativas não cessavam de indagar.

Por certo, Hijikata era antes de tudo um dançarino, mas em um contexto bastante singular. Ele se formou dançarino sob a influência da dança expressionista alemã, porque, segundo ele, na época, era a dança mais sólida, a mais metálica do mundo. Mas é preciso dizer que, desde o começo de sua carreira, sua pesquisa foi excepcional; ele simplesmente dançava, como se não tivesse jamais levado a sério a dança como conjunto de gestos expressivos, de aspectos formais ou de movimentos formalizados ligados a uma certa psiquê.

Resta um testemunho muito simbólico do crítico de dança Nario Goda que resume bem a característica da dança de Hijikata, perceptível desde o começo. Trata-se da primeira criação Kinjiki (Cores Proibidas), em 1959, inspirada por uma obra de Mishima.

“Só o garoto bonito Yoshito Ono é visível sob a luz. Ele olha suas próprias mãos, fixa as mãos violadas em uma atmosfera homossexual. Hijikata em cena nunca deixa a sombra. Ele não faz nada além de olhar os movimentos do garoto.”1

Sabe-se bem que Hijikata não ficou o tempo todo imóvel durante a dança. Mas, desde o começo, a dança de Hijikata colocou em questão o movimento de dança. Ele colocava tudo em questão de uma vez: a vida, a sociedade, o espírito, o corpo, a sexualidade e a dança também, mas, a despeito de tudo, ele precisava de uma dança para lançar suas questões. Sua relação com a

1 N. Goda, Ekoda bungaku, número especial sobre Hijikata, n. 17, 1990, p. 7.

livro_KUNIICHI.indd 45 19/07/12 16:44

46 47

dança foi, portanto, muito tensa desde o início. A dança para ele não existia por antecipação, nem as danças ocidentais nem as danças tradicionais do Japão constituíam dados imediatos. Não existia uma disciplina previamente ou uma aquisição sobre a qual se apoiar. A dança estava por descobrir, por encontrar, talvez a se reencontrar, a se reinventar, mas, no final, ele estava sempre pelas bordas da dança que é uma disciplina. A dança era apenas um meio de pesquisa para qualquer coisa de mais essencial. Ele podia deixar de dançar durante muito tempo, se ele tinha algo mais importante, sabendo também que, sem tudo que é denso, intenso, singular na dança e no corpo que dança, ele não poderia ir longe na pesquisa de qualquer outra coisa. Eu vejo uma espécie de situação limite que determina alguns artistas sensíveis a nos deixar muito modernos ou futuristas.

A revolta da Carne é o título de sua performance ambiciosa, representada em 1968, e que se tornou lendária por conta do subtítulo Hijikata Tatsumi e os Japoneses. De que revolta, de que carne se tratava? Certamente Hijikata foi vanguarda com seu gosto pela transgressão, pela provocação. Ele foi inspirado pelo surrealismo e por autores como Sade, Genet, Lautréaumont, Artaud etc. O erotismo, a violência, o sacrifício, a perversidade, o travestismo, a ruptura na narração contavam bastante. Queria perturbar, transgredir, destruir a moral, as instituições, todas as autoridades sociais, políticas, culturais. Sempre praticou sua arte experimental com sua sensibilidade singularmente poética. Ele articulou muito claramente sua vontade revolucionária num contexto social.

“Todas as forças morais civilizadas em colaboração com o sistema de economia capitalista e aquele da política excluem firmemente a carne como objetivo, meio ou instrumento de alegria. Sem dizer que o uso da carne sem objetivo, que eu chamo de dança, será o inimigo mais execrável e um tabu para a sociedade produtiva. Isso porque minha dança é uma operação para exibir a esterilidade absoluta contra a sociedade produtiva. Ela partilha um fundo comum com os crimes, a homossexualidade, as orgias, os ritos. Neste sentido, minha dança é baseada em uma luta contra a natureza primitiva, ela se faz sobre todas as ações autônomas e que contêm os crimes, a

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 46 19/07/12 16:44

46 47

homossexualidade, e se constitui como uma revolta contra a alienação do trabalho humano na sociedade capitalista. É por isso que os criminosos estão presentes na minha dança.”2

Tento traduzir o estilo tortuoso e barroco de Hijikata. Nunca é fácil. Será que este manifesto parece datado hoje? Hijikata sentia profundamente que a carne era excluída, sufocada, alienada na sociedade mais e mais rapidamente urbanizada, capitalizada, uniformizada. O corpo era cada vez mais estrangeiro, invisível na vida e na paisagem urbana japonesa.

E o que não se pode perder de vista é aquilo que constituía a carne para ele. Não era apenas o erotismo, a sexualidade perversa, o desejo transgressivo que motivavam sua pesquisa singular do corpo. Na passagem que acabo de citar, Hijikata assinala sua “luta contra a natureza”. Durante esta luta, sugere também uma intimidade forte com a natureza que ele viveu desde sua infância. A natureza da região nordeste (Tohoku), onde ele nasceu não é tenra, lá a fome é frequente. A terra habitada, ou assombrada pelos diabos e espíritos malignos, é um País das Trevas. Num dado momento, ele nomeou sua dança “Dança das Trevas”.

De acordo com Hijikata, esta região foi muito explorada pelas cidades ricas do Japão, que aí procuravam “arroz, cavalos, soldados e mulheres”. A maior parte de seus irmãos foi morta na guerra. Hijikata não tinha apenas nostalgia desta terra natal, todas as sensações e todos os dramas que ele viveu nesta terra estiveram sempre presentes em seu corpo. O menino Hijikata imitou e roubou os gestos de todos os seres que o rodeavam. A memória desta infância não é feita de episódios ou de imagens que constituem uma narração literária a propósito de uma recordação de infância, da família. Esta infância é inteiramente presente através de uma dimensão infinita de sensações e percepções moleculares. A infância é feita de moléculas e de partículas.

Portanto, desde o começo, a arte de Hijikata manifestou dois aspectos aparentemente contraditórios, mas a contradição não é o que aparenta. Como

2 T. Hijikata, Zensyuu [Obras completas de Tatsumi Hijikata], tomo I, Tóquio, Kawade Shobou Shinsha, 1998, p. 198.

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 47 19/07/12 16:44

48 49

artista de vanguarda, ele explora tudo que é moderno sob as influências ocidentais, mas com uma sensibilidade e uma lucidez extraordinárias. Os materiais e as substâncias que constituem seu corpo, sua carne, sua dança são embasados em vivências muito concretas de sua infância no nordeste, não é somente o que resta do passado, nem mesmo as recordações. É uma infância que não para de se reinventar, reviver, perpetuamente em devir. Este aspecto enraizado em Tohoku será cada vez mais importante para o desenvolvimento de sua arte. Hijikata é um pseudônimo que significa “do lado da terra”, por isso lhe ocorreu dizer: “eu, eu vim do vento misturado aos excrementos das galinhas”.

É marcante que, através desta ambivalência, ele elaborou ainda uma imagem interessante e singular do corpo. Vou citar as notas que Hijikata escreveu para fazer os estudantes dançarem, na época de Kinjiki.

“Esta apresentação de dança, que se desenvolverá ao se deixar ver o corpo, excluirá de sua superfície toda dança como movimento dado pelo exterior. Esta apresentação de dança reduz o corpo a sua pura existência, se bem que quando o endereço e o nome de um indivíduo lhe são arrancados, o corpo terá naturalmente seu lugar. Pouco importa o que você faz. Importa somente o que você se deixa fazer; então se pode dizer que é o mundo que se lança no corpo. [...] Pequenas placas de metal se metamorfoseiam bruscamente em telas. As imagens projetadas lá embaixo não são cadáveres de uma ação. Fragmentado através destas telas, vocês terão pela primeira vez o corpo decomposto e unificado de uma só vez.”3

Resumindo, o corpo que dança recusa se submeter à articulação determinada por uma ação. Sua unidade não é embasada na ação. Esse corpo se constrói a despeito da ação, de acordo com uma outra unidade, distinta daquela que se submete à exigência de uma ação sensório-motora, coerente com todos os fluxos e as vibrações que atravessam o corpo.

3 M. Akiko, Hijikata Tatsumi to tomoni, Tóquio, Chikumashobou, 1990, p. 65-66.

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 48 19/07/12 16:44

48 49

“O Butô se volta em direção a uma arquitetura que compõe todas as tentativas do corpo estando em suas posições, isso com o fato de que nenhuma combinação inesperada, nenhuma matriz superior pode copiar a realidade do corpo. As tentativas derrubadas no corpo se movem sem lhe enganar puerilmente. Atrás delas, é o cosmos inteiro que improvisa.”4

Hijikata tinha um senso profundo de liberdade e de errância na sua arte, o que não excluía um rigor surpreendente naquilo que buscava. Sua escrita e sua palavra tinham o mesmo traço poético, bizarro, fluido, tenaz, muito afetado.

Tento recapitular os problemas. Toda pesquisa de Hijikata foi motivada pela necessidade de ser moderno, de libertar o corpo e, ao mesmo tempo, de não abandonar jamais as vivências superconcretas de sua infância. Sua arte é suspensa entre estes dois polos, estas duas necessidades que sempre ativaram sua criação. A dança não cessa de colocar questões entre estas duas motivações, sem jamais assegurar formas ou técnicas elaboradas e matriciais. E a situação limite na qual a dança não para de se experimentar continua a comprometer a imagem estável e evidente do corpo.

A propósito, nós sabemos verdadeiramente o que é o corpo, o que pode o corpo? A biologia sabe, de seu ponto de vista, muitas coisas sobre o corpo, a medicina ocidental ou oriental tem seus saberes especializados, o corpo como domínio da saúde, da sexualidade, do trabalho, do esporte, de todos os tipos de atividade, existe como se a existência do corpo estivesse em evidência. Mas, a cada vez que o corpo é fragmentado e reduzido a quaisquer órgãos ou atividades explícitas, isolados do caos inteiro, quem provoca nele o turbilhão? O termo de Antonin Artaud, “o corpo sem órgãos”, parece sempre significar muita coisa nesse contexto. É por isso que introduzir na cena o corpo como sujeito transgressivo ou objeto torturado não é jamais suficiente para questionar o que é o corpo. Além disso, o corpo existe com seus gestos, há o corpo como substância e o corpo como movimento, o corpo individual, visível, e o corpo invisível, estendido nas redes infinitas de vidas e matérias. A partir de 1973, Hijikata não aparece mais em cena, continuando somente

4 T. Hijikata, Zensyuu, op.cit, p. 237.

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 49 19/07/12 16:44

50 51

a dirigir de tempos em tempos uma coreografia. Às vezes, ninguém o via durante muito tempo.

A última série de performances que ele fez, antes de um desaparecimento longo e definitivo, intitula-se, de acordo com o poeta Takahashi Muturou, O espelho da grande dança sacrificial. Nesta série e no Kabuki de Tohoku (Tohoku Kabuki), série dirigida por ele e inacabada por conta de sua morte, Hijikata explicita o vínculo com sua terra natal. O contraste deste vínculo com a revolta da carne é marcante. Mais que um espetáculo monumental, havia uma evocação de Cristo, com o qual ele esteve sempre estranhamente preocupado. Por outro lado, esse vínculo com sua terra natal seria um retorno à origem, uma busca de identidade? Eu não acho. Ele era suficientemente perverso para ensaiar essa conversão, na qual muitos intelectuais japoneses encontraram um ponto de conflito concernente à identidade cultural. De todo jeito, ele não buscou uma identidade consolidada em sua terra. É certo que ele acentuou visivelmente todas as formas ancestrais do corpo japonês (as costas curvadas, os membros arqueados, a postura torcida, todas as dobras e nós sobre o corpo e seus gestos). Ele ficou mais e mais obcecado pelas lembranças das doenças, dos loucos, dos cegos que lhe haviam impressionado desde a infância, então não parou de copiar seus gestos. A mãe e as irmãs são muito presentes em sua memória, tanto que lhe ocorre dizer “quando danço é minha irmã que se ergue em meu corpo”. Ele se agarra mais e mais aos traços femininos que impregnaram o caos de sua infância. Não, ele nunca buscou sua identidade, nem sua origem, já que ele buscava sempre qualquer coisa que destruía toda origem e toda identidade. Ele volta a ser a criança que ele era, criança que não se pergunta jamais quem ela é. Ele está no meio de tudo que vê, ouve, sente, toca. Tudo que o cercou e o atravessou uma vez começa a redançar em seu corpo.

Em 1983, ele publica um livro chamado Dançarina doente, que continua ilegível e inclassificável para muita gente, em minha lembrança poucos falaram dele. Um livro singularmente poético, mas as palavras não são determinadas por uma espécie de autossuficiência que se fecha sobre a própria intensidade poética. É verdadeiramente um livro do devir. Ele se arrebata pelo devir criança, depois mulheres, animais, insetos, doentes, loucos.

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 50 19/07/12 16:44

50 51

Certamente não é a busca de uma identidade nacional ou de uma terra natal originária. É uma pesquisa de todos os átomos, de todos os fluxos que atravessaram o corpo de uma criança, tudo que pertence a uma terra sem nome, sem fronteira. Não é uma história da infância, nem mesmo uma teoria da dança. É um livro de dança em devir, no qual a dança é perpetuamente o devir outro. Devir não é imitar, nem simular, é se lançar entre você e o que você será. É um devir-desconhecido, imperceptível. Nesse livro, ninguém é nomeado, não sabemos jamais o que se passa na história. Um artista que já era classificado como herói lendário da vanguarda se liberta singularmente, sem reserva, para ser a criança que ele foi e que se torna cada vez mais estranha e estrangeira, molecular e flutuante.

“Do meu corpo, que se faz criador de fantasmas transformando o bolor, se dirá que ele foi criado definhado como uma múmia entranhada em seus bolores. Se bem que, ao beber os espíritos entre os bolores, ao invés da água, eu me fiz infiltrar em todos os interstícios das coisas, em todas as malhas de vestimentas, como se houvesse contemplado tudo me escondendo. Os armários e malas, as folhas de papel dobradas, a respiração das pessoas dormindo, o ar que se inflama com tudo isso, eu quero os bolores eriçados se misturando a todos. A ideia de que, a despeito do grito que poderia cicatrizar qualquer ferida, a dor se abrandaria se tocasse este ar secretado pelos bolores, esta ideia nunca abandonou meu corpo...”5

O mundo, o universo se lança em meu corpo de menino, e ele não tem nem histórias, nem personagens. A criança não faz nada além de descrever ou inscrever a velocidade e a flutuação de tudo que se passa em seu corpo sem forma. Os dramas, os acontecimentos e as sensações que perturbam os adultos não são mais, para esta criança, do que o movimento perpétuo dos átomos constituindo a vida.

5 Ibidem, p. 69-70.

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 51 19/07/12 16:44

52

Não importa quais objetos, uma concha, hashi6, bombons, uma bacia, fósforos, insetos fazem parte desse pequeno corpo estendido e disperso na imensidão, para o qual tudo está na mesma distância, próximo. A criança voa no céu, rasteja na terra, corre entre os vivos e os mortos.

Chega a ser estranho ver um artista alcançar o topo do domínio, da elaboração e da precisão de sua arte, e, ao fim de todas as suas aventuras, de todas as suas experiências, abandonar-se a seu devir criança no qual ele faz explodir de novo seu pensamento, seu corpo, sua arte. Não se trata mais de revolta, nem de transgressão ou de provocação. Sua arte é confiada ao corpo de uma criança flutuando no vento, movendo-se entre os animais, os fantasmas, os seres sem nome, entre terra e céu. E essa criança mal vê seu movimento, ela dança com aquilo que vê e vê fazendo dançar o seu olhar. Quer dizer: a contemplação e o movimento andam juntos. Há também muita docilidade, muita errância nesse devir.

À pesquisa que ele perseguiu em seus últimos dias nomeou “a coleção dos corpos debilitados”. Um dia, comentando essa pesquisa, ele disse: “até agora, continuando a coleção de corpos debilitados, acabo de perceber que há em certos quadros de Cézanne uma margem bizarra. Ele acabara de pintar, ou não havia conseguido pintar? Ele apagou ou não pintou deliberadamente? Em todo caso, lá surgiu uma margem frágil, o próprio Cézanne não sabe mais o que é essa margem, tão frágil que só podemos qualificar como um corpo debilitado... Deus se aproxima dessa margem”. De que Deus ele falava eu não ouso lhe perguntar, ele não era crente, nem devoto. Mas ele pensava bastante no que é a morte e no que é a dança cara a cara com a morte: uma vida de dança em face da morte.

6 Talheres asiáticos na forma de duas varetas.

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 52 19/07/12 16:44

52

HIJIKATA E O DEVIR NA DANÇA

livro_KUNIICHI.indd 53 19/07/12 16:44

55

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 54 19/07/12 16:44

55

4. CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

No começo se passa qualquer coisa de catastrófico no corpo, no mundo, em meu campo, tornando-se quase invisível, imperceptível, já que tudo é extremamente vivo, presente, flutuante.

E depois tudo desmorona. Tudo se move, se dispersa, se precipita.

“Eu não quero mais pensar a não ser com meu corpo.”

Há “uma carne infinita monstruosa”. Eu preciso decupar esta extensão da carne infinita e monstruosa de acordo com o tamanho de minha boca, de minha visão. Mas eu recuso sobretudo a tentação, essa de querer realizar uma forma.

Sim, é preciso dar a este informe, do informel, a esta monstruosidade, ao menos um contorno, mas não uma forma, jamais uma forma.

O mundo me parece extremamente e excessivamente vivo. Mas o que é pior, eu também sou tão vivo quanto tudo isso...

Eu retraço o que li em A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector. Como retraduzi o que li em japonês, agora em francês, é possível que eu lhe devolva uma Lispector que para você é completamente estrangeira.

Tenho uma razão para começar com esta citação e esta alusão à experiência singularmente catastrófica que me marcou profundamente. Você vai ver por quê.

Queria dizer que me interesso particularmente por uma dança e uma presença de corpo dentro de uma certa dimensão catastrófica da vida e do ser. Você encontra um corpo, você descobre um corpo, de repente o corpo se encontra lá, destacado da pessoa, da palavra, do contexto, dos sentidos, da história, da paisagem. Nesta catástrofe, um corpo é sempre estranho e estrangeiro com sua opacidade inatingível, inexaurível, irredutível. O corpo pode significar qualquer coisa, ao constituir signos, gestos, mímicas com todas as suas

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 55 19/07/12 16:44

56 57

movências. Mas a realidade dada através do corpo rompe com a significação. O corpo é essa ruptura inqualificável. Ele é esse estranho começo e recomeço que pode colocar em questão um pouco de tudo, o pensamento, a narração, a significação, a comunicação, a história: ele introduz uma catástrofe no tempo que flui. O corpo como ruptura implica um aspecto partido do tempo, da história. Ele não é mais surpreendente que certas artes ligadas intensamente ao corpo evocando uma imagem rompida, barroco da história ou, em resumo, um aspecto catastrófico do tempo.

Eu gostaria, então, de falar sobre o corpo de uma certa maneira, de um certo ponto de vista, sobre o que se passa entre dança e corpo, sobre o corpo dançante, a dança que descobre o corpo ou certos aspectos do corpo que são invisíveis no cotidiano. Isso diz respeito também ao corpo que coloca em questão a dança e a dança que coloca em questão o corpo. Não se trata somente do corpo de um dançarino, mas do corpo que é nosso corpo na vida; no entanto somos obrigados a repensar o que quer dizer esse “nosso”, qual é a natureza desta relação, deste pertencimento entre o corpo e nós, qual o lugar que o corpo ocupa em nossa vida.

Quando vi pela primeira vez a performance de Tanaka Min, há uns vinte anos, estava diante de um corpo que vivia em um outro tempo. Tempo geológico em que um corpo biológico despertava lentamente, um germe petrificado florindo invisivelmente. Em seguida, esse mesmo corpo alongado adormecia sua metamorfose sempre muito suavemente. Levantava-se também delicadamente como se retraçasse o tempo imenso de evolução que a espécie humana realizara um dia, andando em pé sobre duas pernas. Eu estava diante de uma imagem desconhecida do corpo, com um escoamento estranho do tempo. Eu descobri o corpo na imensidão do tempo que o atravessava, que o preenchia. Não captei somente a presença de um corpo desconhecido, mas o tempo fora da dimensão que tornou possível a evolução da vida, ou ao menos todas as flutuações do corpo humano sem forma, aberto sobre o tempo infinito não humano, aberto aos animais, às plantas, aos minerais, às moléculas, ao cosmos..., mas que cosmos?

Certamente Tanaka Min não ficou sempre na mesma dimensão desde aquela época. Ele introduziu narrativas, histórias, emoções, sensações, lembranças e

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 56 19/07/12 16:44

56 57

mesmo paisagens, mas o cerne de sua performance será incompreensível se nós não situarmos todos os elementos nesse tempo infinito que atravessa o corpo que dança. Os movimentos, os elementos ou os materiais estão lá para abrir-se nesse tempo infinito fora de dimensão, que assistiu a gênese do corpo e todas as suas metamorfoses a partir de uma época longínqua, pré-histórica. Mas não é por isso que eu tento situar a dança de Min em uma perspectiva um pouco mística ou cósmica, dando-lhe uma imagem da Grande Natureza, que ultrapassa amplamente a Humanidade.

O que conta não é, acima de tudo, a imagem, mas o que se passa entre as imagens. Também não é o movimento ou os movimentos. É o próprio tempo, com todos os seus aspectos de petrificação, de coagulação, de cristalização, de decomposição. A lentidão dos gestos quase invisíveis trabalha certamente o corpo que se abre sobre tudo que é virtual no tempo. Aqui não é o lugar para expor uma pequena teoria acerca da filosofia do tempo, que demandaria necessariamente uma reflexão profunda e paciente. Mas, quando refletimos sobre o tempo, de repente nos damos conta do modo virtual do tempo, que é irredutível ao tempo marcado por nossos elaborados relógios. Há um aspecto do tempo indivisível, irregular, irredutível nas unidades já pré-estabelecidas, que, não raramente, consistem em traduzir o tempo em termos de espaço. Há o tempo vivido não somente por um indivíduo ou pela humanidade, mas que existe antes da humanidade.

Nesse sentido, há qualquer coisa de catastrófico no tempo, sem que exista necessidade de falar de todos os acontecimentos catastróficos que se produziram no tempo histórico. Quero dizer que os gestos de um dançarino podem trabalhar esse tempo, de modo que seu corpo se introduza em uma dimensão que coloca em questão todas as condições que definem a realidade habitual do corpo humano. Um corpo destacado de todas as determinações sensório-motoras, expressivas, práticas, pode se encontrar constituído unicamente pelo tempo puro, virtual e invisível que se tornou, a despeito de tudo, um pouco sensível. Esse corpo e esse tempo estão sob a fronteira do visível e do invisível. Tanaka Min me fez descobrir essa fronteira.

De certo modo, o corpo é um fato ou um fenômeno completamente banal. Não há ser mais comum que o corpo, porque uma pessoa não vive sem

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 57 19/07/12 16:44

58 59

corpo. Mesmo o ser mais espiritual precisará de um corpo para ser espiritual; espiritualmente corporal. Mas o corpo não é um objeto puro, já que, ao mesmo tempo em que temos um corpo, nós somos simultaneamente esse corpo, ele mesmo. Nosso corpo é o sujeito indivisível, inseparável de nós, se bem que ele não se submeterá jamais inteiramente a nossa observação, a nosso pensamento, a nosso olhar. Filósofos como Gabriel Marcel ou Jean Wahl foram muito sensíveis a este aspecto duplo do corpo.

Aquele que pensa é aquele que não pensou enquanto corpo, o que é consciente é inconsciente. Assim o corpo é essa dupla realidade, ao mesmo tempo sujeito e objeto, meu exterior infinito e meu interior como abismo sem fundo. “Dilatar o corpo de minha noite interna” é uma frase inesquecível de Antonin Artaud.

Há uma dimensão que só o corpo pode captar, tanto que o corpo provém desta dimensão, sob a qual o pensamento não pode ter a visão dominante, uma vez que não é possível para o pensamento dominar um objeto, se este objeto está separado de si mesmo. O corpo é esse entrecruzamento do visível e do invisível, do dentro e do fora, do que se toca e do que é tocado. Ele não é uma coisa, nem uma ideia, mas o que faz existir uma coisa e uma ideia para nós. O corpo é essa espiral, essa circulação, esse enlaçamento, a dobra de meu interior e de meu exterior, entre o mundo e eu, a visibilidade e a opacidade, o quiasma sobre o qual Merleau-Ponty desenvolveu o argumento nas belas páginas de O visível e o invisível, definindo-o como qualquer coisa que dá a base do ser sensível no mundo. Isso faz com que este quiasma seja uma espécie de harmonia pré-estabelecida do ser.

No entanto, não é todo mundo que é capaz de viver sempre a realidade do corpo como expressão de uma certa harmonia pré-estabelecida. O corpo é muitas vezes vivido como experiência catastrófica. Um dos pacientes do neurofisiologista Oliver Sacks se exprimiu assim: “acontece alguma coisa terrível, [...] eu não sinto mais meu corpo. É um sentimento estranho. Parece que perdi meu corpo”1. Assim acontece, nós perdemos ou esvaziamos o corpo.

1 O. Sacks, The man who mistook his wife for a hat and other clinical tales, New York, Summit Books, 1985, capítulo 3 [O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras histórias clínicas, tradução de Laura Teixeira Motta, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, capítulo 3].

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 58 19/07/12 16:44

58 59

Em japonês, é significativa a palavra karada, que quer dizer o corpo. Ela se liga forçosamente a um vazio, kara, que também significa recipiente para a alma. Mas há também um outro tipo de catástrofe do corpo, de experiência catastrófica do corpo.

Tal catástrofe é terrível, insuportável e cruel, mas ela pode ser singularmente positiva. Ela pode nos fazer romper com a linha que segue em frente, contínua, visível, que determina o mundo e a vida para nós.

Hijikata Tatsumi, que criou uma nova dança no Japão nos anos 1960, estava longe de ser simplesmente qualquer um que renovou a dança como gênero já existente. Era preciso que sua experiência profundamente singular encontrasse, antes de tudo, um meio de sobreviver ou uma saída e, para tanto, precisava experimentar o corpo e ao mesmo tempo a percepção, o pensamento e a linguagem. Nada era seguro. Em suas experiências e pesquisas, que giravam o tempo todo em torno da questão do corpo, ele desafiou muitas coisas simultaneamente, assim como a criação de uma nova dança, que não era para ele nada além de uma parte, importante é claro, mas apenas um dos frutos de tudo que ele buscava e experimentava.

Sua escrita é preciosa como um traço de todo o itinerário de suas pesquisas e experiências. Ele descreveu, sobretudo, as lembranças do corpo da criança que ele foi. Redescobriu e reviveu este corpo infinitamente aberto a tudo, ar e vento, luzes e trevas, respirações e olhares, a vida dos insetos e dos animais, o odor e o bolor. As lembranças do corpo doente ou dos aleijados estão muito presentes. Não é para evocar a nostalgia da infância. Fazendo reviver todos os acontecimentos que visitaram o corpo da criança, Hijikata tentou recriar um corpo singularmente aberto ao exterior. E, ao escavar esse espaço aberto, ele tentou fazer uma revolução (uma de suas performances monumentais se chama A revolta da Carne) que destruirá todas as fronteiras que determinam os contornos e as formas de vida social, racional, moral ou sentimental.

Nós sabemos hoje que existiram pessoas revolucionárias cuja vontade e causa são bem fundadas na ideia de justiça social e liberdade humana, mas que existiram também revolucionários cujas paixões se devem principalmente ao ódio contra aqueles que confinam a vitalidade, que mutilam a vida do corpo,

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 59 19/07/12 16:44

60 61

o ódio contra os que impedem de “dilatar o corpo da minha noite interna”, quer dizer, dilatar a opacidade e a abertura próprias ao corpo. Hijikata, Artaud, Pasolini, Jean Genet são desta raça, partidários da vida singular do corpo. Hijikata os amava enormemente. Há também Spinoza, um dos primeiros filósofos que afirmaram o corpo como potência de afetar e de ser afetado, o corpo absolutamente fluido, composto por partículas infinitas que variam sem cessar. Esta filosofia foi voltada inteiramente para defender a vida contra os poderes e as instituições da morte.

Aqui está o que Hijikata escreveu em 1969: “As danças do mundo começam por se colocar de pé. Mas eu começo pelo fato de não conseguir me colocar de pé. Estou num beco sem saída. Não sou mais um corpo que mija inconscientemente antes que as coisas aconteçam. A situação desta paisagem é como aquela do mistério que se transforma em um inseto, mas não são as articulações de um esqueleto que vão ficar depois que a velocidade inatingível deixar o corpo. Eu vou em direção à terra natal do corpo. Certamente esse corpo dobrado mostra uma forma que poderia servir para recuperar a força, mas porque ele é forma com uma ferida, quando a paixão se vincula a um xamanismo, ele seca, exaurindo-se. Os corpos dos adultos que cercam a criança eram do mesmo gênero.”2

Hijikata definiu sua dança (butô) com esta fórmula muito conhecida: “o cadáver que se coloca de pé arriscando a vida”. “Nenhuma vez a carne nomeou o que lá está, nela. Assim, a carne é simplesmente obscura”3, ele diz. A escrita de Hijikata é, à primeira vista, ilegível, tanto que desarticula o japonês comunicativo, normativo. Ela se desarticula, cobrando de si mesma uma extraordinária densidade e sensibilidade, experiências e pensamentos sobre o corpo, retraçando a “ferida” do corpo que ele acaba de definir... A experiência do corpo para ele é, sobretudo, esta da ferida. Seu pensamento é profundamente ligado a esta ferida.

Após o começo dos anos 1970, Hijikata interrompeu longamente sua atividade de dançarino e, depois, a de coreógrafo, sem jamais recomeçar por conta de sua morte. Sua última apresentação é um livro intitulado Dançarina

2 T. Hijikata, Zensyuu, op. cit. p. 233-4.3 Ibidem, p. 234

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 60 19/07/12 16:44

60 61

Doente, cujo tema é apresentado pelo autor da seguinte forma: “exteriorizando abertamente tudo o que é escondido, gostaria de me aproximar do mundo que minha infância vivenciou”4. Tudo isso indica que, para Hijikata, havia coisas que contavam mais do que a dança. A dança não existia antes. Era preciso, ao mesmo tempo, inventar a dança e redescobrir o corpo. Segundo sua expressão, “o que aconteceria se descêssemos no corpo colocando uma escada até a sua profundeza?”5.

Qualquer coisa de singular em sua experiência de corpo o fazia dançar. Ele precisava dançar para saber e exprimir o que o corpo havia vivido de singular. Mas esse vivo, ao cessar de dilatar, não cessa de ultrapassar a dança. Hijikata é extremamente sensível a tudo que se instala, fixa, formaliza, pesa nas artes e nas expressões. A dança não era excepcional. Tudo que é expresso, mesmo delicada e sinceramente, pode trair o que se deve exprimir ao se explicitar e exteriorizar. Ele buscava qualquer coisa que transbordava a dança, através da dança. Essa qualquer coisa ultrapassava a dança, mas esta mesma coisa caçoava desse ultrapassamento. A dança é para questionar essa “qualquer coisa”, esse gesto de ultrapassamento.

Sua escrita está cheia de perversidades que traçam fielmente este movimento complexo e que marcam todas as suas criações e experiências. Eu adorava essa perversidade e seu humor.

Ele colocava em dúvida muitas coisas: “nossos olhos talvez tenham se perdido do fato de serem olhos”6. “As mãos do senhor Takiguchi não param de transgredir as funções realistas das mãos.”7 Foi Merleau-Ponty quem disse: “Uma mão não é suficiente para tocar.” Um órgão não é jamais inteiramente definido por sua função parcial e organizada. O fenomenólogo Merleau-Ponty disse que o corpo não é jamais objeto, nem se reduz a funções visíveis e localmente determinadas. É uma espessura que existe antes que o sujeito e o objeto se dividam. Hijikata, outro filósofo do corpo, também coloca em questão os órgãos e suas funções: o olho que vê, a mão que toca. De alguma maneira, ele está dentro e diante de um

4 Ibidem, p. 148-9.5 Ibidem, p. 11.6 Ibidem, p. 271.7 Ibidem, p. 265.

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 61 19/07/12 16:44

62 63

caos que exclui os órgãos funcionalmente determinados. Este caos se encontra numa profundeza onde nada ainda é discernível, onde só é possível medir o que nele aparece.

Hijikata disse em uma entrevista: “Desde que o homem sai do ventre da mãe não tem mais como medir sua altura e seu peso. Ele não pode medir a altura de seu corpo. Ele está com tudo aquilo que não pode mais medir, a despeito de tudo, ele quer se aproximar do que é mensurável e se livrar inteiramente daquela qualquer coisa, e sem dúvida é por isso que se faz amor.”

Na língua japonesa, existe uma expressão significativa: “não saber onde colocar o corpo”. É verdade que nós somos todos lançados neste mundo tendo só o corpo isolado. Este corpo é isolado do mundo e, ao mesmo tempo, vinculado ao mundo, invadido pelo mundo. Este corpo está entre outras coisas e outros corpos, possuindo uma distância dos outros e medindo sem cessar essa distância. Mas a distância não cessa de variar no espaço que constitui o mundo com sua profundeza imperceptível. A forma, a grandeza, a qualidade, tudo que é mesurável sai somente desta profundeza. Certamente alguém pode descer de novo nesta profundeza. Não há regra, nem medida para bem medi-la. Os pintores que nela desceram são, muitas vezes, obrigados a reinventar a perspectiva ou a geometria. Penso em Turner, Michaux e, especialmente, em De Kooning, que interessava enormemente a Hijikata.

Hijikata trabalhava muito sobre imagens reproduzidas de suas pinturas, retraçando, analisando, comentando os detalhes. Daí ele tirava materiais para sua dança. Descobri uma passagem muito engraçada em um texto escrito por De Kooning. A pintura conta a história de um homem que quer medir tudo que se encontra em volta dele. “Ele mediu tudo: rua, sapo, suas próprias pernas, muro, seu nariz, janela, serrote, verso. Ele não tinha nostalgia, nem memória, nem um sentido de tempo. Tudo que ele sabia sobre si mesmo era que seu tamanho sempre mudava.”8

Interpretei esta passagem engraçada de De Kooning ao mesmo tempo como ilustração do que motivava a sua criação pictórica e como ressonância com o pensamento da profundeza sem medida através de Hijikata.

8 De Kooning, Centre Georges Pompidou, Paris, 1984, p. 197. Catálogo.

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 62 19/07/12 16:44

62 63

Face ao mundo sem medida, um artista tenta medir sua profundeza e, sem dúvida, não há nada além do próprio ato de medir que constitui a medida. “O eu é destruído desde que nasceu”9, existe “o ponto onde o visível se deteriora”10. A dança pode se fazer para rejeitar o corpo nesta profundeza, e é preciso dizer que o corpo não é mais que uma figura que explicita de uma certa maneira esta profundeza. A dança é uma tentativa de medir esta profundeza sem medida, esta flutuação permanente que nós não podemos medir sem perguntar o que é a qualidade ou a forma.

Isso tudo forçou Hijikata a arriscar destruir a dança como forma de expressão. Na sua escrita, ele podia ser mais livre que na dança, uma vez que podia deformar e distorcer as palavras fragilizando sempre o limite. Não se pode arriscar o corpo da mesma maneira.

Tive a oportunidade de testemunhar uma conversa interessante entre Hijikata e Tanaka Min. Um dia Hijikata disse a Min, em um tom ao mesmo tempo simpático e provocativo: “o fato de nascer já é uma improvisação, porque então você improvisa a dança?” Sabe-se que Min começou a dançar e se formou fora da filiação do butô concebido por Hijikata. Foi quando ele ficou afastado da dança e a performance de Min já tinha adquirido um estilo original e excepcional, que eles se reencontraram. Quero dizer que a relação que existe entre estes dois artistas excepcionais do Japão é mais espiritual do que genealógica. E o que aprecio nos dois dançarinos é que, para eles, a dança é uma maneira de colocar a questão que ultrapassa amplamente a dimensão do espetáculo e mesmo da arte da narração, da expressão ou da estética.

Mas retorno à pergunta: por que improvisar já que o nascimento já é improvisado? Eu penso que há aí uma questão que não é desprezível. Existe a vontade singular de refazer o nascimento, de realizar um segundo nascimento. E não é simplesmente a história de um pessimismo desesperado, negativo, com ódio contra a vida. Muitas vezes Hijikata se exprime quase alegremente: “eu nasci já destruído, dilacerado desde o nascimento, nasci com uma ferida”11. O dançarino de butô deve ser como o cadáver que se levanta. E não há ninguém

9 T. Hijikata, Zensyuu, tomo II, op. cit., p. 295.10 Ibidem, p. 295.11 Citado de memória pelo autor.

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 63 19/07/12 16:44

64 65

como Hijikata, que diga esse tipo de coisa sobre o nascimento e faça disso uma fonte potente para uma criação.

Fui surpreendido, um dia, lendo uma frase de Samuel Beckett em conversa com Charles Juliet, e não foi Beckett, mas o psicanalista Jung, o primeiro a dizer isso de uma jovem paciente. Beckett ouviu em uma conferência a que assistiu. A frase em questão era: “No fundo, ele nunca havia nascido.” É evidentemente assustador. Mas parece que Beckett pegou essa frase mudando um pouco o contexto. A frase em Beckett é também assustadora, mas de forma diferente. Eu fiquei ainda mais surpreendido com um dos textos enigmáticos e engraçados que compõe Pour en finir encore, começa assim: “eu renunciei antes de nascer, no entanto isso não é possível, seria preciso que, enquanto isso nascesse, eu estivesse dentro, é assim que eu vejo a coisa, foi ele quem a criou, foi ele quem viu o dia, eu não gritei, eu não vi o dia...”12. Então eu não nasci, no fundo, eu nunca nasci, enquanto ele, essa outra pessoa, nasceu no meu lugar. O nascimento nem é improvisado, é a recusa da improvisação, a recusa do fato de nascer e de ser criado. A recusa de nascer por inatismo, com tudo que é inato. Porque o homem nasce inato. É isso que é terrível, insuportável para alguns.

Antonin Artaud escreveu exatamente sobre essa questão: “Eu sou um genital inato, ao olhar de perto, isso quer dizer que eu jamais me realizei. Há imbecis que se acreditam como seres, seres por inatismo. Eu sou daqueles que para ser precisa escapar de seu inatismo.”13

Um genital inato é, portanto, alguém que tenta nascer por si mesmo, fazer um segundo nascimento para excluir seu inatismo. Porque, se sou inato, eu nunca nasci. No fundo, eu nunca nasci. Nas obras de Beckett, este eu que nunca nasceu é quem recusa o nascimento escrito sobre outro que nasceu. Esta recusa singular do nascimento, essa vontade do segundo nascimento, não se sabe se é signo de um pessimismo. Com certeza é um pessimismo intenso e divertidamente criador. E a história de “um genital inato” é a história de um corpo que coloca em questão seu corpo nascido com todas as funções e todos os órgãos, a mão que toca, o olho que vê etc. Artaud declara, desde o início, uma guerra singular contra os órgãos com “o corpo sem órgãos”. Eu acredito

12 S. Beckett, Pour en finir encore et autres foirades, Paris, Minuit, 1976, p. 39.13 A. Artaud, Oeuvres complètes, tomo I*, op. cit., p. 9.

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 64 19/07/12 16:44

64 65

que essa experiência do corpo é primordial para compreender o que se passa não somente nas artes performativas, mas também na escrita e no pensamento. Hijikata articulou, de sua maneira única, esta pesquisa sobre o segundo nascimento do corpo que excluiu os órgãos.

O começo é uma questão sempre complicada. Como começar? Já que quando você começa, se não há nada antes de você, você não pode sequer começar, mas se já existe alguma coisa antes de você começar, você não pode verdadeiramente começar. Em resumo, você não consegue nunca começar qualquer coisa que seja, é sempre um outro que começa. Um outro que você ignora começa antes de você, enquanto você não existia ou quando você ainda não sabia que algo começava. Você nunca pode dominar o começo. Artaud diz: “eu sou um genital inato”. Ele estaria manifestando a vontade de dominar completamente o começo, o nascimento? Sim e não. Mais do que dominar o começo, ele se importava em recriar o corpo que tinha o poder de começar, ele se importava em fazer o corpo se desvencilhar da consciência, de seu projeto ou do projeto de outro que tenta dominar o corpo. Se você não pode começar, um outro também não pode começar. Não mais. É o corpo que começa sem querer dominar, como “genital inato”.

Foi Hanna Arendt quem refletiu muito sobre o começo no contexto político, algumas vezes em termos de “fundação”. A vida política mais dinâmica, que é fundada sobre o pensamento público que os gregos antigos inventaram pela primeira vez, é, para Arendt, profundamente ligada à força e ao estado de começo. Para ela, a revolução é finalmente menos importante que o começo. A revolução significa mais o retorno a qualquer coisa, simular o começo com a razão dominante, ao passo que, no começo, há debates, diálogos, o reconhecimento mútuo entre um e outro, o reconhecimento da diferença. A política do começo consiste em criar e recriar o começo como qualquer coisa que parece um “genital inato”.

Retornemos à questão colocada no início pela performance de Tanaka Min. Trata-se do corpo e do tempo. Um aspecto especial do corpo revela uma figura singular do tempo. O corpo está sempre lá, mas como disse Hijikata: “Nenhuma vez a carne nomeou o que lá está nela.” O corpo pode estar presente e ausente, e quando está presente ele sai da linha contínua do tempo que corre determinado

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 65 19/07/12 16:44

66 67

pela ação, a significação, a economia, a representação do mundo. É um outro tempo que surge na ferida desta linha rompida. O tempo nada mais mede, ele também não flui mais.

Uma das obsessões mais fortes para Antonin Artaud era de que seu corpo não era nada além de um autômato manipulado por Deus. Mas o que ele queria fazer não era destruir este autômato, mas se desvencilhar do autômato, do seu próprio corpo paralisado. O que ele queria era reconstruir ou descobrir um outro autômato que se gerasse seguindo as forças, os fluxos e o tempo, um outro tempo. Os órgãos são execráveis na medida em que eles representam e articulam as ordens que determinam o autômato de Deus. É por isso que Artaud comandaria a luta contra os órgãos durante toda a sua vida. Se nós refletirmos um pouco sobre todas as rotinas e os dispositivos que objetificam e coisificam a realidade vivida pelo corpo, veremos que é uma guerra insana, singular, mas singularmente universal. Esta guerra “para acabar com o julgamento de Deus” é inspirada sobretudo pela questão do corpo, aquela do genital inato, do autonascimento que exclui a determinação, e não aquela que provém dos outros, que vem principalmente das instituições e tecnologias visíveis ou invisíveis para gerar o corpo. O que se chama de biopolítica não está apartado de um sistema minucioso de gestão do tempo do corpo. Há redes múltiplas de diversas forças que penetram em toda parte a vida do corpo.

Quanto à história, ela é, de alguma forma, uma imagem do tempo, mas o tempo não é a história. Há qualquer coisa de catastrófico no tempo que transborda a história. E o corpo, enquanto pura gênese, envelopa esse tempo nas dobras da carne. O tempo se abre com esse corpo desvencilhado de órgãos, esse autômato refeito pelos fluxos intensivos e flutuantes da vida. No fundo, a vida e o corpo nada mais são que a mesma coisa, mas, para que sejam verdadeiramente o mesmo e o corpo seja digno da vida, será preciso descobri-lo em sua própria força de gênese, em seu próprio tempo. O corpo é esse lugar único existencial (e até mesmo político) sobre o qual se sobrecarregam, se recolhem e se curvam todas as determinações da vida. É um campo de batalha onde se entrecruzam as forças visíveis, invisíveis, a vida e a morte, onde se encadeiam as redes, os poderes e todas as “bobagens” sociais.

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 66 19/07/12 16:44

66 67

Artaud acusa toda “ilusão da vida” de maneira extremamente lúcida.

“É todo mundo que não é mais consciente e que não sabe mais o que é viver, porque viver é voltar a si mesmo, a todo segundo, com obstinação, e é o esforço que o homem atual não quer mais fazer. Ele ama melhor do que o autômato comanda a obra de si próprio – e aquele que não é nem mesmo um espírito jamais se aproveitou a não ser da fragilidade dos seres para dar a si mesmo a ilusão da vida. Ao se abandonar às atrações do não ser, o homem termina por dar lugar em si mesmo a qualquer coisa que não seja a vida e que nele se torna um espírito.”14

Toda a guerra louca que Artaud conduziu em sua vida diz respeito fundamentalmente a essa espécie de falsificação da vida e do corpo, ou da vida do corpo. O corpo sem órgãos quer dizer o corpo estendido ilimitadamente, flutuante, em uma variação contínua sem forma fixa que é vivida como tempo, mais do que espaço. Esse tempo fora de todas as determinações espaciais, para “se reerguer a todo segundo”, traça uma linha catastrófica que se enrola em torno de um corpo pouco visível, mas extremamente presente e sensível. Um tal corpo vive e dá vida a um tal tempo, uma vez que, até então, estivemos tão preocupados com o espaço e o território, assim como com as organizações e seus órgãos.

14 A. Artaud, Oeuvres complètes, tomo XV, op. cit., p. 20.

CORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUDCORPO-GÊNESE OU TEMPO-CATÁSTROFE – EM TORNO DE TANAKA MIN, HIJIKATA E ARTAUD

livro_KUNIICHI.indd 67 19/07/12 16:44

69

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 68 19/07/12 16:44

69

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

5. ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

O espaço em volta do corpo do dançarino não é homogêneo. Fora dos limites visíveis determinados pela cena e pelo cenário, há limites invisíveis, imperceptíveis neste espaço tecido pelo corpo do dançarino que duplica o espaço visível. Existe ar, corrente de ar, luz e sombra, a respiração e o olhar, as densidades, as torsões, as distâncias e as profundezas, e as sensações, e as memórias, e as trocas, e as circulações entre tudo isso. O dançarino escava, sonda o espaço e aí encontra os limites entre os elementos do espaço. Ele também traça limites desconhecidos e não cessa de transpô-los. Os limites se encontram tanto entre o corpo e o espaço como no interior do espaço e no interior do corpo. Não há dança sem transposição destes limites, sem deslocamento de todos esses limites, atravessando todos os elementos heterogêneos. E essa dança, às vezes, inaugura limites ou demarcações de uma maneira quase imperceptível, mas, pouco a pouco, singularmente sensível. Nós vemos aí limites múltiplos entre o perceptível e o imperceptível. Nós descobrimos, no interior de nosso corpo, o dançarino que trabalha nosso corpo.

O espaço se enrola em torno do corpo do dançarino. A dança realiza ao mesmo tempo a ligação e a disjunção dos elementos de tudo que se enrola em torno do corpo e no corpo, envelopando-os e desenvelopando-os, dobrando e desdobrando. E isso que se enrola através do espaço e do corpo é, mais e mais, o tempo e a memória, memória dos corpos, dos rostos, das caretas, das posturas que perambulam, que parecem cada vez mais ligadas à vida na qual se enredam com as camadas do tempo passado e distante.

Eu falo da dança de Tanaka Min, de sua arte singular que é dança e, no entanto, não se parece com nenhuma dança, que é a dança das moléculas e das sombras imperceptíveis da vida. Sondar e descobrir os limites do espaço, redescobrir e reconstruir a densidade e a heterogeneidade do espaço, atravessando esses limites sempre delicadamente.

Esta não é uma explicação ou uma interpretação do que você viu ou do que você verá. Nada é nada além de uma abstração que eu esboço sobre minhas próprias vivências, acumuladas no tempo que passei a assistir as performances

livro_KUNIICHI.indd 69 19/07/12 16:44

70 71

desse dançarino. Aliás, Min não concordaria com nada disso que digo.

Direi que essa dança é uma maneira maravilhosa, extraordinária de romper com a linguagem ou com a dominância da linguagem, dos sentidos ou da narração. Como na mímica, os gestos podem se articular abruptamente e se traduzir de acordo com a estrutura e o código da linguagem, deixando, apesar de tudo, a presença do corpo jogar com a sensação de que não se reduzirá jamais à linguagem, a sua significação. Mas nós precisamos da dança, de qualquer coisa como a dança, porque precisamos nos desvencilhar, de tempos em tempos, da linguagem e estarmos mais próximos da presença do corpo. Mas isso colocaria imediatamente uma questão. O que quer dizer “se desvencilhar da linguagem” e “se aproximar da presença do corpo”?

É claro que romper com a linguagem nem sempre é bom, e não é nada fácil, mas às vezes é necessário e mesmo crucial para alguns: aqui eu quero falar de Antonin Artaud e de Samuel Beckett, que parecem nos fazer aprender muito sempre.

O propósito se transforma consideravelmente; agora começo a colocar uma questão de teatro, mas não de qualquer teatro, de um certo teatro que acessa o limite do realizável, que coloca uma questão de fronteira entre a linguagem ou, precisamente, a língua e o corpo, ou tudo que não pertence à linguagem.

Nós podemos conceber as experiências teatrais de Artaud e de Beckett de pontos de vista bem diferentes, mas é certo que um de seus problemas primordiais era como se desvencilhar da língua, do poder da língua. Mas é preciso colocar a questão mais precisamente, na medida em que nem Artaud nem Beckett abandonaram a língua, nem a escrita, nem o teatro até o fim. Eles viveram sobre este limite com a vontade de acabar com a língua, descobrindo certos usos singulares da língua no estado limite dos sentidos, de sua possibilidade de comunicação, de expressão e de articulação, forma e gramática, fonema, sintaxe etc.

O bom uso da língua é inseparável da operação eficaz do poder.

Já tem muito tempo que Hofmannsthal escreveu como um certo Lord Chandos que: “a língua na qual me seria dado, talvez, não apenas escrever, mas

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 70 19/07/12 16:44

70 71

pensar, não é latim, nem inglês, nem italiano, nem espanhol, mas uma língua da qual sequer uma palavra me é conhecida, uma língua na qual as coisas mudas me falam...”1

E, a despeito de tudo, da manhã até a noite, mesmo nos sonhos, ela fala, ela conversa, ela murmura, ela grita, ela barganha sua língua, minha língua. E, com um pouco de silêncio, um pequeno momento de ser na lua, estamos ao abrigo da língua, ao abrigo dos sentidos. Você pode se afastar da língua estando sempre possuído pelos sentidos, ou então você se distancia dos sentidos estando sempre capturado pela língua, ou você se desvencilha de ambos, ou você é prisioneiro dos dois, da língua e dos sentidos, a língua com todos os seus constituintes. Naquilo que se chama afasia, há casos estranhamente variados.

As questões, os saberes, os discursos, as palavras que a linguagem carrega multiplicam-se consideravelmente e com todas as agitações das pesquisas, sérias ou falsificadoras: linguística, semiologia, formalismo, teoria do texto, narratologia etc. Surgiu uma concentração extraordinária dirigida para o som, as letras ou os famosos significantes, os signos cuja língua seria o modelo superior, excepcional. De qualquer modo, nós estamos na ruína ‒ as ruínas de todas essas agitações, pesquisas, debates, conversas. No Japão, alguns são hoje admiradores apaixonados da língua japonesa simplesmente recitada em voz alta, para redescobrir “a carne” com a língua, depois de todos os debates complicados. Não estou verdadeiramente certo de que a humanidade esteja sempre progredindo.

E as palavras, as palavras para justificar a história, a origem, o poder, a identidade, para preencher o vazio, para mascarar a realidade, decupando e falsificando a memória. Quem diz o que a quem? Se isso for evidente, quem fala o que a quem, é porque o próprio conteúdo da palavra não quer dizer quase nada, muitas vezes todos os sentidos estão predeterminados. A força de redundância e de predeterminação da língua é terrível. Todas as palavras são palavras de ordem...

É por isso que somos forçados ainda hoje a conduzir uma batalha contra a língua, em solidariedade a Artaud, Beckett e outros, mesmo se essa solidariedade

1 H. Hofmannsthal, Lettre de Lord Chandos et autres essais, Paris, Gallimard, 1980.

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 71 19/07/12 16:44

72

for qualquer coisa de singular que exija muita solidão. Um fragmento de uma peça de teatro; um dos trechos mais radicais de Beckett soa em minha cabeça. Apenas uma boca, iluminada nas trevas, fala, como um monólogo. Essa peça se intitula Pas moi.

“não tenho ideia... do que ela está falando... imagine! nem ideia do que ela está falando!... de modo que ei-la... tentando fazer crer... que ela não pertence a ela... nem sua voz... e sem dúvida conseguiria... precisava a todo custo... quase conseguiu... após um esforço.”2 É Beckett quem analisa de uma maneira extraordinária uma máquina falante um pouco desconectada.

Pas moi é um drama da catástrofe que contacta uma máquina falante, máquina que tenta falar, a boca que busca uma voz para falar, a voz que busca não somente a boca para falar, mas também a memória, o sujeito da palavra, o sujeito da memória, o destinatário que assegura os sentidos, os sentidos do sentido, em resumo, a comunicação.

Quando você fala, não é certeza que seja sua voz que fala, também não é certo que o que você ouve seja o que você diz, nem que seja sua boca que fala com esta voz etc. É, de alguma maneira, uma anatomia esquizofrênica da fala. Sabemos hoje que os esquizofrênicos criaram muita coisa na história.

É notório que Nietzsche e, pouco tempo depois, Artaud se apegaram enormemente à música para a pesquisa do teatro autêntico. Não a música que ilustra ou dramatiza o teatro como acessório ou decoração, mas a música, a voz e o som como aquilo que é invisível. O que é irrepresentável deve ser o princípio da criação do teatro ou da tragédia. Não se vê Dionísio, força primitiva que exclui a representação, a imagem, o pensamento racional bem articulado. Somente se ouve Dionísio como vibração direta que trabalha imediatamente a audição, como audível que atravessa e afeta o corpo. Será este esquema nietzschiano e artaudiano um esquema ultrapassado, fora de moda?

O teatro-imagem precisa ser esvaziado, só a matéria sonora deve estar presente. O drama existe antes da linguagem, e é preciso sempre ir mais longe que a linguagem e além da língua. É preciso abafar a linguagem, é o som que

2 S. Beckett, Oh les beaux jours/ Pas moi, Paris, Minuit, 1963, p. 87-88.

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

73

livro_KUNIICHI.indd 72 19/07/12 16:44

72

deve falar sem articular com a forma, somente com o fluxo sonoro intenso, informe, contínuo. Essa ideia que desconecta imagem e som é, de alguma maneira, esquizofrênica, motivando tipos extraordinários de criação, mesmo na dimensão literária. É a matéria sonora da qual falavam Joyce, Artaud, Beckett..., aquela que desterritorializa a língua e a literatura.

Examinemos mais de perto o que diz Artaud sobre como e por que ele quer se desvencilhar da primazia do texto, quer dizer, da linguagem no teatro: “É preciso acabar com a superstição dos textos e da poesia escrita. A poesia escrita vale uma única vez e depois, que seja destruída. Que os poetas mortos cedam seu lugar aos outros. E poderíamos mesmo assim ver que é nossa veneração diante do que já foi feito, por mais belo e válido que seja, que nos petrifica, que nos estabiliza e nos impede de tomar contato com a força que está por baixo, quer ela seja chamada energia pensante, força vital, determinismo das trocas, fases da lua ou o que bem se entender. Sob a poesia dos textos, existe a poesia tout court, sem forma e sem texto. E tal como se esgota a eficácia das máscaras que servem às operações de magia de certos povos ‒ e então essas máscaras só servem para serem jogadas nos museus ‒, do mesmo modo se esgota a eficácia poética de um texto, e a poesia e a eficácia do teatro é a que se esgota mais lentamente, uma vez que admite a ação do que se gesticula e se pronuncia e que nunca se reproduz uma segunda vez.”3 Um dos livros poéticos do jovem Artaud se intitula Pesa-Nervos. Era preciso pesar os nervos, pesar as forças nervosas, perceber, captar o que Artaud chama energia pensante ou força vital. Desde o início, a linguagem é inimiga de uma criação verídica, que consiste em se abrir à revelação da força bruta da vida. Até o fim, ele trava uma terrível batalha contra a linguagem, vivendo uma tensão extraordinária entre a força da vida e a linguagem que enclausura essa força, tentando captar o ruído puro que nada mais é que o signo de energia pensante. Será que ele não girou em círculos nesta aventura extrema até cair em um buraco negro? É uma questão a se colocar. Ele teve muitos imitadores, ou simuladores do Teatro da crueldade, como dizia Artaud. Mas é preciso notar a variação surpreendente de diferentes aspectos de uma batalha travada contra os inimigos da força vital, diferentes

3 A. Artaud, Le théâtre et son double, in Oeuvres complètes, tomo IV, op. cit., p. 76 [O teatro e seu duplo, op. cit., p. 87-88].

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

73

livro_KUNIICHI.indd 73 19/07/12 16:44

74 75

dimensões da vibração vital que Artaud revelou em sua árdua batalha. Pesa-Nervos, Teatro da crueldade, O anarquista coroado, protagonizado pelo jovem imperador romano Heliogabalo, assassinado muito jovem, Ao encontro com os índios Tarahumara fazem parte de uma longa série de pensamentos sobre o corpo, experimentada no Hospital de Rodez...

Isso quer dizer que era preciso adentrar um buraco negro terrível para conceber e experimentar todos os aspectos da força vital. Contrariamente a seus gestos visivelmente revolucionários e provocativos, Artaud sabia bem como descobrir os limites invisíveis no corpo e na linguagem – os limites e a variação entre as forças vitais – e atravessar esses limites. Porque é nossa vida inteira que é atravessada e marcada por estes limites múltiplos. Os limites estão no espaço e na vida, mas eles estão também na dimensão social, política e econômica, entre o habitável e o inabitável. É por isso que Artaud pensa que é preciso trabalhar com muita prudência como se fôssemos passar uma lixa em um muro espesso onde há muito limites perceptíveis e imperceptíveis.

A história dos limites não diz respeito somente ao espaço da performance ou do teatro, mas também ao espaço da vida na sociedade, situada necessariamente nas redes misturadas onde proliferam forças e poderes. Há, nas forças e poderes, limiares para além dos quais o intolerável nos arrebata. Pesar os nervos para Artaud e todo mundo consiste em sentir os limiares da vida, aqueles entre a vida e a morte. A questão não é somente da poesia e do teatro, mas concerne a todos os limiares cruzados durante a vida, na mental e na física, referentes à sociedade e ao poder, ao sistema de controle e de sobrevivência. Há uma política da vida que determina os diferentes limites da vida (biopolítica) operados pelo Estado e suas instituições, ciência e pedagogia, todos os sistemas ou os dispositivos de normalização.

Além disso, há o limite entre a vida humana e a vida animal, entre bios e zoé, entre a vida “digna de ser vivida” e a aquela “indigna de ser vivida”; o limite que define uma zona onde a vida é muito respeitada e a outra onde a vida é rejeitada impiedosamente. Há sempre zonas negras excepcionais fora do espaço do direito, lá onde a vida é desnuda e descartada.

Pesar os nervos e atravessar os limites traçados pelos órgãos que determinam

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 74 19/07/12 16:44

74 75

o corpo, é para isso que Artaud pensa desde muito cedo em um certo corpo sem órgãos, órgãos como sendo os limites impostos pela vida orgânica.

É bizarra esta imagem do corpo sem órgãos, mas há uma tomada de consciência da vida extremamente intensa. Desde que se pense um pouco sobre a história da evolução da vida, é inegável que ela tenha evoluído sem cessar atravessando os limites dos órgãos, transformando a forma e a função dos órgãos. Vemos, então, que a vida é uma vida sem órgãos, que não para de atravessar os limites que são os órgãos. A vida pode ser mais intensa que os órgãos. Nós vemos porque há uma revelação, ou a consciência excessiva da vida e da vitalidade nos impõe esta dimensão do corpo sem órgãos. A vida é irredutível. É qualquer coisa que aboliu e recriou os limites, e que não cessa de atravessá-los. Certamente Artaud não estava louco quando falou do corpo sem órgãos.

E, apesar de tudo, há sistemas que impõem sobre a vida e seus limites essas formas, esses controles, esses órgãos, economia e política, comunicação e informação que funcionam com os limites de inteligibilidade e rentabilidade. Nós vivemos e morremos sem cessar, não simplesmente por causa de uma doença ou da velhice, mas por causa dos limites impostos sobre a vida que articulam a nós mesmos. Não é com niilismo que alguns se apegam à morte na sua intensa pesquisa teatral.

Isso quer dizer que a morte, às vezes, faz descobrir os limites imperceptíveis da vida. Às vezes, é preciso que nos desesperemos, se a situação for realmente desesperadora. Eu penso no estado atual do teatro em meu país. Para Tadeusz Kantor, em sua época, havia muitos motivos para se desesperar. “Nesta situação, os conceitos como formação, expressão, jogo (interpretação) estão completamente em estado de falência; não podemos mais ter nenhuma ilusão, nenhuma esperança em relação a estes conceitos.”4 “O conceito de vida não retornará mais à arte se a vida, no sentido tradicional, está ausente. Eu tenho cada vez mais certeza.”5 Foi por causa desta afirmação e desta desesperança que Kantor nomeou sua experiência teatral como “teatro da morte”. A morte do teatro está em curso há muito tempo. O teatro da morte deve resistir à morte do teatro.

4 T. Kantor, Le théâtre de la mort, Paris, Editions l’Age d’Homme, 2004, p. 218 [O teatro da morte, tradução de J. Guinsburg, Isa Kopelman, Maria Lucia Pupo e Silvia Fernandes, São Paulo, SESC/ Perspectiva, 2008].5 Ibidem.

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 75 19/07/12 16:44

76 77

Uma ideia negra, macabra e fúnebre de teatro foi revelada admiravelmente por Jean Genet: construir o teatro num cemitério ao lado do crematório, onde o ator interpreta principalmente a morte, simula-a, ressuscita-a e enterra-a. É preciso que o teatro seja a pompa fúnebre. Pompa fúnebre é também o título do romance mais delirante de Genet.

Conceber o limite da vida que é a morte, ou entre a vida e a morte, este limite infinitamente tênue. Conceber isso de outro modo que não sejam os limites impostos pela política da vida. Essa pode ser uma tarefa teatral importante.

O limite da vida é também aquele entre zoé e bios, entre a vida animal, nua, e a vida social, civil, política, que é a vida em algum tipo de linguagem. Recuperar o animal no humano. Foi Nietzsche quem insistiu na exigência de deslocar o limite, imposto sobre a vida humana, por meio da vontade de potência. Ele tentou ampliar a dimensão da vida, abrindo-se para o animal e, até mesmo, para o inorgânico, a matéria. Há, segundo ele, a vontade de potência na matéria, que logo se transforma em vida orgânica. O super-homem deve ultrapassar a redoma humana e assim se parecerá (singularmente) com o animal.

Vamos nos lembrar de que comecei a falar de Tanaka Min, de sua arte tão refinada para operar limites no espaço. Em seguida, falei da ruptura possível com a língua para deslocar o limite que é a linguagem, desenvolvendo este problema do limite até o problema da vida. Os limites na vida, sobre a vida.

Nós lemos ainda uma vez o texto de Beckett no qual ele diz que é preciso perfurar as palavras. “Tendo como dado que não podemos eliminar a linguagem de um só golpe, devemos ao menos não negligenciar o que pode contribuir para seu descrédito. Criar buracos e se enfiar neles.”6 Aí é preciso dizer que este processo de furar a superfície da linguagem tem tudo a ver com as experiências de Artaud. Mas a estratégia de Beckett é certamente muito diferente daquela de Artaud.

Sempre na mesma peça Pas moi. Uma máquina falante desconecta e desmonta uma boca que não vê, não ouve, ou que vê mal, ouve mal, uma boca buscando uma voz, ela a terá, mas uma voz que não pensa, a cabeça que pensa não tem sua voz. Tudo é desconjuntado. Para falar é preciso que haja uma síntese ou uma

6 Carta escrita em alemão por Beckett, em 1937.

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 76 19/07/12 16:44

76 77

coordenação entre a cabeça que pensa, a boca que fala, a voz que soa, as orelhas que escutam, os olhos que veem. A linguagem se constitui como síntese realizada sem a fissura de tudo isso, uma bela síntese humana, mas provavelmente uma infâmia porque essa síntese bem reconhecida cobre o que está entre. O que existe entre? Nada e muita coisa. Os limiares sob os limites. Este pequeno nada, talvez, tão importante e crucial.

Há limites perceptíveis e imperceptíveis na linguagem, mas e entre os limites? Não há nada ou não há um corpo e limites no corpo, entre os corpos? Para descobrir esses limiares entre os limites que constituem a linguagem, é preciso romper com a linguagem? Romper ou não romper, sem dúvida não é mais nossa questão.

Sou obcecado pela explosão das barreiras e das dimensões que Artaud viveu, que a partir de seus sofrimentos singulares forçaram-no a estirar os tecidos da língua, diluindo os limites da linguagem e dos órgãos do corpo para forjar uma nova arte teatral, penetrando mais e mais nas redes de forças e de poderes que assentam a vida. A vida do corpo. Os limites existem para ele nas palavras, no corpo, entre as palavras e o corpo, entre o corpo e a civilização, entre a vida e a morte. Artaud pensou e experimentou muito em termos de fusões, fluxos, forças, violências, vibrações. Realmente limites de uma escala da dimensão do Universo.

Existe aí, certamente, uma outra voz que também pode vir a ser necessária. Descobrir ou redescobrir os limites sutis, muitas vezes imperceptíveis, reencontrar-se nos intervalos, assistir a um pequeno nada na linguagem, fora da linguagem e entre as palavras e as coisas, como um véu sutil, quase transparente, que esconde este pequeno nada e que nada esconde, mas nem sempre revela sua força.

“Mas, enfim, e o drama? Se ele existe no autor, sua origem fulgurante e esta força é ele quem deve captar e organizar, a partir da iluminação que mostra o vazio, uma arquitetura verbal – gramatical e cerimonial – indicando subconscientemente que deste vazio se arranca uma aparência que mostra o vazio.”7

7 J. Genet, L’ étrange mot d’..., in Oeuvres complètes, tomo I a VI, Paris, Gallimard, 1952-1991, tomo IV, p. 13.

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITESESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 77 19/07/12 16:44

78

Dir-se-á que Genet se divertiu bastante entre a violência do corpo e o vazio da linguagem.

E retorno a Beckett: “o quê?... Quem?... não!... ela!... qualquer coisa que precise que ela... o quê? O zangão?... sim, todo o tempo o zangão... zumbindo no Cérebro”8.

Este pequeno nada, este zangão que é a linguagem, a vida da linguagem, que é também tão irredutível como a vida. Os limites da língua e aqueles do corpo e da vida...

E devo dizer que enxerguei tudo isso depois do dia em que descobri a dança de Tanaka Min como aquilo que experimenta nosso modo de perceber e conceber o mundo. Min dançando capta os fluxos de forças e se desloca entre os limites, e capta mais e mais o pequeno nada, sombra, zumbido, tremor, signos de vida preciosos.

Entre os limites das forças, as sombras e os ventos parecem uma imagem que não se vê; imagem invisível, som inaudível, liberdade descoberta entre.

Movência, ponto de vista, ignições, luz negra, ruído e zumbido da terra e do céu, a beleza do que atravessa o universo, a solidão dos objetos isolados abandonados entre, solidão entre dois limites, Eros dos limites que vibram sem fim...

8 S. Beckett, Oh les beaux jours/ Pas moi, op. cit., p. 91.

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 78 19/07/12 16:44

78

ESSE PEQUENO NADA ENTRE OS LIMITES

livro_KUNIICHI.indd 79 19/07/12 16:44

81

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

livro_KUNIICHI.indd 80 19/07/12 16:44

81

6. O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

Tempo e espaço

O tempo apresenta diversos aspectos singulares, que se repetem por toda a obra de Jean Genet. Esse tempo é, antes de tudo, aquele experimentado por Genet, corpo e alma, mas é também o tempo que ele tece com sua escrita, com o movimento próprio à sua escrita, tempo que produz o texto, determina sua espessura e traços, as linhas que são dobradas em sua escrita. Para Genet, o espaço é visível, divisível, localizável, determinável. Quando se é privado do espaço ou quando o espaço é ocupado por outros, apenas o tempo pode ainda nos abrigar, nas dobras, curvas e camadas próprias à duração, tudo aquilo que constitui a realidade do tempo. Certamente esta percepção do espaço e do tempo, em Genet, é inseparável de sua experiência na prisão. A prisão é um espaço finito e fechado, no entanto, o tempo pode ser infinito e aberto, mesmo dentro da prisão. Para ele, o espaço é uma área sob controle que pertence inteiramente ao Poder. Aquele que é privado do espaço dispõe apenas do tempo. Certa vez, numa entrevista, Genet articulou claramente seu ponto de vista: “Uma coisa é sagrada para mim – eu escolho bem essa palavra: sagrada – é o tempo. O espaço não conta. Um espaço pode se reduzir ou aumentar enormemente, isso não tem muita importância. Mas o tempo, eu tive a impressão, e ainda tenho, de que um certo tempo de vida me foi dado ao nascer. [...] O homem o mais anônimo possui o mesmo tempo, um tempo menor, ou um tempo maior, pouco importa, mas esse tempo é sagrado. Não apenas eu não devo tocá-lo – e outros podem tocá-lo, quero dizer, podem me suprimir, me matar, mas não eu – no entanto, durante esse tempo, durante... agora, setenta anos, eu tive que trabalhar esse tempo. Não pude deixá-lo em nenhum tipo de repouso. Era preciso quase sempre trabalhá-lo com fogo, e quase sempre de dia e à noite.”1

Então, o tempo é sagrado e intocável, ainda mais porque os outros podem tocá-lo, mas não eu. Não posso tocá-lo, mas eu o trabalho, os outros não o

1 J. Genet, L’Ennemi declare: textes et entretiens choisis 1970-1983, Paris, Gallimard, 1991, p. 221.

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

livro_KUNIICHI.indd 81 19/07/12 16:44

82 83

trabalham. Apenas eu o trabalho, mas não o toco. O tempo, para Genet, é a liberdade absoluta, intangível, mas é também pura necessidade irredutível.

Branco

Esse tempo não comporta nada de visível ou determinável a priori. É uma forma vazia, fugidia, indeterminada, que jamais pode ser possuída ou ocupada. Esse tempo coexiste com o branco, um papel em branco, um vazio que não é apenas vazio, pois, na realidade, é muito preenchido, tenso, intenso. É no seu texto sobre Giacometti que Genet explicita esse branco, terrivelmente intenso, que determina a direção de todas as linhas e de todas as vibrações surgidas do labirinto de linhas nervosas que caracterizam os desenhos de Giacometti. “Os traços sendo utilizados não para que ganhem valor significativo, mas com o único fim de darem toda significação aos brancos.”2 Em Um cativo apaixonado vemos, com frequência, esse mesmo branco permanecer ao fundo da escrita deste grande e último livro. É sobre esse fundo branco que Genet registra sua narração sobre os Palestinos, uma luta desmesurada de um povo despossado da terra.

Cito o começo inesquecível de Um cativo apaixonado, todas as minhas reflexões, aqui, serão eco dessa passagem. “A página, que era antes branca, está agora percorrida de cima a baixo por minúsculos signos pretos, letras, vírgulas, pontos de exclamação, e é graças a eles que dizemos que esta página é legível. No entanto, há uma espécie de inquietude no espírito, um enjoo muito próximo da náusea, uma flutuação que me faz hesitar em escrever... a realidade é esta totalidade de signos pretos? O branco, aqui, é um artifício que substitui a translucidez do pergaminho, o ocre marcado das tábuas de argila e o ocre em relevo, a translucidez e o branco possuem talvez uma realidade mais forte do que a dos signos que os desfiguram.”3

2 J. Genet, Oeuvres complètes, tomo V, op. cit., 1979, p. 63.3 J. Genet, Un Captif Amoureux, Paris, Gallimard, 1986, p. 11 [Um cativo apaixonado, tradução de Cláudia Fares, São Paulo, Arx, 2003].

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENETO TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

livro_KUNIICHI.indd 82 19/07/12 16:44

82 83

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENETO TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

É esse branco que faz escrever, faz tremer a mão que escreve, a voz que recita, as palavras colocadas sobre o papel. Esse branco ameaça a escrita e a narrativa, pois ele é o que não é possível escrever, nem contar. Entre o que Genet viu e o que ele escreve, há uma lacuna indelével. O branco é também essa lacuna. Ele surge e existe por toda a parte. Ele resiste à escrita. E é justamente essa resistência que o faz escrever ou que, por vezes, o impede. Os palestinos mortos em combate são como marionetes sem vida às quais o escritor deve emprestar a voz, ou talvez seja apenas um teatro de sombras feito pelas figuras escuras dos mortos que se apoderam da voz do narrador. Trata-se sempre da morte e dos mortos aos quais Genet empresta sua voz, que imediatamente se descola daquilo que realmente aconteceu. Toda a narrativa gira em torno dessa morte impossível de contar. Tudo isso não evoca mais o preto do que o branco? Porém, eu diria que aquilo de que ele trata é branco, pois na escrita de Genet há, ininterruptamente, a presença de uma luz intensa infletida, refletida, espelhada ao infinito, sem parar.

O tempo de Genet se tece, articula-se, ritma-se sempre com esse branco que se avizinha fundamentalmente daquilo que é a morte. Genet viu cadáveres de palestinos massacrados nos campos de Chatila. Ele observa os mortos sob uma luz intensa, com seu olhar tão intenso quanto essa luz. No entanto, quanto mais ele observa, mais os corpos mortos escapam a seu olhar. Quanto mais ele observa, mais as palavras para contar o que acontece também se perdem. O tempo para, a morte avança sob a luz, onde está o tempo vivido pelos mortos? O que realmente aconteceu? Essas quatro horas, em Chatila, formarão o cruel prelúdio de Um cativo apaixonado. O tempo de Genet entra assim numa estranha região branca e sai, volta a entrar e novamente sai. Essa grande narrativa de luto por um combate revolucionário é longa e densa, estranhamente fragmentada, constantemente suspensa, abortada por ameaças vindas desse mesmo branco.

Fissuras, decomposição

Certamente a escrita de Genet é, por toda a parte, marcada pela decomposição, por figuras frágeis e franzinas, fraturadas e fragmentadas, estranhamente

livro_KUNIICHI.indd 83 19/07/12 16:44

84 85

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENETO TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

móveis e flutuantes. Uma figura se transforma bruscamente numa outra figura, uma linha se bifurca em múltiplas curvas, um objeto se dispersa entre traços desenhados por uma multidão de movimentos, um contorno se encrava por entre as fissuras que o parasitam. Gestos viris violentos se decompõem em atitudes femininas. Os muros da prisão são invadidos por cipós finos. Tudo aquilo que é duro se descobre composto por coisas moles e frágeis. Uma figura plena, arredondada, é constituída, na verdade, por figuras ocas, por buracos... Todos os objetos e todas as figuras são intercambiáveis e infinitamente decomponíveis, nenhum corpo existe, se fixa; tudo é gesto, movimento, vibração. Aparentemente, a escrita de Genet evolui muito lentamente, essa lentidão corresponde, sem dúvida, ao tempo próprio de Genet sobre o qual acabo de falar. Ele toma “seu tempo” para sua narrativa, frequentemente para observar e pensar os gestos quase insignificantes das personagens em vez de descrever ações notáveis, visíveis. Porém, desse tempo, emerge uma velocidade extraordinária. Tudo se mexe sem parar, tudo desaparece numa velocidade estranha. E o branco terrível aparece sempre no limite dessa velocidade. Tudo pode ser decomposto e desdobrado desse branco.

Será necessário citar algumas passagens para demonstrar que eu não digo qualquer coisa. “Eu me surpreendo que um corpo tão musculoso, sob o meu calor se dissolva a esse ponto. Na rua, ele caminha balançando os ombros: sua dureza derreteu. Aquilo que eram arestas afiadas, lascas, se amaciou – exceto o olho que brilha sobre a neve derretida. Essa máquina de dar murros, cabeçadas, chutes, estende-se, alonga-se, desdobra-se, para o meu espanto prova que era doçura contraída, esticada, diversas vezes dobrada sobre ela mesma, atada, dilatada e...”4

Em Um cativo, a respeito de Arafat: “Meu espanto foi grande quando o vi, primeiro de frente ele se parecia, quando virou a cabeça para me responder mostrou seu perfil esquerdo e vi um outro homem. O direito era duro, o esquerdo era doce e tinha um sorriso quase feminino que ele agravava com picos de neurose, por exemplo, brincando com as pontas do Keffiyeh preto e branco.”5

4 J. Genet, Journal du Vouleur, Paris, Gallimard, 1967, p. 164 [Diário de um ladrão, introdução de Jean-Paul Sartre, tradução de Jacqueline Laurence e Roberto Lacerda, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005].5 J. Genet, Un Captif Amoureux, op. cit., p. 168.

livro_KUNIICHI.indd 84 19/07/12 16:44

84 85

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENETO TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

No início de Um cativo apaixonado, quando fala dos funerais de Nasser transmitidos pela televisão, compara o caixão a uma bola de rugby, “a multidão engoliu-(o caixão)a. O mundo inteiro seguia a partida pela tela da televisão e a adivinhava deslizando de perna em perna, dos punhos aos ombros, entre as coxas, e sobre a terra egípcia multidões, carregadores, cantores do Corão, caixão, jogadores de rugby, tudo desapareceu, ficou apenas a velocidade, aumentando cada vez mais até a fossa”6. Genet, este prisioneiro apaixonado, por um amor estranho, decompõe continuamente as formas e os objetos, principalmente o sexo. Ele próprio se vê, seu corpo e seus objetos, no emaranhado de linhas descritas pelos gestos surgidos de uma multidão.

“Minhas dimensões me eram especificadas pela direção de meus gestos ou pelos gestos dos feddayeen, o cigarro vinha de cima para baixo, o isqueiro de baixo para cima, e as linhas descritas pela direção dos gestos restituíam meu tamanho e minha posição no grupo.”7 Essa mania de transformação e decomposição aparece também quando Genet observa o Poder. Sobre o esmalte de escarro que decora os embaixadores, ele vê principalmente uma “imperceptível rede de rachaduras”. Ele conta também sobre as fissuras que ele viu percorrerem uma torre inteira até destruí-la, após um tiro de canhão, quando ele era um jovem soldado na Síria. Sob seu olhar, os poderes racham8.

Vê-se a que ponto Genet insiste na via da decomposição: do masculino em feminino, do corpo em gestos, de um objeto em movimentos, de uma forma rígida em rachaduras. Tudo isso tem ligação com sua homossexualidade. Porém, sua sexualidade funciona em sua escrita como transformador heterogeneisante, não homogeneisante, na medida em que essa transformação recusa qualquer forma de identidade ou dicotomia. A sexualidade, em Genet, coexiste com uma ética e uma estética da transformação e da decomposição. As formas e os objetos desaparecem numa velocidade extraordinária, há apenas fissuras, gestos insignificantes, e tudo isso se apresenta como “traços sendo utilizados não para que ganhem valor significativo, mas com o único

6 Ibidem, p. 15.7 Ibidem, p. 281.8 Ibidem, p. 491.

livro_KUNIICHI.indd 85 19/07/12 16:44

86 87

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

fim de darem toda significação aos brancos”9, nos referimos mais uma vez ao texto sobre Giacometti. Vemos como este movimento de Genet está ligado, ao mesmo tempo, a sua sexualidade, sua estética e principalmente a sua política. A escrita de Um cativo apaixonado é exatamente esse movimento, além de uma tentativa de síntese de todos os pensamentos e temas que aparecem em seus escritos precedentes, no entanto, sem implicar nenhuma lógica transcendente, tal síntese se realiza apenas nas fissuras descobertas através da escrita e pelo branco revelado por elas. O tempo para Genet é uma forma que tem como conteúdo nada além de todas essas fissuras e esse branco.

E à contiguidade das figuras franzinas, trêmulas e bifurcadas que possuem o branco como fundo, Genet a concebe através de um jogo de dobragem, que consiste em dobrar papéis em branco, uma espécie de Origami. Quando ele diz: “meu espanto foi enorme quando compreendi que minha vida – quer dizer, os acidentes de minha vida, quando bem desdobrados, colocados em plano sob meus olhos – não passou de uma folha de papel em branco que eu pude, por força dos vincos, transformar num objeto novo o qual talvez só eu conseguisse ver em três dimensões, tivesse ele a aparência de uma montanha, de um precipício ou de um acidente mortal”10. Esse branco é mais espantoso ainda ao relativizar todos os atos, proezas, monumentos, eventos. Porém, sem esse branco, nada seria notável, nenhum signo seria legível, nenhum vinco seria visível. Todas as dobras recusam ter uma forma acabada, determinada de uma vez por todas. Haverá sempre outras dobras sobre as dobras, nas dobras, depois das dobras. E haverá sempre o branco ao fundo. Os vincos representam a flexibilidade, a plasticidade, a mobilidade ou a diversidade máxima da vitalidade.

Ao escrever sobre Rembrandt, Genet fala da descoberta de uma estranha equivalência entre as pessoas. É o que ele descobriu num trem, diante da presença de um homem banal, um tanto sujo, sem charme, que não possuía nada de extraordinário. A equivalência entre ele e esse homem se revelou, apesar de tudo, absoluta, espantosa, universal. Tal equivalência parece

9 J. Genet, L’Atelier d’Alberto Giacometti, in Oeuvres complètes, tomo V, op. cit., p. 63 [O ateliê de Giacometti, tradução de Célia Euvaldo, São Paulo, Cosac & Naify, 2000].10 J. Genet, Un Captif Amoureux, op. cit., p. 205.

livro_KUNIICHI.indd 86 19/07/12 16:44

86 87

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

coincidir com o branco diante do qual Genet se encontra, constantemente, ao escrever. E por que não acrescentar também a morte como o mesmo fim, o mesmo nada que torna tudo equivalente, sem rosto? Porém, será necessário conceber, sempre, esse branco, essa equivalência, ou mesmo essa morte, em relação a todos os vincos deixados sobre a brancura. Os vincos e os brancos formam uma dupla, que não significa nada fora dessa combinação, como se as dobras significassem o branco, e o branco significasse as dobras, como se os dois fossem absolutamente o duplo um do outro. Sem essa equivalência não haveria nenhuma diferença, sem esse branco nenhuma cor, sem essa morte nenhuma vida. É sobre esta contiguidade, ou desta intimidade absoluta, entre o branco do fundo e as dobras que o marcam, que surge algo extremamente intenso e móvel. Essa duplicidade última do ser e do não ser não possui nada de uma dialética que suporia uma certa razão absoluta, pelo contrário, ela é justamente a afirmação de todas as fissuras e de todas as dobras do ser, ou melhor, o ser só se encontra ali onde ele se fissura.

Simulador espontâneo

“Simulador espontâneo”11, é assim que Genet se qualifica em Um cativo apaixonado. O que ele simula? Uma revolução? Ele se nomeia também “um elemento desrealizador de Movimentos”. Seria para manifestar seu gosto pelo escândalo e pela provocação, ou seu anarquismo intangível, mesmo diante dos palestinos em luta pelos quais ele se encontra apaixonado sem reservas? Mas, se ele simula um movimento revolucionário desrealizando-o, é ainda para criar, no movimento, ou uma realidade de fissuras ou de desvios que possam intensificar esses movimentos, abrindo-os para potências exteriores. A autoridade, o dogmatismo, a crença e todos os aspectos normativos da resistência incomodam esse simulador espontâneo. Mas a simulação, em Genet, não se limita à função de monitorar uma revolta. Sabemos que simular é um ato profundamente enraizado na “natureza” de Genet. Ele simula, desrealiza, disfarça. Se ele se disfarça de mulher, ele não é nem homem, nem

11 Ibidem, p. 206.

livro_KUNIICHI.indd 87 19/07/12 16:44

88 89

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

mulher, mas um sexo duplo irreal que não possui nada além de sua própria realidade oscilante. Mesmo ao escrever uma narrativa sobre um condenado à morte, ele não se desfaz da posição de desrealizador ou simulador. A realidade de um crime ou de um assassinato o faz tremer e o comove, mas o escritor ou observador obstinado, em Genet, desrealiza a realidade violenta. Essa posição dupla encerra-o numa estranha solidão, mas também oferece a seu pensamento uma abertura extraordinária. Para este desrealizador, uma realidade é sempre dupla e sem território fixo, sua realidade consiste apenas no vai e vem incessante de duas dimensões, deste deslocamento que apresenta uma lógica fundamentalmente ambivalente, desestabilizante.

Vê-se bem que o teatro de Genet consiste sempre em simulação sobreposta à simulação. No teatro, que já é uma simulação, as criadas fingem que são as patroas e se imitam entre elas, os negros simulam os brancos que os julgam. Em Um cativo, um dos militantes a quem ele mais se apegou, Moubarak, imita Genet, que acabou de imitá-lo. Esta simulação de uma simulação não passa de um jogo de espelho? Neste jogo, uma identidade se espalha numa multiplicidade, a minha imagem e a do outro se desdobram e se dispersam. Mas o elemento simulador, em Genet, é, na verdade, uma linha de fuga que inflete e rompe outras linhas. Ele não repete jamais a mesma imagem dentro de um espaço fechado, mas decompõe e transforma imagens a cada vez diferentes, que se disfarçarão para sempre.

Pietà

Um dos temas mais impressionantes de Um cativo é a imagem da Pietà. Um palestino em batalha, Hamsa, cuja mãe acolhe Genet uma noite e lhe oferece a cama do filho, formam finalmente o ícone que simboliza o todo desse canto imenso da guerra palestina. O ícone cristão não estaria nem um pouco de acordo com o hino de guerra dos palestinos, que não só são contra Israel como também contra os Estados do Ocidente, se Genet não houvesse transformado e deslocado de alguma forma a imagem da Virgem e do Cristo. A mãe de Hamsa, na casa de quem ele passa uma noite como se fosse seu filho, era mais

livro_KUNIICHI.indd 88 19/07/12 16:44

88 89

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

nova do que Genet. A presença das Mães nos campos palestinos sempre o impressionara. O que ele observa, na Pietà, é essa impressão perversa de que a Virgem que segura o filho morto é, com frequência, mais jovem do que o Cristo. Às vezes não se sabe mais quem lamenta sobre quem, quem consola quem. E a partir da noite em que ele substituiu o filho na casa da mãe palestina, Genet não consegue mais se lembrar dessa mãe e desse filho independentemente. Eles formam um casal. Eles podem mudar de papel ou mesmo de idade, a mãe podendo ser mais jovem e viril, o filho podendo ser mais velho e feminino. Não há lugar para o pai, que determinaria e normalizaria a partilha dos sexos. A mobilidade e ambivalência dessa relação formam um outro ícone que representa inteiramente o que é a guerra dos Palestinos para Genet. Finalmente, essa imagem oferece uma figura dupla que une, numa mesma massa, dois sexos que trocam incessantemente suas identidades. É assim que ele “desrealiza” mais uma vez a realidade dessa guerra.

Uma política?

É através de todo o processo de transformação e de decomposição das linhas e das formas, que constroem os códigos, os sistemas, os poderes, que Jean Genet descobre e redescobre o tempo que lhe é próprio. No tempo, há sempre algo de invisível, de imperceptível, uma essência localizada e dobrada no interior de um labirinto. Genet se mantém fiel até o fim a esse labirinto do tempo e, no fundo desse labirinto, ele descobre o branco que é por vezes aterrorizante e, sem dúvida, terno também. Todas as imagens são criadas como dobras desse branco, dessa equivalência absoluta. Certamente a resistência palestina devia ter muita abertura, delicadeza, senso de hospitalidade e mesmo fantasia para acolher este antigo ladrão, este “simulador espontâneo”. A realidade da luta dos palestinos, com o elemento desrealizador que é Genet, forma uma unidade dupla deslocada de sua dimensão histórica e política. Mas jamais poderemos dizer que esta narrativa de guerra não passa de uma confissão passional, pessoal, dos encontros com os heróis da resistência, ou de um romance que canta poeticamente ou esteticamente os atos heroicos. Poesia e estética das mais

livro_KUNIICHI.indd 89 19/07/12 16:44

90 91

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

elaboradas se encontram certamente por toda parte nesse livro. Mas, o que é ambicionado, através do livro, é uma política em seu ponto vital ou mortal.

Genet, que não parou de louvar a traição em seus romances, está pouco interessado na fidelidade aos movimentos políticos. Ele opõe a beleza dos gestos dos militares à seriedade da causa política. Ele vai até o fim com seu anarquismo; ele não é generoso com o Estado palestino em germinação, nem com a seriedade de seus dirigentes. Mas o que ele descobriu ou concebeu, através do combate dos Palestinos e daquilo que ele escreveu a esse respeito, está relacionado, acima de tudo, a uma política que ultrapassa a divisão bem conhecida entre política, poética, ética etc.

É na prisão que Genet começa a escrever diante do corpo dos criminosos, à frente do muro que os encerra, perante a sentença pronunciada pelos juízes e sob o olhar severo dos guardas, num espaço onde todas as relações de força são expostas sem disfarce. A escrita de Genet deve ser confrontada, desde o início, com um plano onde tudo é vivido como relação de forças, em que nada pode se proteger do jogo de forças brutais. Um gesto, um canto, um olhar, uma palavra etc. são perceptíveis na medida em que se situam diretamente sobre este mesmo plano único, e sobre este plano, a poesia e a beleza estão sempre do lado do mal e do crime, do lado dos corpos violentos encarcerados, vigiados. Jamais a escrita e a literatura de Genet se desprendem desse plano onde nada está ao abrigo das relações de força, onde tudo se comunica, tudo se toca.

Sobre este plano único Genet tenta constituir uma política que recusa todos os germes do Estado por nascer, a dominação por um sexo único, todos os sistemas e normas que coagulam os gestos, os sorrisos, as dobras imperceptíveis escondidas sob as linhas retas que formalizam a história do poder.

O tempo, para Genet, é aquele que revela tudo aquilo que está abrigado neste branco, todos os tremores recobertos pelas linhas retas da força dominante. E nada é belo para ele, se não se toca este plano branco em que se escuta sempre ressoar o riso do simulador espontâneo.

livro_KUNIICHI.indd 90 19/07/12 16:44

90 91

O TEMPO SINGULAR DE JEAN GENET

livro_KUNIICHI.indd 91 19/07/12 16:44

9392

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 92 19/07/12 16:44

9392

7. UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

A escrita de Jean Genet traça um plano de imanência que atravessa a política, a linguagem, o sexo, a estética, o espaço e o tempo. É um verdadeiro plano de imanência, pois nada sobrevoa, nem se ergue acima desse plano, nada se situa sobre um centro que determinaria uma totalidade ao subjugar as partes, o movimento é centrífugo, desfaz a todo instante os contornos dos sujeitos e dos objetos, desmonta as formas sólidas em fissuras finas, decompõe as imagens dramáticas em gestos imperceptíveis. Esse plano de imanência se traça ao mesmo tempo em que surge uma escrita imanente que se refere a si mesma, de tal maneira que as letras se desprendem com frequência do papel branco, adquirem sua própria violência ou pelo menos se tornam transparentes, absorvidas pelo branco. “Os negros1* na América branca são os signos que escrevem; sobre a página em branco eles são a tinta que lhe dá um sentido.”2 É assim que a escrita refere-se a ela mesma, ao mesmo tempo em que trabalha uma cena real de uma luta política. Ela traça um plano de imanência que atravessa a dimensão política real e a dimensão da linguagem.

Porém, já na primeira página de Um cativo apaixonado, Genet diz: “A revolução palestina foi escrita sobre o vazio, um artifício sobre o vazio e a página em branco, será que cada minúsculo espaço de papel em branco, que aparece entre duas palavras, é mais real do que os signos pretos*?”, retifica assim o que ele havia escrito sobre os negros na América: “quando eu observei que os Negros eram os caracteres sobre a folha em branco da América, foi uma imagem muito precipitada, a realidade está principalmente naquilo que eu jamais saberia precisamente, lá onde se joga o drama amoroso entre duas Américas de cor diferente.” Portanto, a escrita pode ser uma violência contra o papel em branco, mas o espaço entre as palavras é ainda mais compacto e real. Os palestinos são como a margem “espremida entre cada letra da língua

1 * Em francês, a palavra noir é usada para falar tanto da cor da pele como em “Os negros na América branca são os signos que escrevem; sobre a página em branco eles são a tinta que lhe dá um sentido”; quanto da cor preta em “será que cada minúsculo espaço de papel em branco, que aparece entre duas palavras, é mais real do que os signos pretos?, ou da pouca luminosidade (escuro): “As figuras escuras das marionetes, no teatro de sombras, são também como as letras marcadas sobre uma tela branca.” [N. do T.]2 J. Genet, Un Captif Amoureux, op. cit., p. 290.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 93 19/07/12 16:44

94 95

hebraica.”3 A propósito do hebraico, Genet escreve: “Mais desenhado do que escrito, esculpido mais do que desenhado, o hebraico causava um mal-estar comparável àquele que causaria uma manada tranquila de dinossauros. Não apenas essa escrita pertencia ao inimigo, ela era, entre outras coisas, uma sentinela armada, ameaçando o povo do Líbano.”4

Logo, a escrita é uma violência contra a margem ou o branco que dominam, mas o branco do papel pode ser uma violência mais secreta, mais imperceptível. A escrita de Um cativo apaixonado se desenvolve na alternância entre esse branco e esse preto que estão em luta permanente. As letras torturam o papel, o branco do papel foge das letras pretas, ou as absorve, tornando-as transparentes. As letras possuem seu sentido, sua realidade e sua história, o branco também, seu sentido, sua realidade, sua história. A escrita de Genet não se escreve somente sobre o branco, no que diz respeito a uma história ou uma narrativa de guerra, de um povo ou de uma revolução. Ela consiste das flutuações entre o preto das letras e o branco do papel. Ela emerge do tremor desse branco entre as letras, desse nonsense entre os sentidos. Essa relação conflituosa e alternante da escrita não é uma simples metáfora de uma guerra real, ela é um processo real que faz parte dessa guerra. Este movimento da escrita é imanente à realidade da resistência dos Palestinos e dos Panteras Negras tal como fora vivida e observada por Genet. Há um plano de imanência que traça de um lado esse movimento da escrita e do outro os movimentos que constituem uma revolta singular.

Por toda a parte, em Um cativo apaixonado, assistimos a jogos de aparição e desaparição inseparáveis desse movimento da escrita, dessa imanência. Um palestino parte para o campo de batalha, eventualmente o país da morte, com um gesto de apagar uma escrita. “A esponja amarrada a um barbante, ele a desliza diversas vezes sobre as letras de giz do quadro negro. Ele realmente apagou aquilo que estava escrito, com um gesto semelhante, indo da direita para esquerda e inversamente, realizando, por muito tempo, esse gesto da mão, um gesto de adeus e de apagamento que acompanhava as palavras ‘bye bye’, tão eficaz que, os rostos dos amigos, designados para descerem o Jordão, desapareceram definitivamente.”5

3 Ibidem, p. 12.4 Ibidem, p. 364.5 Ibidem, p. 311.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 94 19/07/12 16:44

94 95

O ato de eclipsar parece corresponder ao gesto de apagar uma escrita. Como já vimos, as letras eclipsam o branco, o branco eclipsa as letras. A escrita eclipsa a realidade, a realidade eclipsa a escrita. “Eclipsar é uma palavra rica. Além do sol, mais visível se a lua o eclipsa, qualquer evento, homem, figura, eclipsados por outros ou por outras coisas, voltam regenerados, a desaparição fez brevemente seu trabalho de limpeza, de polimento. O Vietnã eclipsou o Japão que havia eclipsado a Europa, a América, tudo. Tudo não eclipsa qualquer coisa. Os malefícios do verbo eclipsar deixam aparecer a velha imagem chinesa, indiana, árabe, iraniana, japonesa, do dragão engolindo o sol, este que a lua eclipsa. Até a expressão eclipsar-me, momento em que se revela o tremor, o vai e vem entre as ideias de escapar-me e de fazer-me desaparecer sob a claridade de um outro.”6 Eclipsar é fazer desaparecer um outro, eclipsar-se é fazer aparecer um outro. A escrita não se desenrola sem o eclipse, ou seja, sem eclipsar o branco e eclipsar-se pelo branco, sem eclipsar o real e fazer-se eclipsar pelo real, sem se deixar eclipsar por uma outra escrita. A escrita de Genet é “consubstancial” (como “a revolta deles me era consubstancial”7) a esse movimento de eclipse que pode desestabilizar a linearidade e a discursividade da narrativa ou da reflexão, mas que torna cada vez mais intenso e sensível o plano de imanência traçado pela escrita.

Que o branco do papel ameaça sempre a escrita, nós percebemos bem se o apreendemos como jogo de luz. A verdade estaria ao lado da luz branca mais do que ao lado do escuro da tinta. Um pergaminho branco é ainda mais branco, ou transparente, quando ele é iluminado, e um dia é o próprio corpo de Genet, narrador de Um cativo apaixonado, que é esse pergaminho. Genet conta o que aconteceu uma noite, em Istambul, depois da estranha separação que tinha durado cinco anos: “Houve, no meu quarto, uma luz intensa mas difusa ao meu redor, tão evidente que levantei o cobertor para saber se aquela luz não entrava por uma claraboia em cima de minha porta, no meu quarto. Eu pus minha cabeça de volta sob o cobertor, a luz estava lá [...] Eu soube que durante poucos segundos algo em mim tornou-se fosforescente, pensei mesmo que fosse minha pele, luminosa da mesma forma que o pergaminho de um abajur quando a

6 Ibidem, p. 441.7 Ibidem, p. 288.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 95 19/07/12 16:44

96 97

lâmpada está acesa.”8 É difícil ler esta passagem sem associá-la a todos os jogos de eclipse, de transparência, todas as interferências e todas as flutuações entre o branco e os signos que constituem a escrita de Genet, notadamente em Um cativo apaixonado, cujo início e fim indicam paradoxalmente a transparência da página escrita. A página sobre a qual os signos são transparentes corresponde a essa pele, esse pergaminho, essa pele iluminada do interior. A verdade não se situa sobre os signos, mas sobre o branco que atravessa os signos. Esse branco, essas faíscas de luz são mais reais do que os signos em tinta preta. Ele nomeia essa luz descoberta em Istambul o limbo bizantino de aura amêndoa. Esta aura não é para revelar um deus transcendental, ou qualquer além, mas um plano absolutamente imanente traçado por uma escrita do eclipse.

Depois de reconhecer esse jogo de eclipse, essa alternância, essa equivalência, essa flutuação entre o preto dos signos e o branco sobre os quais os signos se inscrevem, compreendemos melhor “o estupor” que Genet sentiu diante de uma folha de papel em branco desdobrada. “Uma galinha, um pássaro, uma flecha de papel ou um avião, como fazem as crianças sobre as carteiras, quando nós as desdobramos, docemente, elas voltam a ser a página de um jornal ou uma folha em branco. Uma vez que um desconforto vago me incomodava há muito tempo, meu espanto foi enorme quando compreendi que minha vida – quer dizer, os acidentes de minha vida, quando bem desdobrados, colocados em plano sob meus olhos não passaram de uma folha de papel em branco que eu pude, por força dos vincos, transformar num objeto novo o qual talvez só eu conseguisse ver em três dimensões, tivesse ele a aparência de uma montanha, de um precipício ou de um acidente mortal.”9 É ainda a história de uma escrita que se eclipsa diante do branco. As dobras podem ser acidentes, episódios, ações, sinais que marcam uma vida. Nós dobramos e desdobramos, incessantemente, a vida. As dobras e os vincos deixam formas, figuras ou imagens. Genet descobre, no estupor, um tecido branco que cospe dobras; e reabsorve essas dobras. Todos os eventos, tudo aquilo que é escrito sobre os eventos, não passam de ondas sobre a superfície do mar. Mas esse tecido branco é, apesar de tudo, criador, enquanto suporte de uma variação infinita, perpétua, enquanto recusa de um

8 Ibidem, p. 425.9 Ibidem, p. 205.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 96 19/07/12 16:44

96 97

intento que determinaria de uma vez por todas a imagem e a forma das coisas. É um plano de imanência, suporte de todas as dobras do ser, que atravessa todos os traços da dobragem. Não se trata mais apenas da escrita. É este plano de imanência que escreve, e que se escreve. Sobre este plano, não há substância, há apenas maneiras de dobrar esse branco. Esse branco comporta sempre mais dobras sutis, virtuais, do que todas as dobras já vistas e determinadas.

As figuras escuras* das marionetes, no teatro de sombras, são também como as letras marcadas sobre uma tela branca. Mas as marionetes são, antes de tudo, as personagens principais de Um cativo apaixonado, os militantes palestinos mortos. As vozes que Genet traz para sua narrativa são aquelas que ele empresta aos mortos, às sombras dos mortos, exatamente como no teatro de sombras. “Entre a voz abafada ou estridente do manipulador e a agitação angulosa das bonecas, apesar dos efeitos que desejariam fazer-nos crer, através do realismo, não haverá nunca acordo.”10 Mais uma vez, os componentes da escrita, a voz emitida e a voz que conta, se dissociam assim como as letras e a superfície branca se dissociam na escrita de Genet. Mas a dissociação nunca é negativa, pois a distância entre a voz de um morto e a voz emprestada e escrita não passa de emoção, segundo Genet. Medir essa distância é afirmar uma emoção, assim como flutuar entre as letras e o branco é afirmar uma posição desequilibrada da escrita diante do real, ou uma verdade em ondulação eterna. A escrita de Genet se dissocia, se bifurca, racha ao descobrir as falhas entre os signos, entre o branco e as letras, ao revelar a fenda entre a voz do narrador e a voz emitida. Essa fenda é o sinal da morte, é desse silêncio, dessa distância, que a emoção vem. A escrita de Genet não segue uma linha dominante que submeteria todos os componentes às necessidades da narrativa, da reflexão, da lembrança etc. Sua escrita vira-se, refere-se constantemente a ela mesma, não para excluir tudo aquilo que não pertence à escrita, mas para fender-se, a cada vez, em elementos heterogêneos, para abrir-se a tudo aquilo que é estrangeiro, para uma identidade qualquer que preserve o movimento polifônico. O canto dos guerreiros palestinos, à noite, apresenta um esquema exato dessa “polifonia”. “Um grupo se calava, esperando que os dois outros, invisíveis, respondessem sempre em uníssono, mas cada um desses três grupos de modos diferentes.

10 Ibidem, p. 412.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 97 19/07/12 16:44

98 99

Em uníssono, exceto em algumas passagens, quando uma criança-soldado, dois tons ou dois tons e meio acima, encarregava-se dos trinados e apenas nas passagens que ela escolhia, então, os coristas faziam silêncio, como se se afastassem para dar passagem a um ancestral.”11 Um canto espera ou esconde um outro canto que continuará, que ressoará, mais um canto que se junta, e depois se bifurca, eclipsando-se. Em O milagre da rosa, há uma bela passagem que descreve a bifurcação dos cantos entoados, alternadamente, na prisão, pelos prisioneiros. Em Um cativo apaixonado, a escrita bifurca uma imensa polifonia de vozes, gestos, cantos, sons e constrói um plano de imanência através de todas as linhas heterogêneas. E Genet, que fora outrora prisioneiro, é obcecado pelas fissuras sobre o muro da prisão, fissuras que se bifurcam, proliferam e, finalmente, fazem ruir a prisão. “Como era sólida a prisão, os blocos de granito reunidos pelo mais forte cimento e articulados ainda por ferro forjado, e fissuras inesperadas, provocadas pela água da chuva, uma semente, um único raio de sol, e um raminho de erva já havia deslocado os blocos de granito, o bem tinha sido feito, quero dizer, a prisão ruiu.”12 A escrita se iguala às fissuras do muro da prisão. A escrita se fissura para fissurar o muro espesso da moral, da lei, do Estado, de todos os territórios.

É necessário destacar ainda dois aspectos da escrita de Genet, os quais ele exprime, claramente, em seus escritos. Servindo-se da expressão “as grandes profundidades” para descrever a cidade de Amman, ele escreve: “As grandes profundidades é uma expressão tão enfática quanto a maior parte dos termos de navegação, antigos, mas nunca esquecidos. Quando os marinheiros, perdidos na solidão, na neblina, na água, nas arfagens perpétuas, se desviam, talvez com a esperança de se perderem, perdem-se também em suas descobertas verbais: recifes, finistères13, rebentos, tribos, baobás, Niágara, chiens de mer14... é com a ajuda de um vocabulário pouco conhecido por suas viúvas recasadas com um sapateiro, que eles contarão sobre viagens que ninguém deve explorar sem medo, nem prazer.”15 Este vocabulário, das arfagens perpétuas, está vivo em nossa

11 Ibidem, p. 56.12 Ibidem, p. 454.13 Finistère é uma palavra derivada do latim finis terrae e quer dizer “fim da terra”. É o nome de um departamento da França, localizado na região da Bretanha. [N. do T.]14 Chiens de mer (cachorros do mar) é uma expressão francesa que se refere a diversos tipos de tubarão. [N do T.]15 J. Genet, Un Captif Amoureux, op. cit., p. 24.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 98 19/07/12 16:44

98 99

língua e na escrita de Genet. Não é apenas o vocabulário ou a cidade descrita por esse vocabulário que se encontra nas arfagens. A própria escrita de Genet se encontra nas arfagens, e cria as arfagens, uma linguagem-arfagem. É uma escrita composta de um mosaico móvel em arfagem permanente. Em Um cativo apaixonado, frequentemente, nós nos perguntamos por que tal trecho situa-se em tal lugar, por que tal começo para tal episódio? As páginas em que, escutando o Réquiem, ele começa a contar a história de um transexual, são muito bruscas, imprevistas. O Réquiem se transforma subitamente na festa de um transexual e compreendemos, aos poucos, que é a revolta palestina inteira que é transexual contra o imperialismo masculino. É Arafat que possui, ao mesmo tempo, um rosto de homem e outro de mulher. Todas as arfagens na escrita de Genet são também inseparáveis da transexualidade, dos sexos em arfagem.

Outro aspecto consiste na guerra, na mistura e na ambiguidade das palavras. É isto que Genet indica, principalmente, no texto “A estranha palavra...”, em que questiona quais palavras pronunciar no teatro, entre as sepulturas, já que, para ele, o teatro deve se realizar num cemitério. “Palavras. Experimentada não sei como, a língua francesa dissimula e revela uma guerra que se faz entre as palavras, irmãos inimigos, um disputa com o outro ou se apaixona pelo outro. Se tradição e traição nasceram de um mesmo movimento original e divergem para viverem, cada um, uma vida singular, através de quê, ao longo da língua, eles se sabem ligados em sua tradição? Mal experimentada como qualquer outra língua, esta língua, assim como as outras, permite que se encavalem as palavras como animais no cio e aquilo que sai de nossas bocas é uma orgia de palavras que se acasalam, inocentemente ou não, e que dão ao discurso francês o ar salubre de um campo florestal onde todos os animais perdidos se cruzam.”16 As palavras são monstros, são vegetações estranhas que se acasalam, que se misturam sem parar, em ambiguidade e arfagem originais. É outro aspecto da escrita de Genet, visto que falamos principalmente de seu aspecto de dissociação, de alternância, de bifurcação. Mas da mesma maneira que a dissociação, a alternância, a bifurcação, refutam qualquer unidade idêntica, transcendental, predominante, assim também a fusão, a mistura, exclui a unidade determinante ou determinada. Dois aspectos de um mesmo

16 J. Genet, “L’Étrange mot d’...”, in Oeuvres complètes, tomo IV, op. cit., p. 17 [“A estranha palavra...”, tradução de Fátima Saadi, Folhetim, n. 3, Rio de Janeiro, Teatro do Pequeno Gesto, jan. 1999].

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 99 19/07/12 16:44

100 101

movimento que destrói a unidade, a identidade, a transcendência, o mesmo movimento num só plano de imanência.

Em Um cativo apaixonado, há uma imagem ou um símbolo que resume, estranhamente, a existência inteira dos palestinos, para Genet. Ele chega a dizer que essa revolta aconteceu para que me assombrasse esse casal17. Esse casal é Hamsa, um jovem guerrilheiro palestino, e sua mãe. Genet dorme uma noite na casa deles, no campo, enquanto Hamsa parte para o combate até a manhã seguinte, como se ele substituísse o filho para a mãe, mais jovem que o próprio Genet. A lembrança dessa noite o assombrará e se cristalizará na imagem da Pietà. Neste ícone cristão, ele percebe que, frequentemente, a virgem aparenta ser mais jovem do que o cadáver (que Genet evita nomear). Acontece, sem dúvida, de o filho parecer paternal frente à sua mãe virgem, assim como o é Deus. Ou eles podem ser irmão e irmã. Essa mobilidade numa imagem incestuosa persegue Genet. O filho pode ser feminino e protegido, a virgem pode ser viril, forte. De forma geral, é um ícone transexual. “Se eu evocasse a mãe, sozinha, por exemplo, quando ela abria a porta do quarto, seu filho estava sempre, ele também, imenso, e velava por ela com sua espingarda na mão. Finalmente, eu nunca imaginava apenas uma figura: sempre um casal em que um estava preso às atitudes cotidianas e a suas medidas reais, o outro gigante, simplesmente presente, possuindo a consistência e as proporções de uma figura mitológica.”18 Este ícone cristão se transfigura no selo da revolução palestina. “Mas quem foi primeiro: o grupo frequentemente chamado Pietà, da Virgem e de seu Filho divino, ou mais longe no tempo e além da Europa, a Judéia e a Palestina? Nas Índias, por exemplo, mas talvez em todos os homens, é necessário evitar o incesto, se este acontece, sem o conhecimento do Pai, na confusão de devaneios da mãe e do filho.”19 Dois sexos, duas gerações intercambiáveis, um velando sobre o outro sem a presença do Pai, é uma imagem da partenogênese, da transexualidade. É o selo de uma sexualidade imanente construída sobre um plano de imanência sem Deus, sem Pai, nem castração. É este o selo que Genet coloca sobre a revolução palestina, frustrando todos os contextos cristãos da Pietà. Selo que frustra também a doxa da causa revolucionária, da mesma

17 J. Genet, Un Captif Amoureux, op. cit., p. 243.18 Ibidem, p. 241.19 Ibidem, p. 242.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 100 19/07/12 16:44

100 101

maneira como Genet está sempre pronto para trair a vontade dos dirigentes de se concentrarem “na conquista de um espaço ridículo”. Este selo, de Hamsa e sua mãe, deve assegurar a construção de um plano de imanência sobre “a lógica na incoerência das imagens sonhadas”20 que funda a resistência palestina.

É sobre este plano de imanência e com todos os dispositivos da escrita imanente que Genet analisa o poder. Em vez de criticar o poder, de se opor ao poder, ele o analisa, ou seja, o decompõe em elementos imperceptíveis, um ato autoritário em gestos minúsculos. Da mesma forma como ele tentou descobrir fissuras ínfimas sobre o muro da prisão, ele se interessa por “uma muito fina, quase imperceptível rede de rachaduras”21 sobre a superfície do esmalte que forma um escarro decorativo num embaixador ou sobre a cruz da Legião de Honra. Isto pertence sempre ao método da dissociação, da bifurcação, da fenda. Mas este método, próprio a Genet, encontra sempre seu ponto final num plano de imanência sobre o qual tudo se liga a tudo, tudo se comunica com tudo. Formam apenas um, o bem e o mal, a polícia e os criminosos, o palácio real e a periferia, a vida e a morte. O poder tem sempre sua rede invisível, na qual as relações de dominação se constituem através de modalidades diferentes, frequentemente fora das forças visíveis que pertenceriam a um domínio preciso, sob a forma da justiça, da lei, da interdição, da obrigação. Resumindo: o poder possui seu plano de imanência. Nós sabemos a que ponto Genet era sensível em relação a esse plano de imanência do poder. A literatura de Genet é a literatura do poder, pois ele penetra, melhor do que ninguém, “nessa fina e imperceptível rede do poder” em seus romances e em seu teatro. É suficiente revelar, analisar ou descobrir esse plano de imanência? Será necessário ir até a dissolução desse plano? É uma questão. Porém, em vez de se fechar na representação ou na visibilidade do poder – é isso também que constitui o poder – confrontar-se com esse plano de imanência ou torná-lo visível – é uma abertura considerável.

A estratégia de Genet frente ao poder é singular. Sua homenagem ao mal não é nem uma antítese da justiça, nem uma transgressão da moral. Ele também não defende os criminosos como desprivilegiados ou oprimidos. Em último caso, a homenagem ao mal se funda apenas sobre uma estética, sobre a fascinação

20 Ibidem, p. 416.21 Ibidem, p. 491.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 101 19/07/12 16:44

102 103

pela beleza dos gestos. “Eu já não distinguia nada além das qualidades e gestos viris que eu havia conhecido nele. Condensados, fixos, para sempre no passado, eles compunham um objeto sólido, indestrutível, que fora obtido de alguns detalhes inesquecíveis.”22 “É surpreendente que a reunião de qualidades tão suaves obtenha as arestas afiadas do cristal de rocha; é surpreendente que eu compare – não os atos – mas a expressão moral dos atos a atributos do mundo mensurável. Eu disse que estava fascinado. Esta palavra sozinha contém a ideia de feixes23 – mais precisamente feixes parecidos com os das luzes do cristal. Essas luzes são o resultado de uma certa disposição das superfícies.”24 De gestos suaves emerge um cristal, o masculino é composto do feminino, o corpo dobra e desdobra sem parar e faz aparecer vincos e dobras como violência e doçura. Esses feixes de luz, essas superfícies, eles aparecem num só plano.

Quando ele escreve sobre Giacometti ou Rembrandt, é impressionante notar em que medida que ponto a descrição de um desenho ou de um quadro constitui ao mesmo tempo a demonstração de um plano de imanência que nunca abandona o pensamento e a poesia de Genet. Um dos dois textos sobre Rembrandt – “Aquilo que restou de um Rembrandt dilacerado em pequenos quadrados bem regulares, e jogados na privada” – deve-se mais a uma experiência do próprio Genet, num trem, do que a arte de Rembrandt, pelo menos à primeira vista. Aquilo que ele experimentou diante de um viajante é “a revelação de que qualquer homem vale pelo outro”, a descoberta de um tipo de identidade universal pertencente a todos os homens. Esta não é uma revelação alegre, ele se sente completamente igual e idêntico a um viajante sem charme, sujo, ignóbil, rígido. A descoberta do “vazio sólido” desta equivalência absoluta é chocante, triste, repugnante, ainda mais porque para Genet “a busca erótica é possível somente quando se supõe que cada ser possui sua individualidade, que ela é irredutível e que a forma física a exprime, e exprime somente ela”25. O texto que ocupa a parte esquerda de cada página repete exaustivamente e reexamina esta revelação catastrófica do ser despersonalizado, idêntico a todos, e o que

22 J. Genet, Journal du Voleur, Gallimard, 1967, p. 86.23 As palavras francesas fasciné (fascinado) e faisceaux (feixes) contêm várias letras em comum. [N. do T.]24 J. Genet, Journal du Voleur, op. cit., p. 282.25 J. Genet, Ce qui est resté d’un Rembrandt déchiré en petits carrés..., in Oeuvres complètes, tomo IV, op. cit., p. 30 [Rembrandt. Tradução de Ferreira Gullar, Rio de Janeiro, José Olympio, 2002].

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 102 19/07/12 16:44

102 103

é estranho é que, na parte direita, em itálico, que trata de Rembrandt, Genet comenta a despersonalização na arte de Rembrandt, situando-a num contexto completamente oposto, ou seja, afirmativo. Ele define o que se realiza na arte de Rembrandt, após a morte de sua esposa, assim: “é a partir do momento em que ele despersonaliza seus modelos, retira todas as características identificáveis dos objetos, que ele dá a uns e a outros mais peso, a grande realidade”26. Aquilo que é repugnante e negativo na experiência de Genet, no trem, é afirmação e franqueza na arte de Rembrandt. As últimas pinturas de Rembrandt são somente pura pintura, sem tentativa de confundirem-se com “o objeto ou o rosto que devem figurar”, desprendem-se, então, de qualquer individualidade das coisas e da humanidade. É isso que ele afirma também em “O segredo de Rembrandt”: “Esse esforço leva-o a desfazer-se de tudo aquilo que, nele, pudesse trazê-lo de volta a uma visão diferenciada, descontínua, hierarquizada do mundo: uma mão vale um rosto, um rosto a quina de uma mesa...”27 É também isso que ele confirma com Giacometti, “ele se recusa a estabelecer uma diferença de ‘nível’ – ou de plano – entre as diferentes partes do rosto”28. Tudo isso designa um plano de imanência que atravessa as diferenças, as singularidades, as dobras que formam cada ser sem jamais os transcender, nem reduzir. Este plano imanente comporta mais diferenças, mais dobras do que a particularidade ou identidade de cada indivíduo. A pintura revela esse plano. É esse plano imanente que se desenha como “uma infinita, uma infernal transparência”29. Certamente, há algo de terrível, cruel, infernal, nesse plano de imanência, pois a inconstância, a fluência, a velocidade são enormes sobre ele. Tudo está ligado a tudo, tudo se comunica com tudo. Uma estética é ao mesmo tempo uma política. A demarcação é imprecisa, flutuante. Alguns filósofos não cessaram de pensar sobre esse plano, de forjar os conceitos que tocam diretamente esse plano: Spinoza, Bergson, Deleuze...

Porém, é preciso ressaltar mais uma vez o trajeto singular de Genet, uma vida que atravessa um plano de imanência, que é atravessada por este plano. Desse plano traçado por ele emerge uma formidável máquina analítica do poder. É

26 Ibidem, p. 2727 Ibidem, p. 37.28 J. Genet, L’Atelier d’Alberto Giacometti, in Oeuvres complètes, tomo V, op. cit., p. 58.29 J. Genet, Ce qui est resté d’un Rembrandt déchiré en petits carrés..., in Oeuvres complètes, tomo IV, op. cit., p. 29.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 103 19/07/12 16:44

104 105

raro que uma escrita seja tão profundamente impregnada de um plano de imanência do poder ao analisar o poder. O plano que Giacometti traça em suas esculturas e desenhos ressoa perfeitamente com o branco, ou os brancos diante dos quais o corpo e a escrita de Genet são transparentes. “Eu queria dizer também que os brancos dão a uma página um valor de Oriente – ou de luzes – os traços sendo utilizados não para que obtenham valor significativo, mas com o único fim de dar toda significação aos brancos.”30 “Um valor de Oriente” a ser sempre descoberto pelos ocidentais e pelos orientais.

30 J. Genet, L’Atelier d’Alberto Giacometti, in Oeuvres complètes, tomo V, op. cit., p. 63.

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 104 19/07/12 16:44

104 105

UM PLANO DE IMANÊNCIA SINGULAR

livro_KUNIICHI.indd 105 19/07/12 16:44

107106

DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 106 19/07/12 16:44

107106

8. DOIS TEATROS

1.

Com Artaud e Genet, estamos diante de duas dimensões do teatro: ambos são singulares, violentos, intensos, densos, provocadores, sutis e essenciais, no entanto, muito diferentes um do outro. Para eles, o teatro não pode ser reduzido nem ao texto, nem ao jogo dos atores, nem ao espaço teatral. É, antes de tudo, uma pesquisa ou uma experiência que toca diretamente a vida, que tenta reinventar o corpo e a linguagem, perfurando suas fronteiras delimitadas e impostas pelo poder, pela história, pela sociedade. Para eles, o teatro é uma operação direta sobre o real, e a realidade é em si um processo do teatro. O teatro não é um gênero literário, nem está confinado a uma sala ou à cena. Genet e Artaud nos fazem descobrir no seu encontro sonhado (eles nunca se encontraram de fato) uma zona estranhamente densa e crítica que atravessa o pensamento e o teatro.

Ainda muito jovem, vivendo o caos da esquizofrenia, acometido continuamente pela paralisia do pensamento e pela petrificação do corpo, passando constantemente por todas as crises da imagem e da representação do mundo e também da linguagem, Artaud descobre um teatro singular que ele nomeará “teatro da crueldade”. Ele o concebe como uma tentativa de colocar tudo em questão, os signos, as imagens, as palavras, o corpo, o espírito, a sociedade, as formas, as instituições, o Estado, enfim, como uma tentativa de anarquia. O anarquista coroado é o subtítulo de seu romance Heliogabalo, a história de um jovem imperador cujas perversões estão relacionadas, de acordo com Artaud, à essência do teatro. A anarquia é o que o pensamento e o corpo de Artaud viveram, e para ele a anarquia é o momento da descoberta de uma nova ordem. Através de sua escrita, ele descreve e trabalha a desordem de seu estado mental e físico, e os estranhos processos de transformações e as dissociações, os ruídos e dissonâncias que lhe revelam pouco a pouco a perspectiva de um outro organismo, de um outro agenciamento da vida. É um trabalho de reconstrução e circunspecção. Ao medir ou pesar os nervos (Pesa-Nervos é o título de seu livro poético), ele sonda as matérias e intensidades que

DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 107 19/07/12 16:44

108 109

constituem o pensamento; todas as linhas traçadas no caos se transformarão em germes para uma outra arquitetura do pensamento. Ao mesmo tempo, Artaud se metamorfoseará num estranho ator que recoloca sua crise interior num teatro de dimensão muito ampla que acabará abrangendo o problema de uma civilização ou de toda uma sociedade na qual ele nasceu.

Esta experiência dupla de Artaud que, às vezes, concerne ao pensamento e ao teatro, conduz ao livro manifesto O teatro e seu duplo. Este livro já é um duplo do teatro em sua própria escrita e apresenta uma série de duplos que ilustram a quintessência do teatro. A peste é o primeiro duplo, e depois a dança balinesa, a alquimia e um quadro de Lucas van Leyden, As filhas de Loth, também são o duplo do teatro sem serem temas do teatro. Como a alquimia, o teatro desagrega, funda, e reinventa o corpo, a imagem e a linguagem. O duplo do teatro encontra-se já no drama vivido pelo corpo e pela alma de Artaud. E o teatro atravessa tudo, todas as dimensões, fazendo surgir seus duplos.

Mas ainda resta questionar. Vimos que Artaud apresentou sua crise existencial no teatro como sentido primordial do teatro. Sua crise, sua paralisia é apenas uma anomalia, uma doença, uma desordem a ser corrigida quando seguimos o bom senso, a razão, a harmonia, o equilíbrio, qualquer representação normativa que defina, sobretudo, a ordem ocidental do pensamento. A desordem de Artaud é a ruína de um espírito perturbado. Isso realmente pode ser um processo criativo para descobrir uma nova ordem desconhecida? Mesmo Artaud não deixa de se fazer essa pergunta em suas correspondências e em seus textos poéticos, especialmente em seu período surrealista. Ele continua a pesar, a reavaliar sua crise, experimentando uma revolução com os surrealistas, e depois superando finalmente o surrealismo para uma revolução mais fundamental. Ele quer mudar a vida e, sobretudo, o corpo. Ele precisa do teatro, mas não de qualquer teatro.

Pode-se dizer – e alguns já disseram – que sua teoria do teatro é demasiadamente vinculada ao seu problema pessoal, singular, excessivo e, portanto, irrealizável em cena. Grotowski escreveu um texto sobre Artaud intitulado “Ele não era inteiramente ele mesmo.”1 O que me parece uma

1 J. Grotowski, “Il n’était pas entièrement lui-même”, Les Temps modernes, n. 251, 1967.

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 108 19/07/12 16:44

108 109

estranha curiosidade. De acordo com este tipo de observação, ora ele estava demasiado no caos para realizar uma cena convincente, ora ele desloca demasiadamente o teatro para seu problema pessoal. Mas que o teatro exista desvinculado do problema que inquieta a mente e o corpo de um indivíduo é uma ideia absolutamente recusada por Artaud.

Para muitos historiadores, a anarquia de Heliogabalo é apenas uma loucura, um crime perverso, uma catástrofe acidental, e, inclusive, pode-se pensar no teatro da crueldade como pura catástrofe para o teatro. Mas, seguramente, ele passou a ser algo muito importante para o pensamento tanto quanto para o teatro. E isso que Artaud viveu e exprimiu é muito preciso e rigoroso.

Em seu projeto do teatro da crueldade, o primeiro ensaio foi “A conquista do México”, a história da colonização. Para Artaud, a colonização não é um simples tema para o teatro. É necessário, para ele, que o teatro penetre no processo de colonização. Colonizar é certamente conquistar, dominar e aniquilar um povo. Para Artaud, é também, e acima de tudo, colonizar o corpo. O poder ocidental é inseparável da exclusão do corpo. Em sua crise de paralisia, ele descobre um estranho autômato que é o seu próprio corpo. Este autômato é também um corpo colonizado. Mas o autômato não sabe ainda o que pode. Isso basta para liberar o corpo colonizado? Não é tão simples. Será preciso, talvez, desfazer a ligação ou a articulação entre o corpo e a mente por muito tempo determinados pela história e pelas instituições. Uma história da colonização é introduzida no teatro para redescobrir no corpo dominado, automatizado, falsificado, assassinado, seu próprio combate obscuro, para agitá-lo, fazê-lo vibrar no caos das forças vitais.

É assim que ele se opõe ao teatro ocidental, tentando construir um novo teatro como lugar de experimentação de ser do corpo, do corpo que ultrapassa a sua dimensão orgânica, mais fluido, mais informe, mais opaco ‒ do corpo sem órgãos. Deleuze e Guattari elaboraram esse termo de Artaud para desenvolver um pensamento renovador do corpo. Artaud nunca abandonou a ideia original do teatro profundamente ligado à violência e à crueldade dos mitos antigos. O teatro existiu na origem do mundo, e foi arruinado, perdido pela modernidade. Ser mais moderno é, portanto, reconstruir a origem. Para ele, o teatro da crueldade original não é apenas bruto, primitivo. Ele é baseado

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 109 19/07/12 16:44

110 111

num conhecimento muito elaborado das forças vitais que circulam fora da territorialidade individual e psicológica. Artaud queria construir e reconstruir, ao mesmo tempo, o teatro, o corpo e a vida, expressando-se às vezes como um profeta. Ele será ainda por muito tempo uma fonte inesgotável do teatro, se formos sensíveis às questões fundamentais que inspiram o teatro desde sempre.

2.

Aparentemente, o teatro de Jean Genet é muito diferente do teatro de Artaud. Cronologicamente, um pouco antes de Genet, Artaud já havia ido muito longe na crítica ou até mesmo na destruição da instituição teatral para construir um novo teatro fundado sobre a ideia de um novo corpo. Genet escolheu um outro caminho, que consistia em colocar tudo o que é desafiador e virulento no teatro sob a forma clássica. Sua motivação muito presente ainda é a oposição à colonização ou à dominação, a hostilidade aos mestres, aos brancos, aos colonizadores do Ocidente. Mas Genet, com seu olhar singular e sua extraordinária lucidez diante de todos os jogos de poder, intervém no teatro de uma maneira muito diversa. Em seus romances, que sempre foram uma singular homenagem ao mal, ele já explicitava certa lógica da cena.

“– Por isso danço ao redor do canto fúnebre.

Portanto era necessário que ele morresse. E para que o patético deste ato fosse mais virulento, ela própria deveria provocar sua morte. Este caso nada tinha a ver com a moral, nem com o medo da prisão, nem com o do inferno. Com precisão, todo o mecanismo do drama se apresenta diante da mente de Ernestine e também na minha. Ela simularia um suicídio. ‘Vou dizer que ele se matou.’ A lógica de Ernestine, que é uma lógica de teatro, não possui a menor relação com aquilo que chamamos verossimilhança; pois verossimilhança é a negação das razões inconfessas. Não nos espantemos para melhor nos surpreendermos.”2

2 J. Genet, Notre Dame des Fleurs, Paris, Gallimard, 1951, p. 18-9 [Nossa Senhora das Flores, apresentação de Jean-Paul Sartre, tradução de Newton Goldman, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983, p. 78].

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 110 19/07/12 16:44

110 111

Esta é a cena onde a mãe de Divina, herói travesti de Nossa Senhora das Flores, assiste à morte de seu filho. De acordo com Genet, “a lógica de cena”, vinculada essencialmente às razões inconfessáveis, opõe-se à verossimilhança. Os personagens do romance de Genet sempre se comportam de acordo com tal lógica de cena. E a lógica de cena precisa de gestos. Sartre escreveu sobre Genet: “Um ato que se realiza no ser, não é um ato, é um gesto.”3 Os gestos na literatura de Genet têm um sentido quase ontológico. Os gestos responsáveis pela lógica de cena não se subordinam aos temas ou aos eventos do romance, assim como aos detalhes constituintes. Os gestos são, eles mesmos, os temas e os eventos, mais presentes que estes últimos. A lógica de cena determina completamente a literatura de Genet.

Em seu último e grande livro, Um cativo apaixonado, um grande hino à revolta palestina, ele fala dos palestinos nos campos, que jogam cartas sem cartas, ou seja, apenas simulando gestos do jogo. E, finalmente, para Genet, a revolta dos Palestinos assemelha-se a este jogo sem cartas, como luta conduzida por um povo sem Estado, sem território (naquela época). Ele, que acompanha esta revolta, define-se, por sua vez, como “simulador espontâneo”. Tudo é simulação. Simular é desterritorializar, se desterritorializar, liberar-se da identidade, da forma, da unidade. A paixão de Genet pela revolução palestina é também a paixão pela simulação. Aos olhos de Genet, “simulador espontâneo”, mesmo uma guerra real de um povo para recuperar sua terra pode ser conduzida como guerra simulada, teatral, gestual. Certamente ele tem uma extraordinária sensibilidade para a crueldade do real. Mas, para ele, o que é representado como teatro, no teatro, deve ser a simulação. Este aspecto simulador que caminha com a lógica de cena é muito importante no teatro de Genet, ao contrário de Artaud, que visa imediatamente o real no teatro. Artaud nunca confunde o teatro com a realidade, em seu “teatro da crueldade”. Mas Genet tem uma lógica absolutamente consistente sobre a diferença entre cena e realidade. Artaud é extremamente rigoroso no que diz respeito à questão do corpo e sua transformação. O rigor de Genet diz respeito à lógica do gesto, da cena e da simulação.

3 J.-P. Sartre, Saint Genet, comédien et martyr, Paris, Gallimard, 1952, p. 87 [Saint Genet: ator e mártir, tradução de Lucy Magalhães, Petrópolis, Vozes, 2002].

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 111 19/07/12 16:44

112 113

As Criadas representam a relação entre uma madame e uma empregada, Os Negros simulam os brancos que dominam. Já existe um jogo duplo, de simulações duplicadas. A dominação já não é um atributo daquele que domina. Ela é apenas uma série de gestos e discursos que começam a vagar ao deixar o corpo do dominador. O dominador é apenas um efeito de gestos e discursos. O teatro essencialmente político de Genet não ataca o poder, nem se opõe explicitamente a ele. A relação entre dominar e ser dominado decompõe-se numa série de gestos que transparecem através da luz que emana da morte. No pensamento de Genet, a morte assemelha-se muito a uma luz que ilumina tudo, em toda parte. Em Os Biombos, os biombos que separam os dominadores e os dominados convergem progressivamente para um fino biombo que mal divide a vida e a morte. Finalmente, os biombos revelam a contiguidade e a alternância entre a dominação e a servidão, entre a vida e a morte. Os biombos tornam visíveis os fluxos e as vibrações que atravessam, reveladas através dos muros.

Um texto esplêndido e denso, “A estranha palavra...” é um dos raros escritos que explicita bem o pensamento de Genet sobre o teatro. A estranha palavra é “urbanismo”, que exclui da paisagem urbana os signos da morte: os crematórios e os cemitérios. O teatro é inseparável da morte. Um teatro deve-se localizar, então, num cemitério. Expulsar os cemitérios de uma cidade é expulsar o teatro.

O que serão os cemitérios? Um forno capaz de desagregar os mortos. Se falo de um teatro entre os túmulos é porque a palavra morte é hoje tenebrosa, e num mundo que parece ir tão galhardamente em direção à luminosidade analista, sem nada que proteja nossas pálpebras translúcidas – como Mallarmé, acredito que é necessário acrescentar um pouco de trevas. As ciências decifram tudo ou desejam decifrar, mas não aguentamos mais! É preciso refugiar-nos e em nenhum outro lugar que não em nossas entranhas engenhosamente iluminadas... Não, estou enganado: refugiar-nos, não, mas descobrir uma sombra fresca e tórrida que será obra nossa4.

Trinta anos após o manifesto do teatro da crueldade, realizado por Artaud, Genet reivindica para o teatro certa gravidade próxima à morte. Segundo ele, o teatro deve-nos fazer sair do tempo uniforme definido pelo Ocidente

4 J. Genet, “L’Étrange mot d’...”, in Oeuvres complètes, tomo IV, op. cit., p. 16.

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 112 19/07/12 16:44

112 113

cristão, nos lembrar do terror mitológico, não somente de Deus. Deve-se introduzir na cena o ardor, a crueza, mesmo o fedor (“se meu teatro fede é porque o outro cheira bem”5). Mas tudo isso é para “indicar maliciosamente que deste vazio deflagra-se um aspecto que mostra o vazio”6. O que é este vazio? Genet, como Artaud, reivindica a crueldade fundamental ao seu teatro, mas sua crueldade é suspensa por um estranho vazio, sua gravidade por uma certa leveza. Esta posição ambivalente é inseparável de sua perspectiva sobre as palavras.

As palavras. Vivida não sei como, a língua francesa dissimula e revela uma guerra entre as palavras, irmãs inimigas, uma fugindo da outra ou apaixonando-se por ela. Se tradição e traição nasceram de um mesmo movimento original e divergente para cada uma viver uma vida singular, por que meio, ao longo da língua, elas se sabem ligadas em sua distorção?

Embora não vivido de forma pior do que qualquer outra língua, o francês, como as outras línguas, permite que as palavras se acavalem como os animais no cio e que aquilo que sai de nossa boca seja uma orgia de palavras que se acasalam, inocentemente ou não, e que dão ao discurso francês o ar salubre de uma floresta onde todos os animais desgarrados trepam. Escrevendo – ou falando – numa língua assim, não se diz nada. Permite-se apenas que pulule no meio de uma vegetação distraída, colorida pelas misturas de pólen, por enxertos ao acaso, por brotos, que pulule e que ulule uma tempestade de seres, ou se preferirem, de palavras equívocas como os animais da Fábula7.

Genet disse, “tradição e traição nasceram do mesmo movimento original”, já que a tradição consiste em entregar uma conquista histórica à próxima geração e que a traição consiste em entregar um amigo ao inimigo. Duas palavras opostas têm a mesma raiz tradere, ou seja, entregar. Genet rejeita, assim, as palavras em seu caos original, que se assemelham a todas as hibridizações botânicas, todas as desordens orgânicas: aqui ele descobre seu próprio corpo sem órgãos. As palavras e seus significados estão em permanente flutuação. É esta flutuação original que motiva o teatro de Genet. Ele não precisa destruir

5 Ibidem, p. 13.6 Ibidem.7 Ibidem, p. 17.

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 113 19/07/12 16:44

114 115

o teatro tradicional como Artaud, porque para ele a tradição está se movendo na flutuação perpétua. O teatro num cemitério é lançado por um desfile de mímicos que simulam a morte pronunciando uma orgia de palavras, ou palavras acasalando-se, devorando-se, o que Genet chama de “dialetófago”.

Essa mistura de palavras implica a do dominador e do dominado, ou da luz e da sombra, e, finalmente, da vida e da morte. O corpo do dominador dissocia-se em gestos de dominação. A crueldade caminha com a mistura e a dissociação terríveis. Artaud continuou sua pesquisa do absoluto no teatro, sua busca pela anarquia perdida, original, para reconstruir uma vitalidade universal perdida. Mas em Genet encontra-se um deserto, um vazio, uma negação que trairá uma busca absolutamente positiva própria a Artaud. Se o teatro de Artaud persegue um construtivismo de forças, que exclui rigorosamente as formas, o teatro de Genet apresenta um maneirismo, que exclui as substâncias fixas. Em Genet, as maneiras ou os gestos continuam a trair uma construção, uma ordem determinada definitivamente. “Traição” é o nome deste maneirismo.

Em 1954, quando as duas versões de As Criadas são publicadas, Genet faz um prefácio em forma de carta endereçada a Jean-Jacques Pauvert. Ele manifesta sua hostilidade ao teatro ocidental, a sua grosseria, seu exibicionismo, sua “miséria intelectual”, sua “convenção psicológica” etc. Ele acusa a si mesmo de engajar-se nesta tradição do teatro na qual o ator nunca se torna “um signo carregado de signos”, dizendo que marionetes fariam melhor. Se Genet leu ou não os escritos de Artaud sobre teatro não importa. Mas é interessante notar que ambos estavam preocupados com o problema dos signos.

“O que há de curioso [...] é que, através desse labirinto de gestos, atitudes, gritos lançados ao ar, através das evoluções e das curvas que não deixam inutilizada nenhuma porção do espaço cênico, surge o sentido de uma nova linguagem física baseada nos signos e não mais nas palavras. Esses atores com suas roupas geométricas parecem hieróglifos animados.”8

8 A. Artaud, Le Théâtre et son Double, in Oeuvres complètes, tomo IV, op. cit., p. 52 [O teatro e seu duplo, op. cit., p. 56].

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 114 19/07/12 16:44

114 115

Isto é o que Artaud escreveu sobre o teatro balinês. Mas, finalmente, não é por meio de um signo de outro mundo que Genet experimenta o teatro. Apesar de tudo, ele permanece fiel à forma clássica do teatro ocidental, e isso para bem observar a morte do teatro ocidental:

“mas no mundo ocidental, cada vez mais afetado pela morte e voltado a ela, ele [o teatro] só pode se refinar na ‘reflexão’ de comédia da comédia, de reflexo do reflexo, que um jogo cerimonioso poderia tornar delicado e próximo da invisibilidade. Se optarmos por olhá-lo morrer deliciosamente devemos prosseguir com rigor e ordenar os símbolos fúnebres.”9

Aqui uma estratégia perversa própria de Genet. Aquele que se desespera com o teatro ocidental, ainda assim, faz teatro para assistir à morte deste teatro mórbido. Os dominados (as criadas, os negros) simulam os dominadores. Eles mesmos se julgam. Finalmente, é a dominação que se suicida, que confere a sentença a sua vaidade, a sua ruína. Os dominados roubam os gestos, as palavras, os reflexos dos dominadores, desnudam o corpo daquele que domina. Não há mais que reflexos, e reflexos de reflexos em cena. A dominação se fissura, é o corpo de um dominado que assume a morte desses reflexos, as fissuras da dominação.

O autor de O milagre da rosa constrói bem a relação de uma rosa com seus espinhos, indicando como representar Os Biombos. Os espinhos são tudo aquilo que é oblíquo em relação ao tema principal; são também todos os reflexos de reflexos, as fissuras de fissuras. O que corresponderia um pouco ao que Artaud chamou de duplo.

“Os leitores desta peça – Os Biombos – perceberão rapidamente que escrevo qualquer coisa. Sobre as rosas, por exemplo. Ao invés da flor, Sr. Blankensee fala de espinhos. Ora, todos os horticultores sabem: espinhos demais, e grandes

9 J. Genet, Fragments... et autres textes, Paris, Gallimard, 1990, p. 106.

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 115 19/07/12 16:44

116 117

demais, privam a flor da seiva ou de outras coisas necessárias ao vigor e à beleza do desabrochar. Espinhos demais prejudicam, e o Sr. Blankensee não parece suspeitar disso. Seu negócio é a comédia, não a cultura de rosas. Mas fui eu quem inventou este colono e seu jardim de rosas. Meu erro pode – e deve – ser uma indicação. Se o Sr. Blankensee esforça-se pela beleza dos espinhos – ou por que não dos pinheiros – ao invés de pela beleza das flores, precisamente por causa deste erro, cometido por mim, ele deixa o jardim de rosas para entrar para o Teatro.

Talvez seja o mesmo para todas as outras cenas: é preciso dizer de uma certa maneira, a fim de que se perceba o deslocamento.

Nesta peça – mas eu não nego, oh não! – eu me diverti bastante.”10

Esta passagem me faz pensar no belo conceito de Gilles Deleuze, “potências do falso”. Genet jamais pretende apresentar ou representar o real na cena. Ao contrário, tudo que traça o movimento do falso o interessa. Os espinhos do falso, estes são os gestos. Repito neste ponto que os gestos fascinam Genet e não cessam de motivar sua literatura.

“E minhas fadas eram para mim o esbelto açougueiro de bigode conspícuo, o professor tuberculoso, o farmacêutico; todo mundo era uma fada, ou seja, isolado pelo halo de uma existência inacessível, inviolável, através da qual eu percebia que havia gestos cuja continuidade – portanto a lógica e o que ela me assegurava – me escapava, da qual cada fragmento me colocava uma nova questão, palavra por palavra: inquietava-me.”11

O teatro dos gestos de Genet opõe-se ao teatro do corpo de Artaud, o teatro da morte de Genet ao teatro da crueldade de Artaud, a distância entre os dois

10 J. Genet, Les Paravents, in Oeuvres complètes, tomo V, op. cit., p. 249 [Os biombos, tradução de Fátima Saadi, Rio de Janeiro, 7 Letras, 1999].11 J. Genet, Notre Dame des Fleurs, in Oeuvres complètes, tomo II, op. cit., p. 75.

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 116 19/07/12 16:44

116 117

causa vertigem. Genet e Artaud revelam dois tipos de teatro muito diferentes, mas ambos estão perfurando as superfícies que cobrem nosso corpo, nosso pensamento, nossa vida, para descobrir ou construir um plano que atravesse todas as dimensões da vida, especialmente quando o objetivo dos poderes e das instituições consiste em manter ou reinventar todas as fronteiras, determinando as dimensões da vida, dividindo o corpo vivo em diferentes instâncias. Se o primeiro objetivo do poder é delimitar e sitiar a vida e a vitalidade, com todas as organizações e as estratégias visíveis ou invisíveis (devemos muito aos livros de Michel Foucault por esta visão do poder), o objetivo do teatro de Genet e Artaud consiste em perfurar as separações assim impostas. Se o teatro deles é profundamente político, não é porque colocam em cena temas ou representações sobre a política, mas porque sua sensibilidade excepcional, intensa e intransigente em relação à vida tenta perfurar e minar as fronteiras, as formas, os códigos, tudo o que sitia a vida e a vitalidade nesta terra.

DOIS TEATROS DOIS TEATROS

livro_KUNIICHI.indd 117 19/07/12 16:44

119118

VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 118 19/07/12 16:44

119118

9. VITALISMO E BIOPOLÍTICA

Walter Benjamin fala de um certo dogma da vida em seu texto “Por uma Crítica da Violência” (1921). A violência é, antes de tudo, esta da vida. A violência ataca a vida. A vida parece tão frágil, tão insignificante em face de uma violência natural ou social, organizada ou não. “O que é que distingue essencialmente essa vida da vida das plantas e dos animais? Mesmo que estes fossem sagrados, não seriam pela mera vida deles, nem por estarem na vida. Valeria a pena rastrear a origem do dogma da sacralidade da vida.”1

Neste texto, Benjamin não vai tão longe a ponto de dar uma resposta precisa a esta questão, uma vez que sua problemática se dirige mais à relação entre a violência e a lei. Mas aqui de novo Benjamin parece colocar uma outra questão concernente a vida: em que condição e em nome de que a lei protege a vida, ou não a protege mais, a abandona à mercê das violências de um estado de exceção? É assim que Benjamin já tem um presságio acerca da problemática da biopolítica da qual falará Michel Foucault meio século mais tarde.

Se para Foucault o jogo da biopolítica não se situa mais no espaço do direito e da constituição, a reflexão de Benjamin concentra-se notadamente sobre uma dialética entre a lei e a violência à vida. Mas que vida? Com qual dogma da vida? Benjamin não dará a resposta. Foucault se volta mais e mais à teoria do poder e se interessa sobretudo pelas tecnologias com as quais o poder age sobre o corpo e a vida, desvencilhando-se cada vez mais da ordem da razão e da lei. Mas desde O Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas, Foucault é confrontado com os problemas da vida, com os conceitos da vida em termos médicos, anatômicos, biológicos, evolucionistas etc. No conjunto de sua obra, Foucault não cessa de tocar os diferentes aspectos e dimensões da vida: a vida que se manifesta frente a frente com um novo estatuto da morte revelado através da moderna anatomia de Bichat, a vida redefinida como função biológica, segundo Cuvier, e, portanto, a vida como jogo de todos os

1 W. Benjamin, “Critique de la violence”, in Oeuvres, tomo I, Paris, Gallimard, coll. Folio Essais, 2000, p. 241 [“Para uma crítica da violência”, in Escritos sobre mito e linguagem, org. Jeanne Marie Gagnebin, tradução de Ernani Chaves, São Paulo, Ed. 34, 2011, p. 154].

VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 119 19/07/12 16:44

120 121

dispositivos da biopolítica. É bem possível que tudo isso provenha do mesmo movimento histórico profundo do Ocidente moderno que ficou muito tempo invisível, coberto sob todos os debates racionalistas e humanistas.

Mas retornamos à questão do dogma da vida, uma vez que todos esses ordenamentos da vida que Foucault explicitou correspondem aos dogmas diferentes da vida: a vida biológica, a vida médica, a vida biopolítica e a vida em face à violência política determinada pela lei. E o vitalismo? Pode encontrar um lugar entre estes dogmas da vida, na medida em que ele também se tornou um certo dogma da vida?

Se pensarmos na filosofia de Gilles Deleuze, nela há sem dúvida certo vitalismo ou um elogio à vida que atravessa todas as suas obras. Os pensamentos sobre a vida do corpo, o corpo sem órgãos e o devir-animal estão sempre presentes em sua filosofia. E Bergson é visivelmente uma fonte importante da sua filosofia da vida. Mas em Deleuze nós não podemos deixar de perceber também um pensamento constante sobre a política da vida que está por toda parte tomada por um poder da morte. De modo que, se pensamos em um vitalismo, de acordo com ele, parece inevitável ser confrontado ao mesmo tempo com um biopoder, e é preciso dizer que aí já existem pelo menos dois dogmas diferentes da vida: a vida singular como jogo de um certo vitalismo e a vida investida e operada por uma espécie de biopoder. E se não for correto dizer que estes são dogmas, há pelo menos conceitos diferentes de vida que se enfrentam, se usurpam e se misturam.

É em seu livro A evolução criadora que Bergson coloca precisamente o problema da vida. Em Matéria e memória, ele refletiu sobre percepção e memória, alma e corpo, mente e cérebro. Evidentemente, tudo isso, no que diz respeito à vida, pode constituir e antecipar uma teoria inteira da vida. Mas, nesse livro, a vida não é ainda um jogo preciso da filosofia. A evolução criadora introduz desde o início o problema da evolução da vida, da vida do modo como evolui, e coloca a questão: como o pensamento pode conceber a vida e sua evolução de maneira adequada?

“Nosso pensamento, sob sua forma puramente lógica, é incapaz de representar a verdadeira natureza da vida, a significação profunda do movimento evolutivo.

VITALISMO E BIOPOLÍTICA VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 120 19/07/12 16:44

120 121

Criado pela vida em circunstâncias determinadas para agir sobre coisas determinadas, como poderia abarcar a vida, da qual não é senão uma emanação ou aspecto?”2 Desde o começo, Bergson considera impossível o pensamento agarrar com precisão a vida, sua “verdadeira natureza”.

O vitalismo significa, em geral, um princípio de acordo com o qual os fenômenos da vida são distintos da alma e da matéria, e irredutíveis aos fenômenos físico-químicos da matéria inerte, a saber, o mecanismo. Mas o vitalismo pode ir mais longe neste sentido; como diz Canguilhem, “é a expressão de confiança na vida, de identidade da vida consigo mesma no vivente humano, consciente de viver”3. Mas a partir da primeira observação de Bergson em A evolução criadora, que acabo de citar, esta identidade entre a consciência da vida e a própria vida é necessariamente impossível.

Esta problemática da vida colocada por Bergson é persistente. É difícil pela razão, pela ciência, pela lógica apoderar-se do movimento, da mudança, do tempo e, naturalmente, é muito difícil pensar a vida. Em A evolução criadora, Bergson parece tratar da dificuldade de pensar o tempo e o movimento, a vida e sua evolução pelo mesmo viés. Mas também podemos nos perguntar se Bergson não coloca algumas questões específicas à vida, se não há para ele problemas da vida irredutíveis ao movimento ou à mudança que é, muitas vezes, o que está em jogo na filosofia bergsoniana.

Evidentemente, Bergson apresenta de modo explícito esta questão: “o corpo vivo, enfim, seria ele um corpo como os outros?”4 O que é específico do corpo vivo é que ele é um indivíduo num certo grau. “O corpo vivo foi isolado e fechado pela própria natureza. É composto por partes heterogêneas que se completam umas às outras. Exerce funções diversas que se implicam mutuamente. É um indivíduo, e de nenhum outro objeto, nem mesmo o cristal, se pode dizer isso.”5 Mas essa individualidade do corpo vivo não é perfeita, na medida em que um fragmento destacado do corpo pode servir à reprodução. “A individualidade

2 H. Bergson, L’Évolution Créatrice, in Oeuvres, Paris, PUF, coll. Grands Ouvrages, Édition du Centenaire, 1991, p. 489-490 [A evolução criadora, tradução de Bento Prado Neto, São Paulo, Martins Fontes, 2005, Introdução].3 G. Canguilhem, Connaissance de la vie, Paris, Vrin, 2003, p. 87.4 H. Bergson, L’Évolution Créatrice, in Oeuvres, op. cit., p. 504 [A evolução criadora, op. cit., p. 13].5 Ibidem.

VITALISMO E BIOPOLÍTICA VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 121 19/07/12 16:44

122 123

abriga portanto seu inimigo dentro de si.”6 A individualidade da vida é somente uma tendência, não é um estado concluído.

O conjunto desses indivíduos que são os corpos vivos pode ser harmonioso ou não. “Ela [a filosofia da vida] admite muitas discordâncias, porque cada espécie, e até mesmo cada indivíduo, só retém da impulsão global da vida um certo élan, e tende a utilizar esta energia em seu próprio interesse; nisso consiste a adaptação. A espécie e o indivíduo só pensam neles mesmos.”7

A filosofia da vida, segundo Bergson, entra assim em uma dimensão ambígua concernente à individualidade da vida, sua harmonia e sua desarmonia. Esta dimensão não é muito visível em suas reflexões sobre a duração e o movimento. E seu pensamento sobre a vida vai, mais e mais, em direção à evolução como dissociação e desdobramento. O mecanismo criticou o finalismo, seu caráter antropomórfico, seu modelo ideal. “Mas quer, ele também, que a natureza tenha trabalhado como o operário humano, juntando partes. Um simples lance de olhos no desenvolvimento de um embrião ter-lhe-ia mostrado, no entanto, que a vida procede de modo inteiramente diferente. Ela não procede por associação e adição de elementos, mas por dissociação e desdobramento.”8

A evolução introduz assim o desvio e a dissociação ao invés da harmonia que, sem dúvida, existe apenas no começo. A dissociação acontece entre os animais e as plantas, e entre as plantas e os micróbios do solo. “Acaso se poderia falar propriamente de uma ‘divisão do trabalho’? Essas palavras não nos dariam uma ideia exata de evolução, tal como nós no-la representamos. Ali onde há divisão do trabalho, há associação e há também convergência de esforço. Pelo contrário, a evolução de que falamos nunca se efetua no sentido de uma associação, mas no de uma dissociação, nunca em direção à convergência, mas em direção à divergência dos esforços.”9 O élan vital seria então, fundamentalmente, este da dissociação e da divergência? Sim e não.

Todo o argumento de Bergson sobre o evolucionismo darwiniano centra-se sobre esta questão: a variação do vivo é puramente acidental? É simplesmente

6 Ibidem, p. 505 [p. 14].7 Ibidem, p. 537 [p. 55].8 Ibidem, p 571 [p. 97].9 Ibidem, p. 658 [p. 127-8].

VITALISMO E BIOPOLÍTICA VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 122 19/07/12 16:44

122 123

por acaso que o olho de um vertebrado e o de um molusco têm uma estrutura um pouco similar, mesmo que sejam separados por seus troncos comuns antes da formação de um olho tão complexo? Segundo Bergson, a evolução não é assim tão arriscada, é preciso supor um tipo de “continuidade e de convergência de variações”, se somos um pouco sensíveis a todos os aspectos de correlação e de repercussão que parecem surgir entre as variações. E “adaptação” não é somente uma reação passiva do vivo. O vivo tira das condições exteriores da vida um partido cada vez mais vantajoso reagindo ativamente. Ele resolve assim um problema, como o olho resolve o problema da luz. É assim que Bergson propõe o élan vital. Há uma “causa psicológica”, ou “um esforço” mais profundo que o esforço individual do vivo, que deve dirigir a evolução.

Esse élan é a consciência. “A vida, isto é, a consciência lançada através da matéria, fixava sua atenção quer sob seu próprio movimento, quer sobre a matéria que atravessava.”10 A tarefa para a filosofia da vida é lançar-se nessa grande consciência que é a vida. “A filosofia só pode ser um esforço para fundir-se novamente ao todo.”11 Nossa inteligência faz uma parte mínima, local, solidificada deste todo. Vemos bem que o élan vital não é somente a individuação, a dissociação, a divergência, ele é também o todo, a unidade, uma consciência global. Não nos perguntamos se o élan vital significa ainda qualquer coisa sobre o plano científico tendo em vista todas as aquisições biológicas, genéticas de nossos dias. Mas mais ou menos independentemente da ciência, existiram e existem sempre todos os pensamentos, os dogmas, os conceitos, as representações da vida – e mesmo as ciências só prosseguem à custa dos dogmas que as acompanham. Podemos nos perguntar quais dogmas da vida A evolução criadora e o élan vital nos propõem.

Segundo Bergson, a vida é que evolui com seu élan fundamental, é o que muda, individualiza, diverge, dissocia-se, mas no conjunto, em seu todo, age como uma grande consciência, e não para de responder às questões colocadas pelo meio ou pelo mundo. Esta filosofia é um elogio à vida, uma bela afirmação da vida. Mas uma filosofia da vida não é jamais independente de uma política da vida, mesmo se seu jogo parece estar fora da sociedade e da História. Há um

10 Ibidem, p. 649 [p. 197].11 Ibidem, p. 658 [p. 209].

VITALISMO E BIOPOLÍTICA VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 123 19/07/12 16:44

124 125

dogma da vida visivelmente político, religioso, moral, científico, filosófico... Mas uma biopolítica funciona sobre o cruzamento entre a biologia, a medicina, a política, o vitalismo, todas as instituições e todos os saberes concernentes à vida.

Todos os termos que Bergson mobiliza para qualificar os aspectos da vida ‒ individuação, dissociação, divergência, élan, consciência ‒ podem ser transferidos para uma dimensão política ou biopolítica como componentes e tendências que podem formar os jogos de poder sobre a vida e a morte.

Cada indivíduo vivo jamais é um instrumento puro da Vida e de seu Élan. Um ser vivo tende a viver, a sobreviver e procriar, e por isso a selecionar, ler os estímulos de seu meio e, ao mesmo tempo, constituir seu meio. Canguilhem observou assim a importância das relações entre os indivíduos vivos tais como a utilização, a destruição, a defesa. São essas relações que formam o meio do vivo.

Nós sabemos que o evolucionismo e a ideia da seleção tem um certo papel político perigoso, um jogo exatamente biopolítico. Mas depois que nos damos conta de que a biopolítica funciona infiltrando-se em todas as redes ou cruzando campos muito variados: biologia, medicina, administração... Um conceito de vida que parece produzir-se independentemente da política é, apesar de tudo, impregnado de jogo político porque é a vida mesma que entra no espaço do jogo político. Nossa vida humana, rica, complexa e múltipla é estranhamente – e cada vez mais – reduzida a uma sobrevivência biológica, vigiada minuciosamente. É assim que nossa vida biológica se torna mais e mais a competição pelo jogo de poder que funciona através das instituições, das informações, das indústrias.

Como consequência, a questão crucial é: como resistir a esta globalização do biopoder e da força? Cabe à filosofia assumir a resistência e o pensamento de resistência. Gilles Deleuze não parou de filosofar sobre a vida e o corpo vivo, todas as forças que agem, atravessam e moldam o corpo. Nesta ótica, o corpo se manifesta como se fosse um lugar informe, instável, sem fronteiras, onde as forças naturais e sociais se cruzam, se chocam, fervilham sem parar. Assim o corpo é problematizado como corpo sem órgãos. E o que se passa com o corpo invadido pelo biopoder? O corpo biologizado transforma-se em

VITALISMO E BIOPOLÍTICA VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 124 19/07/12 16:44

124 125

substância cada vez mais analisável, operável, permeável, normalizável, e esta transformação acontece em nome da preciosa vida humana.

Deleuze fala da “vergonha de ser um homem”, citando Primo Lévi, que sobreviveu ao campo de extermínio. Não é que toda a humanidade seja responsável pelo holocausto. “A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas aparecem de dentro. Não vivemos fora de nossa época, ao contrário, não cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos. Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não há outro meio senão fazer como o animal (rosnar, cavar, rir, ter convulsões) para escapar ao ignóbil.”12 O cinismo do biopoder é duplo e simulador. Ele diz: você é homem, seja digno, e eles lhe tratam como animal, vida biológica, puro ser orgânico. Uma filosofia da vida diz o contrário: você se torna animal e será a vida, o corpo sem órgãos, digno da vida.

Se Nietzsche e Artaud já tinham proposto uma imagem da vida intensa animal, biológica, evolucionista, não foi para operar, investir e enclausurar a vida humana em uma biopolítica, isolando todos os fluxos da vida. Ao contrário, foi para abrir a vida do cosmos, encontrar de novo as conexões com todos os fluxos da vida. O élan vital deve ser reencontrado com esta abertura.

12 G. Deleuze e F. Guattari, Qu’est-ce que la philosophie?, Paris, Minuit, 1991, p. 103 [O que é a filosofia?, tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Muñoz, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, p. 139].

VITALISMO E BIOPOLÍTICA VITALISMO E BIOPOLÍTICA

livro_KUNIICHI.indd 125 19/07/12 16:44

127126

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

livro_KUNIICHI.indd 126 19/07/12 16:44

127126

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

10. TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

Nas últimas obras de Samuel Beckett, assistimos, com frequência, a situações nas quais a voz e o sujeito da voz se disjuntam. “Foi ela quem gritou, foi ela quem nasceu, eu não gritei, eu não nasci, é impossível que eu tenha uma voz...” “Imaginem!... não faço ideia do que ela conta!... vejam lá... tentando se convencer... de que ela não lhe pertence... de que a voz não é dele...”1 O personagem não ouve a voz imaginária, ele apenas escuta sua voz, como se esta fosse imaginária.

E na cabeça que opera a linguagem, uma voz soa sem cessar, quase sempre muda, ela não passa de uma pura sequência de imagens acústicas (como diz Saussure). E é possível que eu escute essa voz como se já não mais me pertencesse, como minha voz ampliada pelo microfone não é mais minha voz, como minha voz que um outro escuta não é a mesma voz que escuto.

Em Pas moi, de Beckett, há essa boca que, sozinha, iluminada sobre o palco, fala nas trevas. Na boca, monstruosamente isolada e iluminada, transformada numa estranha máquina de falar, há uma outra sombra, o escuro que disjunta a voz e a carne, entre a boca que fala e aquela que come e faz um barulho indecifrável. Este escuro é um sinal da parte de fora.

Já num outro texto de Beckett, Mal vu mal dit, acontece uma disjunção entre o olho que vê e a voz que conta: a cabeça trai o olho que trai, a palavra trai a traição deles... Dessa forma, Beckett introduz, por toda parte, a disjunção entre o perceber e o percebido, as percepções e os órgãos, a voz e as palavras, as palavras e o sujeito, o sujeito e os pensamentos, entre visão e olho, entre as palavras. Ele descobre uma certa “pontuação da deiscência”. Ele não para de esburacar a língua. O que conta não é o vazio que se descobre aí. A pontuação de deiscências é um modo elaborado de perceber a parte de fora da língua.

“Eu renunciei antes de nascer.”2 É a reclamação noire de uma vida, em Pour en finir encore. Eu que não nasci, que recuso nascer, olho e persigo, de qualquer

1 S. Beckett, Pour en finir encore et autres foirades, Paris, Minuit, 1976, p. 39.2 S. Beckett, Oh les beaux jours/ Pas moi, Paris, Minuit, p. 87.

livro_KUNIICHI.indd 127 19/07/12 16:44

128 129

maneira, esse outro que já nasceu em meu lugar. Foi ele quem nasceu, eu não nasci e continuo no interior. Tampouco possuo voz. Falo apenas através da voz dele, esse outro que já nasceu, ou melhor, falo sem voz, e, se não nasci, também não morrerei.

Esse estranho ser parece recusar não apenas o nascimento, mas a vida orgânica, suas articulações e sínteses. Ele defende apenas uma vida antes do nascimento, uma vida sem órgãos, não uma vida vazia, mas uma vida estranhamente plena de uma outra coisa.

Leroi-Gourhan, em Le geste et la parole, chama a atenção para o processo através do qual a mão se livra da função motora e a boca daquela de colher e morder o alimento. Desta maneira, a mão começa a desenhar e a escrever, a boca começa a falar, temos, então, a grafia e a fonia. Realiza-se um encontro maravilhoso entre a letra e a voz. A disjunção becketteniana percebe algo entre a letra e a voz, o ser e a palavra, o olho e a mão, a mão e a boca..., a lista de disjunções é inesgotável.

Uma vez que somos tão sensíveis a todo tipo de disjunções e deiscências, o cinema, com todas as suas operações de montagem e ligação entre os planos, entre as imagens e o som, pode-nos colocar toda uma série de problemáticas das sínteses orgânicas e das disjunções em níveis diferentes.

Em A imagem-tempo, Gilles Deleuze revela uma dimensão do cinema em que “as situações ópticas e sonoras puras” se acentuam cada vez mais ao abandonarem uma outra dimensão, aquela da imagem-movimento que, a partir das situações sensório-motoras, articulava o tempo como quantidade ou medida do movimento. O tempo parte, finalmente, para fora do movimento, através das situações sonoras e visuais puras, é o novo realismo italiano que esboçaria todos os signos da imagem-tempo. Neste segundo volume sobre cinema, Deleuze acentua cada vez mais as disjunções entre a imagem visual e a imagem sonora, entre aquilo que vemos e aquilo que ouvimos, e tudo que sai do interstício entre os dois. Todo tipo de figuras do tempo aparece entre a imagem e o som...

Gostaria de rever até que ponto certos críticos de cinema foram sensíveis tanto a essa primazia do tempo esboçado pelo cinema quanto a todos os traços

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

livro_KUNIICHI.indd 128 19/07/12 16:44

128 129

da disjunção ou dissociação no e entre os componentes do cinema. A propósito de filmes de Robert Bresson, como Diário de um Pároco de Aldeia ou As Damas do Bois de Boulogne, André Bazin, encontrando as características específicas do novo realismo, ressalta o realismo rigoroso que deve excluir a representação psicológica e o jogo dramático.

Bazin descreve o realismo de Bresson, que vai mais longe até um realismo que contraria o realismo, na medida em que Bresson, de alguma maneira, cria um contraponto do real que desmonta seu próprio realismo. O barulho da chuva, da cascata, dos passos dos cavalos se opõe a um monólogo ou a um diálogo impassíveis, que soam quase anacrônicos. Bresson faz surgir uma fricção ou uma tensão estranha como se ele jogasse areia na máquina cinematográfica. Para este cineasta, que resiste, sistematicamente, ao jogo dos atores, o rosto de um intérprete significa apenas a qualidade a mais carnal, uma fisionomia ontológica. Os gestos do intérprete são tão lentos, tão ambíguos, em seus filmes, repetindo-se tão obstinadamente, que dão uma impressão onírica abrandada.

Para Bazin, essa lentidão se parece com o ritmo da marcha de Jesus, em suas paradas em direção à cruz. Diário de um Pároco de Aldeia é um filme que realiza “uma fenomenologia da salvação e da graça” com o romance de Bernanos.

Bresson introduz os textos de Bernanos como uma outra qualidade singular ou como uma espécie de “neblina” entre os rostos e os gestos do intérprete. As imagens filmadas não traduzem, nem resumem o texto, “Pelo contrário”, diz Bazin, “sua aproximação acusa a heterogeneidade das essências. Cada um desempenha sua parte paralelamente, com seus meios, sua matéria e seu estilo próprio. Mas é, sem dúvida, através dessa dissociação dos elementos, que a verossimilhança gostaria de reunir, que Bresson consegue eliminar a tal ponto o acidental. A discordância ontológica entre duas ordens de fatos concorrentes, confrontados na tela, coloca em evidência sua única medida comum, que é a alma.”3 Para Bresson, a crença pode existir apenas nesta discordância. “Cada um diz a mesma coisa e a própria disparidade entre as expressões, as matérias, estilos, a espécie de indiferença que rege as relações

3 A. Bazin, Qu’est-ce que le cinéma?, Paris, Cerf, coll. 7e Art, 1999, p. 119.

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

livro_KUNIICHI.indd 129 19/07/12 16:44

130 131

entre o intérprete e o texto, entre as palavras e os rostos, é a maior garantia de sua cumplicidade profunda.”4

Este desacordo, esta não-relação sustenta a crença e exige ainda mais dela. É uma crença que parece quase kierkegaardiana.

Como diz Bazin, Diário de um Pároco nos dá a impressão de “um filme mudo com legendas faladas”. O texto nunca é introduzido nas imagens de uma maneira natural. A imagem nunca explica o texto, o texto nunca comenta a imagem. O desacordo entre som e imagem, seu contraponto, acentua a tensão de uma maneira quase insuportável. Ao final, a imagem retira-se da tela, que se enche de uma luz branca. “Sobre o tecido branco da tela a cruz negra, desajeitada como aquela de um faire-part5, único traço visível deixado pela assunção da imagem, testemunho de que sua realidade não passou de um signo.”6 Bazin se refere, frequentemente, à filosofia de sua época, à intencionalidade, ou a certa dialética talvez sartriana, mas todos os seus pensamentos sobre os aspectos desse desacordo me parecem pressagiar o problema da imagem-tempo.

Desta maneira, o “realismo” de Bazin não corresponde mais àquele do senso clássico. Este realismo não adere mais ao real, ele se ocupa em dilacerar a narração, a psicologia, a descrição, a representação que pretende fornecer o real. O real dilacera a representação do mundo, infiltra-se no pensamento como uma espécie de violência. Cada componente se desprende da unidade que o gera e organiza, para se tornar um objeto puro da percepção. Esse objeto será liberado da integração ou da unificação que conduz o princípio de ação ou de movimento. O mundo diverge e surge uma nova dimensão do tempo. O primeiro cinema se prendia, certamente, à notável velocidade, ao homem que se move, dança, ao navio, ao trem que corre. No entanto, logo houve, apesar de tudo, uma pesquisa estranha da lentidão, da expressão insuportavelmente intensa do rosto e da matéria, penso aqui em Dreyer e Epstein.

Bazin insiste no fato de que Bresson recusou a montagem. Para Bresson, o valor de uma imagem cinematográfica não se constitui por uma imagem que

4 Ibidem.5 Faire-part é um modo de anunciar uma notícia ao meio social: um casamento, um nascimento, um batismo, uma primeira comunhão etc. Envia-se um cartão, que pode ou não ser acompanhado por um convite. [N. do T.]6 A. Bazin, Qu’est-ce que le cinéma ?, op. cit., p. 124.

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

livro_KUNIICHI.indd 130 19/07/12 16:44

130 131

precede e outra que prossegue, tampouco por uma síntese motora. É que ela deve “acumular uma energia estática como as lâminas paralelas de um condensador”7.

Bazin descobre a mesma expressão de energia estática em Fellini, embora este cineasta pareça mais movediço e agitado, de modo que o real felliniano se transforma aos poucos em angelical, “o herói felliniano não evolui, ele se converte, basculante, para terminar à maneira dos icebergs nos quais o centro de flutuação, invisivelmente, se deslocou”8. O movimento e a montagem divergem no tempo.

Segundo Bazin, quando o real se disjunta, aparece um outro real. É notável a que ponto, entre a crítica de Bazin e aquela que vem depois dele, um fosso irreparável se escava quanto à filosofia do real. Por exemplo, para Serge Daney, o real no cinema já está destilado, embora Bazin tenha arriscado sua pele para agarrar o real para além de todas as suas disjunções. É esta pele, este “hímen” que conserva virgem o real a ser descoberto, depois de Daney. Diferentemente de Bazin, que admite “que será necessário sempre sacrificar alguma coisa da realidade à realidade”, Daney diz: “Sacrificar o quê ? A pele justamente. O contínuo-transparente, que adere ao real, que usa seu molde, os panos que nos conservam a múmia da realidade, seu cadáver sempre vivo, sua atualidade eterna. O que permite ver e nos protege daquilo que é visto: a tela.”9 Se o real não existe mais, só existe um ato de fala, todos os efeitos dos signos realizados através das imagens virtuais e sonoras, e todos os interstícios entre eles. Certamente, Daney vai mais longe na busca de todas as disjunções, de todos os atos de fala: “Disjunção, divisão, cisão, levar a sério o célebre ‘um se divide em dois’, o olhar e a voz, a voz e sua matéria (sua ‘semente’), a língua e seus sotaques, formam, como diz Zhou Enlai, ‘sonhos na mesma cama’.”10 Tudo não passa de atos de fala. Abre-se também uma nova presença do corpo que corresponde ao ato de fala no cinema. Dessa forma, a palavra e o corpo serão os novos objetos, que é necessário descobrir sob um aspecto desconhecido, inorgânico, disjuntivo.

7 Ibidem, p. 123.8 Ibidem, p. 345.9 S. Daney, “L’écran du fantasme (Bazin et les bêtes)”, La rampe, Cahier critique 1970-1982, Petite bibliothèque des Cahiers du cinéma, Paris, Gallimard, 1983, p. 40. 10 Ibidem, p. 79.

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

livro_KUNIICHI.indd 131 19/07/12 16:44

132 133

Com uma série de criações cinematográficas, o cinema faz aparecer toda a disjunção que atravessa as imagens sonoras, visuais e a montagem. Algo sai dos enquadramentos, para fora do gonzo. Esta saída é a descoberta de um certo tipo de tempo, uma inversão fundamental das relações entre o tempo e o movimento, o tempo e o espaço. O tempo é, então, a figura dessa saída, dessa parte de fora.

O tempo é, antes de tudo, uma figura da repetição, do retorno à mesma coisa, mas que produz, a cada vez e infinitamente, aquilo que é diferente, que se diferencia, que se disjunta. O tempo é uma forma de repetição, mas o tempo vivido é uma realidade de diferenças infinitas. Diante desse tempo que se diferencia indefinidamente, o eu idêntico, o sujeito e os objetos são absolutamente indeterminados, o tempo está fora de tudo isso. O tempo, ele mesmo, é o fora, “o pensamento do fora”.

O corpo, no cinema, adquire um novo status, que corresponde à imagem-tempo. “Se o cinema não nos dá a presença do corpo e não nos pode dar, talvez seja porque também se propõe outro objetivo: estende sobre nós uma ‘noite experimental’ ou um espaço em branco, opera com ‘grãos dançantes’ e ‘poeira luminosa’, afeta o visível com uma perturbação fundamental, e o mundo com um suspense que contradizem toda percepção natural. Produz assim a gênese de um ‘corpo desconhecido’, que temos atrás da cabeça, como o impensado no pensamento, nascimento do visível que ainda se esconde à vista.”11

O cinema, em seus primórdios, era certamente uma máquina extraordinária, que fazia descobrir o rosto e o gesto, notadamente, através de grandes planos. O corpo foi uma das primeiras matérias do cinema. Depois, progressivamente, e rapidamente, a presença do corpo é absorvida e integrada em todas as funções elaboradas da ação, da narração, da psicologia. O corpo e o rosto são decifrados com antecedência, não fornecem mais sua própria presença em sua singularidade. Eram necessárias sempre as operações disjuntivas, como aquelas de Bresson, para redescobrir o corpo e o rosto na arte cinematográfica.

11 G. Deleuze, Cinéma 2: L’Image-temps, Paris, Minuit, 1985, p. 262 [Cinema 2: A imagem-tempo, tradução de Heloísa de Araújo Ribeiro, São Paulo, Brasiliense, 2005, p. 241].

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

livro_KUNIICHI.indd 132 19/07/12 16:44

132 133

E, acima de tudo, é a câmera, a máquina cinematográfica inteira, que constitui um corpo que vê e escuta, que compõe imagem e som, que opera a síntese e a disjunção, e constitui o corpo do espectador, que recebe tudo isso que foi visto e escutado, recomposto e montado. É toda uma operação dessa máquina e do espectador maquinado que trabalha o corpo filmado, formado e transformado, conhecido e desconhecido que está presente para a percepção, que se oculta para a visão.

Aquilo que é definido como tempo, descoberto através da imagem-tempo, é inseparável desse “corpo desconhecido”. Esse tempo vivido no corpo se repete, mas fora da repetição. Esse tempo aparece no interstício: “pois, primeiro, a questão não é mais aquela da associação ou da atração das imagens. O que conta é, ao contrário, o interstício entre as imagens, entre duas imagens: um espaçamento que faz com que cada imagem se arranque ao vazio e nele recaia”12. O campo-contracampo excepcional de Ozu, dois personagens frente a frente, numa posição imperceptivelmente ou visivelmente decalée13, fornecem, com sua estranheza, esse interstício sensível. Cada plano do rosto que sorri, entre esses interstícios, cria uma imagem da eternidade, e assim a eternidade é encontrada.

É impressionante ver até que ponto a imagem-tempo está sempre ligada a todas as figuras da divergência, da discordância. O tempo transborda o espaço, o movimento, a identidade e a repetição. O tempo é o fora que diverge sem cessar, é este fora que cria um dentro ao se diferenciar. O cinema da imagem-tempo é revelador desse fora dobrado nos componentes do cinema, em seus interstícios.

12 Ibidem, p. 234 [p. 216].13 Decaler: deslocar um pouco da posição normal (no espaço; no tempo). [N. do T.]

TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM TEMPO: A PARTE DE FORA DA IMAGEM

livro_KUNIICHI.indd 133 19/07/12 16:44

135134

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 134 19/07/12 16:44

135134

11. A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

A questão da imagem é forçosamente complexa ainda mais porque o uso da palavra é, com frequência, ambíguo, flutuante e indeterminado: a imagem seria um objeto visual ou bem uma “representação”, ou seja, um objeto mental que se refere mais ou menos à impressão de um objeto visto. Mesmo que ela seja apenas um objeto simplesmente visto, ainda assim pode-se colocar a seguinte questão: aquilo que é visto é a luz, a coisa mesma, ou, em vez disso, apenas uma percepção sobre a visão? E poderíamos nos perguntar ainda, como James Jerome Gibson, em Ecological approach to visual perception, qual é a “invariante” na percepção que pode constituir uma imagem, como esta invariante aparece naquilo que é visto e percebido através de todos os dados do ambiente que influenciam no corpo e em seus órgãos, suas percepções?

Na série Cinema, de Gilles Deleuze, constituída por dois volumes, A imagem-movimento e A imagem-tempo, o que é um tanto surpreendente é que Deleuze dá a definição de imagem bastante tardiamente, isto é, no quarto capítulo do primeiro volume: “a imagem-movimento e suas três variedades”. Logo no começo do primeiro capítulo, citando Bergson, e se perguntando se o cinema pode ou não exprimir um movimento verdadeiro, Deleuze diz “imagem” simplesmente para significar o corte instantâneo, ou imóvel, já que as 24 (ou 18) imagens por segundo constituem o cinematógrafo. E contrariamente à tese anticinematográfica de Bergson, para quem o cinema fornece apenas uma ilusão do movimento por cortes instantâneos e imóveis, Deleuze observa que esses cortes não equivalem necessariamente a uma sucessão de posições ou de poses (fotogramas), que esses cortes são móveis e capazes de fornecer “a imagem média como dado imediato” do movimento. Mas a proposta de Deleuze, aqui, não consiste em criticar a tese anticinematográfica de Bergson. Pelo contrário, seu projeto é o de encontrar plenamente a filosofia de Bergson, sua tese do movimento, da duração, do tempo, no cerne do cinematógrafo.

E é nesse quarto capítulo que Deleuze retoma o conceito surpreendente de “imagem”, que Bergson propôs principalmente em Matéria e memória. Na ideia de Bergson, esse conceito, um pouco estranho, foi necessário para

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 135 19/07/12 16:44

136 137

resolver o afrontamento clássico entre materialismo e idealismo, “um querendo reconstituir a ordem da consciência com puros movimentos materiais, o outro, a ordem do universo com imagens puras na consciência”1. Se um movimento equivale a uma imagem e uma imagem a um movimento, o afrontamento está resolvido. Aí está o salto mágico de Bergson, que descobre exatamente aquilo que pode ser uma “imagem-movimento”. “Como, então, não levar em conta o cinema, que nesse momento também se preparava, e que iria fornecer sua própria evidência de uma imagem-movimento”2, diz Deleuze.

É então o cinema que nos permite remontar de uma percepção centralizada, através da “ancoragem” do sujeito no universo segundo a fenomenologia, em direção a um estado de coisas sem centro em que uma imagem iguala-se absolutamente a um movimento ou a uma matéria. “Chamemos Imagem o conjunto daquilo que aparece.”3 Mas não para dizer que a imagem aparece diante do sujeito como um objeto móvel. Neste universo, onde tudo existe apenas no estado gasoso, sem serem percebidas as imagens se confundem com suas ações e reações. “Como falar de um aparecer se nem mesmo há um olho?”4 Neste universo, que Deleuze chama “o plano de imanência”, não há nem sistema fechado, nem corte imóvel. Há apenas uma série infinita de blocos de espaço-tempo ou de cortes móveis, que constituirão uma espécie de meta-cinema no qual existem apenas figuras luminosas em vez de figuras sólidas ou geométricas, na medida em que a identidade da matéria e do movimento é também aquela da matéria e da luz, de acordo com as fórmulas que Bergson fornece em Duração e simultaneidade, ao interpretar Einstein. O mundo é pleno de imagens luminosas, ele é constituído por elas. É por isto que “a fotografia, se fotografia existe, já foi obtida, já foi tirada, no próprio interior das coisas e de todos os pontos do espaço...”5. Bergson fala, então, de um tipo de metafotografia. Mas se esta metafotografia é a mesma da imagem-movimento, não seria antes um metacinema?

1 G. Deleuze, Cinema 1: L’Image-Mouvement, Paris, Minuit, 1983, p. 94 [Cinema 1: A imagem-movimento, tradução de Stella Senra, São Paulo, Brasiliense, p. 76].2 Ibidem.3 Ibidem, p. 86 [p. 78]4 Ibidem.5 H. Bergson, Matière et mémoire, in Oeuvres, Paris, PUF, 1959, p. 188. [Matéria e memória, São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 36].

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 136 19/07/12 16:44

136 137

Ao invés de dizer que toda consciência é consciência de alguma coisa, como Husserl, Bergson quer dizer que toda consciência é alguma coisa, e qualquer coisa será imagem translúcida – se nada para, nem reflete a luz, ou a imagem da luz – como se toda luz fosse negra e imperceptível, parecida com os raios cósmicos. Nossa consciência seria apenas como uma tela preta que interrompe a translucidez de toda a luz, que se torna visível como imagem apenas com esta tela preta. Uma imagem é uma opacidade no cerne da translucidez da luz.

O que Deleuze revela, ao retraçar a proposição bergsoniana deste Universo sem centro, nem sujeito, nem consciência, nem percepção, constituirá assim a base de seu conceito de cinema. Houve, certamente, uma razão profunda para situar a arte cinematográfica como este metacinema equivalente à imagem-movimento sem sujeito e, principalmente, para descobrir a imagem que se encontra fora de qualquer referência visível ou psicológica. Mas é necessário acrescentar que, apesar de tudo, Deleuze pensa o cinema e analisa, concretamente, as imagens de cada filme. Então por que essa desconfiança insólita frente à imagem, a isso que o olho vê, visto que em sua semiótica do cinema ele não podia dar um passo adiante sem se apoiar em todas as formas de visibilidade criadas e descobertas pelo e no cinema? Podemos supor por enquanto que, em sua filosofia do cinema, havia de alguma maneira a questão de descobrir aquilo que pode existir fora do cinema, uma parte de fora dentro do cinema. É por isso que, cada vez mais, ele coloca seu interesse nos interstícios das imagens, nos problemas de continuidade, no que está fora-do-plano, a voz em off, todas as formas de corte irracional..., quaisquer anomalias que possam animar o filme, apesar da arte cinematográfica.

Devemos lembrar que o autor de Proust e os signos já havia expressado o mesmo tipo de desconfiança ao falar do “corpo sem órgãos” à maneira proustiana. “Mas o que é um corpo sem órgãos? Também a aranha nada vê, nada percebe, de nada se lembra. Acontece que em uma das extremidades de sua teia, ela registra a mais leve vibração que se propaga até seu corpo em ondas de grande intensidade, e que a faz de um salto atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, ela responde unicamente aos signos...”6

6 G. Deleuze, Proust et les signes, Paris, PUF, 1964, p. 218 [Proust e os signos, tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, p. 172-3].

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 137 19/07/12 16:44

138 139

Mesmo quando está em questão a pintura, seu principal propósito não é de maneira alguma a imagem ou o visível, mas o de tonar visível algo, e esse algo é a força que se traduz em “figura” diretamente captada pela sensação, antes da imagem. Francis Bacon representava essa pintura antes da imagem, para Deleuze.

Mas antes que nossa problemática se embaralhe muito entre as diferentes dimensões ou os diferentes domínios da imagem, revejamos, atentamente, como Deleuze encaminhou-se, junto com Bergson, em direção a três categorias de imagens, colocando, primeiro, a primazia da identidade absoluta entre o movimento e a imagem, entre a coisa e a luz.

Tudo muda a partir do momento em que surge uma matéria viva, que Bergson chama de “centro de indeterminação”, que reflete a imagem-luz, uma tela preta que recebe apenas certas imagens, e não reage a outras imagens. É lá que aparece uma “sopa pré-biótica”, uma matéria senão viva ao menos pronta para a vida, e que emergem, em todo caso, espécies de microintervalos: os “primeiros esboços de corpos sólidos”. Esses são certos desvios ou intervalos que definem a primeira aparição de um centro de indeterminação, que não é outra coisa que a matéria viva. Assim se constituem aquilo que percebe e a própria percepção que reflete a luz ou a imagem, é exatamente isso “meu corpo”. “Tudo se passa como se, neste conjunto de imagens que eu chamo de universo, nada se produzisse de realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido pelo meu corpo.”7 Este centro é, antes de tudo, acêntrico, este sujeito da percepção é, desde o começo, dessubjetivado, pois é apenas um puro ponto de indeterminação, de refração. Este clique, esta gênese da percepção e do centro de indeterminação, é concebido para dessubjetivar a filosofia e desorganizar a relação sujeito-objeto ao retomar tudo a partir de uma série infinita de imagens-movimento, ou seja, de atores e de cenários no cerne de um metacinema.

Todos os bergsonianos sabem quais definições da ação e do afeto decorrem dessa emergência da percepção. Para Deleuze, o modelo do cinema nunca é a percepção natural subjetiva descrita pela fenomenologia, mas “a mobilidade de

7 H. Bergson, Matière et mémoire, in Oeuvres, op. cit., p. 170 [Matéria e memória, op. cit., p. 12].

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 138 19/07/12 16:44

138 139

seus centros, a variabilidade de seus enquadramentos, [que] o levam sempre a restaurar vastas zonas acentradas e desenquadradas”8 e, apesar de tudo, apesar desse modelo absoluto acêntrico, o cinema, em sua realidade histórica, progride de maneira cada vez mais sofisticada, ao reproduzir todas as imagens da Humanidade em suas ações e afecções, e nesta progressão, está implicada a Humanidade, mesmo se for o caso de, como diz Deleuze ao analisar o “Film” de Beckett, “ir ao encontro do mundo antes do homem”. É como se, no seu pensamento sobre cinema, houvesse sempre uma imagem de antes da Humanidade como fundo escancarado do cinema, como se todos os filmes realizados girassem em torno dessas “vastas zonas acentradas” e se duplicassem da imagem imperceptível de um antes, sem Humanidade.

Mas para Deleuze, não menos que para Bergson, o que está verdadeiramente em jogo neste pensamento da imagem sem sujeito, sem vida, sem órgãos, não é o mundo de imagens incolores e indiferenciadas da matéria. Para demonstrá-lo, Bergson prefere, na verdade, referir-se aos pintores (Turner, Corot e Da Vinci) mais do que ao cinema ou à fotografia. Nós “descobriremos que, se os aceitamos e os admiramos, é porque já havíamos percebido algo daquilo que [os pintores] nos mostram. Mas havíamos percebido sem perceber. Era, para nós, uma visão brilhante e evanescente, perdida nessa multidão de visões igualmente brilhantes, igualmente evanescentes, que se recobrem em nossa experiência usual como ‘dissolving views’ e que constituem, por sua interferência recíproca, a visão pálida e descolorida que temos habitualmente das coisas. O pintor isolou-a”9. É por acaso que Bergson sempre utiliza negativamente um termo que será adotado em favor da técnica do cinema: “dissolving views”? Os pintores fazem descobrir as “visões brilhantes, evanescentes”, as cores do mundo. É esse o mundo de antes da percepção, antes do homem, onde a imagem se iguala à matéria e ao movimento? Mas esse mundo não está simplesmente entregue à luz negra invisível, se nenhum centro reflete luz alguma?

Ao se referir a um Ravaisson inspirado em Leonardo da Vinci, Bergson fala da pintura de uma maneira um pouco diferente. Eis a frase de Da Vinci que

8 G. Deleuze, Cinema 1: L’Image-Mouvement, op. cit., p. 94 [Cinema 1: A imagem-movimento, op. cit., p. 76].9 H. Bergson, La pensée et le mouvant, in Oeuvres, op. cit., 1371 [O pensamento e o movente: ensaios e conferências, tradução de Bento Prado Neto, São Paulo, Martins Fontes, p. 156].

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 139 19/07/12 16:44

140 141

Ravaisson adora citar: “O segredo da arte de desenhar está em descobrir em cada objeto a maneira particular pela qual se transmite através de toda sua extensão, como uma vaga central que se desdobra em vagas superficiais, uma certa linha flexuosa que é como seu eixo gerador.”10 Bergson diz o seguinte ao comentá-la: “Essa linha, aliás, pode não ser nenhuma das linhas visíveis da figura. Não está mais aqui do que ali, mas dá a chave de tudo. É menos percebida pelo olho do que pensada pelo espírito.”11

Observemos “essa linha flexuosa” não visível como eixo “gerador” ao invés da palavra “espírito”, que parece um tanto desgastada. Não se trata mais da equivalência absoluta imagem-movimento-matéria, trata-se mais da vida em sua gênese, que os artistas procuram tornar visível em plenas cores brilhantes. Essa é uma realidade apenas do espírito ou do universo de vastas zonas da imagem acêntrica? Sabemos que a filosofia de Bergson partiu da pura dimensão da matéria ou do movimento, mas que, em seguida, ele se apega, cada vez mais, à dimensão da vida e do espírito, situando-os em perfeita continuidade com a matéria e o movimento, embora haja um salto considerável entre a matéria e a memória. E desde o começo, na verdade, a questão do movimento se relacionava ao espírito, à vida do espírito que pode captar o movimento e a vida de uma maneira adequada. Sua filosofia da vida duplica a da matéria, sua filosofia da matéria duplica a da vida. Não é sem razão que alguns criticam essa filosofia que lhes parece girar sempre em torno da matéria inerte, da história sem conflito, demasiadamente determinada pela lógica da matéria e da vida fora do humano.

E é nesta problemática que poderemos, sem dúvida, recapitular o bergsonismo de Gilles Deleuze em seu Cinema. A imagem-ação no cinema implica na elaboração do esquema sensório-motor sob formas muito variadas, mas que, finalmente, conduzem a uma imagem-ação puramente física ou relacional, principalmente no caso de Hitchcock. E depois, como se os fios estivessem frouxos, nesse tipo de imagem-ação, extremamente sofisticada, as imagens (a imagem ótica, a imagem sonora) se desprenderão de todas as lógicas orgânicas: não há mais vínculo para uni-las nem apertá-las. O entreimagens ou

10 Ibidem, p. 1459-1460 [p. 271].11 Ibidem, p. 1460 [p. 271].

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 140 19/07/12 16:44

140 141

o interimagens se torna cada vez mais sensível. Todos os signos da imagem-tempo estão emergindo nos interstícios das imagens sonoras e óticas. Esse tempo da imagem-tempo não se submete mais, não se mede mais pela dimensão do movimento. É como se a imagem-movimento que se encontrava de início, no cosmos, em pura dimensão material anterior à humanidade, fosse monopolizada, em seguida, pelo esquema sensório-motor do cinema, mas que, ao mesmo tempo, uma série de mutações imperceptíveis invadisse esse esquema e se infiltrassem no cerne da organização sensório-motora cada vez mais sofisticada das imagens cinematográficas.

O cinema começa a revelar todas as figuras do tempo que não pertencem mais ao movimento sensório-motor e ao corpo organizado segundo a medida desse movimento. Esse tempo é vivido e experimentado por diferentes tipos de corpos sem órgãos.

Curiosamente, todos os centros da percepção, da ação, do afeto, são, então, novamente acêntricos, pois os centros eram desvios, intervalos desde a origem da percepção, da ação, do afeto, e uma vez mais, por toda a parte, no cinema, aprofundam-se os desvios, os intervalos, os cortes, as disjunções, que criam, no lugar de um centro de percepção, de ação, de afeto, uma nova consistência cristalina que não passa da abertura de uma nova esfera de signos de som-imagem. As imagens se articulam cada vez mais com seus interstícios, suas margens, numa síntese disjuntiva, principalmente no cinema que pertence à imagem-tempo.

É preciso notar até que ponto todas as figuras da imagem-tempo funcionam com uma variação de interstícios entre as imagens e entre as percepções. Deleuze ressalta mais e mais a importância da disjunção entre o som (imagem sonora) e a imagem (imagem ótica). O grande projeto de Deleuze de retraçar e de reinterpretar a história do cinema consiste, assim, em reconstruir, de alguma maneira, a história a partir de uma pré-história que remonta ao tempo da matéria antes do homem. Para Bergson e Deleuze, a identidade da matéria-imagem-movimento é o fundo de toda a história. Não se trata, no entanto, de fazer remontar todas as imagens à cena original da matéria.

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 141 19/07/12 16:44

142 143

A imagem-movimento diverge em imagem-percepção, imagem-afeto, imagem-ação ao se humanizar, ao se organizar cada vez mais na direção sensório-motora, e, a cada momento de divergência, são articuladas de modos diferentes a linhagem de vida orgânica e a outra linhagem de vida não-orgânica. Em diferentes momentos da imagem-movimento, Deleuze reintroduz na imagem elaborada em direção ao orgânico e ao humano, uma pura percepção e presença da matéria. A divergência em diferentes tipos de imagem que segue o humano é sem dúvida criadora, se realiza com todas as “linhas de fuga” que se traçam entre o homem e a matéria, o homem e a vida, ainda mais porque o homem é, às vezes, a antivida.

Através de todas essas divergências é que a imagem-movimento revela a imagem-tempo e conduz a uma nova dimensão da vida e da vitalidade que revestem o orgânico. No fundo, todas essas reflexões sinuosas, cheias de dobras, de camadas, servem para redescobrir, no Cinema de Deleuze, uma dupla dimensão na qual a imagem se iguala à vida; a imagem não passa de imagem da vida, mas esta vida pode reencontrar um cosmos inorgânico que aparece nos interstícios das imagens. Esses pensamentos estão sempre em busca da imagem exata e precisa da vida, que abrange até uma vida inorgânica, o corpo sem órgãos.

“Criar uma imagem, de tempos em tempos.”12 É uma fórmula bem modesta e sóbria de Deleuze, uma homenagem às peças para televisão de Beckett. “É que a imagem não se define pelo sublime do seu conteúdo, mas por sua forma, isto é, por sua ‘tensão interna’, ou pela força que mobiliza para esvaziar ou esburacar, aliviar a opressão das palavras, interromper a manifestação das vozes, para se desprender da memória e da razão, pequena imagem alógica, amnésica, quase afásica, ora se sustentando no vazio, ora estremecendo no aberto. A imagem não é um objeto, mas ‘um processo’.”13

É uma estranha definição da imagem, imagem que se dissipa, na qual a imagem não é mais a imagem de alguma coisa, imagem que é, ela mesma, uma

12 G. Deleuze, “L’Epuisé”, in Samuel Beckett, Quad et autres pièces pour la télévision, Paris, Minuit, 1992, p. 71 [Sobre o teatro: Um manifesto de menos/ O esgotado, tradução de Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010, p. 80].13 Ibidem, p. 72 [p. 81].

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 142 19/07/12 16:44

142 143

vida indefinida, indeterminada. A fissura se abre ao fundo de cada imagem, entre todas as imagens que estão esgotadas, e é esgotando-se que a imagem revela sua essência.

As frases, os gestos, os refrãos ínfimos, muito sóbrios, um ritornelo, ou uma imagem pouco antes de desvanecer, produzem uma imagem verdadeira. Essa imagem é desaparecimento, mas também aparecimento de uma vida fora da vida. A última ou penúltima imagem, imagem daquilo que será perdido, do que não está mais presente, não está mais visível, essa imagem é, sem dúvida, a identidade da vida e da morte.

É apenas quando entramos nessa penumbra que uma imagem é verdadeiramente uma imagem. Se a imagem-movimento é todo um processo criativo que reativa essa dupla passagem da matéria ao homem e do homem à matéria, na extensão acêntrica sem fim, a imagem-tempo é uma coexistência da dobra interior finita e da dobra exterior infinita, do humano e do inumano. Então, a disjunção do dentro e do fora se torna inclusiva, proliferante, através dos interstícios, ao passo que a imagem-movimento se introduz, com toda sua divergência, numa relação disjuntiva exclusiva, principalmente quando realiza toda a articulação da imagem-ação.

A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA A IMAGEM OU A MATÉRIA VIVA

livro_KUNIICHI.indd 143 19/07/12 16:44

144 145

Os ensaios já publicados:

“As palavras e Nijinsky” [“Les mots et Nijinski”], Chimères, n. 1, Printemps, 1987.

“Variações sobre a Crueldade” [“Variations sur la cruauté”], em Les théâtres de la cruauté: hommage à Antonin Artaud, sob a direção de Camille Dumoulié, Paris, Éditions Desjonquères, 2000.

“Hijikata e o devir na dança” [sob o título “Hijikata et un devenir”], Liberté, v. 43, n. 4 (254), Novembre 2001.

“Vitalismo e Biopolítica” [“Vitalisme et Bio-politique”], em Biopolitics, ethics and subjectivation, Paris, Éditions l’Harmattan, coll. Esthétiques, 2011.

“O tempo: o fora da imagem” [“Le temps: l’en-dehors de l’image”], em L’en-dehors: éloge et variations: consistances de la littérature, des arts, de la philosophie, sob a direção de Carlo U. Arcuri e Giorgio Passerone, Paris, Éditions Kimé, 2009.

livro_KUNIICHI.indd 144 19/07/12 16:44

144 145

livro_KUNIICHI.indd 145 19/07/12 16:44

série de livros:

livro_KUNIICHI.indd 146 19/07/12 16:44

livro_KUNIICHI.indd 147 19/07/12 16:44