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Afro-Ásia ISSN: 0002-0591 [email protected] Universidade Federal da Bahia Brasil Dias do Nascimento, Luiz Cláudio Resenha de: "A formação do Candomblé e a nação jeje" de Luis Nicolau Parés Afro-Ásia, núm. 35, 2007, pp. 327-331 Universidade Federal da Bahia Bahía, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003511 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Afro-Ásia

ISSN: 0002-0591

[email protected]

Universidade Federal da Bahia

Brasil

Dias do Nascimento, Luiz Cláudio

Resenha de: "A formação do Candomblé e a nação jeje" de Luis Nicolau Parés

Afro-Ásia, núm. 35, 2007, pp. 327-331

Universidade Federal da Bahia

Bahía, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=77003511

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Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal

Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

Afro-Ásia, 35 (2007), 327-331 327

A FORMAÇÃO DO CANDOMBLÉ E A NAÇÃO JEJE

Luis Nicolau Parés, A formação do Candomblé – história e ritual danação jeje na Bahia, Campinas, Editora da UNICAMP, 2006, 390 pp.

No início da década de 1990, o en-tão jovem estudante catalão LuisNicolau Parés fazia suas primeiras in-cursões ao Recôncavo baiano, querodizer, à cidade de Cachoeira. Na épo-ca, era doutorando da School of Ori-ental and African Studies (SOAS), daUniversidade de Londres, e fazia suasprimeiras sondagens de campo noZôogodô Bogum Malê Seja Hundê,para compor sua tese de doutorado emAntropologia da Religião sobre oTambor de Mina do Maranhão. Tive asatisfação de conhecê-lo, então, e, apartir daí, mantivemos alguns conta-tos através de correspondências. Anosdepois, em 1998, ele retornou ao Bra-sil, fixando-se definitivamente em Sal-vador. Por quase uma década, teste-munhei Parés em constante contatocom o povo-de-santo, presenciandocerimônias privativas em terreiros deCandomblé e debruçado em empoei-rados documentos históricos em Ca-choeira. Compartilhando de sua ami-zade, trocamos importantes informa-ções, assim como documentos que nos

interessavam mutuamente e caminha-mos pelas zonas rurais de Cachoeira,reconhecendo espaços sagrados “plan-tados” por africanos.Resultado deste esforço foi a publi-cação do livro A formação do Can-domblé – história e ritual da naçãojeje na Bahia, que nos chega com umsubstancial atraso, visto que, pelomenos há uns três anos, se encontra-va concluído. Todavia, neste interreg-no, alguns capítulos foram revisadose ampliados e outros, incluídos naversão original, que certamente ofe-receram mais densidade à obra.O mencionado livro, como o autorenfatiza, dedica-se ao estudo aprofun-dado e pormenorizado de uma das“raízes” da cultura afro-brasileira apartir da história e da antropologia dareligião. Nela, o leitor deparar-se-ácom a construção étnica da “naçãojeje” no Brasil Colônia (nomeada-mente a partir do Setecentos, quandoestes povos chegaram à Bahia commaior intensidade); com a contribui-ção dos cultos de voduns no proces-

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so formativo e organizacional doCandomblé e, finalmente, com amicro-história de dois terreiros denação jeje (mahi) e uma etnografiaseletiva do panteão e do ritual vodumcontemporâneo na Bahia. A relevân-cia da obra reside exatamente nestesaspectos perseguidos pelo autor, vis-to que, salvo engano, até então ne-nhum estudo neste sentido foi reali-zado. Além disto, e este é outro as-pecto importante, o escopo da obrase desdobra a partir da busca do sen-tido lingüístico de dois termos:“vodum” e “jeje”.No capítulo introdutório, Nicolau dizque um dos problemas do seu traba-lho é compreender “a gênese e a ma-nutenção das identidades étnicas dosafricanos no Brasil” (p. 15). Entre ou-tras teorias que dão suporte à obra, asda etnicidade têm maior acento. Opon-do-se às de caráter primordial, preco-nizadas por Max Weber e CliffordGeertz, o autor privilegia a de caráterrelacional (situacional), proposta porFredrik Barth, segundo a qual “o nósse constrói em relação a eles”. O au-tor pensa em termos de que “a identi-dade étnica não seria, portanto, sim-plesmente um conglomerado de sinaisdiacríticos fixos (de origem, parentes-co biológico, língua, religião, etc.),mas um processo histórico, dinâmico,em que estes sinais seriam seleciona-dos e (re)elaborados em relação decontraste com o ‘outro’” (p. 15). Atre-lando a teoria relacional ao seu argu-

mento, refere-se a Manuela Carneiroda Cunha, que afirma que “a culturaoriginal de um grupo étnico, nadiáspora ou em situações de intensocontato, não se perde ou se funde sim-plesmente, mas adquire uma nova fun-ção, essencial e que se acresce às ou-tras, enquanto se torna uma cultura decontraste” (p. 15).Os dois primeiros capítulos do traba-lho são dedicados ao estudo exausti-vo das nações ou etnias (etnias nãono sentido de “raça”, mas de povosou sociedades), dos portos e dos me-andros do tráfico escravo no contex-to da África ocidental e da contribui-ção jeje na formação das identidadesétnicas africanas na Bahia. O autorconsidera as identidades coletivas dassociedades da África ocidental comomultidimensionais, articuladas em di-versos níveis (religioso, territorial,lingüístico, político, etc.), porém sem-pre baseadas em vínculos de paren-tesco, que reconheciam um passadoancestral e mítico comum. No con-texto do tráfico, grupos africanos ini-cialmente diferenciados, com suas pe-culiaridades históricas, lingüísticas ede auto-adscrição, teriam sido con-venientemente classificados, por mis-sionários e administradores de feito-rias européias, sob denominações ge-néricas (originalmente estranhas a es-tes grupos), tais como “nação mina”,“nação nagô” ou “nação jeje”.Nicolau analisa este processo, distin-guindo entre denominações “internas”

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e “externas”. As primeiras seriam for-mas de auto-adscrição, enquanto assegundas seriam categorias impostas“de fora”, por membros alheios ao gru-po, sejam africanos ou escravocrataseuropeus, sendo que estas denomina-ções externas se prestariam para de-signar uma pluralidade de grupos ét-nicos heterogêneos. Apoiando-se nopesquisador cubano Jesús GuanchePérez, o autor chama “denominaçãometaétnica” a “denominação externautilizada para assinalar um conjuntode grupos étnicos relativamente vizi-nhos, com uma comunidade de traçoslingüísticos e culturais, com certa es-tabilidade territorial e, no contexto doescravismo, embarcados nos mesmosportos” (p. 26).A seguir, especifica os povos jejes apartir de critérios lingüísticos eterritoriais, apontando cerca de qua-torze grupos principais. Nicolau uti-liza a expressão “área vodum” paradefinir o espaço territorial jeje em ter-mos religiosos e acrescenta que o ter-ritório jeje abarcava um espaço mai-or que o do reino do Daomé (situadoao sul da atual República Popular doBenin), incluindo “povos que, embo-ra sujeitos às incursões dos daomea-nos na procura de escravos, não per-tenciam estritamente aos seus limi-tes políticos”, como os mahis esavalus (p. 38). Analisando o tráficoportuguês nesta área, aborda de for-ma exaustiva as constantes guerrasentre os reinos de Oyo e Daomé, em

torno do controle do infame comér-cio realizado no litoral que, desde oséculo XVI até aproximadamente1860, embarcou milhares de africa-nos prisioneiros de guerra para o tra-balho escravo no Brasil.No tocante à formação da identidadeétnica jeje na Bahia, Nicolau analisa apresença destes africanos a partir doSetecentos até o Oitocentos. O focode sua análise incide sobre as estima-tivas populacionais. Além de censoseclesiásticos, geralmente realizadospor párocos desinteressados, portantoinconfiáveis, o autor se debruçou nopaciente e estafante trabalho de análi-se de centenas de inventários, no Ar-quivo Regional de Cachoeira e no Ar-quivo Público do Estado da Bahia,documentos em que as denominaçõesétnicas eram mais freqüentes. O quese constata é que o grupo “metaétni-co”, proveniente da “área vodum”, seconcentrou significativamente no Re-côncavo baiano, constituindo o grupodemograficamente majoritário até oinício do século XIX, e que, em con-tato com outros grupos, principalmen-te os nagôs, seus vizinhos, instituíramo complexo sistema religioso jeje, naBahia, denominado Candomblé.O terceiro e o quarto capítulos dedi-cam-se à análise da institucionaliza-ção do Candomblé na Bahia. O ter-ceiro, especificamente, busca as“raízes” deste “processo formativo”nas práticas de cura e adivinhação,que, nos séculos XVII e XVIII, ti-

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nham a denominação de calundu.Nicolau se apropria do conceito “com-plexo fortuna-infortúnio” ou “ventu-ra-desventura”, proposto na década de1970 por pesquisadores da religião daÁfrica centro-ocidental, para pensar asreligiões afro-brasileiras. Nesta pers-pectiva, “a atividade religiosa tem porobjetivo não só a prevenção do infor-túnio, mas também a maximização daboa sorte” (grifo nosso).O autor considera que os calundus co-loniais, com suas práticas de cura e adi-vinhação, geralmente de caráter indi-vidualizado, deram, aos poucos, lugara formas de organização religiosa cadavez mais complexas e coletivas, en-volvendo, entre outros aspectos,intrincados processos de iniciação, hi-erarquia sacerdotal, calendários de ri-tuais, espaços sagrados estáveis e oculto de múltiplas divindades nummesmo templo. O argumento centralde Nicolau, sustentado por variada do-cumentação histórica e etnográfica, éo de que este “modelo organizacional”,de caráter eclesial ou conventual, queestá na base do Candomblé contem-porâneo, foi providenciado, no fim doséculo XVIII e início do XIX, pelosespecialistas religiosos jejes que, nes-ta área de conhecimento, tinham com-provada tradição.Todavia, o autor sugere que o ritual,seja nas reuniões festivas, realizadasno contexto das irmandades negras,seja no contexto das celebrações reli-giosas de matriz africana, era um dos

espaços privilegiados para expressare manter a dinâmica de contraste quesustenta as fronteiras étnicas. Destemodo, a diferenciação entre naçõesétnicas foi reforçada e perpetuou-se noâmbito do Candomblé, definindo, pos-teriormente, as “nações de candom-blé” enquanto “modalidades de rito”.Tendo localizado e definido os povosda África ocidental responsáveis pelainstitucionalização do Candomblébaiano, os capítulos seguintes se de-dicam à análise etno-histórica de doisterreiros ou comunidades de candom-blé de nação jeje mahi – o ZôogodôBogum Malê Hundô, de Salvador, eo Zôogodô Bogum Malê Seja Hundê,de Cachoeira – que ainda se encon-tram em funcionamento. Apesar dasdificuldades enfrentadas para definiros meandros da formação destes doiscandomblés, principalmente no quediz respeito à história de vida de seusfundadores, o autor recupera os as-pectos mais importantes da sua fun-dação. Um dos problemas centrais dizrespeito à época de formação e con-solidação dos dois terreiros e a ante-rioridade de um em relação ao outro.Outro problema diz respeito à histó-ria de vida da figura central na fun-dação destes terreiros, que foi a afri-cana Ludovina Pessoa e, com relaçãoa Cachoeira, do seu colaborador, otambém africano Tixareme. No en-tanto, a história de vida do arquifono(usando um neologismo de oganBoboso, um dos seus importantes

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depoentes) José Maria de Belchior,conhecido como Zé de Brechó, umafigura-chave na formação do SejaHundê, é satisfatoriamente descritapelo autor.No capítulo dedicado à análise ritualdestes candomblés, Nicolau faz umabelíssima descrição etnográfica, algoraro, mas fruto de paciente trabalho deconquista de confiança e postura ética,porque, como se sabe, o “jeje é fecha-do”. O capítulo não se concentra uni-camente em descrever o andamento ri-

tual, mas inclui uma análise lingüísticados termos utilizados no idioma ritual.Enfim, podemos dizer, sem estar exa-gerando, que o livro A formação doCandomblé – história e ritual da na-ção jeje na Bahia é um estudo seminalde antropologia do Candomblé, ou seja,trata-se de um trabalho que, sem esgo-tar o assunto, abre perspectiva paramúltiplas outras pesquisas sobre aque-la que é uma região vigorosamenteimportante do ponto de vista afro-reli-gioso: o Recôncavo baiano.

Luiz Cláudio Dias do NascimentoMestrando do Programa de Pós-Graduação

Multidisciplinar em Estudos Étnicos e AfricanosUniversidade Federal da Bahia/CEAO

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