murilo mendes

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Igreja de Santa Efigênia, 1772 Ouro Preto, MGPoemasM u r il o M e nd e sCanção do exílioMinha terra tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturamos de Veneza. Os poetas da minha terra são pretos que vivem em torres de ametista, os sargentos do exército são monistas, cubistas, os filósofos são polacos vendendo a prestações. A gente não pode dormir com os oradores e os pernilongos. Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores s

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Igreja de Santa Efignia, 1772 Ouro Preto, MG

PoemasM u r il o M e n d e s

Cano do exlioMinha terra tem macieiras da Califrnia onde cantam gaturamos de Veneza. Os poetas da minha terra so pretos que vivem em torres de ametista, os sargentos do exrcito so monistas, cubistas, os filsofos so polacos vendendo a prestaes. A gente no pode dormir com os oradores e os pernilongos. Os sururus em famlia tm por testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores so mais bonitas nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil ris a dzia. Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabi com certido de idade! 167O poeta Murilo Mendes nasceu em Juiz de Fora (MG), em 13 de maio de 1901, e faleceu em Lisboa (Portugal), em 15 de agosto de 1975. Algumas obras: Poemas (1930), Tempo e eternidade (com Jorge de Lima, 1935), As metamorfoses (1944), Mundo enigma (1945), Contemplao de Ouro Preto (1954), Poliedro (1974), Ipotesi (ed. italiana, 1978).

Mu ri lo Mendes

Quinze de novembroDeodoro todo nos trinques bate na porta de Do Pedro Segundo. Seu imperad, d o fora que ns queremos tomar conta desta bugiganga. Mande vir os msicos. O imperador bocejando responde Pois no meus filhos no se vexem me deixem calar as chinelas podem entrar vontade: s peo que no me bulam nas obras completas de Vtor Hugo.

Carto postalDomingo no jardim pblico pensativo. Conscincias corando ao sol nos bancos, bebs arquivados em carrinhos alemes esperam pacientemente o dia em que podero ler o Guarani. Passam braos e seios com um jeito que se Lenine visse no fazia o Soviete. Marinheiros americanos bbedos fazem pipi na esttua de Barroso, portugueses de bigode e corrente de relgio abocanham mulatas. O sol afunda-se no ocaso como a cabea daquela menina sardenta, na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

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Poemas

O menino sem passadoMonstros complicados no povoaram meus sonos de criana porque o saci-perer no fazia mal a ningum limitando-se moleque a danar maxixes desenfreados no mundo das garotas de madeira que meu tio habilidoso fazia para mim. A me-dgua s se preocupava em tomar banhos asseadssima na piscina do stio que no tinha chuveiro. De noite eu ia no fundo do quintal pra ver se aparecia um gigante com trezentos anos que ia me levar dentro dum surro, mas no acreditava nada. Fiquei sem tradio sem costumes nem lendas estou diante do mundo deitado na rede mole que todos os pases embalanam.

Noturno resumidoA noite suspende na bruta mo que trabalhou no circo das idades anteriores as casas que o pessoal dorme comportadinho atravessado na cama comprada no turco a prestaes.

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A lua e os manifestos de arte moderna brigam no poema em branco. A vizinha sestrosa da janela em frente tem na vida um camarada que se atirou dum quinto andar. Todos tm a vidinha deles. As namoradas no namoram mais porque ns agora somos civilizados, andamos no automvel gostoso pensando no cubismo. A noite uma soma de sambas que eu ando ouvindo h muitos anos. O tinteiro caindo me suja os dedos e me aborrece tanto que no posso escrever a obra-prima que todos esperam do meu talento.

XodO Cruzeiro do Sul no tira o p do lugar enquanto os dois namorados no descolam do porto. As formas futuras esperam pacientemente no fundo dos corpos porque eles evoluem em sentido vertical misturando os cabelos e as respiraes. O cheiro dos jasmins bate no nariz dos dois cutuba mas eles no sentem nada e ficam ali a noite inteira bobos ao ar livre matutando.

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Poemas

Biografia do msicoO guri nasceu no morro aniquilado de sambas bebeu leite condensado soltou papagaio de tarde aprendeu o nome de todos os donatrios de capitania esgotou os crioulus da Cidade Nova bocejou anos e anos no Conservatrio no tirou medalha de ouro coitado porque no tinha pistolo mais um astro que desponta no horizonte da arte nacional botou sapato camuflagem terno de xadrez casou com a filha do vendeiro da esquina que parecia com Carlos Gomes fez diversas msicas imitando o gorjeio dos pssaros morreu vtima de pertinaz molstia que zombou dos recursos da cincia ao enterro compareceram pessoas de destaque citando palmas com sentidas dedicatrias chegando no cu os anjinhos de cala larga e gravata borboleta deram um concerto de ocarina onde figurava a oitava nota e ele desmaiou de comoo.

MarinhaA esquadra no pde seguir pros exerccios porque estava nas vsperas do carnaval. Os marinheiros caram no parati e nos braos rolios e cheirosos de todas as mulatas que tm a pela cidade.

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A esquadra tornou a no poder seguir porque era depois do carnaval, a turma se sentia mal depois do carnaval. Dava uma preguia tamanha na guarnio que o almirante resolveu no fazer nada. Depois de muita mangao a esquadra foi-se embora com bandeirinhas, dobrados pacholas tocando no cais, mas o pessoal caiu de repente no maxixe, O Minas e o So Paulo pararam no alto mar, deu cerrao, foi a conta, a esquadra voltou. O embaixador ingls foi ao palcio do governo, engasgou, falou na aliana dos dois pases amigos, acabou oferecendo dois mil contos pela esquadra. O governo aceitou, mandou mil pros rfos turcos, com o restante deu um bruto baile depois caiu na vadiagem.

Famlia russa no BrasilO Soviete deu nisto, seu Naum largou de Odessa numa chispada, abriu vendinha em Botafogo, logo no bairro chique. Veio com a mulher e duas filhas, uma delas boa posta de carne, a outra garotinha mas j promete. No fim de um ano seu Naum progrediu, j sabe que tem Rui Barbosa, Mangue, Lampio.

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Poemas

Joga no bicho todo o dia, est ajuntando pro carnaval, depois do almoo anda s turras com a mulher. As filhas dele instalaram-se na vida nacional. Sabem danar o maxixe conversam com os sargentos em bom brasileiro. Chega de tarde a aguardente acabou, os fregueses somem, seu Naum cai na moleza. Nos sbados todo janota ele vai pro crioulu. Seu Naum inda capaz de chegar a senador.

Endereo das cinco MariasSou o tipo acabado do sujeito que no arranja nada nesta vida. Gosto de cinco Marias nesta vida. A primeira tinha uma pinta na cara, eu adorava aquela pinta. Maria do Rosrio jurava pela alma da me dela que s havia de casar comigo. Um belo dia apareceu um tenente que usava polainas e danava com muito garbo. Foi a conta: ela fugiu pra So Paulo com o tenente e me deixou na mo. A segunda, Maria do Carmo,

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era uma pequena dos bons tempos que a gente conversava no porto de noite, romntica de olhos pretos no gostava de bailes. Aquela sim, mas apanhou um resfriado de tanto conversar comigo no porto e bateu a bota. L est num cemitrio em Belorizonte Onde tem muita paisagem. As trs Marias restantes esto no cu.

Perspectiva da sala de jantarA filha do modesto funcionrio pblico d um bruto interesse natureza morta da sala pobre no subrbio. O vestido amarelo de organdi distribui cheiros apetitosos de carne morena saindo do banho com sabonete barato. O ambiente parado esperava mesmo aquela vibrao: papel ordinrio representando florestas com tigres, uma Ceia onde os personagens no comem nada, a mesa com a toalha furada a folhinha que a dona da casa segue o conselho e o piano que eles no tm sala de visitas. A menina olha longamente pro corpo dela como se ele hoje estivesse diferente, depois senta-se ao piano comprado a prestaes

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Poemas

e o cachorro malandro do vizinho toma nota dos sons com ateno.

A sestaO sol bate em chapa nas casas antigas. O mar embalana, rede mole sem corpo de mulata, verde azul lils verde outra vez. As praias espreguiam-se malandras, a hora das linhas repousantes. A buzina distante dum automvel chega at aqui com um som de lundu. Um mulatinho magro com o desenho certo chupa um pirulito devagarinho. Dentro das casas pensativas as meninas caem na madorna. A msica das serrarias aumenta a sonolncia... Os comerciantes torcem pra nenhum fregus entrar.

CasamentoO violo entrou pela balalaica adentro eta palavra difcil! e saiu uma ninhada de sons povoando a floresta da noite, pulando mexendo nos corpos brancos e morenos. As cores se misturam a foice e o martelo furam a Ordem e Progresso, Lampio e Lenine calados de botas vermelhas tiram o sangue do mundo e voam no caminho dos astros.

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O povo deixa a revoluo no meio e toca a danar o maxixe, carnes morenas se esfregando pra darem poetas e operrios, dana minha gente, no crioulu, na plancie, na usina e no dancingue, que a msica gostosa, todas as mulheres saem pra rua e os homens vo bancar o estivador pras pequenas terem vestido de seda. Ningum tem a cabea no lugar. Malazarte pegou numa tesoura e cortou o passado em mil pedaos, o ndio, o portugus, o africano deram o fora mas os trtaros ainda perturbam o sono das crianas mineiras e o poeta tem a metade do corpo enfiada na noite do Brasil e da Rssia porque as cabeas do poeta e dos brasileiros pertencem ao pensamento de Deus.

Sonata sem luar, quase uma fantasiaDas cinco regies onde navios angulosos sangram nos portos da loucura vieram meninas morenas, pancades, com os seios empinados gritando Mame eu quero um noivo! Os cemitrios do ar esquentam com o fogo sado dos sonhos da vizinha rebolando no nariz do poeta dia e noite, as cordas do sangue estalam. No pode, no pode! o homem que trabalha enquanto os vegetais sonham, o mar se espreguia, 176

Poemas

os minerais dormem a vida inteira. Nquel de luz. As estrelas torram o servio, ningum sabe se o cu ou o peito duma negra. Cad o luar? Gato comeu. Greve da inteligncia e um grito deste tamanho, do homem tentando romper os moldes do previsto. Acabou o amor, cad a lgica, a resignao? Gato comeu. L onde acaba a ao, a vida curva e o abandono comea. Os cheiros da terra sumiram, cemitrio, fogos ftuos, corao vazio, as cordas da vontade estalam. Alm das fronteiras do esprito, mais alm! O olho fixo do demnio determina a paisagem. Eu no te disse que tu no ias pro amor, a luta, o esporte. Adeus meus lindos conhecimentos, adeus realidade, minha secretria. Venham a mim, diabos, almas penadas, venham, me arrastem!

Vida dos demniosDemnios grandes trabalham na plancie, nas montanhas, 177

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nos arranha-cus, constroem o trabalho dos homens, agitam o mar, armam a mo dos padres e operrios, ajuntam imagens e reflexos na cabea dos poetas; despem as mulheres no mundo. Os demnios vm e vo na terra, na gua, no fogo, no ar. Demnios de todas as cores, de outras cores que a gente no v movem os astros, balanam na conscincia da terra. Eles vo e vm, sobem, descem, debruam-se nos olhos da gente, no bico da minha pena. Mundo, campo de experincia dos demnios. Os demnios sitiam o plano inefvel onde Deus pensa a harmonia do mundo. A Virgem Maria toda branca e fria atravessa no caminho, eles caem no tempo.

A luta(Cantos virginais do mundo, planos da inocncia, frmito de amor puro.) A vida asfixiou meus cantos de inocncia, sou da noite, da assombrao e dos ritmos desesperados.

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Poemas

Tardes calmas, vida lnguida nas varandas cariocas olhando o mar, nunca mais. Nunca mais vibraro cantos de noivas nos meus terraos, nem vestidos suspensos lembraro a forma da coisa amada, nem eu danarei. Nem olharei pras rosas nem me banharei na luz das madrugadas. Sou a luta entre um homem acabado e outro homem que est andando no ar.

SeroA sombra; e a noite do sculo passado, gemendo; e a lana no flanco do mrtir; e a implacvel mo da humanidade pensando sobre o dorso da esttua... Violncia! Rosas de fogo ardendo no cu plano! E os cactos da violncia, e a sombra dos desertos futuros, e o magnetismo dos olhares guardados atravs de geraes... A bola noturna do mundo roda no deserto da memria de Deus. A rvore vermelha coberta de noivos e de assassinos estende a sombra at ainda o sculo futuro. Estende a sombra para l da memria e das vontades pensantes, sem o som das aves idiotas, at que se possa ouvir um dia as notas do ltimo clarim.

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Vida de mrmoreA esttua muda a camisa na praa deserta. Arcanjos violentos surgem do fundo dos minutos, carregam tua vontade para o outro lado do mundo Amor preguia deserto revoluo amor, tudo passa tudo se reduz a eternidade de olhares, tudo passa menos a memria da bem-amada. Tudo se reduz a eternidade de contatos. O amor passa menos a memria da bem-amada. Meus pensamentos eternos ficaram superfcie do teu corpo. Toda a realidade do mundo provisria, o mundo provisrio. Tudo se reduz a eternidade de preguia e de olhares. A esttua mudou de camisa e se acalma na praa deserta.

AlegoriaSombras movendo o sonho onde uma densa cabeleira cheirosa aparece entre dois raios de pensamento no quarto pendurado na terra morena; de repente desloca-se a bruta massa do corpo dum santo, esttua me invocando, e um diabo verde me levando pro aniquilamento. Nos jardins claros gramados geomtricos a rvore dum vestido amarelo deixando adivinhar a forma que nenhum sovaco mido complica no gesto de apanhar uma bola, um resto de som de seresta agarra-se nas orelhas do cavalo mecnico que rompe o espao,

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Poemas

l vai at o oco do mundo onde as mesmas mulheres deste lado afagam o seio pensando no cavaleiro amado, doce meditao debaixo das lmpadas eltricas sentindo a aproximao dos cheiros e dos sons do carnaval, convidando ao sono numa cama que mal d pra um homem de estatura mediana.

Limites da razo 1Atrs do meu pensamento os demnios destroem as meninas que eu gostei, fazem com o movimento e o esprito delas um samba pros outros danarem.

2O manequim vermelho do espao que de noite eu levanto a mo para tocar chega perto de mim tem um ritmo prprio um andar quase humano. J vi h muitos anos numa cidade do interior uma professora inglesa que andava assim. De tanto as costureiras do ateli de Dona Laura se esfregarem no manequim de tarde ele j quer sair das camadas primitivas daqui a mil anos ser uma grande danarina danar sobre minha cova diante do cartaz dos astros quando eu mesmo danar minha vida realizada rio terrao dos astros. 181

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3Alongamento: tudo foge na hora extrema banhado na neblina da agonia as constelaes me abrem a porta e montado no cavalo mecnico do gnio do tempo atinjo a regio proibida aos humanos, mas nunca poderei ser totalmente outro. Alguma coisa me fica do mundo antigo. Desenvolvo-me em planos harmoniosos distingo a iluminao dos pensamentos, amparado pelas formas que moram no espao realizo a perfeio da minha unidade penetro a vida das cores novas, dos sons definitivos e enlao a forma do amor vivendo pra sempre dentro de mim.

Ritmos alternadosUm cheiro de anglicas brota dos cemitrios do espao. Noite, cruzes no mundo, as idades voltam, no sei onde estou. Os relmpagos iluminam os corpos flexveis no outro mundo, o som do saxofone dos anjos previne o tempo, as famlias tremem dentro das casas, a terra molhada explode em formas novas, o princpio e o fim. Homens e mulheres se arrependem de no ter realizado todo o amor, chegam mais perto uns dos outros... o gosto da noite me leva aos teus seios.

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Evocaes simultneasA noite curva... Seios pendurados nas janelas da terra Uma larga mo vermelha me chama em alguma parte. Mensagem do tato dum esprito do ar, cheiro das namoradas, noite curva. Minha cabea levanta-se acima do abismo e do pensamento, o esprito do ano de 1917 revive em mim. Dem lugar aos mortos, nivelados no tempo... Relmpagos, me abracem no quarto nupcial que um tmulo, o olho da morta um seio, a asa do vento desligou-se da noite, entrou em mim e desanda a bater. Abismos, pontes da noite, estrelas escarlates vagamente entrevistas num delrio perpendicular ao sonho, existo somente pras sombras acima de mim e da miragem da morte, sono das imagens... cortam-me a cabea.

VertigemVenho do ar, da multiplicao de sombras, cheiros se cruzando. A noite se espreguia elstica, em todos os pontos da terra movem-se desejos, uma outra vida transparece no azul, danas. Coros de meninas de quinze anos em igrejas do interior, namorados pressentindo o aviso dos sentidos, um morto cruzou o espao, treme o cu, a lua penteia os cabelos, todas as coisas se comunicam, as crianas chegam mais perto do seio materno,

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os chefes de famlia vem no espao a projeo da vida deles. Ritmos lnguidos, cadeiras de balano, tudo no seu lugar... Eu intervenho, chego da viagem nas almas, tonto, vrios planos me invocam, estou em relao com as esttuas andando na terra, mulheres que voltam pra trs sentindo o meu olhar, um barulho vem do fundo da terra, estrelas caindo, vidas rodando, os sete arcanjos tardam, estou vendo minha vida pra trs e eu balanando na asa do vento. Me socorram, me levem pra outro mundo onde as mulheres sejam to bonitas como aqui e o desnimo ainda maior.

Atmosfera desesperadaUma escada lateral por onde as formas descem, os sonhos sobem, vidas entrevistas num relmpago... Noite molhada, noite de fim do dilvio, mundo suspenso, luz difusa de astros que mal aparecem num ngulo do cu, vertigem. H qualquer coisa esperando no ar, pressentimento de outras distncias, realidades paralelas a esta, espritos puros nascendo, o amor aproximando as formas. O mar balana, desligado da praia, cabea cortada. Mundo iluminado a gs, curvas do pensamento, ns somos outros. Algum est andando dentro de mim, me segurando pelos cabelos, no sinto mais o meu peso, me perdi... 184

Poemas

O mundo inimigoO cavalo mecnico arrebata o manequim pensativo que invade a sombra das casas no espao elstico. Ao sinal do sonho a vida move direitinho as esttuas que retomam seu lugar na srie do planeta. Os homens largam a ao na paisagem elementar e invocam os pesadelos de mrmore na beira do infinito. Os fantasmas vibram mensagens de outra luz nos olhos, expulsam o sol do espao e se instalam no mundo.

Canto do desnimoDorme, mundo! Estrela, deita-te a meus ps, tempo, some da minha memria, infncia, famlias aparvalhadas olhando pra mim, sumi. Desaparece, gravura da primeira comunho, some, primeiro olhar da namorada, corpo da prostituta na cidade sibilante, noite do crime, vida de amor, sombra do santo. Desaparece, bruma da criao anterior, manequim da nebulosa vermelha ardendo no quarto em febre, vestido e sombra da mulher primitiva me tomando nos braos, apaga-te, mo de Deus me formando na manh remota, som, movimento, vontade, tempo, energia, desaparecei.

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Canto do noivoEu verei tuas formas crescerem pouco a pouco, verei tuas formas mudarem a cor, o peso, o ritmo, teus seios se dilatarem na noite quente, os olhos se transformarem quando brotar a idia do primeiro filho. Assistirei ao desenvolver das tuas idades, guardando todos os teus movimentos. J est na minha memria a menina me de bonecas, depois a que ficava de tarde na janela, e a que se alterou quando me conheceu, e a que est perto da unio das almas e dos corpos. As outras viro. Tuas ancas ho de se alargar, e os seios cados, o olhar apagado, os cabelos sem brilho ho de te arrastar pra mais perto do sentido do amor, minha mrtir, forma que eu destru, integrada em mim.

Reflexo e conviteNs todos estamos na beira da agonia caminhando sobre pedras angulosas e abismos. Ningum ouve o barulho da banda de msica que est ali firme do outro lado do sculo. Encontramos o sonho e o pusemos no altar. Incenso e adorao, culto ardente pra servir. Samos dos planos mltiplos do sonho, no nos integramos na cincia da total realidade. Vamos colher as flores grandes que crescem nos abismos e apreciar as exploses de luz de dois universos.

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Poemas

Apressando o passo estaremos do outro lado do sculo ouvindo o barulho da banda de msica que no pra nunca.

Histria futura do cravo e da rosaPuseram sinais semafricos Puseram guardas aduaneiros Na estratosfera. O Cravo de letra grande E a Rosa de letra grande Brigaram uma bela tarde No aparelho de televiso. Ento uma tempestade Que desde o instante do FIAT Se concentrara, esperando, L nas gavetas do cu, Levou as sementes do Cravo e da Rosa Para os jardins do caos Onde eles cresceram Brincaram de roda Papai e mame Vestidos de rendas, Sonhando pra sempre.

A pomba da lanchaQuando a rainha Locusta chegar No mais rainha, a nvoa As estrelas formaro a palavra DIO. No haver mais nem um capitalista,

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No haver mais nem um operrio, No haver mais nem uma rosa. Eu mesma estarei sepultada Debaixo de pedra e dilvio. Em cima das pedras, sozinho, Um urubu vestido com as cores do arco-ris Dar milho ao fantasma de Deus.

O filho prdigoSerenamente? A alma insatisfeita Viemos cortando as guas tenebrosas, Impulsionados pelos ventos largos. Meu pai me espera na varanda amena. (Digo sim ao meu filho Que volta para sugar meu sangue, Acompanhado dos pssaros do meio-dia Voando entre as arcadas tristes. Solto na frente a esttua nmero trs. Se ouvem os clarins das vitrolas.) E todos me felicitam vivamente. Tenho uma grande ao a cumprir: Falta-me coragem... O peso desta ao a cumprir Pesa demais sobre mim. Alm disto preciso eliminar O cu, o inferno, o purgatrio. Serei talhado imagem e semelhana da pedra. Girndolas, foguetes, abraos. Meu irmo: 188

Poemas

No te comoves ao ver A cara da tua antiga namorada? Ento olho de fato pra Maria: movimento atual de tuas ancas... Nos retratos da sala de espera Flutuam cabeleiras de amadas dos outros. Os outros: tios-minerais, primos-cactos... Sim! Nunca mais nos veremos, primas e tias de outrora; E as que temos agora Esto na frente de ns, No as podemos ver direito. Os vizinhos me conduzem at varanda. Meu pai, Ao mesmo tempo meu filho e meu irmo, Levei teu nome ao mundo inteiro, Espalhei teu sangue, Tomei ter, Dei teu dinheiro aos sem-trabalho, No dormi, para construir as netas que no conheces... Divulguei a raa do demnio, O dio, o mal, a desesperana. Mas no quero continuar minha tarefa. D tua herana aos urubus, Joga teus mantimentos Aos aviadores perdidos nas ilhas; Enforquem minha namorada! Sacudo as asas, Parto para o empreo da cozinha. No me mato, estou cansado demais.

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Mu ri lo Mendes

Tdio na varandaHesito entre as ancas da morena Deslocando a rua, E o mistrio do fim do homem, por exemplo, Dormir! As camlias lambem O sexo de teus lbios. Os pssaros da vertigem Bicam esttuas de pano. O mar fala a lngua de p Enquanto eu no tenho Ps de vento, Mos de metal. As botas de sete pedras Comem lguas de aborrecimento.

O poeta assassina a musaH dez dias que Clotilde Uma das musas queridas Anda aborrecendo o poeta. Aparece carinhosa, De repente vira as costas, Diz vrias coisas amargas, Bate impaciente com o p. Ento o poeta aporrinhado Joga lcool e ateia fogo Nas vestes da musa. A musa descabelada

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Poemas

Sai cantando pela rua. Sbito o corpo grande se estende no cho. Diversas musas sobressalentes Desandam a entoar meus cnticos de dor. Clotilde ressuscitar no terceiro dia, Clotilde e o poeta faro as pazes. Msica! Bebidas! Venham todos funo.

A visibilidadePassar ignorado dos homens, das palavras, Ignorado das guas, do demnio. Ignorado dos personagens da histria, Ignorado at de Deus, At dos pssaros, das pedras. Mas a luz se desfaz em vaia. Os demnios mostram os seios em arco Arco de sua vitria exclusiva , As guas exigem um carinho, Do contrrio te afogaro. As pedras exigem teu amor Vives em cima delas Do contrrio te apedrejaro, Apedrejaro Quem quiser viver no ar.

MasAs ondas amarguradas Encostam a cabea na pedra do cais. At as ondas possuem

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Mu ri lo Mendes

Uma pedra para descansar a cabea. Eu na verdade possuo Todas as pedras que h no mundo, Mas no descanso. As mulheres me do corda Mas somem nas alturas. Eu apalpei aquele seio, Minhas mos ficaram boquiabertas. Aqueles olhos gritaram na minha direo Mas depois desfaleceram. O mundo se desfaz em pedra Na minha direo, Mas as pedras marcham, no param, No poderei descansar. A poesia muito grande, Mas o alfabeto bem curto E a preguia, bem comprida. O amor muito grande Mas no puro, as mulheres Toda a hora humilham a gente Com golpes de olhares, Com arrancadas de seios... Mas assim mesmo inda bom.

Poema no bonde-cameloSou firme que nem areia Em noite de tempestade. Meu desnimo afinal Me segura neste mundo.

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Poemas

Estou farto de saber Que s piso no deserto. As mquinas aperfeioadas Do cruzamento das raas, Aeroplanos de braos, Globos de seios cheirosos No deixam o deserto afinal Ficar to vazio assim. Cabeleiras de palmeiras Morenas vermelhas louras Se agitam neste deserto. gua no falta, cerveja, Usques e aguardentes Guardados em odres finos De cristais bem facetados. E poemas fazendo lembrar Que se deve rezar um pouco. s vezes a noiva morta Passa no vento chorando, Arrisco dois olhos grandes: a miragem nossa irm.

Arte de desamarMeu amor disponvel, A qualquer hora ele fecha; A crise de convico mesmo muito grande.

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Mu ri lo Mendes

As pernas do meu amor Distraem da metafsica, O corpo do meu amor Tem a vantagem sublime De disfarar o horizonte. Eu no amo meu amor Para qu tapeao. No amo ningum no mundo, Nem eu mesmo, nem me odeio. Meu amor uma rede Onde descanso da vadiao. Os olhos do meu amor So bastante distrados, No vem meu desamor. Com o porta-seios moderno Os seios do meu amor Aparados la garonne Ocupam lugar pequeno No espao do seu corpo. Se meu amor qualquer dia Me abandonar, ai de mim! Eu no me suicidarei... Escreverei mais poemas.

O doente do sculoMeu corao vai sangrando, Se desfazendo aos pedaos,

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Poemas

Mas assim mesmo inda tem Uns pedacinhos de pedra Que resistem duramente: A pedra resiste ao vento De aridez, que vai passando, Vem rolando, traioeiro, Dos desertos da cabea. O vento insinua ento: Siga firme para a frente, Deixe a luz sua direita, Tome o rumo de Moscou, Se inebrie com este coro Que sai vibrante das mquinas, Fuzile a palavra amm. Mas quem sou eu neste mundo Pra anular a tradio? Venham, filhas da esperana, Me levem na padiola Para o chal da ternura, Acendam-me a luz do amor, Desenrolem seus cabelos Sobre o meu corpo, seno No terei culpa nenhuma Se me matar amanh.

Novssimo Job Eu fui criado tua imagem e semelhana. Mas no me deixaste o poder de multiplicar o po do pobre, Nem a neta de Madalena para me amar, O segredo que faz andar o morto e faz o cego ver.

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Mu ri lo Mendes

Deixaste-me de ti somente o escrnio que te deram, Deixaste-me o demnio que te tentou no deserto, Deixaste-me a fraqueza que sentiste no horto, E o eco do teu grande grito de abandono: Por isso serei angustiado e s at a consumao dos meus dias. Por que no me fizeste morrer pelo gldio de Herodes, Ou por que no me fizeste morrer no ventre da minha me? No me liguei ao mundo, nem venci o mundo. J me julguei muito antes do teu julgamento. E j estou salvo porque me deste a poeira por herana. At h pouco tempo atrs no meu pas Ningum sabia que a vida a luta entre classes E eu j era, desde cedo, inconformado e triste. Antes da separao entre os homens Existe a separao entre o homem e Deus. doce te encarar como poeta e amigo, duro te encarar como criador e juiz. Tu me guardas como instrumento de teus desgnios, Tu s o Grande Inquisidor perante mim. Por que me queres vivo? Mata-me desde j. Cria outras almas, outros universos, Sonda-os, explora-os com tua lente enorme. Mas faze cessar um instante o meu suplcio. Prefiro o inferno definitivo dvida provisria. Falaste-me pelos teus profetas e pelo Esprito Santo, Mas a ltima e essencial palavra est contigo. Todas as tuas obras do testemunho de ti, Mas ningum sabe o que tu queres de ns.

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Poemas

( Virgem Maria, levanta-te da estrela da manh E faze o sinal da cruz sobre minha alma golpeada.) Tu tambm no ters teus filhos renegados? Aqueles que criaste e entregaste ao demnio Para satisfazer tua clera e paixo? Deus, tua justia maior que tua misericrdia. Por que me deixaste assim sem abrigo no mundo? Por que me deste passado, presente e futuro? Manda a tempestade de fogo a destruir minha existncia. Estou contigo mesmo e no me queres ter Sou tua herana desde toda a eternidade.

Meu novo olharMeu novo olhar o de quem j sabe Que alegria e ventura no permanecem. Meu novo olhar o de quem desvendou os tempos futuros E viu neles a separao entre os homens, O filho contra o pai, a irm contra o irmo, o esposo contra a esposa, As igrejas dinamitadas, depois reconstrudas com maior fervor; Meu novo olhar o de quem penetra a massa E sabe que, depois de ela ter obtido po e cinema, Guerrear outra vez para no se entediar. Meu novo olhar o de quem observa um casal belo e forte E sabe que, sozinhos, se amam os dois com nojo. Meu novo olhar o de quem lcido v a danarina Que, para conseguir um movimento gracioso da perna, Durante anos sacrificou o resto do seu ser. Meu novo olhar o de quem adivinha na criana

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Mu ri lo Mendes

O futuro doente, o louco, a rf, a perdida. Meu novo olhar o de quem transpe as musas de passagem E no se detm mais nas ancas, nas nucas e nas coxas, Mas se dilata vista da musa bela e serena, A que me conduzir ao amor essencial. Meu novo olhar o de quem assistiu paixo e morte do Amigo. Poeta para toda a eternidade segundo a ordem de Jesus Cristo, E aquele que mudou a direo do meu olhar; o de quem j v se desenrolar sua prpria paixo e morte, Esperando a integrao do seu ser definitivo Sob o olhar fixo e incompreensvel de Deus.

A musaEsts sozinha desde o princpio, Foste imaginada na poca da formao das pedras. Um violento temporal lavou a terra antes que nascesses, E muitas estrelas de perfil se inclinaram sobre teu bero. Atravessas desertos de areia e mares vermelhos Sem que sujes teu corpo, Sem que ningum penetre tua essncia. Os poetas te sacrificam suas amadas retrospectivas, atuais e futuras. Tua cabea triste e serena Recortada num cu de convulses desencadeia o mito: Distribuis ao mesmo tempo consolo e desespero. Aos olhos do homem s acima do sexo como uma deusa, Aos olhos da mulher s masculina como um guerreiro. Anulas o movimento de quem soube te decifrar, E no te perturbas nem ao menos ante a idia de Deus.

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Poemas

EpifaniaEu te procurei tal qual os trs reis magos Que caminhavam atravs de mares e desertos, At que um dia uma estrela enviada por ti mesmo Me trouxe at a tua inefvel presena. No posso te ofertar o ouro, o incenso e a mirra: Ofereo-te a minha alma que tu mesmo criaste, Ofereo-te a minha aridez e o meu pecado. Ilumina agora e sempre todos os que te procuram E todos aqueles que acreditam no teu fim. Angstia e escurido dominam o homem Porque tu ainda no deste a volta ao mundo.

Vocao do poetaNo nasci no comeo deste sculo: Nasci no plano do eterno, Nasci de mil vidas superpostas, Nasci de mil ternuras desdobradas. Vim para conhecer o mal e o bem E para separar o mal do bem. Vim para amar e ser desamado. Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos. No vim para construir minha prpria riqueza Nem para destruir a riqueza dos outros. Vim para reprimir o choro formidvel Que as geraes anteriores me transmitiram. Vim para experimentar dvidas e contradies.

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Mu ri lo Mendes

Vim para sofrer as influncias do tempo E para afirmar o princpio eterno de onde vim. Vim para distribuir inspirao s musas. Vim para anunciar que a voz dos homens Abafar a voz da sirene e da mquina, E que a palavra essencial de Jesus Cristo Dominar as palavras do patro e do operrio. Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco, Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

O poeta e a musaVens da eternidade e voltas para a eternidade. No tens dio. No tens amor. No tens fome nem sede. Tens o ar frio de quem ultrapassou o mundo sensvel e resolve lhe dar um sinal da sua condescendncia. A linha das montanhas, a linha do horizonte e a linha da tua alma se desdobram diante de ti como um anteprojeto da eternidade. Ests desligada da gerao que te trouxe ao mundo. Anulas meu interesse pelo espetculo da existncia. Olhas-me serenamente, passas a mo pelos meus cabelos e me chamas de tua grande criana. Esperas que eu diminua minha humanidade para ficar junto de ti, sem ao, sem impulsos, observando apenas o desenrolar do tempo, o ciclo das estaes, o curso dos astros, as cambiantes da cor do cu e do oceano... Seremos duas esttuas confabulando. Ento os acontecimentos no agiro mais sobre mim. E eu sobrevoarei a vida fsica. E tocarei o esprito da musa.

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Poemaso

Salmo n 1Meu esprito anseia pela vinda da esposa, Meu esprito anseia pela glria da Igreja, Meu esprito anseia pelas npcias eternas Com a musa preparada por mil geraes. Eu hei de me precipitar em Deus como um rio, Porque no me contenho nos limites do mundo. Dai-me po em excesso e eu ficarei triste, Dai-me luxo, riqueza, ficarei mais triste. Para qu resolver o problema da mquina Se minha alma sobrevoa a prpria poesia? S quero repousar na imensidade de Deus.

FiliaoEu sou da raa do Eterno. Fui criado no princpio E desdobrado em muitas geraes Atravs do espao e do tempo. Sinto-me acima das bandeiras, Tropeando em cabeas de chefes. Caminho no mar, na terra e no ar. Eu sou da raa do Eterno, Do amor que unir todos os homens: Vinde a mim, rfos da poesia, Choremos sobre o mundo mutilado.

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Mu ri lo Mendes

O profetaA Dante Milano A Virgem dever gerar o Filho Que seu Pai desde toda a eternidade. A sombra de Deus se alastrar pelas eras futuras. O homem caminhar guiado por uma estrela de fogo. Haver msica para o pobre e aoites para o rico. Os poetas celebraro suas relaes com o Eterno. Muitos mecnicos sentiro nostalgia do Egito. A serpente de asas ser desterrada na lua. A ltima mulher ser igual a Eva. E o Julgador, arrastando na sua marcha as constelaes, Reverter todas as coisas ao seu princpio.

Salmo n 2 Deus meu e de todos, Que tenho feito at hoje no mundo, Seno te invocar para que surjas, Seno me desesperar porque sou p? Dilata minha viso, Dilata poderosamente minha alma, Faze-me referir todas as coisas ao teu centro, Faze-me apreciar formas vis e desprezveis Faze-me amar o que no amo. Tudo o que criaste no universo a diviso de uma vasta unidade Em espaos e pocas diferentes. Liga-me a todas as coisas em ti E ilumina-nos fora do tempo, a todos ns Que esperamos tua divina Parusia.

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Poemas

Futura visoApresentam-me o livro da tua vida Escrito por dentro e por fora: Sou digno de romper os sete selos. Logo na primeira pgina Paro trs anos em xtase Diante da tua fotografia. A lua e o mar adormecem a meus ps. Tudo o que evoco vai nascendo ao gritar o teu nome Berenice! Berenice! E choro muito Porque no existe ningum digno de te olhar. Algum me segura beira do abismo, Contm minha impacincia e me desarma o brao: Deverei assistir ao que se descreve no livro. Ters que parir fisicamente e espiritualmente na desgraa, Bebers o clice da injria e das abominaes, Vestida de prpura sers sentada no trono da solido. Eu devoro o livro, que amarga minhas entranhas. GLORIFICAI-A! GLORIFICAI-A! Esta minha splica de sempre. O Princpio vem sobre as nuvens em fogo E clama para mim e para todo o universo: TUDO SER PERDOADO AOS QUE AMARAM MUITO.

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Poema condenadoEu te respiro por todos os poros: Mulher, ests em todos os lugares. Prefiro me danar a um dia te perder de vista. Teu vestido desdobrado esconde a Cruz. Se este sortilgio acabasse eu me mataria. Tua existncia a justificao do mundo: Para que vale o sol Seno para dar vida matria que te cerca, Para que vale a lua Seno para aumentar tua palidez, Para que valem as flores Seno para serem enfeitadas por ti, Para que valho eu Seno para permanecer teu poeta, Para que vale o paraso Se no estiveres a meu lado?

AntiguidadeQuero voltar para o repouso sem fim, Para o mundo de onde sa pelo pecado, Onde no mais preciso sol nem lua. Quero voltar para a mulher comum Que abriga a todos igualmente, Que tem os olhos vendados e descansa nas guas eternas. Quero voltar para o Princpio Que nivela vida e morte, construo e destruio, Diante do qual no existe lei nem marco.

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Poemas

Quero viver sem cor nem forma, peso ou cheiro, Fora da alegria e da tristeza. Eu sofro a terrvel presso do que existiu, Do que no existiu e do que existir. Eu mesmo aperto os trs crculos do inferno Neste trabalho de escavao do universo Pelo qual me aproximo das origens.

ComeoUma vasta mo me sacudir na manh pura. Talvez eu nasa naquele momento, Eu que venho morrendo desde a criao do mundo, Eu que trago fortssimo comigo O pecado de nossos primeiros pais. O espao e o tempo Ho de se desfazer no vestido da Grande noiva branca. Serei finalmente decifrado, o estrangeiro da vida Descansar pela primeira vez no universo familiar.

O emigranteA Henri Michaux A nuvem andante acolhe o pssaro Que saiu da esttua de pedra. Sou aquela nuvem andante, O pssaro e a esttua de pedra. Recapitulei os fantasmas, Corri de deserto em deserto,

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Me expulsam da sombra do avio. Tenho sede generosa, Nenhuma fonte me basta. Amigo! Irmo! Vou te levar O trigo das terras do Egito, At o trigo que no tenho. Egito! Egito! Amontoei Para dar um dia a outrem: Eis-me nu, vazio e pobre. A sombra frtil de Deus No me larga um s instante. Tirai-me o colar da febre: Eu vos deixo minha sede, Nada mais tenho de meu.

A janela altas constelaes, Nuvem prenhe de fantasmas, Preguiosa onda do mar, Frissima noite, lua! Minhas irms elementares, Tendes mos, ouvidos, boca. Murmurais doces cantigas Que os homens decifraro No rodzio do universo, Entre revoadas de anjos, Quando soarem os clarins Que despertaro os mortos E a alma se reunir Ao corpo que apodrecera.

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Poemas

Minha rfPorque no quis te olhar, ficaste cega. Sei que esperas por mim Desde o tempo em que usavas tranas e brincavas com arco. Sei que esperas por mim, Mas eu no quis te olhar Porque me debrucei sobre o mito de outras, Porque no me sabes dar, pobre amiga, O sofrimento e a angstia que formam a catstrofe. Roxelane, Roxelane: Porque tens olhar morto e cabelos sem brilho, Boca sem frescura e sem expresso, Eu te desdenhei e no ouvi teu apelo, Teu ltimo apelo vindo da solido e da infncia remota. Roxelane, Roxelane: Tua tristeza recair sobre mim, assumirei tua orfandade, Conhecers o gozo e vers desdobrar-se a esperana, Enquanto eu recolherei para sempre A tua, a minha e a misria de outros, Triste e apagada Roxelane, vitoriosa Roxelane.

CanoPara o Oriente do amor Meus sentidos aparelham. Bandeiras azuis, vermelhas, Cruzaram-se no horizonte.

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De onde vem tal embriaguez, Que aurora terei tomado? Vem do fundo de mim mesmo, Vem da minha alma correndo. Minha amada na varanda Arrulha, me faz sinais. Vo com abril nas mos, Para continuar o ciclo De antiga revelao: Aboli as dissonncias, O sentimento renasce Como no incio do mundo.

R.Vens, toda fria do dilvio, com dois peixes na mo. s grande e flexvel, na madrugada acesa pelos arcos voltaicos. Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenos Onde atualmente s se ouvem Cnticos de guerra e pregaes do inferno. Vens, toda fria do dilvio, Semear a discrdia nas choupanas e nos palcios. Vens para minha maldio, para me indicar o abismo Onde ficarei s e triste, sem pianos.

JerusalmJerusalm, Jerusalm, Quantas vezes tentei abrigar no corao Todos os meus anseios para Deus,

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Poemas

Como a ave abriga a ninhada debaixo das asas: E tu no quiseste, mundo, Tu no quiseste, carne, Tu no quiseste, demnio. Jerusalm, Jerusalm, Morro de sede beira da fonte, Morro de fome debaixo da mesa coberta de pes. Em vez de sinos festivos Ouo sirenes de avies. Em vez da santa eucaristia Recebo granadas de mo. Os mitos do mal desencadeados sobre mim Me envolvem sem que eu possa respirar. Jerusalm, Jerusalm, Recolhe meu ltimo sopro.

Idia fortssimaUma idia fortssima entre todas menos uma Habita meu crebro noite e dia, A idia de uma mulher, mais densa que uma forma. Idia que me acompanha De uma a outra lua, De uma a outra caminhada, de uma a outra angstia, Que me arranca do tempo e sobrevoa a histria, Que me separa de mim mesmo, Que me corta em dois como o gldio divino. Uma idia que anula as paisagens exteriores, Que me provoca terror e febre, 209

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Que se antepe pirmide de rfos e miserveis, Uma idia que verruma todos os poros do meu corpo E s no se torna o grande custico Porque um alvio diante da idia muito mais forte e violenta de Deus.

CompanheiraCompanheira, dou-te as sombras que me acompanham, Todas as sombras criadas pelos vivos. Companheira, dou-te a alegria Do que nada tem a esperar do esforo humano. Dou-te a cantiga do asilado. O suspiro do menino que olha em vo O velocpede do menino vizinho. Dou-te a nostalgia de quem soltou papagaio Em pocas muito remotas. Companheira, Dou-te a tristeza do que nada achou na sua primeira comunho. Dou-te o desconsolo do que est sendo destrudo Pelos crimes que no cometeu, Pelos crimes de outros em poca distante.

Os amantes submarinosEsta noite eu te encontro nas solides de coral Onde a fora da vida nos trouxe pela mo. No cume dos redondos lustres em concha Uma danarina se desfolha. Os sonhos da tua infncia Desenrolam-se da boca das sereias.

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Poemas

A grande borboleta verde do fundo do mar Que s nasce de mil em mil anos Adeja em torno a ti para te servir, Apresentando-te o espelho em que a gua se mira, E os finos peixes amarelos e azuis Circulando nos teus cabelos Trazem pronto o lquido para adormecer o escafandrista. Mergulhamos sem pavor Nestas fundas regies onde dorme o veleiro, espera que o irreal no se levante em aurora Sobre nossos corpos que retornam gua do paraso.

Canto amigo 1Eu te direi: poders te libertar do peso da vida, Poders encontrar um amigo no fantasma que te habita, Os homens podero amordaar os tiranos se quiserem se transformar num s. Eu te direi: da prpria franqueza emerge a fora, E muitas vezes a renncia o esquema da vitria. Se conhecesses o dom que vem do alto e que afastas! Por que aumentas o terror que rodeia o teu lar, Por que em vez dos retratos de poetas Que prolongam no tempo a corrente do amor e da fraternidade Suspendes na tua casa fotografias de couraados e de fortalezas volantes? Por que acreditas no julgamento dos chefes transitrios do homem? Por que recusas po e brinquedo s crianas, dando-lhes granadas? Que futuro preparas, homem amigo, para teus descendentes.

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2 meus irmos, eu ando entre vs como o sobrevivente duma cidade arrasada. Ouvi os ltimos acordes do meu canto de perdo e de ternura Antes que os rdios extingam minha palavra com anncios de guerra. meus irmos, eu sou o que no ri, o que no mistifica, Eu sou o que vos deveria odiar e que vos ama, Eu sou o que espera a vitria divina sobre as foras do mal Que agem poderosamente dentro de mim e de vs.

A criao e o criadorO poema obscuro dorme na pedra: Levanta-te, toma essncia, corpo. Imediatamente o poema corre na areia, Sacode os ps onde j nascem asas, Volta coberto com a espuma do oceano. O poema entrando na cidade tentado e socorrido por um demnio, Abraa-se ao busto de Altair, Recebe contrastes do mundo inteiro, Ouve a secreta sinfonia Em combinao com o cu e os peixes. E agora ele quem me persegue Ora branco, ora azul, ora negro, ele quem empunha o chicote

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Poemas

At que o vento da noite O faa voltar domado Ao p de onde proveio.

Quase segredoA velocidade da luz Me protege contra o enigma. Mundo antigo, (rvore de campainhas, Bola azul negra) J conheo teu alfabeto E o que pretendes de mim. Outrora eu tinha ps, Caminhava sobre os pianos, s vezes at sobre a terra. Fiz um buqu de mulheres, Respiro cime traio: Braos e pernas de uma Esto no torso de outra. Quem me conhece Torna-se de repente visvel.

A inicialOs sons transportam o sino: Abro a gaiola do cu, Dei a vida quela nuvem.

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As guas me bebem. As criaes orgnicas Que eu levantei do caos Sobem comigo Sem o suporte da mquina, Deixam este exlio composto De gua, terra, fogo e ar. A inicial da minha amada Surge na blusa do vento. Refiz pensamentos, galeras... Enquanto a tarde pousava O candelabro aos meus ps.

Duas mulheresDuas mulheres na sombra Decifram o alfabeto oculto, Ouvem o contraste das ondas, Falam com os deuses de pedra Danam a roda, murmuram, Decifram o enigma das sombras, Uma triste, outra morena, Ambas so geis e esbeltas, Vestem roupagens de nuvens, Segredam amores eternos, Tocam sbito a corneta Para despertar os peixes.

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Poemas

Duas mulheres na sombra Encarnando lua e rvore Decifram o alfabeto oculto.

Poema presenteO cu pbere e profundo Ajunta nuvens de fogo tendncia dos homens, inquietante: E um pensamento de guerra Anula o que poderia vir Da gua, da rosa, da borboleta. Vergis tranqilos Disfaram espadas. Sombras pedindo corpos Esperam desde o dilvio O sopro de um puro esprito. Separam a luz da luz.

Poema estticoVestir a couraa do cu E caminhar vigilante Mesmo na msica. Ternura, doce rigor, Algum acende meu ombro. At o silncio (cristal) pesa. Confronto-me com o sexo e a sombra. Formas esperam

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Nossa cooperao No campo frtil Da funda morte, Da vida envolvente Sempre a crescer.

Poema da tardeA tarde move-se entre os galhos de minhas mos. Uma estrela aparece no fim deste meu sangue, Minha nuca recebeu o hlito fino de uma rosa branca. Todas as formas servem-se mutuamente, Umas em p, outras se ajoelhando, outras sentadas, Regando o corao e a cabea do homem: E dentre os primeiros vus surge Maria da Saudade Que, sem querer, canta.

Poema antecipadoHarpa de obuses, Sempre um esprito guardio sobra Para desenvolver o germe augusto Que foi criado no princpio, Para no explodir de febre E danar no fogo azul. Terra e cu, jardins suspensos, Em dia remoto sero refeitos. O homem respira a Criao, O corpo todo ver (Antes de nascer eu j via).

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Poemas

A manhNingum sabe se a manh Traz promessa de prazer. Annimas sanfoninas Alternam com sabis. Transformou-se o vento de ontem, Agora sopra sereno. Sai um homem para o trabalho, Saem dois, saem trs, saem mil Pensando na volta. Ontem no havia Aquela roseira em p, E a carcia dagora Desapareceu no ar. Os braos espantam Os restos da noite.

A ceia sinistra 1Sentamo-nos mesa servida por um brao de mar. Eis a hora propiciatria, augusta, A hora de alimentar os fantasmas. ?Quem vem l, montado num trator de cadveres,

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Com uma grande espada para plantar no peito da Rssia. Outros estendem bandeiras de todos os pases, Fazem uma cortina de nvoa que esconde o cavaleiro andante: O homem morre sem ainda saber quem . A morte coletiva apodera-se da morte de cada um. A terra chove suor e sangue, As ondas mugem.

2O tanque comanda o homem. A alma oprimida solua Num ngulo do terror. Alma antiqssima e nova, ?Tua melodia onde est. O pssaro, a fonte, a flauta, A estrela, o gado manso te esperam Para os batizares de novo. Sentados mesa circular Aguardamos o sopro do dia.

3Os mortos perturbaro a festa intil. ?Quem lhes trouxe ternura e presentes em vida. ?Quem lhes inspirou pensamentos e amores castos em vida. ?Quem lhes arrancava das mos a espada e o fuzil em vida. Agora eles no precisam mais de carinho ou de flores. Agora eles esto libertos, vivos, Pisando calmos sobre nossas covas.

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Poemas

Abancados vasta mesa circular Comemos o que roubamos aos mortos conhecidos e annimos.

Cano pesadaA negra pena Comprime a alma, A negra pena Da massa viva De dores cruis, Do amor que punge, Da glria intil, Sutil serpente Que morde o peito, Que enrola o homem, Constringe-o todo, A negra pena Que se alimenta De sangue e fel, Triste cuidado, Lembrana amarga Dos impossveis, A negra pena Sem remisso, Que, morto o homem, Lhe sobrevive Em novas formas, Antiga pena, Futura pena, Eterna pena.

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O espelhoNo surge mais a forma humana. Nem o gesto de se vingar: No se enxerga mais, se ouve! No se mira mais nem o morto Na primeira comunho, Debruado de esplendor, Ou na bicicleta do sol: Mas se ouvem, claras, cristalinas, Campainhas de cristal Despertando a eternidade Que recusa a forma humana Cansada de grito e gesto; Despertando a eternidade.

TentaoDiante do crucifixo Eu paro plido tremendo: J que s o verdadeiro filho de Deus Desprega a humanidade desta cruz.

As lavadeirasAs lavadeiras no tanque noturno No responderam ao canto da sibila. Lavamos os mortos, Lavamos o tabuleiro das idias antigas

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Poemas

E os balastres para repouso do mar... Quem nos desviar do nosso canto obscuro? Nele encontramos restos de galeras, Nele descobrimos o augusto pudor do vento, O balano do corpo do pirata com argolas, Nele promovemos a sede do povo E excitamos a nossa prpria sede... As lavadeiras no tanque branco Lavam o espectro da guerra. Os braos das lavadeiras No abismo noturno Vo e vm.

ChoquesO choque de teus pensamentos furiosos Com a inrcia da boca e dos braos de outros. O choque dos cerimoniais antigos Com a velocidade dos avies de bombardeio. O choque da foice contra o cristal dos milionrios. O choque das roseiras emigrantes Com o silncio das linhas retas nas janelas. A tempestade calcula um choque de distncias Com o lcido farol e seus pressgios. Chocam-se as guias arredando a noite Com o armrio que, inaltervel, rumina. Um ouvido resistente poderia perceber O choque do tempo contra o altar da eternidade. Choca-se a enorme multido sacrificada

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Com o ditador sentado na metralhadora. Choca-se a guilhotina erguida pelo erro dos sculos Com a pomba mirando a liberdade do horizonte.

Homenagem a Raimundo Lulio IA inocncia perguntou crueldade: Por que me persegues? A crueldade respondeu-lhe: E tu, por que te opes a mim?

IIA aveia do campons Queixou-se do cavalo do ditador, Ento o cavalo forte Queixou-se das esporas do ditador.

IIIO pensamento encontrou-se com a eternidade E perguntou-lhe: de onde vens? Se eu soubesse no seria eterna. Para onde vais? Volto para de onde venho. Ento a monarquia do corpo obumbrou-se ainda mais E a morte inclinou seu estandarte.

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Poemas

O tnel do sculo ISob o cu de temor e zinco Os prisioneiros caminham, tambores velados: A manopla da noite pesa Sobre suas omoplatas, seus sonhos comunicantes. As Ernias, segadoras antiqussimas do povo, tambores velados. Caminham, passo a passo, Apresentando armas de dio, punhos implacveis. Toda a carne se oferece ao espanto desnudo, Os castelos de pedra vo se desfazendo medida que os heris agitam a bengala blindada. As Ernias reproduzem-se durante a noite, E pela manh encontramos aberta A rosa dos ventres.

IISob o cu de temor e tremor A esttua da infncia flechada Pelos descendentes dos dolos subterrneos Que consagram a espada danante. Amaldioam o po e o vinho, Rasgando o caderno de roseiras Alfabeto dos pobres migratrios. Cegos digladiando-se num tnel, Constroem as prprias sepulturas. Sob o cu de temor e tremor Os homens clandestinos, tambores velados, caminham. 223

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Motivos de Ouro PretoA Ruben Navarra

1Assombraes que sobem do barroco, Das ladeiras e dos crucifixos esqulidos, Frias portadas de pedra, anjos torcidos, Passantes conduzindo aos ombros o passado, Cemitrios areos de adros largos Onde noturnos seresteiros cantam, Seguindo-se de violas e violes, Aos defuntos colados nas gavetas: A experincia de sombras trasladadas De procisses civis, eclesisticas, Dum antigo tnel de conspirao; A gua escapando pelos chafarizes, As cicatrizes que o minrio abriu; Tantos Passos fechados o ano inteiro, Runas de solares e sobrados Onde pairam espectros de poetas, De padres doidos, de reformadores; Algarismos gravados nas carrancas A presena do tempo traduzindo, O silncio ao silncio se juntando Nesses becos e vielas embuados; A reunio de natureza e arte Por um gnio severo combinadas, O esprito levando sua origem Despojado de efmeros enfeites, 224

Poemas

A ptina paciente de Ouro Preto Sobre aparncias estendendo um vu: Tudo aparelha a mente para a morte, Mas a morte em si mesma, a prpria morte, Privada de artifcio, a morte ch. E contra a disperso das ossadas no tempo, Que o amor forma e a Promessa rejeitam, Da pedra o testemunho antigo se levanta, Poder do Itacolomi e o da Pedra perene.

2O canto alternativo das igrejas Nos leves sinos da levitao Cruzando-se em cerrado contraponto, So Francisco de Assis adverte ao Carmo, So Francisco de Paula matriz do Pilar. Devolve o ar ao ouvido o som das campainhas Dessas humildes mulas pensativas Que parecem voltar da Palestina. E esses pianos dir-se-iam pianolas Tangendo sons remotos, subterrneos, Restos de rodas polcas e mazurcas... Pianos inconfidentes. Cindem o ar seco, poroso, Pancadas pacientes de relgio. Esse vago clarim nos longes do quartel Atende ao ido apelo de outro tempo: Erra insatisfeita nos ares A alma trgica do alferes Joaquim Jos da Silva Xavier. Os amigos chamou, e o eco respondeu... 225

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3A Viva de Ouro Preto sobe a rua cantando, Apoiada ao basto, na cabea um penacho De trs cores, vestido velho e desbotado Cuja invisvel cauda arrasta com desdm. A Viva de Ouro Preto fala em frases cifradas, Pesa em partes iguais o mito e a realidade, O passado e o presente, a alegria e a tristeza, Declara que decide a guerra no estrangeiro, Rico e pobre entretm com igual polidez. A trama da sua vida feita de fantasmas Que s se extinguiro no seu ltimo dia: A Viva de Ouro Preto de grande famlia Que possuiu fazenda, escravos e palcios, Privou com a Imperatriz, refinou-se na Europa. Serviu banquetes em baixelas persas, Depois tudo perdeu, os membros dispersou, Resta Dona Adelaide Mosqueira de Meneses, Vtima da jogatina, a Viva de Ouro Preto Que vive numa toca de espectros rodeada, Que inda tem uma pedra onde apia a cabea... A Viva de Ouro Preto desce a rua rezando.

4Ouro Preto se inclina com elegncia, Ouro Preto se inclina, e um dia cair. Nova tcnica transfigura a terra, Mas os futuros engenheiros e arquitetos No mudaro o corpo de Ouro Preto Que ainda se preserva da reforma Por sua mesma pobreza e solido. 226

Poemas

Ouro Preto para o futuro um dia se voltara, Gerando no seu bojo a nova tradio... Acelerando a histria, a vida deslocou. Mas a lenda combate aqui a histria: Seus espectros e igrejas permanecem Pelo cime da morte resguardados. Aqui o prprio Cristo, o rei da vida, Que se diz Deus dos vivos, no dos mortos, Aqui o mestre da ressurreio contemplado apenas em sua morte: Parece que em sua imensa humanidade Aos espectros o Cristo se aparelha, O seu ar familiar logo assumindo, Abancado no largo das igrejas Com os amigos, extrema assombrao... Aguardando seu prprio julgamento, Sua caridade a todos estendendo, Mesmo a Joaquim Silvrio d o po.

5Repousemos na pedra de Ouro Preto, Repousemos no centro de Ouro Preto: So Francisco de Assis! Igreja ilustre, acolhe, tua sombra irm, meus membros lassos. Confrontamos aqui toda a misria, Da matria o desgaste deduzindo Em nossa vida universal e pessoal. rude tempo de aniquilamento, rude tempo de desproporo! Nem nos transforma a companhia do Anjo

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Mu ri lo Mendes

Que estendido no teto desta igreja, Rumando para a terra, em vo certeiro Despede ao cho a lmpada de prata! Entretanto ele belo! Danarino Do sopro da sade modelado, Asas de larga envergadura tem, E seus panejamentos apresenta Com delicada graa, mas viril. Respira o rosto, mquina rosada, Um mesmo movimento aparelhando A boca, os olhos diurnos e o nariz; Carnal vivncia o busto manifesta, Os cabelos castanhos esparzidos Numa desordenada simetria O ritmo ajudam da composio; Os ps calados de sandlias gregas Formam slida base ao corpo inteiro. Mas no se vale apenas de suas asas: Os braos desenvoltos deslocando O espao em torno, rpido, oferecem Flores, frutos da terra ao povo fiel. Seus ornamentos sbrios sintetizam Do barroco mineiro a austera fora. Assim o esculpiu na traduo humana O escopro genial do Aleijadinho. Mas de que serve o gratuidade do Anjo, Que pode o Anjo ante a angustura do homem E a fora da caveira desarmada Que elevada se v no tapa-vento? Que pode o Anjo ante a manopla imvel, Ante a ptina da morte em Ouro Preto? Kyrie eleison. Memento mori. Kyrie eleison.

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Poemas

Romance de Ouro PretoA Manuel Bandeira Na luz difusa Que funde os planos, Vai nas colinas, Vai nas igrejas, Vai nas lonjuras Se refratando, Na luz difusa Da manh fria Nasce Ouro Preto Congeminando. Nasce inda agora Dos astros frios, Estremunhada Descerra as portas De pedra frias, Desata a bruma Dos dedos brancos, Levanta cruzes No ar macio, Turva da noite, Tonta de espectros, Doida de sono, Mira-se ao espelho Lavado, oval, Da solido. Um gnio fluido No ar poroso Se balanando Despede a lua. Desdobra templos Na luz redonda. Lava ladeiras, Lava os lavabos Das sacristias, Recobre as casas De branco e anil, Tira o capuz Do Itacolomi; Extinto o ouro, Pequena indstria Faz funcionar Ch, pinga e mel , Apruma os pobres Do lgido Asilo, Espanta as moscas Que do leproso Toldam a viso, Governa o reide Circunvolante Dos urubus. No jardim nico Do Carmo ao lado Balana plumas De rvores densas, Apara arbustos, Desfolha dlias,

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Mu ri lo Mendes

Agrupa os goivos, Cruza coroas De crisandlias; A gua limosa Dos chafarizes Rpido ordenha, Desmama riachos, Sutura as torres Na cerrao, D corda aos sinos, Ri paramentos, Ri estandartes, Move estudantes At o Palcio Onde assistia O Governador Mquina cinza De corpo espesso No alto da Praa Bem assentada, Soturno espelho Do gro poder; Sobe ao Museu Que, adrede armado, Graves destroos Da antiga Minas Prenhe, barroca Dura escultura , Torsos de Minas Dependurados, Restos rodos

De Inconfidentes Na cal propcia Recolocados, Sombras vencidas, Sombras severas, Estranho esplio, Solene expe; lulas frgeis De anjos feridos Dos frontispcios Pronto refaz; As malas tange Que dos distritos Descem ao mercado Campainhando, Pule os minrios, Monda as arestas Dos monumentos Azul e rosa, Branco e cinzento; Lumeia os crios L no Pilar, Renova a missa No altar barroco, Propende o Cristo, Suscita a sombra, Suspende o sol. Vila Rica, Trnsito o teu To sossegado!

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Poemas

Nossa Senhora, Nosso Senhor, De ps descalos, De braos dados, Tristes, felizes, Tristes, calados, Pelas ladeiras Recuando a morte, Pelas caladas, De dia, de noite Correndo vo. tu, musical Terra no s, Curva Ouro Preto, Plstica sim! Dssonos pianos Deslocam o eco Mas os teus sinos Das tuas manhs: Enoch e Elias, Ivo e Luqusio, Roque e Raquel Sobem do Carmo, De So Francisco. Sonoros sagram, Bentos batizam Tua atmosfera Com igual fervor, Dobram com fora Por todos ns, Das runas do ar

Levando aos Trs Ventos de amor Novas novenas E ladainhas, Teus Kyrie eleison Santos amm. Tu, Vila Rica De forte exemplo, Ei, Ouro Preto! O ouro leproso, Amaldioado, Da luz do inferno, Do mal do inferno Contaminado, Te desgraou. Que havias feito Pra te mandarem Praga tamanha, Virgem do cu?... Tu, Vila Rica Do ouro gerada, Desde teu bero Ouro mamando, Desde menina. J castigada Forrada de ouro, Fecunda um tempo, Logo faminta, Depressa estril , Estrela obnxia

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Vinda de Oblvio, Luz de pressgios Na cauda de ouro Morna arrastando, Ai! te obumbrou. Maior na morte Que no esplendor, Espectro enxuto De olho de pedra Que absurdo adoro Tanto que aguardo, Roxo, tremendo, ltimos fins, Tuas colunas To inspiradas, Curvas e rampas Ao pensamento Rude inclinando, Nobres portadas, Ptina cinza, Muros de canga E anjos ambguos, Anjos oblquos, Anjos oblongos, Torres torcidas, Torres chuvosas, Olho-de-boi Lentos absorvem Tua agonia Logo cercada De fogos-ftuos,

Almas penadas Com vus de vivas Que pelas vielas E pelas pontes Sutis deslisam E entre ais e uivos Perdidos vo: Triste Ouro Preto A quem a cinza, O tempo e o mito Servem de po. Mortos teus dentes, Teu ouro extinto Virou esterco , Abandonados Os teus pendes, Podres os bosques Das sesmarias, Paos queimados (Nos mornos morros Correm manadas De assombraes), Mantos rodos, Trompas sem boca Que te acordavam, Prismas partidos, Morta a euforia, Toda a ambio: Vive tua plstica Na forma esttica.

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S para a morte Guardaste a luz, Tu, Ouro Preto, Dama de pedra, Demente lcida Dobras a morte Com teu palor , Tu, Ouro Preto, Que outrora foste E agora inda s. De qualquer ngulo Tu sempre s bela! De qualquer ngulo Ao olho amante Sempre s igual. Perto, distante, Quer vista sejas Na luz redonda, No prisma azul, Na trovoada, Na refrao, chuva espessa, Ao sol friorento, Ao sol violento, Ao luar das Lages, Na cerrao, Vista de frente, Vista dos fundos, L das Cabeas, L do Rosrio,

Do Grande Hotel, Do Alto da Cruz Que Chico Rei Danando o congo Fez levantar, Glria a Jesus; De So Francisco de Paula A massa branca, macia, Sempre de frente, De qualquer ponto Se mostra luz. Bela Ouro Preto Vinda do caos, Tua unidade Tcito acordo Entre homem e Deus No entrosamento De forma e fundo Subido exemplo Com teu engenho Se resolveu. Vi quantas belas Adormecidas Nessas varandas Desguarnecidas, Pelo nevoeiro Logo veladas: Vaga Marlia, Doce Ifignia Zfiro brando

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Que do Brasil Foste noivada, Nise saudosa, Glaura de seda, Brbara msera Do norte estrela Que teu destino Mal sabes guiar, Clara Constana De negras tranas Breve rodas Na escurido... Musas oclusas, Tristes, hericas, Tontas, alegres, Santas, vadias, Musas obscuras De igual valor, Quantas Marias Trabalhadeiras, Requebradeiras, Doidas de amor, Belas doceiras, costureiras, lavadeiras, Corpos em flor Que a minha lira Pulsa, suspira Do tempo cado Quer suscitar, Finos fantasmas

Que a nvoa filtra, Adormecidos Nas ljeas frias, Em balces frios, Finos fantasmas Frios da noite, Frescos do orvalho, Brancos da morte, Puros do luar... Nas tuas naves Limpas, lavadas, Qual cu de Minas Aps trovoada, Nas tuas naves Claras, azuis, Abrindo os braos, Fechando os olhos, Cinzas tomei, Bblico eu fui. Nas tuas ljeas Verde-cinzentas, Desconsolado Moendo o mundo, Roucos soluos Triste abafando, Me prosternei; Dos teus santeiros Tortos, annimos, Nos oratrios O gnio rstico,

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Crispado, spero, Interpretei; E ante os teus santos sseos, cavados, Escalavrados, Desencarnados Pela orao, Que pedem graas Do alto do nicho Em vez de as dar Mseros so , Fiz a exegese, Dei o balano Da nossa lepra, Nossa paixo. Do Aleijadinho Pernas de pedra, Tronco de igreja, Testa de morro Da Minas bblica Que a Santa Brbara, Gr domadora Da trovoada, Se consagrou, Do Aleijadinho, Macho escapado Ao prprio escopro, Sua obra inteira auto-retrato De corpo inteiro

Revelador , Do Aleijadinho Severo ancestre Mal-encarado, Encapuzado No seu furor, Alma barroca, Fundos refolhos De obscura raiva Guardando em si, Na dura entranha De penha humana Com fortes peitos Gerado luz, Do Aleijadinho Sbria lio Suma piedade Rgida, austera, Na bruta Bblia Cedo assentada, De um mundo novo Mantido em pedra Consolidada Na criao, Do Aleijadinho Fora fogosa, Gr-liberdade Na disciplina Do Antigo amor Movendo os dedos, Movendo o engenho

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Com seu vigor, Fora madura, Fundamental, Que alma imprime Imperecvel, Sempre impassvel, Grave postura, Nobre feio, Do Aleijadinho Simplicidade Dentro do excesso, Transbordamento No sem rigor, Conselho altivo Que vence a morte, Nutrido a sangue, Na chaga inscrito, Rasgado a escopro Transverte a dor , Do Aleijadinho Que transfixado No seu grabato, Contempla o Cristo Com febre e amor, Do Aleijadinho Sopro do eterno Rolando em Minas, Gravado em pedra, No pau esculpido, Firme palpei. Tuas velhinhas

Mal-assombradas Quase que amei, Teus seresteiros Ao luar propcio Perambulando, Cismando ouvi Cantam Dalilas, Dizem de dlias, Bordam perptuas, Choram saudades, Longos degredos, Penas de amor; E de teus bbedos De noite e dia A lengalenga, Ladeira abaixo, Ladeira acima, Ainda ajudei; E de tuas bruxas, Teus monsenhores, Teus sacristes, Lendas, parlendas Mole girando, Reconstituindo Tempos soberbos, Quentes distrbios Nos arraiais, Alumbramentos Do ouro gerados, Supersties, Cruzar de espadas, Punhos suspensos,

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Membros candentes, Conspiraes Cedo morrendo, Vem, liberdade, Ainda que tarde , Uivos de dor, Poetas tangidos Para o degredo, Secos de amor; Do Tiradentes Rubra cabea Logo tornada Constelao, Excelncias, Reverncias, Bailes, fanfarras, Clares, clarins, luminrias, lumarus, Bruscos archotes Queimando o cu, procisses Pags, festivas, Entrelaando Virgens e Vnus, Paulo e Pluto, serenatas, cavalhadas, Ricos senhores Em coches de ouro Vindos de longe,

L do Tijuco, De Gongo Soco, Cavalos picos Se esperdiando, Longos delrios, Damas possessas, Descabeladas, Girogirando Pelas estradas, Lanando fbulas Filhas do ouro, De ureo claro; E ouro rodando Pelas caladas, Nas capistranas, Templos crescendo Com ouro e f, Negras escravas Bamboleando, Cobrindo as testas Com ouro em p: Tudo isto agora Quero evocar. Tempo danado De assombrao, s filho do ouro Com a maldio. Tu, Vila Rica, Auto-espantalho Que nada assusta, O prprio Co

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Montando a Morte Quer te assombrar, Que tu refugas No ventre fundo Dos teus minrios, L nas profundas Da noite oclusa, Cruz-credo, amm. Na luz difusa Que se arredonda E se refrata Nos planos frios, Trs sinos sobem Lentas ladeiras, Dobram a defunto, Declina o dia. Deus nos assista Com sua alegria, Deus nos liberte, Ave, Maria. Musa, te rogo, Despede o manto, Grossa estamenha Pronto reveste, Ouve em silncio Desta cantiga Desconjuntada O som final: Nobre Ouro Preto Talhada a escopro,

Gele-me o corpo Se te esquecer, Seque-me a lngua Se te maldar; Nesta retina Cedo alumbrada, Desconsolada, Tua luz difusa No amor filtrada Quero guardar Imagem de outra Mais alta luz ; Roupas no rasgo Tradio morta, Disse Jesus Mas breve rasgo Rito profundo, Viva orao Diante do altar Que aos Trs consagra Nossa oblao, A Cruz mirando Que altera o mundo, Sagrado lenho, De Deus dossel, Mas breve rasgo Depois de aberto, De escalpelado, Contrito, amargo, Descompassado, Mina de males

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Que no se extingue, Tosca oferenda Que a luz severa Dos teus santeiros Inconformados Reflete inteira Nesta angustura, Mas breve rasgo Meu corao.

Poema pessoalLevanto-me da carruagem de paixes e plumas Aparentemente guiada pelas irms Bront. Deu uma tristeza agora nos telhados... As cigarras sublinham a tarde emparedada, O trovo fechou o piano. Surge antecipadamente o arco-ris, Aliana temporria de Deus com o homem, Sem a solidez da eucaristia: Surge sobre encarcerados, rfos, marginais, Sobre os tristes e os sem-soluo. Dos quatro cantos de mim mesmo Irrompe um Dedo terribilssimo que me acusa Porque sem os olhar deixo de lado Os restos agonizantes do mundo. Transformou-se agora o cu. Cu patinado, que escureza.

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Cu sempre futuro e amargo, Como so fundamentais Estes sofrimentos de segundo plano! Mais o qu mesmo lembrar? Ah sim esta arrastada caranguejola da vida...

O quarto da infnciaQuem canta? Ningum mais canta. Seria preciso cantar para o morto na sua cova, Para o vivo na sua cova. Seria preciso estender Braadas de canes ao rfo espiritual. E at mesmo as estrelas pedem consolo, Todos pedem consolo. Quantos olhos desabitados, Antigas runas que nenhum peregrino visita; Quantas mos cobertas de hera Antecipando a paz definitiva. Quanto seio que no foi acariciado, Quantos ps caminhando sem conscincia Da passagem de um Deus pelos mesmos caminhos. Trocamos o que no se pode trocar, Abandonamos o reflexo do fogo, O eco de uma perdida gavota E o gesto de ns meninos no espelho do soalho. Trocamos a vela do barco solitrio E a inscrio na pedra de madressilvas Pela moeda concreta do demnio, Pelo demnio mesmo.

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A peregrinaoInveste-me o pavor do tempo restitudo noite antes do Senhor, clera fria, Ao desespero que contorna a cruz. Minha alma cai do cavalo, parte de novo a galope, Mas na curva do caminho enfrento os espantalhos Do passado, do provisrio e do futuro relmpagos embuados no horizonte. Em Antioquia, em Bizncio e Ouro Preto me achei, Levado pelo passo de animais familiares Com asas e olhos plantados ao redor do corpo. Volto as costas ao cemitrio dos antepassados, E, palpando a trilha vermelha de Pentecostes, Bato furiosamente porta de Simo Pedro Que prometeu me ressuscitar dos mortos, E que um dia havemos de julgar os anjos. Assimilo sem cerimnia o prprio Criador Escondido sob o fantasma do po e do vinho. Desde antes do comeo da era atmica Espero sem pacincia o fim do mundo Em novas formas de ressurreio. Acaba logo, mundo; Cristo, vem depressa.

Pssaros noturnosPssaros noturnos: Ao longe balanam o canto obscuro Pois nas grutas profundas se encolheram

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E nos macios de rvores. Pela noite seu canto oblquo Na soledade do silncio Configura-os a bichos desconhecidos, So provisoriamente outros bichos Nascidos sem lei nem forma Do intocado abismo e da folhagem. Pssaros fantasmas, Pssaros noturnos Anunciadores de uma vida livre Cujo segredo ao nosso ouvido escapa, Uma vida de ignota relao.

IndicaoSim: o abismo oval atrai meus ps. Leopardo familiar, a manh se aproxima. Preciso conhecer em que universo estou E a que translaes de estrelas me destinam. Em trs pocas me observo sustentado: Na pr-histria, no presente e no futuro. Trago sempre comigo uma morte de bolso. Assalta-me continuamente o novo enigma E uma audcia imprevista me pressinto. Arrasto minha cruz aos solavancos, Tal profunda mulher amada e odiada, Sabendo que ela condiciona minha forma: E o tempo do demnio me respira. Gentilssima dama eternidade

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Escondida nas razes do meu ser, Campo de concentrao onde se dana, Beatitude cortada de fuzilamentos... Retiram-me o vu que sei de mim. Ontem sou, hoje serei, amanh fui.

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