a formação das almas. o imaginário da república no brasil - carvalho, josé murilo de

11
qa-c -cnarCr JOSÉ MURILO DE CARVALHO A FORMAÇÃO DAS ALMAS O IMAGINÁRIO DA REPÚBLICA NO BRASIL 23. reimpressão 5cu-4 !A),A et o L o ttovi (frit-Arco Ç26• 0 ‘)Bej C44.2Õ XEROX VALON , PASTA ¡PROF.. ilviATÉROCTU7b!W ORIGINAL. doW COMPANHIA DAS LETRAS

Upload: ingridhy-toniolo

Post on 02-Oct-2015

54 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

A Formação Das Almas. O Imaginário Da República No Brasil - Carvalho, José Murilo de.

TRANSCRIPT

  • qa-c-cnarCr

    JOS MURILO DE CARVALHO

    A FORMAO DAS ALMAS O IMAGINRIO DA REPBLICA

    NO BRASIL

    23. reimpresso

    5cu-4 !A),A et o L

    o ttovi (frit-Arco 260)Bej C44.2

    XEROX VALON

    , PASTA

    PROF.. ilviATROCTU7b!W

    ORIGINAL.

    doW COMPANHIA DAS LETRAS

  • Copyright 1990 by Jos Murilo de Carvalho

    Capa: Moenza Cavalcanti

    sobre A Ptria, de Pedro Bruno (primeira capa) e A Repblica, de Dcio filares (quarta capa)

    Preparao: Mrio Vilela

    Reviso: Ana Maria de O. M. Barbosa

    Maria Eugnia Rgis

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (mv) (Cmara Brasileira do Livro, se, Brasil)

    Carvalho, Jos Murilo de, 1939- A formao das almas o imaginrio da Repblica no

    Brasil / Jos Murib de Carvalho So Paulo: Companhia das Latos, 1990.

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ S.A.

    Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 So Paulo SP

    Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501

    www.companhiadasletrascom.br www.blogdacompanhia.com.br

    ,(Et,.

    NDICE

    Agradecimentos 7 Introduo 9

    1. Utopias republicanas 17 2. As proclamaes da Repblica 35 3. Tiradentes: um heri para a Repblica 55 4. Repblica-mulher: entre Maria e Marianne 75 5. Bandeira e hino: o peso da tradio 109 6. Os positivistas e a manipulao do imaginrio 129

    Concluso 141 Notas 143 Fontes 155 indice das ilustraes 165

    Bibliografia. t5RN 978-85-1164-129-0

    1. Brasil 'Estrala Repblica, 1889 2. Brasil Politica e governo, 1889 a. lindo.

    coo-981.05 90-1387 -320.5098105

    ndices para catalogo sistemdco: 1. Repblica : Brasil : Histria 981.05 2. Repblica : Brasil : Idias polimican Clencia politica

    320.5098105

    2014

  • gisC" 1

    UTOPIAS REPUBLICANAS*

    A. conferncia pronunciada por Benjamin Constant em 1819, no Athne Royal de Paris, pode servir de ponto de partida para a discusso dos modelos de repblica existentes ao final do sculo XIX. Intitula-se "Da liberdade dos antigos comparada dos modernos". Nela o termido-riano Constant, inimigo dos jacobinos mas tambm de Napoleo, atribuia os males da Revoluo de 1789 influncia de filsofos como Mably e Rous-seau, defensores de um tipo de liberdade que no mais se adaptaria aos tempos modernos.' A liberdade por eles defendida, e adotada pelos jacobi-nos, era aquela que caracterizara as repblicas antigas de Atenas, Roma e, especialmente, Esparta. Era a liberdade de participar coletivamente do go-verno, da soberania, era a liberdade de decidir na praa pblica os negcios da repblica: era a liberdade do homem pblico. Em contraste, a liberdade dos modernos, a que convinha aos novos tempos, era a liberdade do homem privado, a liberdade dos direitos de ir e vir, de propriedade, de opinio, de religio. A liberdade moderna no exclui o direito de participao pol-tica, mas esta se faz agora pela representao e no pelo envolvimento di-

    (*) Verso modificada deste capitulo foi publicada sob o titulo "Entre a liberdade dos antigos e a dos modernos: a Repblica no Brasil", em Dados. Reviria de Cincias Sociais, vol. 32, n9 3(1989), pp. 265-80.

    17

  • reto. O desenvolvimento do comrcio e da indstria no permitia mais, argumenta Constant, que as pessoas dispusessem de tempo para se dedicar a deliberar em praa pblica, nem elas estavam nisso interessadas. Hoje, o que se busca a felicidade pessoal, o interesse individual; a liberdade pol-tica tem por funo garantir a liberdade civil.

    A oposio entre os dois tipos de liberdade, que tambm a oposio entre duas maneiras de conceber a organizao poltica da sociedade, esteve presente tambm na Revoluo Americana de 1776, que optou claramente pela liberdade dos modernos. Os republicanos brasileiros que no final do sculo passado se viam s voltas com o problema de justificar o novo regime no podiam escapar de tal debate. Os temas do interesse do indivduo e de grupos, da nao, da cidadania, encarnados na idia de repblica, estavam no centro das preocupaes dos construtores da Repblica brasileira. Como pais exportador de matrias-primas e importador de idias e instituies, os modelos de repblica existentes na Europa e na Amrica, especialmente nos Estados Unidos e na Frana, serviriam de referncia constante aos bra-sileiros. Esse capitulo discutir como esses modelos foram interpretados e adaptados s circunstncias locais pela elite poltica republicana.

    AS DUAS LIBERDADES

    O conceito de repblica era ambguo para os founding fathers da pri-meira grande repblica moderna, a dos Estados Unidos da Amrica. Como Hamilton observou, at ento o conceito se aplicara a formas de governo muito distintas. Aplicara-se a Esparta, que tinha senado vitalcio; a Roma, mesmo sob os reis; aos Pases Baixos, que tinham nobreza hereditria; Polnia, que tinha aristocracia e monarquia.2 Repblica podia significar tanto governo livre como governo da lei e governo popular. De uma coisa, porm, estavam certos os fundadores, ou a grande maioria deles: a base filo-sfica da construo que deveriam empreender, a base do novo pacto poli-tico, tinha de ser a predominncia do interesse individual, da busca da feli-cidade pessoal. O utilitarismo de Hume era a fonte de inspirao comum de todos. Como se sabe, para Hume todos os homens eram velhacos (knaves) e s poderiam ser motivados por meio do apelo a seus interesses pessoais. Tratava-se, portanto, de uma concepo de liberdade que se adaptava per-feitamente noo de liberdade dos modernos como descrita por Benjamin Constant. O mundo utilitrio e o mundo das paixes, ou no mximo o mundo da razo a servio das paixes, e no o mundo da virtude no sentido antigo da palavra.

    O utilitarismo, a nfase no interesse individual, colocava dificuldades para a concepo do coletivo, do pblico. A soluo mais comum foi a de simplesmente definir o pblico como a soma dos interesses individuais,

    como na famosa frmula de Mandeville: vcios privados, virtude pblica. Para explicar o fato inegvel de que algumas pessoas em certas circunstn-cias eram movidas por razes outras que o simples interesse material, Ha-milton recorreu ainda a outra paixo: o amor da glria e da fama Esse amor poderia combinar a promoo do interesse privado com o interesse pblico. De qualquer modo, o que aparece em O federalista, como observou Stourzh, a viso de uma nao sem patriotas, a viso de uma coleo de indivduos em busca de uma organizao poltica que garantisse seus interesses. No h identidade coletiva, sentimento de comunidade ou de ptria.

    Sem se discutir se era correta a viso da ausncia de identidade coletiva entre os habitantes das Treze Colnias, a nfase no indivduo levou os fun-dadores a se preocupar particularmente com os aspectos organizativos da nova sociedade. Se no havia laos afetivos de solidariedade, tornava-se mais dificil, com base apenas no clculo do interesse, fundar a nova socie-dade poltica. Como observa Hannah Arendt em On revolution, no caso americano a verdadeira revoluo j estava feita antes da independncia. A revoluo era a nova sociedade que se implantara na Amrica. Coube aos fundadores promover a constitutio libertatis, a organizao da liberdade, mais do que fazer a declarao da liberdade. Talvez por isso, ainda segundo Hannah Arendt, a Revoluo Americana tenha sido a nica que no devo-rou seus filhos, tenha sido a de maior xito em se institucionalizar. O con-traste com a Revoluo Francesa ntido. Nesta, predominou a declarao da liberdade em prejuzo de sua ordenao. Nos Estados Unidos, Montes-quieu era o autor mais importante; na Frana, era Rousseau. A separao dos poderes como garantia de liberdade, a duplicao do Legislativo como instrumento de absoro das tendncias separatistas e a fora dada Su-prema Corte como elemento de equilbrio foram inovaes institucionais responsveis, em boa parte, pela durabilidade do sistema americano. Vere-mos adiante o apelo que tais inovaes na engenharia poltica teve para alguns republicanos brasileiros.

    Outro modelo bvio de repblica era o francs. As repblicas da Amrica Latina ou eram consideradas simplesmente derivaes do mo-delo americano, ou no se qualificavam como modelos devido turbu-lncia poltica que as caracterizava. Dizer modelo francs e incorreto: havia mais que um modelo francs, em decorrncia das vicissitudes por que pas-sara a repblica naquele pais. Pelo menos a Primeira e a Terceira Rep-blicas francesas constituam pontos de referncia, naturalmente para p-blicos distintos.

    A imagem da Primeira Repblica se confundia quase com a da Revo-luo de 1789, da qual se salientava principalmente a fase jacobina, os as-pectos de participao popular. Isto , a fase que mais se aproximava da concepo de liberdade ao estilo dos antigos, segundo Benjamin Constant. Era a repblica da interveno direta do povo no governo, a repblica dos

    18 19

  • clubes populares, das grandes manifestaes, do Comit de Salvao P-blica. Era a repblica das grandes ideias mobilizadoras do entusiasmo cole-tivo, da liberdade, da igualdade, dos direitos universais do cidado.

    Mas havia tambm a Terceira Repblica, que j demonstrava razo-vel capacidade de sobrevivncia. Certos traos da Terceira Repblica ti-nham a ver, naturalmente, com a influncia da tradio liberal de critica da Revoluo de 1789, inclusive a do prprio Benjamin Constant. Esse autor, alias, j influenciara abertamente a Constituio Imperial brasileira quando esta adotou o Poder Moderador, que ele chamava de pouvoir royal, owpouvoir neutre.3 Essa idia, a de um poder acima do Legislativo e do Executivo que pudesse servir de juiz, de ponto de equilbrio do sistema constitucional, poderia ser adaptada tanto a monarquias constitucionais como a repblicas. A preocupao de Benjamin Constant era com a gover-nabilidade, com a conciliao entre a liberdade e o exerccio do poder, pro-blema, segundo ele, no resolvido na Frana, nem pela Primeira Repblica, que tinha pouco governo, nem pelo Imprio, que tinha pouca liberdade. Tornar a Repblica governvel era uma das principais preocupaes dos ho-mens da Terceira Repblica. Mas, para os republicanos brasileiros, Cons-tant no poderia ser fonte de inspirao, pois estava por demais ligado tradio imperial.

    O modelo da Terceira Repblica, ou melhor, uma variante dele, che-gou ao Brasil por intermdio principalmente dessa curiosa raa de pensa-dores que foram os positivistas, de aqum e de alm-mar. A transmisso foi facilitada pela estreita ligao que tinham os positivistas franceses com os polticos da Terceira Repblica, alguns deles positivistas declarados, como Gambetta e Jules Ferry, do chamado grupo dos "oportunistas". A prpria expresso "oportunista" fora cunhada por Littr, o lder dos positivistas no-ortodoxos. Um dos pontos centrais do pensamento poltico dos positi-vistas, expresso na divisa "Ordem e Progresso" , era o mesmo de Benjamin Constant, isto , tornar a Repblica um sistema vivel de governo, ou, na frase de Jules Ferry: "La Republique doit etre un gouvernement"

    Havia divergncias quanto maneira de tornar a Repblica um go-verno. Dentro do prprio positivismo, havia os ortodoxos do grupo de Laf-fitte, que no aceitavam o parlamentarismo adotado pela Constituio Fran-cesa de 1875 e se impacientavam com a demora no rompimento das relaes entre a Igreja e o Estado e com a timidez das polticas educacionais. Os ortodoxos ainda adotavam a ideia de ditadura republicana desenvolvida por Comte. O grupo de Littr aceitava o parlamentarismo, tendo ele prprio sido eleito senador, e admitia compromissos em torno de questes impor-tantes, como a das relaes entre o Estado e a Igreja, em nome do oportu-nismo isto , em termos positivistas, em nome da necessidade de aguar-dar o momento sociolgico adequado para intervir. De qualquer modo, ortodoxos e heterodoxos, todos se inspiravam politicamente no Appel aux

    conservateurs que Comte publicara em 1855. Nesse texto, o conceito de conservador provinha de sua viso particular da Revoluo, que procurava fugir, de um lado, ao jacobinismo robespierrista, rousseauniano, chamado de metafsico, e, de outro, ao reacionarismo do restauracionismo clerical. Era conservador, na viso de Comte, aquele que conseguia conciliar o pro-gresso trazido pela Revoluo com a ordem necessria para apressar a tran-sio para a sociedade normal, ou seja, para a sociedade positivista baseada na Religio da Humanidade.

    O ponto importante em que a ortodoxia positivista se separava das idias de Benjamin Constant era a rejeio do governo parlamentar. A di-vergncia era relevante para os republicanos brasileiros. Comte tirara sua ideia de ditadura republicana tanto da tradio romana como da experincia revolucionria de 1789, essas duas, alias, tambm relacionadas. A expres-so implica ao mesmo tempo a ideia de um governo discricionrio de salva-o nacional e a ideia de representao, de legitimidade. No se trata de despotismo. Para Comte, Danton era um ditador republicano e Robespierre era um dspota. Mas a idia era ambgua, na medida em que no Appet aux conservateurs ele apresenta o legitimista Carlos X como a melhor encar-nao do ditador republicano.

    Seja qual for o contedo preciso da expresso, suas conseqncias para a ideia de representao e para a organizao da poltica republicana eram importantes. A idia de representao embutida na figura do ditador se aproxima da representao simblica, ou da representao virtual. Nes-sas duas acepes, o representante se coloca no lugar do representado, em relao ao qual possui grande independncia.5 O ditador republicano seria, por exemplo, vitalcio e poderia escolher seu sucessor. Se ele deve teorica-mente representar as massas, pode na prtica delas se afastar. Na realidade, o bom ditador comtiano seria aquele que conduzisse as massas. No espirito do Appel aux conservateurs, a ditadura monocratica, republicana, conser-vadora, tem o claro sentido de um governo da ordem cuja tarefa fazer d'en haut a transio para a sociedade positiva. A ditadura republicana aparece a como algo muito prximo do conceito de modernizao conser-vadora difundido por Barrington Moore.6

    O positivismo, especialmente na verso de Laffitte, possua outro trao que o tornava relevante para a discusso da situao brasileira. Vimos o ideal hamiltoniano de uma nao sem patriotas, ao qual se opunha a viso rousseauniana com nfase no coletivo, na ideia de virtude cvica, de homem pblico. O comtismo introduziu uma variante nessas duas vertentes. Como

    sabido, aps o encontro de Comte com Clotilde de Vaux em 1845, sua obra sofreu uma transformao profunda. Os elementos religiosos passaram a predominar sobre os aspectos cientficos, o sentimento foi colocado acima da razo, a comunidade foi sobreposta ao individuo. Segundo sua prpria confisso, Comte passou a unir o instinto social dos romanos (a virtude cl-

    20

    21

  • vica) cultura afetiva da Idade Mdia, expressa nas tradies do catolicismo. Desse modo, fugia completamente ao individualismo mas em seu lugar no colocava a vontade geral de Rousseau. Para Comte, individualismo e von-tade geral eram ambos noes metafsicas. O que o comtismo introduzia eram as formas de vivncia comunitria, a famlia, a ptria e, como culmi-nao do processo evolutivo, a humanidade (que Comte escrevia com h maisculo).

    De especial importncia a nfase dada por Comte noo de ptria. A ptria a mediao necessria entre a famlia e a humanidade, a media-o necessria para o desenvolvimento do instinto social. Ela deve, para atender a tal funo, constituir verdadeira comunidade de convivncia, no podendo, portanto, possuir territrio excessivamente grande. A ptria per-feita deveria ter como caracterstica os dons femininos do sentimento e do amor. A boa ptria ser a mtria. Tal viso, se era incompatvel com a idia de nao sem patriotas, tambm fugia do comunitarismo de Rousseau, que possua elementos contratuais e, portanto, traos de individualismo. O ci-dado positivista no age na praa pblica, no delibera sobre as questes pblicas. Ele se perde nas estruturas comunitrias que o absorvem total-mente.

    Havia, assim, pelo menos trs modelos de repblica disposio dos republicanos brasileiros. Dois deles, o americano e o positivista, embora partindo de premissas totalmente distintas, acabavam dando nfase a aspec-tos de organizao do poder. O terceiro colocava a interveno popular como fundamento do novo regime, desdenhando os aspectos de institucio-nalizao. verdade que a idia de ditadura republicana era usada pelos dois modelos franceses, mas na verso jacobina ela permanecia vaga, ao passo que os positivistas detalhavam o papel do ditador, do congresso, as normas eleitorais, a poltica educacional etc.

    Idias e instituies norte-americanas e europias j tinham sido adap-tadas por politicos imperiais. Antes mesmo da independncia do pas, rebe-lies coloniais tinham-se inspirado seja na Revoluo Americana, seja na Francesa. Importar modelos, ou inspirar-se em exemplos externos, no era, assim, exclusividade dos republicanos brasileiros. Os prprios founding fathen americanos buscaram inspirao em idias e instituies da Anti-guidade, da Renascena, da Inglaterra e da Frana contemporneas. A Re-voluo Francesa, por sua vez, tivera nos clssicos e no exemplo americano pontos de referncia. O fenmeno de buscar modelos externos universal. Isso no significa, no entanto, que ele no possa ser til para entender uma sociedade particular. Que idias adotar, como adot-las, que adaptaes fa-zer, tudo isso pode ser revelador das foras polticas e dos valores que pre-dominam na sociedade importadora.

    A HERANA IMPERIAL

    O Imprio brasileiro realizara uma engenhosa combinao de ele-mentos importados. Na organizao poltica, inspirava-se no constituciona-lismo ingls, via Benjamin Constant. Bem ou mal, a Monarquia brasileira ensaiou um governo de gabinete com partidos nacionais, eleies, imprensa livre. Em matria administrativa, a inspirao veio de Portugal e da Frana, pois eram esses os pases que mais se aproximavam da poltica centralizante do Imprio. O direito administrativo francs era particularmente atraente para o vis estatista dos polticos imperiais: Por fim, at mesmo certas frmulas anglo-americanas, como a justia de paz, o jri e uma limitada descentralizao provincial, serviam de referncia quando o peso centrali-zante provocava reaes mais fortes.

    Todas essas importaes serviam preocupao central que era a or-ganizao do Estado em seus aspectos poltico, administrativo e judicial. Tratava-se, antes de tudo, de garantir a sobrevivncia da unidade poltica do pais, de organizar um governo que mantivesse a unio das provncias e a ordem social. Somente ao final do Imprio comearam a ser discutidas ques-tes que tinham a ver com a formao da nao, com a redefinio da cida-dania. Embora no inicio da vida independente brasileira um dos principais polticos da poca, Jos Bonifcio, j tivesse alertado para o problema da formao da nao, mencionando particularmente as questes da escravido e da diversidade racial, tudo isso ficou em segundo plano, pois a tarefa mais urgente a ser cumprida era a da sobrevivncia pura e simples do pais.

    Aps a consolidao da unidade poltica, conseguida em torno da me-tade do sculo, o tema nacional voltou a ser colocado, inicialmente na lite-ratura. O guarani, de Jos de Alencar, romance publicado em 1857, bus-cava, dentro do estilo romntico, definir uma identidade nacional por meio da ligao simblica entre uma jovem loura portuguesa e um chefe indgena acobreado. A unio das duas raas num ambiente de exuberncia tropical, longe das marcas da civilizao europeia, indicava uma primeira tentativa de esboar o que seriam as bases de uma comunidade nacional com identi-dade prpria. No mbito poltico, a temtica nacional s foi retomada quando se aproximou o momento de enfrentar o problema da escravido e seu correlato, a imigrao estrangeira. Tais problemas implicavam tambm o da centralizao poltica, uma vez que afetavam de maneira distinta as vrias provncias. Os republicanos tinham de enfrentar esses desafios. Mais ainda, em boa parte a opo pela repblica e o modelo de repblica esco-lhido tinham a ver com a soluo que se desejava para tais problemas.

    A Monarquia aboliu a escravido em 1888. Mas a medida atendeu antes a uma necessidade poltica de preservar a ordem pblica ameaada pela fuga em massa dos escravos e a uma necessidade econmica de atrair mo-de-obra livre para as regies cafeeiras. O problema social da escravi-

    22 2 3

  • do, o problema da incorporao dos ex-escravos vida nacional e, mais ainda, prpria identidade da nao, no foi resolvido e mal comeava a ser enfrentado. Os abolicionistas mais lcidos, os reformistas monrquicos, ti-nham proposto medidas nessa direo, como a reforma agrria e a educao dos libertos. Mas no curto perodo de um ano entre a Abolio e a Rep-blica nada foi feito, pois o governo imperial gastou quase toda sua energia resistindo aos ataques dos ex-proprietrios de escravos que no se confor-mavam com a abolio sem indenizao.

    O Imprio tinha, por outro lado, enfrentado o problema da redefini-o da cidadania de maneira a dificultar a incorporao dos libertos. A lei eleitoral de 1881, que introduzia o voto direto em um turno, sob pretexto de moralizar as eleies, reduziu drasticamente a participao eleitoral. Ao exigir dos eleitores saber ler e escrever, reduziu o eleitorado, que era de 10% da populao, a menos de 1% numa populao de cerca de 14 milhes. Se o governo imperial contava com simpatias populares, inclusive da popu-lao negra, era isso devido antes ao simbolismo da figura paternal do rei do que participao real dessa populao na vida poltica do pais.

    A OPO REPUBLICANA

    Substituir um governo e construir uma nao, esta era a tarefa que os republicanos tinham de enfrentar. Eles a enfrentaram de maneira diversi-ficada, de acordo com a viso que cada grupo republicano tinha da soluo desejada. Esquematicamente, podem ser distinguidas trs posies.

    A primeira era a dos proprietrios rurais, especialmente a dos pro-prietrios paulistas. Em So Paulo existia, desde 1873, o partido republi-cano mais organizado do pais, formado principalmente por proprietrios. A provncia passara por grande surto de expanso do caf e sentia-se asfixiada pela centralizao monrquica. Para esses homens, a repblica ideal era sem dvida a do modelo americano. Convinha-lhes a definio individua-lista do pacto social. Ela evitava o apelo ampla participao popular tanto na implantao como no governo da Repblica. Mais ainda, ao definir o p-blico como a soma dos interesses individuais, ela lhes fornecia a justificativa para a defesa de seus interesses particulares. A verso do final do sculo XIX da postura liberal era o darwinismo social, absorvido no Brasil por intermdio de Spencer, o inspirador do principal terico paulista da Rep-blica, Alberto Sales.

    Convinha-lhes tambm a nfase americana na organizao do poder, no apenas por estar na tradio do pais mas, principalmente, pela preocu-pao com a ordem social e poltica, prpria de uma classe de ex-senhores de escravos. Convinha-lhes, de modo especial, a soluo federalista ameri-

    2 4

    1, Alberto Sales, idelogo da repblica

    cana. Para os republicanos de So Paulo, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul, trs das principais provncias do Imprio, o federalismo era talvez o aspecto mais importante que buscavam no novo regime. O sistema bica-meral era parte da soluo federativa.

    O modelo americano, em boa parte vitorioso na Constituio de 1891, se atendia aos interesses dos proprietrios rurais, tinha sentido profunda-mente distinto daquele que teve nos Estados Unidos. L, como lembrou Hannah Arendt, a revoluo viera antes, estava na nova sociedade iguali-tria formada pelos colonos. A preocupao com a organizao do poder, como vimos, era antes conseqncia da quase ausncia de hierarquias so-ciais. No Brasil, no houvera a revoluo prvia. Apesar da abolio da escravido, a sociedade caracterizava-se por desigualdades profundas e pela concentrao do poder. Nessas circunstncias, o liberalismo adquiria um carter de consagrao da desigualdade, de sano da lei do mais forte. Aco-plado ao presidencialismo, o darwinismo republicano tinha em mos os ins-trumentos ideolgicos e polticos para estabelecer um regime profunda-mente autoritrio.

    No era esse, sem dvida, o modelo que convinha a outros desafetos da Monarquia. Havia um setor da populao urbana, formado por pequenos proprietrios, profissionais liberais, jornalistas, professores e estudantes,

    25

  • para quem o regime imperial aparecia como limitador das oportunidades de trabalho. Digo "aparecia" porque a lentido do sistema imperial, mesmo em promover a abolio, a excessiva centralizao, a longevidade de alguns segmentos da elite poltica (dOs senadores vitalcios, por exemplo) eram vistos como a causa dos problemas desses insatisfeitos, quando a causa es-tava em outros fatores (como a prpria escravido, que limitava o mercado de trabalho). Acontece que a prpria avaliao da Monarquia era condi-cionada pelas idias republicanas. A verso jacobina, em particular, tendia a projetar sobre a Monarquia brasileira os mesmos vcios do Ancien R-gime francs, por menos comparveis que fossem as duas realidades. Via-se no Imprio brasileiro, por exemplo, o atraso, o privilgio, a corrupo, quando o imperador era dos maiores promotores da arte e da cincia, quando a nobreza era apenas nominal e no hereditria, quando o ndice de morali-dade pblica era talvez o mais alto da histria independente do Brasil. Mas as acusaes eram feitas provavelmente de boa-f, faziam parte da crena republicana.

    Para essas pessoas, a soluo liberal ortodoxa no era atraente, pois no controlavam recursos de poder econmico e social capazes de coloc-las em vantagem num sistema de competio livre. Eram mais atraidas pelos apelos abstratos em favor da liberdade, da igualdade, da participao, em-bora nem sempre fosse claro de que maneira tais apelos poderiam ser ope-racionalizados. A prpria dificuldade de visualizar sua operacionalizao fazia com que se ficasse no nivel das abstraes. A ideia de povo era abs-trata. Muitas das referncias eram quase simblicas. Os radicais da Rep-blica falavam em revoluo (queriam mesmo que esta viesse no centenrio da grande Revoluo de 1789), falavam do povo nas mas, pediam a morte do prncipe-consorte da herdeira do trono (era um nobre francs!), canta-vam a Marselhesa pelas ruas. Mas, caso tivesse sido tentada qualquer revo-luo do tipo pretendido, o povo que em Paris saiu s ruas para tomar a Bastilha e guilhotinar reis no teria aparecido. As simpatias das classes peri-gosas do Rio de Janeiro estavam mais voltadas Monarquia. A igualdade jacobina do cidado foi aqui logo adaptada s hierarquias locais: havia o cidado, o cidado-doutor e at mesmo o cidado-doutor-general.

    Pela prpria implausibilidade dessa soluo, os partidrios da liber-dade antiga formavam um grupo pequeno, embora agressivo. A maior parte desse grupo de descontentes percebia a dificuldade, se no a impossi-bilidade, de se fazer a repblica na praa pblica. Era muito clara para eles a importncia do Estado. Eram contra o regime monrquico, no contra o Estado. O Estado era o meio mais eficaz de conseguirem seus objetivos. Como o abolicionista Joaquim Nabuco, percebiam que a escravido era no Brasil a sombra do Estado, mas que sem o Estado seria difcil acabar com ela. Se no lhes interessava a soluo americana, no queriam tambm a jacobina. Era necessrio outro tipo de salda.

    26

    2. Silva Jardim, pregador da repblica jacobina

    A verso positivista da repblica, em suas diversas variantes, oferecia tal saida. O arsenal terico positivista trazia armas muito teis. A comear pela condenao da Monarquia em nome do progresso. Pela lei dos trs esta-dos, a Monarquia correspondia fase teolgico-militar, que devia ser supe-rada pela fase positiva, cuja melhor encarnao era a repblica. A separao entre Igreja e Estado era tambm uma demanda atraente para esse grupo, particularmente para os professores, estudantes e militares. Igualmente, a idia de ditadura republicana, o apelo a um Executivo forte e interven-cionista, servia bem a seus interesses. Progresso e ditadura, o progresso pela ditadura, pela ao do Estado, eis ai um ideal de despotismo ilustrado que tinha longas raizes na tradio luso-brasileira desde os tempos pomba-linos do sculo XVIII. Por ltimo, a proposta positivista de incorporao do proletariado sociedade moderna, de uma poltica social a ser implemen-tada pelo Estado, tinha maior credibilidade que o apelo abstrato ao povo e abria caminho para a ideia republicana entre o operariado, especialmente o estatal.

    Um grupo social que se sentiu particularmente atrado por essa viso da sociedade e da repblica foi o dos militares. O fato extremamente ir-nico, de vez que, de acordo com as teses positivistas, um governo militar

    27

  • referncia a Deus, substitudo pelo trinmio Familia, Ptria, Humanidade; poltica educacional e socia1.8

    3 e 4. Miguel Lemos e Teixeira Mendes, apdstolos da repblica sociocrdtica positivista.

    seria uma retrogradao social. Mas entram ai as surpresas que fazem inte-ressante o fenmeno da adaptao de idias. Acontece que os militares ti-nham formao tcnica, em oposio formao literria da elite civil, e sentiam-se fortemente atrados pela nfase dada pelo positivismo cincia, ao desenvolvimento industrial. Por outro lado, por serem parte do prprio Estado, no podiam dele prescindir como instrumento de ao poltica. A idia de ditadura republicana tinha para eles um forte apelo, embora na Amrica Latina pudesse aproximar-se perigosamente da defesa do caudi-lhismo militar e assim tenha sido vista por observadores estrangeiros, espe-cialmente europeus, durante os dois governos militares que iniciaram a Repblica.

    Por razes histricas especificas, o modelo positivista seduziu tam-bm os republicanos do Rio Grande do Sul. A tradio militar da regio, o fato de os republicanos serem l uma minoria que precisava de disciplina e coeso para impor-se, a menor complexidade da sociedade local em compa-rao com So Paulo e Rio de Janeiro talvez tenham contribudo para a adeso mais intensa s idias polticas do positivismo. Mais do que nenhuma outra, a Constituio do Estado do Rio Grande do Sul incorporou elementos positivistas, particularmente no que se refere predominncia do Execu-tivo; ao Legislativo de uma cmara e de carter oramentrio; ausncia de

    28

    A CIDADANIA E A ESTADANIA

    Com a exceo dos poucos radicais, os vrios grupos que procuravam em modelos republicanos uma sada para a Monarquia acabavam dando n-fase ao Estado, mesmo os que partiam de premissas liberais. Levava a isso, em parte, a longa tradio estatista do pas, herana portuguesa reforada pela elite imperial. A sociedade escravocrata abria tambm poucos espaos ocupacionais, fazendo com que os deslocados acabassem por recorrer direta-mente ao emprego pblico ou interveno do Estado para abrir perspec-tivas de carreira. Bacharis desempregados, militares insatisfeitos com os baixos salrios e com minguados oramentos, operrios do Estado em busca de uma legislao social, migrantes urbanos em busca de emprego, todos acabavam olhando para o Estado como porto de salvao. A insero de todos eles na poltica se dava mais pela porta do Estado do que pela afirma-o de um direito de cidado. Era uma insero que se chamaria com maior preciso de estadania.

    J foram mencionados os obstculos sociais soluo jacobina. O ponto merece ser expandido. O exerccio da liberdade dos antigos exigia a posse da virtude republicana pelos cidados, isto , a posse da preocupao como bem pblico. Tal preocupao era ameaada sempre que cresciam as oportunidades de enriquecimento, pois surgia ento a ambio e desenvol-via-se a desigualdade social. A virtude republicana era uma virtude espar-tana. J percebido por Maquiavel, esse tema foi retomado s vsperas da criao das repblicas modernas. Na Frana, Montesquieu e, especial-mente, Mably viam como condio para a virtude cvica certa igualdade social. Mably achava que apenas a Sua possula tal condio, estando os Estados Unidos j corrompidos pela desigualdade. Jefferson, o mais "an-tigo" dos founding fathers, tinha tambm dvidas quanto s possibilidades da vigncia da virtude republicana nos Estados Unidos devido ao avano do comrcio e da indstria, fontes de corrupo. Dentro de tal viso, o patriota era quase incompativel com o homem econmico, a cidadania incompatvel com a cultura. 9 Era essa, alis,, a posio de Benjamin Constant, para quem o desenvolvimento do comrcio e da indstria seria a causa fundamental da inadequao da liberdade antiga ao mundo moderno.

    Ora, alm de ter surgido em uma sociedade profundamente desigual e hierarquizada, a Repblica brasileira foi proclamada em um momento de intensa especulao financeira, causada pelas grandes emisses de dinheiro feitas pelo governo para atender s necessidades geradas pela abolio da escravido. A febre especulativa atingiu de modo especial a capital do pais,

    29

  • centro dos acontecimentos que levaram Repblica. Em vez da agitao do Terceiro Estado, a Repblica brasileira nasceu no meio da agitao dos espe-culadores, agitao que ela s fez aumentar pela continuao da poltica emissionista. O esprito de especulao, de enriquecimento pessoal a todo custo, denunciado amplamente na imprensa, na tribuna, nos romances, dava ao novo regime uma marca incompatvel com a virtude republicana. Em tais circunstncias, no se podia nem mesmo falar na definio utilita-rista do interesse pblico como a soma dos interesses individuais. Simples-mente no havia preocupao com o pblico. Predominava a mentalidade predatria, o espirito do capitalismo sem a tica protestante.

    Houve reao a tal situao durante o segundo governo militar, a fase jacobina da Repblica. No por acaso, esse governo se destacou pelo com-bate aos especuladores e aos banqueiros. A imagem mais popular do ma-rechal Floriano Peixoto era a do guardio do Tesouro, uma plida verso tropical do Robespierre dos tempos do Comit de Salvao Pblica, cha-mado o Incorruptvel. Mas durou pouco a reao. A corrupo e a nego-ciata voltaram a caracterizar o novo regime, fazendo com que o antigo, acusado antes de corrupto, aparecesse j como smbolo de austeridade p-blica. As representaes da Repblica nas caricaturas da poca mostram a rpida deteriorao da imagem do regime. Da clssica figura da austera matrona romana passa-se rapidamente para a cortes renascentista. No se tratava apenas da imagem. Um ministro da Fazenda foi acusado, na virada do sculo, de ter feito reproduzir o retrato de sua amante em uma nota do Tesouro, como representao da Repblica.

    As dificuldades de implantao seja de uma repblica antiga, seja de uma repblica moderna no Brasil, preocupavam os intelectuais da poca, especialmente os republicanos. O ponto central do debate era a relao entre o privado e o pblico, o indivduo e a comunidade. Vrios pensadores iden-tificavam a ausncia do individualismo anglo-saxo como fator explicativo da incapacidade brasileira para organizar a sociedade politica. O terico republicano Alberto Sales, aps se ter rapidamente desencantado com o novo regime, dizia que os brasileiros eram muito sociveis mas pouco soli-drios, isto , conseguiam conviver em pequenos grupos mas eram incapa-zes de se organizar em sociedade. Segundo ele, era exatamente a valorizao do individuo que dava aos americanos a capacidade de organizar-se que tanta admirao tinha causado a Tocqueville. Na mesma linha, Silvio Ro-mero utilizou um autor francs, Edmond Demoulins, para caracterizar a psicologia brasileira como sendo de natureza comunitria, em oposio psicologia individualista dos anglo-saxes. A conseqncia que Silvio Ro-mero tirava dessa distino era a mesma de Alberto Sales: a ausncia entre os brasileiros do esprito de iniciativa, da conscincia coletiva, a excessiva dependncia do Estado, o predomnio do que Demoulins chamava de poltica alimentria."

    At mesmo um positivista como Anibal Falco formulava a antino-mia nos mesmos termos. A diferena que Falco, como bom positivista, colocava a valorao positiva do lado brasileiro. A tradio brasileira, ou ibrica em geral, salientava os aspectos integrativos, participatrios, afeti-vos. A tradio anglo-saxnica era individualista, egosta, materialista, conflitiva. O futuro da humanidade estava na primeira tradio. Em pol-tica, segundo Falco, o individualismo levava disperso e ao conflito, ao passo que o comunitarismo levava ditadura republicana de natureza integrativa."

    O debate poderia ser seguido at a atualidade, bastando lembrar sua retomada recente por Richard M. Morse." Segundo Morse, um severo cri-tico da cultura anglo-saxonica, a cultura ibrica traria at hoje a marca da nfase na integrao, na incorporao, na predominncia do todo sobre o indivduo. Tal tradio adviria de uma opo feita na Espanha do limiar da Idade Moderna pela viso tomista do Estado e da sociedade, viso em que predominariam as noes de comunidade e a concepo do Estado como instrumento para a promoo do bem comum.

    Tal concepo, fcil de verificar, aproxima-se da de Anbal Falco e da dos positivistas ortodoxos em geral. No por acaso, Comte dizia ter-se inspirado nas tradies crists da Idade Mdia. As propostas concretas dos positivistas, e no apenas suas posies filosficas, iam tambm na direo. de promover a integrao. A comear por sua demanda bsica de incor-porao do proletariado sociedade. De preferncia, essa incorporao de-veria ser feita pelo reconhecimento, por parte dos ricos, do dever de prote-ger os pobres, por meio de mudana de mentalidade, e no pelo conflito de classes. Outras propostas concretas iam na mesma direo no-conflituosa: a abolio da escravido pelo governo, a defesa dos ndios, a oposio s leis contra a vagabundagem. At mesmo a transio republicana deveria ser feita de maneira suave: os ortodoxos queriam que o imperador tomasse a iniciativa de se proclamar ditador republicano.

    Mas, apesar da admirvel dedicao dos ortodoxos, suas propostas tiveram efeito reduzido e passageiro. O apelo integrao aos valores comu-nitrios, feito nas circunstncias de desigualdade social extrema, de luta intensa pelo poder, de especulao financeira desregrada, caia no vazio. Algumas propostas, como as que se referiam exaltao do papel da mulher e da famlia, estavam sem dvida dentro de uma tradio cultural enraizada. Mas seus efeitos eram antes de natureza conservadora, na medida em que reforavam o patriarcalismo vigente. Quanto proposta de fazer do Estado, por intermdio da ditadura republicana, um agente do bem comum, um promotor de polticas sociais, um preparador da sociedade positivista ba-seada na harmonia das relaes sociais, ela reforava, na melhor das hip-teses, o paternalismo governamental. Na pior, acabava levando agua para o

    30 31

  • moinho do autoritarismo tecnocrtico, com ou sem os militares. Comuni-dade, afeto e amor tornavam-se meras palavras, se no mistificao.

    A dificuldade brasileira com os dois modelos de liberdade, a dos anti-gos e a dos modernos, estava talvez na ausncia de um elemento que tais modelos no levavam em conta, mas que era na realidade parte importante, ou mesmo uma premissa, para o funcionamento deles. Para que funcio-nasse a repblica antiga, para que os cidados aceitassem a liberdade pblica em troca da liberdade individual; para que funcionasse a repblica moderna, para que os cidados renunciassem em boa parte influncia sobre negcios pblicos em favor da liberdade individual para isso, talvez fosse neces-sria a existncia anterior do sentimento de comunidade, de identidade cole-tiva, que antigamente podia ser o de pertencer a uma cidade e que moder-namente o de pertencer a uma nao. Pode-se perguntar se a repblica sem patriotas de Hamilton poderia sobreviver sem esse sentimento, apesar de todo o aparato institucional inventado pelos fundadores. Pode-se igual-mente perguntar se, no caso francs, algo da experincia revolucionria, um fenmeno que mobilizava mas que tambm dividia a sociedade, teria podido sobreviver sem o sentimento de nao despertado pelas guerras ex-ternas e pela cruzada civilizatria que os soldados franceses acreditavam estar realizando na Europa. O sentido da identidade seria, nesse caso, o cimento comum aos dois modelos. Em si mesmo, ele no seria suficiente para fundar uma comunidade poltica, por negligenciar o fato universal da diversidade e do conflito. Ai estava, provavelmente, o equivoco da proposta do positivismo ortodoxo. Mas sem ele os dois modelos tambm se desin-tegrariam.

    No Brasil do inicio da Repblica, inexistia tal sentimento. Havia, sem dvida, alguns elementos que em geral fazem parte de uma identidade nacional, como a unidade da lngua, da religio e mesmo a unidade poltica. A guerra contra o Paraguai na dcada de 1860 produzira, certo, um inicio de sentimento nacional. Mas fora muito limitado pelas complicaes impos-tas pela presena da escravido. Era geral a resistncia ao recrutamento, e muitos libertavam seus escravos para lutar em seu lugar. J. na Repblica, o jacobinismo tentou mobilizar o patriotismo no Rio de Janeiro. Mas tal mobilizao acabava levando mais diviso do que unio. O alvo principal dos ataques jacobinos eram os portugueses, que constituam 20% da popu-lao da cidade. Eram portugueses muitos comerciantes e banqueiros, mas tambm muitos operrios que se viam, assim, excludos da Repblica jaco-bina. Um pouco mais tarde, o movimento anarquista atacou explicitamente a idia de ptria, considerada por eles instrumento de dominao dos pa-tres, instrumento do controle de mercados e da diviso da classe operaria.

    A busca de uma identidade coletiva para o pais, de uma base para a construo da nao, seria tarefa que iria perseguir a gerao intelectual da Primeira Repblica (1889-1930). Tratava-se, na realidade, de uma busca

    das bases para a redefinio da Repblica, para o estabelecimento de um governo republicano que no fosse uma caricatura de si mesmo. Porque foi geral o desencanto com a obra de 1889. Os propagandistas e os principais participantes do movimento republicano rapidamente perceberam que no se tratava da repblica de seus sonhos. Em 1901, quando seu irmo exercia a presidncia da Repblica, Alberto Sales publicou um ataque virulento contra o novo regime, que considerava corrupto e mais desptico do que o governo monrquico. A formulao mais forte do desencanto talvez tenha vindo de Alberto Torres, j na segunda dcada do sculo: "Este Estado no

    uma nacionalidade; este pais no uma sociedade; esta gente no um povo. Nossos homens no so cidados"

    32 33

    0000000100000002000000030000000400000005000000060000000700000008000000090000001000000011