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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA EST INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO IEPG PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA ANTONIO PATATIVA DE SALES A filosofia/teologia moral de Santo Agostinho Dos antecedentes gregos à apropriação e interiorização do elemento cristão e sua recepção no Brasil colonial (1500-1808) São Leopoldo 2010

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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA – EST

INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO – IEPG

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA

ANTONIO PATATIVA DE SALES

A filosofia/teologia moral de Santo Agostinho Dos antecedentes gregos à apropriação e interiorização do elemento cristão e sua

recepção no Brasil colonial (1500-1808)

São Leopoldo

2010

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ANTONIO PATATIVA DE SALES

A filosofia/teologia moral de Santo Agostinho Dos antecedentes gregos à apropriação e interiorização do elemento cristão e sua

recepção no Brasil colonial (1500-1808)

Tese de Doutorado

Para obtenção do grau de Doutor em Teologia

Escola Superior de Teologia

Instituto Ecumênico de Pós-Graduação

Área de concentração: Filosofia da Religião

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Willy Rieth

São Leopoldo – RS

Março de 2010

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha elaborada pela Biblioteca da EST

S163f Sales, Antonio Patativa de

A filosofia/teologia moral de Santo Agostinho: dos

antecedentes gregos à apropriação e interiorização do

elemento cristão e sua recepção no Brasil colonial (1500-

1808) / Antonio Patativa de Sales; orientador Ricardo W.

Rieth. – São Leopoldo: EST/PPG, 2009.

296 f.

Tese (doutorado) – Escola Superior de Teologia.

Programa de Pós-Graduação. Doutorado em Teologia. São

Leopoldo, 2009.

1. Agostinho, Santo Bispo de Hipona, 354 - 430 – Ética.

2. Ética cristã – História. 3. História eclesiástica –Brasil. I.

Rieth, Ricardo Willy. II. Título.

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Agradecimentos

Aos amigos e professores da Escola Superior de Teologia,

pelas conversas boas e por esse tempo bom, de aprendizado e alegria;

Ao amigo, mestre e orientador, professor Dr. Ricardo Willy Rieth,

pela confiança, pela paciência e pela lucidez;

Aos professores Dr. Luis Alberto De Boni e Dr. Marcos Roberto Nunes Costa,

amigos de outras empreitadas, e que aceitaram fazer parte de mais essa;

Aos professores Dr. Wilhelm Wachholz e Dr. Flávio Schmitt,

pessoas queridas que chegaram depois, trazendo garrafas de alegria;

Ao pessoal da CAPES,

pelo apoio financeiro, sem o qual a nossa pesquisa não seria somente inviável, mas

também impossível.

A todos vocês, meu sincero muito obrigado!

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Resumo

Trata-se de uma análise da filosofia/teologia moral de Agostinho de Hipona,

contemplando três momentos distintos: aquele que o precede (da moral dos gregos e estóicos,

principalmente); o que ele mesmo é artífice, partindo de duas fontes que lhe são caras: fides et

ratio e, por fim, o momento que pergunta sobre o resultado disso tudo em nossa própria

cultura, nossa formação ético-cultural. Imago Dei, o homem é ser moral, ético, político. É ser

da fala (da palavra), da ação intelectiva e da resposta essencial que reverbera em seu interior,

fazendo-o crer e compreender que não pode e nem deve viver somente para si, mas também

para o Outro e, se tem fé, para o seu Deus. Toda a moral precedente, a dos gregos e dos

estóicos, não contemplava esse elemento de interioridade e nem essa via relacional que, em

Agostinho, será marcante e decisiva no pensar a vida, viver a fé, ser/estar no mundo. É, sem

dúvida, uma nova direção que se dá às investigações sobre a moral. É assim, sobre esse lastro

histórico-filosófico, que abordaremos a história da formação moral e cultural do povo

brasileiro, com rigor investigativo, averiguando criteriosamente o que, nesse particular, e de

modo documentado, há de revelador na resumida produção literário-brasileira do período

colonial (1500-1808). Por meio de tais obras, naquilo que, de algum modo, se ligam à obra de

Agostinho – que prioriza a ação à especulação, e essa em confronto com outras práticas e

outros saberes –, a nossa memória histórica pode tornar-se uma via libertadora.

Palavras-chave: Filosofia Medieval, Filosofia Patrística, Hermenêutica, Ética, Moral,

História brasileira.

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Abstract

This is an analysis of the philosophy/moral theology of Augustine of Hippo, consisting of

three distinct stages: one that precedes the said philosophy (especially the morality of the

Greeks and Stoics); what he is as an author, from two rich sources that are: fides et ratio, and

finally, the moment that questions the outcome of all this in relation to our own culture, our

ethical and cultural training. Imago Dei, the man is a moral, ethical, political being. Man is

also a being of speech (and thus of word), of intellectual action and essential response that

reverberates inside, making him believe and understand that one can not and should not live

only for themselves but also for the Others and, if you have faith, for your God. Any moral

precedent, of the Greeks and the Stoics did not include this element of inwardness and not by

this relational way, in Augustine, it is striking and decisive thinking about life, living the

faith, and being in the world. It is, without a doubt, a new direction for the research on

moral. Thus, I will cover, on this historical-philosophical ballast, the history of the cultural

and moral formation of the Brazilian people, with investigative rigor, checking carefully what,

in particular case, and in a documentation sense, is uncovered in the short Brazilian colonial

period literary production (1500-1808). Through such works, that, somehow, connect to the

work of Augustine - that prioritizes actions up until to speculation, and that in comparison

with other practices and other knowledge - our historical memory can become a mean of

liberation.

Keywords: Medieval Philosophy, Patristic Philosophy, Hermeneutics, Ethics, Morals,

History of Brazil.

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Lista de abreviaturas

Obras de Santo Agostinho

Conf. Confissões (397-401)

Cont. acad. Contra os acadêmicos (386)

Cont. Iul. Contra Juliano (421-22)

De an. et or. A Alma e sua origem (419-21)

De beat. vit. Diálogo sobre a felicidade (386)

De bono conj. O bem do matrimônio (400-01)

De cat. rud. A instrução dos catecúmenos (405)

De civ. Dei A cidade de Deus (413-27)

De cura pro mort. ger. O cuidado devido aos mortos (?421/2-23)

De doc. christ. A doutrina cristã (396-426)

De fide et symb. A fé e o símbolo(393)

De gen. ad lit. O Gênesis ao pé da letra (401-414)

De grat. Christ. et pecc. orig. A natureza da graça e o pecado original (418)

De grat. et lib. arb. A graça e o livre-arbítrio (426-27)

De lib. arb. O livre-arbítrio (Livro I, 388; Livros II e III, 391-95)

De mag. O Mestre (389)

De mor. Ecc. Cath. Os costumes da Igreja Católica (388)

De mus. A música (387)

De nat. boni A natureza do bem (399)

De nat. et grat. A graça (ou A natureza da graça) (413-15)

De ord. A ordem (386)

De quant. an. Sobre a potencialidade da alma (388)

De sanc. virg. A santa virgindade (401)

De serm. Dom. O sermão da montanha (394)

De spir. et litt. Sobre o espírito e a Letra (412)

De Trin. A Trindade (399-419)

De vera rel. A verdadeira religião (389-91)

Enn. in Ps. Comentário aos Salmos (392-420)

Ep. Carta 130 a Proba (c. 411-12)

Epist. Cartas

Regra Regula ad servos Dei (388)

Ret. Retratações (426-27)

Serm. Sermões

Sol. Solilóquios (386)

Trat. in Epist. Joan. Comentário à primeira epístola de São João (?408/414-7)

Coleções e obras dos autores clássicos mais citados

A Diog. Carta a Dioneto (Anônimo)

Ad remp. Ad Remplubicam (Horácio)

Adv. Haer. Adversus Haereses (Irineu de Lião)

ARA Bíblia (Edição Almeida Revista e Atualizada)

Aut. A Autólico (Teófilo)

B.A. Bibliothèque augustinienne

BAC Biblioteca de Autores Cristãos (VV.AA)

Ban. O banquete (Platão)

BJ Bíblia de Jerusalém

Comm. in Mt. Fragmenta ex commentariis in Mt. (Orígenes)

Comp. theol. Compêndio de teologia (Tomás de Aquino)

Cont. Symm. Contra Symmaque (Prudêncio)

CPG Patristic Greek Lexicon (VV.AA)

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De cath. Eccl. unit. De catholicae ecclesiae unitate (Cipriano de Cartago)

De cong. erud. grat. De congressu quaerendae eruditionis gratia (Fílon de Alexandria)

De cons. phil. As consolações da filosofia (Boécio)

De fide A fé (Ambrósio de Milão)

De inst. orat. De institutione oratória (Quintiliano)

De nat. Acerca da Nascividade (Parmênides)

De resp. A república (Cícero)

De Trin. Tratado da Trindade (Boécio)

De vit. bea. A vida feliz (Sêneca)

Didasc. Didascálion (Hugo de São Vítor)

Disc. met. Discurso do método (Descartes)

ECA Bíblia (Edição Contemporânea de Almeida)

En. Enéadas (Plotino)

Epist. Cartas (Ambrósio de Milão)

Et. Nic. Ética a Nicômaco (Aristóteles)

Fed. Fédon (Platão)

Fedr. Fedro (Platão)

Gorg. Gógias (Platão)

Hexa. The Hexaemeron (Basílio de Cesaréia)

Hier. cel. A hierarquia celeste (Dionísio, Pseudo-areopagita)

Hist. Ecl. História eclesiástica (Eusébio de Cesaréia)

Hom. Homilia sobre Lucas 12; Homilias sobre a origem do homem (Basílio

de Cesaréia)

Hort. Hortênsio (Cícero)

Inst. rel. christ. Institutas da religião cristã (Calvino)

Itin. ment. in Deum Itinerário da mente para Deus (São Boaventura)

Kat. hel., Contra os pagãos (Atanásio de Atenas)

Log. perí tês enan. A encarnação do Verbo (Santo Atanásio)

Med. met. Meditações metafísicas (Descartes)

Men. Mênon (Platão)

Met. Metafísica (Aristóteles)

Nom. div. Os nomes divinos (Dionísio, Pseudo-areopagita)

NVI Bíblia (Nova Versão Internacional)

OSel. Obras selecionadas (de Martinho Lutero)

Ped. O Pedagogo (Clemente de Alexandria)

Pens. Pensamentos (Pascal)

PG Patrologia Graeca (VV.AA)

PL Patrologia Latina (VV.AA)

PLS Patrologia Latina Supplementum (VV.AA)

Pol. A política (Aristóteles)

Prosl. Proslógium (Anselmo da Cantuária)

Prot. Protreptique (Clemente de Alexandria)

Rep. A República (Platão)

Strom. Stromate I e II (Clemente de Alexandria)

Sum. Theol. Suma teológica (Tomás de Aquino)

Teet. Teeteto (Platão)

Tim. Timeu (Platão)

Trif. loud. dial. Diálogo com Trifão (Justino de Roma)

Tusc. Tusculanae (Cícero)

Vita Aug. Vida de Santo Agostinho (São Possídio)

VV.AA. Vários Autores

WA Obra completa de Matinho Lutero, edição de Weimar

* No texto, quando uma citação de qualquer obra estrangeira não for creditada ao seu primeiro tradutor em

língua portuguesa, a tradução é nossa. Nas citações dos diversos autores, não se corrigiu o português, etc., por

respeito ao tempo e à grafia original – exceção feita aos textos traduzidos.

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Sumário

Resumo ......................................................................................................................................................... III

Abstract ......................................................................................................................................................... IV

Lista de abreviaturas ...................................................................................................................................... V

Introdução .................................................................................................................................................. 09

1. Fundamentação histórica de uma moral na filosofia/teologia de Agostinho de Hipona ...................19

1.1. A ação moral e a norma da fé .................................................................................................... 23

1.2. Eu, o mundo, o Outro: da necessidade de uma Verdade à moral normativa ............................. 28

1.3. Memoria, intellectus et voluntas ................................................................................................ 55

1.4. Hermenêutica e exegese em Agostinho ...................................................................................... 65

1.5. Alegoria, linguagem, signo, significado e transcendência .......................................................... 77

2. A direção dos costumes .......................................................................................................................... 88

2.1. A teologia moral de Agostinho no De sermone Domini in monte .............................................. 88

2.1.1. A vida ativa: a ação da fé ......................................................................................... 94

2.1.2. A vida contemplativa: a fé da ação ........................................................................ 104

2.1.3. O sermão da montanha: código ético do Reino? ................................................... 119

2.2. A teologia moral de Agostinho no Livro XV da De civitate Dei ............................................. 123

2.2.1. Viver na cidade, viver a cidade .............................................................................. 127

2.2.2. A dupla cidadania dos santos: o dilema moral par excellence ...............................133

2.2.3. A proeminência da Civitas celeste ......................................................................... 146

2.2.4. “A medida de amar é amar sem medidas”: o duplo repouso do peregrino .............154

3. A recepção da moral agostiniana no Brasil, de 1500 a 1808 ............................................................. 161

3.1. Cultura e cultura cristã: literatura e transmissão de idéias ........................................................ 161

3.1.1. Cultura e cultura cristã: helenismo e cristianismo, ou cristianismo helenizado .... 166

3.1.2. Cultura e cultura cristã: a “posse do livro” como dilema moral ............................ 169

3.1.3. Cultura e cultura cristã: o Novo Mundo ................................................................ 172

3.1.4. Cultura e cultura cristã: raízes das nossas raízes ................................................... 175

3.1.5. Cultura e cultura cristã: “Ele está no meio de vós” ............................................... 181

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3.1.6. Cultura e cultura cristã: história e método ............................................................. 187

3.2. Trazer o paraíso à terra: ensino, catequese e “catolicismo guerreiro” ...................................... 189

3.3. Renascimento, Esclarecimento e agostinismo: herança brasileira ............................................ 199

3.3.1. Novos olhares: este mundo tão novo e sua moral tão antiga ................................. 200

3.3.2. Novas perspectivas: mortes e ressurreições de fantasmas ..................................... 205

3.4. O lugar de Agostinho na teologia moral dos Jesuítas e dos Reformadores .............. 208

3.4.1. Um modelo protestante para o Novo Mundo: Lutero e Calvino, leitores

de Agostinho .............................................................................................. 218

3.4.2. A moral dos santos: afirmações e mortes de modelos ................................ 230

3.5. O espelho lusitano: Agostinho e os autos vicentinos ................................................ 234

3.6. A escola vicentina e os autos de Anchieta ................................................................ 242

3.7. A questão dos escravos: “Sem os quais no Brasil não se pode passar” .................... 248

3.8. A doutrina moral agostiniana e a doutrina da phýsei doulós ................................... 255

3.9. Primeiras obras traduzidas, iconografia e popularidade de Agostinho no Brasil ..... 274

3.9.1. Iconografia agostiniana e lugares nomeados à sua memória ...................... 277

3.9.2. O que os livros não dizem, e o que se diz à boca miúda ............................. 279

3.9.3. Santo Agostinho: um popular santo impopular .......................................... 282

Conclusão ................................................................................................................................................... 284

Referências ................................................................................................................................................ 289

Coleções clássicas de Patrologias .................................................................................................... 289

Obras de Agostinho de Hipona ........................................................................................................ 289

Obras de autores antigos e clássicos ................................................................................................ 290

Obras de comentadores de Agostinho .............................................................................................. 293

Documentos históricos e obras histórico-documentais .................................................................... 298

Demais autores e obras de apoio ...................................................................................................... 304

Textos na/da internet ........................................................................................................................ 313

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Introdução

Viver é tomar partido. Tomar partido é assumir posições morais, sejam elas

autônomas (antimetafísicas) ou fundamentadas em princípios normativos, religiosos. O

pensamento que leva à ação moral, se olhamos para trás, aparece muito cedo na filosofia

ocidental – destacada assim em relação ao Oriente, pelo seu rigor metodológico, sistemático,

racional. Essa ação moral, por um ou outro viés, tem relação estreita com a noção de verdade

em seu sentido mais pleno, ou com a sua possibilidade. Em Sócrates, por exemplo, a verdade,

por sua própria natureza, é filha do pensamento dialético. Ela, diz Ernest Cassirer (1874-

1945), não é uma coisa, mas o produto de um ato/ação social/coletiva, e não pode ser obtida

senão através de uma cooperação constante dos homens, numa interrogação e resposta

recíprocas: diálogo1. “Daí a idéia de maiêutica, celebrada por Platão no Teeteto. Daí também a

importância da pólis e da ágora. Afinal de contas”, diz Ivan Domingues, “as coisas não falam

e nada nos podem ensinar. Só os homens...2” A inquietude que impulsiona o homem ao saber

e ao progresso do saber, e isso através dele, tem sua sede na relação com o Outro e, antes de

tudo, consigo mesmo. A pergunta socrática: “O que é o homem?”, é uma pergunta indireta,

como só assim pode ser. O homem, ele vai dizendo aos poucos, é um ser que busca

constantemente por si mesmo, numa inquietude forçada por seu incansável dáimon que lhe

força a examinar e avaliar sua existência e as condições da mesma. Nisso está toda a

importância de sua consciência (psyché), que age como princípio diretor e elemento introdutor

da differentia specifica entre o Eu pensante e as bestas selvagens, impulsivas, instintivas

1 Cf. CASSIRER, E. Essai sur l’homme. Paris: Les Editions Minuit, 1975. p. 18-9.

2 DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas. 2.

ed. São Paulo: Loyola, 1991. p. 20. (Col. Filosofia, 18).

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meramente. Elas não são, simplesmente vivem, existem. “Uma vida não examinada”, é

máxima conhecida de Sócrates, “não é digna de ser vivida”; pois que tal vida se assemelha

àquela vida que têm as bestas, sem a psyché, sem aquela differentia. E é aqui que reside todo

o peso de outra máxima adotada pelo filósofo: “Conhece-te a ti mesmo”. Aí se traduz

essencialmente o conteúdo moral do pensamento socrático, denotando o agir dessa

consciência do Eu com o Outro, no mundo, por fim: relações3. Com os estóicos, depois, esse

“princípio diretor” socrático – que ele descobre no mundo dos homens: a alma –, juntamente

com o ideal de equilíbrio e de harmonia, ultrapassará a esfera da moral e da política, e se

estenderá ao universo inteiro: o lógos universal. No lugar de tal lógos, a Patrística falará de

um cogito cum Deo, que fará se co-fundir com o Cristo antes do Cristo, pré-encarnado na

razão interior – como Justino, o Mártir (morto em 165) e Clemente de Alexandria (c. 150-?)

tão bem souberam nomeá-lo4. Nesse novo tempo da história, o “conhece-te a ti mesmo”

reclama um olhar para aquilo que os homens de todos os lugares têm e que mais lhes

caracteriza: a razão, o tribunal interior. De fato, e com os estóicos, de quem os Padres herdam

boa parte dessa doutrina, essa universalidade do “conhece-te a ti mesmo” ganha força numa

direção metafíco-universal. “A necessidade de interrogar aparece então, no estoicismo assim

como em Sócrates”, diz Cassirer, “como o privilégio do homem e seu dever essencial. Mas

este dever é agora tomado num sentido mais amplo; sua significação não é mais somente

3 “Platão estende a moral socrática à sociedade e subordina a política à ética, em busca de um solo onde fundar a

ação política em bases seguras e racionais, para além do terreno movediço da dóxa e da fluidez do devir. Este

solo é a consciência – fonte comum da moral e da política. [...] Da mesma forma Aristóteles que, a despeito de

assimilar a política a uma espécie de téchne, faz da arte de governar a extensão da ética (qual é a melhor forma

de governo?, pergunta), e da pólis o lugar por excelência de realização do „sujeito moral‟ (comunidade de obras

para os homens viverem bem e felizes – dizia). A excelência do lugar é tanto mais nobre que é a nível da esfera

pública da pólis que o homem – a mais divina das criaturas – pode livrar-se do peso das necessidades da vida e

enfim tornar-se „homem‟ (zôom politikón), adquirindo uma sorte de imortalidade através das atividades públicas

e de praticas virtuosas baseadas em valores eternos, como a justiça, a temperança, o bem comum etc. e tanto

mais desejável que confere a cada indivíduo aquela paz interior, a harmonia graças à qual ele se torna semelhante

aos deuses e encontra em si mesmo equilíbrio à imagem das belas proporções do cosmos” (DOMINGUES, 1991,

p. 21-2). 4 “Temos aprendido que Cristo é o primogênito de Deus, o qual, como temos indicado, é o Logos, do qual todo o

gênero humano tem participado. Assim, todos os que têm vivido conforme o Logos são cristãos, mesmo quando

foram tidos como atéus, como sucedeu com Sócrates, Heráclito e outros semelhantes entre os gregos”.

(JUSTINO, 1 Apologia, 46). “Antes da vinda do Senhor, a filosofia era necessária aos gregos para a justiça;

agora, em vinda, é útil para conduzir as almas ao culto de Deus, pois se constitue como uma propedêutica para

aqueles que alcançam a fé através da demonstração. Porque “teu pé não tropeçará” (Prov 3, 28), como dito na

Escritura, atribuindo-se à Providência todas as coisas boas, sejam as dos gregos ou as nossas. Porque Deus é a

causa de todas as coisas boas: de umas o é de maneira direta, como do Antigo e do Novo Testamento; de outras

indiretamente, como da filosofia. E é possível que a filosofia tenha sida dada diretamente (por Deus) aos gregos

antes que o Senhor os chamasse: porque era um pedagogo para conduzir os gregos a Cristo, como a Lei foi para

os hebreus (cf. Gál 3, 24). A filosofia e uma preparação que põe a caminho o homem que há de receber a

perfeiçaõ por meio de Cristo...” (CLEMENTE, Stromata, VI, 11,89,1).

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moral, ela é também universal e metafísica”5. Essa matriz metafísico-moral, na obra de

Agostinho de Hipona (354-430), em nenhum momento será ignorada, mas ampliada com

novos elementos, como veremos. Ademais, a visão cristã de mundo não é feita isoladamente,

desconsiderando o que há de verdade – segundo a doutrina bíblica – na visão grega e estóica,

e o que aí já havia sido posto, exposto. Claro e evidente que essa utilização das verdades dos

pagãos não é feita sem algum conflito. Mas, mesmo em tais conflitos, é aí que se fundamenta,

segundo Cassirer, o grande legado da civilização clássica, que é onde vamos encontrar as

matrizes da concepção moderna do homem6: sua moral mais antiga.

A moral que, aqui, em Agostinho, se co-funde com a ética – termos que só serão

separados pelas diferenças pensamento/ação em alguma parte do séc. XVII –, diz respeito a

muitas coisas, e, naturalmente, é coisa tão comum ao indivíduo que nem precisa ser pensada

para ser notada; semelhantemente ao conceito de eudaimonía que, em Platão ou em Cícero,

por exemplos, está vinculado à própria idéia de sabedoria7. O homem é – e isso tem, sim,

indiscutíveis conotações filosófico-teológicas – um ser moral, ético, político. Ele, conforme

encontrado nas Escrituras, sendo imago Dei (vestigia Trinitatis; que é o melhor modelo

agostiniano de “vivência relacional”, “melhor comunidade”), é um ser da fala, da palavra, da

ação intelectivo-volitiva e da resposta essencial: viver para Deus, para o Outro e não somente,

5 CASSIRER, 1975, p. 21.

6 Cf. CASSIRER, 1975, p. 22-3. “A exemplo da antiguidade clássica, o princípio do „conhece-te a ti mesmo‟

aparece na idade média, mas de uma outra maneira. Enquadrado na doutrina da criação, a partir de então este

princípio não é mais considerado como algo de valor puramente teórico ou especulativo, porém como um

preceito religioso que exige de quem o pratica uma outra atitude: sim, o homem deve conhecer-se a si mesmo;

todavia, ao fim e ao cabo, ele se descobre, não como um ser que em sua autonomia se basta a si mesmo, mas

estando a mercê do bom Deus e a depender da sua graça. Essa problemática aparece em primeiro lugar na obra

de Santo Agostinho, considerado o fundador da filosofia medieval e da dogmática cristã. Por seu turno, Santo

Tomás, considerado o maior representante do pensamento medieval, faz parte da mesma linhagem. Também ele

tenta pensar a problemática do homem no contexto da doutrina da criação. E, ainda que confira um maior poder

à razão em comparação a Santo Agostinho, está igualmente convencido de que esta faculdade, inscrita no

registro da queda ou do pecado, somente poderá servir-se adequadamente de seus poderes se é guiada e

iluminada pela graça divina. Santo Agostinho é tido como platônico, enquanto Santo Tomás é considerado

aristotélico. Porém, a exemplo de Santo Agostinho, o que temos em Santo Tomás é, em realidade, uma

subversão profunda dos valores mais caros à antiguidade clássica. A idéia de uma razão soberana, por exemplo,

não tem sentido e, longe de qualificar o homem, torna-se uma heresia que deve ser combatida. Pensada como um

cogito cum Deo, e não como lógos, a verdade não é alétheia, mas revelatio, e sua certeza, antes de ser a

adaequatio intellectus et rei (Tomás de Aquino), é luz divina e intuição intelectual de Deus (Agostinho). Assim,

tanto no bispo de Hipona como no Doutor Angélico, tomado como imperativo religioso, e não simplesmente

como princípio ético ou especulativo, o preceito do “conhece-te a ti mesmo” não é e não pode ser mais o mesmo,

e é uma mesma suspeição que recai sobre ele: aquilo que aparece como o maior privilégio do homem se revela

como seu maior perigo e maior tentação; o que era seu orgulho torna-se sua mais profunda humilhação. O

preceito estóico que quer que o homem obedeça a seu princípio interior, ao „dáimon‟ que está investido nele, e o

venere, é tido agora como uma perigosa idolatria.” (CASSIRER, 1975, p. 24-5). 7 Em De civ. Dei, X, I, só pra citar um exemplo, consta que: “É pensamento unânime de todos quantos podem

fazer uso da razão que todos os mortais querem ser felizes. Mas quem é feliz, como tornar-se feliz, eis o

problema que a fraqueza humana propõe e provoca numerosas e intermináveis discussões, em que os filósofos

gastam tempo e esforços...” Os meios para a felicidade constituem-se numa questão moral que, para ser bem

fundamentada, verdadeiramente fundamentada, exigem a sabedoria.

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como naturalmente se faz sem o uso de juízos ou reflexões, para si mesmo. A imago Dei no

homem reclama, assim, que seja ele um ser moral, da ação ético-moral, diferente dos animais

que não têm o intellectus, que não respondem senão ao instinto e ao estímulo da natureza

externa, conforme essa própria natureza (ou Deus – se olhamos o mundo dessa perspectiva

cristã) lho dotou, para que vivesse, pudesse viver, sobreviver. O homano, no contato com o

Outro (ou seu próximo), no uso normal das suas faculdades cognitivas e para a sua própria

sobrevivência, progresso e felicidade, cria as cidades, as leis8, estabelece limites, punições

terrenas e, às vezes, acredita noutras, supraterrenas – que é como um tipo de correção às

falhas da justiça comum. A religião e a filosofia, nesse particular, sempre andaram muito

juntas.

Na figura do Hiponense, que é quando o cristianismo – utilizando-se daquelas noções

mais elementares da filosofia grega (instalada) e estóica (cosmopolita) – adquire como em

nenhum outro momento o status de uma “filosofia” (nostra philosophia christiana, ele dirá),

os problemas do homem em relação ao Outro e em relação a Deus são tratados de modo

enfático, partindo sempre de si-mesmo, do Eu interior para o Outro, e para Deus. Duas vias,

pois, são distintas, e, no entanto, comuns: horizontalidade e verticalidade. A primeira apela

para a relação fraternal e correta com o semelhante (meu “próximo”, plesíon) que, agora, já

na via horizontal, é, como Eu, imago Dei. Eu não sou Eu sozinho, sem a relação do/com

Outro; e onde há o Outro há a necessidade da ética, da moral – e ambos (Eu e o Outro), numa

relação triádica que responde à Trindade cristã, de onde obtém e é reflexo, ainda que fugidio:

Eu → o Outro → Deus. A relação moral, cristã, tem o fundamento na Economia divina. Se a

Trindade é a melhor comunidade – como Leonardo Boff procura demonstrar em seu livro A

Trindade e a sociedade, tendo em mente tais relações9 –, então ela mesma se dá como modelo

de conduta moral-amorosa aos que fazem parte da cidade de Deus, os cristãos10

. O modelo

8 Em Et. Nic., I, 1 (1094a), Aristóteles, por exemplo, afirma: “Toda arte e toda indagação, assim como toda ação

e todo propósito, visam a algum bem; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas

visam.” Temática que também está no começo do Livro I da Política: “Como sabemos, todo Estado é uma

sociedade, a esperança de um bem, seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos

homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades, portanto, têm como meta alguma

vantagem, e aquela que é a principal e contém em si todas as outras se propõe à maior vantagem possível.

Chamamo-la Estado ou sociedade política.” (Pol., I, 1; 1252a). O tema do bem (como finalidade), da moral

(como meio), é onipresente aí, nas (e para as) ações que devem ser conforme a virtude, a sabedoria filosófica:

ação e contemplação. 9 Cf. BOFF, Leonardo. A Trindade e a sociedade. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. Série II: o Deus que liberta o

seu povo. v. 5. (Col. Teologia da Libertação). 10

Aqui, de imediato, convém elucidar alguns termos que podem gerar confusão. Tratam-se dos termos: cidade

de Deus (civitas Dei), Cidade celeste (civitas celeste), cidade terrena (civitas terrena), cidade dos homens

(apresentada às vezes como uma civitas diaboli). Todos os termos aparecem na obra de Agostinho (alguns

exemplos: “cidade dos homens”: De civ. Dei, XV, 1,2); “cidade terrena” e “Cidade celeste”: De civ. Dei, XV, 2;

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cristão, aí, é o modelo agostiniano11

. Mas um caminho longo e sinuoso foi percorrido até que

tais noções moral-relacionais fossem introduzidas e estabelecidas pelo Bispo de Hipona – e

que ainda valem, ao menos no seio da cristandade –, introjetando aí as análises profundas do

Eu que pensa sobre si-mesmo, tendo em tal pensamento a base para um pensamento maior,

sobre tudo: o Outro, o mundo. De como o Hiponense chegou a isso (fundamentado e

fundamentando-se em todo o pensamento moral anterior), de como promoveu a conciliação

entre moral pagã e cristã (naquilo que se afinavam) e de como trouxe toda essa reflexão para a

individualidade (a doutrina da interioridade, da iluminação), é do que trata o nosso primeiro

capítulo (“Fundamentação histórica de uma moral na filosofia/teologia de Santo Agostinho”),

que termina, como uma segunda divisão, com a apresentação do seu método de interpretação

para a Escritura.

Quanto à hermenêutica do Hiponense, são consentes as afirmações de que ele está

inserido numa tradição exegética que lhe antecede, e sem que ele faça, aí, grandes inovações.

Tais afirmações, a bem da verdade, não são levianas ou descabidas. Todavia, do modo como

interpreta certos textos (sejam sagrados ou seculares) e pelo jeito como vai aos mesmos e os

expõe ao povo, aclarando certas passagens com base na sua filosofia grandiosamente

inovadora (privilegiando o sentido próprio da palavra escrita), parece nos oferecer, com isso,

“Cidade celeste”, como sendo a Igreja: De civ. Dei, XV, 2; XV, 5; XV, 26; De serm. Dom., I, 18,55, etc.), e,

numa leitura menos atenta, podem confundir os leitores pouco familiarizados. Assim, e para evitar falsas

compreensões, usaremos “cidade de Deus” (como no caso acima) em referência à Igreja cristã perseguida e

peregrina, formada pelos cristãos, a Igreja visível; usaremos “Civitas celeste” em referência ao repouso da Igreja

invisível no Reino de Deus, na Santa cidade (a Jerusalém eterna), no Paraíso – numa perspectiva escatológica;

usaremos “civitas terrena” como contraparte da “Civitas celeste” – o reino do homem, portanto. “Cidade dos

homens” ou “civitas diaboli” só serão usados em citações de terceiros, aos quais não poderemos intervir, crendo

que o leitor é agora capaz de fazer tais distinções. Étienne Gilson já chamava àtenção para o fato corriqueiro de

alguns autores reduzirem a cidade de Deus (não a obra do Hiponense, evidentemente) à Igreja, dizendo que isso

é um erro conceitual e hermenêutico, pois o que se pode chamar de cidade de Deus é tão somente a parte

pereguina da Igreja, representada pelos que são da Civitas celeste vivendo na civitas terrena (cf. GILSON,

Étienne. Les métamorphoses de la Cité de Dieu. Louvain / Paris: Publications Universitaires / Librairie

Philosophique. J. Vrin, 1952. p. 74). Por fim, e para não voltarmos ao tema mais adiante, justificando-o, convém

dizer que foi dessa dualidade entre a Civitas celeste e a civitas terrena, que surgiu na Idade Média a famosa

“doutrina dos dois reinos”, ligando-se depois ao pensamento de Lutero ao ponto de alguns o verem como seu

mentor. “A expressão „doutrina dos dois reinos‟ ficou tão ligada ao pensamento de Lutero, que surgiu errônea

opinião de que [...] fosse peculiaridade de Lutero”, diz EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero: uma

introdução. Trad. de Helberto Michel. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1988. p. 140. Mas, Ebeling diz, pouco

depois, que “só podemos lembrar isso [o conflito entre os reinos „sabrado‟ e „profano‟], bem como a concepção

agostiniana, com a qual o pensamento de Lutero tinha contato imediato, das duas cidades, a civitas Dei de um

lado [a Igreja] e, tremeluzindo de forma peculiar, a civitas terrena ou civitas diaboli do outro.” A partir daí, diz

Ebeling, “o pensamento histórico da Idade Média estava familiarizado com as duas coisas: por um lado todo o

curso da história é marcado pela coexistência, confrontação e até certo ponto mesclagem de dois povos cujas

raízes retrocedem até Abel e Caim”. (EBELING, 1988, p. 141). Tenhamos, doravante, tais conceitos em seus

devidos lugares. 11

Aliás, o maior e melhor tratado já feito sobre a Trindade é o De Trinitate, do Hiponense. O dogma, aí já

estabelecido, e conforme o Concílio de Trento (1545-63) o reafirmaria, não teve quaisquer alterações

significativas.

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um modo novo (filológico?) de ver a letra, sentir a vida e, aí, posicionar-se no mundo, perante

o Outro e, acima de tudo e de todos, perante Deus, questionando tudo a partir de si mesmo, do

seu Eu psicológico. Essa inovação, que filósofos e teólogos reconheceram advir do seu gênio,

é, sem dúvida, algo que merece destaque, revisitações e estudos cada vez mais abrangentes.

Por isso, e de modo elucidativo, gastaremos algum tempo expondo o seu método exegético e

o modo como ele o emprega no De sermone e no Livro XV da De civitate, como já

anunciados, sempre dessa perspectiva muito intuitiva, pessoal, individual, psicológica. O que

ofereceremos, portanto, é uma interpretação da interpretação de Agostinho. O resultado, como

veremos, é uma noção bastante coerente da moral do Hiponense (baseada na Escritura, com

destaque para a tradição paulina), do seu método heremenêutico e da Palavra/palavra que

salta da mera formalidade – ou literalidade – para o espírito e a vida: a prática da Palavra.

Essa nova perspectiva, exemplificada em nosso capítulo dois (“A direção dos

costumes”), marcará não somente a cristandade – que, por sua enorme influência na História

ocidental (e na sua historiografia), delineará os costumes e o modo de vida das pessoas –, mas

modificará de uma vez por todas a própria História do Ocidente, como constatará Hegel em

suas Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte (1837)12

, principalmente quando,

na Terceira parte, trata sobre o mundo romano e o cristianismo. A filosofia da História tem

em Agostinho seu precursor, principalmente pela/na redação dos enormes vinte e dois

volumes que compõem a De civitate Dei (413-27), que pode, com justiça, toda a obra, ser lida

como um tratado moral, demonstrando como se portam os cidadãos da Cidade celeste neste

vale de lágrimas, suportando suas vicissitudes enquanto, aqui, peregrinam.

Já aí se nota a importância do Hiponense e o seu legado à Filosofia, à História. O seu

pensamento originário e original, sob muitos aspectos, merece ser lido em suas fontes

primárias, originais. E é isso que propõe o capítulo dois do nosso trabalho, tomando por base

o pouco estudado De sermone Domini in monte (de 394) e o Livro XV da De civitate Dei,

12

As Lições sobre Filosofia da História foram reunidas e publicadas imediatamente após a redação das

Vorlesungen über die Philosophie der Religion (Lições sobre Filosofia da Religião), em 1832, seis anos após a

morte do seu autor. Embora tal obra não seja tão relevante à nossa redação, é sumariamente relevante à nossa

compreensão da História e do seu processo, e este/esta ligado/a à tradição cristã, e esta profundamente marcada

pela genialidade do Bispo de Hipona. As edições que usamos são: HEGEL, J. G. F. Lecciones sobre la Filosofia

de la História Universal. Madrid: Revista do Occidente, 1953; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da

História. 2. ed. Trad. de Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999.

Nas suas lições sobre a odisséia do Espírito (a Razão iluminada) na História do Ocidente, Hegel vê três (como

também na sua dialética, a imagem é herdade da Trindade cristã-agostiniana) macro-momentos: o primeiro deles

fora dominado pelo Mundo Grego, o segundo pelo Mundo Romano e o terceiro e último pelo Mundo

Germânico, ao qual ele dá especial atenção. Os germanos num primeiro momento, conforme Hegel entende,

importaram tudo dos romanos: especialmente cultura e religião. O evento do cristianismo e seu modelo de vida

(as noções elementares de dever/uso e prazer, como vemos em Agostinho), estão nas entrelinhas de toda a obra.

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sem ignorar outras obras do Hiponense referentes à moral – a exemplo do De libero arbitrio e

Confessiones. O motivo de escolher tais obras se dá pela natureza didático-catequética e,

também, exegética, como modelo exemplar do alcance da temática: ao homem simples e ao

douto, às vezes arrogante por sua ciência. É assim que, no De sermone, encontramos um

Agostinho preocupado com a educação cristã (instrução) da comunidade, procurando expor

de modo muito simples e correto (catequese), segundo o seu juízo hermenêutico, certas

porções do Evangelho, nomeando tal excerto, pela primeira vez, como um Sermão do Senhor

sobre o monte, ou, resumidamente, um “Sermão da montanha” – que é como convencionou-se

chamar os capítulos cinco, seis e sete do Evangelho de Mateus. Trata-se, portanto, do

primeiro comentário bíblico-expositivo ao Sermão do monte. Aí, de modo exemplar, o

Hiponense demonstra seu método exegético-expositivo, predominantemente alegórico – esse

sim já historicamente estabelecido –, acentuadamente prático, fundamentado na piedade que

requer a ação mais que a contemplação, sobrepondo-se à fala, ao discurso. A melhor exegese

de uma porção da Escritura, caso não leve à ação, à vida, é letra morta, é eloquência diabólica

e sabedoria vã.

Do mesmo modo, de uma perspectiva mais professoral, encontramo-lo expondo – e

ainda aí sem nenhuma arrogância –, ponto a ponto, a História humana que, entrelaçada à

História sagrada, revela a ação de Deus no mundo, reclamando posições efetivas, reais e

confrontantes (pela “violência do amor”) daqueles que, cidadãos da Cidade celeste (civitas

Dei), vivem juntos àqueles outros, da cidade terrena (civitas terrena). O amor entre os

cidadãos da Cidade celeste – que aparece no serviço entre eles e além da comunidade, no fato

do “suportar na fé” as vicissitudes desfavoráveis da vida temporal neste vale de lágrimas – é a

moeda do Reino. Não por acaso a primeira ordenança da Regra de Agostinho, para uso

comum dos irmãos do mosteiro que ele encabeçara, diz: “Antes de tudo, irmãos caríssimos,

amai a Deus e depois ao próximo, pois são estes os principais mandamentos que nos foram

dados13

”, e a terceira ordenança diz: “O motivo principal pela qual vos reunistes em

comunidade é este: viver na casa em perfeito acordo, não tendo senão uma só alma e um só

coração, voltados para Deus”14

. A adesão dos iguais à mesma fé no bom Deus, que é todo o

Bem, é o bem maior. É pensando assim que o Hiponense, inspirado numa passagem do salmo

13

Regra, n. 1. A Regra foi escrita em 388 – mesmo ano da redação de De vera religione –, em Tagaste, na

África, depois de Agostinho ser batizado juntamente com Alípio e seu filho, Adeodato, e depois da morte de sua

mãe, Mônica (ocorridos dramáticos e marcantes do ano anterior). Para as traduções da Regra, aqui, utilizamos o

texto de Clodovis Boff, em: BOFF, Clodovis. A regra de Santo Agostinho: apresentação e comentários de

Clodovis Boff, OSM. Petrópolis: Vozes, 2009. (Col. Regras Comentadas). 14

Regra, n. 3.

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16

72, afirma: “Para mim, aderir a Deus é bom, é todo o bem. Querem algo mais? Compadeço-

me dos que querem. Irmãos, que mais quereis? Nada é melhor que aderir a Deus”15

. Ao fazer

tal afirmação, ele expõe a tese que tem sido historicamente vinculada à famosa distinção entre

o frui e o uti, que expressam o contraste entre o bom Deus e as suas criaturas – acepções

morais que, lugar comum entre os comentadores da obra do Hiponense, não serão, aqui, tão

enfatizadas; para que escapemos o máximo possível das repetições, do “mais do mesmo”, do

“chover no molhado”. Todavia, ainda em relação ao frui e o uti – mas de uma forma muito

prático-existencial e exemplar, e mesmo por seu uso constante e variado em tantas entrelinhas

do corpus agostiniano –, convém que tal temática seja bem entendida16

; e é o que faremos

neste segundo capítulo, de todos os modos que julgarmos relevantes.

No último capítulo, “A recepção da moral agostiniana no Brasil (1500 a 1808)”, por

fim, e de modo a dar uma praticidade às nossas especulações, procuraremos responder à

pergunta: no que isso me serve hoje? De que nos serve saber isso? Fazemos assim para que,

como o próprio Hiponense deixa claro em suas exposições da Escritura, do seu enorme

epistolário e demais obras, não tenhamos em mãos ou em mente, com tal trabalho, apenas um

exercício intelectual, intelectualizante, um monumento à esterilidade que não sinaliza vida “lá

fora”. Por isso, abordaremos a história da formação moral e cultural do povo brasileiro, com

rigor investigativo – criteriosamente averiguando o que, nesse particular, e de modo

documentado, há de revelador na resumida produção literário-brasileira do período colonial.

Aí, principalmente, procuraremos seus rastros, suas “pegadas”.

15

“Mihi adhaerere Deo bonum est; hoc est totum bonum. Vultis amplius: Doleo volantes; fratres, quid vultis

amplius? Deo adhaerere nihil melius.” (P.L., 36, 928). 16

Os conceitos de uti e frui estão na base da moral agostiniana, e estão presentes em boa parte dos seus escritos;

mas é em De doctrina christina que eles aparecem pormenorizados, definidos: “Fruir é aderir a alguma coisa por

amor a ela própria. E usar é orientar o objeto de que se faz uso para obter o objeto ao qual se ama, caso tal objeto

mereça ser amado” (De doc. christ., I, 4). Nas palavras de Henrique Cláudio de Lima Vaz: “Agostinho recorre à

distinão frui-uti para estabelecer a distinão entre a dimensão teológica e a dimensão antropológica da doutrina

cristã, a primeira compreendendo o mistério da SS. Trindade, os atributos de Deus e a Encarnação do Verbo, a

segunda tendo por objeto a ordem da vida moral do homem, considerado na excelência de sua condição de

criatura feita à imagem e semelhança de Deus. A ordem da vida moral é, pois, regida pela ordem do amor que se

desdobra na esfera do uso como amor de si mesmo e dos outros segundo o reto modo e os graus correspondentes,

e se eleva finalmente à esfera da fruição como amor de Deus, amado em si mesmo e por si mesmo.” (VAZ,

Henrique Cláudio de Lima. Escritos de filosofia IV: introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999. P.

193). A princípio, e de modo a não deixar dúvidas, é oportuno rememorar aquilo que, a tal contraste e tendo em

mente a mesma tese, foi dito por Guido Soaje Ramos, na sua La moral agustiniana: “No se trata de que sólo

Dios pueda ser amado por sí mismo y, en cambio, las creaturas pueden en ciertos casos ser amadas por si

mismas; lo que nunca es legítimo es amarlas absolutamente por sí mismas. Hay solo un absoluto: Dios y sólo El

puede ser amado absolutamente por sí mismo. Es decir, S. Agustín admite, aunque no se encuentre la expressión

misma, la noción de fin intermedio, de tanta importancia en materia de moral.” (RAMOS, Guido Soaje. La

moral agustiniana. Porto Alegre: Universidade do Rio Grande do Sul / Instituto de Filosofia. 1960. p. 17. [Col.

Ensaios e Conferências, 8]).

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Na redação deste capítulo, adotamos uma nova dinâmica – e dizemos isso para que o

leitor não se veja frustado em suas expectativas, se for o caso de querer encontrar, aí, uma

contuidade do estilo dos dois primeiros. Tal ruptura é totalmente intencional. Se nos dois

primeiros utilizamos mais do método expositivo (do pensamento do Hiponense), neste,

diferentemente, usaremos mais da narrativa factual: a literatura histórica de/sobre um período

e também do pensamento romântico, romantizado da mesma época – onde acreditamos poder

encontrar algumas nuanças do modo de vida dos primeiros habitantes (europeus) do/no Brasil,

e do modo como, através de cartas, narrativas, documentos, etc, esses mesmos habitantes

demonstraram ter alguma influência da doutrina moral do hiponenese. Não se trata, portanto,

de uma leitura crítica dos estilos e das obras produzidas durante o peródo colonial – como o

Barroco, o Arcadismo ou o Pré-Romantismo brasileiros –, mas de uma investigação

arqueológica da idéia de moral, aí presente ou ausente. O pensamento se volta, agora, não

mais somente para o que o Hiponense diz, mas para o que dizem sobre o pensamento do

Hiponense, e neste particular, sua doutrina moral. É um duplo salto, como se vê: da estrutura

do método ao seu objetivo dinâmico – se é ocaso de haver tal objetivo, tal dinâmica. Por isso,

também, esperamos contar com a paciência e a boa vontade do leitor, a fim de que possamos

passear, com certa liberdade, pelo que se pensava na Europa dos séculos XVI e XVII (em

especial), e no Brasil, até 1808. E fazemos assim como quem navega de um porto a outro,

procurando pelos rastros que vão ficando pelo caminho, de lá para cá, de cá para lá.

Avisamos ainda que, por se tratar de um tema auspicioso – por uma notável escassez

de materiais, de fontes documentais e, por tantos outros fatores, bastante aberto às críticas dos

mais afoitos –, e principalmente por sua natureza pioneira, daremos maior atenção e nos

aprofundaremos nas obras do período colonial, produzidas no Brasil ou fora dele, sobre ele,

naturalmente17

. O resultado disso é um capítulo maior, mas, também, por apresentar e

representar esse grau de novidade em relação aos dois anteriores, mais necessário. Se não há

uma praticidade mesmo, no sentido dinâmico de “para o dia-a-dia” – como uma receita de

bolo que se segue com vistas a um resultado certo e imediato –, há, inegavelmente, um

aclaramento fundante e fundamental que nos faz ver e rever a nossa História como aliada: nos

acudindo em nossos questionamentos sobre a natureza de certas práticas comuns na

17

Delimitamos assim a pesquisa porque, depois da vinda da família real para o Brasil, em 1808, e com a

consequente abertura dos portos no mesmo ano, a História brasileira ganha tantas novas identidades que, de

tantas e tão variadas matizes, tornaria o nosso trabalho, resumido a um só capítulo, superficial e, muito

provavelmente, anacrônico. Ademais, com a chegada de tantas culturas e tantas religiões diferentes, a presença

de Agostinho, no modo como tencionamos tratar, tornar-se-ia fugidia e traiçoeira a uma análise séria, como nos

propomos fazer.

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sociedade, nos campos da política e da moral fundamentada no cristianismo que, em tese, era

dominante. Mostrando-nos o que a poeira do tempo encobriu, ou quiz encobrir, a História

escrita se faz aliada da memória e, aí, de nós, diz o que somos (ou nos tornamos) como

resultado ético, político, cultural: herança histórica. Não resta dúvida de que tal praticidade

histórica, como o dito de Maurice Sachot, na última frase do prefácio de L‟invention du

Christ. Genèse d‟une religion, de 1998, assuma uma importância fundamental à compreensão

de nós mesmos, do que pensamos, cremos, talvez nos modificando: “Uma mesma história,

vista de outro modo, torna-se uma outra história”18

. A História re-lida, re-visitada, pode tonar-

se uma via libertadora.

18

SACHOT, Maurice. L’invention du Christ. Genèse d‟une religion. Paris: Éditions Odile Jacob, 1998. p. 9.

(Col. Le Champ Médiologique).

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19

1. Fundamentação histórica de uma moral na

filosofia/teologia de Agostinho de Hipona

Ainda que o homem possa usar mal da liberdade, a sua vontade livre deve

ser considerada como um bem.

De lib. arb., II, 18,48.

Aprender envolve também uma mudança na atitude e no comportamento:

“por esse amor, portanto, como por um alvo proposto, pelo qual digas tudo o

que dizes, o que quer que narres faze-o de tal forma que aquele que te ouve,

ouvindo, creia e, crendo, espere e, esperando, ame”.

De cat. rud., I, IV,8.

Um trabalho que pretenda abordar seriamente a moral agostiniana, não pode e nem

deve ignorar as bases sobre as quais ela se firma, se afirma. Agostinho não foi um mestre da

moral, mas – pelo seu trabalho comunitário e pelo modo como apresenta o Reino de Deus ao

povo, nas obras que são feitas com base em seus sermões, sua vida, exposições da Escritura e

tratados de filosofia – é impossível não notar a sua posição em relação ao tema. A “moral

agostiniana”, portanto, não é exatamente a “sua moral”, mas o modelo de vida que ele

encontra e expõe com base nas Escrituras, primeiramente, e na razão – que já tem bases bem

definidas nas morais tradicionais baseadas na heteronomia da vontade, que têm como

princípio fundamental o prazer (hedoné), ou a felicidade (eudaimonía). Nesses modelos, às

vezes bem diversos, também o Hiponense tem raízes; mas ele, aí, faz contribuições que

merecem ser destacadas: como a introdução da doutrina da interioridade e o primado do amor,

principalmente. Por fim, na doutrina que ele chama de “nostra philosophia christiana”1, que

1 Do conceito de Philosophia christiana, ligando-o ao Hiponense, já tratamos em: SALES, Antonio Patativa de.

De como se chegou ao conceito de Philosophia Christiana. In: Theophilos: a journal of theology and

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une a tradição filosófico-moral à fé revelada, fazendo as mudanças que já sinalizamos e

empregando a razão a serviço da fé – a philosophia como ancilla theologiae –, o Bispo de

Hipona contribuirá não apenas para a solidificação da doctrina christiana como matéria de

conhecimento (teologia moral, especulativa), mas também estabelecerá modelos de conduta

que perdurarão pelos séculos seguintes (filosofia moral, prática), sem encontrar rivais. Tal

união, entrementes – até mesmo pelas vias da própria moral cristã, diversa em outros autores,

em outras interpretações da fé revelada –, não era e nunca foi lugar comum, coisa pacífica,

acabada. Mesmo na alta Idade Média, essas limitações da filosofia em relação à doutrina

cristã estão muito presentes, e são motivos para as considerações de diversos autores, de

diversas posições; como a do franciscano Petrus Johannes Olivi (1248-1298). Este,

preocupado com o acesso de certas obras grego-árabes por parte dos cristãos, lhes escreve as

poucas páginas do De perlegendis philosophorum libris tractatus (De como devem ser

folheados os livros dos filósofos), dizendo que a filosofia “deve ser lida de forma dominativa,

philosophy, Canoas, v. 6/7, n. 1, p. 49-63, 2006/07. O primeiro a utilizar essa terminologia, segundo GILSON,

Etienne. A filosofia da Idade Média. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 16, foi

Melito (c. 177/80), bispo de Sardes, em Apologia – obra sua e da qual existem, hoje, apenas quatro citações

atribuídas à mesma, em doxografias. No que restou da Apologia, Melito defende e faz uma apresentação das

doutrinas cristãs ao imperador Marco Aurélio (121-180). Três dessas citações podem ser encontradas na Historia

Ecclesiae, de Eusébio de Cesaréia (c. 275-339). Conforme Eusébio, Melito fala da doutrina cristã como “nossa

filosofia...” (Cf. Hist. Ecl., IV, 26,7). Logo em seguida, refere-se à mesma como “nossa doutrina” (Hist. Ecl., IV,

26,8) e, em Hist. Ecl., IV, 26,9, repete a mesma terminologia. A co-fusão de certas doutrinas filosóficas pagãs à

doutrina cristã, que resultará na “nossa filosofia cristã”, mesmo antes de Melito, já aparece em Justino, que é

chamado por Eusébio de “verdadeiro filósofo”, contrapondo a Crescente, o falso filósofo que, por inveja,

conforme Eusébio, promoveu o sacrifício de Justino. (Hist. Ecl., IV, 16,1-2). Mais sobre o início da ligação

filosofia pagã/doutrina cristã, em Justino, ver: SIMONETTI, Manlio. Cristianesimo antico e cultura greca.

Roma: Borla, 1983. p. 36s. Ver ainda, sobre Melito, Justino e as ligações primitivas desde o judaísmo com o

helenismo até o cristianismo, JAEGER, Werner. Cristianismo Primitivo e paidéia grega. Trad. de Teresa

Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. (Col. Perfil: História das Idéias e do Pensamento, 6). Há, de

conformidade com os Padres Alexandrinos, de modo quase unânime, a idéia de que “Pouco importa que idéias

pareçam preceder a mensagem cristã [os acertos da filosofia grega] ou substituí-la depois. O que conta não é a

massa, mas o fermento, é a fé numa pessoa que dá um sentido às idéias e que as gera”. São palavras de

NÉDONCELLE, M. Existe uma filosofia cristã? Trad. de Alice de Britto Pereira. São Paulo: Flamboyant,

1958. p. 31. Em seguida, tratando sobre a demora para o surgimento do conceito de “filosofia cristã”, Nédoncelle

diz: “À salvação pelo conhecimento de uma filosofia, o cristão opõe a salvação pela ação de redentora de uma

pessoa. Foi por isso que o conceito de filosofia demorou a aparecer e a se expurgar de todo equívoco. Não o

encontramos nos documentos que nos restam, anteriores à metade do II século. E ainda sob formas aproximadas.

Taciano recorre à fé cristã que é, diz ele com insolência, „nossa filosofia bárbara‟. [...] Repetia o que tinha dito,

mas sem desafiar os gregos, seu mestre são Justino, o primeiro dos cristãos que conhecemos que tenha

reivindicado o título de filósofo e declarado que o cristianismo é uma filosofia „a única segura e proveitosa‟”

(NÉDONCELLE, 1958, p. 32). Mais adiante, por fim, afirma: “Santo Agostinho [...] domina a Idade Média junto

à qual representa e resume o pensamento dos Padres da Igreja. Repetiu, muitas vezes, que a verdadeira filosofia

se confunde com a verdadeira religião e com a verdadeira teologia. No seu vocabulário, estas diversas

expressões são sinônimas e opõem-se à religião, à filosofia e à teologia pagãs. É ele o primeiro em quem se

encontra a expressão da filosofia cristã. Não achava que a sabedoria dos antigos fosse de maior alcance que a dos

cristãos, a única perfeita.” (NÉDONCELLE, 1958, p. 35). Assim, ver: Cont. acad., III, XIX,42.

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e não de forma servil, pois, mais que seguidores, devemos ser juízes dela”2. De fato, a moral

cristã – aquela que podemos ver, principalmente, no Novo Testamento – é dominativa,

conforme encontramos na abordagem teológico-filosófica dos primeiros pensadores cristãos,

mesmo nos que não aceitam qualquer união da razão à fé. É dominativa porque, primeiro, é o

ensino modelar contido na Escritura, que é autoridade sobre todo outro ensino; depois, porque

é espiritualmente superior, conforme o juízo da piedade, e equânime; logo, ao menos em tese,

livre daquela sentença de Trasímaco que, a Sócrates, referindo-se à justiça (δικαιοζύνη),

afirma que ela nada mais é do que a “conveniência do mais forte”3. Há, na Escritura, uma

horizontalização dessa justiça (dikaiōsunē), da virtude da fé, do agir na fé, da moral, portanto:

o justo (dikaioō) é aquele que é “justificado” (dikaios) e, por isso, é capaz de, também, agir

retamente. Ao mesmo tempo, como visto no próprio Aristóteles ou em Sócrates, a virtude não

é condição exclusiva do ser cristão, mas do homem sábio; ou seja: daquele que ama a verdade

e a busca – e daí alguns cristãos, na Idade Média, não verem dificuldades em colocar Sócrates

entre eles, como um cristão antes de Cristo. O Estagirita, por outros motivos, não gozava do

mesmo prestígio que Sócrates; mas, em muitas partes, não havia grandes diferenças entre a

sua moral e a dos cristãos dos primeiros tempos.

Em Ética a Nicômaco, o prêmio da virtude é a virtude mesma: virtus sibi ipsi

praemium4. O caminho da virtude é difícil, o do vício, fácil. A virtude é uma só, os vícios,

muitos (a anakolouthía das virtudes: uma supõe a outra). Quem transpõe esse moralismo do

Estagirita à cristandade – ou à moral cristã – é, inicialmente, Orígenes (c. 185-253), ao

identificar as virtudes como sendo o próprio Cristo, ou reflexos de sua esseidade: justiça,

sabedoria, verdade. “Nós, ao contrário”, diz o jesuíta Henri Crouzel, interpretando Orígenes,

2 “[...] legenda est dominative, non serviliter: debemus enim ejus esse judices potius quam sequaces”. (OLIVE,

Pedro de João. De perlegendis philosophorum libri. In: Antonianum, v. 16, n. 3, p. 38, 1941). Há uma tradução

do texto latino feita por Luis A. De Boni, em: DE BONI, Luiz A. Pedro João de Olive: de como devem ser

folheados os livros dos filósofos. In: _____; PICH, Roberto H. (Orgs.). A recepção do pensamento Greco-

romano, árabe e judaico pelo Ocidente Medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 538. (Col. Filosofia,

171). 3 Rep., 330 A.

4 Et. Nic., 1106b-1107a, 1-3. “Com Aristóteles”, diz Roberto Rossi, “a filosofia começa a se estruturar como um

todo unitário, uma visão completa do real, do homem e do seu destino, um conjunto articulado logicamente, um

sistema indiscutivelmente modelar para a filosofia. Nele o pensamento filosófico seguinte procurará „aprisionar‟

a realidade e com ela a verdade, chegando a identificar esta última com o próprio sistema, o pensamento com o

seu objeto. A verdade assume, assim, as características imanentes do instrumento racional e do seu uso correto.

Ela não parece mais alter do filosofar, mas é identificada com ele e com a sua articulação e conclusão

coerentes”. (ROSSI, Roberto. Introdução à filosofia: história e sistemas. Trad. de Aldo Vannucchi. São Paulo:

Loyola, 1996. p. 46).

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“não somos [justiça, sabedoria, verdade], a não ser que tenhamos essas virtudes, participando

assim da vida de Cristo e perfeccionando sua imagem em nós”5.

Entendendo que, devido a essa participação em Cristo (e por Cristo) em cada uma

das virtudes, os Padres não faziam distinção, como os escolásticos viriam a fazer, entre as

virtudes “naturais” e “sobrenaturais”. Quase todos aceitam e explicam àmiúde a divisão de

Platão6 das quatro virtudes cardeais: 1) a prudência que aperfeiçoa o logistikón, a mente; 2) a

coragem que é a força do thymoeidés, apetite irascível contra o mal; 3) a temperança, que

resiste ao epythymetikón, a concupiscência; 4) a justiça que harmoniza em sua justa proporção

o exercício das virtudes precedentes7.

O homem virtuoso é aquele que consegue a apátheia, a impassibilidade ante as

paixões. Os Padres gregos, com fina observação psicológica, falam do nascimento das

paixões, convencidos de que a malícia não é própria da verdadeira natureza humana, mas lhes

chega “de fora”, mediante os maus pensamentos (logismós). Assim, ainda conforme

Orígenes, “a fonte e o princípio de todo pecado são os maus pensamentos”8. Primeiro vem a

sugestão (prosbolé), uma imagem pecaminosa; depois vem o syndiasmós, que é uma

“conversação” com a prosbolé, sem decisão; em seguida vem a synkatáthesis, o

consentimento à prosbolé que, seguida da palé, a luta interior, é o último esforço, moral, para

resistir ao erro, à malícia. Agostinho falará de três graus que seguem a sugestão, ela sendo o

primeiro: suggestio – delectatio – consensus.

Três coisas constituem o pecado: a sugestão, o deleite e o consentimento. A

sugestão vem pela memória ou pelos sentidos do corpo; pelo que vemos, ouvimos,

sentimos, degustamos ou tocamos. A sugestão nos traz deleite a ser experimentado.

Caso esse deleite seja ilícito, deve ser reprimido. [...] a sugestão vem tal uma

serpente, isso é, insinua-se lasciva e rápida, semelhante às imagens que se formam

dentro de nós. Elas têm sempre como princípios, objetos exteriores9.

A suggesta, embora seja o nível mais baixo da tentação, pode ser o começo da

queda. No artigo On being morally responsible in a dream, Ishtiyaque Hagi, com base no

Livro X das Confessiones – dentre outros textos –, faz um estudo detalhado sobre o caminho

que começa na sugestão, como no caso dos sonhos, e que pode induzir o cristão, através de

5 CROUZEL, H. Théologie de l’image de Dieu chez Origène. Paris: Aubier, 1956. p. 239s.

6 Cf. Polit., 439a s.

7 Mais sobre a divisão platônica das virtudes, ver: SPIDLÍK, T. Virtude y vicios. In: DI BELARDINO, Angelo.

(Dir.). Dicionario Patristico y de la Antigüedad Cristiana, II (J-Z). Salamanca: Ediciones Sigueme, 1992. p.

2216. (Col. Verdad y Imagen, 98). 8 ORÍGENES, Comm. in Mt., 21: GCS 40, 58.

9 De serm. Dom., I, 12,34.

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um falso deleite, ao consentimento com o erro moral: o pecado10

. O deleite que induz ao erro

moral é verdadeiro tão somente em sua falsidade, pois a alegria só é verdadeira quando

encontrada na verdade. “Com efeito”, diz o Hiponense, “pergunto a todos se preferem

encontrar alegria na verdade ou na falsidade: não hesitam em dizer que preferem encontrá-la

na verdade, como não hesitam em dizer que querem ser felizes. Pois a vida feliz é uma alegria

que vem da verdade”11

. Mesmo entre aqueles que não são virtuosos – conforme o modelo

aristotélico – há, conforme o Hiponense, um caminho comum que esbarra sempre no amor:

amor à felicidade; amor à verdade. Do mesmo modo, toda ciência tem três fundamentos: a fé,

a esperança e o amor; e o amor, por fim, é o maior de todos, e fundamento de tudo. Não há

como escapar disso; e mesmo assim para aqueles que vivem no erro:

Conheci, por experiência, muitas pessoas que queriam enganar, mas ninguém que

quisesse ser enganado. Onde é que, então, eles conhecem esta vida feliz senão onde

conhecem também a verdade? E amam a verdade porque não querem ser enganados,

e, quando amam a vida feliz, que não é outra coisa senão a alegria que vem da

verdade, amam de facto também a verdade, e não a amariam se dela não houvesse

algum conhecimento na sua memória12

.

Tais homens não são felizes, no entanto, porque amam uma verdade conveniente, e

não a essente. “Amam-na quando resplandece”, quando lhes serve; “odeiam-na quando [ela

os] censura”13

. São, pois (como veremos mais destacadamente no capítulo dois), dois amores,

e, no meio de tudo, a ação, a decisão do agir conforme a verdade. O agir moral reclama a

norma da fé.

1.1. A ação moral e a norma da fé

A moral cristã, que rebaixa o arrogante, humilhando-o, exalta o humilde, honrando-

o14

. Ela propõe um lugar comum aos homens, e esse lugar é, já na terra, uma manifestação do

10

HAGI, Ishtiyaque. On being morally responsible in a dream. In: MATTHEWS, Gareth B. (Ed.). The

augustinian tradition. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1999. p. 166-82. 11

Conf., X, 23,33. 12

Conf., X, 23,33. 13

Conf., X, 23,34. 14

Sl 147, 6. A memória que se requer à esperança, diz: “Quem virá para te julgar senão aquele que veio para ser

julgado por tua causa? Não temas o acusador, do qual ele mesmo disse: „Agora o príncipe deste mundo foi

lançado fora‟ (Jo 12,31). Não receies um mau advogado, pois agora é teu advogado aquele que então há de ser

teu juiz. Será entre ele e tu, e tua causa; a defesa de tua causa é o testemunho de tua consciência.” (Enn. in Ps.,

147, 1). E, antes, comentando o Salmo 144, 18: “Os justos caem sete vezes e se levantam, mas os ímpios

„tropeçam na desgraça‟ (Pr 24,16). [...] „O justo ainda que caia não ficará prostrado, porque o Senhor o ampara

com a mão‟ (Sl 36,24).” (Enn. in Ps., 144, 18,14).

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Reino de Deus. Há aí uma horizontalização da justiça e da virtude, equânime quanto a todos,

mas também uma verticalização, caso consignada a Deus, fonte de toda justiça e virtude

perfeitas. Na teologia dos Padres, Platão e Aristóteles estão juntos em muitos conceitos, mas

Platão terá a predileção, por cogitar das coisas supraterreais. Eis aí, com bases no judaísmo e

com o empréstimo de algumas variantes das variadas escolas helênicas, a base e a essência da

moral cristã, desde os evangelhos até a Antiguidade tardia, que é onde encontramos o

Hiponense, o maior divulgador da doutrina cristã, depois do apóstolo Paulo, conforme aqui

delineada com ênfase no agir, no proceder segundo o modelo – e o modelo é o da Escritura

que, nesse particular, no Sermão da Montanha15

, tem o seu exemplo e resumo.

A moral agostiniana é teocêntrico-cristocêntrica e, principalmente, mais preocupada

com a ação prática do que com a especulação filosófica ou teológica, e é, outrossim, de uma

natureza psicológica marcante – fato que repercutirá por toda a Idade Média16

, e pelos séculos

seguintes. Esse teocentrismo da “sua” moral se manifesta, nas palavras de Guido Soaje

Ramos, ante os seguintes problemas: o fim último do homem, a moralidade, a lei moral, a

virtude, o mérito e a sanção17

. Como se vê, ela também assume uma natureza

15

O grau de equivalência moral do Sermão da Montanha não é utilizado aqui sem a lembrança dos Dez

Mandamentos do Senhor (sua Semichac) em Êxodo 20, 3-17 (cf. Dt 5, 7-22), mas, compreendendo que a

instrução neotestamentária, segundo a doutrina cristã, vem aclarar – e às vezes cumprir – o que no Velho era

apenas sombra, mantemos o afirmado. O Senhor na Montanha, como veremos, partindo de Agostinho, é um

novo Moisés trazendo ao povo a “nova Lei”. “No Antigo Testamento esconde-se o Novo, e no Novo encontra-se

a manifestação do Antigo” (De cat. rud., I, IV,8). 16

De modo abrangente, a psicologia medieval compreende, conforme dito por Alain de Libera, “due momenti

teorici: uno greco-latino (agostiniano e boeziano), l‟altro „peripatetico‟ o greco-arabo” (LIBERA, Alain de. La

Filosofia Medioevale. Trad. ital. de Erica Bassato. Bologna: Universale Paperbacks il Mulino, 1992. p. 89).

Portanto, de Agostinho a Boécio, tem-se um modelo triádico, relacionado ao sujeito e àquilo que ele pensa, ou o

seu pensamento. Assim, ainda conforme Libera, temos: “l‟identità del pensante – chi pensa? –; la natura del

pensabile – che cos‟è l‟universale –; il valore del pensare – qual è il fine del pensiero? [...] La psicologia

medioevale culmina necessariamente nell‟ética, nella misura in cui l‟atica trova di per sé il proprio compimento

nella saggezza teoretica” (LIBERA, 1992, p. 89). Mais adiante, por fim, Libera acrescenta que “Il modelo

aviceniano, che vede in ogni vera astrazione un‟emanazione di un‟illuminazione-concetto, distinta

dall‟illuminazione-giudizio difesa dalla tradizione agostiniana del De Trinitate [...], è Il più ampiamente diffuso.

Il modello averroista è riconosciuto come tale solo tardivamente – e da allora generalmente osteggiato”

(LIBERA, 1992, p. 96). 17

RAMOS, Guido Soaje. La moral agustiniana. Porto Alegre: Universidade do Rio Grande do Sul / Instituto

de Filosofia, 1960. p. 8. (Col. Ensaios e Conferências, 8). Para que a sanção , bem como o mérito et cetera sejam

justos, é necessário que a lei seja justa. Em De liber. arb., I, 5,11, podemos vemos isso assim exposto: “Nam

mihi lex esse non videtur, quae iusta non fuerit” (AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. 3. ed. Trad. Org.

Introd. e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. [Col. Patrística, 8]). A justiça humana, no

entanto, carece de um princípio afirmativo no qual e pelo qual possa ser mensurada: recai-se, assim, naquele

princípio eterno de justiça eterna. E é isso que, mais tarde, Agostinho, ainda no De liber. arb., I, 5,13; 6,14-15,

afirmará. Especialmente em De liber. arb., I, 6,15, ele dirá: “Mas quanto àquela lei que é chamada a Razão

suprema de tudo, à qual é preciso obedecer sempre e em virtude da qual os bons merecem vida feliz e os maus

vida infeliz, é ela o fundamento da retidão e das modificações daquela outra lei que justamente denominamos

temporal...” Nas palavras de Nair de Assis Oliveira: “As noções de lei temporal e lei eterna [...] constituem um

dos elementos essenciais da doutrina moral e social de Agostinho. É possível constatar que nosso autor inspira-se

mais de uma vez em Cícero, cujas fórmulas do De legibus voltam espontaneamente em sua pena. [...] Mas

Agostinho não se contenta em copiar Cícero. Ele o repensa. Quanto ao relacionamento entre a lei eterna e a

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denunciadamente antropológica, embora reclame e mantenha as bases teocêntricas – e isso

não poderia ser diferente: ao homem só é possível falar de Deus partindo de si mesmo, mas,

para tanto, é necessário que ele, antes, encontre-se consigo mesmo. É assim que Agostinho

afirma a necessidade de a ação também se submeter à contemplação. “O que ocorre é que em

toda sua obra [ele] se preocupa por destacar o alcance prático de suas doutrinas para a vida do

homem”18

. O homem, sujeito histórico-situado – e por isso mesmo sujeito (no sentido de

sujeitado ao tempo, ao espaço e à história/memória) –, é um com o Outro, e, logo, não um,

apenas. Convém lembrar aqui que, tanto na Patrística como na Idade Média, e assim até

Martinho Lutero (1483-1546) e René Descartes (1596-1650), principalmente, a idéia do

sujeito, como indivíduo isolado (individualidade), inexiste; e mesmo a idéia de liberdade

individual. Jacques Le Goff diz que:

Se procurarmos nos aproximar da individualidade dos homens do Ocidente medieval

logo perceberemos que, como em toda sociedade, não apenas cada um dos

indivíduos pertenciam a diversos grupos ou comunidades, mas, na Idade Média, tais

indivíduos pareciam mais se dissolver no grupo do que se afirmar em relação a ele.

Se o orgulho era então “a mãe de todos os vícios” era porque correspondia ao

“individualismo exagerado”. Só havia salvação no grupo e o amor-próprio era

pecado e perdição19

.

O sujeito, no entanto, mesmo na experiência do Outro, é indivíduo; mas isso, em sua

natureza moderna, só teria o peso de uma “filosofia do indivíduo” a partir do cogito cartesiano

– mas não há dúvida de que o germe dessa moderníssima “filosofia do futuro” já esteja em

Agostinho, na fórmula: si fallor, sum20

. De fato, não obstante a terminologia parecer nova,

temporal, esta tira toda sua força da participação daquela.” (OLIVEIRA, Nair de Assis. Notas complementares.

In: AGOSTINHO, Santo. O livre-arbítrio. 3. ed. Trad. Org. Introd. e notas de Nair de Assis Oliveira. São

Paulo: Paulus, 1995. p. 248. [Col. Patrística, 8]). Essa dualidade entre lei temporal e lei eterna, aparece com

muita freqüência em quase todas as obra do bispo de Hipona. 18

RAMOS, 1960, p. 8. 19

LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Trad. de José Rivair de Macedo. Bauru, SP: Edusc,

2005. p. 281. (Col. História). Mais adiante, Le Goff ainda diz: “O homem medieval não tinha nenhum sentido de

liberdade segundo a concepção moderna. Para ele, a liberdade era o privilégio, e a palavra era usada

freqüentemente no plural. A liberdade era um estatuto garantido, era, segundo a definição de G. Tellenbach, „o

justo lugar diante de Deus e diante dos homens‟, era a inserção na sociedade. Nenhuma liberdade sem

comunidade. Ela não podia residir senão na dependência, o superior garantindo ao subordinado o respeito e seus

direitos. O homem livre era aquele que tinha um senhor poderoso”. (LE GOFF, 2005, p. 282). 20

Uma filosofia, na época de Agostinho, que partisse da premissa pessoal “eu penso”, não seria e nem poderia

ser levada a sério; e “não há qualquer indício em Contra os acadêmicos [cf. Cont, acad., cap. 3] da idéia de que

„Eu sei que existo‟ pudesse ser considerada uma importante afirmação de conhecimento, ou mesmo que „Eu

existo‟ e „Eu sei‟ pudessem contar como itens genuínos de conhecimento pele definição de Zênon”. Mas,

“quando chegamos à última grande obra de Agostinho, A cidade de Deus [cf. De Civ. Dei., XI, 26], „Eu existo‟ e

„Eu sei que existi‟ já constituem afirmações de conhecimento paradigmático”. (MATTHEWS, Gareth B. Santo

Agostinho: a vida e as idéias de um filósofo antes de seu tempo. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed., 2007. p. 57).

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fruto da Modernidade, ela já é muito presente nas múltiplas relações/analogias que Agostinho

traçará entre o homem e a Trindade, enfatizando o Outro (ou o seu semelhante) como sua a-

parte – na qual se re-conhece como um com o Outro, de quem está próximo ou longe, e Deus

acima dele, deles. Na vida prática desse homem, na sua vivência com os outros, nos quais se

reconhece e constrói a sua própria identidade social, muitas são as questões que se lhe

apresentam, e tais questões, via de regra, exigem mais do que uma aceitação silenciosa,

passiva – e daí os problemas sobre a origem do mal, da força da vontade, do livre-arbítrio.

Tais questões chegam mesmo a ser, para Agostinho, questões de vida ou morte. E é assim que

ele se ocupará das questões morais,

No como un profesor que explica una ciência por sí misma sino como obispo, como

orador, como polemista, como corresponsal. Em función de circunstancias bien

determinadas toma la pluma o la palabra para adoctrinar o para contestar una

consulta o para combatir o replicar a un adversario. [...] Otro rasgo de la moral

agustiniana es su voluntad de realismo, su empeno por asentar la norma moral sobre

la realidade. Voluntad y empeño que se patentizan em las doctrinas sobre el fin

último, la ley, la conciencia, etc.21

Esse assentamento da norma moral à realidade, bem como essa patentização das

doutrinas da eudaimonía (traduzida por “bem-aventurança”, “beatitude”) – que é o fim último

do homem, como ele dirá em muitas das suas obras, e como buscará o eco nos discursos do

Senhor sobre o monte, aos quais nomeará de “Sermão da montanha” –, da Lei, do Evangelho

e da consciência individual, é a base do seu comentário ao De sermone Domini in monte22

.

Numa leitura mais abrangente do corpus agostiniano, as questões propostas, à

semelhança daquelas que Sócrates propunha, não perguntam, por exemplo, se devemos amar,

mas o que há de se amar, ou o que é digno de ser amado. A questão, que é a questão moral

par excelence, reclama uma norma que garanta que ela seja, de fato, a questão real a ser

colocada, investigada. O apelo, assim, é à verdade da Verdade. Ora, isso é assim porque, de

maneira alguma, deve-se multiplicar os mandamentos sem apresentar as normas que lhes dão

validade, legitimidade. O Hiponense mostra isso quando procura um argumento que seja

válido sob quaisquer circunstâncias, contra o ceticismo dos Neo-acadêmicos. Por isso que, na

sua filosofia/teologia, em vastíssima produção, as abordagens sobre as questões do

fundamento da verdade e, no caso da moral, da verdade normativa que garanta o seu discurso

– o discurso da lei moral –, são temas reincidentes. E ele vê isso como necessário porque, em

21

RAMOS, 1960, p. 8-9. 22

AGOSTINHO, Santo. O sermão da montanha. Trad. Introd. e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo:

Paulinas, 1992. (Col. Espiritualidade).

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seu tempo, enfrentava o ceticismo dos filósofos Neo-acadêmicos, contra os quais escreverá

um livro e, com eles, em muitos outros, polemizará.

A verdade de Deus e os seus mandamentos não têm que descansar somente sobre a

fé, embora ela seja suficiente; podem também valer-se da razão para se afirmarem em favor

daqueles que, mesmo sem a graça da fé, têm mente, podem pensar, rememorar, aprender –

esse papel da memória e do aprendizado é aquilo que caracteriza o humano como ser (ou

agente) moral e, assim, faz com que ele se distinga dos animais que, irracionais, não foram

criados conforme “a imagem e semelhança de Deus”. Nisso tudo, no aprender, no aprender a

aprender e viver a aprendido, a memoria se mostra como a parte essencial e constitutiva do

homem, capacitando-o tanto a aprender como a lembrar-se de lembrar-se de Deus23

. A

memoria tem lugar privilegiado na obra de Agostinho, não somente enquanto

imagem/impressão mental biológico-subjetiva, mas também como documento histórico,

acúmulo de saberes que servem – ou se prestam – aos alicerces do progresso: o espiritual, o

histórico-social, que envolve todos os progressos da esfera material. É necessário fazer tal

distinção, uma vez que, ao que interesse, um lado ou outro pode ser mais ou menos

enfatizado. Mais do que uma preservação dos fatos históricos, a memoria, no caso da

memória documental, é aquilo que, no sujeito (e dele mesmo), permite que ele se re-conheça,

e re-conheça o Outro, com quem se relaciona em igualdade existencial/circunstancial – e daí

os primeiros cristãos utilizarem o substantivo plesíon/proximus (próximo) em lugar do

pronome alter (Outro), tão impessoal, e distante – e comum entre os filósofos gregos –; e daí

também o distanciamento e, pela via mística, a aproximação de/com Deus, e mesmo o falar

sobre Ele: apesar de tão diferente de nós24

, o Pai, pelo Espírito e através do Filho, se aproxima

de nós, nos aproximando dele. A identidade individual, portanto, está consignada à memoria

relacional: com o mundo, com meu proximu (e por isso a necessidade de uma ética, de uma

moral) e com Deus. Os homens, desde cedo, com o fito de preservarem a identidade humana e

garantirem o seu progresso, viram a memória histórica e documentada – com destaque para a

23

De fato, como afirma COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Trad. de

Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 24: “Pensar é lembrar-se de seus pensamentos; querer é

lembrar-se do que se quer. Não é, por certo, que só se possa pensar o mesmo ou querer o que já se quis. Mas o

que seria uma invenção sem memória? E uma decisão sem memória? Como o corpo é o presente do presente, o

espírito é o presente do passado, no duplo sentido da palavra presente: o que o passado nos lega e, em nós, o que

permanece. É o que santo Agostinho chamava de „presente do passado‟, e é isso a memória”. 24

“Em Deus”, diz Agostinho, “não há, como em nós, a previsão do futuro, a visão do presente e a recordação do

passado, é totalmente diferente a sua maneira de reconhecer, ultrapassando, muito acima e muito longe, os

nossos hábitos mentais” (De civ. Dei, 11,21).

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28

escrita25

– como aliada. De modo mais subjetivo e íntimo, a memoria de Deus, ou o lembrar-

se dele, denuncia no ser humano as vestigia Trinitatis, tornando-o ser moral, devendo o

humano, portanto, corresponder moralmente àquela Verdade que nele habita: o Mestre

interior. Nisso tudo, também o homem, e bem assim a humanidade, é apontado/a como tendo

um fim comum, último, um sentido de ser: e ser é recordar, rememorar. Não aceitando a

doutrina da anamnese platônica, Agostinho elabora a sua Doutrina da Iluminação. É essa

iluminação individual que, íntima do/no homem, mais do que um mestre da moral – um

professor que nos fala externamente, por exemplo –, nos ensina internamente o que é ou não

verdadeiro, o que é ou não moral. E contra a falha dos sentidos, a razão – que também é uma

ação íntima do Mestre – se oferece como outro recurso, sem os apelos da fé somente. Para a

moral e o agir moral, portanto, há que se assegurar a possibilidade de a verdade ser alcançada

e, sendo, ser ela mesma posta como fundamento e norma.

1.2. Eu, o mundo, o Outro: da necessidade de uma Verdade à moral normativa

As éticas do período helênico são fundamentadas na noção de eudaimonía (sendo a

estóica e a epicurista suas últimas grandes representantes), à qual Agostinho também adere,

mas que não se limita a tal noção. Ao colocar o primado do amor (caridade), “ama e faz o que

quiseres”26

, e este à luz do Mestre interior (da Verdade revelada ao intellectus e à fides), o

Hiponense estabelecerá o fundamento que, da Patrística até a Reforma, com Lutero27

, para

não mencionar tantos outros nomes, será dominante, mudando apenas com Immanuel Kant

25

E não por acaso Engels afirma numa das primeiras notas de rodapé que faz à edição inglesa de 1888, do

Manifesto do Partido Comunista, dizendo que a afirmação, “a história de toda sociedade até hoje”, refere-se à

toda a história escrita. Ver: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. 10. ed. Trad.

de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 66. (Col. Clássicos do Pensamento

Político, 24). 26

In Ioan. Evang., 7, 8. Ou: “Ama, e assim não poderás fazer senão o bem” (In Ioan. Evang., 10, 7). Santiago

Sierra Rubio, tratando sobre a ação moral de Cristo, enfatiza a causa precípua do advento de Cristo como sendo

uma exaltação ao/do amor (Cf. RUBIO, Santiago Sierra. Patria y camino: Cristo en la vida y en la reflexión de

San Agustín. Madrid: Ediciones Religión y Cultura, 1997. p. 103-5). O texto utilizado por Rubio é o que

encontramos em De cat. rud., I, IV,7: “Que maior causa pode haver da vinda do Senhor senão mostrar-nos Deus

o seu amor? E brilhantemente o demonstrou, pois éramos ainda pecadores quando Cristo morreu por nós!

...Porque a caridade é o fim do mandamento e o pleno cumprimento da Lei: para que nós também nos amemos

uns aos outros e, assim como Ele ofereceu por nós a sua vida, assim também demos a nossa vida pelos nossos

irmãos. [...] O amor é efetivamente mais grato quando não é perturbado pela aridez da necessidade, mas deriva

da bondade fecunda. Aquele provém da miséria, este da misericórdia.” 27

A ética cristã, conforme Stanley Grenz, é modelar em Agostinho “como Amor a Deus”, em Tomás de Aquino

“como realização de nosso objetivo”, e em Lutero e nos demais reformadores clássicos “como obediência de

quem crê”. (Cf. GRENZ, Stanley. Propostas de modelos cristãos. In: _____. A busca da moral: fundamentos da

ética cristã. Trad. de Almiro Pisetta. São Paulo: Vida, 2006. p. 149-92. [Col. Acadêmica]).

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29

(1724-1804), no século XVIII, que fundamentará a sua ética (lei moral) no dever28

, conforme

o imperativo categórico: “Age de tal forma”, como se, als ob. Em Agostinho, encontramos:

“Por esse amor, portanto, como por um alvo proposto, pelo qual digas tudo o que dizes, o que

quer que narres faze-o de tal forma que aquele que te ouve, ouvindo, creia e, crendo, espere e,

esperando, ame”29

. As semelhanças e diferenças entre os “imperativos” da ética de Agostinho

e de Kant foram tratadas em um artigo de John E. Hare30

.

Não há dúvida de que, na Modernidade, a palavra εθος seja muito mais pomposa e

bem mais utilizada/utilizável do que a sua tradução antiga, no vocábulo latino mores

(moralidade)31

. Éthos é um adjetivo substantivado que, em sua raiz etimológica, comporta

dois termos: éthos como “costume”, “uso”, “maneira de proceder”, etc., e êthos (morada

habitual, maneira de ser, caráter, toca, etc.). Temos, assim, duas concepções que parecem

distintas: uma puramente descritiva, de “ciência dos costumes”, e outra expressamente

normativa. Na classificação das virtudes, Aristóteles menciona duas: a intelectual e a moral.

“A primeira”, ele diz, “por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino – por isso requer

experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-

se formado o seu nome (ηθική) por uma pequena modificação da palavra (εθος)”32

. Foi Marco

Túlio Cícero (106-43 a.C.) quem, ao traduzir a éthiké (epistéme) pelo termo moralis

28

“Muitos filósofos viram a moralidade de uma maneira muito diferente. Alguns deles [dentre os quais,

Agostinho] pensavam que havia uma lei moral objetiva, mas que esta dependia da vontade de Deus. Outros

pensavam que a moralidade tinha algo a ver com a razão, mas que o exercício da razão consistia inteiramente em

promover algum objetivo, como a própria felicidade ou o bem estar da sociedade [aí se incluem desde

Aristóteles até os epicureus e estóicos]. Kant rejeita essas idéias, porque elas fazem a moralidade depender de

algo exterior a ela mesma: a vontade de Deus, ou o desejo de promover o bem-estar. Ele rejeita igualmente a

idéia de que a moralidade é apenas o desenvolvimento natural de certos sentimentos que pertencem à nossa

natureza humana. Isso não seria compatível com seu caráter intrinsecamente racional” (WALKER, Ralph. Kant:

Kant e a lei moral. Trad. de Oswaldo Giacóia Junior. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 7. [Col. Grandes

Filósofos]). 29

De cat. rud., I, IV,8; itálicos meus. O resultado da ação moral, fundamentada no princípio do amor, portanto,

deságua nas três virtudes teologais (cf. I Co 13, 13). No original latino: “[...] uti ille [...] audiendo credat,

credendo speret, sperando amet”. Para a moral do dever, em Kant, ver: KANT, Immanuel. Grundlegung zur

Metaphysik der Sitten. Karl Vorländer (Org.). Hamburg: Der philosophischen Bibliotek, 1965. p. 512. Bd 6

(BA 52). “Toda ação exige a antecipação de um fim, o ser humano deve agir como se (als ob) este fim fosse

realizável. [...] Segundo Kant, a noção de felicidade, que fundamenta por exemplo as éticas do período

helenístico, como a estóica e a epicurista, é insuficiente como fundamento da moral, porque o conceito de

felicidade é variável, dependendo de fatores subjetivos, psicológicos, ao passo que a lei moral é invariante,

universal; por isso seu fundamento é o dever” (MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos

pré-socráticos à Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 213). As semelhanças, cada qual à sua

proporção, como se vê, são enormes. 30

Cf. HARE, John E. Augustine, Kant, and the Moral Grap. In: MATTHEWS, Gareth B. (Ed.). The

augustinian tradition. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1999. p. 251-62. 31

Cf. MEEKS, Wayne A. As origens da moralidade cristã: os dois primeiros séculos. Trad. de Adaury Fiorotti.

São Paulo: Paulus, 1997. p. 11. (Col. Bíblia e Sociologia). 32

Et. Nic., II, 1,15.

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30

(scientia)33

, deu às duas concepções um sentido comum – aquele que, mais tarde, será

utilizado por Agostinho, para quem, etimologicamente, as duas palavras soarão como

sinônimos. E é o próprio Hiponense quem confessa a sua aproximação da filosofia por

intermédio da leitura de uma obra perdida de Cícero34

, e assim também, provavelmente, da

sua primeira noção dessa moral destoante daquela da tradição grega. Milton Valente, por

exemplo, diz que, “de todos os assuntos que trata a Filosofia, as preferências de Cícero vão,

incontestavelmente, para a Moral”35

. Logo em seguida, Valente afirmará que a concepção

peculiar de Filosofia, de Cícero, tem mais a ver com a moral que com a metafísica. Tal

afirmativa encontra respaldo numa passagem das Tusculanas, onde Cícero faz um elogio à

filosofia:

Ó Filosofia, farol da vida, ó indagatriz da virtude, ó exterminadora de vícios! Que

teria sido sem ti não apenas de nossa pessoa, mas até da própria existência humana?

Tu geraste as cidades, tu chamaste à vida social os homens dispersos, tu os uniste

entre si, primeiro pelos domicílios, depois pelos matrimônios e, finalmente, pela

comunhão da escrita e da língua. Tu foste a inventora das leis, tu a mestra dos

costumes e da Civilização. Junto de ti nos refugiamos, a ti pedimos auxílio. Se antes

em larga escala, hoje então nos colocamos todos e sem reserva em tuas mãos. Um só

dia vivido honestamente e de acordo com os teus preceitos é preferível a uma

imortalidade imoral36

.

A questão do ato que vira hábito, em Agostinho, tem suas raízes em Aristóteles37

; e

essa fusão de concepções numa moral que é, a um só tempo, especulativa e prática, uma

complementando a outra, tem em Cícero o seu primeiro fundamento. O que tem levado a

maioria dos autores a preferirem um termo mais que o outro é o que, segundo nos parece,

caracteriza a assimilação e o distanciamento daquele discurso que, nas obras de moral,

33

LISCU, Marin O. Etude sur la Language de la Phiolosophie Morale chez Cicéron. Paris: Société d‟Edition

“Les Belles Lettres”, 1937. p. 13, afirma: “En effet, Cicéron crée l‟adjectif „moralis‟ (du substantif „mos‟),

analogue à l‟adjectif grec ηθιτός (de ηθος), qui signifie „moral, relatif aux moeurs‟. Nous lisons das le De fato I

(au commencement du texte que nous possédons): „Quia pertinet ad mores, quod ηθος illi vocant, nos eam

partem philosophiae, de moribus appellare solemus: sed decet augentem linguam latinam, nominare moralem‟.

On ne trouve pás ce mot avant Cicéron et dans ce passage lui-même nous dit l‟avoir crée pour traduire le mot

grec correspondant.” 34

Conf., III, 4,7: “[...] aprendi eu os livros de eloqüência, na qual pretendia evidenciar-me, com um objectivo

condenável e frívolo, por satisfação da vaidade humana, e, segundo a costumada ordem de aprendizagem,

chegara a um livro de Cícero, cuja língua quase todos admiram, mas não assim o coração. Esse livro contém uma

exortação à filosofia e intitula-se Hortêncio. Foi esse livro que mudou os meus afectos e voltou para ti, Senhor,

as minhas preces, e fez outros os meus votos e os meus desejos.” Mais sobre a influência do Hortêncio na vida e

no pensamento de Agostinho, ver: EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. Trad. de João Rezende Costa. São

Paulo: Paulus, 199. p. 27-28. 35

VALENTE, Milton. A ética estóica em Cícero. Caxias do Sul – RS: EDUCS-EST, 1984. p. 19. No mesmo

sentido, ver: DEGERT, A. Les idées morales de Cicéron. 4. ed. Paris: Bloud, 1909; FAVRE, Jules. La morale

de Cicéron. Paris: Librairie Fischbacher, 1891. 36

Tusc., V, 5. 37

No próximo capítulo retomaremos essa questão.

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31

pensava-se ou pensa-se fundado, e fundamental. Parece haver, aqui, um dilema: se a ética

moderna não reivindica (ou descansa sobre) um fundamento, que não a razão, o dever (dever

ser) ou o “bom senso”, a “coisa melhor distribuída entre os homens”, nas palavras de

Descartes38

, e daí ser ela autônoma – e isso tem gerado, sem dúvida, muitas discussões quanto

à sua possibilidade, ou a validade de imperativos categóricos sintéticos a priori –, o que

garante a validade dos atos ético/morais? Parece que, mais que sempre, a questão permanece

aberta.

Se, por um lado, essa afirmação diz respeito à utilização terminológica de um termo,

por outro, estende-se à sua aplicabilidade prática. Ora, o substantivo mores, com o passar do

tempo, ganharia contornos de um legalismo que, oriundo de um modelo ideal (de origem

platônica ou neoplatônica), foi-se distanciando do mundo das pessoas de carne e osso. Esse

discurso da moral tinha por fundamento um modelo que, sendo eterno, era a medida exata

para a perfeição que os mestres da espiritualidade ou os profetas apregoavam – pessoas

extraordinárias que, para muitos, a medir pelo discurso que faziam e pela resposta que

pediam, não eram ou não podiam ser de carne e osso39

. Palavra e prática, nessa medida,

deveriam sempre andar juntas40

. Não por acaso, e por exemplo, encontramos o apóstolo Paulo

recomendando aos crentes da Igreja de Corinto: “Quanto ao mais, irmãos, regozijai-vos, sede

perfeitos, sede consolados, sede de um mesmo parecer, vivei em paz; e o Deus de amor e de

paz será convosco”41

. Há, também aqui, uma teleologia e uma praxidade que se impõem – e

38

Disc. met., § 1. 39

Exemplo disso é a Gnose (referimo-nos àquela doutrina que vingou entre os séculos I, II e III). Algumas linhas

gnósticas afirmam, dentre outras, que Cristo não veio em carne e nunca assumiu um corpo físico e, embora

parecesse um homem, não estava sujeito às fraquezas e às emoções humanas. 40

Assim: “Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4, 17) e, no entanto: “Pois não

faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse pratico.” (Rm 7, 19). Eis, de modo direto, o conflito da

vontade – e parece claro que, nessa acepção, podemos ir além do binômio – comum –: velha/nova natureza. No

primeiro caso há uma recomendação geral (válida para crentes e descrentes) e, no segundo, uma confissão

pessoal do apóstolo. Agostinho era conhecedor desses textos, e desse conflito. E nenhum pesquisador sério

ignorará as influências estóicas do apóstolo Paulo, que é, para Agostinho, como filtro dessas idéias, autoridade

(Cf. Conf., VII, 21,27). 41

2Co 13, 11. Para a mesma recomendação, às vezes em tom de exigência, ver: 1Co 2, 6; Fp 3, 15; Cl 4, 12. A

doutrina da perfeição (Doutrina do Perfeccionismo) – que entendemos aqui como uma hipérbole –, não é uma

novidade trazida pelo apóstolo, antes faz coro às palavras do Senhor em Mt 5, 48 e em Jo 17, 23. Tiago, noutra

parte, repetirá o mesmo: cf. Tg 1, 4. Em De serm. Dom., II, 21,69, Agostinho (AGOSTINHO, Santo. O sermão

da montanha. Trad. Introd. e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1992. [Col. Espiritualidade]),

valendo-se do texto de Mt 5, 43-48, pergunta: “Quem poderá cumprir os preceitos anunciados anteriormente

[...]? „Sede perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito‟. Todavia”, ele diz, “assim se deve entender: Deus é a

perfeição como convém a Deus, e o homem aspira a ser perfeito quanto lhe é possível ser”. Como poderemos ver

mais adiante, em especial nos textos que compõem o Sermão do monte, essa exigência é mantida, mas a sua

natureza é apelativa (embora imediata), apontando mais para a idéia do que a sua real realização. De qualquer, na

perspectiva dos idealistas gregos, o Perfeccionismo, também, estava presente. Wilbur Marshall Urban, por

exemplo, afirma: “Perfectionism in some form is the natural ethical philosophy of the great moral teachers and

prophets, and its idealistic form the natural expression of more elevated conceptions of life. But is by no means

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parece que isso não pode ser evitado. Acontece que, se se anuncia um discurso como não-

alcançável, então esse mesmo discurso só pode fazer sentido se se mostrar, na melhor das

hipóteses, como anúncio de um ideal, um alvo a ser atingido, e atingido para a obtenção de

algo. Mas, que algo? Que alvo?

Sim, tais perguntas se fazem pertinentes porque, como fica evidente, duas questões,

aí, entraram em cena: a questão do meio (percurso) e a do fim (finalidade). Uma ética que

negligenciasse os meios, por exemplo, seria uma ética imoral, como aquela da máxima

erroneamente atribuída a Maquiavel: “Os fins justificam os meios.” Tal ética, evidentemente

de uma perspectiva teleológica, afirmaria tanto a imoralidade (a ausência dos bons mores)

como a a-moralidade – no sentido nietzscheneano de “para além do bem e do mal”,

invalidando fundamentos metafísicos. De outro modo, se já não podemos perguntar por um

modelo ideal pelo qual as coisas (ou os valores) possam ser medidas – a não ser que a razão

assuma esse papel de uma vez –, como aquela ética que os mestres da espiritualidade ou os

profetas propunham, então corremos o risco de cairmos numa ética da situação, da

relatividade e, porque não, do vácuo. Vale o interesse de cada um, e, desse modo, vale a sua

própria ética, o seu próprio discernimento sobre o bem e sobre o mal; todos tendo a sua

própria razão. Tratar-se-ia de uma ética predominantemente circunstancial, própria, e, eo ipso,

fragmentada e diluída na intersubjetividade dos indivíduos. A vitória do indivíduo forçou o

confined to the teachers and prophets. It constitutes a well-defined moral theory which seems to many, when

properly interpreted, to be the only workable moral philosophy. This ethical theory found its first expression in

the works of the great Greek idealists, Plato and Aristotle, and resulted, in the first instance, from a criticism and

clarification of hedonism. When ethical reflection first arose among the Greeks, it found expression in the

natural or common sense notion that happiness constitutes the good of man. In meeting the ethical scepticism of

the Sophists, Socrates maintained that knowledge of the good is possible, that such moral insight is inevitably

followed by happiness. Socrates did not find it necessary to make any clear distinction between excellence and

happiness, but Plato and Aristotle did. Their way of thinking is described as Eudæmonism, to distinguish it from

hedonism. Eudæmonism is the theory that active well-being is the highest good of life and that that good is

always accompanied by pleasure. In a number of his dialogues especially the Phædo, Plato makes the distinction

clear, and later Aristotle, in the Nicomachæan Ethics, formulated it clearly. In a famous passage of that work he

starts out with the statement that „to say that happiness is the chief good seems a platitude, but the statement

means little until we determne wherein that happiness consists‟. He finds it to consist in perfection of function.

This Greek notion was taken over into Christian ethics, Christian thought in general being greatly influenced by

Greek philosophy. But something else entered into the Christian formulation, namely an emphasis on the self or

person. The unique value of every human soul, as a son of God, the injunction „be ye perfect as your Father in

Heaven is perfect‟, enunciated by the founder of Christianity and elaborated by St. Paul, finally entered into the

very warp and woof of Christian thought. St. Augustine and St. Anselm, both Platonists, carried on the Greek

tradition, but the complete formulation of Christian moral philosophy must be ascribed to St. Thomas Aquinas.

For him, as for Aristotle, everything in nature, every created thing, has its own good and its own perfection and

strives towards that perfection. The good of man consists in the perfection of his rational or spiritual nature, and

ultimately in the beatific vision of God from whom his being and reason are derived.” (URBAN, Wilbur

Marshall. Fundamentals of ethics: an introduction to moral philosophy. New York: Henry Holt And Company,

1947. p. 118-20). Voltaremos a tratar sobre a Doutrina do Perfeccionismo quando nos depararmos com a sua

suposta afirmação feita por Agostinho, no De sermone Domini in monte. Neste sentido, e para este sentido, ver a

nota 101 no capítulo dois do nosso trabalho.

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pensamento a cogitar um modelo que lhe fosse próprio, sem depender de mais nada além de

seu próprio poder de, mais que induzir, deduzir; sem depender do Outro, ou do semelhante. A

vitória do indivíduo retirou-o da coletividade medieval, lançando-o adiante de si mesmo.

Quem mais teria direito de lhe dizer o que fazer e como ser senão a sua própria razão? E é por

isso que existem tantas éticas, tantas definições para o termo e, ainda assim, como diz certo

autor, tanta carência de ética, tanta indecisão sobre o que ela “realmente” é e o que requer42

.

Os modernos tratados de ética, e são muitos, reclamam uma autonomia da razão. Mas se

enganam aqueles que pensam que as pessoas comuns vivem conforme essa razão, essa ética

sem Deus, impressa com papel e tinta. Acontece que, nos corações dessas mesmas pessoas e

nas suas memórias mais íntimas, solidificou-se um modelo que não concebia o universo sem

um governante, causa de toda a ordem e de Si próprio. Isso parece razão suficiente para

duvidar do poder da razão mandando nas ações das pessoas, nas ações individuais.

Parece que, se ficarmos por aí, ficamos; mas sem sabermos onde “realmente”

estamos. E, não sabendo onde estamos, é como se estivéssemos em nenhum lugar. O que nos

sobra? Sobra-nos perguntar por aquele “alvo”, por aquele “algo” fundamental. Tal pergunta

nos remete novamente àqueles questionamentos sobre uma moralidade normativa, uma ética

comum. Como doutrina filosófica, a ética é essencialmente especulativa e, a não ser quanto ao

seu método (analítico), não pode ser normativa; característica essa que é exclusiva do seu

objeto de estudo, a moral. Embora os termos sejam sinônimos, eles se distinguem (ou podem

ser distinguidos) no que diz respeito à sua empregabilidade: enquanto a ética trata das regras

que afirmam ou negam o que é ou não moral, a moral apela à natureza psicológica do

indivíduo, situando-o dentro de um grupo no qual e para o qual ele faz parte, devendo,

portanto, responder a certas regras adotadas pelo consenso. Contra a violação dessas regras,

que existem para a correção do indivíduo, adotam-se leis de natureza coercitiva e, para

quando isso não bastar, punitiva. Isso se dá assim porque o sujeito é, como diz Hugo de V.

Paiva, “um ser datado e situado”43

. Também nas narrativas históricas da História da Salvação

– na catequese, por exemplo –, não se deve ignorar, no sujeito, a sua origem, seu sexo, sua

idade, sua cultura e, enfim, os motivos que o levaram a “desejar” se inserir nessa mesma

História, como uma história (particular/individual) dentro da História (geral/universal). “Sua

42

"A ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que são, mas que não são fáceis de explicar, quando alguém

pergunta.” (VALLS, Álvaro L.M. O que é ética. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 7). É de se notar que

Valls faz, em relação à ética, referência a Agostinho, em relação à sua definição de “tempo”. 43

PAIVA, Hugo de V. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. A instrução dos catecúmenos: teoria e prática da

catequese. 2. ed. Trad. de Maria da Glória Novak. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 20.

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catequese”, diz ainda Paiva, “não pode ser intemporal, a-histórica e anônima”44

. É nessa dupla

perspectiva (da ética e da moral) do homem situado que

A catequese leva a boa-nova aos homens tais como são. E isto por uma dupla

exigência, pedagógica e teológica. A História da Salvação pessoal e a da

humanidade estão em estreita relação com a experiência bíblica de salvação. Por isso

o catequista levará o homem que quer encontrar-se com Deus a primeiro encontrar-

se a si mesmo45

.

Esse encontro pessoal, antes de tudo, é um encontro em que o sujeito se reconhece,

procura se reconhecer, perguntando: “Quem sou eu? O que me tornei?46

” Isso só se torna

possível quando se adentra o “palácio da memória”, onde moram as lembranças que nos

mostram o que fizemos, o que fizemos do que fizemos e, por isso, o que nos tornamos47

. A

experiência do (ou no) mundo e do (ou com o) Outro são fatores determinantes à nossa

formação moral. E é na memória que estão registradas as etapas dessa formação, como que

impressas para consultas posteriores, mesmo as que são feitas de modo inconsciente. Daí que,

nas palavras e pelas palavras, somente, sejam nas de um confessante piedoso ou de um grande

mestre de catequese, não encontramos a verdade, porque ela só pode ser descoberta no íntimo

de cada um. “A fé”, diz Agostinho, “não está no corpo que se inclina, mas na alma que crê”48

.

44

PAIVA, 2005, p. 20. 45

PAIVA, 2005, p. 20. Noutra parte, Paiva dizia: “Se ainda é permitido recorrer às categorias clássicas da

escolástica, pode-se distinguir [Paiva, nesse particular, comenta a Parte III de De cat. rud., de Agostinho] em

catequética um duplo aspecto: um material ou o conteúdo; outro formal ou a maneira de transmitir”. (PAIVA,

2005, p. 19). A pedagogia de Agostinho tem, ainda, as marcas da Antiguidade (Platão, Aristóteles, os Estóicos),

mas é, sob muitos aspectos, como poderemos ver, inovadora. 46

Conf., IX, 1,1: “Quem sou eu e como sou eu? Que mal há que não o tenham sido os meus atos, ou, se não os

meus atos, as minhas palavras, ou, se não as minhas palavras, a minha vontade?” O reconhecimento de si mesmo

é o reconhecimento de uma condição de limite e de carência: “Que sou eu para mim sem ti, senão um guia que

conduz ao abismo? Ou que sou eu, quando estou bem, senão uma criança que suga o teu leite ou frui de ti como

alimento que não se corrompe? E quem é o homem, qualquer homem, sendo homem? Mas zombem de mim os

fortes e os poderosos, e nós, fracos e desamparados, confessemo-nos a ti” (Conf., IV, 1,1). 47

Conf., X, 8,12,15: “Irei também além desta força da minha natureza, ascendendo por degraus até àquele que

me criou, e dirijo-me para as planícies e os vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis

imagens veiculadas por toda a espécie de coisas que se sentiram. Aí está escondido também tudo aquilo que

pensamos, quer aumentando, quer diminuindo, quer variando de qualquer modo que seja as coisas que os

sentidos atingiram, e ainda tudo aquilo que lhe tenha sido confiado, e nela depositado, e que o esquecimento

ainda não absorveu nem sepultou”. Tudo o que o indivíduo é ou se sabe ser, está guardado no seu interior (cf.

Conf., X, 7,11-13,68-70). O estudo da memória não é uma novidade no pensamento de Agostinho. Aristóteles,

por exemplo, faz a distinção entre os homens e os animais anotando que aqueles são superiores a estes porque,

diferentemente, têm a memória e, assim, a possibilidade do aprendizado, a avaliação dos valores, etc. Nas

palavras do Estagirita: “É da memória que deriva aos homens a experiência: pois as recordações repetidas da

mesma coisa produzem o efeito duma única experiência, e a experiência quase se parece com a ciência e a arte”

(Met., I, I,4). Os capítulos 7 a 9, do Livro I do De líber.arb., são usados por Agostinho para mostrar a Evódio

que a superioridade do homem, em relação às demais criaturas, consiste no uso da memória, em função da razão

e, consequentemente, da sabedoria. 48

De cat. rud., I, V,9. “De fato”, diz Agostinho, referindo-se à ignorância acerca das verdadeiras motivações do

catecúmeno, “não sabemos em que momento vem com o espírito aquele cujo corpo já vimos presente. [...] Se se

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O corpo pode ser visto, a alma, não. O corpo é a aparência externa, a alma, a essência interna,

íntima daquilo que se é, realmente. Assim:

Eles [os catecúmenos] precisam realmente saber que as idéias devem ser postas

acima das palavras, assim como a alma é posta acima do corpo: é preferível ouvir

palavras mais verdadeiras que elegantes, como é preferível ter amigos mais

prudentes que belos. Saberão também que não há voz para os ouvidos de Deus, mas

sentimentos da alma49

.

O conhecimento do “eu interior” é fator determinante não apenas para a compreensão

e aceitação de uma moral normativa, mas também para a compreensão e aceitação dos limites

da aplicação prática das normas dessa moral que, na filosofia cristã do Hiponense50

, acha-se

prescrita nas Escrituras e, de modo ainda mais profundo, no coração de todos os homens.

Voltando-se para si mesmo o eu encontra, aí, o caminho de volta para Deus, e assim, por

extensão, para aquilo que é ou representa o Bem51

.

Depois de exaltar o grande poder da memória, Agostinho continua perguntando:

“Que sou eu então, meu Deus? Que natureza sou?52

” E, depois de uma descrição do que é

possível encontrar em si mesmo, como em um passeio pela “planície da memória” – em seu

palácio interior53

, uma visão superficial –, e depois, adentrando por cavernas obscuras e por

lugares mais profundos, tão profundos que “em parte alguma está o limite”, como que dando

pistas do que poderia ser a resposta àquela pergunta sobre o que ele é, ele sai de si, mas o faz

ainda sob questionamentos: “Que farei, pois, ó meu Deus, tu, minha verdadeira vida?”54

. A

resposta vem em seguida:

aproximou de coração fingido, procurando humanos privilégios ou fugindo de transtornos, de um modo ou de

outro mentirá, e de sua própria mentira que se deve partir. Não para desmenti-la, por evidente [que pareça], mas

para fazer com que se alegre em ser tal qual deseja parecer... aprovando e louvando o propósito com o qual

afirma ter vindo... E o faremos, quer diga a verdade quer minta, se disser que veio com propósito realmente

merecedor de aprovação.” (De cat. rud., I, V,9). 49

De cat. rud., I, IX,13. Agostinho, aqui, dá instruções ao diácono Deogratias para a catequese de gramáticos e

oradores, indivíduos que, distintas do povo que forma a maior parte da comunidade dos fiéis, são mais atentas

aos erros da pronúncia, poderão, às vezes, como ele mesmo fazia, dar mais atenção ao estilo, à letra que ao

espírito da letra. Esses tais, se souberem que “não há voz para os ouvidos de Deus, mas sentimentos da alma”,

então eles “não zombarão ao verem chefes e ministros da Igreja invocando, talvez, a Deus com barbarismos e

solecismos, ou separando confusamente, por não as entenderem, as próprias palavras que pronunciam” (De cat.

rud., I, IX,13). 50

No que diz respeito à existência ou não de uma filosofia (cristã) em Agostinho, muito já se discutiu. Ver, em

relação a essa temática, NÉDONCELLE, 1958, p. 27-37. 51

Nas Confessiones, os capítulos VIII ao XXVII do Livro X são importantíssimos à questão da memória, em

todos os seus aspectos. Voltaremos à questão mais adiante. 52

Conf., X, 1,9. 53

Conf., X, 8,12-15. 54

Conf., X, 17,26.

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Irei também além desta minha força que se chama memória, irei além dela a fim de

chegar até ti, minha doce luz. Que me dizes? Eis que eu, subindo pelo meu espírito

até junto de ti, que estás acima de mim, irei além dessa minha força que se chama

memória, querendo alcançar-te pelo modo como pode ser alcançado, e prender-me a

ti pelo modo como é possível prender-me a ti. [...] Se te encontrar fora da minha

memória, estou esquecido de ti. E, se não estou lembrado de ti, como é que te

encontrarei?55

É a capacidade de se reconhecer como sujeito histórico, ou datado/situado, que faz

do homem um ser moral; e esse reconhecimento não esbarra, se não ignorarmos a

antropoteologia agostiniana56

, no próprio indivíduo (próprio e indivíduo são, aqui, termos

recíprocos, porém necessários), mas começa nele, como reconhecimento, e estendendo-se

para aquele que o fez. “Se te encontrar fora da minha memória, estou esquecido de ti. E, se

não estou lembrado de ti, como é que te encontrarei?” Como em Sócrates, que inaugura uma

nova fase no pensamento, que difere daquele dos fisiologistas, o ponto de partida para o

conhecimento do mundo é, primeiramente, o conhecimento de si mesmo. O trajeto não é

invertido, mas aprofundado na introspecção que, em si, não permanece estagnada, mas, antes,

se volta para o mundo, incluindo o pensante nele e, partindo daí, transcendendo-o. Se, antes, a

natureza era o ponto de partida para o conhecimento do mundo, agora é o eu que, somente

depois, se volta para a natureza, na qual se incluí e vai além, por perceber que, diferentemente

dela, ele é que propunha tais questões, diferindo-se tanto dela como dos animais que não têm

razão. Nessa introspecção, no entanto, o indivíduo descobre que, no mundo, há também o

Outro que, como um seu semelhante, pensa, interroga. E é no convívio dos iguais, porém

diferentes – a questão da “diferença” e da “alteridade” assume um valor enorme aqui –, que as

55

Conf., X, 17,26. Assim, nas palavras de CONCHE, Marcel. Orientation philosophique. Paris: PUF, 1990. p.

106: “Todo pensamento correrá continuamente o risco de perder-se, se não fizermos o esforço de guardá-lo. Não

há pensamento sem memória, sem luta contra o esquecimento e o risco de esquecimento.” 56

Nos Sol., II, 7, encontramos: “Deus e a alma”. Segundo ROCHA, Hylton Miranda. Pelos caminhos de santo

Agostinho. São Paulo: Loyola, 1989. p. 252: “Quando tentamos fazer uma abordagem da síntese no pensamento

agostiniano, constatamos que ocupa um lugar central no seu pensamento a preocupação antropológica. É aquela

atitude inicial (Quero conhecer a Deus e a alma), que vai marcar suas obras. O cosmos, que tanto atraiu os

Padres gregos, o cosmos que provoca a admiração e desperta hinos de júbilo, não vai atrair a atenção de

Agostinho. Para ele, é o homem, termo final da história, que provoca sua admiração”. Essa antropologia (ou

antropoteologia), caracterizada como um discurso sobre o homem que se volta para si mesmo e, daí, parte para

Deus, o Deus Uno-Trino, foi melhor desenvolvida por nós em nossa dissertação de mestrado: A antropologia

filosófica de Santo Agostinho no De Trinitate. João Pessoa: UFPB / CCHLA / Programa de Pós-Graduação em

Filosofia, 2004. Nesse particular, SCIACCA, Michele Federico. História da filosofia: Antiguidade e Idade

Média. Trad. de Luís Washington Vita. São Paulo: Mestre Jou, 1962. p. 181. v. 1, afirma que: “Para Agostinho,

a filosofia é antropologia. Mas está ele convencido que o homem não pode conhecer-se sem Deus, pelo qual o

diálogo que o homem mantém consigo mesmo, contemporaneamente, é diálogo com Deus. [...] Em outros

termos, para Agostinho basta que o homem (qualquer homem individualizado) reflita sobre si mesmo, desce às

suas profundidades e toca a sua raiz, pois se encontra com Deus. O encontro do homem com o homem é o

encontro do todo homem com Deus. Daí uma outra característica da filosofia agostiniana: o intrinsecismo

teológico: o problema de Deus é intrínseco ao homem enquanto homem, ele se impõe pelo fato que é homem.

Em suma, o problema de Deus surge no mesmo momento que o homem reflete sobre si mesmo.”

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normas morais se fazem necessárias. Sócrates, por exemplo, não estava tão preocupado em

compreender as várias definições e “demonstrações da virtude” como estava em definir o que

seria, realmente, a virtude. E, uma vez que ela exista, como existe. No Mênon, de Platão (428-

348 a.C.), encontramos esta passagem famosa:

Sócrates – [...] Também agora, a propósito da virtude, eu não sei o que ela é; tu

entretanto talvez anteriormente soubesses, antes de me ter tocado; agora, porém

estás parecido a quem não sabe. Contudo, estou disposto a examinar contigo, e

contigo procurar o que ela possa ser.

Mênon – E de que modo procurarás, Sócrates, aquilo que não sabes absolutamente o

que é? Pois procurarás propondo-te <procurar> que tipo de coisa, entre as coisas que

não conheces? Ou, ainda que, no melhor dos casos, a encontres, como saberás que

isso <que encontraste> é aquilo que não conhecias?

Sócrates – Compreendo que tipo de coisa queres dizer, Mênon. Vês quão erístico é

esse argumento que estás urdindo: que, pelo visto, não é possível ao homem

procurar nem o que conhece nem o que não conhece? Pois nem procuraria aquilo

precisamente que conhece – pois conhece, e não é de modo algum preciso para um

tal homem a procura – nem o que não conhece – pois nem sequer sabe o que deve

procurar.

Mênon – Não te parece então que é um belo argumento esse, Sócrates?57

O paradoxo de Mênon não difere em quase nada da conclusão agostiniana: “Se te

encontrar fora da minha memória, estou esquecido de ti. E, se não estou lembrado de ti, como

é que te encontrarei?58

” Para a relação verdadeira (logo, moral) com o Outro, há que se

assegurar a possibilidade da existência e da compreensão do que seja a verdade, isso que é, ou

deve ser, fundamento dos fundamentos. Caso contrário, cai-se na dúvida que, mais do que a

negação das normas, fomenta e enseja a suspeita (para não dizer “negação”) sobre a afirmação

de qualquer verdade, inclusive da própria existência de quem questiona: um ceticismo

intransponível.

A pergunta que fica é a seguinte: é possível o conhecimento, a posse da verdade? Se

sim, com quais razões essa possibilidade pode ser justificada? Pois o conhecimento só pode

ser conhecido por meio de um conhecimento anterior, e a verdade só se mostra verdadeira por

meio da verdade de si mesma e, assim, se auto-afirma e, consequentemente, se opõe a um

processo maior, extra factum proprium. Mas isso não suporia uma “segunda verdade” que

validasse aquela primeira? Ou seja, um conhecimento externo (outro conhecimento) que

testificasse a favor do conhecimento em questão? No Evangelho de são João, por exemplo,

quando o Cristo fala da sua autoridade como Filho de Deus, diz: “Se eu testifico a respeito de

57

Men., 80d-81a. 58

Conf., X, 17,26.

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mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro. Outro é que testifica a meu respeito”59

.

Assim, até onde nos parece, a verdade sempre precisa de uma outra verdade que a justifique,

logo maior que essa que necessita de justificação; mas, se a primeira verdade ainda não é

conhecida, ou provada, como ter certeza de que a outra o seja? E parece que a verdade precisa

ser sempre a verdade de algo – pois que o simples fato de postular esse algo ao qual a verdade

se dirige e assegura como a “coisa real” que lhe dá suporte, carece ser, ele mesmo, verdade

última; mas, quem é que o justifica no final? Tal verdade, absoluta, é e precisa ser Veritas sui,

e, igualmente, Causa sui.

O ceticismo com o qual Agostinho se depara, e contra o qual mais aponta as suas

armas, é aquele que, influente na Antiguidade, tem sua fonte maior é mais explícita em Pirro

de Élis (360-270 a.C.)60

, ressurgido de modo mais elaborado, por volta de 266 a.C., com

Arcesilau (315-240), discípulo de Platão e líder da nova fase da Academia de Platão, a Nova

Academia.

A influência da [Nova] Academia no Helenismo foi marcante, a tal ponto que o

próprio termo acadêmico passou a ser considerado sinônimo de cético, perdurando

esta confusão terminológica até o pensamento moderno, sendo encontrável em

muitos textos dos séculos XVI e XVIII, até que a história do ceticismo viesse a ser

reestudada de forma mais rigorosa61

.

A grande “culpa” de tal alcunha, depreciativa, é atribuída a Agostinho e ao seu

sucesso em refutar o ceticismo da Nova Academia em Contra academicos – o que teria

levado a Idade Média a ver, pela influência e brilhantismo do Hiponense, o problema como

59

Jo 5, 31-32 (ARA). O testemunho de Deus é feito por via indireta, mediante aqueles que são por Ele

iluminados, pela fé, pela revelação. É nesse sentido que Deus testifica a respeito do Filho mediante o testemunho

da Palavra e dos profetas, conforme encontrado em Jo 1, 5-9 e, acerca do qual, Agostinho faz a seguinte

exposição: “Por forças das palavras: a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam, constatamos que

a fé é imprescindível para se crer no que não se vê. Por trevas, o evangelista quer dar a entender o coração dos

mortais afastados da luz e incapazes de a contemplar. Por isso, acrescenta: Houve um homem enviado por Deus.

Seu nome era João. Este veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por

meio dele. Isso tudo já aconteceu no tempo e pertence à ciência e é um conhecimento histórico” (De Trin., XIII,

1.2). João é o “enviado por Deus”, e assim sendo, seu testemunho acerca do Filho é respaldado na autoridade

daquele que envia a João. Daí que, em Jo 21, 24, encontramos: “Este é o discípulo [João] que dá testemunho

dessas coisas [a obra vicária do Verbo encarnado] e foi quem as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é

verdadeiro [mediante a fé e a historicidade dos fatos que são, na época de João, conhecidos por muitos]” (BJ).

Cf., ainda, a esse respeito, De Trin., XIII, 1.3,4. 60

“O ceticismo surge de forma mais explícita e sistemática no pensamento clássico com Pirro de Élis (360-270

a.C.), praticamente contemporâneo de Aristóteles. O ceticismo de Pirro, entretanto, caracteriza-se mais como

uma atitude prática, um modus vivendi, do que como uma doutrina filosófica” (MARCONDES, Danilo. Há

ceticismo no pensamento medieval? In: DE BONI, Luis A. (Org.). Lógica e linguagem na Idade Média: atas

do 4º Encontro de Filosofia Medieval da Comissão de Filosofia Medieval do Brasil. Porto Alegre, 8-12 de

Novembro de 1993. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 284. (Col. Filosofia, 23). 61

MARCONDES, 1995, p. 285.

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solucionado62

. O próprio Platão63

é também responsável por certas noções do ceticismo

combatido por Agostinho e historicamente mal compreendido. No Teeteto, por exemplo, a

dúvida a respeito do conhecimento e de sua possibilidade caracteriza aquilo que marcaria os

filósofos da Nova Academia, desde Arcesilau até Carnéades (219-129 a.C.), Clitômaco (175-

110 a.C.) e outros menos conhecidos. Agostinho encara o problema afirmando que não

somente o conhecimento é possível como também é a crença em tal possibilidade (que está

para o verdadeiro filósofo) o único caminho possível para a verdadeira felicidade (beatituto) –

que é o fim último de toda verdadeira filosofia, e o que motiva o Senhor a, sobre o monte,

proferir as sentenças que compõem o famoso Sermão. Leitor de Cícero, Agostinho já

conhecia um argumento que, se não era o melhor como fundamento à estrutura do discurso e

do conhecimento, era, certamente, digno de toda atenção:

Havendo um só desejo de alcançar e conservar a felicidade por parte de todos, é de

se admirar a variedade e a diversidade de desejos acerca da mesma felicidade. [...]

Será falso aquele princípio do qual não duvidou o famoso acadêmico Cícero – ainda

que para os acadêmicos tudo sejam dúvidas –, o qual, no seu diálogo “Hortênsio”, ao

querer partir de uma única certeza, da qual ninguém duvidasse, coloca como exórdio

de seu discurso: “Todos certamente queremos ser felizes”? Longe de nós afirmar

que isso seja falso64

.

O Contra academicos, que é um diálogo ao estilo platônico, é constituído por três

livros que narram as discussões filosóficas entre Agostinho, seu filho Adeodato e três amigos

destes: Alípio, Trigécio e Licêncio. Inicialmente é tratado sobre a beatitude, tema que

Agostinho dedicará a outra obra sua redigida no mesmo ano de 386, o De beata uita. Apesar

de toda a influência de Platão sobre a composição do Contra academicos – obra que

Agostinho dedica a Romaniano, amigo seu e pai de um dos seus alunos em Cassiciacum –, a

62

“Após um período de grande influência no Helenismo, o ceticismo antigo teria praticamente desaparecido,

revivendo apenas quatorze séculos depois já no início do Pensamento Moderno. Isto teria ocorrido em grande

parte devido à sua refutação por santo Agostinho no diálogo Contra academicos (c. de 386-387). Os pensadores

medievais teriam assim simplesmente seguido a autoridade de santo Agostinho, adotando seus argumentos

contra os céticos acadêmicos como definitivos, sem que a problemática cética merecesse um exame mais

detalhado” (MARCONDES, 1995, p. 284). 63

“Certos traços característicos da filosofia do próprio Platão, como o caráter aporético dos diálogos socráticos,

o questionamento dos sentidos como fonte de conhecimento, etc.” (MARCONDES, 1995, p. 285). 64

De Trin., XIII, 4,7. No século seguinte, Boécio (c. 470-524), no De consolatione philosophiae, por boca da

própria Filosofia, aí personificada, continuará afirmando: “Todas as aspirações humanas, que se exercem pela

faina em muitas atividades, procedem, sem dúvida, por caminhos diversos, mas buscam chegar a um mesmo fim,

que é a felicidade. Este é o bem tão perfeito que, sendo possuído por alguém, não o leva a querer outro maior.

Este é o maior de todos os bens e encerra em si todos os demais, de tal modo que, se algum lhe faltasse, já não

seria o maior, porque ficaria fora dele alguma coisa que poderia ser desejada. Fica claro, pois, que a felicidade

consiste num estado perfeito pela congregação de todos os bens”. (De cons. phil., III, II). BOÉCIO, Anício

Severino. Consolação da filosofia – Livro III. Trad. de Luis Alberto De Boni. In: DE BONI, Luis Alberto.

Filosofia Medieval: textos. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 50. (Col. Filosofia, 110).

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obra se presta a combater o ceticismo neo-acadêmico e fundamentar a doutrina cristã sobre

uma base estável. Como adversário dos Acadêmicos, Trigécio argumenta que a felicidade só é

possível mediante a busca da verdade, sendo este o maior e mais sublime dever dos homens.

Licêncio sai em defesa dos Acadêmicos, afirmando que, para que a verdade seja conhecida, é

necessário que aquele que procura conhecê-la seja apto a reconhecer o erro, a fim de evitá-lo

– o que supõe um conhecimento prévio de um outro conhecimento, e aí se cai na

impossibilidade do conhecimento, como já demonstrado no paradoxo de Teeteto. É aí que

Agostinho e Alípio entram na discussão. Enquanto Alípio expõe o que realmente é a doutrina

da Academia, Agostinho afirma a diferença entre a antiga Academia – que não questionava a

possibilidade de a verdade ser alcançada – e a Nova Academia, onde reinava o ceticismo. Para

os neo-acadêmicos, o acesso à verdade é impossível. Mas o Hiponense julga que essa certeza

da impossibilidade do conhecimento é um paradoxo flagrante – pois o Eu que duvida se

antepõe à própria dúvida65

, e mesmo o enganar-se a respeito de si é, outrossim, afirmação do

Eu que se engana66

. Assim, diz ele:

De forma alguma temo os argumentos dos acadêmicos quando perguntam: mas, e se

te enganas? – Se me engano, existo67

, pois quem não existe não pode sequer se

enganar. Se, pois, existo porque me engano, como me enganarei a respeito de minha

existência quando tenho a certeza de existir pelo fato de que me engano?68

65

De Trin., III, 4,9. 66

De civ. Dei, XI, 26. 67

Nota-se aqui a semelhança entre o si fallor, sum de Agostinho e o cogito, ergo sum de Descartes. Nas

Meditações, por exemplo, Descartes argumenta: “Mas o que sou eu? Um ser que pensa! Sed quid igitur sum?

Res cogitans… O que é isso? Na verdade, um ser que duvida, que entende, que afirma, que nega, que quer, que

não quer, que imagina também e sente” (Med., II, 9; cf. também, Discurso de método. Trad. de J. Guinsburg e

Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 91-2). Nair de Assis Oliveira afirma que: “Apesar de

Descartes negar a influência de Agostinho em suas reflexões, por ignorar as obras do bispo de Hipona, escritas

há 1.200 anos antes, na verdade, o „cogito, ergo sum‟ de Descartes e o de Agostinho são uma só coisa, no

espírito de ambos. Pascal já constatava isso abertamente” (OLIVEIRA, Nair de Assis. Notas complementares.

In: AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Trad. de Agustinho Belmonte. 2 ed. Trad. e introd. de Agustinho

Belmonte. São Paulo: Paulus, 1994. p. 644). Mas essa afirmação é bastante contestada, como veremos logo a

seguir. 68

De civ. Dei, XI, 26. O Hiponense entende que o amor a Deus, mediante a fé nele, nesta vida, é a condição

essencial para o encontro com Deus, nesta vida e na outra que está porvir. O amor é, portanto, o “modo” de o

coração, mesmo sem os recursos do intelecto, assegurar também o seu critério de busca e encontro. É assim que,

“se Deus não é amado pela fé, o coração não poderá se purificar para tornar-se capaz e digno de vê-lo” (De Trin.,

VIII, IV,6). A elaboração do “cógito agostiniano”, nesse sentido, está fundamentada nessa regra da fé e do amor.

Mesmo que ARNAULD, A. Objeções às Meditações Metafísicas. In: DESCARTES. Oeuvres philosophiques.

Paris: Edicion F. Alquié, 1992. p. 632-5, tomo II, afirmasse que o “cogito” cartesiano não representava nenhuma

novidade, por já haver sido formulado por santo Agostinho, parece que Descartes tem razão ao afirmar que,

conforme nos diz ROSENFIELD, Denis L. Descartes e as peripécias da razão. São Paulo: Iluminuras, 1996. p.

17-8, “O parentesco entre as formulações respectivas de Santo Agostinho e de Descartes não pode velar uma

diferença fundamental, e esta reside no modo mesmo da elaboração do conceito da razão. Descartes já

respondera a Arnauld que só ele havia feito do „cogito‟ um princípio da filosofia, de uma razão soberana em

relação à fé [diferentemente de Agostinho, onde a fé é sempre soberana sobre a razão], e com isto ele punha em

relevo que a função desta proposição era bem a de vencer a dúvida cética mediante uma sua formulação

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Se Cícero afirmava a universalidade do desejo humano de ser feliz como um ponto

fixo, ou como o primeiro princípio de onde ele poderia partir na sua empreitada filosófica,

Agostinho, de modo mais veemente, vê, na própria dúvida, seja ela de que natureza for, esse

ponto, esse princípio. Platão também, por outros caminhos, havia procurado algo que fosse

exato e que lhe permitisse chegar a conhecer com segurança aquilo que ele ainda não

conhecia69

. Fez isso ao postular uma dialética ascendente, à moda dos geômetras. Assim, em

relação àquilo que se desconhece, Sócrates, dirigindo a Mênon, diz:

resistente a qualquer indagação e capaz, assim, de estabelecer as condições do conhecimento verdadeiro única e

exclusivamente através da razão. Em Santo Agostinho, ao contrário, o „cogito‟ encontra-se subordinado à fé e

aos seus „critérios de verdade‟, em nenhum momento defrontando-se com a incerteza de nada saber. O espírito

não deve afastar-se da autoridade da Sagrada Escritura, pois, se este parâmetro for abandonado, ele cai no

abismo da ignorância, nas conjeturas pessoais, no ceticismo de um mundo sem criador”. De modo semelhante,

SCIACCA, Michele Federico. San Agustín. Trad. de R. P. Ulpiano Álvarez Díez. Barcelona: Luiz Miracle,

Editor, 1955. p. 357. v. 1, tratando sobre essas comparações entre o Cogito cartesiano e o si fallor, sum, de

Agostinho, diz que a “semelhança ou identidade é [...] somente verbal”. Diz ainda que comparar a fórmula

agostiniana com a cartesiana constitui um “sério inconveniente: [pois] impede que se entenda corretamente o

distinto espírito que anima as mesmas fórmulas”. Mesmo que existam as diferenças – como demonstradas –

entre o cogito, ergo sum de Descartes e o si fallor, sum, de Agostinho, as bases antropológico-estruturais dos

argumentos, afora a natureza e o espírito de cada pensador, são por demais semelhantes. Descartes, inicialmente,

não utiliza a dúvida (ele não diz, por exemplo: “duvido, logo existo” – o que aproximaria ainda mais de

Agostinho) no seu método, que não lhe interessa como ato, mas como evidência do fato de que ele existe para

poder duvidar –, mas afirma o pensar (cogito) como passo inicial. Nas palavras de Descartes: “[...] resolvi fazer

de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as

ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso,

cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa” (Disc. met., IV parte). O ser, para poder

pensar – ou o pensar que descobre a necessidade inicial de ser para, então, poder pensar –, é o que é afirmado no

passo inicial do método cartesiano. Assim sendo, fique bem claro que a “semelhança” entre o cogito, ergo sum

de Descartes e o si fallor, sum, de Agostinho está mais na estrutura orgânico-metodológica que na

intencionalidade crível do discurso. Agostinho fala do engano apenas como prova de que ele é para poder se

enganar – não que se engana para descobrir, com base nesse engano, que é. Ou seja, ele não põe em dúvida a sua

existencialidade (que aponta para um Causador), procura apenas fundamentar o seu princípio nesse Princípio

Maior – coisa que Descartes, de maneira inicial, deixará “suspenso” até a sua inequívoca prova. Neste trabalho,

dado a sua intencionalidade primeira – relacionar o homem na compreensão de si mesmo para, daí, procurar

compreender a Deus e viver moralmente –, não será possível uma melhor análise dessa temática. Para tanto,

além das considerações de Sciacca e Rosenfield, supracitadas, ver: POLITZER, Georges. A filosofia e os mitos.

Trad. de Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 169-77. (Col. Perspectivas do

Homem). 69

“Até Platão, a filosofia vinha procurando explicar as coisas numa volta atrás: buscando o primeiro princípio

ou as primeiras raízes do universo, buscando uma origem no sentido de fundamento, mas também de começo. A

dialética platônica caminha noutro sentido. Procura explicar a situação atual do universo e dos seres, não por

meio de uma situação anterior, mas por meio de causas intemporais, que expliquem sempre por que cada coisa é

o que é. Platão, na verdade, está com isso adotando um método explicativo típico da matemática: o método dos

geômetras. Que consiste basicamente no seguinte: tendo-se um problema, levanta-se uma hipótese para resolvê-

lo; se ela parecer satisfatória, passa-se então a verificar se ela se sustenta a si mesma ou se supõe uma hipótese

mais geral – e assim sucessivamente. Cria-se, desse modo, uma cadeia de hipóteses interdependentes, que

buscam uma sustentação última – portanto, uma não-hipótese – que se baste a si mesma e que sustente, no final,

como que „do alto‟, todas as hipóteses que lhe estão subordinadas” (PESSANHA, José Américo Motta. Fé e

razão: a busca pela felicidade. In: AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 48.

[Col. Os Pensadores]).

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Parece então que é preciso examinar que tipo de coisa é aquilo que não sabemos

ainda o que é [nesse caso, a virtude]. Se mais não <fizeres>, então, pelo menos

relaxa um pouco o comando sobre mim e consente que se examine a partir de uma

hipótese se ela é coisa que se ensina ou se <é> como quer que seja. Por “a partir de

uma hipótese” quero dizer a maneira como os geômetras freqüentemente conduzem

suas investigações. Quando alguém lhes pergunta, por exemplo sobre uma

superfície, se é possível esta superfície aqui ser inscrita como triângulo neste círculo

aqui, um geômetra diria: “Ainda não sei se isso é assim, mas creio ter para essa

questão como que uma hipótese útil, qual seja: se esta superfície for tal que,

aplicando-a alguém sobre uma dada linha do círculo, ela fique em falta de uma

superfície tal como for aquela que foi aplicada, parece-me resultar uma certa

conseqüência, e, por outro lado, outra <conseqüência>, se é impossível que <a

superfície> seja possível disso. Fazendo então uma hipótese, estou disposto a dizer-

te o que resulta a propósito de sua inscrição no círculo: se é possível ou não”70

.

No Fédon, dirigindo-se a Cebes, Sócrates volta a descrever o seu método para chegar

a conhecer:

Eis o caminho que segui. Coloco em cada caso um princípio, aquele que julgo o

mais sólido, e tudo que parece de acordo com ele, quer se trate de causas ou de

qualquer outra coisa, admito como verdadeiro, e como falso tudo que não concorda

com ele. [...] Se alguém atacar o próprio princípio, não te inquietarás e não lhe

responderás antes de teres examinado as conseqüências que decorrem do princípio e

antes de teres visto se elas estão ou não de acordo entre si. E se fores obrigado a

justificar o próprio princípio, farás do mesmo modo, colocando outro princípio mais

geral, aquele que te aparecerá como melhor, e assim sucessivamente, até que tenhas

alcançado um que seja satisfatório71

.

Como no Banquete, onde Sócrates, iniciado no amor (ou na filosofia), por Diotima,

afirma que, na apreciação do belo, “deve-se se elevar aos poucos, como nos degraus

sucessivos (epanabathmoí) de uma escada”72

. Do mesmo modo, no Mênon, Platão adota o

“método dos geômetras”, fazendo sua filosofia ser, inicialmente, um jogo de hipóteses que

deve ir das causas gerais à particular. Se até o final, o conhecimento do geral não avançar para

esse particular (ou absoluto), ele continuará apenas no campo do provável, do hipotético,

longe ainda da verdade, do Real. Se ao final, porém, após haverem sido percorridas as

hipóteses, a verdade – ou o não-hipotético – se revelar, então aí estará o absoluto, a(s)

essência(s) eterna(s). De fato, ainda segundo Platão, existem articulações que ligam essências

a essências, generalizando-as cada vez mais, até que, por fim, pode-se contemplar aquele

Absoluto, ou Superessência que, em A república, denomina-se como Bem, Luz que é fonte de

toda luz que faz com que os objetos possam ser conhecidos e possamos conhecê-los. As

70

Men., 86e, 87b. 71

Fed., 100a, d. 72

Cf. Ban., 211c. A citação de Platão, aí, é traduzida por: GAZZINELLI, Gabriela Guimarães. Introdução:

diálogos entre o orfismo e a Filosofia Antiga. In: _____. (Org.). Fragmentos órficos. Org. e trad. de Gabriela

Guimarães Gazzinelli. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007a. p. 30. (Col. Travessias).

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figuras geométricas, inteligivelmente existindo e sendo apreendidas pelo intelecto, mesmo

que se mostrem apenas em imperfeitas demonstrações físicas, apontam – como também os

números matemáticos – para sua existência superior, incorruptível e eterna, no mundo das

idéias. É assim que Sócrates, dirigindo-se a Glauco, explicando sua intenção ao narrar a

chamada “alegoria da caverna”, diz:

Agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar [...] esta imagem que dissemos atrás e

comparar o mundo que nos cerca com a vida da prisão na caverna, e a luz do fogo

que ilumina com a força do Sol. Quanto à subida à região superior e à contemplação

dos seus objetos, se a considerares como a ascensão da alma para a mansão

inteligível, não te enganarás quanto à minha idéia, visto que também tu desejas

conhecê-la. Só Deus sabe se ela é verdadeira. Quanto a mim, a minha opinião é esta:

no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade,

mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e

belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz e o soberano

da luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a

inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e

na vida pública73

.

Ou seja, aquela idéia do Bem absoluto é o princípio que não necessita de princípio,

antes, sustenta-se a si mesma. Seria esse o Princípio Último ou, na linguagem de Aristóteles,

depois, a Causa Final74

; ou mais depois ainda, em Agostinho, Deus – Causa sui. O Hiponense

acredita que o homem, segundo as Escrituras, pode se reconhecer e se reconhece como agente

moral75

. Há, aí, um duplo apelo moral: o da compreensão e o da aceitação. A compreensão,

vinculada à razão, mesmo que não somente a ela, embora fale da existência de um princípio

normativo (ou uma Causa Final), não requer, exatamente, a aceitação, ou a submissão moral,

como no caso da aceitação, que já diz respeito a uma submissão, mesmo sem que se tenha, às

73

Rep., VII, 517 b/c. 74

Met., II, II,163s. Não nos compete, aqui, fazer qualquer juízo sobre a apropriação desse argumento que, tendo

o mundo físico como lastro, seria utilizado como lugar comum para a formulação de, por exemplo, argumentos

ontológicos ou cosmológicos, como o de Anselmo e de Tomás de Aquino. 75

Conforme se lê no Gênesis (1, 26-27), “Deus disse: „Façamos o homem à nossa imagem, como nossa

semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e

todos os répteis que rastejam sobre a terra‟. Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou,

homem e mulher ele os criou.” Agostinho associa a “imagem e semelhança” de Deus nos homens – e mulheres –

à razão, o intelletus: “Portanto, a alma do homem e a da mulher possuem manifestamente uma natureza idêntica,

e é em seus corpos humanos que está simbolizada a diversidade de funções dessa única e mesma alma. Quando a

alma ascende íntima e gradualmente através das partes da alma (Ascendentibus itaque introrsus, quibusdam

gradibus considerationis, per animas partes), onde começa a aparecer algo que não nos é comum com os

animais, é então que começa a razão (unde incipt aliquid occurrere, quod non sit nobis commune cum bestiis,

inde incipt ratio), e onde já se reconhece o homem interior” (De Trin., XII, 8.13). Em Agostinho, a ratio, que

distingue o homem das demais criaturas e que o faz portador da imago Dei, se opõe ao psiquismo animal. Há,

portanto, duas funções (officia), ou duas maneiras, de mencionar a ratio homini: a razão inferior e a razão

superior (cf. De Trin., XII, 3.3).

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vezes, a compreensão exata da sua esseidade – e aí, claro, aparece o elemento da fé, ou o

mysterium fidei.

“Compreender”/aceitar a Deus como Causa Final, Verdade de verdades, exige fé. É

com base em Is 7, 9 que Agostinho, no De Magstro, emprega a fórmula “Intellige ut credas,

crede ut intelligas”76

. Convém dizer que a concepção da razão, do seu lugar, mesmo aqui em

Agostinho, é vaga, confusa. É santo Anselmo quem, séculos depois, será responsável por uma

melhor definição posicional da razão junto à fé, e ainda em função da virtude cristã –

representada pela fórmula: “fides quaerens intellectum” (a fé em busca da compreensão)77

.

Um idealismo progressivo-linear que, desde Platão, vinha atravessando os séculos, e mostrou-

se mais ainda no doutrinamento moral da Igreja.

De fato, para Platão, tal como a virtude (αρεηή) que não pode ser ensinada – essa será

a função da filosofia, despertar a virtude que está em nós (anamnese, reminiscência) –, assim

também o conhecimento, inato, precisa ser extraído do sujeito. Sócrates, nas obras platônicas,

assume a figura de uma parteira que, por meio de perguntas (o método da maiêutica), faz o

sujeito rememorar aquilo que já sabe, uma vez que, como todos os sujeitos, também foi

partícipe da Idéia Universal, antes de existir materialmente78

.

No último dos nove diálogos que escreveu (o De Magistro, redigido em 389, em

Cartago, que é um diálogo, em muito, semelhante ao Mênon), Agostinho, como um outro

Sócrates, discute com Adeodato acerca dos rudimentos do entendimento e a fragilidade das

palavras ante a grande questão acerca da verdade e a possibilidade do acesso a ela. O

Hiponense ensina, mas não faz isso à força da argumentação persuasiva, antes, leva o seu

76

De Mag., XI. A mesma fórmula aparecerá no De Trin., VII, 6.12. Aí, o Credo ut intelligam surge como uma

necessidade básica, na filosofia/teologia de Agostinho, para qualquer ascese à Verdade real; as outras verdades,

como consequências, derivam dessa Verdade Primeira. “Creio para entender” é, também, uma crítica à doutrina

maniqueísta. A referida fórmula é obtida no livro do profeta Isaías (7, 9), onde se lê: “Se o não crerdes,

certamente não permanecereis”. A hermenêutica utilizada por Agostinho isola o texto de Isaías do seu contexto e

do seu significado imediato. O Hiponense interpreta livremente o versículo, aplicando-o mais ao seu modelo que

ao seu sentido próprio, na Escritura. GILSON, Etienne. A filosofia da Idade Média. Trad. de Eduardo Brandão.

São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 144, em relação a esse uso de Isaías na fórmula agostiniana, diz: “Os

maniqueístas haviam-lhe prometido levá-lo à fé nas Escrituras pelo conhecimento racional; santo Agostinho

propor-se-á, a partir de então, alcançar pela fé nas Escrituras a inteligência do que elas ensinam. Sem dúvida, um

certo trabalho da razão deve preceder o assentimento às verdades da fé; muito embora estas não sejam

demonstráveis, pode-se demonstrar que convém crer nelas, e é a razão que se encarrega disso. Portanto, há uma

intervenção da razão que precede a fé, mas há uma segunda, que a segue. Baseando-se na tradução, aliás

incorreta, de um texto de Isaías pelos Setenta, Agostinho não se cansa de repetir: Nisi credideritis, non

intelligetis”. É a certeza da fé que, para Agostinho, “de certa maneira, está na origem do conhecimento” (De

Trin., IX 1.1). A fé, para ele, é a base para o entendimento da verdade, e essa verdade só pode ser alcançada

mediante o exercício da fé. 77

Cf. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. 2. Ed. Trad. de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes,

2007. p. 118. 78

Exemplo clássico é o do escravo que ele, Sócrates, leva a descobrir, apesar da sua aparente ignorância,

problemas complexos da geometria (cf. Men., 82).

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interlocutor a perceber tudo isso, por si mesmo, à força de perguntas, naquela mesma

metodologia empregada por Sócrates.

Até o Livro VI do De Magistro, Agostinho mantém-se na tradição da Antiguidade.

Ora, dada a convencionalidade do signo linguístico (as palavras variam de língua para língua

e são sinais arbitrários das coisas), este não pode ter qualquer valor cognitivo muito profundo.

Portanto, não é através das palavras que conhecemos, e, se assim não é, então não podemos

transmitir conhecimento pela linguagem. Logo, a) a possibilidade de conhecer supõe algo

prévio, que torna inteligível a própria linguagem; e, b) não aceitando a anamnese platônica –

que parecia solucionar aquele paradoxo proposto por Mênon –, Agostinho desenvolve a

Doutrina da Interioridade, da Iluminação79

. O pensar, ou o pensamento (cogitare, cogitatio),

tem ligações indissociáveis com a memória interior, com o conhecimento e sua

possibilidade80

. A força da palavra não consegue nem ao menos mostrar o real pensamento de

quem fala; o Mestre interior, ao contrário, ensina tudo interiormente, e o homem, no seu

melhor esforço, “avisa” externamente, pelas palavras:

Estava certíssimo de que “as vossas perfeições invisíveis se podem tornar

compreensíveis desde o princípio do mundo por meio das coisas criadas, bem como

o eterno poder e a vossa Divindade”. Buscando, pois, o motivo por que é que

aprovara a beleza dos corpos, quer celestes, quer terrenos, e que coisa me tornava

capaz de julgar e dizer corretamente dos seres mutáveis: “Isto deve ser assim, aquilo

não deve ser assim!, procurando qual fosse a razão deste meu raciocínio ao

exprimir-me naqueles termos, descobri a imutável e verdadeira Eternidade, por cima

da minha inteligência sujeita à mudança. Deste modo, dos corpos subia pouco a

pouco à alma que sente por meio do corpo, e de lá à sua força interior, à qual os

sentidos comunicam o que é exterior – é este o limite até onde chega o

conhecimento dos animais –, e, de novo, dali à potência raciocinante. A esta

pertence ajuizar acerca das impressões recebidas pelos sentidos corporais. Mas essa

potência, descobrindo-se também mutável em mim, levantou-se até à sua própria

inteligência, afastou o pensamento das suas cogitações habituais, desembaraçando-

se das turbas contraditórias dos fantasmas, para descortinar qual fosse a luz que a

esclarecia, quando proclamava, sem a menor sombra de dúvida, que o imutável

devia preferir-se ao mudável81

.

79

Cf. De Mag., XI, 38; XII, 40. 80

“Com efeito, como nos mostrou Agostinho”, diz Jean-Michel Fontainer, “pelo movimento do pensamento, da

cogitatio, a alma colige conhecimentos que nela estão latentes e esparsos, mas ainda indiscernidos, para neles

fixar seu olhar e confiá-los à memória; ou então recolhe imagens na memória e volta para elas seu olhar para se

informar novamente. Mas, mais profundamente, cogitare é também reunir memória, visão interna e vontade:

quae tria cum in unum coguntur, ab ipso coactu cogitatio dicitur.” (FONTAINER, Jean-Michel. Vocabulário

latino da filosofia. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. p. 42). 81

Conf., VII, 17,23. A base bíblica da doutrina da iluminação, para Agostinho, está em Ef 3, 16-17 (cf. De Mag.,

XII) e em Mt 23, 8-10 (cf. De Mag., XIV). Ver, ainda: Conf., X, 6,9-10; De cat. red., II, 3. E a reminiscência

platônica é, sem dúvida, o germe – embora equivocado, para Agostinho – dessa doutrina. O Hiponense acredita

que, no entanto, ninguém se “aproximou” mais da Verdade do que Platão e os neoplatônicos (entre os quais:

Plotino e Porfírio) que são elogiados por ele como philosophi ceteris meliores (De Trin., IV, 16.21). A

causalidade aristotélica (cf. Met., II, 994 a-b) certamente se inclui nessa colocação. Tomás de Aquino, que era de

influência aristotélica, mas mantinha-se na doutrina de Agostinho – a quem citava freqüentemente como

autoridade –, também entende que os filósofos pagãos, ao fazerem uso da razão, chegaram naturalmente a

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Vê-se, aí, a afirmação de um princípio normativo. Os homens, guiados pelo Mestre

interior, podem chegar ao conhecimento de uma verdade em relação a eles mesmos, em

relação ao mundo e em relação ao Outro, e podem, assim, viver de um modo moral conforme

o fundamento de tal verdade82

. O imutável, normativo (a verdade conceitual, conceituada),

deve ser desejada para o sentido do existir, do conhecer e do querer (eixistir, conhecer,

querer) do sujeito. O existir implica a experiência mais imediata. Diz respeito ao

conhecimento primário do sujeito histórico, datado, situado; já o conhecer relaciona-se ao

aprofundamento disso tudo, em relação àquele que possibilitou a sua condição de existente; o

querer, por fim, mas não somente neste sentido, diz respeito à correta utilização da vontade.

Quisera que os homens meditassem três coisas, dentro de si mesmos. Todos estão

muito afastados da Augusta Trindade, mas apresento-lhes assunto onde se

exercitem, experimentem e sintam que longe estão de compreender este exercício.

As três coisas que digo são: existir, conhecer e querer. Existo, conheço e quero.

Existo sabendo e querendo; e sei que existo e quero; e quero existir e saber. Repare,

quem puder, como a vida é inseparável nestes três conceitos: uma só vida, uma só

compreender a necessidade de Deus como Primeiro Fundamento (tal como apresentado nas Escrituras), embora

tenham-no mencionado com outros nomes. Para o Aquinate: “Tudo o que dissemos até aqui [com respeito à

natureza de Deus e sua providência] foi sutilmente considerado por vários filósofos pagãos, ainda que alguns

deles hajam incidido em certos erros. Os que acertaram com a verdade só conseguiram chegar a ela após longa e

trabalhosa pesquisa. Há, contudo, outras coisas que a doutrina cristã nos transmite acerca de Deus. Trata-se de

coisas que os filósofos pagãos não conseguiram atingir. Para isto, segundo a fé cristã, recebemos uma iluminação

que ultrapassa a razão humana. Referimo-nos às seguintes verdades: embora Deus seja uno e simples [...], há um

Deus Pai, um Deus filho e um Deus Espírito Santo, de tal forma, porém, que os três não constituem três deuses,

mas um só Deus” (AQUINO, Santo Tomás de. Compêndio de teologia. Trad. de Luiz João Baraúna. São Paulo:

Nova Cultural, 1996. p. 153-4). Já na Suma Teológica (I Q. 84a, 5, Resp.), Tomás de Aquino afirma que

“Agostinho conhecia perfeitamente as doutrinas dos platônicos; sempre que descobria em seus ensinamentos

alguma coisa que se podia compor com a fé cristã, adotava-a; e as coisas que estimava não compor com a fé,

corrigia-as”. Mas a medida do “platonismo de Agostinho” é sempre medida pela autoridade da Escritura, que é

sempre privilegiada (cf. Conf., VII, 20-21). E EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. Trad. de João Rezende

Costa. São Paulo: Paulus, 1995. p. 55, diz: “A leitura dos neoplatônicos facultou a Agostinho ordenar seus

pensamentos. Focalizou alguns pontos de doutrina com os quais era capaz de em alguns casos harmonizar e em

outros contrapor os princípios fundamentais da fé cristã, pelo que chegou a entendê-la melhor. Agostinho vê a

Deus como Ser (que é também Uno). Plotino pensa de Deus como o Uno que está acima do Ser. Apesar da

diferença fundamental que isso implica no cerne dos dois sistemas, Plotino ajudou Agostinho a perceber mais

claramente a transcendência de Deus por sua ênfase na terrível distância do Uno. O Hortênsio o entusiasmara

fazendo-o perceber a existência de coisas mais elevadas. Aqui se achava a altura máxima e última.” 82

Nesse sentido, e nessa perspectiva, LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de filosofia V: introdução à Ética

Filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000. p. 70. (Col. Filosofia, 50), afirma: “As comunidades humanas são, por

natureza, comunidades éticas. O ethos é uma dimensão constitutiva de sua estrutura. No entanto, nas condições

variáveis e extremamente complexas em que essas comunidades se realizam penosamente na história, sua face

ética aparece quase sempre deformada ou velada pelos fatores poderosos que impelem os indivíduos e os grupos

na direção das necessidades e interesses, em que o encontro com o outro é medido pelas categorias da utilidade,

da dominação ou das satisfações subjetivas. Compreende-se, assim, a profundidade e a radicalidade da revolução

ética provocada pelo ensinamento de Jesus de Nazaré tal como no-lo transmitem os Evangelhos, e que

provavelmente não encontra paralelo na história das mensagens éticas. Aí faz sua aparição a noção de próximo

(plesíon, Lc, 10, 25-37) que, como manifestação mais perfeita do alter ego, dá origem igualmente à mais perfeita

forma do encontro com o outro na gratuidade do amor-dom (ágape).”

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inteligência, uma só essência, sem que seja possível operar uma distinção que,

apesar de tudo, existe. Cada um está diante de si mesmo. Estude-se, veja e responda-

me83

.

Observa-se aqui, nesse conhecer-se internamente, para chegar a conhecer a Deus –

mesmo que Deus seja “incomutável” à mente humana84

–, a grande semelhança com o, já

mencionado, “conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates. Agostinho faz isso aparecer claramente

quando diz: “Quando ouvir o „conhece-te a ti mesmo‟, como procurará agir se desconhece o

significado do que seja „conhece-te‟ ou o que seja „a ti mesmo‟?”85

. Ora, para chegar a

conhecer-se é preciso ter consciência de que se é alguma coisa. E como ninguém se cria a si

mesmo, ou é causa de si mesmo86

, então é necessário, ao conhecer-se, reconhecer aí a mão

criadora de Deus. Ou seja, para conhecer a Deus, o caminho mais curto é conhecer-se a si

mesmo. Com respeito a essa autoconsciência, Nair de A. Oliveira diz que

é preciso esclarecer [...] que o “conhece-te a ti mesmo!” não tem significado de um

simples conhecimento de si, isto é, das aptidões, do caráter, temperamento,

inclinações e fraquezas particulares de cada indivíduo. Significa, sim, o

83

Conf., XIII, 11,12. 84

Cf. Conf., XIII, 11,12; De Trin., V, 1.2. Por “incomutabilidade”, entende-se a impossibilidade humana de

compreender a Deus em todos os seus atributos, mesmo que o homem possa, por meio dos atributos que tem

(marcas da Trindade) chegar a conhecer algo de Deus. Em relação à incomutabilidade de Deus, Agostinho diz:

“Que há de estranho se não compreendermos a Deus? Se o compreendêssemos, ele não seria Deus” (Serm., 117,

5). Assim, como nesta famosa citação de Agostinho: “não é um pequenino início do conhecimento de Deus, se

antes de sabermos aquilo que ele é, começarmos a indagar aquilo que ele não é (Ep., 120, 3.13). Convém,

portanto, procurar “compreender a Deus, se pudermos, e na medida que pudermos: bom, sem qualidade; grande,

sem quantidade; criador sem necessidade”, e assim por diante, seguindo-se as categorias do real que Aristóteles

descreveu (cf. JOÃO PAULO II, João. Augustinum hipponensem. São Paulo: Loyola, 1987. II, 2, nota 87). Cf.

Conf., IV, 16,28. Para Agostinho, Deus, mesmo sendo incompreensível, não é, todavia, incognoscível (De Trin.,

V, 1.2). A partir dos seres criados (no homem, em especial) as perfeições do Deus incomutável podem ser

deduzidas por meio de dois procedimentos: a via da eliminação ou negação (aquilo que Deus não é) e a via de

eminência (aquilo que Deus é). Se a primeira retira de Deus tudo aquilo que de imperfeito é encontrado nas

criaturas, a segunda eleva ao infinito aquilo que, nelas, de perfeito, é encontrado. 85

De Trin., X, 9.12. 86

Cf. De Trin., I, 1.1. Dionísio, Pseudo-Areopagita, no V século, repetirá essa mesma expressão de fé no Deus

Uno-Trino como Causa substancial sustentadora e Princípio de tudo o que existe (ou que existirá) na natureza:

“[...] celebremos agora o Bem como Ser puro e como aquele que dá condição de essência a tudo o que existe.

Aquele que é (Ex 3, 14) é em poder e supra-essencialmente a Causa substancial de toda existência, é o Demiurgo

do ser, da subsistência, da substância, da essência, da natureza, o Princípio e a Medida das durações perpétuas, o

Ser de tudo o que de qualquer modo exista, o Devir de tudo aquilo que se torna, seja de qual maneira for. Do ser

procedem duração, essência, existência, tempo, devir e o que se torna, o ser que pertence aos seres, e tudo o que

existe, e tudo o que subsiste seja de qual modo for. Para dizer a verdade, com efeito, Deus não é ser segundo esse

ou aquele modo, mas de maneira absoluta e indefinível, porque contém em si, sintética e antecipadamente, [...] a

plenitude do ser. [...] O Ser é, portanto, a Perpetuidade das perpetuidades, ele que subsiste antes de toda

perpetuidade.” (PSEUDO-DIONÍSIO, O AREOPAGITA. Os nomes divinos. In: Obra completa. Trad. de

Roque Aparecido Fragiotti. São Paulo: Paulus, 2004. p. 79. (Col. Educadores da Humanidade). O texto citado do

Pseudo-Dionísio corresponde ao § 4. 817 C-D; para o mesmo sentido, e na mesma obra, ver § 7, 821 B-D. Uma

outra tradução para Os nomes divinos é a de SANTOS, Bento Silva: DIONÍSIO, Pseudo-Areopagita. Dos nomes

divinos. Introd. trad. e notas de Bento Silva Santos. São Paulo: Attar Editorial, 2004. Enquanto a edição anterior,

da Paulus, é uma versão do francês para o português, a edição da Attar é feita diretamente do grego.

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conhecimento da verdade da existência da pessoa, do seu ser verdadeiro em si e para

si, isto é, de sua própria essência como espírito, ou seja, a aquisição da

autoconsciência87

.

Ou seja, o conhecimento de si mesmo vai muito além daquele adotado por Sócrates,

que tinha uma natureza mais antropológica que espiritual. Em Agostinho, uma e outra coisa se

mesclam de modo indissociável. De qualquer modo, é assim também que, por exemplo,

Sócrates parte do belo material para chegar ao belo Ideal, do amor sensível ao Inteligível,

mediatizado. Mas esse Ser Ideal não é o Deus cristão, mas um deus necessário para por limite

à inaceitável redutio ad infinitum, ou o Ser necessário ao discurso total – tal engendrado por

Parmênides88

. Em O banquete, por exemplo, Platão (através de Sócrates) descreve a subida do

sensível para o Inteligível como uma ascensão conduzida pelo amor:

Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor

aos rapazes, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto

final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do

amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista

daquele belo, subir sempre, como que se servindo de degraus, de um só para dois e

de dois para todos os corpos belos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos

ofícios para as belas ciências, até que das ciências acabe naquela ciência que nada

mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo89

.

Nessa escalada do conhecido ao desconhecido, Platão postula uma dialética de rigor

matemático. Quando Agostinho diz: “Não saias de ti, volta-te para ti mesmo, a verdade habita

no homem interior”90

, está afirmando essa mesma escalada do conhecido (o homem) ao

87

OLIVEIRA, 1994, p. 643. 88

De nat., I, 25: “É necessário que tu experimentes tudo, tanto o ânimo intrépido da verdade bem redonda, como

as aparências dos mortais, nas quais não há confiança desvelante”. A “verdade bem redonda” é o Ser, em

Parmênides; as “aparências dos mortais” são as opiniões, ou seja, aquilo que não pode ser o Ser, mas apenas

“opinião”. Mais adiante, Parmênides diz que ó Ser é: “in-gênito, é também in-corruptível, pois é integro e in-

quebrantável, em verdade i-limitado; também não era outrora, nem será, porque é agora todo do mesmo, uno,

contido; pois que origem disto irás sondar? de onde para onde tem ele surgido?” (De nat., VI). Como o Ser, em

Parmênides, Deus é eterno e imutável (De Trin., V, 1-4), sem origem e sem fim – mas é evidente que

Parmênides não se refere ao Deus da teologia cristã – que lhe era completamente desconhecido –, mas ao Ser

necessário à dualidade movimento/repouso. Pois que, do contrário, seu rival, Heráclito de Éfeso (c. 540-470

a.C.), teria razão com sua doutrina do eterno devir. 89

Ban., 211c. 90

De vera rel., 39, 72. Essa confirmação da verdade interior, que aparece em muitas obras de Agostinho, pode

ser encontrada com muita clareza em De mag., XIII, onde Agostinho diz: “[...] mesmo nas coisas que são

intuídas pela mente, em vão todo aquele que as não pode intuir, ouve as palavras do que as intui, à parte ser útil

acreditá-las enquanto se ignoram. Todo aquele porém que as pode intuir – esse interiormente é discípulo da

Verdade, e exteriormente é juiz daquele que fala, ou melhor, da mesma locução, pois muitas vezes sabe as coisas

que se disseram, quando as ignora aquele mesmo que a disse”. A Verdade interior, aquela da iluminação, é,

sempre, verdade do Real. A Verdade interior, portanto, julga, sempre, a “verdade” exterior, fazendo-a adequar-se

a si ou, de modo diferente, condenando-a como erro. Ver ainda, no De mag., XIV. No capítulo I do Proslógion,

Santo Anselmo reafirma essa mesma posição agostiniana da verdade interior: “Para onde me dirigia, e aonde

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desconhecido (Deus), ascensão, como demonstrado, já presente em Platão, nas Enéadas de

Plotino de Licópolis (c. 205-269/70) e no neoplatonismo de modo abrangente.

Por causa dessa verdade que habita no homem interior, ou no interior do homem, o

homem, semelhante à Trindade (que é descrita por Agostinho numa relação de amor), também

ama, pode amar o Outro e agir moralmente. Não se pode amar, no entanto, aquilo que não é

conhecido: seja a Deus ou ao próximo91

. Deus, fonte de todo conhecimento verdadeiro e

verdadeira beleza, presente no homem, conduze-o a Si – como a luz que reflete no espelho e

volta para si mesma –, conduzindo o homem a si mesmo e, daí, para o próximo e para o

mundo92

. Diferentemente da ética antiga (socrático-platônica) e mesmo da ética dos estóicos,

em que o amor está fincado numa verdade que é impessoal – uma verdade filosófica –,

nomeada como justiça, sabedoria ou a felicidade, alcançada mediante as virtudes do intelecto

cheguei? A que aspirava, e em que estado suspiro? Busquei o bem, e eis a perturbação; dirigia-me para Deus, e

fui de encontro a mim mesmo. [...] Reconheço, Senhor, e dou-te graças, porque criaste em mim esta tua imagem,

para que lembrada de ti, pense em ti e te ame; mas foi tão estragada pelo desgaste dos vícios, tão ofuscada pela

fuligem dos pecados, que não pode fazer aquilo para que foi feita, se tu a não renovas e reformas”. E Tomás de

Aquino, tempos depois, falará, tratando sobre a Trindade, dessa iluminação interior dada por Deus – que é, para

ele, superior à razão dos filósofos pagãos: “Há [...] outras coisas que a doutrina cristã nos transmite acerca de

Deus. Trata-se de coisas que os filósofos pagãos não conseguiram atingir [mesmo que tenham atingido grandes

êxitos em direção à verdade, mediante “longa e trabalhosa pesquisa”]. Para isso, segundo a fé cristã, recebemos

uma iluminação que ultrapassa a razão humana. Referimo-nos às seguintes verdades: embora Deus seja uno e

simples [...], há um Deus Pai, um Deus Filho e um Deus Espírito Santo, de tal forma, porém, que os três não

constituem três deuses, mas um só Deus.” (Comp. theol., XXXVI, 70). 91

De Trin., VIII, 10.14: “O amor, porém, supõe alguém que ame e alguém que seja amado com amor. Assim,

encontram-se três realidades: o que ama, o que é amado e o mesmo amor. O que é, portanto, o amor, senão uma

certa vida que enlaça dois seres, ou tenta enlaçar, a saber: o que ama e o que é amado?” Comentando essa

passagem, Denis Huisman afirma: “Aquele que ama, aquele que é amado e o amor constituem uma unidade”

(HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins

Fontes, 2000, p. 257).Uma representação desta unidade seria a seguinte: O amado (quod amatur) estaria sempre

no centro da “atenção” daquele que ama (amans), unidos no amor (amor), formando assim uma unidade – ou

uma Trindade. Transportando as formas da linguagem (representativas) às Pessoas da Trindade (não

representativas), o Pai é amans (o que ama), o Filho é amatur (o que é amado) e o Espírito Santo é amor. Mas

essa tripartização das Pessoas – não da essentia – da Trindade traz um problema: se o evangelista (I Jo 4, 8)

afirma que Deus charitas est, então como relacionar a Caridade com o Espírito, qualificando-o em relação ao Pai

e ao Filho? Agostinho formula a questão da seguinte forma: “Agora, desejamos examinar se a sublime Caridade

é o Espírito Santo, de modo próprio. Caso não seja, investigar se é o Pai a Caridade, ou o Filho ou a mesma

Trindade. Isso porque não nos podemos opor à certeza da fé e à abalizada autoridade da Escritura que diz: Deus

é amor (I Jo 4, 16)” (De Trin., IX, 1.1). Sim, ao afirmar que “Deus é amor” ( ), o apóstolo

afirma a essentia Dei. Assim, toda a realização criacional de Deus é fundamentada nessa essentia e, a ela, está

condicionada. De modo semelhante, ao exortar os cristãos ao amor mútuo na assonância: “amados, amemo-

nos...” (I Jo 4, 7: agapētoi, agapōmen...), o apóstolo tem em mente que o amor procede de Deus (v. 7) e Deus só

pode ser conhecido mediante o amor. “Porque”, nas palavras de STOTT, John R. W. I, II e III João: introdução

e comentário. Trad. de Odayr Olivetti. São Paulo: Mundo Cristão / Vida Nova, 1982. p. 138, “Deus é a fonte e a

origem (ek) do amor, e todo verdadeiro amor deriva dele, [e assim sendo] é óbvio que todo aquele que ama, isto

é, que ama a Deus ou ao homem com aquela devoção que é o único amor verdadeiro segundo o ensino de João é

(literalmente, tem sido) nascido de Deus e conhece a Deus. Mas Deus não é somente a fonte de todo verdadeiro

amor; Deus é amor em Seu Ser mais profundo”. 92

É assim que “Deus só pode ser amado pelo Espírito que ele [mesmo] nos concedeu” (Conf., XIII, 21,46). O

amor de Deus, modelar, é demonstração da graça , graça que deve ser compartilhada, imitada: “Rogai a Deus a

graça de vos amar uns aos outros. Amai a todos os homens, também aos vossos inimigos” (Trat. in Epist. Joan.

ad Part., X, 7).

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e o correto posicionamento perante o mundo e o Outro, a ética agostiniana fundamenta tudo

na possibilidade da relação pessoal, conforme o modelo da Trindade. Os cristãos anteriores

ao Hiponense sofreram na tentativa de estabelecer uma via que, embora considerasse certas

algumas posições dos filósofos gregos, dos quais se sentiam devedores, fosse mais comum93

,

como uma regula fidei para o tema da moral. Sendo a Escritura a regra da fé, ela mesma é a

regra da moral, da ética, da vida cristã. O problema é que nunca houve uma uniformidade na

sua interpretação e, logo, uma tal “regra” se mostrou impossível. Em Agostinho, e pela

influência que exerceria na cristandade do seu tempo e posterior a ele, a via do amor,

conforme as suas exposições em várias obras, se mostrou o caminho melhor para o

estabelecimento de um consenso, ou o que mais se aproximou disso. É nesse nível que a

moral do Hiponense se apresenta como uma ética do amor a Deus. O mesmo peso que o

imperativo categórico kantiano94

tem na Modernidade, na nova moral laica, autônoma, teve

também, por toda a cristandade do Ocidente e do Oriente, a máxima agostiniana: “Ama e faze

o que quiseres”95

, ou a sua reafirmação atenuante, para os que poderiam pensar em

permissividades: “Ama, e assim não poderás fazer senão o bem”96

. “O paradoxo da ética

cristã”, diz Alasdair MacIntyre, “está precisamente no fato de que ela sempre tentou extrair

um código para a sociedade como um todo com base em pronunciamentos dirigidos a

indivíduos ou a pequenas comunidades para levá-los a separar-se do resto da sociedade”97

. Ao

que Grenz comenta: “Se a avaliação de MacIntyre estiver correta, grande parte do crédito pela

transformação da ética cristã num sistema de moralidade sobre o qual se pôde construir toda

uma civilização deve ser atribuído a Agostinho”98

. De fato. E como Henry Sidgwick sustenta:

“Uma parte importante da obra de Agostinho como moralista reside na conciliação que ele

lutou para efetuar entre o espírito antimundano do cristianismo e as necessidades da

civilização secular”99

. E é por isso que, para o Hiponense, é necessário o Outro: para que se

exerça/exercite o amor, que só é demonstrado na prática, no serviço. O Cristo que apregoa o

“código do Reino”, no Sermão do monte, é exemplo desse amor que vem habitar em meio aos

homens, e entre inimigos. O agir no amor, ou o agir moral – que se confundem (co-fundem)

93

Sendo a Escritura a regra da fé, ela mesma é a regra da moral, da ética, da vida cristã. O problema é que nunca

houve uma uniformidade na sua interpretação e, logo, uma tal “regra” se mostra impossível. 94

Ou seja: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei

universal”; ou, numa fórmula secundária: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar pela tua vontade

em lei universal da natureza” (KANT, 1965, p. 512. Bd 6 [BA 52, 53]). 95

Trat. in Epist. Joan., VII, 8. 96

Trat. in Epist. Joan., X, 7. 97

MACINTYRE, Alasdair. A short history of ethics. New York: MacMillan, 1966. p. 115. 98

GRENZ, 2006. p. 150. 99

SIDGWICK, Henry. Outlines of the history of ethics. Boston: Beacon, 1960. p. 132.

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em Agostinho –, exige um saber agir, saber como agir. “Ainda que o homem possa usar mal

da liberdade [de agir], a sua vontade livre deve ser considerada como um bem”100

. Imago Dei,

o homem é um ser-para-o-amor, em resposta àquele que lhe criou, e para o bem das demais

coisas criadas; imoral é contrariar aquilo para o que foi criado101

. O homem é um ser moral102

.

Daí se explica a possibilidade de o homem amar e fazer distinção entre o que é ou não,

segundo o seu juízo, moral. O juízo humano, no entanto, está sempre preso entre o saber e o

não-saber. Por isso, diz Agostinho, “todo aquele que se dedica ao estudo, ou seja, todo

espírito que deseja saber o que ignora, ama não o que desconhece, mas aquilo que sabe, e em

vista desse conhecimento deseja saber o que ainda não sabe”103

. É assim que, mesmo quando

o homem não conhece algo e afirma não conhecê-lo, afirma, enfim, este conhecimento do

não-conhecimento. Ora, “sem esse saber, ninguém poderia dizer com certeza que sabe ou não

sabe”104

. Portanto, ele conclui:

Deve saber o que seja saber, não somente o que diz: “Sei” e diz a verdade, mas

também aquele que diz: “Não sei”, e o afirma com certeza e na verdade, e sabe que

diz a verdade, e sabe o que seja saber. Mostra que sabe a diferença entre o que não

sabe e o que sabe, quando, intuindo a si mesmo com sinceridade, diz: “Não sei”.

Pois, ao afirmar que diz a verdade, como o saberia se ignorasse o que seja saber?105

Em Agostinho, nenhuma argumentação – seja da fides ou da ratio – terá sustentação

sem que, antes, seja aceita a possibilidade de uma verdade normativa e antisubjetivista que

possa ser comum a “todos os que são capazes de contemplar realidades invariavelmente

vedadeiras”106

. Daí a repetição, em muitas das suas obras, do argumento (verdadeiro) que ele,

100

De lib. arb., II, 18.48. 101

“Como está escrito, Deus fez o homem reto e, como tal, dotado de vontade boa. Não seria de fato reto se não

tivesse vontade boa. A boa vontade é, portanto, obra de Deus, pois foi com ela que foi criado o homem. Mas a

primeira vontade má, porque precedeu no homem todas as suas más obras, é menos uma obra que um defeito

pelo qual o homem, abandonando a obra de Deus, decai para suas próprias obras que, por tal fato, são más,

porque são como ao homem apraz e não como apraz a Deus” (De civ. Dei., XIV, 11). 102

Conf., II, 4,9: “Tua lei, Senhor, [...] lei inscrita no coração humano, e que a própria iniquidade não consegue

apagar.” 103

De Trin., X, 1.3. 104

De Trin., X, 1.3. 105

De Trin., X, 1.3. 106

Alguns exemplos: “Não é o ato de reflexão que cria as verdades. Ele somente as constata” (De ver. rel., 39,

37); “De modo algum poderias negar a existência de uma verdade imutável que contém em di todas as coisas

mutáveis e verdadeiras. E não as poderás considerar como sendo tua ou como exclusivamente minha, nem de

ninguém. Pelo contrário, apresenta-se ela e oferece-se universalmente a todos os que são capazes de contemplar

realidades invariavelmente vedadeiras” (De lib. arb., II, 12,33); “A tua verdade não é nem minha nem deste ou

daquele, mas de nós todos, e a todos chama publicamente à comunhão com ela, com a terrível advertência de não

pretender possuí-la em particular, a fim de que dela não sejamos privados. De fato, qualquer um que reclame

apenas para si aquilo que tu ofereces ao gozo de todos, e pretenda seu aquilo que é de todos, é expulso da posse

comum para a sua posse própria, isto é, da verdade para a mentira” (Conf., XII, 25,34); “Comum a todos é a

verdade. Não é nem tua e nem minha; nem deste e nem daquele: é comum a todos” (Enn. in. Ps., 75, 17). “Estas

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por meio da sua própria dúvida, afirma poder sustentar. Esse argumento do saber e do não

saber como saber do não-saber é muito semelhante àquele que é apresentado no si fallor,

sum:

Contudo, quem duvida que vive, recorda, entende, quer, pensa, conhece e julga?

Porque, se duvida, vive; se duvida, lembra-se da dúvida; se duvida, entende que

duvida; se duvida, é porque busca a certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que

não sabe; se duvida, é porque julga que não deve concordar temerariamente. E ainda

que duvide de todas as outras coisas, não pode duvidar destas, pois, se não

existissem, seria impossível qualquer dúvida107

.

Tanto em Contra academicos quanto em De civitate Dei e em De Trinitate,

Agostinho demonstra sua argumentação arrasadora sobre a dúvida com respeito a qualquer

certeza: “eu tenho certeza que existo!”108

, afirmava ele, “pois, como é que eu estaria enganado

sobre alguma coisa se não existisse para estar enganado?”109

. Em De Trinitate, a

argumentação com base na Escritura é, para Agostinho, a mais fundamentada e melhor110

.

Logo, nessa ordem, o si fallor, sum é, também, um argumento limitado – porque a mente é

limitada. Mesmo assim, por amor à verdade e para não se calar – mesmo que não diga muita

coisa com muita autoridade111

–, Agostinho, com o seu “cogito”, põe de lado, “por um pouco

de tempo”, a autoridade da Escritura e parte para um argumento fundamentado

exclusivamente na razão; um argumento que seja uma resposta da própria razão aos “gárrulas

citações”, diz Luigi Pereyson, comentando as duas últimas citações aí utilizadas, “confirmam o caráter

nitidamente antisubjetivista do personalismo, e a possibilidade de interpretar em sentido ontológico, e não

intimista, a própria doutrina agostiniana da interioridade do verdadeiro à mente.” (PEREYSON, Luigi. Verdade

e interpretação. Trad. de Maria Helena Nery Garcez e Sandra Neves Abdo. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.

283). 107

De Trin., X, 10.14. Já em De lib. arb., I, 7.16, Agostinho, em diálogo com Evódio, utilizara-se deste mesmo

argumento: “[...] E [antes de mais], dize-me se para ti é absolutamente certo que tu vives. EVÓDIO – Mas que

coisa posso eu responder, mais certa do que essa? AGOSTINHO – E consegues discernir isto, que uma coisa é

viver, outra conhecer que se vive? EVÓDIO – Eu realmente sei que ninguém, a não ser o vivente, conhece que

vive, mas se todo o vivente conhece que vive, ignoro-o. AGOSTINHO – Quanto desejaria que assim como

assentes em que os animais carecem de razão, do mesmo modo também o inteleccionasses; [...]. Muito bem.

Sendo todavia manifesto que o homem, em forças e várias operações corporais, é facilmente superado por

numerosíssimas feras, – dize-me igualmente qual é o princípio em que o homem sobressai, de modo que

nenhuma fera é capaz de mandar nele, e ele é capaz de mandar em muitas. Será talvez o que se costuma

denominar razão ou inteligência? EDVÓDIO – Não encontro outra coisa, pois é no espírito que está aquilo por

que superamos os animais.” 108

De Trin., III, 4.9. 109

De civ. Dei., XI, 26. 110

Cf. De Trin., I, 2.4. 111

De Trin., I, 3.5. Ele afirma isso em relação aos seus estudos sobre a Trindade, mas o mesmo é valido em

matéria de fé, que sempre transcende as fronteiras do pensamento. No De cat. rud., I, I,2, também, ele, depois de

falar das suas muitas ocupações, diz a Deogratias: “Na verdade, não pelos motivos que a ti, como amigo, me

prendem, mas também pelo que devo à Mãe Igreja, impelem-me a caridade e a obrigação todas as vezes que,

pela generosidade de Nosso Senhor, posso oferecer algo com o meu trabalho.”

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raciocinadores [...], a fim de que encontrem uma doutrina da qual não possam duvidar”112

. E

ele faz isso de outras formas, como no Capítulo IV dos Solilóquios, onde a Razão,

personificada, lhe pergunta:

R – Sabes ao menos o que seja uma linha em geometria?

A – É claro que eu sei.

R – Nesta afirmação não temes os acadêmicos?

A – De modo algum. Eles não aceitam que o sábio erre; mas eu não sou sábio. Por

isso, não temo dizer que conheço as coisas quando realmente as conheço. E se eu

chegar à sabedoria, como desejo, farei o que ela aconselhar.

R – Não retruco em nada113

.

Mais que a resposta da fé – que não carece de uma resposta além daquela revelada

nas Escrituras, embora não se oponha à sensata razão que anda por outros caminhos fora da

revelação, e no entanto procura pela mesma Verdade/Sabedoria –, Agostinho propõe a razão

como prova fundamental para aquilo que a cristandade, pela fé, simplesmente, já crê. Em De

civitate Dei, por fim, fortalecerá ainda mais a sua argumentação iniciada em Contra

academicos, inaugurando a Filosofia da História114

– argumentação essa que é, na realidade,

contra o ceticismo que duvida da possibilidade de a mente chegar ao conhecimento da

Verdade: “E ainda que duvide de todas as outras coisas, não pode duvidar destas, pois, se não

existissem, seria impossível qualquer dúvida”115

.

Quando o Hiponense propõe a sua dúvida como resposta aos céticos, parece ficar

certo que a mente pode duvidar de tudo, menos que existe e que duvida, pois que, para

duvidar tem de existir, e, se existe, então não pode duvidar que é alguma coisa: si fallor, sum.

Eis uma certeza inquestionável, a certeza da existência do que duvida, ou que se engana. A

maior prova de sua existência é, portanto, sua própria dúvida, seja ela qual for. “Conhecer-se

a si mesmo”, como na máxima adotada por Sócrates e mantida por Agostinho116

, implica em

conhecer mais a Deus, de onde vem o desejo e o conhecimento inicial de qualquer outro

112

De Trin., I, 2.4. 113

Sol., I, IV.9. 114

Para a legitimidade dessa afirmação – à qual voltaremos mais adiante –, vale o que foi dito por W. H. Walsh,

acerca do problema da objetividade histórica, que é, “ao mesmo tempo, o mais importante e o mais esquivo em

Filosofia Crítica da História”. (WALSH, W. H. Phylosophy of History. New York: Harper & Row Publishers,

1960. p. 95. [Col. Torchbook]). Se um autor contemporâneo vê tantos percalços em precisar uma filosofia para a

História, não é coisa que se exija do Hiponense. Ele, de modo nenhum, atende a requisitos atuais como

“imparcialidade”, objetividade”, etc. Mesmo assim, quando William H. Dray, em 1964, escreve o seu livro

Philosophy of History, problematizando todos esses temas e querendo assegurar uma imparcialidade à sua obra,

não deixa de anotar que: “Este livro não procurará defender nenhum sistema específico, dentre os muitos

propostos por filósofos (e quase-filósofos), e desde Santo Agostinho até nossos dias”. (DRAY, William H.

Filosofia da História. Trad. de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

1969. p. 10. [Col. Curso Moderno de Filosofia]). 115

De civ. Dei., X, 10.14. 116

Cf. De vera rel., 39, 72.

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conhecimento. Portanto, como diz o Hiponense, “nenhum homem estudioso e nenhum curioso

ama o desconhecido117

, ainda que persista num grande desejo de saber o que não sabe. Pois

tem conhecimento genérico do que ama, entretanto deseja ainda conhecê-lo melhor, ou em

algum aspecto particular ou nas coisas singulares não conhecidas, mas de que talvez tenha

ouvido falar”118

. Transpor esse amor, ou conhecimento – ou atribuição de beleza ou bondade

– presente nos objetos sensíveis para sua Fonte primordial, inteligível, é um passo, agora,

mesmo que não muito fácil de ser dado, possível – como demonstrado nas Confessiones, onde

o Hiponense diz que, “depois de ler aqueles livros dos platônicos e de ser induzido por eles a

buscar a verdade incorpórea, vi que „as vossas perfeições invisíveis se percebem por meio das

coisas criadas‟”119

, e aqui, em De Trinitate:

Outras vezes vemos alguma coisa na beleza da razão eterna e ao a amamos,

reproduzida na figura de algo temporal. [...] Outras vezes ainda amamos algo

conhecido que nos impele ao conhecimento de alguma outra coisa desconhecida.

Mas não nos apoiamos no amor do objeto desconhecido, mas sim no daquele que é

conhecido, ao qual sabemos que se relaciona, a fim de conhecermos aquilo que

procuramos, ainda desconhecido [...]. Finalmente, ama-se o próprio saber, o saber

que não passa desapercebido a nenhuma pessoa que sabe o que é saber. Por esse

motivo, parecem amar o desconhecido os que desejam saber o que desconhecem.

Mas devido ao seu desejo ardente de investigar, não se pode dizer que já não os

amimava o amor120

.

E aí se repete aquilo que, no De Magistro, já havia sido dito: que o saber é incitado

pelo Mestre interior: “Por palavras, não aprendemos senão palavras, menos do que isso: o

som e o ruído das palavras”121

, e: “Não aprendemos pelas palavras que repercutem

117

Nisso, Agostinho concorda plenamente com Aristóteles que, no início da Metafísica, afirma: “Todos os

homens, por natureza, desejam conhecer” (Met., A, 1, 980a). Agostinho, no entanto, faz uma distinção entre o

conhecer por conhecer – a curiosidade concupiscente – e o conhecimento real, aquele que aponta para Deus.

Veja, a propósito, o que ele diz em Conf., I, 10-20. 118

De Trin., X, 2.4. 119

Conf., VII, 20,26. O texto do apóstolo Paulo utilizado por Agostinho é o que se encontra na Epístola aos

Romanos, e que diz: “Porque o que se pode conhecer de Deus é manifesto entre eles, pois Deus lho revelou. Sua

realidade invisível – seu eterno poder e sua divindade – tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através

das criaturas, de sorte que não têm desculpa.” (Rm 1, 19-20, BJ). O segundo livro de Contra os Pagãos (Katá

Hellénon), de santo Atanásio, vem assim intitulado: “Conhecimento de Deus a partir da contemplação do

mundo”. Comentando essa passagem da Epístola aos Romanos, Atanásio diz: “Quem então, vendo o círculo do

céu e o curso do sol e da lua, as posições dos outros astros e as suas revoluções contrárias e dissemelhantes, mas

nesta dissemelhança conservando mesmo em tudo uma ordem idêntica, quem então não pensaria que estes astros

não se fizeram por eles próprios, mas que foi outro que os criou e ordenou? [...] Sendo o Verbo bom do Pai bom,

e ele que dispôs a ordem de todas as coisas, que adaptou os contrários aos contrários, formando uma única

harmonia. É ele que, poder de Deus e sabedoria de Deus (1Co 1,24), faz girar o céu, suspender a terra, e sem que

ela assente sobre coisa alguma, a mantém pela sua própria vontade” (Kat. hel., II, 35, 40). O fato de Deus querer

ao homem se revelar, seja pela natureza ou pelo seu Verbo, subtende-se que aquele a quem Ele se revela seja

capaz de compreendê-lo. Há, portanto, uma relação revelacional que é sustentada pela necessidade do próprio

termo: Deus natureza/Logos homem. 120

De Trin., X, 2.4. 121

De Mag., X, 33.

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exteriormente, mas pela verdade que ensina interiormente”122

. Do mesmo modo, em muitas

outras partes, Agostinho afirma que, quando o homem busca conhecer a verdade – ou a Deus,

mesmo que indiretamente –, é por uma ação interna da própria Verdade que nele habita: “Em

seguida aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao meu coração, conduzido por Vós.

Pude fazê-lo, porque Vos tornastes meu auxílio”123

.

A metodologia, como se vê, parte do concreto para o abstrato, reafirmando este como

o real. Os símbolos geométricos e as palavras, nesse sentido, são de grande valor ilustrativo,

mas é na introspecção, na auto-análise psicológica que o sujeito, voltando-se para si mesmo,

contempla o todo e, aí, transcende. No final de De Magistro, por exemplo, após travar

fervoroso debate com Adeodato, Agostinho ouve de sua boca a confissão de fé nessa verdade

exterior – e não é preciso ser cristão para saber que Adeodato fala do Cristo, que é, para ele, o

verdadeiro Mestre.

Quanto a mim, advertido pelas tuas palavras, aprendi que o homem, pelas palavras,

não é mais que incitado a aprender, e que é de muito pouco valor o fato de que

grande parte do pensamento de quem fala se manifesta pela locução. Se realmente se

dizem coisas verdadeiras, só o ensina Aquele que quando nos falavam de fora, nos

advertiu de que Ele habitava no interior. Eu o amarei desde agora tanto mais

ardentemente, quanto mais estiver adiantado em aprender124

.

O amor é, portanto, o “modo” de o coração, mesmo sem os recursos do intelecto,

assegurar também o seu critério de busca e encontro. Somente assim é possível ver, no outro,

a imago Dei e, como num espelho, ver-se a si mesmo, e ambos, no mundo. A ação moral,

fundamentada nesse entendimento, mais que o cumprimento de um mandamento, é um ato de

amor: pelo outro, por si mesmo.

1.3. Memoria, intellectus et voluntas

A memória tem lugar especial na filosofia/teologia (e na moral, por extensão) de

Agostinho e é, no mesmo modelo aristotélico – mas com uma diferença essencial que

destacaremos – retentiva; e será assim também por toda a Idade Média. O Livro X das

Confessiones, no que diz respeito à conhecida doutrina da “interioridade”, é exemplar, e a

122

De Mag., XIV, 46. 123

Conf., VII, 10,16. 124

De Mag., XIV.

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memoria, aí, tem destaque125

. Isabelle Bochet, por exemplo, faz as seguintes considerações

em relação às análises da memória, feitas por Agostinho, onde ele trata sobre a possibilidade

do conhecimento de/sobre Deus, no exercício introspectivo.

Conhecimento de si e conhecimento de Deus mostram-se [...] indissociáveis, como o

demonstra a análise da memória no livro X. A memória não é tanto a faculdade de

lembrar o passado, é o espírito em sua fonte; Agostinho quer provocar em seu leitor

um terror frente a suas profundezas, a fim de prepará-lo para ver nelas um

“santuário”: se “o espírito é muito estreito para abraçar a si mesmo”, é porque ele é

feito para algo maior do que ele mesmo. A presença de Deus é descoberta dentro de

si, mas num movimento de superação de si: Deus é “mais interior em mim do que

meu fundo mais íntimo e mais elevado do que os pontos mais elevados de mim

mesmo”. A análise permite, além disso, esclarecer esse paradoxo da busca; não se

pode procurar aquilo de que não se tem nenhuma idéia; como, então, procurar Deus

se já não o tivéssemos encontrado?126

É pela memória que nos conhecemos, conhecemos o Outro e “conhecemos” a Deus.

Todas as relações, tanto com Deus quanto com o Outro, só são possíveis mediante o exercício

do lembrar-se, do fazer-se lembrar, do ser lembrado, do lembrar-se de lembrar. Afinal, só se

re-conhece o que já se encontra na memória – o conhecimento do novo, assim, sempre

depende de um conhecimento prévio, que o antecipe. E é assim que, também numa alusão

àquele paradoxo do Mênon, Agostinho utiliza-se de um texto do Evangelho de são Lucas127

para propor a seguinte questão:

Uma mulher perdera uma dracma e procurou-a com uma candeia, e, se não estivesse

lembrada dela, não teria encontrado. Tendo-a, pois, encontrado, como saberia se era

aquela, se dela não estivesse lembrada? Lembro-me de ter procurado e encontrado

muitas coisas perdidas. E sei-o porque, ao procurar alguma delas e ao ser-me dito:

“Porventura é isto?”; “Não é, talvez, aquilo?”, durante esse tempo eu dizia: “Não é”,

até que aparecesse aquilo que procurava. Se não estivesse lembrado dessa coisa,

qualquer que ela fosse, ainda que ela aparecesse, não a descobriria, porque não a

reconheceria. E sempre assim acontece, quando procuramos e encontramos uma

125

Nas palavras de Peter Brown: “Agostinho escreveu as Confissões com o espírito de um médico que se

houvesse comprometido recentemente, e portanto, de modo ainda mais fervoroso, com uma nova forma de

tratamento. Assim, nos primeiros nove livros, ilustrou o que acontecia quando esse tratamento não era

ministrado, a maneira como viera a descobri-lo e, pulando uma década, demonstrou no Livro X a sua aplicação

contínua no presente. [...] O surpreendente Livro X das Confissões não é a afirmação de um homem curado: é o

auto-retrato de um convalescente”. (BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia. 4. Ed. Trad. de Vera

Ribeiro. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2006. p. 213-14). É esse questionamento interior que faz com que o

Livro X das Confessiones seja, sempre, tão atual. E Agostinho foi o primeiro a levantar e aprofundar tão

magistralmente o tema. Nesse sentido, ver: BIOLO, Salvino. L‟autocoscienza in S. Agostino. In: Analecta

Gregoriana. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 2000. p. 86-93. v. 172. (Series Facultatis

Philosopicae: sectio B, n. 15). Ver ainda: LUIS, Pio de. Las Confessiones de San Agustin comentadas: Libros

1-10. Valladolid: Estudio Agustiniano, 1994. (Col. Comentarios). 126

BOCHET, Isabelle. Santo Agostinho. In: JAFFRO, Lauren; LABRUNE, Monique. (Orgs). Gradus

philosophicus: a construção da filosofia ocidental. Trad. de Cristina Machado. São Paulo: Mandarim, 1996. p.

43. 127

Trata-se de Lc 15, 8-9.

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coisa que perdemos. Contudo, se, por acaso, alguma coisa, como qualquer corpo

visível, desaparece da vista, não da memória, conserva-se interiormente a sua

imagem, e procura-se, até que seja restituída à vista. Logo que for encontrada, é

reconhecida pela imagem que está dentro de nós. Não dizemos que encontramos o

que estava perdido, se não o reconhecemos, nem o podemos reconhecer, se não o

reconhecemos, nem o podemos reconhecer, se não nos lembrarmos: mas aquilo que,

de fato, estava perdido para os olhos, conserva-se na memória128

.

Dizer que a história da memória é um capítulo longo é, sem dúvida, erro dos mais

grosseiros. Acontece que a própria História, e toda ela, é a História da Memória – termos que

chegam a ser, por vezes, sinônimos. Quando Agostinho trata de uma questão particular, ou de

uma história dentro da Grande História, fala das relações entre indivíduos – e é aí que a

questão da moral se insere. Do mesmo modo, e não por acaso, quando falamos em uma ética

ou moral agostinianas, referenciadas pelo inevitável De libero arbitrio, ou as Confessiones ou

ainda o De civitate Dei, nos reportamos às preocupações pastorais do Bispo de Hipona, bem

como o seu próprio questionamento sobre o mundo, sobre o Outro, sobre si mesmo. A

pergunta que Agostinho faz no Livro X das Confessiones, depois do longo relato da sua

conversão (L. I a IX), é: quem sou eu? o que me tornei? Por todas as partes do Livro X o auto-

exame moral se faz evidenciado129

. Pensar sobre os processos que levaram-no até ali é

rememorar; um rememorar da vivência com o outro que lhe fez – como no caso do relato

dramático das mortes de Nebrídio e de Adeaodato, bem como as relações com Mônica ou

com a mãe de Adeaodato –, e de Deus, que fez a todos. Todas essas relações, e tantas outras

que não mencionamos aqui, e que ele não menciona ali também, forjaram a sua

personalidade; todas essas relações estiveram marcadas por um posicionamento que, no lastro

da memória, deram-lhe um alicerce moral, que é aquela moral cristã, com a qual ele,

convertido à religião de Mônica, agora se identifica e defende. É assim que, por exemplo, ele

dividirá a humanidade em dois grandes blocos: os que fazem parte de Civitas celeste e os que

fazem parte da civitas terrena130

.

128

Conf., X, 18,27. 129

Na divisão metodológica feita por Pío de Luis, comentando o Livro X das Confessiones, encontramos: “La

estructura es [...] clara: un prólogo, dos partes y un epílogo. En el prólogo (1,1-5,7) da a conocer qué pretende

con este nuevo libro y qué le mueve a escribirlo. La primera parte (6,8-27,38) tiene por objecto el conocimiento

de Dios, obtenido en un proceso de búsqueda a través de la realidad exterior e interior al hombre. La segunda

(28,39-41,66), el conocimiento – o desconocimiento – de sí en el aspecto moral, mediante un examen de

conciencia que toma como pauta las tres concupiscencias. El epílogo (42,67-43,70) presenta a Cristo como

verdadero mediador que le posibilita el acesso al Dios conocido en la primera parte, al que no puede llegar por

sus propias fuerzas, debido al débil estado moral que há descubierto en la segunda” (DE LUIS, Pío. Las

Confessiones de San Agustín comentadas: Libros 1-10. Valladolid: Estudio Agustiniano, 1994. p. 492. [Col.

“Comentarios”, 3]). 130

A própria redação do De civitate Dei, a exemplo da Historiae adversus paganos de Paulo Orósio (c. 383/5-

420/23) – discípulo de Agostinho que, a pedido do seu mestre, redige a obra citada –, vem inaugurar os

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Na Civitas celeste estão os que, mesmo não compreendendo todos os processos da

Grande História, aceitam-na; fora da Cidade celeste ficam os que, apegados à “sua” própria

história, edificam as cidades terrenas, fazendo seus próprios planos. Os que habitam a Cidade

celeste, como Abel, nada edificam – pois o próprio Deus é quem lhes edifica, e por isso

mesmo, são quais peregrinos neste mundo, tendo a sua pátria no céu –, diferente dos que

habitam a civitas terrena, como fez Caim131

.

Como dito por Hegel, “o elemento de interioridade que faltou aos gregos

encontramos nos romanos”, e “esse novo princípio é o eixo sobre o qual gira a história

universal. Até aqui, e a partir daqui [da interpretação cristã da História], desenvolve-se a

história”132

. No século XII, com o desenvolvimento dessa interioridade, na tradição moral da

opúsculos (ver a Filosofia da História, de Georg W. F. Hegel, por exemplo, que mantém o modelo da Trindade

agostiniana no triádico movimento da dialética) das filosofias da História, e o paralelismo que se vê ali, entre a

História sagrada e a secular, é outro exemplo da “memória histórica” que caminha para um porvir escatológico,

teleológico, fundamentado. É assim que Hegel chega à afirmação de que “Deus só é conhecido como espírito por

ser a Trindade. Esse novo princípio é o eixo sobre o qual gira a história universal. Até aqui [Hegel tratara sobre a

marcha do Espírito na história universal, chegando ao império romano, e ao evento do cristianismo], e a partir

daqui, desenvolve-se a história” (HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. 2. ed. Trad. de

Maria José e Hans Harden. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 271). Mais adiante ele dirá,

fazendo coro com a questão do “espírito da interioridade”, também inaugurado por Agostinho: “O elemento de

interioridade que faltou aos gregos encontramos nos romanos; todavia, por ser formal e indeterminado em si, ele

retirou o seu conteúdo da paixão e da arbitrariedade – ou seja, o que de mais infame poderia aqui se ligar ao

temor divino. [...] Esse elemento da interioridade foi realizado mais tarde como personalidade dos indivíduos.

Essa realização é adequada ao princípio, e tão abstrata e formal quanto ele. Como esse „eu‟, sou para mim

infinito; a minha existência é minha propriedade e minha valorização como pessoa” (HEGEL, 1999, p. 272). 131

De civ. Dei., XV, 1.1. E, noutra parte: “Diz a Escritura que Caim construiu uma cidade e Abel, como

peregrino, nenhuma ergueu” (De civ. Dei., XV, 1.2). Os representantes da Cidade celeste, na terra, vivem na

cidade dos homens – daí o permanente conflito das trevas em relação à luz. A condição do cidadão do céu é a de

um peregrino. Se ele vive no tempo, vive em função da eternidade; mesmo admirando as coisas belas da cidades

terrenas – pois que as coisas belas existentes na cidade terrena apontam para a real beleza da Cidade celeste –, o

coração do peregrino está sempre enamorado da Cidade celeste. É assim que Agostinho ensina, com base na

Escritura (cf. Lc 12,31-34; Cl 3,1-3). Se Platão usa o termo “sombra” para falar das coisas que existem e

apontam para a Idéia Perfeita, de onde procedem, Agostinho usa o termo “figura” – que tem o mesmo sentido –

para falar de alguma perfeição ou beleza que porventura exista na cidade terrena, como “sombra” da perfeição e

beleza que só é real na Cidade celeste: “Parte da cidade terrena veio a ser imagem da Cidade celeste”, ele diz. E

essa cidade terrena, ele conclui: “não simboliza a si mesma, mas a outra e, portanto, serve-a. Não foi fundada

para ser figura de si mesma, mas da outra. [...] Encontramos, pois, na cidade terrena duas formas: uma, que

ostenta sua presença; outra, que é, com sua presença, imagem da Cidade celeste” (De civ. Dei., XV, II). E daí a

moral dos cidadãos da Cidade celeste ser, ou dever-ser, diferente daquela da cidade terrena. Esta tem o seu

arkhétypos no fratricida Caim, já a Cidade celeste, diferentemente, é representada pela justiça e pela bondade, e

tem como arkhétypos o justo Abel, morto pelas mãos do próprio irmão. E é assim que, da mesma forma que

Caim foi punido pelos seus atos, assim também ocorrerá ao governo iníquo da cidade dos homens, evidenciando-

se com isso a perfeita justiça de Deus, que intervém contra tudo o que lhe é contrário. No final, o bem triunfará

sobre o mal e o mal terá sido, para o projeto de Deus, um instrumento para provar os santos, como o fogo que

purifica o ouro. 132

HEGEL, 1999, p. 271-2. Além do “elemento de interioridade”, também faltava aos gregos uma teleologia

histórico-escatológica, e isso é também uma novidade que o Hiponense trará, fará valer. “A função do conceito

de progresso pode ser interpretada com a secularização do lugar da redenção. Classicamente, Adorno vê em

Santo Agostinho de forma precisa a origem religiosa de todas as filosofias da história. O autor das Confissões

teria na inauguração substituído a promessa de uma redenção messiânica à doutrina pagã do eterno retorno do

mesmo nos ciclos naturais.” (BENSUSSAN, Gérard. O tempo messiânico: tempo histórico e tempo vivido.

Trad. de Antonio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2009. p. 36).

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Igreja, falou-se de um “socratismo cristão” e de, principalmente partindo de Santo Anselmo e

de Pedro Abelardo, uma “moral da intenção” – tudo isso no lastro do humanismo então

prevalecente. “O humanismo do século XII”, diz Le Goff,

Fundamenta-se no desenvolvimento da interioridade. Foi chamada de socratismo

cristão essa elaboração de um “conhece-te a ti mesmo cristão”. Viu-se que este

socratismo baseia-se numa concepção do pecado, numa moral da intenção, e

conduziu à introspecção instituída pelo quarto Concílio de Latrão em 1215. Este

humanismo, sob formas diversas, e às vezes opostas, se encontra em quase todas as

grandes inteligências do século XIII, de Abelardo a São Bernardo, de Guilherme de

Conches a João de Salisbury133

.

A própria História e a história da memória, até o evento do cristianismo – que, depois

do apóstolo Paulo vai ser delineado em suas grandes doutrinas por Agostinho –, não contara

com esse “elemento da interioridade” que parte de si para o autoconhecimento, o

conhecimento do Outro, do mundo e postula uma finalidade escatológico-linear. Não, pelo

menos, nos moldes que teria, partindo daí.

Aliás, para os gregos da época arcaica, a memória era personificada como uma

deusa, a deusa Mnemosine. Mãe de nove musas que resultaram de nove noites com Zeus,

Mnemosine lembra aos homens os grandes feitos dos heróis antigos e preside a poesia lírica.

Para os gregos, o poeta era um homem possuído pela memória, “é um adivinho do passado,

como o adivinho o é do futuro. É a testemunha inspirada dos „tempos antigos‟, da idade

heróica e, por isso, da idade das origens”134

. Isso explica, grosso modo, o respeito que os

gregos do período clássico tinham pelo nome de Homero, não se importando se era um ou

mais, como hoje os historiadores têm sugerido, consentes135

.

A memória, assim, era vista como um dom para iniciados, e a anamnesis como uma

técnica ascética e mística. A anamnesis também tinha importante papel para as doutrinas

místico-escatológicas dos órficos e dos pitagóricos. É ela que impede o morto de, ao chegar

no reino de Hades (o reino dos mortos), esquecer-se das instruções recebidas para a sua

imortalidade. “No inferno órfico”, diz Jacques Le Goff, “o morto deve evitar a fonte do

esquecimento, não deve beber no Letes, mas, pelo contrário, nutrir-se da fonte da Memória,

133

LE GOFF, 2007, p. 118. 134

LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e memória. Trad. de Bernardo Leitão et al. 4. ed. Campinas:

UNICAMP, 1996. p. 438. (Col. Storia e Memoria). 135

“O próprio Platão não duvida da veracidade histórica de Homero; recusava nele a filosofia e a moral, as

concepções de justiça, dos deuses, do Bem e do Mal, mas aceitava a história de Tróia”. (FINLEY, M. I. O

mundo de Ulisses. Trad. De Armando Cerqueira. Portugal: Editorial Presença; Brasil: Martins Fontes, 1972. p.

26. (Col. Biblioteca de Textos Universitários, 1).

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que é uma fonte de imortalidade”136

. Assim, conforme pode ser encontrado na Lâmina de

Hipônio137

:

Este (dito) da Memória (é) sagrado: quando, porventura, você for morrer

vá para as casas bem-ajustadas do Hades: há na direita uma fonte,

junto desta está um cipreste branco.

Ali as almas dos mortos descem e se refrescam.

[D]essa fonte, não vá muito perto.

Em seguida, você encontrará água fria [es]correndo

a partir do lago da Memória: os guardiães que lá estão,

estes lhe perguntarão, em frases secas,

o que procura nas trevas do Hades sombrio.

Diga: “(Sou) filha da Terra e do Céu estrelado

e estou seca de sede e pereço. Concedam-me rapidamente

água fria que escorre do lago da Memória para beber.”

Então lhe interrogarão da parte do Rei dos Infernos

e lhe darão de beber do lago da Memória.

E você, tendo bebido, irá pelo caminho sagrado pelo qual

os outros iniciados (mystai) e báquicos (bácchoi) seguem, renomados138

.

A memória, colocada assim fora do tempo, deixa de ser história. “A memória pode

conduzir a história ou distanciar-se dela. Quando posta ao serviço da escatologia, nutre-se

também ela de um verdadeiro ódio pela história”139

. Em Platão e em Aristóteles, a memória

perderá essa veia mítica, passando a ser tratada como um componente da alma sensível. No

136

LE GOFF, 1996, p. 438. 137

Esta lâmina, conforme Gazzinelli, “foi encontrada em 1969 por Arslan, na necrópole de Hipônio, em um

túmulo datado do fim do século V ao início do século IV a.C., que continha um esqueleto feminino. Por ser no

dialeto dórico, o texto em grego apresenta pequenas variantes” (GAZZINELLI, Gabriela Guimarães. Lâminas de

ouro. In: _____. [Org.]. Fragmentos órficos. Org. e trad. de Gabriela Guimarães Gazzinelli. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2007b. p. 106. Nota 1. [Col. Travessias]). 138

GAZZINELLI, 2007b, p. 73. A mesma citação aparece em: RUSSELL, Bertrand. História de Filosofia

Ocidental. 2. ed. Trad. De Breno Silveira. São Paulo. Companhia Editora Nacional / CODIL, 1967, p. 21. Vol.

23, Livro I. Outras lâminas, como as de Petélia (encontrada em 1834), Farsalo (encontrada em vaso datado do

séc. IV a.C., contendo ossos e cinzas), Entela (encontrada em um túmulo dentro de uma lâmpada de cerâmica

cozida, provavelmente do século III a.C.), Roma (proveniente de Roma, talvez da necrópole da Via Ostiense, do

século III d.C.), dentre as mais completas e com menos variantes, a fonte posta à direita do Hades, junto ao

cipreste branco – a fonte do esquecimento – é preterida em função do lago da Memória, que é a salvação do Eu,

como a própria memória da oração, que funciona como um passe para além dos infernos. Na Lâmina de Roma,

por exemplo, o morto deve dizer à Rainha dos Infernos: “Tenho o dom da Memória, cantado [louvado] entre os

humanos” (GAZZINELLI, 2007b, p. 78). 139

LE GOFF, 1996, p. 438. Agostinho é ciente disso, e o demonstra claramente no De deoctrina christiana:

“Todos os informes que a ciência chamada história nos oferece sobre o sucedido nos tempos passados nos são de

grande ajuda para compreendermos os Livros santos, ainda quando aprendidos fora da Igreja, em vã erudição”

(De doc. christ., II, C 29,42), e, mais adiante: “Ainda quando a narração histórica se discorra também acerca das

instituições humanas passadas, nem por isso se há de contar a mesma história entre as instituições humanas. Isso

porque as coisas que já passaram, e não podem deixar de se ter realizado, devem ser colocadas na ordem dos

tempos, dos quais Deus é o criador e o administrados. Uma coisa é a narração dos fatos sucedidos e outra o

ensino do que se deve fazer [com os fatos]” (De doc. christ., II, C 29,44). Esse será, mais adiante, o programa de

De civitate Dei, em que a História humana, entrelaçada na História de Deus com o seu povo, tem um fim e uma

finalidade escatológica (teleológica). Mais sobre o tema, em: BITTNER, Rüdiger. Augustine‟s Philosophy of

History. In: MATTHEWS, Gareth B. (Ed.). The augustinian tradition. Berkeley, Los Angeles, London:

University of California Press, 1999. p. 345-60.

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Teeteto, por exemplo, Sócrates fala sobre o bloco de cera que existe na nossa alma, que é

“uma dádiva de Mnemosine...”, no qual podemos imprimir, como a cortar com estilete, as

nossas impressões do mundo – e é isso que possibilita, aos homens, o aprendizado140

. Essa

técnica de “cortar com um estilete” foi o que caracterizou, auxiliada pela invenção da escrita,

a invenção da mnemotecnica, que é atribuída a Simônides de Céos (c. 556-468 a.C.)141

. A

memória, à mnemotecnica, é o que permite o rememorar/revisitar com alguma precisão as

impressões que, do mundo, no “bloco de cera”, são impressas na alma.

Há, na Idade Média, uma “cristianização da memória e da mnemotecnica”142

. Essa

apropriação não é feita, no entanto, sem um lento e gradual processo.

Se a memória antiga foi fortemente penetrada pela religião, o judaico-cristianismo

acrescenta algo de diverso à relação entre memória e religião, entre o homem e Deus

[...]. Pode-se descrever o judaísmo e o cristianismo, religiões radicadas histórica e

teologicamente na história, como “religiões da recordação” [...]. E isto em diferentes

aspectos: porque atos divinos de salvação situados no passado formam o conteúdo

da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por um lado, a

tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade

da lembrança como tarefa religiosa fundamental143

.

No relato da última ceia, a lembrança de Jesus, no pão e no vinho, é a marca visível

do mistério invisível que não se prende no tempo, mas vive na memória coletiva dos que

fazem parte. Os que comem o pão têm, ou devem ter, a memória comum do sacrifício, e a ele,

pela fé e pelo serviço mútuo, se unem: “Este é o meu corpo; este é o meu sangue; fazei isto

140

Teet., 191 c-d. “Aristóteles”, diz Le Goff, “distingue a memória propriamente dita, a mnemê, mera faculdade

de conservar o passado, e a reminiscência, a mamnesi, faculdade de evocar voluntariamente esse passado”. Em

Agostinho, mnemê e mamnesi se confundem, formando uma coisa só. O recordar-se está para a memória assim

como a memória para o recordar-se. É a memória que lembra-se de lembrar-se, como visto em Conf., X, 13,20; e

também em XVI, 24, onde ele fala sobre a “memória do esquecimento”. 141

“A Cronica di Pindaro”, diz-nos Le Goff, “incisa numa tábua de mármore cerca de 264 a.C., precisa mesmo

que em 477 „Simônides de Céos, filho de Leoprepe, o inventor do sistema dos auxílios mnemônicos, ganha o

prêmio do coro em Atenas‟.” Mais adiante, Le Goff diz: “Simônides estava ainda próximo da memória mítica e

poética, compondo cantos e elogios aos heróis vitoriosos e cantos fúnebres, por exemplo, à memória dos

soldados caídos nas Termópilas” (LE GOFF, 1996, p. 440). 142

LE GOFF, 1996, p. 443. 143

LE GOFF, 1996, p. 443. Le Goff fundamenta essa afirmação dizendo que: “No Antigo Testamento é

sobretudo o Deuteronômio que apela para o dever da recordação e da memória constituinte, [...] memória

fundadora da identidade judaica: „Guarda-te de esqueceres de Yahvēh teu Deus negligenciando as suas ordens,

os seus costumes, as suas leis...‟ (8, 11)”. (LE GOFF, 1996, p. 443). Além dessa memória da identidade, na

religião judaica, Le Goff fala de uma memória da cólera de Yahvēh [cf. Dt 9, 7; 2, 9]; memória das injúrias dos

inimigos [cf. 24, 17-19]. (Cf. LE GOFF, 1996, p. 443-4). Le Goff diz ainda que, em Isaías [44, 21], “está o apelo

à recordação e a promessa da memória entre Yahvēh e Israel”, e, logo em seguida, falando sobre a raiz hebraica

da palavra zakar (de onde vem Zacarias, em hebraico Zĕkar-Yāh: “Yahvēh recorda-se”), que é mais uma de uma

variada família, “faz do judeu um homem de tradição que a memória e a promessa mútuas ligam ao seu Deus

[...]. O povo hebreu é o povo da memória por excelência”. (LE GOFF, 1996, p. 444).

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em memória de mim...”144

. A memória, na pena de João, assume uma perspectiva

escatológica: “... o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as

coisas e vos fará lembrar de tudo o vos tenho dito”145

, e Paulo reafirma e amplia essa

perspectiva: “Pois todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anuncias a

morte do Senhor, até que ele venha”146

. Le Goff diz que, “assim como os gregos (e Paulo está

impregnado de helenismo), a memória pode resultar em escatologia, negar a experiência

temporal e histórica. Será uma das vias da memória cristã”147

.

O apóstolo Paulo é, em grandes medidas, a maior autoridade para Agostinho em

matéria de fé e teologia (doutrina). Nos dois, a doctrina christiana é portadora da história da

salvação (Heilsgeschichte) e, assim, da história da memória que se volta para Deus,

lembrando seus feitos em favor dos homens de todos os tempos, e da promessa escatológica.

Se, por um lado, a Mnemosine, para os gregos, representava a “salvação do herói” – que

morria pela imortalidade, ou a glória de não ser esquecido, por seus grandes feitos, como no

caso de Aquiles –, por outro, para o cristão, a salvação consistia em lembrar-se de quem era,

não-herói, e lembrar-se do sacrifício de Cristo, ligando-se a ele pela renúncia à glóra terrena,

com o fito de entrar no céu pela obediência da fé. O ideal do herói grego, dos escandinavos do

Norte, e de outros povos guerreiros pré-cristãos, ou antes de o cristianismo chegar com a sua

influência esmagadora, é não ser esquecido; de, após a morte, não morrer para a memória das

gerações seguintes. Em um trecho do Grímnismál (Sayings of Grímnir) – poema édico

(escandinavo) anônimo de data desconhecida, provavelmente do ano 800 ou 900 d.C. –, Odim

(ou Grímnir: “o mascarado”, “o embuçado”) é apresentado como possuidor de dois corvos,

Huginn e Muninn, Pensamento e Memória,

Sobrevoam o mundo todos os dias.

Temo por Pensamento, que ele não volte,

Mas temo ainda mais por Memória148

.

144

Lc 22, 19 (ECA). 145

Jo 14, 26 (ECA). 146

I Co 11, 26 (ECA). 147

LE GOFF, 1996, p. 244. 148

“Huginn ok Muninn / fljúga hverjan dag / Jörmungrund yfir; / óumk ek of Hugin, / at hann aftr né komi-t, / þó

sjámk meir of Munin.” (Grímnismál, 20; versão em Old Norse). Para uma versão do Grímnismál (ou “Balada de

Grimnir”), vertida para o inglês moderno por Benjamin Thorpe, ver:

<http://en.wikisource.org/wiki/Poetic_Edda/Gr%C3%ADmnism%C3%A1l>. Acesso em: 23 de out. 2008.

“Parece que a ligação entre o deus e seus corvos é anterior à era viking [799-1066 d.C.]. Em um elmo do século

VII encontrado em Vendel, Suécia, ele aparece montado em seu cavalo, com dois pássaros voando acima da sua

cabeça”, afirma DAVIDSON, Hilda Roderick Ellis. Deuses e mitos do norte da Europa: uma mitologia é o

comentário de uma era ou civilização específica sobre os mistérios da existência e da mente humana. Trad. de

Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2004. p. 125.

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Que o Pensamento, ao voar pelo mundo149

, não retorne – que seria a loucura – é

grave, mas o esquecimento de si, a Memória do que se é, é loucura muito maior, e glória

nenhuma. A memória, representada aqui nos pássaros simbólicos, teve e ainda tem, por toda a

história da humanidade, um papel fundamental, confundindo-se com a simbólica espiritual e a

própria História das idéias dos homens: ser é rememorar.

O percurso da memoria, ligada ao intellectus e à voluntas – que são, no homem, os

três poderes da alma150

e, ainda, a imago Dei, ou vestigia Trinitatis –, não poderia ser melhor

assimilado do que foi no pensamento e nas cartas do apóstolo Paulo. E é assim que, com base

nas vestigia Trinitatis e na Epístola aos Coríntios, o Hiponense afirma que, para que a

felicidade seja desejada, é necessário que ela, primeiramente, seja conhecida – conhecimento

esse que a alma/memoria traz impressa em si, sendo-lhe inata, por haver sido criada por Deus.

Daí ele dizer:

Não sei como é que [os homens] a conhecem [a felicidade que desejam] e, por isso,

têm-na não sei com que conhecimento, em relação ao qual desejo ardentemente

saber se reside na memória, porque, se aí está, já um dia fomos felizes – não procuro

agora saber se todos, individualmente, ou se naquele homem que primeiro pecou, no

qual todos morremos e do qual todos nascemos na infelicidade; mas procuro saber se

a vida feliz está na memória. Com efeito, não a amaríamos, se a não

conhecêssemos151

.

149

Na interpretação de Davidson: “Aqui, os pássaros são os símbolos da mente do vidente ou xamã, enviados a

vastas distâncias” (DAVIDSON, 2004, p. 125). No nórdico arcaico (Old Norse), o próprio nome de Odim

(Óðinn), (cf. Saxo Grammaticus), com raiz no antigo alto alemão, é Watan e, também, Wuot, que significavam, a

princípio, “razão” e “memória”, ou “sabedoria” – sentidos que, tempos depois, seriam equivalentes a

“tempestuoso” ou “violento”, qualidades às quais o deus pagão foi associado pelos cristãos que lhe faziam frente

na tarefa de evangelização da Escandinávia, substituindo-o pelo Deus hebreu e, naturalmente, pelo seu Filho. É

relevante notar que o compilador da Edda poética – que surgiu em oposição à Edda em prosa (ou Edda de

Snorri – cf. STURLUSON, Snorri. Edda. Trad. and comm. by Anthony Faulkes. London-Vermont: J. M. Dent –

Charles E. Tuttle, 1995), tendo a sua parte principal datada por volta de 1270 (cf. Codex regius nº 2365 da

Biblioteca Real da Dinamarca), resultante da compilação de de manuscritos não muito anteriores (c. 700 ou 800

d.C.), pré-cristãos, conforme o prólogo, que é, provavelmente, de outro autor – “tenha, no conjunto, resistido à

tentação de alterar suas fontes com a finalidade de racionalizá-las de acordo com a moral cristã” (DAVIDSON,

Hilda Roderick Ellis. Gods and myths of the Viking Age. New York: Barnes & Noble, 1996. p. 24). Seja como

for, e de acordo com Ciro Cardoso Flamarion, “Isto não significa [que o compilador tenha] escapado

necessariamente ao impacto do cristianismo, mesmo porque, nas formas em que a elas [i.e: Völuspá, Hávamál,

Vafthrúthmismál e Grimnismál, os poemas que compõem o Codex regius] teve acesso, suas fontes haviam sido

redigidas majoritariamente por poetas que escreviam após a cristianização, embora o fizessem com base em

tradições mais antigas (o que é confirmado por paralelos textuais escáldicos prévios datáveis de e por material

iconográfico obtido em pedras rúnicas cronologicamente anteriores, por exemplo). Além do mais, embora seja

um dos poucos produtores de textos, na Islândia do século XIII (a obra é datada de aproximadamente 1220),

exteriores à estrutura eclesiástica, Snorri teve uma formação cristã.” (CARDOSO, Ciro Flamarion. Aspectos da

cosmogonia e da cosmografia escandinavas. In: Brathair. 6 [2], 2006. p. 33. [http://www.brathair.com]). Acesso

em: 12 set. 2008. 150

A versão mais antiga desses três poderes da alma é aquela que podemos encontrar em Cícero (106-43 a.C.),

mais precisamente no seu De inventione, II, 53,160. Em Agostinho, ver: Conf., X, 17,26; 25,36-26,37). 151

Conf., X, 20,29. Em Conf., X, 21,30, Agostinho argumentará para mostrar que, de fato, a memória contém a

felicidade.

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A inclusão de Agostinho na tradição dos estudos da memória, bem como o

desenvolvimento pedagógico/metodológico da mesma no curso da história, não é feito, aqui,

de modo leviano. As relações entre o pensamento antigo (Platão, Aristóteles e os Estóicos), no

que concerne aos problemas do conhecimento (epistemologia), à eudaimonía (ou beatituto) e

à moral, estão, por assim dizer, entrelaçadas e compõem uma trama que mantém coesa a

tríade memoria, intellectus et voluntas. Há, de fato, uma relação muito estreita entre a vontade

de saber (conhecer o que se deve fazer) e o desejo de fazer (praticar aquilo que se sabe), e

tudo isso com a finalidade de uma vida bem-aventurada, aqui e na eternidade. E isso, sem o

elemento marcante do cristianismo, já está presente na filosofia antiga152

. O fato, novíssimo,

de a memória ser “o espírito em sua fonte” – como dito por Isabelle Bochet, acima –, e isso

ligado à doutrina da interioridade, é, sem sombra de dúvida, uma marca inovadora em sua

abordagem da moral. Memória, verdade e felicidade (bem-aventurança), assim, se entrelaçam

numa linha comum que, no tempo, dirige-se para a eternidade, ou quer, para ela, dirigir-se. É

“na Memória [que Agostinho descobre] as noções de felicidade de verdade: noções tão firmes

que suscitam em todos um desejo e que nos orientam, sem que o saibamos, para Deus, única

fonte da felicidade e da verdade”, diz Bochet, acrescentando que: “Todavia, esta equivalência

muitas vezes se mostra problemática, pois queremos a felicidade e a verdade sem sempre

querer suas condições. Como explicar essa distância?”153

.

No próximo capítulo trataremos sobre essas condições para a beatitude, que dizem

respeito ao agir moral. Ação que, para Agostinho, deve ser a marca comum dos indivíduos

152

There has been a long tradition of formalism in the thinking of the race. The ethical philosophy of the Greeks

was predominantly teleological, as we shall later see, Plato and Aristotle having provided the chief forms of

moral reasoning for the Western world. But there was always a strong ingredient of formalism in Greek thought.

The Sophists, although relativists and sceptis in morals on far as human conventions and conventional morality

were concerned, nevertheless appealed to a morality inherent in nature, to “natural rights” as founded on natural

law, in the sense of elementary instincts and human nature. The Stoics were, however, the chief representatives

of the formalistic point of view, as they were also the chief upholders of the rigoristic attitude in practical

morality. It is to them that we owe the first and most imposing use of the ideas of natural law and inherent right.

Christian morality inherited a strong strain of formalism from the ethics of Judaism. The ten commandments,

written on tables of stone, were also written on the “fleshly tablets of the heart”. The code of morals thus

embodied represented, not only the will of God but inherent laws of nature, rules of conduct intrinsically right.

The philosophical ethics of Christian thinkers, such as St. Augustine and St. Tomas Aquinas, were

predominantly teleological and derived from Plato and Aristotle. But Stoic formalism had great influence. Moral

laws are laws of God, but they are also laws of nature which, as God‟s creation, are the expression of his will.

The formalistic element in Greek and Christian thought was carried over directly into modern ethical philosophy.

When, at the time of the Renaissance, modern states tended to throw off the authority of the Church and the

papacy, there arose a corresponding tendency to found both morals and law on laws of nature. With this came a

natural tendency to revert to formalistic views and to doctrines of innate ideas. Men tended to insist upon the

idea that in the “natural light of reason”, and by going back to nature before the artificial and conventional

institutions of society were formed, they could find fundamental laws, both of conscience and of nature, which

are unchangeable and indisputable. (URBAN, 1947, p. 54-5). 153

BOCHET, 1996, p. 43.

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que fazem parte da Cidade celeste154

, sem excessão. E, não por acaso, quando Benjamin Rand

expõe a ética agostiniana, aquela que julga melhor definida por ele, não é ao De libero

arbitrio, ou às Confessiones ou mesmo ao De sermone que recorre, mas à De civitate Dei,

destacando especialmente os Livros XII (caps. V, VI e VII), XIV (cap. VI) e XIX (cap. IV)155

.

Nós, todavia, pelos motivos que exporemos em seguida, privilegiaremos o De sermone

Domini in monte e o Livro XV da De civitate Dei, sem ignorar, quando necessário, as obras

acima mencionadas – ou outras que julgarmos pertinentes. Importa, por fim, tratar sobre o

modelo hermenêutico agostiniano, que é a chave para que compreendamos a sua interpretação

da Escritura e a utilização que dela faz para expor as grandes linhas da sua moral, ou a moral

cristã, principalmente a do Novo Testamento.

1.4. Hermenêutica e exegese em Agostinho

Muito se produziu sobre o modelo exegético/hermenêutico de Agostinho, o que nos

deixa a vontade para, em breves linhas, anotar somente as considerações principais que

contribuirão para a abordagem que faremos a seguir, no segundo capítulo, destacando o De

sermone Domini in monte e o Livro XV do De civitate Dei, sem ignorar as conhecidas

porções das Confessiones, do De libero arbitrio e todos os “tratados morales”, conforme

organizados e nomeados no volume XII da BAC156

, obras clássicas do Hiponense em relação

ao nosso tema. Tais abordagens são relevantes porque tais modelos, ao longo dos séculos e

por quase toda a Idade Média, serão dominantes – tendo reflexos profundos ainda no

Renascimento, na Reforma Protestante, na Ilustração e na moral que se fez modelar para o

Novo Mundo157

.

Já na Introdução de Crer e interpretar, Claude Geffré – que propõe aos novos

tempos teológicos uma hermenêutica conciliar, mas sem tirar Jesus do centro histórico-

hermenêutico – afirma que:

154

Cf. De civ. Dei., Livros XI a XXII: trata-se da segunda parte da clássica divisão de De civitate Dei, que é

onde Agostinho expõe o cristianismo, após fazer uma refutação do paganismo (Livros I a X). 155

RAND, Benjamin. (Compil.). Saint Augustine. In: The classical moralists. Noston / New York / Chicago:

Houghton Mifflin Company / The Riverside Press Cambridge, 1909. p. 176-185. 156

Os tratados morais de Agostinho, no volume XII da coleção das obras do autor na Biblioteca de Autores

Cristianos (BAC), estão agrupados na seguinte ordem: Bondad del matrimonio; Santa virginidad; Bondad de la

viuvez; Uniones adulterinas; Continencia; Paciencia; Combate cristiano; La mentira; Contra la mentira;

Trabajo de los monjes; Sermón de la montaña. (AGOSTINHO, Santo. Tratados Morales. Vers. Introd. y notas

de Felix Garcia; Lope Cilleruelo; Ramiro Florez. Madrid: La Editorial Catolica / BAC, 1954. v. 12. [Bilíngue]). 157

Que será tematizada no capítulo três, e como veremos, lá, mais detalhadamente.

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Durante séculos, a razão teológica foi identificada à razão especulativa, no sentido

aristotélico da palavra. Comparando, de preferência, o intellectus fidei a um

compreender histórico, isto é, um ato de compreensão hermenêutica, insiste-se no

fato de que não há conhecimento do passado sem precompreensão e sem

interpretação viva de si mesmo. Estamos sempre inscritos numa tradição de

linguagem que nos precede. E é pelo fato de pertencermos à mesma tradição que

aquela que suscitou o texto, que temos alguma chance de compreendê-lo. Será que

teologia não passa de um discurso que recomeça continuamente, tomando lugar

numa longa cadeia de testemunhos interpretativos?158

Foi assim, por exemplo, que o Deus cristão foi identificado por Agostinho, pelo

Pseudo-Dionísio e depois por Tomás de Aquino – que tinha os dois como autoridade – com o

Uno do neoplatonismo159

, conforme a sua tríade descendente das emanações do Uno: Uno →

Noûs → Alma do mundo160

; foi assim também que a doutrina de que o mal não tem uma

existência própria, mas é “ausência do bem”, uma imperfeição moral, foi recebida e

transmitida por Agostinho161

, que negava, no entanto, que a perfeição humana e a felicidade

pudessem ser alcançadas neste mundo, mediante uma devoção contemplativa à filosofia.

Plotino e, depois, Porfírio – que foi quem reuniu os escritos do seu mestre nas Enéadas –, não

viam-se a si mesmos como neoplatônicos, mas como seguidores da doutrina de Platão. Para

158

GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Trad. de Lúcia M. Endlich Orth.

Petrópolis: Vozes, 2004. p. 24. 159

Na obra de Pseudo-Dionísio, o Areopagita, o Uno plotiniano é identificado como o Deus cristão. Na Idade

Média, nenhum autor, depois de Agostinho, foi tão visitado e citado como Pseudo-Dionísio: “A influência de

Agostinho e a do Pseudo-Dionísio exerceram-se de modo mais ou menos paralelo, convergindo, por vezes, para

gerar sínteses originais: a obra de Escoto Erígena é disso um notável exemplo. Quanto a S. Tomás de Aquino,

cita Dionísio aproximadamente 1700 vezes, e „é Dionísio, tanto como Agostinho, que lhe serve de autoridade

quando corrige o aristotelismo, substituindo ao motor impassível o Bem que se difunde pelo amor‟ (M. de

Candillac). Os autores espirituais bebem, com fervor, das fontes dionisíacas” (JEAUNEAU, 1980, p. 15-6). Nas

palavras do Aquinate, reafirmando a tradição cristã anterior: “Tudo o que dissemos até aqui [com respeito à

natureza de Deus e sua providência] foi sutilmente considerado por vários filósofos pagãos, ainda que alguns

deles hajam incidido em certos erros. Os que acertaram com a verdade só conseguiram chegar a ela após longa e

trabalhosa pesquisa. Há, contudo, outras coisas que a doutrina cristã nos transmite acerca de Deus. Trata-se de

coisas que os filósofos pagãos não conseguiram atingir. Para isto, segundo a fé cristã, recebemos uma iluminação

que ultrapassa a razão humana. Referimo-nos às seguintes verdades: embora Deus seja uno e simples [...], há um

Deus Pai, um Deus Filho e um Deus Espírito Santo, de tal forma, porém, que os três não constituem três deuses,

mas um só Deus.” (TOMÁS DE AQUINO, Santo. Compêndio de teologia. Trad. de Luiz João Baraúna. São

Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 153-4. [Col. Os Pensadores]). 160

Sobre as diferenças entre a tríade plotiniana e a Trindade agostiniana, ver: COSTA, Marcos Roberto Nunes. O

problema do mal em Santo Agostinho: apropriação e superação do neoplatonismo. In: BAUCHWITZ, Oscar

Federico. (Org.). O neoplatonismo. Natal-RN: Argos, 2001. p. 39-45. No que diz respeito à questão,

resumidamente, não devemos confundir semelhança com igualdade. As Pessoas (Pai, Filho e Espírito Santo) da

Trindade agostiniana são bem diferentes “daquelas” às quais os termos Uno, Noûs e Alma do mundo, em Plotino,

se referem. Na tríade plotiniana, por exemplo, há uma diferença hierárquica, diferença essa inexistente entre as

três Pessoas da Trindade agostiniana; há também, em Plotino, uma separação relacional, em Agostinho, a

Trindade é a própria manifestação de uma perfeita relação igualitária, cujo emblema maior é o amor. Para

Plotino, o mundo estava estruturado sobre uma tríade formada pelo Uno, o Noûs e a Alma do mundo. Plotino cria

que abaixo da Alma estavam a matéria e a natureza. Ambas (matéria e natureza) se encontravam muito

afastadas do Uno e seriam, portanto, o que há de mais informe e imperfeito. 161

“Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão da vontade desviada

da substância suprema – de Vós, ó Deus – e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas

entranhas e se levanta com intumescência” (Conf., VII, 16,22).

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Agostinho, ninguém se “aproximou” mais da Verdade do que Platão e os neoplatônicos, que

são chamados por Agostinho de philosophi ceteris meliores162

, e dos quais ele diz: “espero

encontrar entre os platônicos o que não esteja em contradição com a nossa fé”163

. Citando um

texto da carta de Paulo Aos romanos, Agostinho diz ter percebido que “as vossas perfeições

invisíveis se percebem por meio das coisas criadas”, e que notara isso “depois de ler aqueles

livros dos platônicos [neoplatônicos] e de ser induzido por eles a buscar a verdade

incorpórea”164

. O paralelismo é evidente e uma leitura ilumina a outra – neste caso, em

particular, o idealismo platônico. Todavia, noutras questões mais voltadas à doctrina

christiana, como a manifestação da graça mediante o Verbo,

Isto não o dizem os livros platônicos. Suas páginas não encerram a fisionomia

daquela piedade, nem as lágrimas da compunção, nem “o vosso sacrifício nem o

espírito compungido, nem o coração contrito e humilhado” (Sl 50, 19), nem a

salvação do povo, nem a cidade desposada (Apc 21, 2), nem o penhor do Espírito

Santo, nem o cálice do nosso resgate (2 Cor 5, 5). Lá ninguém canta: Porventura a

minha alma não há de estar sujeita a Deus? “Depende d‟Ele a minha salvação,

porquanto Ele é o meu Deus e Salvador. Ele me recebeu e d‟Ele não me aparto

mais”. Nos livros platônicos ninguém ouve Aquele que exclama: “Vinde a Mim,

vós, os que trabalhais”. Desdenham em aprender d‟Ele, que é manso e humilde de

coração. “Escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos

humildes”165

.

E não dizem porque são incompletos. A revelação cristã, a doctrina christiana, essa

sim, é completa. Depois que se converte ao cristianismo, Agostinho subordina a filosofia à

autoridade da Escritura e, naquilo que a ratio destoa da fides, prevalece a fides – mesmo onde

não é possível fazer uma interpretação clara, literal. Para tanto, pode-se tomar a dialética dos

gregos, a instrumentalização do raciocínio, o método hermenêutico da tradição da fé (judaica,

por exemplo), desde Filo de Alexandria (c. 15/20 a.C.–40/50 d.C.), que será legado à tradição

cristã. Um texto elucidativo é o da alegoria de Sarai e Agar. Nas palavras de Filo:

Como as ciências encíclicas (ta enkuklia) ajudam a perceber a filosofia, do mesmo

modo a filosofia ajuda a adquirir a sabedoria. Porque a filosofia é o estudo da

sabedoria, a sabedoria é a ciência das coisas divinas e humanas e de suas causas.

Portanto, do mesmo modo que o ciclo de atividades devotadas às Musas (hè

egkuklios mousikè) é o escravo da filosofia, assim também a filosofia é escrava da

sabedoria. A filosofia ensina a dominar o ventre, o baixo-ventre, a dominar também

a língua. Esse domínio, dizem, merece ser escolhido por si mesmo, mas teria um

caráter mais sublime, se fosse buscado para honrar a Deus e agradá-lo; é preciso pois

162

De Trin., IV, 16.21. 163

Contra acad., III, 20. 164

Conf., VII, 20,26. O texto citado por Agostinho é o de Rm 1, 10, que é novamente citado em Conf., VII,

17,23, com o mesmo sentido. 165

Conf., VII, 21,27.

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que guardemos a lembrança de nosso soberano, quando queremos cortejar suas

servas (therapainidas), podemos admitir que nos tenham por seus maridos, com a

condição de que o Outro seja a nossa verdadeira mulher e não tenha somente o

nome166

.

A tradição cristã (com Orígenes no Oriente e Agostinho no Ocidente,

principalmente) fundamenta a exegese bíblica em três sentidos: o alegórico (ou tipológico), o

tropológico (ou moral) e o anagógico (ou escatológico). No sentido tipológico, o Antigo

Testamento é sombra do Novo167

, e é ainda a natureza, visível, do sobrenatural; Jerusalém,

assim, é sombra da Igreja de Cristo. No tropológico, a realidade visível aponta para uma

realidade moralmente superior: Jerusalém é a alma do homem. No anagógico, a realidade

visível não é mais que uma representação das realidades da outra vida: Jerusalém é a civitas

celeste, ou o céu. “O primeiro sentido espiritual permite que compreendamos as coisas

divinas; o segundo aponta o caminho que a alma deverá percorrer para atingir a unidade com

Deus; o terceiro anuncia o fim dos tempos, ou seja, o Juízo Final, que dará a vida plena aos

bons e segunda morte aos maus”168

.

Como fizera ao usar noções neoplatônicas para tratar sobre a inexistência ontológica

do mal, nos comentários que faz ao Gênesis (De Genesi ad litteram; De Genesi contra

Manichaeos; De Genesi ad litteram imperfectus), contra algumas acusações dos maniqueus

em relação ao caráter revelado das Escrituras judaicas, Agostinho reúne os principais

argumentos destes e os rebate, “baseando-se na lógica interna dos próprios textos, em dados

escriturísticos externos e em dados teológicos oriundos da filosofia grega”169

. Faz isso, por

exemplo, ao usar o sentido estóico que trata do Logos na sua universalidade. O Verbo de

Deus está por toda a parte na criação, no mundo e, principalmente, nos homens que o

percebem. Assim, quando, na Escritura, se diz: “Façamos [diferente do que é dito às demais

166

FILO DE ALEXANDRIA, De congressu quaerendae eruditionis gratia, 79-80. Na alegoria, o judeu é como

Abraão, a Lei é como Sarai, e a filosofia pagã é como Agar, a escrava que Sarai entrega a Abrão para que,

através dela, tenham filhos (cf. Gn 16, 1-6). Modernizada, Sarai tipifica a doctrina christiana, Agar a filosofia

dos gregos, e os cristãos, Abraão. 167

“No Antigo Testamento esconde-se o Novo, e no Novo encontra-se a manifestação do Antigo” (De cat. rud.,

I, IV,8). 168

VALLE, Ricardo Martins. Introdução. In: VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno. Org. de Ricardo

Martins Valle. São Paulo: Hedra, 2006. p. 18. 169

RODRIGUES, Maria Paula. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. Comentário ao Gênesis. Trad. de

Agostinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2005. p. 11. (Col. Patrística, 21). O mesmo fora feito por Filo, com a

utilização das alegoria, visando domesticar aqueles “aspectos da Escritura que pareciam bárbaros em um

estranho contexto cultural”, como afirma TRIGG, Joseph F. Allegory. In: Encyclopedia of Early Christianity.

New York: Garland, 1990. p. 23. Foi essa exegese, hoje relegada a um nível inferior da exegese, que permitiu

tanto a Filo quanto a Agostinho, depois, “dar explicações satisfatórias de muitíssimos antropomorfismos

contidos nos primeiros livros do Velho Testamento, os quais, como os mitos gregos, perturbam a sensibilidade

dos pagãos educados” (SIMONETTI, Manlio. Biblical interpretation in the Early Church: an historical

introduction to Patristic Exegesis. Edinburg: T&T Clark, 1994. p. 7. [tradução própria]).

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coisas criadas, que é apenas “faça-se”] o homem à nossa imagem e semelhança”, é “para

insinuar, por assim dizer, a pluralidade das pessoas, considerando o Pai e o Filho e o Espírito

santo” e para mostrar que homem, eo ipso, é um ser moral que “sobrepuja os animais

privados de razão”170

. A imagem relacional, tipificada, é a da comunidade da fé, em que todas

as pessoas da Trindade são Um171

. Na Trindade econômica inexiste a diferença – como na

tríade plotiniana – posicional, hierárquica, os amores contrários que rivalizam. Dai, numa

antecipação ao projeto da De civitate Dei172

, o amor próprio rivaliza com caridade (charitas),

e ambos se mostram nas individualidades dos sujeitos e nas sociedades onde eles vivem.

“Estes dois amores”, diz o Hiponense,

Dos quais um é santo, o outro impuro, um social, o outro privado, um que olha para

o bem da utilidade comum em ordem à companhia celestial, o outro, que submete o

comum a seu poder por causa da dominação arrogante. [...] Estes dois amores

existiram antes entre os anjos: um nos bons, o outro nos maus; e separam as duas

cidades fundadas no gênero humano sob a admirável e inefável Providência de Deus

que administra e ordena todas as coisas criadas, uma dos justos, a outra dos

pecadores173

.

Essa mesma imagem, da Igreja e também de Cristo, será retomada mais tarde, no De

civitate Dei174

. Seja com ecos coincidentes ou incidentes em Plotino, Filo ou mesmo em

Orígenes, a hermenêutica de Agostinho tem alvos múltiplos: defender a fé cristã contra as

heresias que proliferavam no seio da Igreja, fortalecer a fé cristã com a doutrina (homilética) e

170

De Gen. ad litt., III, XIX,29. “Aqui também”, diz Agostinho, “não se deve passar em claro o fato de ter dito:

à nossa imagem, e ter acrescentado logo depois: „E que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu‟, e

os demais animais privados de razão. São palavras para entendermos que o homem foi feito à imagem de Deus e

nisso ele sobrepuja os animais irracionais. E isso é a razão [ratio] ou mente [mens] ou inteligência [intelligentia],

ou se denomine com um outro termo mais adequado” (De Gen. ad litt., III, XX,30). Por razões teologicamente

óbvias, preferimos o termo moral (moralis). José Ferrater Mora diz que “Santo Agostinho usou intelligentia (e

também intellectus) para designar a faculdade da alma (humana) superior à razão, ratio. Esta última consiste no

movimento da mente, mens, de uma coisa para outra (ou de uma proposição para outra). A intelligentia, em

compensação, dá lugar a uma „visão‟, e particularmente a uma „visão interior‟ (mais exatamente, a uma visão das

realidades no interior da alma, visão que se torna possível por meio da iluminação divina)” (FERRATER

MORA, José. Intelligentia. In: Dicionário de filosofia. Trad. de Maria Stela Gonçalves et al. São Paulo: Edições

Loyola, 2001. p. 1536. v. 2 [E-J]). 171

O plural majestático aparece, depois, em De Gen. ad litt., IX, XXXIX,53: “Depois disse o Senhor Deus: „Eis

que Adão se tornou um como nós, versado no bem e no mal‟. Por que disse isso, por qual meio, de que modo

tenha sido dito, o que importa é o que ele disse: Um com nós, senão, senão se interpreta o número plural como

referência à Trindade, tal como foi dito: „Façamos o homem‟, e também como o Senhor afirmou de si mesmo e

do Pai: A ele viremos e nele estabeleceremos morada”. O cristão está no Pai, no Filho e no Espírito Santo e, de

modo algum, estará em Deus se não estiver em todas as Pessoas da Trindade. 172

Agostinho promete que, “Se o Senhor quiser, dissertaremos, talvez, mais longamente em outra ocasião sobre

estas duas cidades” (De Gen. ad litt., IX, XIV,20). O De Genesi ad litteram começou a ser redigido em 401 e só

foi concluído em 414. Assim, a promessa foi cumprida não muito depois, com o início da redação da De civitate

Dei, em 413. 173

De Gen. ad litt., IX, XIV,20. 174

De civ. Dei, XV, 26,1.

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a catequese (instrução), e responder àqueles que questionavam sobre a esperança que essa

mesma fé pregava – o De civitate Dei é todo feito com tal intenção, como veremos no final do

segundo capítulo. Séculos depois, ainda em função da fé cristã à qual adicionará elementos da

doutrina do Estagirita, Tomás de Aquino repete a orientação agostiniana e a fórmula que se

tornou comum aos cristãos no uso das obras dos filósofos pagãos – tema que voltaremos mais

adiante. “Como diz Agostinho”, afirma o Aquinate,

os chamados filósofos, se porventura disseram algumas coisas verdadeiras e

acomodadas à nossa fé, devemos vindicá-las a eles, como de possuidores injustos,

para o nosso uso. Pois, as doutrinas dos gentios têm certas ficções simuladas e

supersticiosas que cada um de nós, saindo da sociedade deles, deve evitar. E por isso

Agostinho, que fora imbuído das doutrinas dos Platônicos, tomou o que encontrou

de acomodado à verdade, nos ditos deles; porém, o que achou contrário à nossa fé,

mudou para melhor175

.

Depois da Escritura, com destaque para as cartas do apóstolo Paulo, nenhuma outra

orientação doutrinária foi mais forte e presente na obra do Hiponenese do que o

neoplatonismo, levando alguns dos seus comentadores a qualificarem-no erroneamente como

neoplatônico. Agostinho era, antes de qualquer rótulo, cristão. Mesmo que por trás da sua

hermenêutica, isso se mostrará historicamente necessário, esconda-se um fundo outro, pagão,

esse é subordinado à fé: a ciência da razão submetida à fé – pois a razão é limitada e sujeita à

vaidade, mas a fé, verdadeira, não. A tradição hermenêutica, quando aliada à ciência

teológica, tem uma procedência comum, comutativa, reconhecendo avanços de todos os lados

em função de uma compreensão mais exata, precisa. “Durante séculos”, diz Geffrè,

a razão teológica foi identificada com a razão especulativa, a ratio compreendida no

sentido aristotélico do conhecimento teórico. Uma tomada de distância

relativamente à metafísica nos convida hoje a aproximar mais a razão teológica de

um compreender histórico no sentido de Heidegger e de Gadamer, a grande figura,

com Paul Ricoeur, da hermenêutica filosófica contemporânea. Para a Teologia, isto

seria tirar as conseqüências da diferença entre uma compreensão metafísica e uma

compreensão histórica da realidade. Sabemos o que se deve entender por teologia

ciência no sentido de Tomás de Aquino. Foi um modelo clássico da teologia no

curso dos tempos, e esta teologia ciência toma como ponto de partida a compreensão

da ciência segundo Aristóteles, isto é, uma ciência que procede a partir de princípios

necessários ou de axiomas, axiomas que a razão percebe imediatamente. A

genialidade de Tomás de Aquino está em ter identificado as verdades fundamentais

da mensagem cristã, a saber, os artigos da fé, com aquilo que chamamos primeiros

princípios no sentido aristotélico. Por aí, Santo Tomás conseguiu mostrar como a

teologia verifica os critérios da ciência aristotélica. Esta vontade de colocar a fé em

estado de ciência continua sendo um modelo clássico e exemplar da teologia

175

Sum. Theol., q.84. a.5, Solução.

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compreendida como inteligência da fé, intellectus fidei, para retomar a expressão

agostiniana176

.

Desse modo e de modo exemplar, quando questionaram Lutero sobre o lugar do

Cristo nos Salmos, ele ainda valeu-se da tradição cristã de interpretação, conforme encontrada

em Agostinho e em outros autores antigos, para afirmar que o espírito de Cristo está nos

Salmos, profetizado177

. Por toda a sua vida, o Reformador, a exemplo de Agostinho178

,

ensinou e pregou sobre os Salmos; e publicou comentários sobre eles. Os comentários aos

Salmos, dos quais Agostinho é um dos pioneiros179

, eram aos eruditos escolásticos quais

labirintos: “O labirinto dos Salmos”, diziam. No Evangelho de João, 5, 39, Lutero acredita

haver encontrado a chave para compreendê-los: “Examinai as Escrituras, elas testificam de

mim”. O livro dos Salmos, ele dizia, é o livro de Cristo180

. A tradição hermenêutica da

Patrística e da Idade Média aparece sumariada no esquema abaixo, onde Jerusalém figura a

Cidade celeste e Babilônia é a cidade terrena. Jerusalém, por sua elevada posição de piedade,

caminha e se confunde com o “Monte Sião”, lugar da justiça e da vida eterna, como denotam

as interpretações tropológica e anagógica do modelo, tal empregado por Lutero para ler os

salmos181

:

176

GEFFRÉ, 2004, p. 31-2. 177

“Only by pressing forward to the spirit, the spirit of Christ, will the person at prayer be released and revived,

for the Book of Psalms in the book which prophesies Christ” (OBERMAN, Heiko A. Luther: man between God

and the Devil. Transl. by Eileen Walliser-Schwarzbart. New York: Image Books / Doubleday, 1989. p. 251). 178

“Sabe-se que o Livro dos Salmos, se constituiu para Santo Agostinho fonte da dedicação pastoral que durou

quase toda a sua vida cristã, desde as lágrimas do dia de seu batismo em Milão (387) [...] ao derradeiro e

compungido pranto, quando lia os Salmos Penitenciais que pedira que fossem copiados em grandes caracteres

para que os pudesse meditar enquanto jazia em seu leito (430).” (NETO, Ricardo Dias. A alegri do justo diante

de Deus: os Salmos e as Enarrationes de Santo Agostinho. In: ANJOS, Márcio Fabri dos. (org.). Teologia em

mosaico. Aparecida: Editora Santuário / SOTER, 1999. p. 85). 179

“As Enarrationes in Psalmos de Santo Agostinho de Hipona, constituem as mais significativas páginas da

exegese antiga sobre os Salmos. De Orígenes a Hilário os Salmos foram, de um modo ou de outro, objeto de

reflexão e de estudo. Os comentários de Agostinho, porém, chegaram praticamente intactos até os nossos dias.

No final do século passado, porém, a exegese dos Salmos conheceu uma nova realidade proposta por Hermann

Gunkel: os gêneros literários. Novidade relativa, pois o gênio de Santo Agostinho, antecipando muitas ciências,

já falava de „gêneros literários‟ aplicados ao estudo das Escrituras: „Não somente se admoesta a estudar as

veneráveis Letras como também que se conheçam os gêneros literários usados nas Sagradas Escrituras‟ (De

doc. Christ., 3, 37,56)”. (ANJOS, 1999, p. 83-4; itálicos do autor). 180

O Salmo 100 (101), por exemplo, é modelar. “Se em São Jerônimo, o Cristo é identificado como saltério de

Deus [PL XXVI, 1220], para Santo Agostinho Ele também é cantor e convida todo o Corpo Místico a

permanecer Nele pela fé, pela esperança e, mais ainda, aderir-se a Ele, Nele cantar e Nele exultar de alegria. O

pensamento doutrinal da alegria do justo diante da majestade do Deus que julga com equidade, que aparece no

Salmo 100(101), mostra o binômio „misericórdia e justiça‟ e aprofunda o conceito de justo. A misericórdia é um

termo essencial em Agostinho para entender o amor de Deus e sua justiça. Este Salmo constitui um „espelho‟

para os governantes. Dá origem a uma imagem do Cristo, delicada e alegre: a de cantor.” (ANJOS, 1999, p. 85;

itálicos do autor). 181

“To demonstrate how this insight of the fourfold sense of Scripture is handled as an exegetical method,

Luther falls back on traditional examples. Again and again he uses the alternatives of Jerusalem and Babylon or

the several message contained in the term „Mount Zion‟” (OBERMAN, 1989, p. 251).

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Tradicionais interpretações para Jerusalém, Babilônia e o Monte Sião182 ________________________________________________________________________________________________

Historical Allegorical Tropological Anagogic Interpretation (figurative) (moral) Interpretation Interpretation Interpretation (in the light of the Last Judgment)

________________________________________________________________________________________________ Jerusalem the city good people virtues rewards of Judea Babylon the city in evil people vices punishment Mesopotamia Mount the land synagogue Pharisaic earthly Zion of Canaan justice well-being Mount the people Church Christian eternal life Zion of Zion justice ________________________________________________________________________________________________

Para compreender e fixar os recursos de interpretação, no tempo de Lutero, havia

uma fórmula que, em versos, facilitava a memorização (mnemotécnica) e aplicação:

Littera gesta docet, quid credas allegoria,

moralis quid agas, quo tendas anagogia

(Der Buchstab lehrt, was geschehen ist;

was du glauben sollst, lehrt die Allegoria;

der moralisch Sinn: was du tun sollst,

die Anagogie, wohin du strebst)183

.

Os modelos de interpretação, desde Filo e a Escola de Alexandria (Justino Mártir,

Irineu, Orígenes, Clemente), e depois com os Pais do Oriente e do Ocidente, dada a variedade

de estilos encontrados na Escritura, sempre tiveram alguma aceitação, mais ou menos

enfatizados conforme a necessidade. A alegoria foi, dentre todos os modelos, o mais

problematizado; e Basílio o Grande184

foi, por certo, o que mais se posicionou contra os

excessos dos alegoristas185

. Mas a interpretação tradicional que vê de modo literalista os

182

OBERMAN, Heiko A. Luther: man between God and the Devil. Transl. by Eileen Walliser-Schwarzbart.

New York: Image Books / Doubleday, 1989. p. 251. 183

“A palavra ensina o que houve, / a alegoria o que você deve acreditar, / o sentido moral, o que você deve

fazer, / a anagogia, aonde você quer chegar”. (WR, 52, 56, Anm. 1 [Nikolaus von Lyra in ersten Prolog seiner

Bibelpostille]. Band II, p. 802). Cf. RAEDER, Siegfried. Luther als Ausleger und Übersetzer der Heiligen

Schrift. In: JUNGHANS, Helmar. (Hg). Leben und Werk Martin Luthers von 1526 bis 1446: Festgabe zu

seinem 500. Geburtstag. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1983. p. 259. Band I. 184

Ou Basílio de Cesaréia (330-379), juntamente com o seu irmão Gregório de Nissa, e com Gregório de

Nazianzo, seu amigo íntimo, foram reconhecidos pela tradição cristã como os três grandes Pais capadócios. 185

Opôs-se, principalmente, contra aqueles que, em suas interpretações, iam além da clareza revelada de Deus,

transitando por significados ocultos e obscuros que mais anuviavam o sentido da Escritura do que elucidavam:

“Não exaltarei antes Aquele que, não desejando encher nossa mente com estas vaidades, tem regulado todas as

disposições da Escritura visando à edificação e ao aperfeiçoamento de nossa alma? É isto que eles parecem-me

não ter compreendido, os quais, entregando-se ao sentido distorcido da alegoria, tentaram dar uma majestade à

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lugares da Bíblia, por exemplo, reconhecendo-os de modo político-geográfico, não tendo o

elemento da espiritualidade – necessária à leitura dos Salmos, que são poemas –, não

poderiam enxergá-los senão como “labirintos”.

Do mesmo modo, e para muitos outros textos, mesmo os do Novo Testamento, tanto

para Lutero como para Agostinho, o sentido está para além da literalidade, porque a Palavra,

mais do que narrar um fato, propõe um modelo de vida que responde graciosamente ao fato

narrado, como no caso da parábola do homem rico, em que o sentido vai além da

compreensão mesma da história, apelando para uma “disposição íntima” daquele que lha

escuta. Assim, e para o seu sentido espiritual: “Foi seu orgulho, não sua riqueza, que levou o

rico aos tormentos do inferno, porque ele desprezou o bom homem pobre que estava à sua

porta”, diz o Hiponense186

. “Agostinho e outros pais diferem em sua confiança na alegoria

para dar sentido ao mandamento de Cristo”, diz Christopher A. Hall, afirmando que, no

entanto, os Pais “são unânimes nas aplicações que extraem do texto”187

. Um e outro extremo

parecem ganhar algum equilíbrio na obra do Hiponense, quando ele se debruça sobre os livros

da Bíblia, expondo-os ao povo, à Igreja.

Na introdução que fez à sua tradução de De Genesi contra manichaeos, Roland J.

Taske afirma que, no seu tempo, e no contexto das Igrejas do norte da África, o jovem

Agostinho estava frustrado com a hermenêutica bíblica anti-intelectual, supersticiosa e

autoritária que prevalecia entre os bispos, entre os que doutrinavam a comunidade dos

crentes188

. E Peter Brown, na biografia mais famosa que já se fez do Hiponense, não

desconsidera o fato, assinalando a natureza exageradamente conservadora das igrejas norte-

africanas e a acentuada sensibilidade dos bispos que reagiam desfavoravelmente a qualquer

um que questionasse a autoridade com que interpretavam a Escritura:

Essa não era uma vaga autoridade “na fé e na moral”, muito menos o direito

altamente sofisticado de persuadir e proteger o inquiridor da verdade, que Agostinho

sua própria invenção para o texto. É crerem ser eles próprios mais sábios do que o Espírito Santo e urdir suas

próprias idéias sob o pretexto da exegese” (BASÍLIO, Homil., 9, 102). 186

Epist., 157. No mesmo sentido, tendo em mente a dura observação que o Cristo faz sobre os que são

possuídos pelas riquezas que crêem possuir, Agostinho acentua não a impossibilidade de os ricos entrarem no

Reino, mas enfatiza a graça que a todos pode abarcar, conforme o propósito de Deus: “Se eles retêm suas

riquezas e fazem suas boas obras por meio delas ou entram no reino do céu por vendê-las e distribuí-las para

prover as necessidades do pobre, deixemos que eles atribuam suas boas obras à graça de Deus, não à sua própria

força. [...] Pois o que é impossível para os homens é fácil, não para eles, porque são homens, mas para Deus.”

(Epist., 157). 187

HALL, Christopher A. Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja. Trad. de Rubens Castilho. Viçosa:

Ultimato, 2000. p. 162. 188

TESKE, Roland J. Introduction. In: AUGUSTINE, Saint. Two books on Genesis against the manichees.

Washington: The Catholic University of America Press, 1991. p. 9.

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mais tarde confirmaria. Nos anos 370, como anteriormente, a autoridade dos bispos

se originava diretamente da sua possessão da “Lei Divina”, as Escrituras, e de seu

dever de as preservar e expor. A Bíblia [...] era tratada como uma fonte para

decisões legais rigorosas, e ser um verdadeiro cristão significava, muito

simplesmente, aceitar essa “Lei” em sua inteireza, sem fazer perguntas ineptas189

.

Mas Agostinho, dirá Hall, “tinha várias perguntas sobre as Escrituras, às quais

desejava responder, mas as respostas não estavam disponíveis”190

. E a Bíblia que os cristãos

norte-africanos usavam, conforme Peter Brown, era uma edição latina “traduzida alguns

séculos antes por escritores humildes e não identificados, [...] cheia de gírias e jargões”, coisas

detestáveis à fina erudição do mestre da retórica, Agostinho191

. Mais do que as preocupações

estilísticas, Agostinho se preocupava com o método literalista com que alguns interpretavam

textos como, por exemplo, o da criação do homem, no Gênesis 1, 26, onde se diz que foi feito

à imagem de Deus. Em tal interpretação, Deus teria um corpo material, seguindo as

características do corpo humano. De fato, nas palavras de Teske:

O que parece ter ocorrido é que toda a Igreja ocidental, até quando Agostinho veio a

entrar em contato com o círculo neoplatônico na igreja de Milão, pensava em Deus e

na alma em termos materialistas. Se qualquer coisa real é corpórea, como Tertuliano

e o materialismo estóico dominante haviam sustentado, então o fato de que o homem

é feito à imagem e semelhança de Deus comprova inevitavelmente que Deus tem o

perfil e a forma do corpo humano192

.

Agostinho se posicionará, em vários dos seus comentários à Escritura, contra essa

hermenêutica materialista. Mas não assumirá uma posição cega contra a matéria, no sentido

de lhe atribuir bondade ou maldade próprias. Nas Confessiones, por exemplo, a matéria,

diferentemente do que diziam os Maniqueus, não é má; mau é o uso que dela pode ser feito. O

problema é a ação moral do homem sobre ela; mal ou bem, como Deus, não têm substância:

“Com efeito, a Verdade diz-me: „O teu Deus não é a terra e o céu, nem corpo algum‟”193

. Mas

essa compreensão “imaterialista” de Agostinho, de Deus segundo a Escritura, não veio assim

tão facilmente. Nas Confessiones ele fala do sofrimento que era ler certas passagens do

Antigo Testamento, “cuja interpretação literal me matava”194

. E quem lê a referida obra sabe

do tamanho da sua luta e da sinceridade com que a encarou, à procura da Verdade. Foi a

exegese figurativa (“espiritualista”, conforme Agostinho) de Ambrósio de Milão (c. 342-397)

189

BROWN, Peter. Augustine of Hippo. Berkeley / Los Angeles: University of California, 1969. p. 42-3. 190

HALL, 2000, p. 162. 191

Cf. BROWN, 1969, p. 42. 192

TESKE, 1991, p. 12. 193

Conf., IX, 6,10. Ver ainda, para o mesmo sentido: Conf., VI, 3,4. 194

Conf., V, 14,24.

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que lhe deu os primeiros raios de esperança, de vida195

. “Mas como a exegese figurativa de

Ambrósio deu esperança a Agostinho?”, pergunta Hall, que responde:

Em primeiro lugar, Ambrósio tornou claro que as passagens do Velho Testamento, como

Gênesis 1,26, não devem ser interpretadas segundo um modelo canhestro, literal,

negligenciando figuras-chave da exposição. O fato de que Gênesis ensina que a

humanidade foi feita à imagem de Deus não significa que Deus é uma substância material

ou possuidora de um corpo físico. A exposição de Agostinho aos exegetas cristãos

ocidentais, como Ambrósio, abriu seus olhos para outras possibilidades. [...] A exposição

de Gênesis feita por Agostinho mais tarde demonstra que o fruto do ensino havia

amadurecido196

.

A interpretação de Agostinho a outros livros da Escritura é marcada por essa

“espiritualidade”, por essa chave alegórica. A noção da impessoalidade substancial do mal,

conforme vimos na interpretação que ele faz do Gênesis 1, 26, aplicada ao problema de Deus,

dá ênfase à ação moral humana, à vontade humana em relação ao mundo, ao Outro e em

relação ao próprio Deus, a quem responde como “imagem moral”. Essa moral prática,

resposta da fé, pode ser encontrada e exposta sob três perspectivas, conforme o esquema:

A ética/moral agostiniana

Eu (corpo / mente): o que eu me tornei para mim (?), para... I – Psicológica [para] o Mundo – relação ético/moral-espiritual

[e para] o Outro - relação ético/moral-espiritual

praxis (Igreja / mundo) ANÁLISES 2 – Pastoral expositio evangelicae (comunidade)

expositio biblicae (exegese)

memoria / interioridade 3 – Teológico-filosófica libero arbitrio / voluntas

uti / frui

No esquema, as temáticas das análises 1 e 2 retornam na 3, mas ganham um

direcionamento mais abrangente, menos local; enquanto a 1 está concentrada no Eu (e nas

suas percepções exteriores), a 2 tem uma natureza mais prática, posta a serviço da

comunidade (Igreja); esta, pela variedade intelectual dos fiéis, nem sempre em condições de

195

Conf., V, 14,24: “Explicados [por Ambrósio], assim, espiritualmente vários passos daqueles Livros,

começava a censurar o meu desespero, pelo menos aquele que me levava a crer que não era possível de forma

alguma resistir àqueles [os Maniqueus] que detestavam e escarneciam da Lei e dos Profetas.” 196

HALL, 2000, p. 117. “É ponto pacífico entre teólogos e historiadores o reconhecimento da importância da

interpretação agostiniana para a formação do imaginário cristão ocidental, notadamente no que concerne às

origens e fins do ser humano, do mito do pecado original à redenção de Cristo. Tanto a Teologia como seus

derivados pastorais e culturais têm uma dívida notável para com a antropologia bíblica de Santo Agostinho,

como que fazendo jus ao esforço de toda uma vida dedicada ao ministério pastoral e à homilética”

(RODRIGUES, 2005, p. 9-10).

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ouvir uma exposição mais aprofundada – que é o que ocorre na análise 3, em que os temas

retornam e são desenvolvidos com mais profundidade. É evidente que Agostinho não pensou

em tal esquema, e é evidente que tal esquema tem seus limites; serve-nos, porém, como

direcionamento à abordagem geral do tema da ética/moral. Convém notar que tais análises, na

exposição do Hiponense, não têm uma ordem fixa. Acontece que ele, escrevendo ou falando

ao povo, lugar comum nas afirmações dos que o comentam, é assistemático, vibrante, poético

e, ao tratar sobre os temas da doutrina cristã, tem o coração como que em chamas, conforme o

representam em vasta iconografia. Naquela que é a sua primeira biografia, Possídio, seu

amigo muito próximo e primeiro biógrafo, diz que “Agostinho corajosamente ensinava e

pregava, em particular e em público, em casa e na Igreja, [...] contra as heresias existentes na

África, [...] escrevendo livros e falando de improviso”197

. O Hiponense, na pena de Possídio, é

o responsável por um verdadeiro avivamento da Igreja cristã no norte da África – e para além

dela –, acossada pelas heresias dos donatistas, maniqueus, pagãos e pelas próprias

interpretações equivocadas de alguns bispos, como vimos. De acordo com Possídio:

Os cristãos ficavam admirados em extremo, e o elogiavam quanto podiam. Não

ocultavam esses feitos, mas antes os divulgavam. [...] Os próprios hereges,

concorrendo com os católicos, ouviam ardorosamente os livros e tratados de

Agostinho, que procediam e profluíam de admirável graça de Deus, e apoiavam-se

em muitos raciocínios e na autoridade das Sagradas Escrituras. Todos os que

queriam e podiam, por meio de escreventes, copiavam as anotações do que ele dizia.

Difundiu-se e manifestou-se por toda a África a preclara doutrina e o odor de Cristo

[...] para além também da Igreja de Deus de além-mar198

.

Numa obra como as Confessiones, é facílimo notar que, de acordo com o nosso

esquema, a análise psicológica fica em evidência. Ainda nas Confessiones, podemos observar

que existem três divisões naturais, sendo que o tema, central, aparece imediatamente após o

relato da conversão (do Livro 1 ao 9), como uma pergunta sobre si mesmo: o que eu me tornei

(para mim) para o Mundo e para o Outro? É uma pergunta que, como resposta, reclama uma

197

Vit. August., 7, 1. POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho. Trad. das monjas beneditinas de Caxambu-MG.

São Paulo: Paulus, 1997. p. 43-4. Quando Agostinho estava doente, com febre e já esperando a morte, Possidio

estava ao seu lado. Pouco depois os bispos católicos foram expulsos do norte da África e exilados; Possídio foi

um deles. As datas precisas de seu nascimento e de sua morte são desconhecidas, mas se aceita que Possídio

tenha morrido por volta de 437. 198 Vit. August., 7, 1,3-4. No comentário que faz à passagem, Miguel Tajadura diz que o Hiponense “Siempre

estaba dispuesto a servir a su pueblo. Era un verdadero pastor, y se ha dicho de él que que fue „el más santo de

los humanos y el más humano de los santos‟. Nos consta que la influencia y autoridad de Agustín traspasaba las

fronteras de África. Sus libros y escritos eran propagados y requeridos en otros lugares donde había llegado su

fama. Su experiencia, autoridad y precisión en la refutación de las herejías, especialmente maniqueos y

pelagianos, estaba patente en sus escritos, que eran consultados por otros predicadores.” (TAJADURA, Miguel.

Agustín de Hipona. Buenos Aires: San Pablo, 2006. p. 25. [Col. Misioneros del Reino]).

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análise psicológica – e é justamente isso que ele continuará fazendo (pois fazia isso desde o

início) –, teológica e, em tudo e de modo irremediável, moral – aos moldes da resposta da fé à

ação prática do ser cristão. O Livro X é, pois, o início da segunda parte da obra e, central,

destaca-se dos três últimos, que são como que um hino de louvor a Deus, mediante a

contemplação da sua obra, que o revela; e ele próprio, o Hiponense, se põe junto dela. Às

considerações sobre a ética-moral na hermenêutica de Agostinho – tal como ele às emprega

ao interpretar a Escritura para o povo (análise pastoral), fazendo-a também fundamento do

seu pensamento e ação (análise teológico-filosófica) –, o De sermone e o Livro XV da De

civitate Dei atendem perfeitamente ao nosso intento. Assim, e para tal abordagem, cremos ser

necessário, ainda, maior aprofundamento na hermenêutica do Hiponense, e notadamente na

utilização que ele faz das alegorias.

1.5. Alegoria, linguagem, signo, significado e transcendência

A hermenêutica alegórica de Agostinho está inserida dentro de um conjunto já

bastante coeso, embora, às vezes, complexo e confuso. Na Retórica antiga, o dizer B para

significar A, é método de muito conhecido, e válido; embora os excessos do seu uso possam

tornar o discurso (oral ou escrito) mais nebuloso do que elucidado. Às vezes, nessa mesma

Retórica, a alegoria (allós agourein, “outro falar”) era mero ornatus, ornamento discursivo

desnecessário, recurso teatral para impressionar a platéia, para ganhar aceitação pelo artifício

da fala, da lábia. Do mesmo modo pode ser a metáfora, que é, conforme Heinrich Lausberg,

continuação como tropo de pensamento: “A alegoria”, diz ele, “é metáfora continuada como

tropo de pensamento, e consiste na substituição do pensamento em causa por outro

pensamento, que está ligado, numa relação de semelhança, a esse mesmo pensamento”199

. O

mesmo fora dito por Agostinho: “O que é, pois, a alegoria senão o tropo [a partir] do qual

outra coisa é dita?200

” É o que a Antiguidade greco-latina e cristã, depois continuada pela

Idade Média, chamou de “alegoria dos poetas”201

: um termo 2º toma o lugar de um termo 1º,

199

LAUSBERG, Heinrich. Manual de retórica literária: fundamentos de una ciencia de la literatura. Madrid:

Gredos, 1976. p. 283. v. 1. 200

De Trin., XV, 9,15; PL 42, 1068. 201

Cf. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas:

Editora da Unicamp, 2006. p. 27.

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próprio ou literal. Marco Fábio Quintiliano (35-96), citando um poema do Livro I das Odes,

de Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.)202

, diz que:

A alegoria, em latim inversio, apresenta um sentido diverso do das palavras, e às

vezes até contrário. A primeira forma resulta sobretudo de uma seqüência de

metáforas: “Ó nave, levam-te ao mar novas / Ondas! Que fazes? Rápida entra / No

porto” e todas as passagens de Horácio em que o navio é o Estado, as ondas e

tempestades as guerras civis, o porto a paz e a concórdia203

.

O Hiponense, mestre da Retórica, serve-se, porém, de um modelo alegórico distinto

deste “dos poetas”, que Hansen chama de “alegoria dos teólogos”. No exemplo acima,

“Quintiliano pensa a alegoria como ornamentação oratória ou poética; os Padres, como

revelação de mistérios divinos”204

. De fato, tal alegoria é já hermenêutica e tem o

essencialismo205

que, estranho à Retórica da Antiguidade, afirma a existência de dois livros

escritos por Deus: o livro do mundo (a natureza) e a Bíblia. No poético-retórico texto do Livro

X das Confessiones, quando Agostinho interroga a terra, o mar, os abismos, os seres

rastejantes, as brisas, o ar, o céu, o sol, a lua, as estrelas e a mole do universo, acerca de Deus,

todos dizem, respondendo-o: “Não somos Ele, mas foi Ele quem nos fez”206

. Aí, de uma só

vez, e de modo alegórico, o mundo e a Escritura servem à revelação (geral) que escapa a

todos os sentidos da Antiguidade pagã, e já comum na doutrina cristã paulina, dentre outras.

Séculos depois o franciscano São Boaventura (1217-1274) repetirá o Hiponense e a essa

tradição, dizendo que:

As criaturas do mundo visível são os sinais [significant] das perfeições invisíveis de

Deus, seja porque Deus é a causa, seu exemplar e seu fim [exempla et finis] (pois

todo efeito é sinal [signo] de sua causa, toda cópia é sinal de seu exemplar

202

Ode XIV, Ad Rempublicam: “Ó nave, levam-te ao mar novas / Ondas! Que fazes? Rápida entra / No porto.

Não vês como / O costado despojado de remos / E o mastro ferido do rápido Áfrico / E as vergas gemem, e como

sem cordas / A quilha mal pode suportar / O mar enfurecido? Não tens velas inteiras / Nem deuses a quem

invoques oprimida pelo mal. / Embora tu, pinho do Ponto, / Filha de ilustres floresta, / Te orgulhastes de tua

origem e de tua nobreza inútil, / O nauta amedrontado não crê nas pinturas / Da popa. Cuida-te, se não queres /

servir de joguete aos ventos. / Outrora meu sofrimento e inquietação, / Hoje preocupação e cuidados, / Evita os

mares extensos / Entre as Cíclades brilhantes”. É provável que Horácio tenha composto o seu poema após a

Batalha de Filipos, em 42 a.C. O navio figurava Roma; o mastro destruído era Pompeu, o Grande, morto em 48

a.C., no Egito, por ordem de Ptolomeu XII. 203

De inst. Orat., III, VIII. QUINTILIANO, Marco Fábio. Institution oratoire (De institutione oratória). Trad.

franc. de Henri Bornecque. Paris: Garnier, [s.d.]. p. 238. 204

HANSEN, 2006, p. 30. 205

“O essencialismo implica uma concepção dos signos como metáforas: as coisas são criadas e, desta forma,

são índices ou vestígios da Suma Vontade, que se manifesta indiretamente nelas. Há somente duas classes de

seres no mundo: os signos e a Coisa (Deus)” (HANSEN, 2006, p. 59). Mais adiante, quando tratarmos da res e

do signum na doutrina da linguagem de Agostinho, voltaremos à definição do essencialismo. 206

Conf., X, 6,9. O texto que o Hiponense usa para justificar a voz do mundo é o de Gênesis 1, 20; o relato da

criação.

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[exemplatum exemplaris] e todo meio e sinal do fim ao qual conduz), seja por meio

de sua própria representação [propria representatione], seja como figuras proféticas

[prophetica praefiguratione], seja pelo ministério dos anjos, seja por uma instituição

divina. Todas as criaturas são, de fato, pela sua natureza, uma imagem ou

semelhança da Sabedoria eterna207

.

Do mesmo modo que as “coisas” do mundo, na alegorização cristã, se remetem para

Deus, pois ele as criou, assim também algumas passagens do Velho Testamento, de modo

figurativo (tipo) apontam para o Novo, profetizando-as. A interpretação não cai nas palavras,

nem nas coisas, mas nos acontecimentos – que envolvem todas as coisas aí contidas –, ou nos

personagens do acontecido. É assim que Agar, de modo não menos espiritualista, significará,

para Filo, de modo exemplar, a filosofia helênica diante da doutrina de Moisés, que é como

Sarai, sua senhora. De semelhante modo, o próprio Moisés sobre o monte, recebendo a Lei e

entregando-a ao povo é, para o Hiponense, umbra futurarum, tipo de Cristo que apregoa a

Nova Lei, a Nova Aliança. O Novo Testamento realiza o que, no Velho, havia como tipo,

como sombra.

Aristóteles, Filo, Cícero e Quintiliano foram fundamentais às categorias

hermenêuticas e métodos de interpretação que se estenderam por toda a Idade Média208

.

Orígenes, no século II, com base em Filo209

, foi quem deu o modelo mais acabado a

interpretação tipológica, tal como exposta acima, brevemente. Agostinho, porém,

principalmente pela união que faz da sua doutrina da iluminação com a doutrina do

significado ou da linguagem210

, somando isso tudo ao essencialismo, promove uma mudança

207

Itin. ment. in Deum, II, 12. BOAVENTURA, São. Itinerário da mente para Deus (Itinerarium mentis in

Deum). In: DE BONI, Luis Alberto (Org.). São Boaventura: obras escolhidas. Trad. de Jerônimo Jerković.

Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes / Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul:

Editora da Universidade de Caxias do Sul, 1983. p. 179-80. (Col. Suma, 12). 208

Até a introdução do método analógico, por Tomás de Aquino, e do método histórico-crítico, por Lutero, a

tradição hermenêutica, relativa à interpretação da Escritura, permaneceu quase sem novidades. Cf. BOCHET, I.

Le firmament de l’Écriture: l'herméneutique augustinienne. Paris: Institut d'études augustiniennes, 2004. 209

Filo, por sua vez, baseando-se em Platão – para quem o mundo físico é qual espelho embaçado do mundo

espiritual –, interpretava a Escritura conforme três níveis: cosmológico, antropológico e místico. A interpretação

cosmológica, todavia, já se encontra em Plutarco (45-120?), que fala que os gregos alegorizam o tempo,

chamando-o de Cronos (Saturno), o ar de Hera (Juno) e o fogo de Hefesto (Vulcano), e que o mesmo havia sido

feito pelos egípcios, que confundiam o Nilo com Osíris, e a terra com Ísis, etc. 210

Com relação ao tema, na reflexão de Agostinho, Sabina Depaoli faz uma distinção entre um primeiro período

(386-396), “no qual o filósofo trata [...] do aspecto lógico-semiológico e o gnoseológico-semântico [...] da

linguagem”, e um segundo período (396-430), “no qual o discurso se faz mais marcadamente ontológico-

metafísico, enquanto a atenção de Agostinho se desloca para a linguagem interior” (SALMONA, Bruno;

DEPAOLI, Sabina. Il linguaggio nella patristica, Gregorio di Nissa e Agostino. Genova: Tilgher-Genova,1995.

p. 72). A obra que trata sobre a filosofia da linguagem, em Agostinho, é bastante grande. Dentre as tais, e para o

tema, conforme temos enfocado, ver: VECCHIO, S. Le parole come segni. Introduzione alla linguistica

agostiniana. Palermo: Novecento,1994; RINCÓN GONZALEZ, A. Signo y Lenguaje en San Agustín. Bogotá:

Universidad Nacionalde Colombia,1992; CRICCO, V. Semiótica agustiniana: el diálogo El maestro de San

Agustín. Morón: Universidad de Morón, 2000; ALICI, L. Il linguaggio come segno e come testimonianza. Una

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na hermenêutica que, relativamente nova, vai perdurar até as modernas filosofias, como a da

Linguagem, por exemplo211

. A linguagem ou a fala (locutio), em Agostinho, principalmente

como ele a trata no De Magistro, no De doctrina christiana e no De dialectica212

– um texto

incompleto a ele atribuído, embora tal atribuição seja questionada – tem a função de ensinar

(docere), mas o aprendizado (discere) se dá mediante o Mestre interior. E o aprendizado tem,

em última instância, uma natureza pragmático-moral, pois que se aprende para a vida, e a vida

com Deus. Por isso que, do De Magistro, Santos afirma que, “do ponto de vista da linguagem,

é possível [...] estudar o diálogo em uma perspectiva filosófica a partir da divisão em síntaxe,

semântica e pragmática”213

. E embora o sentido para a pragmática, aqui, tenha a ver com “a

relação dos signos com os falantes”214

, é evidente que a instrução do que aprende e o que se

aprende visa, por finalidade, aquilo que é dito por Adeodato no final do diálogo: “Eu o amarei

desde agora tanto mais ardentemente, quanto mais estiver adiantado em aprender”215

.

Se dissemos acima que a interpretação alegórico-cristã não caía exatamente nas

palavras (signa), mas nas coisas (res) e no acontecido, ou nas pessoas envolvidas, com

Agostinho é preciso notar que, na palavra, há sempre um “algo a mais”. Quando ele pensa no

Verbo divino como “uma palavra”, que a Retórica posterior chamaria de figura ou metáfora

(allegoria in factis), pensa-o, além do sentido próprio que a Palavra/palavra tem em seu

riletura di S. Agostino. Roma: Studium,1976; ANGELES NAVARRO GIRON, M. Filosofia del lenguaje en

San Agustín. Madrid: Editorial Revista Agustiniana, 2000; BURNYEAT, M. F. Wittgenstein and Augustine De

Magistro. In: MATTHEWS, Gareth B. (Ed.). The augustinian tradition. Berkeley, Los Angeles, London:

University of California Press, 1999. p. 286-303. 211

“Entre os pólos temáticos em torno dos quais se concentram os estudos sobre o influxo de Agostinho na

filosofia contemporânea destaca-se sem dúvida a questão da linguagem, enquanto horizonte de fundo dentro do

qual se encontra uma ampla gama de questões, da gênese do sentido à função do signo e à dinâmica da

comunicação. Quem chamou a atenção para a reflexão agostiniana sobre o signo no século XX foi efetivamente

L. Wittgenstein, especialmente em texto como Brown Book, Philosophische Untersuchungen e Philosophische

Grammatik. E não é por acaso que seja justamente Wittgenstein o representante quase emblemático da

ambivalência de um confronto com Agostinho, continuamente oscilante entre admiração e dissenso. É assaz

conhecido o fato de que ele inicia as Investigações filosóficas citando uma passagem das Confissões de

Agostinho, isto é, uma parte do parágrafo 8 do Livro I”. (SANTOS, Bento Silva. Introdução. In: AGOSTINHO,

Santo. De Magistro. Trad. introd. e coment. de Bento Silva Santos. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 49. [Col. Textos

Fundamentais de Educação]). O texto inteiro de Santos, que merece ser lido, trata sobre a questão de Agostinho e

a filosofia da linguagem, confrontando-o com a Modernidade. 212

No De dialectica há uma teoria do signo linguístico bastante desenvolvida, conforme o demonstra RUEF, H.

Die Spachtheorie des Augustinus in “De dialectica”. In: EBBESEN, S. (Org.). Sprachtheorien in Spätantike

und Mittelalter. Tubinga: Günter Narr Verlag, 1995. p. 3-11. E o De doctrina christiana, que é um tratado

hermenêutico, foi considerado por Gerhard Ebeling – que foi discípulo de Bultmann –, e não sem razão, como “a

obra historicamente mais eficaz de hermenêutica” (EBELING apud GONDRIN, Jean. Hermenêutica: introdução

à hermenêutica filosófica. Trad. de Benno Dischinger. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 70-1. [Col. Focus, 2]) 213

SANTOS, 2009, p. 35. A divisão, no De Magistro, é assim, conforme Santos: “Introdução, na qual Agostinho

esboça problemas relativos ao ensinar/aprender (§§ 1-6); três partes que correspondem às três funções da

linguagem: sintática (§§ 7-20); semântica (§§ 21-35) e pragmática (§§ 36-46)” (SANTOS, 2009, p. 34). 214

Cf. MARCONDES, Danilo. Revendo a distinção tradicional: sintaxe, semântica, pragmática. In:

MacDOWELL, J; YAMAMOTO, M. Y. (Orgs.). Linguagem & linguagens. São Paulo: Loyola, 2005. p. 95-

128. 215

De Mag., XIV.

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contexto, na Escritura, como aliud aliquid, aquele “outra coisa” que dissemos. E como ele

mesmo diz: “Signum est res, praeter speciem quam ingerit sensibus, aliud aliquid ex se

faciens in cogitationem venire”216

. O signum, para Agostinho, está intrinsecamente ligado à

res217

, e, por isso, o pensamento é capaz de chegar a um verdadeiro conhecimento do Ser, e ao

próprio. A metáfora (e a alegoria) é uma realidade, ao mesmo tempo, linguística e natural, “na

medida em que Santo Agostinho observa que res (coisa) e signum (signo lingüístico) não têm

separação ou distinção rígida”218

. Mais adiante, Hansen afirma:

Aplicada à leitura e à interpretação da Bíblia, essa doutrina pesquisa a relação da

littera (letra que representa o som) com o significado. Como a palavra interior

veiculada no signo tem por modelo a escritura da Bíblia, onde o Verbo divino “fala”,

toda interpretação passa a ser uma glosa da letra escrita. O mundo e a história são o

Ditado de Deus, as palavras da Lei o seu “estilo”219

.

Assim,

signo

↨ [...]

↨ signo

↨ [...]

↨ [...]

↨ Coisa

O signo [...] compõe-se de som (sonus) ou vox articulata (De Magistro

4, 8). O “discurso exterior” – que hoje seria chamado significante,

imagem acústica, forma de expressão – é signo de um “discurso

interior” (sermo interior) que produz na mente (in cogitatione) o

significado (significatus) (De doctrina christiana II, 1.1)220

.

Nenhuma obra de Agostinho foi tão fundo na teoria do signo e do significado quanto

o De Magistro, que tem suscitado estudos cada vez mais profundos entre aqueles que o

216

“O signo é uma coisa que, além da imagem que imprime nos sentidos, faz vir à mente uma realidade diversa

de si mesmo” (De doc. christ., 2, 1,1). 217

“Segundo os estóicos, existem três fatores diferentes que constituem o signo: o τυγχάνον, objeto exterior ou

referente, o que se encontra fora e em correspondência com a intenção da palavra que expressa o pensamento; o

σημαῑ νον, ou significante, a emissão fônica produzida pelo fato de produzir uma língua; é uma entidade

material cuja significação percebe o ouvinte pelo fato de conhecer a língua em que é proferida; e o

σημαiνόμενον, ou significado, o que voz expressa, o que compreende o que conhece a língua, e não compreende

quem a ignora. O que Agostinho chama res corresponderia ao τυγχάνον, „o percebido pelos sentidos (sentitur),

concebido pela razão (intelligitur), ou o que permanece oculto, quando nem sentitur nem intelligitur‟”

(SANTOS, 2009, p. 57). 218

HANSEN, 2006, p. 59. 219

HANSEN, 2006, p. 60. Na seqüência, Hansen afirma que: “A junção do dispositivo retórico, que prevê o

sentido próprio e o sentido figurado, como essencialismo cristão, que postula a glosa perene da letra na leitura

das coisas, permite a autonomização dos grafismos como procedimento retórico-poético comum na Idade Média,

no Renascimento e no século XVII” (HANSEN, 2006, p. 60-1). No terceiro capítulo do nosso trabalho, tal

evidência se mostrará factual e será mais evidenciada. 220

HANSEN, 2006, p. 60.

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comentam221

. No De doctrina christiana, o Hiponense lançará os fundamentos teóricos da sua

tipologia. Marcado pelo dualismo platônico, tal tipologia opõe o mundo sensível ao

inteligível. Através do mundo sensível (coisas), Deus fala aos homens, e os homens, ao

falarem de tais coisas, produzem seus signos e, assim, signos de signos. Os signos, pois, são

ou naturais ou instituídos, ou, retoricamente classificados: próprios e translatos. Os signos

naturais (signa naturalia222

) são distinguidos dos signos instituídos (signa data) da seguinte

forma: “Os naturais são os que, sem que se tenha intuito de conferir-lhes significação, por si

mesmos fazem conhecer outra coisa além do que são. A fumaça significa o fogo”223

. Já para

os segundos, diz o Hiponense:

Os signos de instituição são aqueles que todos os seres animados se dão mutuamente

para demonstrar, na medida em que podem, os diversos movimentos de sua alma, ou

dos sentidos ou dos pensamentos [...] e os signos divinos de instituição contidos nas

santas Escrituras, que nos são revelados pelos homens que as escreveram224

.

221

Dentre os quais, por exemplo, as questões sobre o Mestre interior e sobre a Teoria da Iluminação, às quais são

apontadas algumas controvérsias que, para o momento, fogem ao nosso tema. Importa perguntar, no entanto – e

para não deixar a questão correr como se fosse já acertada, consente –, qual é a relação entre a impotência

cognitiva das palavras e a idéia da iluminação interior; à mesma questão, ainda se pergunta se o diálogo (De

Magistro) não seria um argumento racional com o fito de defender uma teoria filosófica sobre a possibilidade do

conhecimento não sensível, ou se o mesmo não teria a intenção propriamente hermenêutica – preparando o leitor

para que compreendesse o sentido evangélico de “Unus est magister vester, Christus” (Somente um é o vosso

mestre, Cristo). Na Introduction à l‟étude de Saint Augustin, Gilson tenta atribuir à doutrina da iluminação um

papel apenas normativo (ou formal), que tem a função de conferir à mente a capacidade de julgar a verdade de

idéias determinadas, pondo em prática tais juízos (cf. GILSON, Étienne. Introduction à l’étude de Saint

Augustin. Paris: Vrin, 1982. p. 88-147); mas parece que isso não traduz corretamente a idéia e a amplitude da

concepção de Agostinho, “à qual”, diz Santos, “podemos atribuir sem dúvida uma dimensão ontológica”

(SANTOS, 2006, p. 161). Talvez, como sugere Gerard O‟Daly, a iluminação seja uma tentativa de explicar os

conteúdos mentais, isto é, o acesso da mente aos conceitos e às idéias, e não representa uma pura e simples

explicação da sua capacidade de juízos (cf. O‟DALY, G. La filosofia della mente in Agostino. Palermo:

Edizioni Augustinus, 1988. p. 251). 222

Os modernos semióticos o chamariam de índice, que é um signo indicador. É quando o significante remete ao

significado tomando como base a experiência vivenciada pelo interpretador. Por exemplo, ao ver uma imagem

de um carro sem a maçaneta, a imagem nos chega aos olhos como o índice de uma tentativa de assalto. Mas isso

só se torna evidente porque temos experiências anteriores com assaltos, seja através de experiências pessoais,

seja por reportagens vistas em algum telejornal. Portanto, conforme Charles Sandres Peirce (1839-1914) – que é

considerado o “pai da semiótica” –, o índice opera pela conexão de contiguidade de fato entre dois elementos.

(Cf. PEIRCE, C. S. Écrits sur le signe. Paris: Éditions Du Seuil, 1978). 223

De doc. christ., II, 1. 224

De doc. christ., II, 2. Mais adiante, Agostinho dá outra divisão nos signos próprios (signa propria) e

translatos (signa translata): “Os próprios são aqueles de que se serve para significar as coisas para as quais

foram instituídos, como quando dizemos boi entendemos o animal que todos os que, como nós, falam latim,

chamam com esse nome (bovem)” (De doc. christ., II, 10). Já os translatos (“figurados”), podem, conforme ele,

indicar uma coisa que é metáfora de outra: “Os signos são translatos quando as próprias coisas que significamos

por seus termos próprios têm uma outra significação; conforme dizemos boi (bovem), por estas duas sílabas

entendemos o animal, que costuma ser chamado por este nome: mas entende-se também pelo animal o

evangelista, que a Escritura significou, dizendo, segundo a interpretação do apóstolo: „Não colocareis freio ao

boi que tritura‟ (Bovem triturantem non infrenabis)” (De doc. christ., II, 10).

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Portanto, quando o evangelista, citando um provérbio antigo, diz: “Não colocareis

freio ao boi que tritura”, o boi, que é signa propria que nomeia o animal, torna-se signa

traslata (metafórico e alegórico), significando o apóstolo que, no/do seu trabalho, necessita de

alimento. Conforme notará Agostinho, a alegoria realiza uma dupla função: é figura que

ornamenta o discurso retoricamente, conforme uma instituição humana (o fato de se nomear a

criatura com o nome de “boi”), e é também figura significante da própria coisa, que figura

outra. A coisa própria não deve ser confundida com a translata, e nem vice-versa. Evita-se a

confusão, conforme Agostinho, tendo como estabelecido que, na Bíblia, o que não puder ser

relacionado às virtudes da fé ou à pureza dos costumes é, necessariamente, translato, figurado.

O critério final é a caridade, o amor de Deus225

. Os exemplos pululam na Escritura, e o

Hiponense cita vários para exemplificar o duplo sentido que a alegoria pode ter. O modelo,

exemplar, já está em Filo, em Cícero, em Horácio, em Quintiliano e, acima de todos, no

próprio apóstolo Paulo que

Interpretou as duas mulheres e os dois filhos de Abraão (Agar/Ismael, Sara/Isaac)

como a Antiga Aliança e a Nova Aliança, chamando a passagem de “alegoria”. A

“alegoria”, escreve Santo Agostinho, não está nas palavras do texto bíblico, mas nos

próprios fatos históricos que, como coisas ou eventos, também simbolizam – e de

modo mais essencial (De Trinitate, 15, 9)226

.

A classificação alegórica de Agostinho, portanto, apresenta dois tipos: um verbal e

outro participativo – que é a eloquente linguagem silenciosa das coisas criadas, conforme

vimos nos exemplos do Livro X das Confessiones, e como Beda, o Venerável (673-735),

Boaventura e tantos outros evidenciarão, seja mediante o essencialismo ou mediante a notação

da linguagem própria (signa propria). A alegoria verbal (ou factual), para Beda, contém,

figurativamente, sentidos que, dependendo do caso, podem ser: histórico, tipológico, moral e

anagógico (escatológico)227

. O sentido moral dos textos, enfim, e para a nossa finalidade, seja

por um ou outro caminho, está presente em toda a Escritura e, como veremos a seguir,

tomando como principal exemplo as palavras do Cristo no monte, que são, conforme o

225

De doc. christ., III, 10. Deste modo, se uma passagem na Escritura parece ordenar um mal em função de um

bem, tal passagem é translata. Agostinho usa João 6, 54 como exemplo: “Se não comerdes a carne do Filho do

Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós”. Longe de recomendar a antropofagia, o Cristo

usa uma figura nesse discurso, apontando para a Santa Ceia que já é outra figura, a do seu sacrifício. Assim, o

comer e o beber do Filho do Homem tem a ver com a identificação do discípulo com o seu mestre, na paixão. O

corpo e o sangue são o pão e o vinho da Santa Ceia, figura da coisa própria que figura outra, no seu sentido

metafórico-alegórico, espiritual. 226

HANSEN, 2006, p. 112. 227

Cf. STRUBEL, Armand. Allegoria in factis et allegoria in verbis. In: VV.AA. Poétique 23: Rhétorique et

Hermenéutique. Paris: Seuil, 1975. p. 349-50.

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Hiponense, “um programa perfeito de vida cristã destinado à direção dos costumes”228

. E a

primeira e a última citação que o Bispo de Hipona utiliza no seu comentário ao Sermão não é

senão um discurso do Cristo, comparando o homem prudente a uma casa edificada sobre

rochas, diferentemente do insensato, que edifica sobre a areia229

. Trata-se de uma alegoria.

Com a cada vez maior universalização do método tipológico, cresceu a rejeição ao

método alegórico – principalmente pelas suas origens pagãs. Identificado com a Escola de

Alexandria, onde atuavam Filo e Orígenes, o método alegórico foi combatido pelos da Escola

de Antioquia, representada principalmente por Diodoro de Tarso (falecido antes de 394)230

,

Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428), João Crisóstomo (c. 349-407) e Teodoreto de Ciro (c.

393-466[?]). Diodoro propunha à exegese bíblica, um modelo filológico.

Um exemplo da interpretação “filológica” de Diodoro é dado pelo fato de ele negar

todo valor às inscriptiones dos Salmos, das quais apenas algumas, segundo ele, se

referiam efetivamente a David, sem que houvesse nelas qualquer significado

cristológico; e é dado pelo interesse pelo conteúdo e pela ordenação dos Salmos, que

no mais das vezes são reconduzidos a seu ambiente histórico, com a exclusão quase

total de qualquer significado messiânico (este se limita aos salmos tradicionais, n. 2,

8 e 44)231

.

Essa rejeição da alegorese promoveu o método histórico e literal, e pela sua discreta

cientificidade, contrastante com as engenhosas imagens interpretativas de Filo, Orígenes e até

mesmo Agostinho, aproximou-se em muito do que, hoje, é conhecido como método histórico-

crítico. Mas, como já vimos, tal método também teve seus limites, e, pior, faltava-lhe um

espírito que, em Agostinho, parecia sobrar.

Quando Christine Mohrmann trata sobre a diversidade de estilos na obra do

Hiponense, com ênfase no gênero homilético, parece que ele usa todos, dependendo da

ocasião232

. Assim, conforme essa autora, eles podem ser divididos em até quatro tipos, tendo

por base algumas das suas principais obras: há o estilo majestoso e nobre, que destaca uma

228

De serm. Dom., I, 1,1. 229

Trata-se de Mt 7, 24-7; cf. De serm. Dom., I, 1,1; II, 25,87. 230

Da vasta produção de Diodoro, da qual só nos restaram fragmentos, há um Comentário aos Salmos – obra que

tem sido questionada quanto à sua autoria. No Comentário, “se encontram enunciados alguns princípios acerca

do método que o exegeta deve seguir. Entre estes, devemos citar apenas a limitação do conceito de „alegoria‟,

que não indica mais – como nos escritos alegoristas precisamente – a interpretação espiritual em sentido lato,

mas só e especificamente a maneira já seguida pelos filósofos gregos a respeito dos mitos pagãos, no sentido de

que a „alegoria‟ significa interpretar com um significado diferente do texto sagrado” (MORESCHINI, Cláudio;

NORELLI, Enrico. História da literatura cristã antiga, grega e latina: II – do Concílio de Nicéia ao início da

Idade Média. Trad. de Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 2000. p. 182. v. 1). 231

MORESCHINI; NORELLI, 2000, p. 182. 232

Cf. MOHRMANN, C. Saint Augustin écrivain. In: Études sur le latin des Chrétiens. Roma: Edizioni di

Storia e Literatura, 1961. p. 247-75. v. 2.

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prosa muito objetiva, como em De civitate Dei, por exemplo; há o estilo místico, sálmico, de

fina e delicada análise psicológica, como é fácil notar nas Confessiones; há o estilo popular,

poético, rico e contundente, mas compreensível pela gente simples, como nos Sermões; e há,

por fim, o estilo virtuoso, próprio das suas Correspondências, maleáveis conforme o

destinatário e a situação. Ainda segundo Mohrmann, esses quatro gêneros literários, presentes

na obra do Hiponense, podem ser resumidos em dois: a prosa hipotética, que pode ser

exemplificada nas Confessiones e na De civitate Dei, caracterizando-se por frases claras e

curtas, períodos equilibrados e estrutura rítmica que procura simetrias, utilizando-se

constantemente de jogos de palavras e metáforas. O outro gênero é caracterizado na prosa

paratática, mais popular, típico dos Sermões e das Correspondências. Aí se acentuam as

frases breves e o uso de expressões da linguagem vulgar, com sintaxes muito simples.

Também é frequente o uso de paralelismos, antitéticos ou não, o que denota a sua função

didática – coisa que, para não se tornar monótona aos seus ouvintes, no caso dos Sermões, é

corrigido por Agostinho com a inserção constante de perguntas e respostas, bem como o jogo

de palavras e a utilização de sons, tudo com a intenção de manter o auditório atento. Tais

classificações estilísticas são relevantes porque, no grande e assistemático volume das obras

do Hiponense, dão-nos algumas direções, embora não precisas, metodologicamente válidas.

De modo semelhante, Thèrese Führer fez uma classificação voltada às obras de exegese do

Hiponense233

. Em todas essas classificações é notória a riqueza de estilos de um preocupado

Agostinho que procura, de um modo ou de outro, trazer à mente de seus ouvintes/leitores a

compreensão da doutrina cristã. “Pregar, discutir, admoestar, edificar, estar a disposição de

cada um – que fardo, que peso, que trabalho!”234

, ele diz, não reclamando, mas achando-se

limitado e dispondo de pouco tempo para tantos afazeres.

233

Conforme Thèrese Führer, os escritos exegéticos de Agostinho podem ser classificados em seis gêneros

literários distintos: 1) Comentários: comenta um livro da Bíblia, todo ou parte; 2) Escólios: são notas

explicativas a um determinado problema; 3) Glosas: notas explicativas e exclusivas a determinadas palavras; 4)

Prédicas: sermões feitos em forma de pregação ou explicações de versículos de um texto inteiro; 5) Questões e

respostas: às questões levantadas por seus interlocutores; 6) Tratados: toma-se um texto inteiro ou partes dele,

com o fito de explicá-lo partindo de uma questão fundamental. Cf. FÜHRER, Thèrese. Forma y función de los

escritos exegéticos de Agustín. In: Augustinus. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2004. p. 65-82.

v. 48. Walterson José Vargas faz uma catalogação/classificação das obras exegéticas de Agostinho, com base

nos seis gêneros literários aprsentados por Führer (Cf. VARGAS, Walterson José. A forma e a função do gênero

literário em Santo Agostinho, especialmente do gênero homilético nos “Iohannis evangelium tractatus”. In:

Revista de cultura teológica, São Paulo, v. 16, n. 63, p. 154-155, abr/jun. 2008). 234

Epist., 139, 2. Na mesma carta, lemos: “O dever de me dedicar às tarefas que me são impostas não me deixa

tempo para fazer aquilo que seria do meu agrado. Esses trabalhos devoram o pouco de lazer que me resta, em

meio aos assuntos e chamados alheios. Por vezes, fico obsedado, não sabendo mais para onde me voltar” (Epist.,

139, 2).

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A hermenêutica agostiniana, por sua natureza conciliar e inovadora, conforme

esperamos já haver demonstrado, mas principalmente pela sua pioneira utilização da

linguagem como problema hermenêutico aplicado – como a distinção entre actus signatus

(elocução predicativa) e actus exercitus (sua concretização), por exemplo –, foi tão eficaz que,

mesmo na Modernidade, encontrou admiradores como Heidegger e Gadamer235

. De fato, no

verão de 1923, Heidegger deu início a algumas lições sobre a hermenêutica da facticidade e,

aí, ele considera o Livro III do De doctrina christiana como modelo e marco da hermenêutica

de grande estilo, que sobrepuja a posterior, mais formal – como a que Friedrich D. E.

Schleiermacher (1768-1834), que “limitou, então, a idéia da hermenêutica, encarada de forma

abrangente e viva (cf. Agostinho!) a uma „arte (doctrina artis) da compreensão‟”236

. Mas, até

que ponto é certo ver em Agostinho essa “hermenêutica encarada de forma abrangente e

viva”? Jean Grondin responde:

Heidegger ficou, certamente, impressionado pela inconfundível conexão que

Agostinho [...] propõe entre o conteúdo a ser entendido e a zelosa postura da pessoa

que procura entender, no único cuidado de buscar a verdade viva. Esta conexão

empresta à hermenêutica agostiniana um traço “existencial” inconfundível, que se

reencontra em todos os seus escritos e há muito tempo lhe conferiu a fama de um

proto-existencialista237

.

Agostinho, pois, se afasta tanto de Orígenes – para quem tudo, na Escritura, poderia

ser interpretado mediante a alegorese – quanto dos teólogos da Escola de Antioquia, que, pelo

modelo filológico que propunham, e pelo seu singelo cientificismo aplicado à letra Sagrada,

aproximavam-se mais de Schleiermacher do que de Heidegger, por exemplo. A literalidade é

a morte da imaginação. Na palavra, porém, mora o Ser. A hermenêutica viva de Agostinho,

235

“O jovem Heidegger, que se dedicava à fenomenologia da religião, manifestara bem cedo seu interesse por

Agostinho. No semestre de verão de 1921 ele deu um curso sobre Agostinho e o neoplatonismo [...], e ainda no

ano de 1930, uma conferência [...] com o título: „Augustinus: Quid est tempus? Confessiones lib. IX‟. As

referências a Agostinho em „Ser e Tempo‟, bem como nos cursos publicados, parecem predominantemente

positivas, o que é de realçar-se, uma vez que o Heidegger de então já estava comprometido com o programa de

uma destruição crítica da história da ontologia ocidental. Segundo o testemunho de Gadamer, Heidegger

encontrou em Agostinho uma fonte, embora não a mais importante, para a sua concepção do „sentido ratificador‟

(Vollzugsinn) da elocução, uma concepção que ele contrapunha à tradição metafísico-idealista. [...] Uma

profunda recepção de Agostinho também pode comprovar-se em Gadamer. [...] foi mencionado um colóquio, no

qual Gadamer relacionou retroativamente com Agostinho a pretensão de universalidade hermenêutica. A ele foi

igualmente dedicado um capítulo decisivo de „Verdade e Método‟. Decisivo não é dizer demasiado, porque ali

Gadamer permitiu a Agostinho ir além do esquecimento da linguagem da ontologia grega, a qual se caracterizava

por uma compreensão técnico-nominalista da linguagem. Gadamer pôde mostrar em Agostinho – e sua imensa

relevância emerge disso – que este esquecimento da linguagem não foi total na tradição. O pensamento

agostiniano do verbum já teria feito jus, na tradição, ao ser da linguagem” (GRONDIN, Jean. Introduction to

Philosophical Hermeneutics. Transl. by Joel Weinsheimer. New Haven / London: Yale University Press, 1994,

p. 32-3). 236

GONDRIN, 1994, p. 33. 237

GONDRIN, 1994, p. 34.

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conforme Heidegger, é uma hermenêutica de grande estilo porque é mais que uma “arte de

interpretação” (doctrina artis), é “espírito e vida” (intellectus et vita). Ademais, e para os

nossos objetivos imediatos, convém observar que a hermenêutica do Hiponense se presta,

com ênfases, a interpretar certas passagens obscuras da Escritura (ad ambigua Scripturarum)

para auxílio do povo simples, ou para defender essa ou aquela sua posição em relação a uma

polêmica surgida – é uma hermenêutica da/na situação, existencial. “No De doctrina

christiana (especialmente o 3º livro)”, diz Grondin,

só se vai tratar de mediar instruções (praecepta) para poder lidar com o problema

das passagens obscuras. Destas orientações, com base nas quais poder-se-ia mostrar

que Agostinho não é apenas o pai da hermenêutica existencialista, mas também da

hermenêutica regulamentada, não podemos ocupar-nos in extenso238

.

E bem assim, também nós.

Fica evidente que a palavra/verbum, em Agostinho, como o Verbo que desce da

eternidade para nos tornar eternos, é Verbum tanto exterior (προθορικος) quanto interior

(ενδιαθεηος) –, conceito que já está bem pontuado entre os estóicos – e presta-se, enquanto

linguagem, à transcendência da linguagem sensível, com o fito de atingir o verdadeiro

Verbum humano (sed transeunda sunt haec, ut ad illud perveniatur hominis verbum)239

. A

palavra exterior (verbum exterior) espelha-se no Mestre interior (magister intimus), onde se

reconhece, se reencontra enquanto reflexo, verbum intimum. É o verdadeiro começo de toda a

verdade possível e, por consequência, da verdadeira e completa vida feliz: transcendência.

238

GRONDIN, 1994, p. 34. 239

“A palavra que soa no exterior é, pois, um sinal da palavra que resplandece em nosso interior, à qual convém,

mais adequadamente, o termo de verbo” (De Trin., XV, 11,20). E, na seqüência: “Pois, o que se refere pela boca

carnal é a voz da palavra interior, e denomina-se com propriedade verbo, devido ao que foi assumido para se

exteriorizar. Assim, nossa palavra torna-se, de certo modo, voz do corpo ao assumir essa voz para se revelar aos

homens de modo sensível – tal como o Verbo de Deus se fez carne, assumindo-a para se manifestar aos sentidos

dos homens, de modo sensível. E tal como nosso verbo torna-se voz, sem se transformar em voz, assim o Verbo

de Deus fez-se carne” (De Trin., XV, 11,20).

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2. A direção dos costumes

Quem quiser meditar com piedade e recolhimento o sermão que nosso

Senhor Jesus Cristo pronunciou na montanha, tal como o lemos no

Evangelho segundo Mateus, encontrará aí, creio eu, um programa perfeito

de vida cristã destinado à direção dos costumes.

De serm. Dom., I, 1,1

2.1. A teologia moral de Agostinho no De sermone Domini in monte

Todas as ações de todos os homens são revestidas de intencionalidades que visam,

em última instância, uma felicidade que seja verdadeira, eterna1. Se a afirmação parece

1 Cf. De beat. vit., II, 10; De Trin., XIII, 3,6; 4,7; 8,11. Em De civ. Dei., X, 1, encontramos a afirmação de que:

“É pensamento unânime de todos quantos podem fazer uso da razão que todos os mortais querem ser felizes.

Mas quem é feliz, como tornar-se feliz, eis o problema que a fraqueza humana propõe e provoca numerosas e

intermináveis discussões, em que os filósofos gastam tempo e esforços.” Quanto à questão da verdadeira e eterna

felicidade, em De beat. vit., II, 11, Agostinho diz: “Ora, as coisas que dependem das circunstâncias do acaso

[tempo] podem perder-se, daí que quem as ama e as possui não pode, de modo nenhum, ser feliz. [...] Portanto,

não duvidemos de nenhum modo que quem determina ser feliz deve adquirir o que é sempre permanente e não

pode ser perdido por nenhum revés da fortuna. [...] – Portanto – disse eu –, quem possui Deus é feliz”. No De

sermone Domini in monte, redigido oito anos depois do De beata uita, esse em 386, os conceitos de beatitude

(bem-aventurança) e eternidade, como se vê, já haviam sido bem definidos; mormente no que diz respeito à sua

natureza divina: “A vida bem-aventurada será plena nos santos, por toda a eternidade” (De serm. Dom., II, 6,

20). E no que diz respeito à verdade, procurada pelos filósofos, Agostinho, já no final do De beat. vit. (IV, 34),

faz com que ela se identifique com a sabedoria. Veritas et Sapientia – que são os pressupostos essenciais para a

beatitude – se resumem, para ele, em Cristo, que é o Intelecto divino. “Segue-se que, tal como acontece em

Clemente, apenas o intelecto purificado pela filosofia pode compreender a verdade e que qualquer filósofo que a

busque procura necessariamente Cristo, ainda que não se perceba desse fato” (CARVALHO, Mário A. Santiago

de. Notas. In: AGOSTINHO, Santo. Diálogo sobre a felicidade. Trad. Introd. e notas de Mário A. Santiago de

Carvalho. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. p. 104. Bilíngüe. [Col. Textos Filosóficos]). E, ainda sobre a beatitude

eterna, contrária à temporalidade, Agostinho diz: “Não podemos esperar que suceda tal benefício, plenamente

nesta vida, enquanto dura nossa condição mortal, à qual nos conduziu a sedução da serpente. Não obstante,

devemos esperar que aconteça algum dia... [...]. Assim, quando a morte tiver despojado o homem do peso desta

mortalidade, ele gozará em tempo oportuno, sem restrição alguma, da felicidade perfeita apenas iniciada nesta

vida, para posse da qual tendem agora todos os seus esforços. [...] Nossa vida atual se desenrola no tempo e na

esperança da vida eterna. Ora, as coisas eternas prevalecem em dignidade às temporais” (De serm. Dom., II,

9,35-36). O tema da beatitude e da eternidade na beatitude aparecerá com grande destaque em De Trin., XIII,

8,11.

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generalizada, é porque, de fato, é; e é assim que tem de ser – pelo menos para os sentidos de

“verdade” e “eternidade” encontrados na obra de Agostinho, e aqui, em especial, no

comentário que ele faz ao Sermão da montanha.

Acontece que as noções de verdade (ou do real) e eternidade (ou do atemporal),

relacionadas a essa busca, revelam uma duplicidade relacional do homem: consigo mesmo

(seu eu interior) e com o Outro; consigo mesmo e com Deus. Trata-se de uma iluminada e

pessoal consciência de si (a descoberta da interioridade), que é sede e ponto de partida para

todo o conhecimento possível, do Outro e de Deus. Assim, no plano da transcendentalidade, a

mesma relação antes vista de modo dual, horizontal, adquire agora uma verticalidade triádico-

espiritual. “Desde Paulo e Agostinho, a tomada de consciência de si só pode resultar na

constatação de que nossa existência é a de um ser finito, limitado e, mesmo, pecador. Aceitar

o Outro é o único meio de experimentar totalmente sua própria existência”2. É nessa mesma

acepção que o Eu, com o Outro (o meu “próximo”, “plesíon”, palavra introduzida pelo

cristianismo) ou com Deus, se reconhece como aquele que é enquanto a caminho de; nesse

sentido ele nunca é fim em si mesmo, ou de si mesmo; o seu alvo, como o horizonte, é sempre

mais adiante, mas a caminhada para esse destino inatingível – a perfeição cristã e moral – é já

e, mediante a graça, possível. Daí que, nas ações, conforme as palavras de Agostinho, “ao

fazer o bem aos outros, devemos nos propor conseguir-lhes a salvação eterna e não um

proveito temporal para nós mesmos”3. Presentes estão, aí, o eu que, no tempo, e na sua

verdadeira intencionalidade, dirige-se para o Outro, com o fito de conseguir-lhe a salvação

eterna, dirigindo-o a Deus, e ele mesmo, com o Outro/próximo, indo. Daí o Hiponense, no De

catechizandis rudibus, dizer a Deogratias que não devemos “entender próximo carnalmente:

próximo é todo aquele que poderá vir a estar com ele [Eu] na Cidade santa – quer possa, quer

não possa ainda vê-lo”4. É claro que, por “salvação eterna”, Agostinho refere-se à eterna

beatitude, aquela que só pode ser real na presença de Deus, na eternidade – conforme

2 MESLIN, Michel. A pessoa. In: RÉMOND, René (Org.). As grandes descobertas do cristianismo. Trad. de

Paulo Gaspar de Menezes. São Paulo: Loyola, 2005. p. 54. 3 De serm. Dom., II, 12,43. A ação, perfeita, não pode ter a imperfeição do tempo como o seu fim, mas como o

seu início. O seu termo – ou fim último – é a perfeição da eternidade: “Todos querem ser felizes” (De beat. vit.,

II, 10); “Todas as pessoas desejam ser felizes. Se o desejam de fato, conseqüentemente, devem desejar também a

imortalidade, pois de outro modo não poderiam ser felizes. Aliás, interrogadas sobre a imortalidade, tal como

sobre a felicidade, todas responderão que desejam a imortalidade. Mas nesta vida a busca dessa felicidade parece

ser mais de nome e mesmo fictícia, pois se desesperam da imortalidade, e sem ela a felicidade verdadeira não é

possível” (De Trin., XIII, 8,11); “É próprio de todos os homens quererem ser felizes, mas nem todos possuem a

fé para chegar à felicidade pela purificação do coração” (De Trin., XIII, 20,25). A ação perfeita requer a fé, e a fé

reclama a ação perfeita. 4 De cat. rud., II, XXVI,50. Mais adiante, na segunda parte deste capítulo, veremos melhor esse sentido da

cidadania celeste dos cristãos, que formam a Igreja Invisível, aquí, claramente referenciada por Agostinho.

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propusera demonstrar com a redação do De beata uita, em 386. As ações praticadas hoje,

portanto, para que sejam perfeitas (verdadeiras), devem ter em vista a eternidade (e não

apenas o tempo), e o Outro. Assim sendo, Agostinho diz: “O amanhã situa-se no tempo, onde

o porvir sucede-se ao passado. Vejamos além do tempo, a eternidade. Logo, quando fizermos

alguma boa ação, não nos proponhamos coisas temporais, mas eternas. Nesse caso, nossa ação

será boa e perfeita”5.

Todas as ações, para que sejam boas e perfeitas, devem ser fundamentadas no bem

Único (ou verdade una) que, em Agostinho, é Deus. O objetivo final de todas as boas ações é,

enfim, a contemplação de Deus6, na eternidade. Aquele que está na verdade,

consequentemente, não pode ter um coração dúbio; pois “se [o ato] é feito com um coração

duplo, isso será impedimento para a contemplação de Deus, em cuja visão está unicamente a

felicidade verdadeira e eterna”7. A intencionalidade humana (a autoconsciência) é fator

dominante no juízo das ações que, para Deus, são sempre claras. Deus, “o bem Único [...],

deveria ser o fim [último] de todas as nossas ações”8; mas tal dever-ser é, no âmbito da moral

cristã, uma ação da fé – logo, daqueles que a têm. Mesmo assim, diz a doctrina christiana,

por serem imago Dei, os homens sabem do certo e do errado, sem a ação da fé.

No De sermone (redigido entre 393 e 3949), enfatizando as bem-aventuranças, o

Hiponense acredita haver encontrado aí um programa perfeito destinado à realização daquelas

ações que, conforme as palavras do Senhor sobre o monte, devem ser os costumes daqueles

5 De serm. Dom., II, 17,56.

6 Cf. De serm. Dom., II, 19,66; II, 9,35.

7 De serm. Dom., II, 12,43. Os capítulos 12 a 14 do Livro II são dedicados inteiramente às intenções que movem

as ações. Na verdade, todo o livro tem nas ações e nas intenções o pano de fundo da moral agostiniana, com base

no Sermão do monte e nas cartas do apóstolo Paulo (encontram-se no De Sermone nada menos que 101

referências às cartas do apóstolo, que é às vezes mencionado simplesmente como “o Apóstolo” [cf. De serm.

Dom., I, 5,15; 15,42-45; II, 9,30, 32b; 17,58; 25,83, etc]), que Agostinho diz preferir dentre os demais escritores

da Sagrada Escritura (Conf., VII, 21,27). Eis os fundamentos primários da ética do Hiponense, ou dessa “ética do

Reino de Deus”, que deve ter, sobre tudo, sobretudo, prioridade: “O Reino de Deus deve ser buscado como

nosso bem próprio, e as coisas da terra como uma necessidade da vida, em vista de um verdadeiro bem” (De

serm. Dom., II, 16,53). 8 De serm. Dom., II, 11,38. Em De serm. Dom., II, 19,66, Agostinho diz: “[...] Deus unicamente é o nosso fim

último”. O “nosso” é importante porque se distingue do “todos”. Embora em De serm. Dom., II, 14, 48, afirme

que “talvez ninguém, em sã consciência, possa odiar a Deus”, mas apenas não ter “para com ele a devida

consideração, isto é, não o temer bastante”. Nas Retractationes, o Hiponense retificará essa afirmação, dizendo:

“Vejo que não deveria ter dito que ninguém pode odiar a Deus, pois há muitos homens dos quais está escrito: A

soberba daqueles que te odeiam aumenta continuamente (Sl 73, 23)” (Ret., I, 9,8). 9 Ou seja: bem no início do ministério pastoral de Agostinho. No início das revisões que faz para o De Sermone,

nas Retractationes, redigido entre 426 e 427, ele diz que “foi nesse mesmo tempo [quando também redigiu o De

fide et symbolo e a De Genesi ad litteram imperfectus], que eu escrevi em dois livros, a explicação do Sermão da

montanha segundo são Mateus”. E, como se sabe, o De fide et symbolo é resultado de uma “exposição que o

jovem padre Agostinho fizera no I Concílio plenário da África, realizado em Hipona em outubro de 393”

(OLIVEIRA, Nair de Assis. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. O sermão da montanha. Trad. Introd. e

notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 8.

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que, nesta vida, priorizam o Reino de Deus sobre tudo e têm, em consequência disso, a

promessa da eterna beatitude. E é nessa exposição, feita de modo exegético-devocional, que

encontramos já bem definidas as bases daquilo que, mais adiante, por boca de outros teólogos,

convencionou-se chamar de “teologia moral de Cristo”. Convém lembrar, já aqui, que

Agostinho, em lugar nenhum do De Sermone ou de qualquer outra obra sua, fale de uma

moral (moralis) ou uma ética (ethos) cristãs. Se chegamos a vincular o pensamento

(exegético-pastoral-devocional) do Hiponense a uma “moral cristã” ou uma “ética cristã”,

fazemo-lo por conveniência metodológica – mesmo que reconheçamos e aceitemos que, como

já denunciado por Joachim Jeremias (1900-1979), tal terminologia é “profana, inadequada e

pode gerar confusão”10

. Ora, se tal terminologia acarreta tantas e tão intrincadas implicações,

porque então utilizá-la, mesmo que de modo fortuito? Acontece que, para este trabalho, dada

a sua natureza filosófico-teológica, falar de uma ética ou uma moral em Agostinho – embora

ele costume usar o adjetivo moris (melhor traduzido, em seu sentido mais abrangente, como

“costume”) – é o mesmo que falar de uma ética/moral cristã que, nele (no seu pensamento),

segundo nos parece, está sempre presente.

Deve-se atentar ainda para o fato de que o Hiponense, em relação à moral (ou à

ética), não traz – e nem parece querer trazer – grandes “inovações” àquela postura que a

Igreja, com base nos Evangelhos e no ensino do apóstolo Paulo, já conhecia11

. Devemos ver,

nesse particular, um Agostinho mais preocupado com a natureza prática (a ação) daquilo que

a mente (a teoria) já conhece, do que com as definições acadêmico-terminológicas, conforme

aqui referenciadas. Daí a apropriação e a utilização que ele faz do Evangelho segundo são

Mateus, tanto para o início quanto para o fim da redação do seu De sermone12

. Parece que, no

10

JEREMIAS, J. O sermão da montanha. 5. ed. Trad. de José Raimundo Vidigal. São Paulo: Edições Paulinas,

1984. p. 57. (Col. A Palavra Viva). 11

Nas palavras de DANIEL-ROPS, Henri. A Igreja dos tempos bárbaros. Trad. de Emérico da Gama. São

Paulo: Quadrante, 1991. p. 50-51: “A moral de Santo Agostinho não é a parte mais original da sua obra. Embora

o santo se revele, em muitas ocasiões, um moralista de uma sutileza e de uma justeza admiráveis, nada tem a

inovar num terreno que já havia sido bem desbravado pelos cristãos. Para ele, como para Santo Ambrósio ou

para São João Crisóstomo, as velhas virtudes platônicas da justiça, da prudência (sabedoria), da fortaleza e da

temperança são renovadas pela fé cristã e assumem um sentido diferente; o bispo de Hipona apenas insiste

incansavelmente sobre o papel primordial da caridade nesta transmutação dos valores”. É aqui, nessa insistência

à prática da caridade (caritas), ou à caridade prática, que enxergamos o gênio de Agostinho a serviço da Igreja,

da fé no Deus da Igreja e na comunhão/ação dessa fé entre os que fazem a Igreja e para com o que estão fora

dela. Os principais textos que tratam sobre a “ética” agostiniana são, dentre outros: Conf., II, 4,9; En. in Ps., 57,

1; De serm. Dom., I, 1,1; 2,20,67; De Trin., XIV, 15,21; De liber. arb., I, 6,15 e I, 15,32. E a lei de Deus, “lei

eterna”, como se vê nos últimos dois, sempre aparece em oposição à “lei temporal” (dos homens). São os termos

que definem, como nas oposições entre a civitas Dei e civitas humanae, os sentidos da ética da primeira que, no

mundo, mas não dele, em relação à segunda, são antagônicos. 12

Mt 7, 24-27: “Assim, todo aquele que ouve estas minhas palavras e as põe em prática será comparado a um

homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e

deram contra a casa, mas ele não caiu, porque estava alicerçada sobre na rocha. Por outro lado, todo aquele que

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que concerne a essa natureza terminológica, devemos adotar uma postura menos radical que

aquela postulada por J. Jeremias. É que o próprio Agostinho, nas primeiras linhas do

comentário, afirma:

Quem quiser meditar com piedade e recolhimento o sermão que nosso Senhor Jesus

Cristo pronunciou na montanha, tal como o lemos no Evangelho segundo Mateus,

encontrará aí, creio eu, um programa perfeito de vida cristã destinado à direção dos

costumes13

.

Do mesmo modo que, no epicurismo ou no estoicismo, encontramos uma ética

relacionada à aquisição e a preservação da eudaimonía neste mundo14

, encontramos também,

nas bem-aventuranças, uma ética que deve ser seguida e uma beatitude que pode ser alcançada

– embora, neste mundo, sob limites. “Agostinho compartilha com os filósofos antigos a

concepção de ética como uma investigação sobre o bem supremo: aquilo que buscamos por si

mesmo, nunca devido a um fim posterior, e que nos torna felizes”15

. Porém, essa ética e essa

beatitude, perfeitas – pois apregoadas pelo Senhor –, estendem-se para além das fronteiras

deste mundo; têm seu termo no Reino de Deus. O Hiponense, assim, vai muito além daquilo

que na ética clássica fora postulado, e chega mesmo a criticar o “elitismo e intelectualismo da

ética clássica”16

.

ouve estas minhas palavras, mas não as põe em prática, será comparado a um insensato que construiu a sua casa

sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os vetos e deram contra a casa, e ela caiu. E foi

grande a sua queda!”. Texto esse que ele voltará a citar no final da obra, enfatizando a importância do “pôr em

prática os ensinamentos do Senhor – que é mais importante que o ouvir meramente: [...] Todo aquele que ouve

estas minhas palavras e as põe em prática...” (De serm. Dom., II, 25,28). É aí que Agostinho, tratando sobre a sua

hermenêutica aplicada na interpretação do Sermão (relacionando as “sete” bem-aventuranças aos sete dons do

Espírito Santo e às sete petições do Pai-nosso), diz: “Seja que se adote esta classificação, seja que se prefira uma

outra diferente, trata-se de cumprir estes ensinamentos que aprendemos do Senhor, se quisermos edificar sobre a

rocha”. Agostinho não é exclusivista quanto à sua interpretação, mas ele não negocia o “pôr em prática os

ensinamentos do Senhor”. Mais do que empolgação, o discurso da moral cristã reclama a ação. As bem-

aventuranças, em Mateus, portanto, “se apresentam como um programa de vida cristã. Não querem dizer apenas

quem é feliz, mas como devemos agir para termos parte na felicidade” (VV.AA. A mensagem das bem-

aventuranças. Trad. de Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 55). É também nesse sentido que

SCHAFF, David Scheley. Introduction and notes. In: AUGUSTIN, St. Our Lord’s sermon on the mount,

according to Matthew. Trasl. by William Findlay. Introd. and notes by D. S. Schaff. USA: Hendrickson

Publishers, 1994. p. 3 [nota 4]. (Col. Nicene and Post-Nicene Fathers). v. 6, fala sobre a “natureza e as

obrigações dos cidadãos da cidade de Deus”. 13

De serm. Dom., I, 1,1. Ver ainda: De serm. Dom., II, 10,38. 14

Com relação ao estoicismo e as semelhanças que tem com o cristianismo, principalmente em relação ao ensino

do apóstolo Paulo, ver: SANSON, Vitorino Félix. Estoicismo e Cristianismo. Caxias do Sul: EDUCS, 1988. 15

KENT, Bonnie. A vida moral. In: McGRADE, A. S. Filosofia Medieval. Trad. de André Oídes. Aparecida-

SP: Idéias & Letras, 2008. p. 276. (Col. Companions & Companions). 16

Ainda nas palavras de Kent: “A teoria moral teocêntrica de Agostinho leva adiante o ataque de São Paulo ao

elitismo e intelectualismo da ética clássica. Na visão de Paulo e Agostinho, as virtudes não são mais disposições

morais alcançadas por uns poucos seletos, através de muitos anos de aprendizado e prática começando na

infância. Não importa o quão ruim a criação e educação de alguém tenha sido, não importa o quão indistinta seja

a inteligência nativa de alguém, ninguém se encontra além da esperança do progresso moral transformador da

vida. Com a graça de Deus, o maior pecador pode ser convertido à virtude” (KENT, 2008, p. 278).

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Todos os homens estão moralmente perdidos17

, e todos, pela graça, podem ter acesso

ao Senhor que fala de sobre o monte. Não é a mente virtuosa e o exercício reflexivo/racional

que traz a verdadeira beatitude – como a ética estóica, criticada pelo Hiponense, sugere em

suas múltiplas variantes18

–, mas a graça que, dadas as dificuldades de se obedecer aos

preceitos do Senhor, aparecem na entrega confiante da fé. As bem-aventuranças, dentro do

escopo do De sermone, regem toda a temática aí desenvolvida, comentada: graça, entrega

confiante da fé (obediência), real beatitude19

. A pertinência das oito bem-aventuranças – ou

sete, conforme a estrutura que o Hiponense lhes dará – sobre todo o Sermão, neste contexto

ético-moral, está, segundo Agostinho, no fato de o Senhor, ao iniciar sua homilia, não afirmar

apenas: “Todo aquele que ouve minhas palavras e pratica as mesmas...”, mas, de modo

enfático: “Todo aquele que ouve estas [tóutous] minhas palavras e pratica [autoús] as

mesmas...” Agostinho dá ao pronome demonstrativo “esta” uma importância capital ao

modelo hermenêutico que utilizará ao comentar os capítulos 5 a 7 do Evangelho de Mateus.

Trata-se da dinâmica da fé, da sua vivência prática; trata-se, ainda, da ênfase sumária que as

bem-aventuranças ocupam dentro do Sermão da montanha e, por extensão – e daí as

reincidentes referências aos escritos do apóstolo Paulo –, em todo o Novo Testamento.

Joachim Jeremias, em Die Bergpredigt (1959), por exemplo, reafirmará a importância das

bem-aventuranças como esboço temático de todo o Sermão: “Do mesmo modo que, na

matemática”, diz ele, “o número colocado diante do parêntese vale para todos os números

dentro dele: embora não sejam repetidos cada vez, valem para cada palavra do Sermão”20

. E é

nessa perspectiva que Agostinho, dividindo o seu comentário ao Sermão em dois livros, fará

com que o Livro I corresponda “às cinco primeiras bem-aventuranças, relacionadas com a

17

Cf. De civ. Dei, V, 19-20; XV, 22; XIX, 1-4,25; Cont. Iul., IV, 19-23. 18

No Serm., 150, 9 (PL 38, 808-814), encontramos o seguinte argumento: “Uma mente virtuosa é algo muito

digno de louvor. [...] Uma grande coisa, e uma coisa admirável; admire-a, estóico, tanto quanto podes. Mas diga-

me: de onde ela vem? Não é precisamente tua mente virtuosa que te torna feliz, mas Aquele que te deu a virtude,

que te inspirou a desejá-la e te garantiu a capacidade para ela. [...] É uma boa coisa que ela te agrade. Sei que

estás sedento por ela; mas não podes verter para ti mesmo um gole de virtude.” Agostinho consigna a mente

virtuosa a Deus, para quem ela se volta, enfatizando a caritas como real virtude do sábio, do cristão. “Ao colocar

a caridade, ou amor, no lugar da sabedoria como virtude original”, diz Kent, “Agostinho desvia a ética ocidental

do foco clássico padrão, voltado para a razão ou intelecto. A virtude passa a requerer, acima de tudo, uma boa

vontade” (KENT, 2008, p. 279); e aí, cai-se novamente na caritate, o ágape divino demonstrado na Gratia, em

sua acepção escatológico-soteriológica. “Por meio dessas virtudes divinamente concedidas”, diz o Hiponense,

“vivemos agora uma vida boa e recebemos depois a recompensa, a vida feliz, que deve ser eterna. Aqui essas

virtudes estão em ação, lá em efeito; aqui estão trabalhando, lá são pagas; aqui têm sua função, lá seu fim”

(Epist., 155, 16). 19

De serm. Dom., II, 11,38. Com relação à estrutura dos sermões de Agostinho é a “ausência quase total do

elemento narrativo”, ver: SIMONETTI, Manlio. Alcune osservazioni sulla struttura dei “Sermones de Sanctis”

agostiniani. In: VV. AA. Augustinus magister: Congrès International Augustinien (Paris, 21-24 Septembre

1954). – Communications. Paris: Études Augustiniennes, [s.d.]. p. 141-149. v. 1. 20

JEREMIAS, 1984. p. 53.

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vida ativa” e o Livro II seja “consagrado às duas outras, e corresponde à vida contemplativa, a

qual se finda na visão de Deus”21

. Assim sendo, e também nessa perspectiva, abordaremos o

comentário ao Sermão da montanha de Agostinho nessa mesma divisão, conforme segue:

2.1.1. A vida ativa: a ação da fé

A descrição de Cristo no monte tem, na hermenêutica do Hiponense, uma simbologia

toda especial. “Se me perguntarem o que significa esse monte”, diz ele, “responderei que

muito bem pode representar a superioridade dos preceitos da nova justiça em comparação

com a antiga lei judaica”22

. Isso não quer dizer que os preceitos da antiga Lei judaica não

sejam importantes – isso ficará evidente mais adiante23

–, mas os mesmos são elucidados

segundo a nova justiça apregoada pelo Senhor no monte.

Os antigos preceitos da Lei foram, conforme o Hiponense, “modernizados” com

vistas à nova realidade dos homens de seu tempo. Deus, através do seu Filho, recontextualiza,

nas bem-aventuranças (ou no Sermão do monte, por extensão), a nova moral do seu Reino –

ou aquilo que deve ser o estilo de vida daqueles que, nesta terra, fazem parte do seu Reino.

Assim, pois,

21

OLIVEIRA, Nair de Assis. Introdução. In: AGOSTINHO, Santo. O sermão da montanha. Trad. Introd. e

notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 10. 22

De serm. Dom., I, 1,2. A tradução portuguesa (Paulinas, 1992), feita por Nair de Assis Oliveira, nesse

particular, peca. É que a obra, no original latino, intitulada De sermone Domini in monte (O sermão do Senhor

no – ou sobre o – monte), tem em grande conta a preposição “in” com o ablativo (adjunto adverbial de lugar):

“no monte”, enfatizando a superioridade do Senhor sobre [o monte; que é posição de elevação, superioridade:

Aquele que diz, que tem autoridade para dizer]. Parece que, nesse particular, na tradução para o português,

preferiu-se observar a forma abreviada com que os capítulos 5, 6 e 7 do Evangelho de Mateus, a partir de

Agostinho, foram chamados, do que o título original, em latim. Tal observação é relevante porque toda a

estrutura do discurso está fundada e fundamentada na autoridade daquele que, sobre o monte, expõe as diretrizes

ético-morais do Reino do seu Pai. 23

Em De serm. Dom., I, 9,21, por exemplo, ao comentar Mt 5, 20, intitulando tal referência como “a nova

justiça”, Agostinho, parafraseando as palavras de Cristo, diz que essa referência significa que, “a menos de

cumprirdes aqueles preceitos – não somente os menores da Lei, que iniciam o homem na perfeição –, mas

também os que eu acrescento, eu que não vim para suprimir a Lei, mas para dar-lhe cumprimento, não entrareis

no Reino dos céus”. De semelhante modo, ainda em De serm. Dom., I, 8, 20, que pode ter por título “o perfeito

cumprimento da Lei”, Agostinho relembra as palavras do Senhor, em Mt 5, 18, que diz: “E quanto a estas

palavras: „Não será omitido um só „iota‟, um só „ápice‟ da Lei sem que tudo seja realizado‟, exprimem elas, com

intensidade, a perfeição à qual somos chamados. Cada letra é como uma demonstração disso. Entre elas, a menor

é o „iota‟, porque escrita com um só traço. Mas o „ápice‟ é ainda menor, por ser apenas um ponto sobre o „iota‟.

Exprimindo-se desse modo, o Senhor ensina-nos que na Lei as menores coisas devem ser cumpridas com o

maior cuidado”. Daí a advertência do Senhor em Mt 5, 19: “Aquele, portanto, que violar um só destes

mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado o menor no Reino dos Céus” (De serm.

Dom., I, 8,20). Noutra parte, por fim, tratando sobre certas passagens aparentemente contraditórias (De serm.

Dom., I, 21,70-72): “Evitamos assim, por nossa ignorância, pôr a Escritura em contradição consigo mesma – o

que seria impossível”. A “nova justiça”, portanto, em nada contradiz a “antiga Lei judaica”, mas dá-lhe espírito e

vida. A esse respeito ainda, ver: De serm. Dom., I, 19,57; 21, 70. E sobre o modo como Cristo cumprimento da

Lei, ver: STOTT, John R. W. A mensagem do sermão do monte. 2. ed. Trad. de Yolanda M. Krievin. São

Paulo: ABU, 1989. p. 62-75.

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O único e mesmo Deus adaptou-se muito bem ao ordenado curso dos tempos. Por

meio de santos profetas e fiéis servidores deu preceitos menos perfeitos ao povo que

convinha ainda sujeitos pelo temor. E por meio de seu Filho deu outros preceitos

muito mais perfeitos ao povo que ele queria libertar pela caridade24

.

A nova moral, fundamentada na interpretação que Cristo faz da Lei, dando-lhe

espírito, em oposição à moral estóica (fundamentada no esforço individual/intelectual do

filósofo perante o mundo) e em oposição à farisaica (supostamente fundamentada na Lei), tem

no Senhor o seu modelo, e é Ele mesmo modelo de Deus, e Deus. “Ele”, diz o Hiponense,

“que se dignou tomar natureza humana para dar-nos um modelo a seguir”25

. Do mesmo modo,

noutra parte: “Ora, o próprio Senhor, [é] o primeiro a cumprir os preceitos que ensinava...”26

,

diferentemente do que faziam os fariseus, a quem o Senhor, por tantas e de tantas maneiras,

repreendia-os, dizendo que ensinavam uma lei tão severa que eles próprios não podiam

cumpri-la, e botavam fardos tão pesados sobre os ombros dos seus ouvintes que, eles próprios,

não podiam suportá-los. Se a exigência retributiva (ou punitiva) – que é resposta à exigência

restritiva da Lei ou, melhor, o resultado da sua desobediência – de uma má ação na sua justa

medida já era, segundo a interpretação de Agostinho (em conformidade com a justiça dos

fariseus), uma certa justiça, o perdoar (o “oferecer a outra face”) é uma justiça muito maior27

.

E o Senhor sempre requer dos seus discípulos uma justiça maior que a dos fariseus: dar a

outra face; andar duas milhas se, por injusta imposição, tiver que andar uma; dar também a

túnica, caso veja-se coagido a dar a capa. “O que nos é mandado em relação à túnica e à veste,

24

De serm. Dom., I, 1,2. Embora acentuadas as tais imperfeições da Lei, somente no passar dos séculos é que

elas foram perdendo o peso moral (e moralista) que impunham aos cristãos, mesmo que eles afirmassem viver

sob a “nova lei”, a “nova aliança”. De fato: “Nos séculos passados”, diz Walter Harrelson, “em muitas

comunidades cristãs, garotos e meninas aprendiam de cor os Dez Mandamentos como parte de estudo do

catecismo. A prática não foi abandonada; mas será provavelmente bem raro em nossos dias [1980], em países

ocidentais cristãos, que as pessoas realmente conheçam o conteúdo dos Dez Mandamentos. Nesta perda, há

lucros, mas também grandes prejuízos. Todos nós sabemos que a cristandade sofreu forte aplicação moralista dos

Dez Mandamentos e outros materiais legais à vida pessoal e moral. Destarte, um dos grandes lucros das últimas

três ou quatro décadas da vida cristã no Ocidente é que muito desse moralismo e legalismo tenha sido posto a

descoberto e em grandes partes superado. Os Dez Mandamentos contribuíram para o moralismo e o legalismo, e

assim a perda do conhecimento deles pode ser considerada lucro” (HARRELSON, Walter. Os Dez

Mandamentos e os Direitos Humanos. Trad. de Carlos S. Mesquitella. São Paulo: Paulinas, 1987. p. 19. [Col.

Temas Bíblicos]). 25

De serm. Dom., I, 19, 61. Em De serm. Dom., II, 25,82, tratando sobre os frutos do Evangelho – ou das ações

daquele que crê no Evangelho –, Agostinho diz: “Porque os frutos consistem em fazer a vontade do Pai que está

nos céus, conforme o exemplo que o mesmo Senhor se dignou nos dar”. 26

De serm. Dom., I, 19,58. Ver também: De serm. Dom., I, 19,57. 27

De serm. Dom., I, 19,56-57. Em De serm. Dom., I, 21,70, Agostinho diz que “a justiça dos fariseus já

apresenta certo progresso à da antiga Lei”. E é com base nessa justiça superior que, no sermão do Senhor,

“„Deus faz nascer o seu sol igualmente sobre maus e bons, e cair a chuva sobre justos e injustos (Mt 5, 45)‟ (De

serm. Dom., I, 23,78). E, se “a justiça menos perfeita” diz que não se deve cometer adultério, “a justiça superior

do Reino de Deus consiste em não cometer esse pecado sequer no coração” (De serm. Dom., I, 12,33).

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devemos fazê-lo em relação a todos os bens temporais que temos em propriedade”28

. O que

entra na questão, aqui, é o valor que se atribui ao eterno e ao temporal. O eterno deve ter

sempre prioridade sobre o temporal, conforme tem o todo sobre a parte. Por isso que

Agostinho, ainda falando sobre o exemplo da veste e da túnica, diz: “Convém observar que

toda túnica é veste, mas nem toda veste é túnica. Opino que a palavra veste tem sentido mais

largo que a palavra túnica”29

. A “lei temporal”, dos homens, embora injusta sobre os aspectos

que distam da “lei eterna”, tem seu modelo, naquilo que se aproxima desta última, na Verdade

que, como as impressões de um anel sobre a cera, está gravada nos corações dos homens, e

que alguns chegam a mencioná-la como “lei natural”.

Onde, pois, estão escritas essas regras [a lei natural]? [...] Onde hão de estar escritas

senão no livro daquela luz que se chama Verdade? Nesse livro é que se baseia toda

lei justa que é transcrita e se transfere para o coração do homem que pratica a

justiça. Não como se ela emigrasse de um lado para o outro, mas a modo de

impressão na alma. Tal como a imagem de um anel fica impressa na cera, sem se

apagar do anel30

.

No De libero arbitrio, Agostinho, no mesmo sentido, dissera que, “na lei temporal

dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna”, e mais

adiante: “Não existe verdadeira liberdade a não ser entre pessoas felizes, as quais seguem a lei

eterna” 31

. Se há alguém feliz neste mundo, este alguém só pode ser um cristão.

Com base na extensão da perfeita justiça, o cristão é advertido para “que diga a

verdade, sem se apoiar em juramentos repetidos, mas pela probidade de sua conduta”32

.

“Dizer a verdade” tem o sentido de “crer, confiar, adotar e viver os ensinos do Senhor”. Em

decorrência dessa opção pela verdade, o seu “sim” deve ser, realmente, sim; e o seu “não”,

verdadeiramente “não”33

. Sendo modelo e Mestre, os discípulos são – ou pelo menos devem

28

De serm. Dom., I, 19,59. 29

De serm. Dom., I, 19,60. 30

De Trin., XIV, 15,21. 31

De liber. arb., I, 6,15; I, 15,32. 32

De serm. Dom., I, 18,54. 33

De serm. Dom., I, 17,51. A referência é a Mt 5, 37, onde é relembrado o mandamento do Senhor para que não

se jure nunca, por nada – pois nada pertence àquele que jura, e nada é pequeno ou grande (no céu, na terra, no

mar...) que não seja do Senhor (cf. De serm. Dom., I, 17,52), incluindo o homem que é “terra”, ou “nada é”. Em

relação à constituição física do homem, o Hiponense repete por cinco vezes (cf. De serm. Dom., I, 5,15; 11,30;

12,34; 17,53; II, 5,17) o texto de Gn 1, 19: “Quanto ao pecador, foi dito: „És terra e em terra te hás de tornar‟

(Gen 3, 19), porque a justiça que concede a cada um conforme o que merece colocou-o em lugar inferior” (De

serm. Dom., I, 17,53). Em De serm. Dom., I, 23,79, Agostinho diz que somente Deus é “que tem direito de

chamar seu tudo o que criou da nada...” (ver ainda, nesse mesmo sentido, De serm. Dom., II, 3,12). Ora, o

juramento implica dispor algo superior (de valor) em penhor, como garantia do cumprimento de uma ação ou

confirmação de algo dito. Como nada pertence ao homem, mas a Deus, somente Ele teria o direito legal de jurar.

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ser – seguidores do Mestre, seus imitadores; e daí também serem chamados de cristãos.

Devem, de igual modo, dar continuidade àquilo que foi ensinado pelo Mestre: seja através de

palavras ou de ações34

.

A vida ativa diz respeito à vida sujeita (submissa) às palavras do Senhor. O

evangelho de Cristo, em Agostinho, transmuda-se de um discurso ideal (metafísico) a uma

atividade real (física). O evangelho não é um bom tema a ser aprendido, mas um modelo de

vida a ser apreendido; um modelo de vida que descreve e desvela o melhor de todos os temas:

os costumes do Reino de Deus. Esses costumes, em síntese, fundamentam-se na simplicidade

(a pobreza de espírito), na alegria, na mansidão, na justiça, na pureza de coração e na paz;

temas das bem-aventuranças35

, dos preceitos que são, conforme Agostinho, “menos e mais

perfeitos, em harmonia com pessoas e tempo”36

. Essa “distribuição” dos preceitos (bem-

aventuranças) “foi ordenada por aquele que sabe adaptar ao tempo oportuno o remédio

conveniente aos males do gênero humano”37

. Para cada tempo, Deus dispõe do remédio que

pode curar os homens de seus males espirituais. É por isso que, para a cura, não basta crer nas

palavras do Senhor, mas, como o homem prudente da parábola da casa construída sobre a

rocha, colocá-las em prática.

Dizendo que os preceitos contidos nas bem-aventuranças, conforme ordenados, são

“menos e mais perfeitos”, Agostinho não diz que os antigos, da Lei, são “mais e menos

perfeitos” – o que parece evidente por si –; antes, diz que, para o novo tempo, ou para o

tempo da nova justiça, a estrutura das bem-aventuranças, nas palavras do Senhor sobre o

monte, na sua dignidade de mestre, torna mais clara a vontade de Deus e o que ele exige

daqueles que são seus. E daí o Hiponense citar o salmista: “Dessa justiça mais perfeita é que

E como Ele não tem algo maior por que jurar, só pode jurar por Si mesmo, conforme ocorre em Hb 6, 13-14, que

é uma referência a Gn 22, 16-17. 34

Portanto, “que ensinamento melhor do que este o Senhor, que é médico das almas, poderá dar àqueles que ele

forma na arte de curar seus irmãos: suportar com paciência as fraquezas daqueles a quem se deseja levar à

salvação” (De serm. Dom., I, 19,57). Mais adiante, em De serm. Dom., II, 17,58, o Senhor será novamente

mencionado como “médico das almas”. O ensinamento dos apóstolos – a mensagem do Evangelho – é o remédio

para os males do mundo. Diferentemente do tetraphármakon em Epicuro, o remédio para a aquisição da

“tranquilidade” (não uma ataraxía, ou imperturbabilidade da alma) cristã está na obediência aos preceitos do

Senhor, o médico das almas. O sofrimento não é buscado, mas, surgindo – e ele sempre surge –, é suportado com

paciência, a exemplo dos profetas e dos mártires. Em VV.AA., por exemplo, consta que “a felicidade da qual

falam as bem-aventuranças não exclui as contrariedades e o sofrimento. Elas têm em vista precisamente pessoas

que são consideradas infelizes. Devemos rever nosso conceito de felicidade!” (VV.AA., 1982, p. 11). 35

De serm. Dom., I, 1,3; II, 1,4-9. Todas elas tendo por princípio básico e conclusão dogmática, a “pobreza de

espírito”, que, em todas e por todas, faz-se necessária (De serm. Dom., I, 3,10). É assim que, para João Calvino,

por exemplo, “só aquele que, em si mesmo, foi reduzido a nada, e repousa na misericórdia de Deus, é pobre de

espírito” (CALVINO, J. Commentary on a harmony of the evangelists Matthew, Mark and Luke. Trad. by

William Pringle. Eerdmans, [s.d.]. p. 261. v. 1). 36

De serm. Dom., I, 1,2. 37

De serm. Dom., II, 1,2.

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disse o profeta: „A tua justiça é como os montes de Deus‟ (Sl 35,7). E está ela bem

simbolizada pelo monte onde ensina o único Mestre – só ele idôneo para ensinar-nos tantas

verdades”38

.

A disposição das bem-aventuranças, nas palavras do Senhor, começa com o pobres

de espírito, “porque deles é o Reino dos Céus”39

. Em seguida são mencionados os mansos, os

que choram, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração e os

pacíficos; sete, ao todo. Acontece que as bem-aventuranças, conforme encontradas no

evangelho de são Mateus, estão ordenadas em número de oito. Agostinho, no entanto, entende

que a oitava bem-aventurança: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça,

porque deles é o Reino dos Céus”, com a sua terminação idêntica à primeira – “porque deles é

o Reino dos céus” –, faz um retorno à ela, elevando-a ao grau da perfeição:

Como primeiro grau da perfeição, o Senhor começa com a humildade: “Bem-

aventurados os pobres de espírito”. Isto é, os que não são cheios de si, os que se

submetem à divina autoridade e temem as penas que podem lhes vir depois da

morte, ainda que nesta vida se imaginem felizes40

.

Essa ordem, tanto no mundo espiritual quanto no físico, é advinda do Senhor: “Sendo

ele o Senhor e administrador de todas as coisas e ordenador delas, segundo a capacidade de

cada um”41

. O juízo administrado sobre as ações é a consciência – uma vez que há uma lei

natural que testifica contra todos os atos que não estejam revestidos da “pobreza de espírito”,

mas embevecidos na “soberba da vida”. É nesse pé que, por exemplo, Agostinho critica a

vaidade espiritual dos maniqueus e a equivocada interpretação que fazem da Sagrada

Escritura.

Quem inscreveu a lei natural no coração do homem, a não ser Deus? É a respeito

dessa lei que o Apóstolo fala: “Quando os gentios, não tendo a Lei, fazem

naturalmente o que é prescrito na Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmos são a Lei;

eles mostram a obra da Lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua

consciência e seus pensamentos que, altamente, se acusam ou defendem... no dia em

que Deus – segundo o meu evangelho – julgará, por Jesus Cristo, as ações ocultas

dos homens” (Rm 2,14-16)42

.

O juízo sobre as ações desprovidas da “pobreza de espírito” se dá de duas maneiras:

por meio da razão (a alma racional) e por meio da verdade que a ilumina (a lei moral interior:

38

De serm. Dom., II, 1,2. A esse respeito, ver: SCHAFF, 1994, p. 2 (nota 2s). 39

De serm. Dom., II, 1,3. 40

De serm. Dom., I, 3,10; cf. Mt 5, 11. 41

De serm. Dom., II, 9,32. 42

De serm. Dom., II, 9,32. Imbuídos dessa lei natural (ou “lei moral interior”), todos são, naturalmente,

possuidores de uma “autoconsciência” (cf. De Trin., X, 9,12).

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99

a consciência). De uma ou de outra maneira, a intersubjetividade do sujeito se evidencia. Daí

que:

Uma alma racional – mesmo cega pela paixão – chega a pensar e raciocinar. Nessa

circunstância não se deve atribuir a ela mesma o que há de verdadeiro em seu

raciocínio [como criam os maniqueus], mas sim à luz da verdade que a ilumina,

ainda que fracamente e na proporção de sua capacidade43

.

A perfeição da primeira bem-aventurança, requerida de todos os que são do Reino, é

relembrada e reforçada na “oitava”. E há uma ordem causal, compensatória: “Bem-

aventurados os pobres de espírito... Porque deles é o Reino dos Céus”. A “pobreza” e a

“recompensa” estão, em igual medida, numa e noutra, margeando as demais como início e fim

a que todas as ações devem se dirigir, se destinar. A fórmula é: “bem-aventurados os...”,

“porque eles...” Tal fórmula, entrementes, não era nova – ela já aparecia, por exemplo, na

boca de salmistas e profetas do Antigo Testamento –, mas, nas palavras de Jesus, conforme

abordado pelo Hiponense, são elucidadas à luz da nova realidade humana, daquilo que o Pai,

manifestado entre os homens na pessoa do Filho, requer daqueles que fazem parte da Sua

sociedade. Nessa condição, não basta, por exemplo, padecer provações e privações; tudo deve

ser feito e fundamentado na medida da perfeição, da pobreza de espírito, da justiça44

.

Portanto:

A oitava bem-aventurança volta à primeira como à sua fonte, pois a mostra elevada

ao último grau de perfeição. Assim, na primeira como na oitava, encontra-se

expressamente nomeado o Reino dos Céus. [...] São, pois, sete as bem-aventuranças

que conduzem à perfeição. A oitava tudo termina e manifesta. Os primeiros graus

vão recebendo uns dos outros a sua perfeição para, no oitavo, retornar ao ponto de

partida45

.

43

De serm. Dom., II, 9,32. Essa intersubjetividade relacional aparece aprofundada em De Trin., VIII, 10,14. 44

Na crítica que Agostinho também faz aos donatistas, encontramos: “Quantos hereges iludem os outros em

nome do cristianismo, dizendo padecer provações. E, contudo, estão excluídos dessa recompensa [o Reino dos

Céus], porque não foi dito apenas: „Bem-aventurados os que padecem perseguição‟, mas foi acrescentado: „pela

justiça‟. Ora, onde não há fé verdadeira não pode haver justiça, pois o „justo viverá pela fé‟ (Hb 2, 4; Rm 1, 17).

Tampouco os cismáticos presumam obter essa recompensa, porque de igual modo onde não há caridade não

pode haver justiça, porque „a caridade não pratica o mal contra o próximo‟ (Rm 13, 10). Com efeito, se tivessem

caridade não despedaçariam „o corpo de Cristo, que é a Igreja‟ (Col 1, 24)” (De serm. Dom., I, 5,13). 45

De serm. Dom., I, 3,10. Juan Mateos e Fernando Camacho, com base nessa classificação de Agostinho –

embora não o mencionem expressamente –, dizem: “Das oito bem-aventuranças, devem-se destacar a primeira e

a última, que têm idêntico o segundo membro e a promessa no presente: „porque estes têm a Deus por rei‟. Cada

uma das outras seis têm segundo membro diferente e a promessa vale para o futuro próximo („receberão,

herdarão etc.‟). Dessas seis, as três primeiras (v. 4. 5. 6.) mencionam no primeiro membro um estado doloroso

para o homem, de que se promete a libertação. A quarta, quinta e sexta (v. 7. 8. 9.) enunciam, ao invés, uma

atividade, um estado ou disposição do homem favorável e beneficente para seu próximo, que leva também sua

correspondente promessa do futuro. Pode-se, portanto, fazer o seguinte esquema:

1a) Ditosos os que escolheram ser pobres...

2) Ditosos os que sofrem...

3) Ditosos os submetidos...

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100

Os “graus de perfeição”, conforme ordenados pelo Senhor, começam e têm seu ápice

na humildade. Em relação ao texto do Evangelho de Mateus46

, Agostinho cita um texto do

Eclesiastes47

, conforme a Vulgata: “Tudo é vaidade e presunção dos espíritos”. “Ora”, diz ele,

“presunção de espírito quer dizer orgulho e arrogância”48

. Os “pobres de espírito”, ao

contrário desses, são “humildes e tementes a Deus, isto é, os desprovidos de todo espírito que

incha”. Dizendo isso, Agostinho tem em mente o texto de primeira Epístola aos Coríntios,

onde o apóstolo diz: “A ciência incha; é a caridade que edifica”49

. O Hiponense também tem

em mente o verso do Eclesiástico: “O princípio da sabedoria é o temor do Senhor”50

. Essa

4) Ditosos os que têm fome...

5) Ditosos os que prestam ajuda...

6) Ditosos os limpos de coração...

7) Ditosos os que trabalham pela paz...

1b) Ditosos os que vivem perseguidos...” (MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. O evangelho de

Mateus. Trad. de João Resende Costa. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 56). A opção pelos pobres – ou por ser

pobre – acarreta, em consequência, a perseguição. Acontece que os termos „anawim, „aniyim, na tradição

judaica, segundo Mateos, “designavam os pobres sociológicos, que tinham sua esperança em Deus por não achar

apoio nem justiça na sociedade” (MATEOS; CAMACHO, 1993, p. 57), mas também podem significar “pobres

quanto ao espírito” ou “pelo espírito”. Para os desdobramentos dessa discussão, ver: MATEOS; CAMACHO,

1993, p. 56-8. Quem também adota as bem-aventuranças numa perspectiva sociológico-libertária, mantendo a

estrutura elaborada por Agostinho, é Bernhard Haering. Assim, ao comentar a oitava bem-aventurança, ele diz:

“A oitava bem-aventurança retoma a promessa da primeira. [...] O reino dos céus ou reino de Deus significa não

somente a bem-aventurança eterna, mas também a vida dos redimidos que nesta vida se deixam guiar totalmente

pelo Espírito Santo...” (HAERING, Bernhard. As bem-aventuranças: testemunho e engajamento social. Trad.

de Honório Dalbosco. São Paulo: Paulinas, 1976. p. 97). 46

Mt 5, 3: “Bem-aventurados os pobres de espírito...” 47

Ec 1, 14, (na Vulgata?). Quanto à versão do Novo Testamento utilizado por Agostinho, Oliveira diz: “Não

sabemos com exatidão. Nesta passagem [Mt 6, 27-28], ele emprega o texto latino: Quis autem vestrum potest

adiucere as staturam suam cubitum unum? tal como se encontra na Vulgata” (OLIVEIRA, 1992, p. 199). 48

De serm. Dom., I, 1,3. 49

I Co 8, 1; De serm. Dom., I, 1,3; I, 3,10. O “edificar” (aedifico) tem um sentido próprio de “elevação”,

“construção” e, assim, uma ascese da terra para o alto/céu, do imperfeito para o Perfeito. Nas Confessiones,

falando sobre o seu encontro com o platonismo e com essa “ciência que incha”, Agostinho diz: “[Eu] tagarelava

à boca cheia como um sabichão, mas, se não buscasse a Cristo Nosso Salvador o caminho para Vós, não seria

perito [perito], mas perituto [destinado à perdição]. Já então, cheio do meu castigo, começava a querer parecer

um sábio; não chorava e, por acréscimo, inchava-me com a ciência”. A humildade, conforme exposta aqui como

o mais elevado grau da perfeição é, logo em seguida, exaltada: “Onde estava aquela caridade que levanta sobre o

alicerce da humildade, que é Jesus Cristo? Quando é que estes livros ma ensinaram?” (Conf., VII, 20,26). E,

tratando sobre a sabedoria dos verdadeiros sábios (os santos) que, na sua humildade, elevam-se até a morada de

Deus, onde reina a eterna paz, São Boaventura afirma que “Santo Agostinho [diz] que esta “„paz é a

tranquilidade na ordem‟; a qual se verifica quando cada um se submete humildemente ao superior, [e] trata com

devida consideração aos iguais e com discrição aos inferiores. Todos os que se acham em possessão da

sabedoria, guardam essa ordem” (BUENAVENTURA, San. Los dones del Espiritu Santo. Trad. de R. P.

Francisco M. Ferrando; introd. de J. I. Pearson. Buenos Aires: Curso de Cultura Catolica, 1943. p. 308). Convém

salientar que Boaventura, como bom agostiniano/franciscano que era, no referido livro, segue as pegadas de

Agostinho quanto aos sentidos que dá aos dons do Espírito Santo, conforme aparecem em Isaías 11, 2-3 (que

Agostinho relaciona a Eclo 1, 16), adicionando-os às sete virtude da sabedoria que vem alto, conforme aparecem

em na Epístola de Tiago, 3, 17: “Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente pura, depois pacífica,

moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade, e sem hipocrisia” (ECA). 50

De serm. Dom., I, 4, 11: “Isaías, com efeito, começa a sua enumeração pela sabedoria e termina pelo temor de

Deus. Mas o princípio da sabedoria é o temor de Deus (Eclo 1, 16)”. A mesma referência do Eclo 1, 16 aparece

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relação é especialmente importante para Agostinho porque, através dela, é possível associar as

sete bem-aventuranças às sete formas da ação do Espírito Santo, conforme elencados pelo

profeta Isaías51

. A propósito dessa relação entre as sete bem-aventuranças e os sete dons do

Espírito Santo, Luís M. Martinez afirma:

À hierarquia dos dons corresponde a hierarquia das bem-aventuranças. Ao dom do

temor de Deus corresponde a bem-aventurança do desprendimento; ao dom da

piedade, a bem-aventurança da doçura; ao dom da ciência, a bem-aventurança das

lágrimas; ao dom da fortaleza, a bem-aventurança da justiça; ao dom do conselho, a

bem-aventurança da misericórdia; ao dom do entendimento, a bem-aventurança da

luz; ao dom da sabedoria, a bem-aventurança do amor. Os dons são as raízes; as

bem-aventuranças são os frutos suavíssimos dos quais se goza à sombra do

Amado52

.

em Sl 111, 10; Pv 1, 7; 15, 33. Nas Escrituras, a exemplo de Pv 8, a verdadeira Sabedoria está, geralmente,

relacionada à pessoa de Cristo (cf. De serm. Dom., I Co 1, 22-25). Ver, sobre a relação Sabedoria-Cristo, o

capítulo: “Como se formou a noção de filosofia cristã até Santo Agostinho”, em: NÉDONCELLE, Maurice.

Existe uma filosofia cristã? Trad. de Alice de Britto Pereira. São Paulo: Flamboyant, 1958. p. 27-37. (Col. Sei e

Creio: Enciclopédia do Católico do Século XX). v. 1. 51

Mais adiante – no Livro II do De Sermone –, Agostinho relacionará as sete bem-aventuranças aos sete dons do

Espírito Santo e às sete petições do Pai-nosso. No texto de Is 11, 2-3 (conforme a ECA), consta: “Repousará

sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de inteligência, o Espírito de conselho e de fortaleza, o

Espírito de conhecimento e de temor do Senhor. Deleitar-se-á no temor do Senhor; não julgará segundo a vista

dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos”. Essa mesma associação aparece também em

De doctrina christiana (II, 7,9-11); no Sermão 347, na parte em que trata sobre o temor a Deus; e, aqui no De

serm. Dom., principalmente em I, 1,4. Em todos esses textos, a origem da sabedoria é, relacionada à ação do

Espírito Santo, sobrenatural. Assim, conforme Nair de Assis Oliveira: “São postos em relevo os maravilhosos

efeitos espirituais produzidos na ordem intelectual pela contemplação; e na ordem moral, pela paz que a

acompanha. A sabedoria sobrenatural conduz o cristão já nesta vida a certa visão de Deus. Tal afirmação volta

como um refrão a cada página. Essa visão de Deus é a própria contemplação. O Sermão da montanha presta-se

melhor do que qualquer outra página inspirada para a explicação dessa doutrina” (OLIVEIRA, 1992, p. 185). 52

MARTINEZ, Luís M. A lei do Espírito: as bem-aventuranças. Trad. de Luiz João Gaio. São Paulo: Paulinas,

1976, p. 19. Convém salientar que Martinez observa a relação das sete bem-aventuranças com os sete dons do

Espírito Santo na mesma estrutura (e ordem) feita por Agostinho no De serm. Dom., I, 4,11. Vicenzo M. Farano,

no mesmo sentido, faz a relação: “A cada Bem-aventurança”, diz ele, “corresponde um dom do Espírito Santo.

[...] Os dons do Espírito Santo são sete: três se desenvolvem no âmbito da vontade e quatro no da inteligência”

(FARANO, Vicenzo M. As bem-aventuranças. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de

Brides, 1981. p. 78). Assim, mais adiante: “Com o dom do Temor, a alegria do desapego; com o dom da

Fortaleza, a plenitude da justiça; com o dom da Piedade, o encontro da doçura; com o dom do Conselho, a

suavidade da misericórdia; com o dom da Ciência, a felicidade das lágrimas; com o dom da Inteligência, a

luminosidade da pureza; com o dom da Sabedoria, a paz e a pose do Amor Infinito” (FARANO, 1981, p. 81). De

influência agostiniana, encontramos, em SERTILLANGES, A. D. El amor cristiano. Trad. Castellana de

Manuel E. Ferreyra. Buenos Aires: Editorial Aires, 1948. p. 33-4. (Col. La Vida Cristiana), a mesma relação de

sete dons do Espírito Santo, relacionados ao amor cristão (a caridade) que tem, conforme esse autor (cf.

SERTILLANGES, 1948, p. 32), seu fundamento na Trindade. No que diz respeito às sete bem-aventuranças,

conforme estruturadas por Agostinho, sempre houve quem discordasse de tal “arranjo”, incluindo a crítica,

inclusive, ao próprio texto nos Evangelhos. Lucas, por exemplo, alista apenas quatro bem-aventuranças (Lc 6,

20b-23). Mateus, em uma leitura superficial, parece aumentar de quatro para, não exatamente sete – como

alistadas por Agostinho –, mas nove bem-aventuranças. Como se chegou a isso e como isso pode ser resolvido?

“De quatro para nove: temos a impressão de que Mateus tem cinco bem-aventuranças novas. Na realidade, ele só

tem três, fáceis, aliás, de identificar: a quinta, dos misericordiosos; a sexta, dos corações puros; a sétima, dos que

promovem a paz. Essas três não têm correspondente em Lucas. As outras duas bem-aventuranças não são

propriamente novas, mas o desdobramento de outras. A oitava bem-aventurança, „bem-aventurados os que são

perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus‟, se apresenta como um desdobramento da

nona, a dos perseguidos por causa de Jesus” (VV.AA., 1982, p. 55).

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“Parece-me que as sete formas de ação do Espírito Santo, de quem fala Isaías (11, 2-

3)”, diz Agostinho, “concordam com esses sete graus das bem-aventuranças”53

. Mas a ordem,

conforme alistada por Martinez, acima, não está assim classificada nos textos bíblicos. A

harmonização que se tornou padrão na cristandade54

foi primeiramente feita pelo Hiponense –

que também foi o primeiro comentador do Sermão da montanha –, com a seguinte

argumentação:

Importa, porém, ter em conta a ordem da enumeração, pois o profeta começa a

nomeá-los pelos mais excelentes, ao passo que aqui [no evangelho de Mateus] eles

estão elencados pelos inferiores. Isaías, com efeito, começa sua enumeração pela

sabedoria e termina pelo temor de Deus. Mas o princípio da sabedoria é o temor de

Deus (Eclo 1,16). Assim, se gradualmente e como ascendendo não os enumerarmos,

vemos que o primeiro dom é o temor de Deus; o segundo, a piedade; o terceiro, a

ciência; o quarto, a fortaleza; o quinto, o conselho; o sexto, a inteligência; e o

sétimo, a sabedoria55

.

No Livro II, ele tomará as sete petições do Pai-nosso e as unirá aos sete dons do

Espírito Santo, relacionando-os às bem-aventuranças56

. A oração, conforme os pedidos que

nela estão alistados, conduzem o que ora à humildade e, como na primeira bem-aventurança, a

Deus. A ação de pedir revela a pobreza daquele que, não tendo, dirige-se àquele que tem. A

condição do que pede é a do pobre – e daí as legítimas associações relacionadas à justiça

social –, a daquele a quem é pedido, do rico. Nessa acepção, só Deus é rico o “suficiente”

para que todos os homens, mesmo os mais ricos, tenham sempre algo a lhe pedir. E, para

tanto, não pode haver lugar para o orgulho. É por isso que a frase mais citada do De sermone

é:

53

De serm. Dom., I, 4,11. 54

Ver, por exemplo, Sum. theol., I. IIae. Q. LXIX, a. 1. 55

De serm. Dom., I, 4,11. Vemos, aqui, o esforço que Agostinho faz para reduzir as oito bem-aventuranças ao

número sete, que é, para ele, de grande valor simbólico. Os algarismos contidos nas Escrituras, de um modo

geral – observe-se o que Agostinho, em De Trin., IV, 4,7, por exemplo, diz em relação às perfeições do número

seis –, foram inseridos na tradição exegética da patrística como resultado da cultura da época, que dava à

aritmologia uma grande importância. Certamente não era por acaso que, no Apocalipse, se falava em sete

espíritos, sete igrejas e, distribuídas por todo o livro, outras sete bem-aventuranças (Ap 1,3; 14,13; 16,15; 19,9;

20,6; 22,7-14), com temas e teores diferentes das de Mateus ou Lucas. Sete é número de completude, inteireza.

Sendo a Bíblia inteiramente inspirada, Agostinho cria que nada nela era irrelevante, incluindo certa constância de

determinados números. Ele, todavia, modesto, era sempre pronto a ouvir outras interpretações, “talvez melhores

que a sua” (cf. De serm. Dom., II, 25,87). Talvez devamos atentar, mais que à simbologia dos números, ao

ensino que o texto do autor enfatiza. A esse respeito, ver: HAMMAN, A. G. Explication du sermon de la

montagne de saint Augustin. Paris: Desclée de Brŏwer, 1978. p. 28 (nota 4). 56

Cf. De serm. Dom., II, 4-11. Assim, em II, 11,38, Agostinho diz: “O número setenário de petições parece-me

concordar com aquele outro número setenário das bem-aventuranças, do qual todo este sermão deriva”. Mais

adiante, em De serm. Dom., II, 11,39, Agostinho fala sobre “essas sete fórmulas de oração que o Senhor nos

prescreveu”.

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Na oração, efetua-se a conversão de nosso coração a Deus, a ele que está sempre

disposto a conceder-nos seus dons, se formos capazes de recebê-los. E nesse mesmo

movimento de conversão opera-se a purificação do olho interior, à medida que são

excluídos os desejos de bens materiais57

.

A “capacidade de receber” os dons se dá mediante a ação com base na “pobreza de

espírito”, no amor desinteressado – sem o duplo coração. A ação da vida ativa, conforme

requerida na observação das bem-aventuranças, diz respeito à dimensão social (eu e o meu

próximo / eu e o meu Deus), mas não somente a ela. Seja ao “meu próximo” ou ao “meu

Deus”, o eu (na acepção possessiva) permanece ativo como elo de relação; e não poderia ser,

evidentemente, de outra maneira – pois que senão eu próprio não me reconheceria, nem ao

Outro. Essa relação, na sua ordem fraternal (isto é, ter, em comum, Deus como Pai), se

estabelece com o Outro mediante uma atmosfera mais alta: a ação no amor (visando o Outro)

e a oração, ou contemplação (voltando-se para Deus). Nesse sentido, a oração, longe de ser

meramente um exercício místico do fiel para com o seu Deus, é também um instrumento de

aproximação do seu eu para com o eu do Outro. Por meio da minha proximidade com Deus,

eu me aproximo ainda mais do meu próximo, que é um meu semelhante. A vida ativa e a vida

contemplativa, nesse aspecto, se interligam. Por isso que, conforme diz Martinez: “O amor

transforma porque une, porque unifica, porque faz desaparecer a criatura para que só brilhe a

luz de Jesus, porque produz a consumação da unidade [com Deus e com o próximo]”58

. O

“desaparecer da criatura” diz respeito à preponderância do interesse próprio (que visa somente

o eu), identifica-se com Cristo (visando o Outro, o próximo), imitando-o no amor... sempre

desinteressado. Portanto, além da vida ativa, deve-se levar em grande conta a vida

contemplativa – pois é essa que, de modo místico, alimenta aquela. Ora, se estancarmos, neste

mundo, na vida ativa, não lograremos grandes progressos na ascese que conduz à

contemplação de Deus, da verdade, da perfeita beatitude. Acontece que

57

De serm. Dom., II, 3,14. A explicação, petição por petição, começa a partir do capítulo 4 do Livro II. A

dimensão do comentário, elevando-se a Deus, em atitude introspectiva (o olho interior), por meio da oração (o

Pai-nosso), ganha uma esfera mais contemplativa. 58

MARTINEZ, 1976, p. 18. Joaquim Jeremias menciona que a “ortodoxia luterana”, em relação ao Sermão da

montanha, trata-o como uma “teoria do ideal inatingível” (Unerfüllbarkeitstheorie), dada a dificuldade em

obedecê-la (cf. JEREMIAS, 1984, p. 12). Jesus, no Sermão (ou “o Jesus do Sermão”), isso não é difícil de

perceber, é radical na apresentação do Sermão como norma de conduta para os que querem lhe seguir (cf. Mt 7,

26-27; De serm. Dom., I, 1,1; II, 25,87). Atingir o cume de tão alta montanha não é fácil, mas todos devem

procurar fazê-lo. “A estes sete cumes [a observação dos preceitos contidos nas bem-aventuranças]”, diz ainda

Martinez, “chega-se pelo exercício das virtudes, mas principalmente pela operação dos dons do Espírito Santo

[...]. A oitava bem-aventurança, que é a bem-aventurança da dor e do martírio, é o resumo e a consumação de

todas. [...] A dor é o opulento da pobreza, o delicioso da doçura, o divino das lágrimas, a majestade da justiça, a

unção da misericórdia, a pureza da luz e a saciedade do amo” (MARTINEZ, 1976, p. 18-9).

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A vida ativa é boa, mas está cheia de misérias, se debate no meio das lutas da terra

tão prosaicas, tão tristes, tão asfixiantes para a alma que nasceu para o céu; a vida

contemplativa, ao contrário, abre as suas asas límpidas e poderosas na atmosfera

mais alta, mais serena, já celestial e divina. Não há dúvida de que a ação é caminho

para a felicidade, porque dispõe para a contemplação59

.

A teologia moral de Cristo, em Agostinho, conforme já pudemos observar, leva em

conta essas duas dimensões; embora sejam assim separadas mais para efeito metodológico do

que dogmático, pois que a moral, na praxis (a vida ativa), está o tempo todo ligada à fides (a

vida contemplativa), e sempre nesse sentido imanente-transcendente; o eu transcendental. Não

é possível, pois, dissociar uma coisa da outra; mas é possível pesar – ou pelo menos alertar

sobre – as intenções. A fé, maior, não precisa das obras para ser, e ser verdadeira; mas é por

meio das obras que ela melhor se mostra. E aí está a valoração da ação, mas, ainda mais, a

supervaloração daquilo que a transcende: o eu interior e a fé no objeto da fé. E isso se dá em

maior e melhor grau através da vida contemplativa.

2.1.2. A vida contemplativa: a fé da ação

Com o Pai-nosso, a obra ganha um tratamento mais subjetivo, mais contemplativo.

Na ascese para a Verdade (o bem Único), o homem começa por voltar-se para si mesmo, com

o seu olho interior, a sua intencionalidade – que é o tribunal da sua própria consciência. A

busca pela Verdade, assim, consiste na ação e no conhecimento, ou seja: na prática e no

conhecimento da real intencionalidade da prática. “A busca propõe descobrir a verdade, pois

a vida bem-aventurada consiste na ação e no conhecimento. Ora, a ação exige o livre

exercício das forças da alma. E a contemplação deseja manifestação clara da verdade das

coisas”60

.

E é assim que Deus habita no homem interior61

: onde a verdade é sempre desvelada,

límpida, incorruptível. Pode-se mentir ao Outro, mas a Deus, não. O “dizer sempre a

59

MARTINEZ, 1976, p. 16. A contemplação, no entanto, não se distancia da ação (cf. De Trin., VIII, 7,11),

antes legitima-a. 60

De serm. Dom., II, 21,72. Na continuidade da citação, que é relacionada à oração e ao que nela pedir,

Agostinho dirá: “É preciso, pois, pedir uma coisa [conhecimento] e procurar outra [ação], a fim de se obter a

primeira e encontrar a segunda. Contudo, nesta vida, o conhecimento é antes um itinerário que se deve seguir,

mais do que a posse do próprio bem que se há de possuir. Só quando alguém tiver encontrado o verdadeiro

caminho chegará à posse do bem; o qual, entretanto, só se abrirá a quem bater” (De serm. Dom., II, 21,72; cf. II,

25,86). Uma declarada ontoteologia, portanto. 61

De serm. Dom., II, 5,17: “Na verdade”, diz Agostinho, “Deus não está encerrado em lugar algum. [...] Com

efeito, dos justos está dito: „Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós‟ (1Cor 3,17). Por conseguinte,

se Deus habita em um templo e os santos são o templo, com razão as palavras „que estás nos céus‟ podem ser

interpretadas: que estás nos santos. Essa comparação é muito adequada para fazer ver que espiritualmente há

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verdade62

” – que todos sabem quando dizem ou não – é uma das normas que atestam a favor

da idoneidade dessa razão íntima. Ao falar com Deus (que é uma outra definição para a

palavra “orar”), não se pode mentir. O olho interior, aquele que vê o Senhor por meio da fé,

corresponde à doutrina da iluminação, que encontra no Mestre interior – conforme pode ser

visto no De Magistro e em muitos outros textos do Hiponense – a sua sustentação e

fundamentação seguras. “Portanto”, conclui Agostinho,

Como é necessário ter o olho puro e simples para encontrar o caminho da sabedoria,

em volta do qual os maus e perversos desenvolvem tantas seduções e erros! Escapar

às suas armadilhas, chegar a uma paz segura e à morada imutável da sabedoria63

.

A vida contemplativa, aqui, destoa da βίος θεωρηηικός aristotélica. A contemplação

cristã, baseada na fides, transcende a ratio – embora não a despreze; aliás, serve-se dela, em

dadas situações. Mas não diz respeito às elucubrações elevadas da filosofia propriamente dita.

Essa filosofia, sem as verdades da fé cristã, é aquela “ciência que incha”, conforme Agostinho

menciona relembrando o ensinamento apostólico64

. O voltar-se para si mesmo e – naquela

introspecção que esbarra no homem interior –, em decorrência, para Deus, é o que

corresponde a essa “vida contemplativa”.

Com efeito, em De vera religione, Agostinho diz: “Não saias de ti, volta-te para ti

mesmo, a verdade habita no homem interior”65

. O “conhece-te a ti mesmo”, máxima

socrática, eleva-se, no pensamento do Hiponense, ao conhecimento de Deus, como já vimos.

O olhar para si (o Eu interior) marca o ascender desse eu para Deus; ascensão do imperfeito

para o Perfeito, mediante a posse das virtudes do Espírito Santo, da observação dos perfeitos

tanta distância entre os justos e os pecadores, como materialmente existe entre o céu e a terra”. Na mesma

acepção, ver: De serm. Dom., I, 2,9; I, 5,13; II, 5,18; II, 3,14; II, 1,1: “Deus, cujo templo santíssimo é todo

aquele que vive bem”. 62

De serm. Dom., II, 20,69: “Quem deseja ter o coração puro e simples não se deve julgar culpado por ocultar

alguma coisa a alguém incapaz de compreender. Entretanto, por isso, não se há de julgar ser permitido mentir.

Ao ocultar o que é verdadeiro, não se segue que se diga a mentira”. Tal afirmação é feita por Agostinho para

responder à pergunta: se não é permitido mentir, por que o Senhor falava por parábolas, encobrindo a verdade a

alguns? O Hiponense sempre mostra um grande respeito ao “sim, sim”, e ao “não, não”. No tratado Contra

mendacium, de 419 – redigido quase 25 anos após o De mendacio –, ele diz: “Se pelo fato de alguém não ser co-

participante de nossa fé e sacramento se ocultem a ele algumas verdades, contudo não nos está permitido

enganá-lo dizendo mentiras” (Cont. Mand., VI, 15). O respeito, como se vê, estende-se para, além da verdade, o

outro – mesmo que ele não seja “co-participante de nossa fé e sacramento”. 63

De serm. Dom., II, 25,86. A segurança da verdade – que repousa em Deus – manifesta-se, por analogia, na

parábola do homem prudente que edifica a sua casa sobre a rocha: Cristo (ou a sua mensagem) é, na parábola,

essa rocha. As referências ao “olho simples”, ou “olho interior”, no Livro II do De Sermone, são múltiplas: cf.

De serm. Dom., II, 1,1; II, 3,14; II, 9,32; II, 22,76; II, 24,78; II, 25,86; II, 24,81-25,82, etc. Nas obras que se

seguirão ao De Sermone, o tema do olho interior será lugar comum (No De Trin., por exemplo, ver De serm.

Dom., XIV, 15,21). 64

Cf. De serm. Dom., I, 1,3, em relação a I Co 8, 1. 65

De vera rel., 39, 72. De semelhante modo, em Cont. acad., III, 14,31: “Se queres saber onde encontra o sábio

a sabedoria, responder-te-ei: em si mesmo”.

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preceitos (das bem-aventuranças) do Mestre mais elevado, figurativamente sentado sobre o

monte66

. A oração é a forma de aproximação mais prática de um com o Outro – conforme a

instrução do Senhor. Mas, a razão pergunta: como pode o imperfeito ascender até o Perfeito?

A fé (a revelação) responde: mediante a instrução do próprio Perfeito, na pessoa do Filho67

.

Outra pergunta que naturalmente é suscitada: “Quem poderá cumprir os preceitos

enunciados” pelo Senhor, a exemplo do: “Portanto, deveis ser perfeitos como o vosso Pai

celeste é perfeito”68

. A resposta é: “Deus é a perfeição como convém a Deus, e o homem

aspira a ser perfeito quanto lhe é possível ser”69

. O desejo de perfeição exige um esforço

humano, mas não exclui a graça, necessária. Essa aspiração, de igual modo, diz respeito à

saída da cidade das paixões (a civitas terrena) para a Cidade da milícia celeste (a civitas

celeste70

). Se é impossível não ver em tudo isso o neoplatonismo, é porque a sua presença é,

realmente, marcante, indissociável – mesmo que depurada na dinâmica estrutural da

revelação. Assim: “Se [o cristão] quiser vencer a imensa quantidade de hábitos viciosos,

66

“Jesus sobre a montanha é o novo Moisés sobre o Sinai da Nova Aliança. Não apresenta uma utopia, nem uma

impossibilidade, nem uma palavra que revela nossos pecados pela impossibilidade de cumprir o que pede. Sua

palavra não é lei, ou puro princípio indicativo. É dom e apelo do Pai. É a Palavra viva que dá a possibilidade de

realizar o que pede e promete” (STANLEY, David Michael. O evangelho de Mateus. Trad. de Ana Flora

Anderson e Gilberto da Silva Gorgulho. São Paulo: Paulinas, 1975. p. 45). O paralelo não é sem fundamento. As

leis mosaicas tinham, a um só tempo, natureza espiritual e social. Jesus, sobre o monte, esboça aquilo que, agora,

deveria ser a nova “política cristã” que, embora não seja uma teocracia, tem em Deus o modelo de governo: na

pureza, na simplicidade, na misericórdia, etc. A “política cristã” (ou a nova lei que não é lei) é a política dos

costumes do Reino de Deus, e a administração das sociedades, fundamentadas nesses costumes, é a prática da fé

no (e do) Evangelho da graça. Em toda a sua vida, Agostinho escreveu muito sobre essa “política cristã”. Veja-

se, por exemplo, o apanhado de tais escritos feito por ATKINS, E. M; DODARO, R. J. Augustine: Political

Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. (Col. Cambridge Texts in the History of Political

Thought). 67

Com relação à transmissão das palavras do Senhor, da sua forma oral (Jesus falava em aramaico, para o povo)

à sua forma escrita (o grego comum: coiné), bem como a permanência da integridade desse discurso, não

podemos, neste texto, ir além daquilo que, com vistas à nossa leitura hermenêutica do De sermone, de

Agostinho, é dito pelo próprio Agostinho. Mas, somente para que acentuemos a extensão dessa problemática

(razão / revelação), vejamos o que Michael D. Stanley, a propósito, diz: “Mateus fala do Sermão da Montanha,

Lucas na planície. Nenhum dos dois é uma fita magnética dos ensinamentos de Jesus. A Palavra de Jesus de

Nazaré, transmitida na tradição oral foi vivida pelos cristãos antes de ser escrita. O Sermão da Montanha é um

resumo do que deve caracterizar a comunidade que acredita em Jesus de Nazaré como Messias. Na forma atual é

uma sistematização catequética do último redator do Evangelho” (STANLEY, 1975, 45). Limitemo-nos, pois, ao

texto de Agostinho. Em De serm. Dom., I, 18,54, por exemplo, comentando a bem-aventurança relacionada ao

que têm fome e sede de justiça, Agostinho dissera que, para essa ascese, era necessário uma postura radical na

conduta – como vimos. E aí está a razão da fé: a ação moral. 68

Cf. Mt 5, 48. Para a citação do evangelho e os desdobramentos que Agostinho lhe dará, ver: De serm. Dom., I,

21,69-70. 69

De serm. Dom., I, 21,69. 70

A referência à cidade de Deus, conforme fazemos aqui, é sob concessão – pois Agostinho não utiliza, no

Sermão da montanha, essa terminologia. Mas ele fará isso depois, em 413, ao iniciar a redação de De civitate

Dei, descrevendo o mesmo conflito céu / terra; natureza divina / natureza humana, etc. (cf. AGOSTINHO, Santo.

A cidade de Deus: contra os pagãos. 4. ed. Trad. de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes, 2000. 2 v. (Col.

Pensamento humano).

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sempre em revolta, [...] que se refugie na Cidade da milícia cristã, como em lugar elevado. E

lá, trave a batalha para abater todos esses vícios a seus pés”71

. Logo em seguida, ele dirá:

Pode alguém encontrar problemas nesses trabalhos [os esforços para escalar a cidade

de Deus], ao caminhar por vias rudes e escarpadas, cercado de múltiplas tentações.

Ele vê erguer-se diante de seus olhos, como montanha, as misérias de sua vida

passada. Se ele teme poder levar a termo a obra começada, tome conselho para

conseguir algum auxílio72

.

O “auxílio” é pedido ao Senhor (mediante a oração) que está acima do monte;

Senhor acima das montanhas de tentações. O Senhor é soberano sobre tudo, mas o homem é

responsável por suas ações. Daí o Senhor requerer o esforço, a responsabilidade humana. Daí

a racionalidade humana, o seu livre-arbítrio. Como Cristo é a cabeça da Igreja, o homem é a

cabeça das suas ações morais (i.e., responsável por elas)73

. Em De Trinitate, redigido entre

399 a 422, de uma perspectiva antropopsicoteológica, esse aspecto da responsabilidade, do

livre-arbítrio e da graça ficarão mais nítidos. Feito à semelhança de Deus, o homem –

portador da imago Dei (ou das vestigia Trinitatis) – é portador de memória, inteligência e

vontade74

. Dessas três, em relação à personalidade humana, destaca-se a vontade. À vontade,

ligam-se as três virtudes do Espírito Santo75

, conforme relacionados por Isaías. Em

Agostinho, “a vontade seria essencialmente criadora e livre, e nela tem raízes a possibilidade

de o homem afastar-se de Deus”, diz José A. M. Pessanha76

. Assim, ainda conforme

Pessanha: “Tal afastamento significa, porém, distanciar-se do ser e caminhar para o não-ser,

isto é, aproximar-se do mal”77

. Essa noção de vontade, conforme abordada no De sermone, se

ampliará mais adiante, sendo, por exemplo, de grande importância nas doutrinas formuladas

por Agostinho sobre o livre-arbítrio e a graça. Por meio da vontade, e esta livre – por ser o

homem moralmente responsável –, advém o pecado da má-vontade: ou a ação desprovida da

“pobreza de espírito”. O mau uso da vontade é uma transgressão da Lei e, consequentemente,

um pecado. A vontade (ou o livre-arbítrio) do homem, em seu estado de caído, é suficiente

para levá-lo à prática da má-ação, mas não para levá-lo, dissociado da graça, à beatitude: ou à

71

De serm. Dom., I, 18,54. 72

De serm. Dom., I, 18,55. 73

Cf. Ef 5, 23, conforme utilizado em De serm. Dom., I, 12,34. 74

Cf. De Trin., XIV, 6,8; ver também: XI, 11,17. “O elemento que gera (cognem) é a memória; o que é gerado

(genitum) é o pensamento inteligente (cogitatio). E a dileção é a vontade, o terceiro termo que une o primeiro ao

segundo” (OLIVEIRA, Nair de Assis. Notas complementares. In: AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Trad. e

introd. de Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1994. p. 690. [Col. Patrística]). 75

Cf. FARANO, 1981, p. 78. 76

PESSANHA, José Américo Motta. Agostinho: vida e obra. In: AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. de J.

Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 1996. p. 20. Em Conf., IX, 12,29, Agostinho

fala sobre o “império violento da vontade”. 77

PESSANHA, 1996, p. 20.

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salvação. Para Agostinho, “a salvação não é apenas uma questão de querer”, diz Pessanha,

“mas de poder. E esse poder é privilégio de Deus. Chega-se, assim, à doutrina da

predestinação e da graça, uma das pedras de toque do agostinismo”78

.

Ora, o fato de nossa vocação à herança eterna para virmos a ser co-herdeiros de

Cristo e nos tornar filhos por adoção (Rm 8,23), não se baseia em nossos próprios

méritos, mas sim é efeito da graça de Deus. É essa a graça que mencionamos no

início desta oração, ao dizermos: “Pai-nosso!”79

.

O “simples” fato de o homem poder se dirigir a Deus como Pai já é, para Agostinho,

uma demonstração dessa graça que age sobre a vontade; uma vez que o homem, carnal, não se

dirige a Deus com tais palavras e, quando o faz, faze-o de modo leviano; com palavras ocas

que, para ele mesmo – embora ele sequer desconfiasse disso – e para Deus, não têm outro

sentido senão o de blasfêmia80

. “Antes mesmo de pedir qualquer coisa [a Deus], já recebemos

tão grande dom, qual seja o de podermos chamar a Deus de „Pai-nosso‟”81

. Ao contrário da

má-vontade, a boa vontade é aquela que tem aquele sobre quem, da parte de Deus, foi

administrada a graça. Isso é um “privilégio que obtemos sem nenhum dispêndio [e daí ser

graça] de nossa parte, mas como único efeito de nossa boa vontade”82

. Para que não haja

confusão nos termos, conforme empregados por Agostinho, é mister que se faça distinção

entre graça comum e graça salvadora. A graça comum é aquela que – como já tratado

anteriormente – Deus dá a todos ao fazer o seu sol nascer sobre maus e bons, e vir a sua chuva

sobre maus e bons; a graça salvadora, diferentemente, é essa que independe da vontade do

homem, mas que, uma vez sobre ele administrada, ele responde a Deus com a sua boa

vontade. De modo semelhante, quando Agostinho fala sobre os homens que, após

crucificarem o Senhor, ridicularizavam-no, diz que “aqueles homens ainda não tinham

78

PESSANHA, 1996, p. 21. 79

De serm. Dom., II, 4,16. Em De Trin., IV, 1,2, Agostinho insiste que “Gratia... gratis data unde et gratia

nominatur” (“A graça é dada de graça, daí esse nome lhe ser dado”). A graça, para ele, não nos é dada como

recompensa aos nossos méritos ou em reconhecimento de uma dignidade natural que conquistemos com o

esforço. 80

Assim: “[...] quanto mais haverá de tremer alguém por chamar a Deus de Pai, se a lealdade de sua alma e a

sordidez de seus costumes são tão grandes que poderiam provocar em Deus maior repugnância ao vê-lo

aproximar-se dele...” (De serm. Dom., II, 4,16). Noutra parte: “É próprio dos hipócritas dar-se em espetáculo em

suas orações, e não ter outro escopo do que a aprovação dos homens. Assim também é próprio dos pagãos, isto é,

dos gentios, imaginar que à força de palavras serão ouvidos em suas orações. Na verdade, toda essa abundância

de palavras vem dos gentios, que se preocupam mais de exercitar sua língua do que purificar seu coração.

Esforçam-se eles em aplicar também esse linguajar frívolo na oração para tentar dobrar a Deus. Julgam que

alguém pode incliná-lo com o fluxo de palavra. Assim como se faz junto a um juiz humano, para obter sentença

favorável. „Não sejais como eles‟, diz o único e verdadeiro Mestre” (De serm. Dom., II, 3,12). “Logo, aqueles

que não penetram [na caridade] com o entendimento, nem praticam com a vontade aquilo que dizem, apenas têm

aparência de dizer. Expressam-se somente com a voz” (De serm. Dom., II, 25,83). 81

De serm. Dom., II, 4,16. 82

De serm. Dom., II, 4,16.

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recebido a graça do Espírito Santo [a graça salvadora], não pertenciam [consequentemente] à

sociedade dos santos [a civitas Dei, ou a Igreja]!83

” Mas aqueles mesmos homens já haviam,

por muitas e várias vezes, certamente, experimentado a graça do nascer do sol, do cair da

chuva. O outro aspecto relativo à graça comum, além desse que já mencionamos, é aquele de

simples união do povo em torno da figura e da mensagem de Cristo. A oração de Estevão em

favor daqueles que o lapidavam, conforme lembro o Hiponense, tem essa natureza. Estevão

ora por aqueles homens que, desconhecendo a graça salvadora, “ainda não tinham recebido a

fé em Jesus Cristo e não combatiam assim contra a graça comum da união fraternal (At

7,59)”84

. A graça salvadora conduz a vontade à boa vontade; ou, em outras palavras: “Sem o

auxílio da graça, o livre-arbítrio elegeria o mal; com ela, dirige-se para o bem eterno”85

. A

graça, todavia, não liberta o homem da sua responsabilidade moral, do seu empenho em ter,

sobre suas ações, a correta intencionalidade.

Outra palavra que está intimamente ligada à vontade – como vimos no primeiro

capítulo anterior – é memoria. Para Aristóteles, a μνήμη é que dá aos homens, diferentemente

dos animais, a possibilidade de aprender, evoluir86

e, assim, agir moralmente. Memoria, em

Agostinho, é aquilo que, mediante a iluminação divina87

, faz com que nos lembremos de olhar

83

De serm. Dom., I, 22,73. 84

De serm. Dom., I, 22,73. 85

PESSANHA, 1996, p. 21. E nesse sentido próprio que Agostinho diz que Deus, “por um primeiro benefício,

[...] nos tira do nada para nos dar o ser por sua onipotência. Por um segundo benefício, ele nos adota para nos dar

direito, como filhos seus, de partilharmos com ele, na medida de nossos méritos, a vida eterna” (De serm. Dom.,

I, 23,78). Os “nossos méritos”, entretanto, dizem respeito aos frutos que, como a árvore boa, são produzidos

naturalmente. Ou seja: é quando a graça já opera em nós que nós mostramos os frutos da graça: os “nossos

méritos” (cf. De serm. Dom., II, 23,77s.). 86

“Por naturaleza, los animales nacen dotados de sensación; pero ésta no engendra em algunos a memoria,

mientras que en otros sí. Y por eso éstos son más prudentes y mas aptos para aprender que los que no pueden

recordar; son prudentes sin aprender los incapaces de oír los sonidos (como la abeja y otros animales semejantes,

si los hay); aprenden, en cambio, los que, además de memoria, tienen este sentido. Los demás animales viven

con imágenes y recuerdos, y participan poco de la experiencia. Pero el género humano dispone del arte y de

razonamiento. Y la experiencia parece, en certo modo, semejante a la ciencia y al arte, pero la ciencia y el arte

llegam a los hombres a través de la experiencia” (Met., 980b-981a). A experiência é a recordação do ocorrido e

os seus resultados. (ARISTÓTELES. Metafísica de Aristóteles. Trad. de Valentín García Yerba. Madrid:

Editorial Credo, S.A., 1970. v. 1. [Trilingue]).

87 Daí a fórmula, mais tarde, no De Trin., XV, 28: “Que de ti me lembre, que te compreenda e que te ame!”

(Meminerim tui. Intelligam tui. Diligam te). Nesse ponto, parece importante que se faça a distinção entre a

doutrina da iluminação de Agostinho e a reminiscência platônica – que são muito distintas. A teoria da memória,

já aqui delineada, será desenvolvida e terá, nas obras mais importantes de Agostinho (a exemplo do De

Magistro), grande relevância (cf. Conf., X, 15; De Trin., XII, 7-11; XIV, 11,14). Conforme CILLERUELO,

Lope. La “memoria Dei” según San Agustín. In: VV. AA. Augustinus magister: Congrès International

Augustinien (Paris, 21-24 Septembre 1954) – Communications. Paris: Études Augustiniennes, [s.d.]. p. 499. v.

1., o conceito de memória de Deus (memoria Dei) vem ligado a “[...] um entendimento e uma vontade”. Assim,

pois, “normalmente [se] toma entendimento e vontade como faculdades atuais, conscientes, psicológicas,

iniciadas por uma cogitatio e uma intentio. Ademais, esta é uma questão de palavras, se supormos que a

memória é um entendimento habitual, ou um entendimento do passado, etc.” (CILLERUELO, 1954, p. 499).

Portanto, ainda segundo Cilleruelo, “o termo memória importa pouco. A faculdade designada com esse nome

aparece em todos os grandes textos agostinianos paralelos. Considero como lugares paralelos, por exemplo, estes

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para nós mesmos e, nessa interiorização (ou introspecção psicológica), enxergarmos a Deus.

Na oração isso se aprofunda na recordação daquele que pede ao voltar-se para aquele a quem

é pedido. “Quem procura na profissão cristã as delícias deste mundo e o gozo dos bens

temporais”, diz Agostinho, “advirta que nossa felicidade é toda interior. Assim o anunciou o

profeta dizendo da alma cristã: „Toda a glória da filha do rei está no seu interior‟ (Sl

44,14)”88

. Mais adiante, Agostinho dirá: “Mas nosso Senhor resumiu para nós todas essas

coisas a fim de que, confiando-as à memória, as recordemos no momento da oração”89

.

A memória, também, nos prende aos hábitos – e eles podem ser bons ou não. Daí a

necessidade de, na memória, o hábito ser aquele que se liga à boa vontade. É assim que, ao

tratar sobre “o pecado e o hábito do mal”, Agostinho diz:

Mas ainda vivem na minha memória [...] imagens dessas tais coisas que o meu

hábito nela fixou, e, embora desprovidas de forças, vêm ao meu encontro quando

estou acordado, mas, durante o sono, chegam não só ao deleite, mas também ao

consentimento e a um efeito absolutamente igual. A ilusão na minha alma tem tanto

poder na minha carne que, estando eu a dormir, as falsas visões levam-me àquilo

que, estando acordado, as verdadeiras não conseguem. Acaso, Senhor meu Deus,

não sou eu nesse momento? E, todavia, é tão grande a diferença entre mim e mim

mesmo, naquele momento em que passo da vigília ao sono e volto a passar do sono à

vigília! Onde está, pois, a mente, graças à qual uma pessoa acordada resiste a tais

sugestões e, se as próprias coisas se lhe deparam, permanece inabalável?90

Quanto mais o ato é repetido, diz Agostinho, mais difícil ele se torna para o

esquecimento. É quando o ato vira hábito: tanto para o bem quanto para o mal – para o mal,

mais facilmente. Quando Agostinho diz que o ato, ao tornar hábito, “em conseqüência dos

atos repetidos, torna-se mais difícil de ser vencido”91

, ele focaliza o problema da permanência

do mal na natureza humana, de uma perspectiva puramente psicológica, “como uma força

irresistível a do hábito, consuetudo, que tira seu poder do funcionamento da memória

humana”92

. Aquilo que é experimentado pelos sentidos (as sensações), bom ou mau, é

gravado e mantido na memória. É através da sugestão (a memória do prazer passado), do

quatro: 1º Conf. X, 5-28; 2º De lib. arb., II, 3-16; 3º De vera rel., 29-49; 4º De Trin., 8-15.” (CILLERUELO,

1954, p. 499. [nota 3]). A memoria, assim, é um dizer menor para o cogitatio e a intentio. A definição de

memoria, em Tomás de Aquino, mais tarde, não diferirá em nada daquela de Agostinho e mesmo da de

Aristóteles: enquanto Agostinho fala da memoria como o “ventre da alma” (Conf., X, 14), o Aquinate reporta-se

a ela como “tesouro e local de conservação das espécies”. (Sum. theol., I, q. 29, a. 7). 88

De serm. Dom., I, 5,13. 89

De serm. Dom., II, 3,13. 90

Cf. Conf., X, 30,41. No mesmo sentido: Enn. in Ps., 143, 6; De serm. Dom., I, 12,35. Ver ainda: HAGI, 1999.

p. 166-82. 91

De serm. Dom., I, 12, 36: “[...] ao passar à consumação do ato, parece que a paixão se sacia, e como se

extingue. Mas quando a sugestão se renova, o deleite renasce ainda mais ardente. Será porém menor, ao se tornar

habitual, em conseqüência dos atos repetidos. Torna-se, então, difícil de ser vencido”. 92

OLIVEIRA, 1992, p. 190.

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deleite (a possibilidade de um novo prazer que se oferece) e do consentimento (o sucumbir ao

ato) que Agostinho explica a efetivação do ato pecaminoso93

. De modo semelhante, podem

ser conhecidos, segundo ele, três tipos de pecados: aqueles que vêm pelo pensamento; aqueles

que vêm pela ação e aqueles que vêm pelo “simples” hábito. Esses três pecados, afinal, não

são muito diferentes no seu resultado – embora possam ser analisados de diferentes

perspectivas psicológicas –, pois, diz ele,

São como três diferentes maneiras de morrer. O primeiro modo passa-se em casa,

isto é, quando o coração dá o seu consentimento à paixão. O segundo, transpõe a

porta e se exterioriza. É quando ao consentimento segue-se a ação. O terceiro

produz-se quando o espírito está como esmagado pela violência de um hábito

criminoso, tal como sob o peso de todo o universo, ou na corrupção do túmulo94

.

Tão dramática é a força do hábito – como vimos no início do capítulo anterior – que

Agostinho, ao mencionar as duas maneiras com as quais o Senhor venceu essas mortes, diz

que “ele tremeu interiormente, derramou lágrimas, comoveu-se de novo e gritou em voz alta:

„Lázaro, vem para fora!‟ (Jo 11,33-43)”95

.

O mau hábito pode ser vencido – ou, ao menos, atenuado – mediante o esforço

humano que não exclui, sob nenhuma hipótese, a graça; antes, dela, depende. Mesmo na

catequese (doutrinamento), para que o bom hábito se faça, é necessário que o mau hábito seja

vencido, e isso requer exercício, disciplina. De nada adiantam as lições do mestre humano

sem a graça iluminadora do Mestre interior e do esforço do catecúmeno, o discípulo. Já

Aristóteles, na Metafísica, cônscio disso, dissera que

A eficácia das lições depende dos hábitos dos ouvintes. Nós exigimos, com efeito,

que se fale do modo como estamos familiarizados; as coisas que não nos são ditas

desse modo não nos parecem as mesmas, mas, por falta de hábito, parecem-nos mais

difíceis de compreender e mais estranhas. O que é habitual é mais facilmente

93

De serm. Dom., I, 12,34-35. Sob certas condições, há que se fazer distinção entre vontade (voluntas) e paixão

(passio) – uma vez que a palavra voluntas (ou voluntatis) pode ser, ao mesmo tempo, traduzida como “boa

vontade”, “desejo”, “favor”, “intenção”, “disposição (para com alguém)”, “amizade” ou testamento”. Em De

serm. Dom., II, 22,74, por exemplo, ele diz: “A vontade livre não concebe a não ser o bem. Quando se trata do

mal, não se fala de vontade, mas de paixão. Não que a Escritura aplique sempre as palavras em seu sentido

próprio, mas quando é preciso ela as emprega assim, por ser impossível a compreensão de outro modo”. No

texto, tivemos o cuidado de deixar uma ou outra sempre bem definida, a fim de evitarmos quaisquer desvios,

para um o outro sentido. 94

De serm. Dom., I, 12,35; En. in Ps., 143, 6. 95

De serm. Dom., I, 12,35. Na nota 19, do comentário que faz ao De serm. Dom., I, 12,34-35, Nair de Assis

Oliveira diz que “Agostinho compara a alma cativa pela opressão de seus hábitos a Lázaro no túmulo, por três

dias de sepultamento. Notemos”, diz ela, “que a reflexão sobre o poder do hábito irá sempre se aprofundando em

nosso autor. Nesta obra, uma de suas primeiras, refere-se a ele ao carnalem consuetudinem, a força que nos

submete aos desejos da carne (cf. De serm. Dom., I, 3,10)” (OLIVEIRA, 1992, p. 190).

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cognoscível. A força do hábito é demonstrada pelas leis, nas quais até o que é mítico

e pueril, em virtude do hábito, tem mais força do que o próprio conhecimento96

.

Aristóteles falava da metodologia necessária para a aquisição do conhecimento, e

criticava – como fará no desenvolver do texto – os que se prendiam ao rigor matemático para

explicar todas as coisas97

. Em Agostinho, a ascese ao conhecimento de Deus, também requer

esse esforço, e o recolhimento, e o silêncio (silentium). Esse caminho, como pode ser visto

nas bem-aventuranças, parte da “pobreza de espírito” que, para Agostinho, diz respeito à

humildade. De modo que, a paz (que tem a ver com a boa consciência nas ações, para com

Deus e para com os homens), resulta numa ordem interior que reconcilia o homem todo:

consigo mesmo, com Deus, com o Outro. Os dons do Espírito Santo mantêm a caminhada e, a

oração, eleva o que caminha à experiência mística do encontro com o Real98

. Em tudo isso, e

para tudo isso, o esforço humano é requerido.

O esforço, sinérgico, diz respeito à luta pela própria santificação; não pela salvação,

que vem única e exclusivamente da parte de Deus, da administração da sua graça salvadora. A

oração é a maneira de buscar auxílio do alto, na morada da graça. Mas, assim, “ao aspirar pelo

auxílio do alto, que ele mesmo faça tudo o que puder para vir em ajuda da fraqueza de seus

irmãos”99

. “O doutor da graça”, diz Nair de A. Oliveira, “não se resigna com a idéia de

considerar os homens totalmente incapazes de lutar por sua própria santificação”100

. Essa

observação é importante porque retifica, com base no corpus agostiniano, o que ele parece

dizer, mas não diz, em relação àquilo que foi chamado, posteriormente, por certas alas do

protestantismo pentecostal, de Doutrina do Perfeccionismo101

.

96

Met., II, 3,995ª. ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de

Giovanni Reale. Trad. portuguesa de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p. 79. v. 2. Bilíngue. 97

Não por acaso a obra de onde vem o texto que utilizamos seria nomeada por Andrônico de Rodes, lá pela

metade do primeiro século antes da era cristã, com o título de Metafísica – porque, no corpus aristotelicum,

vinha depois das obras de Física. No comentário que Giovanni Reale faz ao referido texto da Metafísica, consta:

“O sucesso do método que se segue [porque o texto de nossa referência funciona, no início do livro II, da

Metafísica, como uma introdução] nas lições depende dos hábitos e da forma mentis de quem escuta: quanto

mais o método responde àqueles hábitos, mais ele tem sucesso, e vice-versa. Alguns aceitam só o método

rigoroso das matemáticas; outros querem, ao invés, que se proceda por exemplos; outros, enfim, querem que se

aduzam testemunhos dos poetas. [...] O método melhor é o matemático, mas não se pode pretender aplicá-lo a

todas as ciências, mas só às ciências que tratam das coisas imóveis. À física, por exemplo, não se poderá aplicar

o rigor das matemáticas. Deve-se, portanto, usar o método que convenha ao objeto da ciência que se quer

estudar.” (REALE, Giovanni. Sumário e comentário. In: ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto

grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. Trad. portuguesa de Marcelo Perine. São Paulo: Edições

Loyola, 2002. p. 109. v. 3). 98

Cf. TRAPÉ, Agostino. Saint Augustin, l’homme, le pasteur, le mystique. Paris: Fayard, 1988. p. 271. 99

De serm. Dom., I, 18,55. 100

OLIVEIRA, 1992, p. 193. Ver ainda: BROWN, 1969. p. 178 [nota 30]. 101

A chamada Doutrina do Perfeccionismo (Perfectionism) desenvolve a idéia de que os homens podem, nesta

vida, viver de modo absolutamente santo, sem cometerem quaisquer pecados. Essa doutrina foi, na ala

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Ora, ainda no Livro I do De sermone, Agostinho parece dizer que nós podemos,

nesta vida, mediante a graça e o esforço na observância dos preceitos do Senhor, conforme

expostos no Sermão da montanha, e, por fim, com o auxílio das virtudes do Espírito Santo,

chegar à perfeição, como aquela a que “chegaram os apóstolos”. Ou, nas palavras do próprio

Agostinho:

Aos pacíficos é outorgada a semelhança com Deus, porque possuem a perfeita

sabedoria e estão conformados à imagem do Criador pela regeneração do homem

novo. [...] Ora, todas essas promessas podem ser realizadas nesta vida, como cremos

que se realizou com os apóstolos102

.

Todavia, nas Retractationes103

, o Hiponense, já perto de sua morte, acredita que,

nesse particular, fizera uma afirmação muito geral, absoluta. Diz que, nesta vida, nem é

possível a perfeita observância dos preceitos perfeitos do Senhor e nem, consequentemente, a

posse da paz completa. Há, deveras, para os que têm fé, uma imperturbabilidade da alma, mas

ela está reservada, em sua plenitude, para a eternidade, quando a morte – sob nenhum aspecto

– já não tiver poder algum sobre o sujeito. Assim, ele diz:

É preciso entender minha fórmula não no sentido em que os apóstolos, no curso de

sua vida terrestre, não provaram nenhum movimento da carne, oposto ao espírito,

pentecostal, desenvolvida inicialmente pelos seguidores de John Wesley (1703-1791) e, posteriormente,

alimentada por algumas igrejas evangélicas neo-pentecostais. De tão estranha ao corpus agostiniano, o

desenvolvimento da doutrina do Perfeccionismo tem sido comumente atribuída a Wesley e outros seus

sucessores. O reformado Benjamin Breckinridge Warfield, num artigo de 1919, intitulado: Albrecht Ritschel and

his Doctrine of Christian Perfection, por exemplo, afirma que: “The historical source from which the main

streams of Perfectionist doctrine that have invaded modern Protestantism take their origin, is the teaching of

John Wesley. But John Wesley did not first introduce Perfectionism into Protestantism, nor can all the

Perfectionist tendences which have shown themselves in Protestantism since his day be traced to him”

(WARFIELD, B. B. Albrecht Ritschel and his Doctrine of Christian Perfection. In: Perfectionism: volume I.

New York: Baker Books, 1932. p. 3. [Col. The works of Benjamim B. Warfield, 7]). Aliás, o Perfeccionismo,

seja “aquele” pseudo-atribuído a Agostinho ou mesmo o que é encontrado nos escritos de Wesley, aproxima-me

em muito das doutrinas de Pelágio, que foi um dos maiores adversários de Agostinho e, de acordo com esse, da

doutrina cristã – o que é, segundo nos parece, um contra-senso a qualquer argumento que queira vincular

Agostinho a qualquer Perfeccionismo temporal. É assim que Warfiel, mais adiante, dirá: “Wherever again men

lapse into an essentially Pelagian mode of thinking concerning the endowments of human nature and the

conditions of human action, a Perfectionism similar to that taught by Pelagius himself tends to repeat itself”.

(WARFIELD, 1932, p. 3). 102

De serm. Dom., I, 4, 12a. 103

Agostinho escreveu as Retratações entre 245 e 427, com a intenção de “rever” certos pontos obscuros ou mal

entendidos de suas obras. O sentido etmológico do termo latino retractatio, a propósito, quer dizer justamente

“tratar de novo”, “rever”. E era isso que Agostinho propunha com a redação das suas Retratações. Não

pretendia, pois, “retratar-se” ou “desdizer” o que havia sido dito, como alguém pode supor. Mais sobre isso, ver:

TRAPÉ, 1988, p. 250-55. Nesse mesmo particular, BURNABY, John. The “Retractationes” of Saint Augustine:

self-criticism or apologia? In: VV. AA. Augustinus magister: Congrès International Augustinien (Paris, 21-24

Septembre 1954). – Communications. Paris: Études Augustiniennes, [s.d.]. p. 85. v. 1., afirma: “The Latin

retractare, both in classical and post-classical writing, commonly means to „re-consider‟ or „revise‟. The

meaning „withdraw‟ or „retract‟ is very rare: Facciolati quotes only two instances (Vergil and Trajan). But in

English from the I6th century onwards the verb „retract‟ and the noun „retractation‟ are used almost exclusively

in this latter sense”.

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mas que nós podemos chegar, aqui na terra, ao mesmo grau que eles, isto é,

conforme a medida da perfeição humana, tal como seja possível neste mundo. Mas

não se trata da total plenitude que esperamos numa paz absolutamente plena, e que

só possuiremos quando dissermos: Morte, onde está o teu aguilhão? (I Cor

15,56)104

.

Longe daquela felicidade (eudaimonía) ou imperturbabilidade (ataraxía) da alma (ou

espírito), ensinadas pelos filósofos epicureus e estóicos – que consignavam a posse de tais

“bens” a uma atitude filosófica perante o mundo –, Agostinho encontra nas bem-aventuranças

o remédio perfeito para as doenças da alma; mas, em muito, diferenciando-se do

tetraphármakon de Epicuro, por exemplo105

. Nesse sentido, pois,

104

Ret., I, 19,2. No De serm. Dom., II, 3,14, ao dizer que “esse gozo, em toda verdade e pureza, será levado à

perfeição na vida bem-aventurada”, isto é, na eternidade com Deus – o que, segundo entendemos, parece negar

qualquer “doutrina perfeccionista”, como já sucintamente mencionada. Em De civitate Dei, com efeito,

Agostinho diz: “Mas se pensarmos bem, ninguém, a não ser o homem feliz, vive como quer. E ninguém é feliz a

não ser o justo. Mas mesmo o justo não vive como quer, enquanto não chegar aonde não se possa morrer, nem

errar, nem sofrer e lhe esteja assegurado que será sempre assim. [...] Vida feliz se não se ama não se tem. Mas se

se ama e se tem a vida feliz, necessariamente que se ama, acima de tudo o mais, a vida feliz – porque é por causa

dela que se tem de amar tudo o que se ama. Mas se se ama a vida tanto quanto ela é digna de ser amada (pois não

é feliz quem não ama a vida feliz como ela é digna de ser amada), é impossível que quem assim a ama a não

deseje eterna. Portanto, a vida, quando for eterna, então é que será feliz”. (De Civ. Dei, XIII, 25). AGOSTINHO,

Santo. A cidade de Deus. 2. ed. Trad. de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. v. 2 (L.

IX-XV). 105

A filosofia dos epicureus e dos estóicos não era desconhecida de Agostinho. Na composição do De beata uita

(em 386), por exemplo, ele provavelmente teve por influência o De beata vita, de Sêneca (4 a.C.-65 d.C.),

escrito em 58 d.C. (cf. HUESCAR, Antonio Rodriguez. Prólogo. In: AGOSTINHO, Santo. De la vida feliz.

Trad. de Angel Herrera Bienes. Buenos Aires: Aguilar, [s.d.]. p. 23. [Col. Biblioteca de Iniciación Filosófica]). O

De beata vita de Sêneca (cf. SÉNECA. Sobre la felicidad. Versión y comentarios de Julían Marías. Madrid:

Revista de Ocidente, 1943. p. 60) começa com a frase: “Todos los hombres, hermano Galíon, quieren vivir

felices”. Havia na época de Agostinho, inclusive, a crença de que Sêneca teria se encontrado com o apóstolo

Paulo – quando este, em 61-62, esteve em Roma – e que, com ele, trocara algumas cartas; oito ao todo. “Trata-se

de uma lenda que teve longa vida, segundo a qual São Paulo [...] teria mantido relações com Sêneca; este teria

escrito nas Cartas a moral aprendida com o cristão”, diz CORDEIRO, Renata Maria Pereira. Introdução. In:

SÊNECA. As relações humanas: a amizade, os livros, a filosofia, o sábio e a atitude perante a morte. Trad.

Intro. e notas de Renata Maria Pereira Cordeiro. São Paulo: Landy, 2002. p. 32. Logo em seguida, Cordeiro

acrescente: “Na verdade, das oito [cartas] atribuídas a Sêneca, nenhuma poderia ter saído da sua mão: o estilo

não lembra em nada o que nós conhecemos. Ademais, por que teria Sêneca escrito a Paulo, admitindo-se que ele

pudesse conhecê-lo, ou até mesmo ter ouvido falar dele, o que é mais duvidoso ainda? Definitivamente, Sêneca

não é cristão, mas talvez os cristãos sejam „senequianos‟” (CORDEIRO, 2002, p. 32). Mais a respeito desse

improvável encontro de Sêneca com o apóstolo Paulo, ver CORDON, J. M. N; MARTINEZ, T. C. História da

filosofia: os filósofos, os textos: dos pré-socráticos à Idade Média. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. p. 70. v. 1. G. R.

Evans afirma que Agostinho admirava a Plotino como “um Platão redivivo”, ele “discutira a possibilidade de que

o mal seja nada (Enéadas I, VIII, 3)” (EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. Trad. de João Rezende Costa. São

Paulo: Paulus, 1995. p. 16). E “Epitecto, filósofo estóico que morreu cerca de 120 d.C., diz em seu Manual que

„assim como um alvo não é estabelecido para os homens não acertarem, assim também não existe a natureza do

mal no mundo‟, [e, ao investigar essa afirmação] Agostinho descobriu que, vista à luz da fé cristã, era uma idéia

com extraordinária capacidade de desdobramento” (EVANS, 1995, p. 16). Como se vê, algumas das mais

instigantes idéias de Agostinho não são tão novas. Em relação aos epicureus, eles, como fundamento doutrinário,

não aceitavam qualquer prazer, mas aqueles que se acomodavam à natureza. Aliás, evitam certos prazeres que,

mais adiante – isso estará muito presente, em Agostinho, na dualidade das beatitudes temporal e eterna –,

poderiam ocasionar em sofrimento: “Há ocasiões”, dizia Epicuro, “em que evitamos muitos prazeres, quando

deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis” (EPICURO, [s.d.]. p. 39). Com relação às doutrinas dos

epicureus e dos estóicos, ver: SCHOFIELD, Malcolm. Stoic ethics. In: INWOOD, Brad (org.). The Cambridge

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Que ensinamento melhor do que este o [do] Senhor, que é o médico das almas,

poderá dar àqueles que ele forma na arte de curar seus irmãos: suportar com

paciência as fraquezas daqueles a quem se deseja levar à salvação. Todo mal vem da

fragilidade do espírito. Assim, ninguém é mais inocente do que quem procura se

aperfeiçoar na virtude106

.

Ora, o que é esse “procurar aperfeiçoar-se na virtude” senão o esforço pela

santificação, santificação na verdade? É-o também, em sua natureza mais íntima, enquanto

busca, declaração de um encontro já realizado do eu com a graça – pois é ela, mediante as

virtudes do Espírito Santo, que impulsionam o que procura àquele que é procurado: Deus.

O Sermão da montanha, assim, constitui-se no remédio de Deus para os homens,

administrado pelo Seu médico, Cristo. “Aquele médico, a quem nós nos entregamos

totalmente e de quem temos as promessas para a vida presente e futura”107

. No estado natural

companion to the stoics. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. BRUN, Jean. O epicurismo. Trad. de

Rui Pacheco. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. 106

De serm. Dom., I, 19,57. A “inocência” tem o sentido de sapientia, uma vez que o temor a Deus é, conforme

dito no Ec 1,16, o princípio da sabedoria. “A sabedoria! Eis a palavra que para s. Agostinho resume toda a

doutrina da perfeição. Freqüentemente, ele identifica a sabedoria com a própria contemplação. (Ipsa sapientia id

est contemplatio veritatis, pacificans totum hominem.) [...] O fim de todos os esses esforços são as delícias de

magnífica e perfeita sabedoria. Refere-se à luminosa sapientia e à laboriosa iustitia (Contra Faustum, 22,

52.53)” (OLIVEIRA, 1992, p. 184). A idéia de filosofia, em Agostinho, conforme Giovanni Catapano (cf.

CATAPANO, Giovanni. L’ideia di filosofia in Agostino. Padova: Il Poligrafo, 2000. [Subsidia Mediaevalia

Patavina]), repousa na sapientia que se volta para Deus – razão a que se presta todo o filosofar (cf. De Trin.,

XIV, 1,1-3; 19,26). 107

De serm. Dom., II, 17,58; ver ainda, para o mesmo sentido, I, 19, 57. A doutrina de Cristo como médico

(Christus medicus) foi objeto de um artigo de Rudolph Arbesmann, intitulado: “Christ the Medicus humillis in

St. Augustine”. No referido artigo, o autor menciona a constante referência, por parte de Agostinho, nos seus

sermões, ao Cristo médico (cf. ARBESMANN, Rudolph. Christ the Medicus humillis in St. Augustine. In: VV.

AA. Augustinus magister: Congrès International Augustinien [Paris, 21-24 Septembre 1954] –

Communications. Paris: Études Augustiniennes, [s.d.]. p. 623. v. 2). Ademais, diz ele, “essa declaração [de

Cristo como médico, em Agostinho] é repetida por J. Carcopino, H. Leclercq, e L. Olschcki, todos [eles] se

referindo aos textos coletados por Monceaux. Essa última coleção também está consideravelmente ampliada por

J. Mohan e A. Koch. Finalmente, na lista dos textos pertinentes, damos em Th LL, s. v. [sic] medicina e medicus,

Santo Agostinho facilmente ocupa o primeiro lugar entre aqueles escritores patrísticos do Ocidente, que fizeram

uso da figura do Christus medicus” (ARBESMANN, 1954, p. 623; tradução nossa). A presente consideração tem

a finalidade de mostrar a relevância dessa doutrina que, dado o objetivo imediato do nosso trabalho, não poderá

ser, nele, desenvolvida. Para tanto, além do artigo de Arbesman, supracitado, ver COURTÈS, Jean. Saint

Augustin et la médicine. In: VV. AA. Augustinus magister: Congrès International Augustinien [Paris, 21-24

Septembre 1954] – Communications. Paris: Études Augustiniennes, [s.d.]. p. 43-51. v. 1. No apócrifo Atos de

Pedro e dos doze apóstolos, (encontrado no códice VI de Nag Hammadi), provavelmente escrito na primeira

metade do século IV (cf. MORESCHINI, Cláudio; NORELLI, Enrico. História da literatura cristã Antiga,

grega e latina: do Concílio de Nicéia ao início da Idade Média. Trad. de Marcos Bagno. São Paulo: Edições

Loyola, 2000. p. 282. v. 2/1), encontra-se o relato feito na primeira pessoa por Pedro. Os apóstolos, no tal relato,

após a crucificação do Senhor (o início do texto perdeu-se), embarcam em uma viagem missionária que vai dar

numa ilha com uma cidade que se chama, provavelmente (há lacunas no texto original): “Sê fundada na

perseverança”. Aí eles encontram um mercador de nome Lithargoel (explicado no texto como “Pedra de

gazela”), vendedor de pérolas. Os ricos o desprezam, acreditando que ele não tem pérolas verdadeiras; os pobres

o procuram para vê-las. E ele promete dar-lhas gratuitamente a quem chegar à sua cidade. Mais adiante,

conforme o relato, Pedro e os apóstolos têm uma visão da cidade (chamada “Nove Portas”), “de onde vêem sair

Lithargoel sob a forma de um médico, que se revela como Jesus. Ele lhes entrega duas caixas de remédios, uma

grande e uma pequena, e encarrega-os de voltar à cidade terrena para instruir os fiéis, em particular os pobres

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do homem – que é o estado de caído –, todos estão doentes e, por causa dessa doença, que é o

pecado, todos estão destinados à morte. Mas a obediência à receita de Cristo, conforme

enumeradas no Sermão da montanha e, em síntese, nas bem-aventuranças, traz a cura e a vida

para além da vida: vida verdadeira, na eternidade com Deus. A fé das bem-aventuranças é,

por todos os meios, a fé da ação, e a ação da fé108

. Há, nessa dualidade, fides et praxis, toda

uma metodologia que nos lembra, evidentemente, a teoria platônica – ou neoplatônica –, e

isso perpassa toda a obra, seja falando da fides e aquilo que dela é objeto, seja falando da

praxis, e aquilo que, medido por sua intenção, se relaciona à verdade e, assim, liga-se à fides,

retornando ao seu grau mais sublime109

. Essa praxis da fides faz o homem reconhecer no

Outro o que, nele e no Outro, há de Deus – revelação de Deus: o que, em Agostinho, nos

referimos como antropoteologia. O resultado é a fraternidade que elimina as diferenças sociais

e culturais110

. Se essa sociedade perfeita, anunciada pelo Senhor no Sermão da montanha, é

possível ou não, isso não entra, aqui, em questão; mas o padrão moral que é exigido pelo

Senhor não é dado somente para ser dado, como se fosse apenas mais um belo discurso.

Parece que, com Agostinho (também com Lutero), temos de reconhecer que esse padrão serve

para, acima de tudo, nos fazer dependentes da graça111

. “Cristo fala aqui [no Sermão] somente

(aos quais darão a coisa mais preciosa, o nome do Senhor), evitando os ricos. Os apóstolos aceitam a missão,

prosternam-se, e o Senhor se afasta” (MORESCHINI; NORELLI, 200, p. 281). Como se vê, a figura do Cristo

como médico já era, antes de Agostinho, bastante difundida. 108

“Pois”, diz Agostinho, “não se pode dar solidez ao que se ouve e entende senão ao se pôr em prática. E sendo

Cristo a rocha, como apregoam muitos testemunhos das Escrituras (ICor 10,4), edificar sobre Cristo é pôr em

prática seus ensinamentos” (De serm. Dom., II, 25,87). 109

Uma relação das vezes em que Agostinho emprega esses dualismos metodológicos no De Sermone, seria,

aqui, demasiado grande e, também, demasiado desnecessário. Como exemplo, mencionamos o sentido que ele dá

para o céu em oposição à terra – ou mundo material e mundo espiritual – (cf. De serm. Dom., I, 11,30); lei e

graça – ou velha e nova justiça – (De serm. Dom., I, 9,21); Deus (Perfeito/Modelo) e homem

(imperfeito/imagem, cópia ou simulacro do Modelo) (I, 21,69); mão direita e mão esquerda – símbolos para o

melhor e o pior, ou o certo e o errado (De serm. Dom., I, 13,37); o temporal e o eterno (De serm. Dom., II,

17,56); a aparência exterior e o olho interior (De serm. Dom., II, 25,81); o todo e a parte (De serm. Dom., II,

16,55); a ação (= vida bem-aventurada) e o conhecimento (De serm. Dom., II, 21,72), etc. 110

Cf. De serm. Dom., I, 15,41. Mais adiante, Agostinho diz: “Nessa mesma ordem de idéias, são admoestados

os homens ricos e até mesmo os de pobre condição, conforme o mundo em que, ao se fazerem cristãos, não se

enchem de orgulho diante dos pobres de origem humilde, porque é justamente em companhia deles que haverão

de dizer a Deus „Nosso Pai‟. E não poderão dizê-lo, verdadeira e piedosamente, a não ser que se reconheçam

como irmãos” (De serm. Dom., II, 4,16). Antes, em De serm. Dom., I, 19, 59, ele, falando sobre o trato que o

senhor deveria ter para com os seus escravos, diz: “Porque cristão não deve equiparar um escravo a um cavalo

ou qualquer soma de dinheiro, inda que possa ser pago menos por um escravo do que por um cavalo”. Aí,

Agostinho não trata sobre a legitimidade da escravidão, mas do tratamento cristão que deve ser dado ao escravo. 111

“Como vimos”, diz Lutero, “nesse sermão Cristo nada diz a respeito de como nos tornamos cristãos, e, sim,

fala somente das obras que ninguém pode realizar e dos frutos que ninguém pode produzir, senão aquele que já é

cristão e se encontra na graça. Isso o mostram as referências à pobreza, à miséria, à perseguição que haverão de

sofrer pelo fato de serem cristãos e por terem o Reino dos céus, etc.” (OSel 9, 277, 10). E Stott, em relação ao

comentário de Lutero, diz: “Todo o Sermão realmente pressupõe uma aceitação do evangelho (como Crisóstomo

e Agostinho o entenderam), uma experiência de conversão e de novo nascimento, e a habitação do Espírito

Santo. Descreve as pessoas nascidas de novo que os cristãos são (ou deveriam ser)” (STOTT, 1989, p. 26).

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aos seus discípulos”112

, diz Lutero. E isso, assim dito, tem, sim, a marca do dualismo que

separa o homem de Deus do homem mundano. “Não se trata de um dualismo ético, mas de

uma diferenciação relacional e contextual”, diz Silfredo B. Dalferth, que completa:

Os crentes vivem a fé relacionalmente, isto é, dentro do contexto, como “Christen in

relatione”. A ética pública exige parâmetros públicos. Ainda que não possa ser

vivido coletivamente na prática, o Sermão da Montanha é a hermenêutica da ação

cristã, mesmo quando não é possível vivê-la numa continuidade direta, mas, sim,

através da institucionalidade necessária da sociedade. Do ponto de vista histórico,

Lutero combate duas frentes: o dualismo da ética católica e a falta de dualidade dos

entusiastas que transformaram o Evangelho em lei para a sociedade, resultando,

porém, com justificativas fundamentalistas de textos bíblicos, numa ordem contrária

ao proposto pelo Sermão da Montanha. Na verdade, a chave para a interpretação

correta do Sermão da Montanha é o critério da relação contextual, isto é, a pessoa

cristã deve se perguntar se está agindo de forma “privada”, numa relação

interpessoal, ou, se está interagindo pública e institucionalmente. Neste ponto, a

distinção entre ser humano “interior” e “exterior” possibilita a continuidade

antropológica e a ética diferenciada, sem se diluir em dualismo113

.

Essa posição ético-moral, tipicamente reformada (e luterana) e, ainda assim, repleta

das “marcas de Agostinho”, faz oposição à teologia anterior, nesse particular. Principalmente

na Escolástica, prevalecia a idéia de que a ética cristã, conforme o modelo do Sermão da

montanha, era inviável. Assim, a vasta produção teológica do período, grosso modo, tratava

de apontar uma ética da sociedade comum e uma ética da Igreja, o corpus christianum. Não

era possível, na sociedade, viver a ética do Reino, porque tais valores, distintos, por mais que

se margeassem, entrechocavam-se114

. Na Reforma, defendeu-se que o modelo do Sermão da

montanha não dava cabimento a tal dualismo – não era possível sustentar teologicamente uma

“Doutrina dos dois Reinos”, por exemplo –, que foi uma consequência da interpretação literal

do Sermão da montanha, e, também, da popularização de obras como A hierarquia celeste, do

Pseudo-Dionísio, o Areopagita. Seja como for, a idéia de haver cristãos comuns e cristãos

especiais foi rejeitada e combatida por toda a Reforma – isto é, por todos os reformadores

sérios. A única divisão que lhes pareceu legítima é que considera os cidadãos da Cidade

celeste e os da cidade terrena (que aparece, às vezes, como cidade do diabo), conforme o

modelo natural da doutrina cristã mais antiga, e agostiniana. No Sermão, portanto, quando o

112

OSel 9, 206, 20. 113

DALFERTH, Silfredo B. Introdução. In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal;

Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2005. p. 18-9. v. 9. 114

“A escolástica distinguia entre duas éticas: de um lado, havia a ética da sociedade como um todo, uma espécie

de „concessão‟ aos cidadãos, já que seria impossível que todas as pessoas vivessem conforme o Sermão da

Montanha; de outro lado, havia o „estado‟ de cristãos especiais, destinado a viver a ética proposta por Jesus no

Sermão da Montanha de forma literal, o que tinha como conseqüência a vivência da fé fora da sociedade.”

(DALFERTH, 2005, p. 18).

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118

Cristo fala, fala aos que já foram tocados pela graça, como se lhes ensinasse uma espécie de

catecismo primitivo, resumido, simplificado115

. A sua compreensão, logo, não podia deixar de

considerar lacunas e, assim, considerar uma interpretação que não fosse taxativa, literal, como

na parte em que o Cristo diz: “Se teu olho direito te escandaliza, arranca-o e atira-o para longe

de ti. É melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no

inferno. E se tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira para longe de ti...116

” “É preciso

que entendas do que Cristo está falando e quem são as pessoas às quais ele prega”, adverte

Lutero. “Ele fala do ser espiritual e da vida espiritual e prega a seus cristãos como eles se

devem comportar perante Deus e no mundo, que o coração esteja preso em Deus e não se

ocupe com o regime secular nem com qualquer autoridade, poder, punição, ira e vingança117

.”

É esse ser espiritual, o cristão, que está não somente apto a ouvir (disposto) como a cumprir

os preceitos do Senhor, a quem imita no cumprimento (não da Lei, que o Cristo cumpriu), na

ação – que dar-se na vida, por obra da graça. “Sto. Agostinho”, diz Lutero, “interpreta a

palavra „cumprir‟ de duas maneiras. Conforme ele, „cumprir a lei‟ significa, em primeiro

lugar, complementar suas carências. Em segundo lugar, cumpri-la com obras e com a vida118

.”

A natureza do Sermão é, antes de tudo, prática. Também Dietrich Bonhoeffer notou essa

natureza quando ao final do enorme capítulo: “O sermão da montanha”, no seu livro

Nachfolge (Discipulado, 1937), escreveu:

Acabamos de ouvir o Sermão da Montanha, talvez até mesmo o tenhamos

compreendido. Quem, porém, o ouviu de verdade? No final, Jesus responde a essa

questão. Jesus não despede os ouvintes para que vão e façam do Sermão da

Montanha o que quisessem, o que lhes agradasse, para que dele escolham o que lhes

parece de valor para a vida, para que dele escolham o que lhes parece de valor para a

vida, para experimentarem como esses ensinamentos se comportam em relação à

realidade. [...] Do ponto de vista humano, há inúmeras possibilidades de

compreender e interpretar o Sermão da Montanha. Jesus, porém, conhece apenas

uma: simplesmente ir e obedecer. Não interpretar, aplicar, mas fazer, obedecer.

115

“O professor Jeremias”, diz Stott, “que se refere à primeira explicação („a teoria do ideal impossível‟),

chamando-a de „ortodoxia luterana‟, deixando de mencionar que o próprio Lutero também deu esta segunda

explicação, sugere que o Sermão foi usado como „um catecismo cristão primitivo‟ e, portanto, pressupõe que os

ouvintes já eram cristãos: „Foi precedido pela proclamação do evangelho; e foi precedido pela conversão, pelo

poder das Boas Novas.‟ Assim, o Sermão „foi dirigido a homens que já tinham recebido o perdão, que

encontraram a pérola de grande preço [...]. Neste sentido, então, „o Sermão do Monte não é Lei, mas Evangelho‟.

Para tornar clara a diferença entre ambos, ele prossegue, é preciso fugir de termos tais como „moralidade cristã‟,

falando, outrossim, em „fé vivida‟, pois „fica claramente explícito que o dom de Deus precede suas exigências‟.”

(STOTT, 1989, p. 26-7). 116

Mt 5, 29-30. (ECA). 117

OSel 9, 111, 5. 118

OSel 9, 82, 20.

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119

Assim teremos ouvido as palavras de Jesus. Mas também não falar da prática como

de uma possibilidade ideal, e, sim, começar realmente a praticar119

.

Agostinho, certamente, não discordaria dessa conclusão prático-realista para o

Sermão do Senhor sobre o monte. E nós, menos ainda. O que não nos impede de levantar

algumas questões não tão simples. Uma delas é sobre o lugar do Sermão no “código ético” do

Reino de Deus – posição antes dada aos dez mandamentos.

2.1.3. O Sermão da montanha: código ético do Reino?

Ernst Troeltsch (1865-1923) é um dos autores mais respeitados e conhecidos a

dissertar sobre o tema. Faz isso ao tratar sobre o ascetismo, a radicalidade das exigências do

Senhor sobre o monte e a aceitação literal de tais preceitos pelas seitas, em desarmonia com o

ensino da Igreja Primitiva e do próprio Agostinho – que é assim como um modelo da

Patrística e, daí por diante, de quase toda a Idade Média. Nas palavras de Troeltsch:

O ascetismo da Igreja é um método de adquirir virtude e o ápice da realização no

campo da religião; está ligado basicamente à repressão dos sentidos, ou então se

manifesta através de realizações especiais de caráter peculiar; não obstante, ele

pressupõe a vida do mundo como pano de fundo e uma moralidade média, que com

ela contrasta, a qual mantém relações relativamente boas com o mundo. Assim, o

ascetismo eclesiástico está ligado ao ascetismo dos cultos redencionistas da

antiguidade tardia e ao distanciamento necessário à vida contemplativa; seja como

for, está associado a um dualismo moral. O ascetismo das seitas, por outro lado, é

exclusivamente o princípio do distanciamento do mundo puro e simples, e se

manifesta na recusa a apelar para a lei, a jurar num tribunal de justiça, a possuir

propriedades, a exercer domínio sobre outrem e a participar de atividades bélicas. As

seitas têm por ideal o Sermão da Montanha; elas enfatizam a oposição simples,

porém radical, entre o Reino de Deus e todos os interesses e instituições seculares120

.

Agostinho foi o primeiro dos primeiros a referir-se aos capítulos 5, 6 e 7 do

Evangelho segundo são Mateus como “o Sermão da montanha”121

– embora a discussão

119

BONHOEFFER, Dietrich. O sermão da montanha. In: Discipulado. 3. ed. Trad. de Ilson Kayser. São

Leopoldo: Sinodal, 1980. p. 119. 120

TROELTSCH, Ernst. Igreja e seitas. In: Religião e sociedade. Rio de Janeiro, ano 14, n. 3. p. 136, 1987.

Troeltsch ainda acrescenta que “todas estas diferenças concretas entre a Igreja da Baixa Idade Média e as seitas

devem provir, de algum modo, de estrutura interior deste edifício sociológico dúplice. Assim, se os dois tipos

afirmam, e com razão, estarem ligados à Igreja Primitiva, está claro que a causa última deste desenvolvimento

dualista deve residir no seio do próprio cristianismo primitivo” (TROELTSCH, 1987, p. 137). Aí aparece, já sem

disfarce, a estreita ligação entre platonismo e doutrina cristã antiga. 121

Cf. STOTT, 1989, p. 11. Stott, na “Introdução”, trata sobre o problema que tem sido constantemente levado

pelas escolas hermenêuticas acerca da originalidade do Sermão da montanha: se ele realmente, na sua estrutura

mais primitiva, foi um sermão pregado pelo Senhor sobre o monte (ou sobre uma planície sobre os montes, como

diz Lucas); se é possível que o mesmo seja obedecido, etc. Temas que, embora sejam importantes, não dizem

respeito à natureza do nosso trabalho. (cf. STOTT, 1989, p. 1-17).

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120

teológica da modernidade questione se o mesmo foi realmente um sermão e se, havendo sido,

foi realmente pregado sobre um monte –, não entrando no mérito estrito da possibilidade ou

impossibilidade de o mesmo ser seguido à risca. Privilegiamos aqui o conteúdo da obra de

Agostinho, sem quaisquer desvios para os temas que extrapolassem o escopo da mesma –

como o do exemplo acima. E fizemos isso com a intenção de não irmos além do que o autor

do De sermone propusera em sua intenção primeira.

A arquitetura hermenêutico-numérico-setenária que Agostinho deu ao De sermone,

passando das sete bem-aventuranças às sete virtudes do Espírito Santo e, por fim, às sete

petições do Pai-nosso – que elevam o imperfeito pedinte a contemplar, com o seu olho

interior, o Perfeito122

–, estabeleceu uma estrutura que foi seguida por mestres espirituais a

altura de santo Anselmo, Hugo de são Vitor, são Bernardo, são Boaventura e são Tomás de

Aquino. Esse último, na Suma teológica, introduziu boa parte da obra de Agostinho, sempre

reafirmando-a e aprofundando-a. Comentaristas contemporâneos, sérios, não negligenciam

esse passo inicial dado, sob muitos limites, por Agostinho – é que Agostinho, mais que

acadêmico, no De sermone, procurou ser pastoral. Outros comentadores, ao longo dos anos,

não por falta de competência, mas por reconhecimento ao gênio de Agostinho, mantiveram as

mesmas hermenêuticas e, quando muito, aprofundaram este ou aquele outro ponto por ele

negligenciado, dada a intencionalidade primeira da redação de sua obra e sua consequente

limitação.

Embora o De sermone seja uma obra de juventude e tenha uma natureza catequético-

pastoral – ele nasce da necessidade prática de instrução espiritual aos fiéis de Hipona, e não

do otium filosófico ou das curiosidades teológicas –, já se encontram aí a investigação

psicológica da alma – que dá fundamentos à interioridade e à “intencionalidade” (ou

autoconsciência) –, a intersubjetividade, a doutrina da graça, da contemplação123

e da moral124

122

De serm. Dom., II, 11,38. Já no final da obra, Agostinho volta a mencionar a necessidade do olho interior

para a contemplação de Deus: “[...] como é necessário ter o olho puro e simples para encontrar o caminho da

sabedoria [que conduz ao temor do Senhor], em volta do qual os maus e perversos desenvolvem tantas seduções

e erros! Escapar às suas armadilhas, chegar a uma paz segura e à morada imutável da sabedoria!” (De serm.

Dom., II, 25,86). 123

Cf. TRAPÉ, 1988, p. 271. “O caminho ascensional apontado pelas bem-aventuranças parte da pobreza de

espírito, que para s. Agostinho significa humildade; até a paz, que traz a ordem interior e a reconciliação do

homem todo, consigo mesmo e com Deus. Os dons do Espírito Santo que sustentam essa caminhada vão do

temor de Deus – começo da sabedoria – até a mesma sabedoria, a qual coincide com a contemplação e possui

suas prerrogativas” (OLIVEIRA, 1992, p. 185). 124

Nesse aspecto, em especial, ver: RAMOS, Guido Soaje. La moral agustiniana. Porto Alegre: Universidade

do Rio Grande do Sul / Instituto de Filosofia, 1960. (Col. Ensaios e Conferências, 8).

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121

que, na contracultura de um mundo hostil à Verdade evangélica, “descreve como ficam a vida

e a comunidade humana quando se colocam sob o governo da graça de Deus”125

.

Jesus, como um novo Moisés, sobe ao monte para expor os preceitos da moral do

Reino de Deus, como fizera Moisés ao subir no Sinai126

. A moral (ou a ética) exposta por

Jesus é reacionária, mas sem qualquer violência – ou talvez possa ser vista como a maior e

melhor de todas as violências: a violência do amor. Uma moral que, na sua exigência,

transcende à ultra-observância da Lei por parte dos fariseus e escribas. Pois, como diz Stott,

“certamente Jesus expõe a moral cristã à casuística ética dos escribas (5:21-48) e a devoção

cristã à piedade hipócrita dos fariseus (6:1-18)”127

. O Hiponense não negligenciou esse ponto

de confronto entre a velha e a nova justiça, ancorando nesta as normas legais a serem

observadas com vista à direção dos costumes.

A direção dos costumes (a atitude de fé e a fé da ação), por fim, repousa na regra de

ouro, conforme dita pelo Senhor de modo positivo: “Tudo aquilo que quereis [que os homens]

vos façam, fazei-o vós a eles”128

. Portanto, “prescrever a alguém de „fazer o que quer que lhe

façam‟ equivale a lhe prescrever de amar a Deus e ao próximo. [...] [isso resume] „toda a Lei e

125

STOTT, 1989, p. 5. Em toda a sua obra, Agostinho citará 355 vezes grandes passagens do Pai-nosso e, das

bem-aventuranças, conforme contadas, 330 vezes. 126

“Parece (conforme muitos comentaristas antigos e modernos têm sugerido) que ele deliberadamente subiu ao

monte para ensinar, a fim de traçar um paralelo entre Moisés (que recebeu a lei no Monte Sinai) e ele próprio

(que então explicou aos seus discípulos as conseqüências dessa lei, no chamado „Monte das Bem-aventuranças‟,

local tradicional do Sermão, junto às praias ao norte do Lago da Galiléia). Pois, embora Jesus fosse maior do que

Moisés, e embora a sua mensagem fosse mais evangelho do que lei, ele também escolheu doze apóstolos para

formar o núcleo de um novo Israel, em correspondência aos patriarcas e tribos da antiguidade. Ele também

proclamou ser Mestre e Senhor, deu a sua própria interpretação autorizada da lei de Moisés, enunciou

mandamentos e esperou obediência” (STOTT, 1989, p. 7). Assim, “embora Mateus não compare explicitamente

Jesus a Moisés, e não possamos reivindicar mais do que isso no Sermão, „a essência da Nova Lei, o Novo Sinai,

o Novo Moisés estão presentes” (STOTT, 1989, p. 8). 127

STOTT, 1989, p. 6. 128

A citação utilizada por Agostinho (provavelmente da Vulgata) é de Mt 7, 12. Cf. De serm. Dom., II, 22,74-75.

No De beat. vit., IV, 32, o Hiponense já notara que: “„Moderação‟ deriva de „medida‟ [modestia utique dicta est

a modo] e „temperança‟ de „proporção‟ [temperantia a temperie]. Existe uma justa medida ou proporção onde

nada está a mais ou a menos. Essa é a plenitude, que apresentamos contrária a indigência e que é muito melhor

do que se disséssemos „abundância‟ [abundantiam]”. A abundância da fé, assim, resultaria na abundância das

boas ações da fé, e vice-versa, num equilíbrio permanente: essa é a proporção, a justa medida. É por esse

caminho que a vontade, por exemplo, se fixa na regra da virtude que, por necessidade e conseqüência, liga-se à

divina Sabedoria: “A sua vontade”, a vontade do sábio (i.e. do cristão), “está posta no que é fixo [a verdade e a

felicidade que não podem ser perdidas], isto é, tudo aquilo que faz é conforme [na forma de] à regra da virtude e

à lei divina da sabedoria, que de modo algum lhe podem ser arrancadas [quae nullo ab eo pacto eripi possunt]”

(De beat. vit., IV, 25). A fórmula da medida quantitativa Eu/Outro, no entanto, já é conhecida de muito, como no

capítulo IV do Livro das explicações e das respostas em vinte capítulos, de Confúcio (c. 551–479 a.C.), onde

lemos: “O Mestre disse: „Minha Via é costurada com um só fio.‟ Tseng tzeu [discípulo de Confúcio] respondeu:

„Com certeza.‟ Quando o Mestre se retirou, seus discípulos perguntaram o que ele quisera dizer. Tseng tzeu

respondeu: „A Via do nosso Mestre consiste na lealdade e no amor pelo outro como por si mesmo‟.”

(CONFÚCIO. Livro das explicações e das respostas em vinte capítulos. Trad. de Renata Maria Pereira

Cordeiro. São Paulo: Landy, 2001. p. 37. [CONFÚCIO. Livro das explicações, IV, 15]).

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122

os profetas‟”129

. A recompensa da dádiva desprendida – sem ser alimentada por um coração

duplo – é que, dando-se ao necessitado, empresta-se a Deus. “Todo homem que faz ato de

benevolência dá emprestado a Deus”130

. Isso não equivale a dizer que Deus, sob qualquer

hipótese, torne-se devedor do homem; mas ele, que ama a justiça, sabe recompensar àquele

que, na verdade, apega-se às coisas do céu – onde está o seu verdadeiro tesouro – e não às da

terra, das quais se serve na sua curta existência temporal. Em tudo isto: no dar esmolas, no

agir em função do Outro, et cetera, está incutida a boa/correta intenção, requerida mais que a

ação pura e simples. Não é um ato mecânico de um aprendizado social, um hábito viciado,

mecânico. Por isso que o Senhor “[...] não mandou [apenas] dar esmolas, mas ensinou com

que espírito havemos de fazê-lo. Isso porque ele quer a pureza do coração. E uma só coisa é

capaz de dar essa pureza: a intenção única e simples dirigida para a vida eterna pelo puro

amor da sabedoria”131

.

O puro amor da sabedoria – que não busca lucros temporais – é aquilo que

caracteriza a verdadeira filosofia, o labor do verdadeiro filósofo. Nessa acepção, o cristão é o

filósofo por excelência e ontonomásia132

. Observar os costumes do Reino de Deus, assim,

significa que, mais do que buscar a alegria da satisfação do eu, procura-se a alegria da

satisfação eu com Outro, que é, por fim, a satisfação de Deus133

. E é somente assim se pode

129

De serm. Dom., II, 22,75. Cf. I, 21,62-72. O tema do “amor ao próximo” como cumprimento da Lei, ou regra

de ouro, reincide em muitas partes da obra, como se pode ver, pro exemplo, em I, 20, 67; aparece também nas

Conf., 1, 18,29. A regra, no entanto, é bem anteior ao advento do cristianismo, estando presente, de modo

negativo, em Isócrates (c. 436–338 a.C. [Nícoles, 61]): “Não faças aos outros aquilo que te enfurece quando feito

por putos”. No Velho Testamento, em Tobias 4, 15. Na literatura latina, encontramos a mesma sentença regra em

Hélio Lamprídio (Vida de Alexandre Severo, 51, 15). Também na Didaqué (1, 2) e em Irineu (Adversus aereses,

3, 12,14). Na pena de Agostinho, a sentença já é herança cristã, não importando a sua fonte, porque a moral,

naquilo que reflete de bondade e verdade, reflete a sua fonte: Deus. 130

De serm. Dom., I, 20,68. Ou, como é mais conhecido nos meios populares: “Quem dá aos pobres, empresta a

Deus”. Para uma leitura do Sermão sob um aspecto social (o “dar aos pobres”), ver: GORGULHO, Frei Gilberto

S.; ANDERSON, Ana Flora. A justiça dos pobres: Mateus. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1981. 131

De serm. Dom., II, 3,11. Com relação à intencionalidade, somente no Livro II do De serm. Dom., ver: II,

3,11-13; II, 12,43; II, 14,47; II, 13,46; II, 15,49; II, 18,59; II, 21,72; II, 22,74-76; II, 24,80; II, 25,83-84. 132

Isso fica claro no De beat. vit., quando Agostinho faz a verdade – que é buscada pelos filósofos – esbarrar em

Cristo. Daí, ao dizer: “Quem é o Filho de Deus? Já foi dito: „é a verdade‟. Quem é que não tem pai, senão a

suprema medida [i.e., Deus]? Quem, portanto, chegar à suprema medida pela verdade, é feliz. Isso é o que

significa para a alma possuir Deus, ou seja, gozar de Deus” (De beat. vit., IV, 34). 133

A relação com o outro, sempre presente na moral do Sermão da montanha – e também em todas as obras de

Agostinho –, é o tema de abertura e elevação à relação com Deus. Carvalho, por exemplo, na introdução que faz

para o Diálogo sobre a felicidade, diz: “A questão fundamental que este diálogo [...] vi levantar, embora

timidamente, é certo, tem, na sua simplicidade, a sedução e a vertigem do abismo que nos assalta; que é o amor,

se não existe o outro? O „outro‟ que se reconhece, primeiro, na „viagem‟ que inaugura a obra e, depois, na

dimensão horizontal do uso, o cultivo da amizade dos happy few de Cassicíaco. O „outro‟, enfim, reconhecido

como absoluta dádiva que na ordenação ou providência divinas se manifesta; o „outro‟, que a dimensão

relacionalmente transcendental, trinitária, faz inscrever no próprio ser” (CARVALHO, [s.d.], p. 11).

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123

ser, realmente, feliz. E só é feliz quem é sábio, verdadeiramente sábio134

. A obediência desse

preceito chave contempla todos os demais e, plenamente realizado, alcança o que é possível

ser alcançado da perfeição – ideal inatingível que é, no entanto, ideal. Pode-se dizer, com as

devidas observações, que o Sermão é, realmente, como também são os Dez mandamentos na

Antiga Aliança, um código ético do Reino de Deus, para a Nova Aliança – “constituição”

ético-espiritual para a observância daqueles que estão destinados à Cidade celeste.

2.2. A teologia moral de Agostinho no Livro XV da De civitate Dei

Agora podemos analisar o pensamento do Bispo de Hipona relativo à moral em De

civitate Dei, particularmente aquele que está presente nos seis primeiros capítulos do Livro

XV. Entendemos que, nesses capítulos, encontra-se muito bem representada, mesmo que de

modo sucinto, toda a problemática abordada na obra do autor em questão, ou seja: o

dicotômico conflito entre o bem e o mal, onipresente nas narrativas de natureza histórico-

filosófico-teológica que marcam o livro – retomando a tradição hermenêutica de Tertuliano e

Orígenes, além das obras dos apóstolos são Paulo e são João – e consagram o seu autor como

iniciador da Filosofia da História135

.

134

Isso já ficará bastante claro em De beat. vit., II, 1, onde Agostinho diz: “Se é evidente [...] que não é feliz

quem não tem o que quer, e que ninguém procura aquilo que não quer encontrar, uma vez que eles [os

Acadêmicos] procuram a verdade constantemente, então querem encontrar; eles querem, na realidade, descobrir

a verdade. Mas não a encontram e por isso também não são felizes. Ora, ninguém é sábio se não for feliz e,

portanto, o Acadêmico não é sábio”. Mais adiante, em De beat. vit., II, 16: “Tu [Licêncio], afinal, que optaste

por suspender a tua opinião por causa da ausência de uma autoridade, que afirmações não aprovas? Quem não

tem o que quer não pode ser feliz? Ou negas que os Acadêmicos querem encontrar a verdade que tão

ardentemente procuram? Ou julgas que é possível ser sábio sem ser feliz?” Para o Hiponense, como para os

sábios da Antiguidade, a sabedoria está intimamente ligada à felicidade. Nas bem-aventuranças isso aparece de

modo muito explícito quando ele, citando o texto de Eclesiástico 1, 16, diz que “o temor do Senhor é o princípio

da sabedoria [ou: “A plenitude da sabedoria é o temor do Senhor”, BJ]”, unindo tal referência à primeira e última

das bem-aventuranças, elevando-as ao grau de perfeição (cf. De serm. Dom., I, 4,11; I, 3,10). 135

De fato, como diz István Mészáros: “Santo Agostinho [é o] autor da maior filosofia da história de inspiração

religiosa” (MÉSZÁROS, István. A educação para além do Capital. Trad. de Paulo César Castanheira e Sérgio

Lessa. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. p. 60). As interpretações filosóficas para o conceito de História

costumam apresentá-la como: 1) decadência (próprio da Antiguidade, em Hesíodo, por exemplo); 2) um ciclo

(eterno retorno do mesmo); 3) reino do acaso; 4) progresso e como ordem providencial. “O primeiro a formular

claramente o conceito de plano providencial foi S. Agostinho, que viu na História a luta entre a cidade celeste e a

cidade terrena: luta destinada a acabar com o triunfo da cidade celeste. Para esse triunfo, segundo S. Agostinho,

Deus faz que também contribuam o mal e a má vontade (De civ. Dei, XI, 17). Os três períodos em que, para S.

Agostinho, a História se divide não são mais que o desenvolvimento do plano providencial. No primeiro, os

homens vivem sem leis e ainda há luta contra os bens do mundo. No segundo, os homens vivem sob a lei e por

isso combatem contra o mundo, mas são vencidos. O terceiro período é o tempo da graça, em que os homens

combatem e vencem (De civ. Dei, XIX, 15-26). No séc. XII, a profecia de Gioacchino da Fiore parte do mesmo

conceito de História e tem como modelo a divisão das idades feitas por S. Agostinho. Gioacchino acredita que,

depois da idade do Pai, que é a da lei, e da idade do Filho, que é a do Evangelho, virá a idade do Espírito, que é a

da Graça, da inteligência plena da verdade divina [Concordia novi e veteris testamento, V, 84,112]”

(ABBAGNANO, 1998, p. 505). Impossível não notar, na divisão de cada idade, de cada plano providencial, por

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Quanto à interpretação das Escrituras, como já vimos, Agostinho recorre

constantemente à alegoria, sendo, noutras ocasiões, literalista; e faz isso onde o texto parece

oferecer um relato puramente alegórico. Ele compara, por exemplo, a narrativa da morte de

Abel pelas mãos do seu irmão Caim com a morte de Remo pelas mãos de Rômulo, na parte

em que disserta sobre a fundação da cidade de Roma, não mencionando um ou outro fato

como mitológico, mas ambos como históricos. Tais limitações, sem dúvida, devem ser

consideradas no escopo da obra; mas devemos evitar, sobretudo, os juízos anacrônicos. Conta

muitíssimo, no entanto, a exaustiva recorrência que o Hiponense faz aos fatos históricos,

aliando-os à história bíblica, e vice-versa – um exemplo de perspicácia e genialidade até então

não demonstrados na história escrita; e tudo feito com o fito de oferecer uma resposta (ou

respostas) que elucidasse e satisfizesse, à luz da razão, da história secular e da fé cristã, às

perguntas que eram lançadas como acusação à Igreja entre a Antiguidade Clássica e a Idade

Média.

Trabalhando dentro de uma dualidade metodológica que divide o mundo entre bem e

mal, luz e trevas, certo e errado, civitas celeste e civitas terrena, Agostinho parece adotar uma

posição maniqueísta, mas isso só parece para uma leitura bastante desatenta. De clara

influência neoplatônica, o Hiponense, verdade, acentua duas realidades conforme seus graus

de verdade e valor. Desse modo, a civitas terrena, que às vezes parece triunfar contra a civitas

celeste, na sua representação visível (a Igreja), não pode realmente triunfar sobre ela: pois o

espiritual/eterno é mais que o físico/temporal – como as idéias eternas em Platão, que são

puras, incorruptíveis. Metodologicamente, essa dualidade marcará com profundidade as

naturezas político e moral dos homens: boa ação, má ação. Do lado do bem estão os que,

embora habitem as cidades terrenas, são cidadãos da Cidade celeste; do lado do mal estão os

outros. Apontado o conflito, tudo o que ocorre dentro da história dos homens – que é, por sua

vez, conduzida pela mão da Divina Providência – é tratado como consequência imediata,

efeito manifesto de dois poderes antagônicos.

A De civitate Dei é também, para o seu autor, o resultado de um descomunal esforço

para encontrar resposta a uma questão que lhe afligia, e também a cristandade: o problema do

mal, do sofrimento, consequentemente, e a maneira de os crentes enfrentarem tudo isso. Um

dilema moral par excellence. Se Deus é Todo-poderoso, porque permite que o mal perpasse o

mundo? Se é bom, porque não poupa seus servos dos infortúnios da guerra e dos vexames

parte dos homens, a peleja por uma conduta moral que se realiza (ou pode realizar-se) somente com a

manifestação da Graça. O De civitate Dei é um livro sobre a história do caminho do Espírito, que culmina na

Graça – se isso parece com certas noções da filosofia de Hegel é porque, de fato, é um seu fundamento.

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aviltantes que ela traz? Cada coisa, a seu tempo, receberá uma resposta – ou uma indicação

disso, para isso. Os conflitos que existem, existem por causa de uma força que se opõe a Deus

e que, na sua arrogância, constitui-se num governo iníquo: a civitas terrena, que tem o seu

arkhétypos em Caim, um fratricida. A civitas celeste, diferentemente, é representada pela

justiça, pela bondade, e tem como arkhétypos o justo Abel. E é assim que, da mesma forma

que Caim foi punido por seus atos, assim também ocorrerá ao governo iníquo da civitas

terrena, evidenciando-se com isso a perfeita justiça de Deus, que intervém contra tudo o que

lhe é contrário. No final, o bem triunfará sobre o mal e o mal terá sido, no projeto de Deus,

um instrumento para provar os santos, como o fogo que purifica o ouro.

O apelo moral, nas Escrituras, tem sua base mais primitiva na instrução que Deus dá

a Adão: somente um ser moral poderia discernir entre obediência e desobediência. A

inocência de Adão, tema recorrente nas teologias de todos os tempos – e que não nos interessa

aqui –, não era desprovida do conhecimento de um certo (certus) e um errado (erratus) – que,

em latim, tem a ver com aquele que é, no mundo, errante; que vagueia sem um porto, um o

conhecimento de um destino. A estrada que se toma, mesmo que não se saiba aonde vai dar,

leva a algum lugar; a ação praticada, mesmo que não traga consequências imediatas, gesta

uma, vindoura. A Queda de Adão lhe dá a experiência daquilo que ele já sabia por meio da

divina advertência – um conhecimento, até então, intelectual, subjetivo. Portanto, todos os que

descendem de Adão estão condenados a experimentar o dilema certo-errado, e todos os

pormenores que daí advêm. E até mesmo para quem não aceita o relato do Gênesis como

autoridade, tal dilema é, por tudo o que já vimos e ainda veremos, o dilema moral

fundamental de todos os discursos. A desgraça da solidariedade da raça humana, na Queda,

tem o seu paralelo na obra de Cristo, unindo-os uma vez mais, e ainda mais, na graça comum

– e na graça salvadora, em especial, aos santos de Deus. Na irmandade impetrada a todos pelo

sacrifício de Cristo (o novo Adão), os homens se encontram e, por uma graça comum, se

fazem irmãos. Mas, do mesmo modo que Abel e Caim eram irmãos e só um era obediente,

assim também, e por suas ações fincadas na fé, os santos são convidados a uma vida modelar,

com novo e exemplar procedimento diante daqueles que não partilham da mesma fé, ou que

não foram tocados por essa graça. A fé cristã, para o Hiponense, não é de modo algum

desvinculada da ação; do mesmo modo a graça, que não libera o crente de praticar as boas

obras.

Citando o apóstolo Paulo, Agostinho lembra que o imperativo é: “Levai as cargas uns

dos outros” e, noutra parte, “corrigi os inquietos, consolai os pusilânimes, alentai os débeis e

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sede pacientes com todos. Evitai, pois, que alguém retribua a outrem mal por mal”136

. Cita

ainda muitos outros textos paulino-neotestamentários referentes ao perdão que deve ser

dispensado àqueles que, por desconhecerem o Bem, que é Deus, são hábeis na prática do mal

que a eles se liga como um vício – donde lhes vêm, consequentemente, o sofrimento. “Este

sofrimento”, diz o Hiponense, “é castigo da primeira desobediência. Não é, portanto,

natureza, mas vício”137

. Mas, aos “capazes e bons, que em seu peregrinar vivem da fé”138

, é

dito para perdoar, suportar, ensinar o bom caminho para a prática da justiça, da virtude e da

piedade. E mesmo aos “capazes e bons”, os que “vivem na fé”, o sofrimento não é moeda

rara, mas, por vezes, o pagamento pelo bem que se faz, que se procura fazer. O mundo é, de

muitas maneiras, um vale de lágrimas. Os que são da civitas celeste, na sua peregrinação,

devem, no entanto, ser “pacientes na tribulação”, como exorta o Apóstolo.

É assim que a civitas celeste segue inabalável, triunfante. E é assim também que,

temporalmente, a civitas celeste é representada pelos santos. Esses, mesmo em meio às

provações, não abandonam a fé, sua esperança – a exemplo do justo Abel que, não edificando

cidade alguma, esperava na cidade edificada por Deus, morada dos justos. Na luta física (uma

vez que não fez uso da força, da violência), Abel perdeu; mas mesmo perdendo, por sua

justiça, ganhou. Caim, mesmo ganhando, perdeu. Abel é, assim, um tipo de Cristo139

. E é

assim com a Igreja no mundo: mesmo quando parece “perder”, ganha; diferentemente do

mundo que, mesmo quando parece ganhar, perde140

. É sobre esse conflito entre a civitas

terrena e a civitas celeste (ou sobre o mal e o bem), dentro de uma perspectiva histórico-

filosófico-teológica, que a obra de Agostinho é magistralmente construída; a acepção moral,

como os espaços entre as frases, está por toda a parte.

A sistematização da filosofia agostiniana no De civitate Dei – e também na maioria

das suas obras –, consiste essencialmente em quatro vias: 1) uma introdução inicial, que é o

lastro para o itinerário da alma a Deus; 2) uma física (ou filosofia natural) que considera a

136

De civ. Dei, XV, 6; cf. Gl 6, 2; I Ts 5, 14-15. 137

De civ. Dei, XV, 6. No Livro XIV da De civitate Dei, Agostinho já havia discorrido sobre a desobediência de

Caim e suas consequências posteriores, mas continuará tratando sobre as consequências desse ato até o final da

obra. O sofrimento do cristão, mais do que provocado por sua natureza pecaminosa – mesmo que Deus já o tenha

perdoado –, decorre também do Outro, que desconhece a Deus. Assim, o cristão sofre por causa do seu próprio

pecado, que sempre o assedia, e por causa do pecado do Outro que, desconhecendo a Deus, tem prazer na prática

do mal e é, assim, seu agente. 138

De civ. Dei, XV, 6. 139

De civ. Dei, XV, 7: “Caim recebeu o mandamento divino de Deus, como prevaricador, e, crescendo nele a

inveja, perfidamente matou o irmão. Assim era o fundador da cidade terrena. Como este era figura dos judeus,

que deram morte a Cristo, pastor da grei humana, prefigurado em Abel, pastor de rebanho real, pois tudo isso é

realidade alegórica e profética.” 140

De civ. Dei, XV, 4.

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essência da criatura como participante da Realidade Suprema; 3) uma lógica (ou filosofia

racional) que considera a atividade cognoscível do espírito humano como efeito da

participação na Verdade absoluta, mediante sua iluminação; 4) uma ética (ou filosofia moral)

que considera a razão humana como símbolo da humanidade, e nela a tensão entre a vontade

humana (suas ações) e o Sumo Bem. Essa tensão é o que Agostinho desenvolve no dualismo

marcante entre a Cidade celeste (lugar onde reina o Bem absoluto, modelo de todo o bem

existente) e a cidade terrena (que contém algum bem, mas limitado e sob os auspícios da

fortuna: hora favorável, hora não).

A fé contemplativa (ação espiritual) e as ações (ético-morais = políticas) dos

indivíduos testificam de que cidade eles são partícipes. Diferentemente das doutrinas morais

dos filósofos que lhe precederam, a moral agostiniana conduz o homem a si-mesmo e, daí,

lança-o para além-de-si. Em tal exercício, o Outro, no mundo, é auxílio; e, na fé, companhia,

companheiro. Assim, ao mesmo tempo em que Agostinho polemiza com os detratores da fé

cristã, defende e incentiva os cristãos a, em comunidade, suportarem os infortúnios, como o

de Roma, naquela ocasião – e bem assim os de qualquer outro lugar e tempo em que eles

estejam. A obra do Hiponense não se prende aos problemas dos cristãos romanos, tem uma

natureza universal. Nas cidades terrenas, os cidadãos da Cidade celeste vivem como

“estrangeiros”, “peregrinos”. Há, portanto, uma “representação física” da Cidade santa, uma

Cidade dentro de uma cidade; e o Reino de Deus está em nosso meio.

2.2.1. Viver na cidade, viver a cidade

A idéia de “uma Cidade dentro de uma cidade” é anterior a Agostinho, e faz parte de

uma herança cristã mais antiga. Na Carta a Diogneto, por exemplo, os cristãos que formam a

Igreja visível (a civitas Dei) são apresentados como peregrinos que, embora vivam nas

cidades terrenas, são, por herança e graça, da Cidade celeste. O desconhecido autor da Carta a

Diogneto – obra que nunca foi citada na Antiguidade e nem na Idade Média, embora pareça

ter surgido no séc. II141

–, nos dá conta de como era o estilo de vida dos cristãos:

141

Segundo alguns autores, a Carta a Diogneto teria surgido pouco antes do século XVI. Mas, conforme Etienne

Gilson, “em geral existe hoje uma concordância no sentido de situá-lo [o autor da carta] no século II” (GILSON,

1995, p. 194). Preferimos crer que Gilson e outros pesquisadores têm razão em situar a redação da carta no II

século da era cristã. O texto, como o temos hoje, é estabelecido a partir de cópias, colações e edições do

manuscrito – provavelmente do séc. XIV – que foi encontrado em Constantinopla, por acaso, no ano de 1436.

Conforme consta, o manuscrito estava em posse de um vendedor de peixe, prestes a ser utilizado como

embrulho. Depois de ser guardado na biblioteca municipal de Estrasburgo, foi destruído num bombardeio

durante a guerra franco-prussiana, em 24 de agosto de 1870. As cópias, colações e edições supracitadas teriam

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Não se distinguem os cristãos dos demais, nem pela região, nem pela língua, nem

pelos costumes. Não habitam cidades à parte, não empregam idioma diverso dos

outros, não levam gênero de vida extraordinário. A doutrina que se propõem não foi

excogitada solicitamente por homens curiosos. Não seguem opinião humana alguma,

como vários fazem. Moram alguns em cidades gregas, outros em bárbaras, conforme

a sorte de cada um; seguem os costumes locais relativamente ao vestuário, à

alimentação e ao restante estilo de viver, apresentando um estilo de vida [político]

admirável e sem dúvida paradoxal. Moram na própria pátria, mas como peregrinos.

Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros.

Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha. [...] Estão na

carne, mas não vivem segundo a carne. Se a vida deles decorre na terra, a cidadania,

contudo, está nos céus142

.

O cristão da Carta a Diogneto vive, por assim dizer, num “cativeiro feliz”. Sua

relação com o mundo – uma relação temporal, a espera da eternidade – é como a da sua alma

com o seu corpo: está nele, mas de modo temporal; pois que o seu destino eterno é a Cidade

celeste. Trata-se de um relacionamento de aceitação (dos padrões seculares que são concordes

com a doctrina christiana) e negação do mundo (rejeição aos padrões contrários à doctrina).

O cristão cumpre as leis deste reino, desde que elas não confrontem as leis do Reino de Deus

– de acordo com a doctrina. O conflito é dicotômico: o corpo (a carne) pertence ao mundo, a

alma (ou o espírito) a Deus. Como viver – ou “conviver” – e administrar esse conflito até o

fim, mantendo-se fiel à ética da Cidade celeste? O modo como se interpreta a Escritura, com

a intenção de encontrar orientações para tal intento é uma questão para a hermenêutica, mas

tem, como se vê, uma aplicação bastante prática.

A posição da Igreja, como peregrina, é referenciada por Agostinho ao confundí-la

(co-fundí-la) simbolicamente com o Cristo, com a própria civitas Dei e com a arca de Noé. A

arca é, na leitura do Hiponense, figura de Cristo e da sua Igreja: “Isto é, sem dúvida”, ele diz,

“uma figura da cidade de Deus vivendo como peregrina neste século, isto é, da Igreja salva

sido feitas antes desta data. Na introdução que o Frei Fernando A. Figueiredo faz à edição em português,

publicada pela editora Vozes, também consta que: “Os críticos modernos, em sua maioria, datam-no da segunda

metade do século II. Alguns o atribuem a Panteno, predecessor de Clemente de Alexandria [c. 150-215] no

ensino filosófico em Alexandria e, portanto, refletindo um ensinamento tipicamente alexandrino”

(FIGUEIREDO, Fernando A. Introdução. In: A carta a Diogneto. 2. ed. Trad. do original grego feito pelas

monjas beneditinas da Abadia de Santa Maria, SP. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 7). Em relação à autoria de

Panteno, ver a obra de MARROU, Henri Irénée. A Diognète. Paris: Les Ed. du Cerf, 1955. p. 266s. (Sources

Chrétiennes, 33 bis). Ver ainda: PETERS, S. Gabriel. Lire les Pères de l’Église, Cours de patrologie. Paris:

Desclé de Brouwer, 1981. p. 251-265. Ver também: FRANGIOTTI, Roque. Introdução. In: Padres apologistas:

Carta a Diogneto. São Paulo: Paulus, 1995. p. 11-18. (Col. Patrística, 2). Outra obra que versa sobre o assunto,

de modo muito sucinto, mas pertinente, é a de MORESCHINI, Cláudio; NORELLI, Enrico. História da

literatura cristã Antiga, grega e latina: de Paulo à Era Constantiniana. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p.

291-94. v. 1. 142

Diogneto V, 1-5, 8,9.

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pelo madeiro em que foi suspenso o mediador entre Deus e os homens – o homem Jesus

Cristo”143

.

Analisando as medidas da arca (300x50x30 côvados), Agostinho procura provar que

se encontram na exacta proporção do corpo humano em posição horizontal; corpo

humano em que Cristo quis encarnar. Descobre também na porta lateral da arca o

lado aberto de Cristo e na forma quadrada das tábuas a estabilidade da vida dos

santos144

.

Por outro lado, como notará Gilson: a identificação da civitas Dei peregrina no

tempo e na História145

, com a Igreja, não implica coincidí-la redutoramente com a Igreja. “Se

reduziu a cidade de Deus à Igreja que, na perspectiva agostiniana autêntica”, diz Gilson, “é

apenas a parte peregrina, que trabalha no tempo para lhe recrutar cidadãos para a

eternidade”146

.

No capítulo V da Carta a Diogneto (e também no cap. VI), por fim, já está posta a

idéia que, nas palavras de Gilson, “logo se tornará fundamental em Agostinho, de um Reino

dos Céus interior às pátrias terrestres e vivificando-as de dentro, em vez de suprimí-las”147

. Os

cristãos pré-Constantino são exortados a viverem em um desapego total de qualquer desejo

relacionado a objetos, espaços, pessoas e poderes. O mundo não é mais que uma “ilusão”, um

“desvio” diante da “verdadeira vida no céu” – as semelhanças com o platonismo são

evidentes. Até a conversão de Constantino (c. 274-337), não importando aqui se verdadeira ou

fingida, a Igreja era perseguida e, como tal, via-se malquista por um Império que não lhe

queria. Foi nessas condições que a ela “se entrincheirou em sua espiritualidade essencial,

143

De civ. Dei, XV, 26,1. A mesma interpretação alegórica da arca já fora feita em Contra Faustum

Manichaeum (cf. Cont. Faust., XII, 14,16 [CSCL 25, 343-346]). Fausto, maniqueísta, não acreditava que no

Velho Testamento houvesse qualquer profecia que apontasse para Cristo. 144

ABREU, Adélio Fernando. A Cidade Celeste e a Cidade Terrena, das origens ao dilúvio: De civitate Dei XV,

17-27. In: Revista Humanística e Teologia. Porto: Universidade Católica Portuguesa / Centro Regional do

Porto / Faculdade de Teologia, ano 27, v. 1, p. 28, 2006. 145

Valorando historicamente o relato bíblico, conforme contido no Velho Testamento e na interpretação

histórica que dele faz Agostinho, Jean-Claude Guy afirma: “Les livres sacrés ne sont pas un simple recueil de

figures et d‟allégories; ils disent d‟abord une histoire réelle qui ne perd rien de son caractère historique par le fait

qu‟elle est en même temps annonce de ce qui la suit, préfiguration de l‟humanité entière et de chacun des

individus particuliers composant cette humanité. Ce n‟est pas parce qu‟elle est „saint‟ que l‟histoire de l‟Ancien

Testament cesse d‟être „historique‟.” (GUY, Jean-Claude. Unité et struture logique de la “Cité de Dieu” de

Saint Augustin. Paris: Études Augustiniennes, 1961. p. 123). Ao que Abreu acrescenta: “Esta advertência de

Agostinho no início do desenvolvimento histórico da cidade de Deus, feita em razão duma situação particular,

converte-se num princípio geral de exegese para a análise do mesmo desenvolvimento histórico” (ABREU,

2006, p. 29 [nota 35]). 146

“D‟une part, oubliant la grand vision apocalityque de la Jérusalem céleste, on a réduit la Cité de Dieu à

l‟Eglise qui, dans la perspective augustinienne, n‟en était que la partie peregrine, travaillant dans le temps à lui

recruter des citoyens pour l‟éternité” (GILSON, 1952. p. 74). 147

GILSON, 1995, p. 194.

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reivindicando apenas as funções de uma alma que vivificaria o corpo do Estado”148

. O Estado

– não como o conhecemos hoje, evidentemente – é como o corpo, a Igreja é a sua alma. A

Igreja adquiriu estatura hierárquica e o serviço de um sacerdote se tornou um posto tão alto

que até o próprio imperador se lhe sujeitava. Ambrósio, por exemplo, chega a afirmar que “a

Igreja é chefe do mundo romano”149

, e diz mais: diz que, como quis Deus em sua justiça, da

forma que a heresia ariana quebrou a fé em Deus, assim também foi com a fé no Império

romano150

.

Em 410, Alarico (c. 370-410) invade e saqueia a grande e imponente cidade de

Roma151

, os cristãos são acusados de serem os responsáveis pelos infortúnios que desabaram

sobre a cidade – por viverem de modo atemporal (viverem na cidade como se dela não

fizessem parte), por não se envolverem com assuntos políticos e por terem abandonado o

culto aos antigos deuses.

Desde a conversão de Constantino, os pagãos não haviam cessado de predizer que o

abandono aos deuses de Roma seria sua ruína; os cristãos haviam, ao contrário,

sustentado que a prosperidade do Império estava ligada desde então à da Igreja, e eis

que o Império estava em ruínas. Que triunfo para a tese pagã!152

É para defender os cristãos de tais acusações e para refutar a doutrina pagã – à moda

dos polemistas (de Tertuliano a Orígenes) da filosofia patrística – que Agostinho inicia, em

410, a redação da De civitate, sua obra de fôlego, atendendo ao pedido de seu amigo

Marcelino. Os Livros I a X contêm a parte apologética da obra. Nos Livros I a V, o Hiponense

procura demonstrar que a prosperidade do Estado romano é independente do velho culto aos

deuses, uma vez que Roma sofreu outras catástrofes antes da invasão dos godos. O sucesso

148

GILSON, 1995, p. 195. 149

“Totius orbis Romani caput Romanam Ecclesiam” (AMBRÓSIO, Epist., 11, 4). 150

“Ut ibi primum fides Romano império frangeretur, ub fracta est Deo” (AMBRÓSIO, De fide, 2, 16). A

tradução é nossa, feita livremente. 151

A invasão dos visigodos, sob o comando do poderoso Alarico, ocorreu nos dias 23 a 27 de agosto de 410 –

Alarico morreria no ano seguinte. Nas palavras de Henry R. Loyn: “Os efeitos psicológicos do saque de Roma

foram universais, mas as consequências políticas imediatas tiveram relativamente pouca importância. Os

visigodos continuaram exercendo uma curiosa dualidade como federados e, ocasionalmente, como saqueadores

da população romana” (LOYN, 2001, p. 360). 152

GILSON, 1995, p. 196. Citando Orígenes, Gilson afirma que Celso (que acusava os cristãos de, por se

desinteressarem dos negócios públicos, trazerem a ruína de Roma) tinha certa razão de se opor ao modus vivendi

dos cristãos que tinham suas próprias igrejas como pátrias organizadas (sustema patridos) que lhes reclamavam,

antes de qualquer coisa, suas atenções (GILSON, 1995, p. 194). Gilson, a propósito, afirma ainda que Agostinho

“julga que o Império foi punido por seus erros; o que ele mesmo acrescenta é que, aliás, tomaram-se demasiado

tragicamente esses últimos acontecimentos. Afinal de contas, o próprio Alarico é um cristão que protegeu as

igrejas durante o saque de Roma. Se cristãos são mortos, eles vão para o céu um pouco mais cedo; se pagãos são

poupados, vão um pouco mais tarde para o inferno, mas vão de qualquer modo. A sabedoria está, pois, em se

inclinar diante da vontade de Deus” (GILSON, 1995, p. 201).

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que obtiveram, no entanto, foi por obra da divina Providência, que é ignorada pelos pagãos.

Nos livros seguintes, o Hiponense afirma que os deuses romanos não podem dar bênçãos

eternas aos seus seguidores, coisa que compete apenas ao Deus dos cristãos. “O autor

demonstra que só a providência de Deus é responsável pela glória de Roma, e não os deuses

pagãos”153

.

A filosofia da história de Agostinho, em seu resumo mais elementar, encontra-se nos

Livros XI a XXII. Nos Livros XI a XIV, é discutida a origem das duas cidades. Mas a idéia

central da obra aparece mesmo é no capítulo XXVIII do Livro XIV. A Cidade celeste é

formada por aqueles que, unidos pelo amor, vivem para a glória de Deus; a cidade terrena,

diferentemente da primeira cidade, por aqueles que, em seu egoísmo, vivem em busca de sua

própria glória. Nas palavras de Earle E. Cairns: “Agostinho não tinha em mente o Império

Romano ou a Igreja de Roma quando falou destas duas cidades. Sua visão era mais universal

e contrariava a interpretação cíclica da história vigente em seus dias”154

. Nos Livros XV a

XVIII, Agostinho discorre sobre o progresso das duas cidades, unindo a história bíblica à

história secular, entrelaçando-as. O Livro XV, por suas características próprias, merece as

considerações que aqui faremos – concernente à doutrina moral e o conflito histórico entre a

Igreja e o Estado, o corpo e a alma155

. Os últimos livros, por fim, narram o destino

escatológico das cidades: à Cidade celeste, glória eterna; à terrena, eterna vergonha.

A formulação de uma interpretação cristã da história deve ser tida como uma das

contribuições permanentes deixadas por este grande erudito cristão. Nem os

historiadores gregos nem os romanos foram capazes de compreender tão

universalmente a história do homem. Agostinho exalta o poder espiritual sobre o

temporal ao afirmar a soberania de Deus que se tornou o Criador da história no

tempo. Deus é Senhor da história e nada o limita, como ensinaria o filósofo Hegel

(1770-1831). Tudo o que vem a ser é uma conseqüência de Sua vontade e ação156

.

Na redação da De civitate, o Hiponense consumiu nada menos que 13 anos, “porque

se interpunham outros mil afazeres que não podiam adiar e cuja solução me preocupava

sobremodo”157

, como afirmou mais tarde. A invasão dos godos, conforme narrada por ele, foi,

de acordo com o propósito da divina Providência, um mal com uma boa finalidade: para que

153

HUISMAN, 2000, p. 53. 154

CAIRNS, 1988, p. 120. 155

Com o Livro XV, escrito por volta do ano 421, inicia-se uma nova seção da obra, que se prolonga até o XVIII

(cf. PIERETTI, Antonio. Introduzione. In: SANT‟AGOSTINO. La Città de Dio. Roma: Città Nuova, 1997. p.

XXXIII. [Col. Biblioteca Grandi Aitori]). 156

CAIRNS, 1988, p. 120. 157

Ret., II, 43.

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todos lembrem do pequeno valor e da transitoriedade dos bens terrenos, que não podem ser

comparados à glória que está destinada aos que crêem, conforme o Apóstolo158

.

Agostinho condena tanto a atitude dos pagãos que adoravam os deuses para obter

bens materiais quanto a dos filósofos que justificavam essas práticas afirmando que

elas asseguram a felicidade ultraterrena. Censura assim os filósofos por não

reconhecerem a imaterialidade de Deus e por não o considerarem o criador. A

verdade está no cristianismo: ele é a busca pela felicidade159

.

Felicidade essa que o Bispo de Hipona diz não ser possível, em sua plenitude, nesta

terra – pois que as coisas terrenas são sempre suscetíveis de infortúnios, a exemplo da

violenta investida dos godos sobre os cristãos de Roma –, mas era assegurada aos penitentes

na Cidade celeste. “Os infortúnios de Roma”, diz Gilson, “significam simplesmente que a

felicidade não é deste mundo, nem mesmo para os cristãos”160

. É isso que o Hiponense

demonstra no cap. XI do Livro 11: “Alguns anjos, afastados da luz, não lograram a perfeição

da vida sábia e feliz, que não é tal senão eterna, certa e segura da própria eternidade.” E, mais

adiante, no cap. XX:

Hoje mesmo podemos, sem temeridade, dizer felizes os fiéis que vemos viver na

justiça e na piedade, com a esperança da imortalidade futura, a consciência livre das

devastações do crime, facilmente perdoados das fraquezas humanas pela divina

misericórdia. Verdade é que estão certos do prêmio que se dará à perseverança, mas

se encontram em dúvida a respeito da própria perseverança.

158

“E nos gloriamos na esperança da glória de Deus. Não só isso, mas também nos gloriamos nas tribulações,

porque sabemos que a tribulação produz perseverança; a perseverança, um caráter aprovado; e o caráter

aprovado, esperança” (Rm 5, 2b-4, NVI). E, noutra parte: “Penso, com efeito, que os sofrimentos do tempo

presente não têm proporção com a glória que deverá revelar-se em nós” (Rm 8, 18). “Na realidade, A Cidade de

Deus é resultado da atitude intelectual e filosófica de toda uma vida. Agostinho, para escrever essa história,

inspirou-se não só na realidade, mas também nas obras do apóstolo Paulo e João” (HUISMAN, 2000, p. 53). 159

HUISMAN, 2000, p. 53. 160

GILSON, 1995, p. 198. No mundo, os santos – ou principalmente eles – são afligidos por desejarem ser

santos – na esperança da bem-aventurança extramundana. Daí que, por esperarem (ou terem os olhos voltados

para o futuro), sofrem agora, no presente, resignados, tendo por meta o celeste porvir. Só em não havendo mais

a esperança, pelo fato de que aquilo que se espera já haver sido alcançado, é que se pode, de fato, ser feliz – é um

tipo de felicidade desesperada, conforme uma leitura peculiar de André Comte-Sponville: “Folheando Chamfort

dei com uma idéia que eu acreditava ter inventado: „A esperança não passa de um charlatão que nos engana sem

cessar; e, para mim, a felicidade só começou quando eu a perdi‟. Isso eu sabia perfeitamente não ter inventado.

Mas Chamfort prossegue: „Eu colocaria de bom grado na porta do paraíso o verso que Dante colocou na do

inferno: Abandonai toda esperança, vós que entrais!‟ Eu escrevera a mesma coisa, quase palavra por palavra, no

Tratado do desespero e da beatitude. O que eu queria dizer? O que queria dizer Chamfort? Que colocar essa

frase na porta do inferno é inútil. Como querer que os danados não tenham esperança? Eles sofrem demais! Eles

esperam necessariamente alguma coisa, que aquilo pare, talvez um sobressalto de misericórdia divina, ou

simplesmente que acabem se acostumando e sofrendo um pouco menos... No inferno, é praticamente impossível

não esperar. Ao contrário, é o bem-aventurado, em seu paraíso, que não pode esperar mais nada – pois tem tudo.

Santo Agostinho e São Tomás escreveram isso explicitamente: no Reino, já não haverá esperança, pois não

haverá mais nada a esperar; já não haverá fé, pois conheceremos a Deus; não haverá mais que a verdade e o

amor” (CONTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo:

Martins Fontes, 2001. p. 70-1).

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Por isso tudo e, “ardendo em zelo pela casa de Deus”, diz o Hiponense, “[foi que]

resolvi escrever estes livros de A cidade de Deus contra suas blasfêmias ou erros”161

, e aí “ele

desenvolveu uma visão cristã do passado e iniciou o que chamamos de filosofia da história. (A

noção de que a história tem um padrão discernível)”162

. Os conceitos teológico-históricos

contidos na De civitate dominarão por “mil anos [...] os desenvolvimentos políticos da Idade

Média”163

. De fato, a idéia de cidade dos medievais é retomada a partir da leitura que fazem

dos Pais da Igreja – mais especificamente de Agostinho.

2.2.2. A dupla cidadania dos santos: o dilema moral par excellence

Na obra do Hiponense, como um todo, há também uma dualidade que é bastante

característica na Bíblia Hebraica (káos / kósmos, noite / dia, bem / mal) e do neoplatonismo,

principalmente através de Plotino. “As obras platônicas”, ele diz, “sugerem, de todos os

modos, Deus e o seu Verbo”164

. Não há, aqui, como possa parecer, resquícios de sua antiga fé

maniqueísta. A doutrina que prevalece, mesmo antes do “platonismo” tão elogiado, é a da

Escritura, e especialmente a que se apresenta no Novo Testamento. É bom notar aqui que o

Novo Testamento já era, através do apóstolo Paulo (o preferido de Agostinho entre os seus

autores165

), herdeiro de alguns acordos entre uma e outra escola: a dos hebreus e a dos gregos,

e não exatamente nesta ordem e nem, evidentemente, sem conflitos. Tais acordos e diferenças,

no dualismo metodológico-agostiniano, são eficazes como na elaboração de uma caricatura,

em que são destacadas as similaridades e as diferenças. O Hiponense faz isso ao tratar sobre

161

Ret., II, 43. 162

OSBORNE, 1998, p. 44. O germe daquilo que consagraria a filosofia de G. W. F. Hegel, onde o Espírito,

através dos eventos históricos, se realiza em direção ao Absoluto, em uma dialética constante que une o passado

ao futuro em uma sequência (lastro) ordenada e dinâmica. Com a De civitate Dei, Agostinho não apenas abriu

caminho para a Filosofia da História, mas também para a Teologia da História, ao estudar, na parte final da obra,

os antecedentes seculares da Igreja. 163

CHAMPLIN, R. N. e BENTES, J. M. Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia. 4. ed. São Paulo: Candeia,

1997. p. 78, v. I (A-C). Pensador da primeira escolástica (ou Antiguidade tardia) – que antecede a Idade Média,

onde o pensamento de Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo, Hugo de São Vitor, Pedro Lombardo e São

Tomás de Aquino, dentre outros, se destacará –, Agostinho se situa historicamente como o transmissor do

pensamento clássico dos gregos aos teólogos-filósofos medievais, notadamente por sua interpretação platônico-

aristotélica segundo as doutrinas cristãs.

164 Conf., VIII, 10,3.

165 Conf., VII, 21,27: “Assim, com grande sofreguidão, lancei mão do venerável estilo do teu espírito [a

Escritura] e, sobretudo, do apóstolo Paulo...” (AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. de Arnaldo do Espírito

Santo, João Beato e Maria de Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel. Lisboa: Centro de Literatura e Cultura

portuguesa e Brasileira / Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001 [Col. Estudos Gerais – Série Universitária –

Clássicos de Filosofia]). Na tradução dos jesuítas J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina (Col. Os

Pensadores): “Por conseguinte lancei-me avidamente sobre o venerável estilo (a Sagrada Escritura), ditada pelo

vosso Espírito, preferindo, entre outros autores, o Apóstolo São Paulo.”

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as duas cidades: a cidade terrena, a mais perfeita que houver – e que não era o caso de Roma –

, não poderá ser mais que um simulacro da Civitas celeste, não mais que uma sombra da

cidade Ideal (ou Real), a comunidade dos santos glorificados. De modo visível e sujeita às

dificuldades temporais, a Cidade celeste vive pela fé (ex fide vivens) e é representada neste

mundo através da civitas Dei, peregrina entre os ímpios (inter impios peregrinatur); e assim

será até que chegue ao seu destino eterno (in stabilitate sedis aeternae). Enquanto peregrina

neste mundo, a Igreja tem seu modelo no Cristo que se fez “Caminho”. Daí os cristãos

haverem sido chamados de “os do caminho”, antes de ganharem esta última e jocosa alcunha.

A condição de vida neste mundo é, tanto para o cristão da De civitate Dei quanto para o da

Carta a Diogneto, como já dito, a de um “cativeiro feliz”. Quando Mônica morre, por

exemplo, Agostinho tem ciência de que ela, enfim, tornara-se livre166

. Morrer, para o cristão,

não é o grande mal, é passagem, libertação, volta para casa; é o fim da peregrinação neste

vale de lágrimas.

O cristão se relaciona, temporariamente, com o mundo como a alma se relaciona,

provisoriamente, com o corpo. [...] a peregrinação não é só uma metáfora ou

narrativa de edificação moral. Ela é uma condição material e espiritual, que se

realiza geograficamente no mundo e espiritualmente em cada pessoa167

.

A Igreja (representação visível da Cidade celeste na cidade terrena) vive em um

“vale de lágrimas” que não é, evidentemente, seu destino eterno, mas temporal. Enquanto no

166

Conf., IX, 11,28: “Enfim, no nono dia da doença, aos cinqüenta e seis anos de idade, e no trigésimo terceiro

de minha vida, aquela alma piedosa e santa libertou-se do corpo”. (A ênfase, aí, é minha). O corpo de Mônica foi

sepultado em Óstia, na cripta da Igreja de Santa Áurea. Descoberto em 1430, foi transladado para Roma, para a

Igreja de São Trifão e, por fim, para a igreja que recebeu o seu nome. Em Conf., IV, 7, Agostinho aparece se

censurando por sofrer tanto a morte de um amigo querido: “Ó demência que não sabes amar os homens

humanamente [homines humaniter]! Ó homem estulto que sofres em demasia [immoderate] por causa das coisas

humanas! Isso era eu então. E assim angustiava-me, suspirava, chorava, perturbava-me, e não havia repouso nem

conselho.” A amizade com as “coisas mortais”, conforme aparece antes, é sinal de negligência à condição alma

como aprisionada ao mundo e às suas sensações. A morte de um cristão, para o Agostinho convertido, não deve

ser motivo para tanto sofrimento: “Miserável eu era, e miserável é todo espírito acorrentado pela amizade às

coisas mortais, e é dilacerado quando as perde, e então sente a miséria que o torna miserável [miseriam qua

miser est] mesmo antes de perdê-las” (Conf., IV, 6). Quando Mônica morre, Agostinho sofre, mas entende que,

por fim, ela se juntou aos santos glorificados na Cidade celeste. 167

SUESS, 2001, p. 32. Tendo em vista os tesouros da Cidade eterna, o cristão da Carta a Diogneto é exortado a

viver em total desapego aos desejos, objetos, pessoas, poderes e espaços físicos do mundo. Neste desapego às

“coisas do mundo”, o amor ao próximo é a marca e o sacrifício perfeito do cristão peregrino. Nesta perspectiva

do amor sacrificial e do desapego, a violência positiva reaparece na admiração daqueles que sofrem,

conformados, sabendo que a penalidade (a justiça eterna aplicada aos que, “no mundo”, obraram a injustiça) será

administrada: “... são torturados por não quererem renegar a Deus, [...] quando desprezares o que aqui é

considerado morte, quando temeres a verdadeira morte, reservada para os condenados ao fogo eterno, que há de

atormentar sem fim os nele lançados. Então admirarás os que suportam pela justiça o fogo temporário e chamá-

los-á bem-aventurados quando conheceres o que é aquele fogo” (Diogneto X, 7-8). A “morte” e a “verdadeira

morte”, bem como o “fogo temporário” e o “fogo eterno” dão-nos a dimensão exata dessa relação conflituosa

entre o temporal e o eterno, presente na Carta a Diogneto e, de modo mais veemente, em De civitate Dei.

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“vale”, a condição da Igreja é de inevitável sofrimento168

, mas ela é conhecedora – embora

não a experimente em sua plenitude – da paz e da felicidade verdadeiras que só estão na

Cidade celeste, a cidade Real. O aqui é uma condição temporal que precede uma condição

eterna. Até lá, o exercício da misericórdia na cidade terrena é marca fundamental dos

cidadãos da cidade Real:

Apresenta-se na Escritura terrível juízo contra o servo obrigado a pagar a dívida de

dez mil talentos que lhe fora perdoada, por não haver perdoado insignificante dívida

de cem denários a companheiro seu de escravidão. Proposta a parábola, Cristo

acrescentou: Assim se postará meu Pai celestial convosco, se cada um de vós não

perdoar de coração o seu irmão. Assim se curam os cidadãos da Cidade de Deus

que peregrinam por este vale de lágrimas e suspiram pela paz da pátria soberana169

.

Ao mesmo tempo em que o peregrino luta contra sua natureza humana, caída,

procurando evitar o mal, devotando-se à prática do bem, ele próprio é alvo de uma “disputa”

maior: de um lado a cidade do demônio, por meio dos seus agentes mundanos, tentando

convertê-lo ao seu sistema; do outro lado, a cidade de Deus, animando-o contra as investidas

do mal, mas sem poder poupá-los do sofrimentos temporais. O ânimo subjaz na graça e na

certeza de que, uma vez que é Deus quem secretamente chama o peregrino para a Sua cidade,

Ele mesmo é quem garante a sua chegada a ela. Os apelos da cidade terrena são feitos aos

sentidos – mas não têm o mesmo poder de persuasão íntima que tem o chamado de Deus, pelo

menos aos que são chamados pelo Apóstolo de “vasos de misericórdia”170

. Mesmo que Deus

use os sentidos humanos para a proclamação das suas verdades, é interiormente, de modo

secreto, que Ele age no fito de trazer o homem “instalado-estabelecido” (por sua vontade

degenerada) a uma nova condição existencial, a de “peregrino”, desinstalado, desestabelecido.

Embora, para falar aos sentidos humanos, aos corpóreos em espécie humana e aos

outros em sonhos, Deus se sirva das criaturas a Ele sujeitas, é inútil para o homem a

pregação das verdades, se Ele não opera e move interiormente com sua graça. Mas

168

De civ. Dei, XV, 6: “Este sofrimento [...] é castigo da primeira desobediência. Não é, portanto, natureza, mas

vício. Diz-se, por isso, aos capazes e bons, que em seu peregrinar vivam da fé”. O apelo moral, prático, vem na

sequência e como consequência, na recomendação apostólica e no Evangelho, conforme lembrados por

Agostinho: “Levai a carga uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo. E noutra parte: Corrigi os inquietos

[...]. E noutra parte: Se alguém andar preocupado com algum delito, instruí-vos vós, que sois espirituais, com

espírito de mansidão, pensando que também podeis ser tentados. E de igual modo: Não se ponha o sol, estando

irados. E no Evangelho: Se teu irmão pecar contra ti, corrige-o a sós entre ti e ele.” 169

De civ. Dei, XV, 6. 170

De civ. Dei, XV, 6. A passagem lembrada por Agostinho é a de Rm 9, 22-24: “E se Deus, querendo mostrar a

sua ira e tornar manifesto o seu poder, suportou com muita paciência os vasos de ira, preparados para a perdição,

a fim de mostrar as riquezas da sua glória sobre os vasos de misericórdia, que preparou para a glória (onde está a

injustiça?). (Esses vasos de misericórdia somos) nós, a quem ele também chamou, não só dos judeus, mas ainda

dos gentios.” (MS).

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Deus faz isso com juízo muito secreto, mas justo, e dos vasos de misericórdia

discerne os vasos de ira171

.

O apelo dos sentidos é tal que, quando Agostinho menciona o Apóstolo descrevendo

o seu lado carnal, pecaminoso, lembra de uma passagem em que ele afirma: “Não sou eu

quem o faz, mas o pecado que habita em mim”172

. Mesmo os filósofos pagãos sentiam tal

investida viciosa dos sentidos contra a virtude moral, ou o bem ideal, comum. Sem o auxílio

da graça e sem conhecimento da instrução evangélico-apostólica, criaram modelos próprios

de moral, sempre caindo, no entanto, nalguma vaidade própria dos homens. “Os próprios

filósofos”, diz o Hiponense, “dizem viciosa e [recomendam] não dever arrastar atrás de si a

mente, mas deve ser dominada por ela e desviada das ações ilícitas pelo freio da razão”173

.

Na condição passiva, o peregrino não se faz peregrino por si mesmo, mas pelo

chamado de Deus que, ativo, arrasta-o para Si. A vontade do homem, no que toca à sua

escolha entre a Cidade celeste e a terrena, é sempre uma vontade má, degenerada – e ele, por

si mesmo, sem o auxílio da graça, sempre opta pela cidade que lhe é mais pertinente aos

apelos das paixões. Logo, ninguém se faz peregrino da Cidade celeste, mas é, por Ele, feito. E

mesmo após ouvir o chamado divino, ser feito peregrino, ainda assim experimentará por toda

a sua vida terrena o apelo da cidade terrena, o apelo da vontade mundana, pecaminosa. Ao

mesmo tempo em que as duas vontades colidem no interior do homem, há ainda a questão

conflituosa da vontade própria lançada contra a vontade do Outro – por mais amistosa que

possa parecer essa relação. Sendo a habitação dos homens, ou o conjunto de suas habitações,

a cidade é mais do que uma edificação; têm os homens por coração. Le Goff, por exemplo,

afirma que “a cidade medieval, segundo uma idéia que os clérigos da Idade Média tinham

retomado dos Pais da Igreja – em particular de Santo Agostinho –, não é feita somente de

pedras, mas em primeiro lugar de homens, de cidadãos. A história urbana é antes de tudo uma

história humana, uma história social”174

. A moderna Teologia Urbana é devedora, em muito,

ao Bispo de Hipona.

É aí, no coração do homem e nas atitudes fundamentadas a partir do que se passa

dentro dele, e que aparecem no dia-a-dia, que as naturezas espiritual/carnal são mais

perceptíveis. Pois, se “o Reino de Deus está dentro de vós”, como dito no Evangelho, em

171

De civ. Dei, XV, 6. É a mesma condição para a verdade e o seu aprendizado, como aparece no De Magistro e

na doutrina do Mestre interior que, interiormente, ensina e confirma o ensino exterior, medindo-o (cf. De Mag.,

XIII-XIV). 172

De civ. Dei, XV, 7. O texto usado é o de Rm 9, 22-24. 173

De civ. Dei, XV, 7. 174

LE GOFF, 2002, p. 219.

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referência aos cristãos, o contrário vale aos que não professam tal fé. O mundo inteiro, pois,

está dividido entre dois amores, duas cidades.

O final do Livro XIV aparece como um post hoc, ergo propter hoc, uma vez que

introduz toda a temática dominante do Livro XV. O trecho, embora longo, merece ser lido,

aqui, na íntegra:

Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao

desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a

celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela

busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus, testemunha de sua

consciência. Aquela ensoberbece-se em sua glória esta diz a seu Deus: Sois minha

glória e quem me exulta a cabeça. Naquela, seus príncipes e as nações avassaladas

vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua

caridade, os governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo. Aquela ama sua

própria força em seus potentados; esta diz a seu Deus: A ti hei de amar-te, Senhor,

que és minha fortaleza. Por isso, naquela, seus sábios, que vivem segundo o homem,

não buscaram senão os bens do corpo, os da alma ou os de ambos e os que chegaram

a conhecer Deus não o honraram nem lhe deram graças como a Deus, mas

desvaneceram-se em seus pensamentos e obscureceu-se-lhes o néscio coração.

Crendo-se sábios, quer dizer, orgulhosos de sua própria sabedoria, a instância de sua

soberba, tornaram-se néscios e mudaram a glória do Deus incorruptível em

semelhança de imagem de homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de

serpentes. Porque levaram tais ídolos aos povos, para que os adorassem, indo eles à

frente, ou os seguiram e adoraram e serviram a criatura e não o Criador, para

sempre bendito. Nesta, pelo contrário, não há sabedoria humana, mas piedade, que

funda o culto legítimo ao verdadeiro Deus, à espera do prêmio na sociedade dos

santos, de homens e de anjos, com o fim de que Deus seja tudo em todas as coisas175

.

O “amor próprio” é o egoísmo humano e tudo o que ele revela dos/nos indivíduos:

paixões, violências, luxúria, soberba, etc. O cristão, mesmo sujeito às mesmas paixões,

despreza-se a si mesmo por amor a Deus. Esses dois amores, rivais, na alegoria, fundam as

duas cidades. Três males são característicos na cidade terrena: 1) o desamor a Deus e o

desapego ao bem supremo, 2) a morte – seja ela física ou espiritual, que pode existir mesmo

sendo física – e 3) o “pecado original”, que simboliza a revolta (inimizade contra Deus) e a

fraqueza carnal. “Portanto”:

Há uma cidade carnal e uma cidade espiritual; a primeira baseia-se na felicidade

terrena, no prazer, e sua representação bíblica é Caim, o fratricida; a segunda, que

vive no amor de Deus e na espera da felicidade celeste, é representada por Abel,

vítima de Caim. Essas duas concepções de vida se perpetuam ao longo dos séculos

através da Bíblia e através da realidade; às vezes chegam a confundir-se, pois certos

homens atuam nos dois lados por interesse: contam com o prazer da vida terrena e

com a redenção na vida futura176

.

175

De civ. Dei, XIV, 28. 176

HUISMAN, 2000, p. 53.

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Deus, no juízo final, julgará as intenções de cada um: ao que fez o mal será destinada

a infelicidade eterna, e ele habitará afastado de Deus e de sua Cidade; ao que fez o bem será

destinada a eterna beatitude, ao lado de Deus, na sua Santa cidade. Assim serão julgadas as

duas cidades: uma para a glória eterna, a outra para a vergonha eterna.

Esse final escatológico destinado às duas cidade destoa da antiga fé de Agostinho,

quando então membro da seita dos maniqueus177

. De acordo com o profeta Mani (c. 216-277),

que começou a ensinar sua doutrina no Irã nos anos 240-241, há um dualismo radical que faz

o mal (simbolizado pelas trevas) e o bem (simbolizado pela luz) se contraporem eternamente,

mas sem se destruírem, pois que um necessita do Outro para existir como sua contraparte. O

Hiponense, convertido, reconhece que, dentre outros erros do maniqueísmo, tal doutrina

destoa do “destino eterno dos santos” na Cidade celeste, onde não pode haver mais a presença

do mal178

.

O raciocínio de Agostinho, como se vê, é mais o de um teólogo do que de um

historiador ou cientista. Ele, por exemplo, não se preocupa com as possíveis objeções dos

físicos (em relação ao fogo eterno do inferno) ou dos platônicos e neoplatônicos (em relação à

ressurreição dos mortos). E em tudo isso ele “afirma-se assim contra o maniqueísmo que o

influenciou na juventude; no plano puramente eclesiástico, condena o donatismo179

e o

pelagianismo180

”181

.

177

Agostinho conheceu o maniqueísmo em 372, no mesmo ano em que nasceu seu filho Adeodato – personagem

principal da obra De Magistro (389), que morre muito jovem, contando com apenas 16 anos. Através das leituras

que faz de Platão (ou de Plotino), das cartas paulinas e das impressionantes homilias de Ambrósio, Agostinho

abandona o maniqueísmo em 383 e, três anos depois, converte-se ao Cristianismo, sendo batizado por Ambrósio

no ano seguinte. A polêmica que Agostinho travou com os maniqueus após sua conversão, levou-o a escrever,

entre 388 e 389, o Comentário do Gênesis contra os maniqueus (De Genesi contra manicheos). E de 398 a 404,

redigiu o livro Contra Fausto (Contra Faustum Manichaeum). No mesmo ano de 404 escreveu o tratado Contra

Fêlix (Contra Felicem Manichaeum), seguido da refutação Contra secundinum Manichaeum (de 405 a 406).

Mas o problema do mal, um dos temas centrais do maniqueísmo, foi melhor desenvolvido por ele no tratado

Sobre a natureza do bem (De natura boni), redigido entre 405 e 406. 178

As obras sobre a seita dos maniqueus, em língua portuguesa, são bastante escassas. Tal constatação e uma

tentativa de suprir tal lacuna foram feitas por: COSTA, Marcos Roberto Nunes. Maniqueísmo: história, filosofia

e religião. Petrópolis: Vozes, 2003. Agostinho se tornou, ironicamente, principalmente porque os confronta – e

faz isso em muitas das suas obras, algumas diretamente contra eles –, aquele que forneceu à posteridade o maior

número de informações (por vezes com citações literais) do maniqueísmo, como também fora Platão em relação

aos sofistas. 179

Seita cismática que surgiu no início do século IV A.D., em Cartago, no norte da África. Segundo Donato, os

sacramentos administrados só tinham valor se aquele que os administrava tivesse algum mérito. Agostinho

afirmava que o real administrador dos sacramentos era Cristo e, por isso, eram eficazes, não dependendo dos

imperfeitos homens que os administrassem. 180

Pelágio (360-420 A.D.), dentre muitas outras coisas, negava a doutrina da predestinação dos santos, do

pecado original, da morte física como consequência do pecado e exaltava o livre-arbítrio humano. Agostinho se

opôs a ele principalmente em relação à doutrina do pecado original. 181

HUISMAN, 2000, p. 53.

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139

Há uma sucessão de fatos que se ligam numa narrativa linear e finita: do início

temporal da cidade terrena até o seu destino eterno – independente do juízo que receba. A

história, na doctrina, é linear e progressiva, teleológica – contrastando com o modelo cíclico

dos gregos e de boa parte das teologias orientais. “A construção progressiva da Cidade de

Deus seria, pois, a grande obra começada depois da criação e incessantemente continuada. Ela

daria sentido à história e todos os fatos ocorridos trariam a marca da providência divina”182

.

É certo que, no Livro XV, Agostinho se limita a conduzir os acontecimentos

históricos somente até o dilúvio. Mas essa sucessão, maior, aparece claramente nos livros

seguintes. No XVI, por exemplo, o Hiponense conduz os acontecimentos até o Livro dos

Juízes. O Livro XVII, numa interpretação simbólico-profético-histórica, dá continuidade à

grandiosa narrativa dos acontecimentos ocorridos no meio do povo hebreu. Logo em seguida,

inspirando-se na Crônica183

de Eusébio, ele fala sobre as monarquias orientais da Babilônia e

da Assíria; e para tratar sobre os reinos da Grécia e da Roma Antigas, utiliza-se dos escritos

de Marcus Terentius Varro (116-27 a.C.). Nas palavras de Bernard Sesé: “Agostinho expôs as

vicissitudes da cidade eterna encarnada na igreja, e inextrincavelmente ligada às vicissitudes

da história da cidade terrena”184

. Mas é na última parte da De civitate Dei, mais precisamente

do Livro XIX ao XXII, que é tratado sobre o destino final das duas cidades. Portanto, durante

toda a história humana – onde também se dão os eventos da história de Deus com o seu povo

–, essa luta entre os que estão destinados à danação eterna e os que estão destinados à eterna

beatitude é sempre presente, mas não para sempre – pois o temporal está contido no eterno, e

não o contrário.

A história é o desenrolar dos fatos (factum) que transcorreram desde antes da Queda

e ainda depois dela e até o tempo presente (praesenti tempore). Quanto às duas cidades, “uma

delas está predestinada a reinar eternamente com Deus; a outra, a sofrer o suplício com o

Diabo”185

. Nessa escatologia, o desenrolar dos fatos temporais culminam nos eternos. A

182

PESSANHA, 1996, p. 22. 183

Eusébio, na sua Crônica da história universal, fez uma lista cronológica dos momentos históricos, fornecendo

suas respectivas datas. E fez o mesmo em História eclesiástica (que apareceu em uma edição definitiva em 325),

preservando valiosas informações, muitas das quais oriundas de fontes não mais existentes. Notando a vasta

utilização que Agostinho faz das obras de vários autores na composição da De civitate Dei, Abreu afirma que:

“Uma obra de vulto como o De civitate Dei não podia surgir isoladamente da pena de um só homem. Na sua

composição, o bispo de Hipona bebe elementos do pensamento pagão e cristão anterior. Os nossos capítulos

[tratam-se dos capítulos 17 a 27 do Livro XV] podem revelar, no âmbito do paganismo, o recurso a Virgílio e a

Plínio o Velho, assim como o reflexo da escola pitagórica na exaustiva interpretação dos números. Da reflexão

cristã, nota-se a referência a Jerônimo e talvez Orígenes, no que diz respeito à etimologia dos nomes e à exegese

do Génesis” (ABREU, 2006, p. 41). 184

SESÉ, 1997, p. 144. 185

De civ. Dei., XV, 1,1.

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140

história, marcada pela presença do elemento divino, caminha para um final em que o bem,

afinal, triunfará sobre os vícios, sobre as paixões186

.

A doctrina christiana é, historicamente falando, atrito e adequação. E o Hiponense,

por suas obras e autoridade, é responsável por muito do respeito que essa mesma doctrina

veio a ter. O saque de Roma e a consequente destruição do Império, conforme alguns, marca o

fim da Antiguidade e anuncia a Idade Média. O Hiponense é como uma ponte intelectual

ligando a Antiguidade ao medievo, período que dominará completamente.

Pois ninguém como ele tinha conseguido, na filosofia ligada ao cristianismo, atingir

tal profundidade e amplitude de pensamento. Vinculou a filosofia grega,

especialmente Platão, aos dogmas cristãos, mas, quando isso não foi possível, não

teve dúvidas em optar pela fé na palavra revelada187

.

Doctrina: atrito e adequação. A relação entre fé cristã e filosofia grega, como a

relação entre a Cidade celeste e a cidade terrena, é relação de conflito, coexistindo numa

mesma história. Tal relação, entre parte e parte, marca os lapsos de tempo, os séculos. “O

desenvolvimento dessas duas cidades compreende todo o lapso de tempo, também chamado século,

rápida sucessão de nascimentos e de mortes, que forma o curso das duas cidades”188

. A questão do

tempo, um dos mais empolgantes temas do pensamento agostiniano, é marcante em relação às

sociedades: seus progressos e declínios, sua natureza moral, seu destino escatológico.

Antes de tratar sobre o tempo em De civitate, o Hiponense já havia discutido o tema

nas Confessiones. Para ele, há uma esfera destituída do tempo, a esfera da eternidade, que tem

qualidades particulares e distintas das que podem ser apreendidas pelos homens, pela razão

humana – como no caso do tempo: mesmo sem entender o que ele seja, é possível saber sobre

ele189

. Embora Platão já houvesse tratado sobre o tempo em seus particulares (os objetos do

mundo físico) e nas formas (as realidades ideais que dão origem aos particulares), o estudo de

Agostinho é considerado a única filosofia original em língua latina. Ele confessava sua

186

De civ. Dei, XIX, 27,1: “Na paz final, [...], que deve ser a meta da justiça que tratamos de adquirir aqui na

terra, como a natureza estará dotada de imortalidade, de incorrupção, carecerá de vícios e não sentiremos

nenhuma resistência interior ou exterior, não será necessário a razão nas paixões, pois não existirão. Deus

imperará sobre o homem e alma sobre o corpo. E haverá tanto encanto e felicidade na obediência quanto bem-

aventurança na vida e na glória. Tal estado será eterno e estaremos certos de sua eternidade. Por isso, na paz

dessa felicidade e na felicidade dessa paz constituirá o soberano bem.” 187

PESSANHA, 1996, p. 23. 188

De civ. Dei, XV, 1,1. 189

Uma das mais conhecidas citações de Agostinho é aquela em que ele revela a sua incapacidade de dar uma

definição sobre o que seja o tempo: “O que é, pois, o tempo? Se ninguém mo pergunta, sei o que é; mas se quero

explicá-lo a quem mo pergunta, não sei” (Conf., XI, 14,17).

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141

ignorância em relação ao tempo, mas arriscava afirmar que ele era uma distensão da alma190

.

Sendo atemporal, Deus não participa da história dos homens sofrendo as ações do tempo, mas

é presente nela, acompanhando século após século o desenrolar dos fatos, para Ele sempre

presentes – uma vez que, para Deus, tanto o passado quanto o futuro são conceitos destituídos

de sentido. A Cidade celeste, portanto, não pode ser temporal, mas eterna. Nela, ele diz,

“descansaremos e veremos [a Deus]; veremos e amaremos; amaremos e louvaremos. Eis a

essência do fim sem fim. E que fim mais nosso que chegar ao reino que não terá fim!191

” Até

lá, no “fim sem fim”, Deus habitará com o seu povo, aqui e agora, animando-o na caminhada

para a eternidade. Caminhar com Deus significa agir moralmente, conforme seus preceitos,

sua vontade – e significa muito mais que isso.

Os textos que falam em Deus habitando com os homens se referem sempre à sua

presença (praes-ens) entre eles, e adiante deles192

. Uma vez que, tanto os homens quanto suas

coisas são temporais, não têm sentido o eterno estar no temporal (a não ser como presença),

mas o temporal no eterno (como necessidade). O temporal está contido no eterno, como

eterno não-eterno, pois que o eterno é sempre eterno não-temporal, existindo aí, na

temporalidade, como pre-sença. Do mesmo modo que o nada (nihil) não é sinal (palavra),

mas “certa impressão do espírito, quando este não vê uma coisa, e não obstante descobre ou

pensa ter descoberto que ela não existe”193

, assim também o temporal, não sendo eterno,

190

As melhores considerações de Agostinho relacionadas ao tempo se encontram no Livro XI, caps. 14 a 31, das

Confessiones. Recentemente, por ocasião dos 1.600 anos do aparecimento das Confessiones, foi lançado um

livrinho (Tempo e razão: 1.600 anos das Confissões de Agostinho, 2002) contendo uma série de palestras

reunidas do 1º Ciclo de Conferências sobre as Confissões de Agostinho, realizadas pelo Centro de Estudos

Agostinianos (CEA). Em De civitate Dei, as considerações de Agostinho sobre o tempo estão diluídas em todos

os capítulos, uma vez que a obra, de caráter histórico, aborda os fatos dentro de épocas histórias, segundo o

desenrolar dos fatos alistados por Agostinho dentro da história bíblica e do pensamento cristão,

consequentemente. Cf. LACEY, Hugh M. O problema de Santo Agostinho com o tempo. In: _____. A

linguagem do espaço e do tempo. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 41-68. 191

De civ. Dei, XXII, 30,5. 192

O termo, importantíssimo à doutrina teológica, é motivo de debates e disputas acirradas entre os teólogos e

entre as doutrinas várias. Por motivos óbvios, evitamos expor, aqui, tais diferenças – uma vez que, no sentido

geral, é de fácil apreensão. E isso, para o fim que nos propomos neste trabalho, basta. Convém notar, no entanto,

que tal presença não é aquela que se traduz como parousia (παρουσία), ou o estar presente (Anwesen) das

realidades presentes (Anwesenden) do presente (Anwesenheit), conforme as definições de Heidegger para o Ser,

por exemplo. Também não diz respeito à celeuma histórica da “presença” real (praesentia realis) ou praesentia

rei (presença da coisa), relacionada ao corpo do Cristo na celebração eucarística. Diz respeito ao habitar em

espírito, ou através do Espírito, em meio ao seu povo, de um modo pessoal, relacional – e, é claro, esses novos

termos precisariam ser melhor definidos; mas isso, aqui, é impossível. Seja como for, e pelo que já foi dito, era

esse o sentido de “pré-sença” que Agostinho adotava: Deus se relaciona. 193

De Mag., II. No De Magistro, muito antes de começar a compor o De civitate Dei, Agostinho já tratara sobre

a necessidade de o nada ser “algo”, ou o “nome para a ausência deste algo”: “ADEODATO – Que significa –

nihil (nada), senão o que não existe? AGOSTINHO – Talvez digas a verdade, mas impede-me de concordar o

que acima concedeste: que não há sinal que não signifique alguma coisa. Ora, o que não existe não pode de

maneira nenhuma ser alguma coisa. Portanto, a segunda palavra, neste verso [Si nihil ex tanta Superis placel

urbe relinqui? „Se nada, de tamanha cidade, apraz aos deuses que fique?‟, Eneida, II, v. 659)], não é sinal, pois

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significa alguma coisa, mas sempre em relação à eternidade. A cidade celeste, sendo eterna,

não pode ser edificada por ninguém senão por Ele mesmo – mas o seu sentido deve ser

entendido como figurado, uma vez que o elemento espiritual não necessita de habitação para

se abrigar. Embora limitada, a linguagem – e principalmente a teológica – faz-se necessária

quando se trata da relação entre a idéia eterna e a temporalidade; daí a necessidade das

analogias, como as de Caim e Abel:

O primeiro filho dos dois primeiros pais do gênero humano foi Caim, pertencente à

cidade dos homens, e o segundo, Abel, pertencente da Cidade de Deus. [...] Diz a

Escritura que Caim construiu uma cidade e Abel, como peregrino, nenhuma ergueu.

Porque a Cidade dos santos está no céu, embora cá na terra gere cidadãos, em quem

peregrina até chegar o tempo de seu reinado. Então, congregará todos os

ressuscitados com seus corpos e lhes dará o reino prometido. E nele reinarão

eternamente com seu príncipe, o Rei dos séculos194

.

A condição do cidadão do céu é a de um peregrino. Se ele vive no tempo, vive em

função da eternidade. Mesmo que se encante com algumas belezas da cidade terrena, pois que

elas existem e, em si mesmas, não são más, o coração do peregrino está preso à Cidade

celeste, seu tesouro; como no dito do Senhor: “Onde estiver o vosso tesouro, aí estará o vosso

coração.” Se Platão usa o termo “sombra” para falar das coisas que existem substancialmente

(oσζία) e apontam para a Idéia Perfeita, sem substância, de onde procedem, o Hiponense usa

o termo “figura” (ou “tipo”) – que tem, aí, praticamente o mesmo sentido195

– para falar da

civitas Dei, como imagem ou sombra da civitas celeste, realidade última.

não significa uma coisa. Foi pois falsamente por nós assente que todas as palavras são sinais, ou então que todo o

sinal significa alguma coisa. ADEODATO – Apertas-me fortemente, na verdade; mas quando não temos nada

que significar é completamente estulto proferirmos qualquer palavra. Ora neste momento, falando comigo, creio

que tu nenhum som proferes em vão; pelo contrário, com todos os que saem da tua boca, dás-me sinal para eu

entender alguma coisa. Por conseguinte não deves pronunciar essas duas sílabas ao falares, se com elas não

significas coisa alguma. Mas se vês que por elas se faz uma prolação necessária, e que somos ensinados ou

rememorados quando elas nos soam aos ouvidos, vês também com certeza o que pretendo dizer, mas não

consigo explicar. AGOSTINHO – Que concluímos então? De preferência a uma coisa que é nula, diremos antes

que por esta palavra se significa certa impressão do espírito, quando este não vê uma coisa, e não obstante

descobre ou pensa ter descoberto que ela não existe? ADEODATO – Talvez fosse isso mesmo o que eu tentava

explicar. AGOSTINHO – Seja como for, passemos adiante, não nos venha a suceder uma coisa mais que

absurda. ADEODATO – Qual, enfim? AGOSTINHO – Que o nada nos retenha e percamos o tempo.” 194

De civ. Dei, XV, 1,2. 195

Em Cl 2, 17 (ARA), Paulo fala que alguns aspectos do cerimonialismo judaico “têm sido sombra [ζκιά] das

cousas que haviam de vir [μελλόνηων]”. Na Epístola aos hebreus, o autor fala da antiga aliança, da lei e dos

serviços sacerdotais no templo como “sombra” daquilo que, por ocasião da manifestação de Cristo, haveria de

vir (cf. Hb 8, 5; 10, 1). Na mesma Epístola aos hebreus, o enigmático Melquisedeque aparece no início do cap. 7

como um “tipo” (figura) de Cristo. Rienecker e Rogers afirmam que a palavra ζκιά, que é “sombra”, refere-se a

algo “que não tem substância em si mesma, porém indica a existência de um corpo que a produz, ou indica um

esboço, um mero esquema do objeto, em contraste com o objeto em si. Isso indica que o ritual do AT era um

mero esquema das verdades redentivas do NT (cf. RIENECKER; ROGERS, 1995, p. 426). A melhor relação

entre a Idéia e a sombra, no sentido platônico, encontra-se no Livro VII de A República, de Platão. E para um

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Parte da cidade terrena veio a ser imagem da Cidade celeste; não simboliza a si

mesma, mas a outra e, portanto, serve-a. Não foi fundada para ser figura de si

mesma, mas da outra. [...] Encontramos, pois, na cidade terrena duas formas: uma,

que ostenta sua presença; outra, que é, com sua presença, imagem da Cidade

celeste196

.

Nessa representação figurativa da cidade de Deus em relação à Cidade celeste, a

quem, naquilo que é belo e bom, “veio a ser imagem”, há uma clara distinção entre os seus

cidadãos e os cidadãos da cidade do Diabo. A Igreja caminha para um descanso que, no

mundo, não pode ter nunca. A condição da Igreja e do evangelho que prega é a de

desinstalada, desinstaladora: trabalho. A imagem aí, favorável, é a do “oitavo dia” depois da

criação (o “dia eterno”), depois do sétimo, dominical: descanso. O eco, evidente, faz um

retorno àquela oitava bem-aventurança que, voltando à sétima e complementando-a em sua

perfeição, perfeitamente liga as eras eras históricas. Dentro da história humana se nota o

desenrolar da história de Deus com o seu povo. E é assim que, no último capítulo da De

civitate, encontramos uma nova bem-aventurança, celebrando a derrota final do mal197

e

fechando as idades temporais desse arranjo histórico-esquemático do Hiponense: eternidade.

Aí, o Cristo ressucitado aparece glorioso, figurando o “dia eterno” (não mais sujeito às

vicissitudes temporais) em que, na Cidade celeste, os cristãos, para sempre, descansarão.

Levaria muito tempo tratar agora, pormenorizadamente, de cada uma dessas idades.

Basta dizer que a sétima será nosso sábado, que não terá tarde e terminará no dia

dominical, oitavo dia e dia eterno, consagrado pela ressurreição de Cristo e que

figura o descanso eterno não apenas do espírito, mas também do corpo198

.

Mas a situação presente dos cristãos romanos, diante da devastação e do opróbrio

imposto pelos pagãos, parecia querer fazer emudecer tal esperança. Era o tempo se opondo à

eternidade, pela violência da hora. É aí que o Hiponense se impõe, lembrando-lhes que “a

cidade terrena, que não será eterna, pois, condenada ao último suplício, já não será cidade,

comentário esquemático desse livro, ver: PIETTRE, Bernard. Platão: a república, livro VII. Brasília: UNB,

1996. 196

De civ. Dei, XV, 2. 197

“Quanta não será a ventura dessa vida, em que haverá desaparecido todo mal, em que não haverá nenhum

bem oculto e em que não se fará outra coisa senão louvar a Deus, que será visto em todas as coisas! Não sei que

outra coisa se vá fazer em lugar ao abrigo da indigência do ócio. É ao que me induz o sagrado Cântico: Bem-

aventurados, Senhor, os que moram em tua casa. Louvar-te-ão pelos séculos dos séculos. Todas as partes do

corpo incorruptível, agora destinadas a certos usos necessários à vida, não terão outra função que não seja o

louvor divino, porque já não haverá necessidade então, mas perfeita, certa, inalterável e eterna felicidade” (De

civ. Dei, XXII, 30,1). 198

De civ. Dei, XXII, 30,5.

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tem cá na terra seu bem e em sua possessão goza-se com o gozo que tais coisas podem

oferecer”199

. Tal gozo, porém, é falso; pois não tem aquele dia eterno como esperança,

figurado pela esperança no Cristo ressuscitado. Não tendo tal esperança, tal gozo é, na

verdade, figura do desespero. Pensando-se feliz, é infeliz, realmente; pensando-se vencedor, é

vencido:

Essa cidade se divide contra si mesma, pleiteando, batalhando, lutando e buscando

vitórias mortíferas ou pelo menos mortais. Porque, seja qual for a parte da cidade

que se levante em guerra contra a outra, pretende ser vencedora, embora cativa dos

vícios. Se vence e se ensoberbece mais soberbamente, sua vitória é mortífera; se,

todavia, pesando a condição e as conseqüências comuns, é maior sua aflição pelas

vantagens que traga, a vitória é apenas mortal. Porque nem sempre pode dominar,

subsistindo, aqueles que pode submeter, vencendo200

.

Seja qual for o motivo da guerra entre os homens, e seja qual for o lado vitorioso, se

não estão sob o governo de Deus, são injustos, falsos, falíveis. Ninguém vai à guerra com a

intenção de perder; e toda luta, seja ela qual for, é uma procura por “algo que é bom”: seja a

aquisição de territórios, de bens ou mesmo da paz. A guerra, no final, nada mais é do que uma

luta pela paz, pela felicidade; felicidade essa que nunca é temporalmente atingida em sua

plenitude, principalmente se obtida por meio da violência e da injustiça201

. Toda vitória obtida

pela cidade humana é apenas temporal, uma “vitória apenas mortal”. A cidade terrena luta

contra a Cidade celeste e, ainda, contra si mesma, dividindo-se; e assim sempre caminha para

a sua derrota. A conclusão de Agostinho faz eco com as palavras do Cristo, que diz: “Todo

reino dividido contra si mesmo será arruinado, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma

não subsistirá”202

. A cidade terrena, cega pelo pecado203

, não percebe que tal busca pela

felicidade só lhe traz a guerra, o sofrimento, a infelicidade. Todos desejam o que é bom, e isso

é bom. Mas o meio com que procuram e a utilização que fazem desse bem que procuram

alcançar é que demonstra a infelicidade da empresa da cidade terrena.

Aristóteles, na introdução de A Política, afirma: “Todas as ações dos homens têm por

fim aquilo que consideram um bem”. Já em Ética a Nicômaco, diz que “ninguém deseja o que

199

De civ. Dei, XV, 4. 200

De civ. Dei, XV, 4. 201

Em De Trinitate, por exemplo, o Hiponense afirma: “Por certo, existe entre os seres vivos dotados de razão

tanta harmonia que, ainda estando oculto a um o que o outro quer, há no entanto alguns desejos comuns a todos”

(De Trin., XIII, 3,6). Antes de iniciar a composição do De Trinitate, no entanto, essa temática já havia sido

satisfatoriamente desenvolvida no De beata uita (cf. De beat. vit., I, 6). 202

Cf. Mt 12, 25, NVI.

203 Cf. De civ. Dei, XIV. 12-15.

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não considera bom”204

. No final de tudo, todos, através de tudo o que fazem, têm um desejo

comum: serem felizes – o Hiponense em nada destoa dessa conclusão. A felicidade é, pois, o

fim último de todas as ações – tanto as da ciência política (onde se incluem a arquitetura, a

economia, a medicina, a navegação e a guerra) quanto as das artes poiéticas (no sentido de

ηέτνη, que têm a ver com a ação, com a produção de alguma coisa) e de quaisquer outras

atividades, quer sejam intelectuais (contemplativas) ou práticas (produtivas). A fadiga do

trabalho, por exemplo, é suportada por visar um fim que seja mais que o mero repouso –

mesmo que esse, nas palavras do Estagirita, já contenha alguma satisfação:

A cessação do trabalho é ela própria um prazer e faz parte da felicidade da vida,

felicidade esta que não se pode apreciar em meio às ocupações e que só é bem

sentida nos momentos de lazer. Não nos entregamos ao trabalho senão com vistas a

algum fim. A felicidade é um destes fins. E esta felicidade não meramente não

contém nenhum desgosto como também se apresenta ao espírito de todos

acompanhada de prazer205

.

Do mesmo modo, ninguém vai à guerra senão por desejar o melhor bem para si e

para aqueles que ama, seja a aquisição de bens, de felicidade ou mesmo de paz. Assim:

Não é acertado dizer não serem bens os bens desejados por essa cidade, posto ser ela

mesma verdadeiro bem e o melhor do gênero. Por causa desses bens ínfimos, deseja

certa paz terrena e anela alcançá-la pela guerra. Se vence e não há quem lhe resista,

nasce a paz de que careciam os partidos, contrários entre si, que lutavam com infeliz

miséria por coisas que não podiam possuir ao mesmo tempo. Essa a paz perseguida

pelas penosas guerras, essa a paz alcançada pelas vitórias pretensamente gloriosas.

Quando vencem os que lutam pela causa mais justa, quem duvida se deva escolher

com aplausos a vitória e com gozo a paz? São bens e os bens são dons de Deus. Se,

porém, abandonados os bens supremos, possessão da soberana Cidade, onde haverá

vitória seguida de eterna e soberana paz, se desejam ardentemente esses bens, de

maneira que a gente acredite serem os únicos ou os ame mais que os superiores, de

modo inevitável sobrevém a miséria ou aumente a existente206

.

Agostinho apresenta, aí, duas análises que são sempre negativas em relação à cidade

terrena: 1) Se vence e se ensoberbece, perde; 2) se vence e alcança a paz que procurava com a

guerra, só poderá manter essa mesma paz mantendo-se acima dos demais homens,

permanecendo em constante posição de guerra. Logo, seja qual for o resultado das ações da

cidade terrena, ele é sempre um resultado desfavorável para ela. A Cidade celeste,

diferentemente, seja qual for o resultado temporal das ações da Igreja, ganhando ou perdendo,

agora e eternamente, sempre ganha.

204

Et. Nic., V, 9. 205

Pol., II, VI. 206

De civ. Dei, XV, 3.

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2.2.3. A proeminência da Civitas celeste

No que diz respeito à origem histórica das duas cidades, a Cidade celeste,

diferentemente da terrena, tem procedência eterna, e sua natureza santa e boa sempre foi

comunicada aos homens por meio dos atributos que lhe são naturais: bondade, paz, equidade,

longanimidade, justiça, etc. Na relação homem-homem não há uma verdadeira justiça, a não

ser que eles estejam submetidos a Deus. “Portanto, quando o homem não serve a Deus, que

justiça há nele?” Pergunta o Hiponense, de modo retórico. “A verdade é que”, ele responde,

“se não serve a Deus, a alma não pode com justiça imperar sobre o corpo, nem a razão sobre

as paixões. E, se no homem individualmente considerado não há justiça alguma, que justiça

pode haver em associação de homens composta de indivíduos semelhantes?”207

A natureza

injusta dos homens denuncia-se nas injustiças praticadas por toda a história, onde quer que o

homem habite.

Agostinho questiona a real existência da “República Romana”, tal postulada por

Cipião em A República (De re publica), de Cícero. Composta entre 54 e 51 a.C., Cícero

utiliza A República de Platão como modelo para a sua. De re publica é um diálogo fictício

entre nove personagens históricos que se encontram no jardim de Cipião, nos arredores de

Roma, em fevereiro (ou março) de 129 a.C. Entre os nove interlocutores, Cipião tem

destaque, conduzindo a discussão entre seu sobrinho, Tuberão, seus dois genros e alguns

amigos. Todos se interessam pela arte militar, pela política e pela cultura greco-latina. Daí se

justifica que os principais temas do diálogo estejam relacionados aos problemas apresentados

pela organização do Estado e as possíveis soluções para melhorar a relação política-povo – ou

como restituir a unidade ao poder. Como chefe do partido aristocrático, Cipião é convidado a

propor uma definição da melhor Constituição. A sua definição, baseada no modelo romano,

diz que a república é a “coisa do povo” (re publica). O povo, segundo Cipião, é constituído

por homens associados pelo direito a partir de interesses que lhe são comuns. Na definição de

“melhor constituição” de Cipião, Agostinho questiona, principalmente, os dois pontos que,

apoiados numa suposta justiça entre homens, concede o direito legal do governo e da citada

república: “Segundo as definições de que Cipião se serve nos livros A República de Cícero”,

diz o Hiponense,

nunca existiu a república romana. Em poucas palavras define a república, dizendo

que é a coisa do povo. Se é verdadeira semelhante definição, a república romana

207

De civ. Dei, XIX, 21.

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nunca existiu, por jamais haver sido coisa do povo, que é a definição de república.

Define o povo, dizendo-o sociedade fundada sobre direitos reconhecidos e sobre a

comunidade de interesses. Depois explica o que entende por direitos reconhecidos. E

acrescenta que a república não pode ser governada sem justiça. Em conseqüência,

onde não há verdadeira justiça não pode existir verdadeiro direito. Como o que se

faz com direito se faz justamente, é impossível que se faça com direito o que se faz

injustamente. Com efeito, não devem chamar-se direito as iníquas instituições dos

homens, pois eles mesmos dizem que o direito mana da fonte da justiça e é falsa a

opinião de quem quer que erradamente sustente ser direito o que é útil ao mais forte.

Portanto, onde não existe verdadeira justiça não pode existir comunidade de homens

fundada sobre direitos reconhecidos e, portanto, tampouco povo, segundo a

definição de Cipião ou de Cícero. E, se não pode existir o povo, tampouco a coisa do

povo, mas a de conjunto de seres que não merece o nome de povo. Se, por

conseguinte, a república é a coisa do povo e não existe povo que não esteja fundado

sobre direitos reconhecidos e não há direito onde não há justiça, segue-se que onde

não há justiça não há república208

.

A república romana, portanto, com sua soma de injustiças – pois que é também a

soma dos homens que, injustos, nela habitam – não é e nem pode ser a verdadeira (real)

república. A verdadeira república é a que tem em Deus o seu fundamento. Todos os homens,

seres racionais, conhecedores do bem e do mal, são capazes de entender isso, bem como as

implicações que daí decorrem. Essa revelação geral de Deus, por meio do mundo natural,

acompanha a história humana e o desenvolvimento natural das cidades. Deus, presente em sua

criação, não admite que os homens justifiquem seus erros alegando não terem qualquer

conhecimento da divindade. O apóstolo, na carta Aos romanos, destaca isso ao afirmar: “O

que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois

desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza

divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas”209

.

Aquilo que os homens fazem de bom – uma resposta moral positiva – está relacionado à fonte

da bondade, que é Deus; no que fazem de mau, associam-se aos demônios, em obediência às

suas mundanas paixões; é a degeneração da vontade boa.

208

De civ. Dei, XIX, 21,1. Não há dúvida de que as considerações políticas de Agostinho tenham limites, seja

questionando um pensador com Cipião, citando um Cícero ou outro. Tais limites, todavia, não são objeto

imediato do nosso estudo. Para tanto, ver: ELSHTAIN, Jean Bethke. Augustine and the limits of politics. Notre

Dame, Ind.: Notre Dame University Press, 1995. Em língua portuguesa, talvez um dos trabalhos mais completos

seja o de RAMOS, Francisco M. Tomás. A idéia de Estado na doutrina ético-política de S. Agostinho: um

estudo do Epistolário comparado com o “De Civitate Dei”. São Paulo: Edições Loyola, 1984. (Col. Fé e

Realidade, 15). 209

Rm 1, 19-20 (NVI); cf. De civ. Dei, XII, 25. Assim, aquele que prefere adorar a coisa criada ao invés daquele

que a criou, submete-se às suas próprias paixões. Partindo disso não é estranho entender a relação que Agostinho

faz entre a “justiça humana” – que busca sua própria justiça – e a justiça de Deus – que é buscada por aqueles

que o temem –, logo sendo destacada essa dualidade entre a “república dos homens” e a “república de Deus”. O

mal que há, em tudo o que se apresenta, decorre dessa injustiça humana: “Pois bem, justiça é a virtude que dá a

cada qual o seu. Que justiça é essa que do verdadeiro Deus afasta o homem e o submete aos imundos demônios?

Isso é, porventura, dar a cada qual o seu? Ou será que quem tira a propriedade a quem a comprou e a dá a quem

não tem direito a ela é injusto e é justo quem se furta ao Deus Dominador e Criador seu e serve os espíritos

malignos? (De civ. Dei, XIX, 21,1)

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Nessa veia platônico-agostiniana, e ao associar tais atributos na verdade inalienáveis

às fundações humanas, foram criadas as utopias de cidades e repúblicas boas. Os utopistas

mais famosos, depois desses dois, são Thomas Morus (1478-1535), com a sua A utopia (1516)

e Giovanni Domenico Campanella (Tommaso Campanella, 1568-1639), com A cidade do sol

(1602). Tais pensadores, ao atribuírem graus de bondade e beleza às coisas existentes, sempre

encontraram um limite no Ser de Deus. Outros mais também criaram utopias, elevando o bem

comum às portas da divindade ou a ela diretamente se referindo, qualificando-a conforme

suas crenças e possibilidades intelectuais210

. É assim que as cidades terrenas, mesmo as mais

belas e perfeitas em justiça e equidade, sempre encontram seus limites no exercício dessas

boas prerrogativas. Tais governos, bem agindo, nada mais são do que simulacros do Governo

perfeito de Deus. Sendo imperfeito o fundador da cidade terrena, imperfeita é também a sua

fundação.

No princípio das cidades humanas está a figura de Caim, arquétipo da violência e

responsável pelo primeiro fratricídio na História bíblica; a Cidade celeste, diferentemente, tem

a sua origem simbólica em Set. “Nos seus filhos”, diz Agostinho, “começaram a aparecer com

mais evidências os caracteres das duas cidades”211

. Caim e Henoch, Abel e Set representam,

para Agostinho, uma dupla leitura simbólico-conflituosa. Caim e Henoch (fundador da cidade

e aquele de quem ela recebe o nome) “indicam que essa cidade tem um princípio e um fim

terreno onde não é de esperar nada mais do que neste século se pode ver”212

. Abel e Set,

diferentemente, prefiguram um futuro mais glorioso: “Estes dois homens”, diz o Hiponense,

“– Abel significa luto e Set, seu irmão, que significa ressurreição – são a figura da morte de

210

Seja como for, e para que haja uma justiça e paz perfeitas, é necessária a medida de Deus, que é quem atesta a

verdade da piedade (Ep. 155) que, na cidade, demonstra-se fundada na concórdia (“civitas [...] concors hominum

multitudo”, Ep. 155, 3.9). Quase como uma resposta à Política de Aristóteles, Agostinho afirma que, sem essa

concórdia e sem essa verdadeira piedade, “é impossível que se possa conseguir aquela felicidade ou paz temporal

que é o bem do Estado (DCD, XIX, xiii,2; Ep. 130, 2,4)” (RAMOS, 1984, p. 41). Em seguida, citando Agostinho,

Ramos acrescenta: “Esta piedade será, para Agostinho, a primeira exigência daquela justiça – „que julgando

retamente dá a cada um o que é seu‟ (Ep. 155, 3,10) – „sem a qual, como afirmava Cícero, de nenhum modo

pode subsistir a concórdia... o vínculo mais sólido de todo o Estado‟ (De Rep., II, 42-43)” (RAMOS, 1984, p.

41). Para a citação utilizada por Ramos. Cf. De Civ. Dei, II, 21.1. 211

De civ. Dei, XV, 17 (NBA 5/2, 422-423, [1377]). Na etimologia hebraica, o nome de Caim (Qáin) pode

significar “ferreiro”, “lança”, “arma”, etc., ao passo em que o nome do seu irmão, Abel (Hêbel), significa

“vento”, “sopro”, “vapor”, “coisa fugaz”, etc. Mas Agostinho encontra significados mais coerentes à sua tese:

“Agostinho considera primeiramente o significado etimológico dos nomes: Caim significa posse; Henoch

dedicação; Abel luto; Set ressurreição; e o filho de Set, Enos, significa homem, não no sentido de gênero

humano, mas apenas no sentido masculino, não atribuível à mulher. O Hiponense sintoniza, por isso, com a

mentalidade bíblica, segundo a qual os nomes não são um atributo meramente formal, mas revestem-se de um

conteúdo que expressa identidade” (ABREU, 2006, p. 21). 212

De civ. Dei, XV, 17.

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Cristo e da sua vida ao sair de entre os mortos. Desta fé nasce a cidade de Deus, isto é, o

homem que pôs a sua esperança em invocar o nome do Senhor Deus”213

.

Caim, pertencente à cidade terrena, é mau e carnal; Abel, cidadão da Cidade celeste,

é bom e espiritual214

. A relação dualística dessas naturezas é destacada por Agostinho em

paralelo às palavras do Apóstolo, quando este diz: Não é primeiro o espiritual, e, sim, o

animal; depois, o espiritual, “donde se segue que cada qual, por descender de tronco

condenado, necessariamente primeiro é mau e carnal e depois será bom e espiritual, se,

renascendo em Cristo, adiantar na virtude”215

. As duas naturezas evoluem no curso da

História, com as cidades. “Quando ambas as cidades empreenderam seu curso evolutivo, por

nascimentos e mortes sucessivas”, diz Agostinho,

primeiro nasceu o cidadão deste mundo e depois o peregrino do século, pertencente

à Cidade de Deus. A este a graça predestinou, a graça escolheu; fê-lo peregrino no

solo e cidadão do céu. A verdade é que, quanto ao que se lhe refere, nasce do mesmo

nada, originariamente condenado, que os demais; mas Deus, como bom oleiro [...],

fez dessa massa um vaso para honra e outro para ignomínia. Primeiro, fez o vaso

para ignomínia e depois o vaso para honra, porque em cada homem, como fica dito,

primeiro é o réprobo, passo indispensável para todos nós e em que é necessário

deter-nos, e depois o probo, a que chegaremos graças ao progresso na virtude e em

que, chegando, permaneceremos216

.

Teófilo, bispo de Antioquia – e o último apologista de renome do séc. II –, no seu

segundo livro A Autólico, escrito por volta de 180 d.C., afirma que Satanás, enfurecido por

não ter levado Adão e Eva à morte, e pelo fato do casal desobediente ainda ter gerado filhos,

agiu sobre Caim, levando-o a levantar-se contra o seu irmão: “Vendo que Abel era agradável

a Deus, agiu sobre seu irmão Caim e fez com que este matasse seu irmão Abel. Assim

começou a existir a morte neste mundo, que faz caminho até hoje por todo o gênero

213

De civ. Dei, XV, 18. Comparando as duas cidades, o contraste é óbvio: “A cidade terrena não vislumbra

início nem fim que dê ao homem um sentido meta-temporal; a cidade de Deus „vive na esperança [...] gerada que

é da fé na ressurreição de Cristo‟ [De civ. Dei, XV, 18]” (ABREU, 2006, p. 22). 214

De civ. Dei, XV, 2. 215

De civ. Dei, XV, 2. Apesar de relacionado a Caim e Abel, o texto citado por Agostinho (Rm 9, 21) diz

respeito a Adão e a Cristo. Se a relação pode ser feita, disso não temos a menor dúvida; pois Caim, enquanto

representante do homem carnal encontra seu tronco em Adão, diferentemente de Abel que, sendo homem

espiritual, se assemelha a Cristo, tipologicamente falando. Esta relação Adão/Cristo (homem carnal/homem

espiritual) já havia sido feita em capítulos anteriores (De civ. Dei, XIII, 24). Paulo, nas palavras de Harold

Bloom, é o mais dualístico dos autores ocidentais, (cf. BLOOM, Harold. Comentário. In: _____; ROSENBERG,

David. O livro de J. Trad. de Monique Balbuena. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 192). 216

De civ. Dei, XV, 2; cf. Rm 9, 21. As doutrinas da graça, da eleição (predestinação) e da perseverança dos

santos aparecem bem, aí. O perseverar na fé, neste particular e conforme a situação temporal dos cristãos de

Roma sitiada, tem peso moral evidente: pelas obras, mostra-se a fé; pela fé, as obras.

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humano”217

. A progressividade histórica da morte tem seu fundamento em Caim; este,

conforme Teófilo, foi diretamente inspirado por Satanás para cometer o ato imoral. Assim

como foi com a morte, também o foi em relação às cidades. “Caim também teve um filho,

chamado Henoc. E edificou uma cidade, à qual chamou de Henoc, o nome de seu filho. Então

teve início a construção de cidades, antes do dilúvio, e não como Homero mente, dizendo:

„Porque ainda não havia sido construída cidade de míseros homens‟”218

. Aí também, como em

Agostinho, a mais remota origem das cidades está marcada pelo desejo mau, pela violência219

.

Dentre os filhos de Henoc, havia um se chamava Lameque. Ora, Lameque tinha duas

mulheres: Ada e Zilá. Este homem, filho de Caim, não se sabe o motivo da confissão, disse às

suas mulheres: “Ada e Zilá, ouçam-me: [...] Eu matei um homem porque me feriu, e um

menino, porque me machucou”220

. A cidade terrena, que é constituída pelo conjunto dos seres

racionais – conforme uma interessante definição de Agostinho para “povo”221

–, unidos

“sobre direitos reconhecidos e interesses comuns”222

. Embora suas naturezas sejam contrárias

e violentas, por herança223

, se suportam, porque ganham mais com tal união natural, símbolo

da riqueza da união espiritual, onde o elemento contrário – da injustiça – não é alimentado,

não deve ser alimentado. A cidade terrena, no entanto, prospera, progride, mas, para onde?

O fundador da cidade terrena foi fratricida. Levado pela inveja, matou o seu irmão,

cidadão da cidade eterna e peregrino na terra. Por isso não é de maravilhar haja tal

exemplo, ou, como diriam os gregos, tal arquétipo (arkhétypos), sido imitado, depois

de tanto tempo, pelo fundador da cidade que com o tempo havia de ser cabeça da

217

TEÓFILO, A Aut., II, 29. A hereditariedade histórica da violência, fundamentada na figura de Caim, já está

presente, antes de Agostinho, na narrativa de Teófilo. Enquanto Abel é apresentado como “agradável a Deus”,

Caim personifica o tronco primitivo da violência que perpassa os séculos. 218

TEÓFILO, A Aut., II, 30. 219

Conforme o relato do Gênesis: “Caim afastou-se da presença do Senhor e foi viver na terra de Node [A

palavra hebraica “Node” significa “peregrinação”], a leste do Éden. Caim teve relações com sua mulher, e ela

engravidou e deu à luz Enoque. Depois Caim fundou uma cidade, a qual deu o nome de seu filho Enoque” (Gn 4,

16-17; NVI). 220

Gn 4, 23, NVI. 221

De civ. Dei, XIX, 24: “O povo é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de

objetos amados.” 222

De civ. Dei, XIX, 23: “Onde não existe [...] justiça não existe tampouco a congregação de homens, fundada

sobre direitos reconhecidos e comunidade de interesses. E, se isso não existe, não existe o povo, se verdadeira a

definição dada de povo. Por conseguinte, não existe tampouco república, porque onde não há povo não há coisa

do povo.” As repúblicas, ou as cidades, só se mantêm porque existe alguma justiça, e normal consensuais

morais, punitivas, restritivas. O fato de haver entre os homens, mesmo que de modo falho e imperfeito, tal ordem

(governo) e tal justiça, legitimamente reconhecidos, é evidência de um governo justo e perfeito, necessário: o

governo de Deus. 223

Teófilo, por exemplo, fazendo uma relação dos descendentes de Caim, menciona Tobel, que foi ferreiro,

trabalhando com martelo em bronze e ferro. Depois de Tobel, Teófilo diz que os descendentes de Caim são

esquecidos – não são mais mencionados na Escritura, como castigo “por ter ele matado o seu irmão” (A Aut., II,

30).

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cidade terrena de que falamos e senhora de inúmeros povos. Também ali, como diz

um de seus poetas, se regaram com sangue os primeiros muros224

.

O Hiponense compara a figura de Caim com a de Rômulo (c. 753-715 a.C.),

fundador de Roma que, também, foi fratricida. Conforme o mito, Rômulo e seu irmão, Remo,

após matarem o rei Amúlio e devolverem o trono de Alba Longa ao avô Numitor, foram

aconselhados pelo velho rei a fundarem uma cidade. Antes, porém, os dois consultaram os

auspícios para saber qual deles daria seu nome à nova cidade. É assim que, estando os dois no

alto de uma colina, puseram-se a observar o espaço. Remo viu seis abutres sobre o Monte

Aventino, mas Rômulo, logo em seguida, viu doze sobre o Palatino. Daí surgiu uma contenda

que culminou na morte do desafortunado Remo. Outra versão diz que Remo cedeu o direito

de Rômulo dar o seu nome à cidade, devido aos presságios. Mais tarde, estando o plano da

cidade tracejado pelo sulco de um arado, Rômulo, por meio de um edito, proibiu com pena

capital que transpusessem as “suas muralhas”. Remo, zombando da seriedade do tal edito,

passou por cima do traçado. Rômulo, num excesso de ira, matou-o, gritando a todos: “Que

assim pereça, daqui por diante, quem ousar transpor, à força, minhas muralhas!” Se esse

Rômulo é o irmão gêmeo de Remo e se os dois foram, como diz a lenda, amamentados por

uma loba (talvez uma prostituta chamada Lupa), ninguém sabe ao certo – o relato mais

confiável é o de Tito Lívio, que nos fornece as primeiras versões da história, preferindo a

segunda versão aqui apresentada –, mas é aceito que o primeiro monarca de Roma foi um rei

chamado Rômulo, de onde veio o nome da cidade que começou nessa monarquia, tornando-

se, depois (de 509 a 31 a.C), uma República e, finalmente, um grande Império.

Apesar de ter assassinado o irmão, Rômulo prosseguiu nos seus ambiciosos projetos.

Convidou pastores, assassinos, ladrões e fugitivos para a sua cidade; criou um asilo

inviolável que foi muito grato aos escravos fugitivos e aos aventureiros. Fez-se

proclamar rei por essa multidão heterogênea, sem lei nem freio, e estabeleceu uma

forma de governo225

.

Foi este império que, após conquistar grande expansão territorial (a qual não

conseguia mais controlar) e enfrentar grandes crises internas que abriram brechas para os

usurpadores – chegando a haver, ao mesmo tempo, mais de um imperador declarado –, ruiu

sob a invasão dos bárbaros no V século da era cristã, no fim da vida de Agostinho.

224

De civ. Dei, XV, 5. 225

SPALDING, 1993, p. 125.

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Rômulo e Remo, na versão do Hiponense, são cidadãos da cidade terrena e agem

conforme suas naturezas avarentas, imorais. Caim, arkhétypos de Rômulo, também age de

modo imoral, e funda uma cidade, Henoc, regando “com sangue fraterno os primeiros

muros”226

.

Foi o que aconteceu na fundação de Roma, durante a qual, segundo a História,

Rômulo matou o irmão, Remo, com a diferença de aqui serem ambos cidadãos da

cidade terrena. Ambos pretendiam a glória de ser fundadores da república romana,

mas não podiam ambos ter a glória que teria um só deles, se o outro não existisse,

porque os domínios que sua glória queria, dominando, seriam mais reduzidos, se lhe

minguasse o poder, por viver o companheiro no mando. E para o mando passar

íntegro a um apenas, eliminou o companheiro, com o crime aumentando o império

que com a inocência fora menor e melhor227

.

O procedimento dos cidadãos da Cidade celeste deve contrariar tais modelos

negativos; a lição é dada ao contrário, mostrando, de modo ilustrado, como não deve ser o

agir dos santos. Agostinho não menciona o título da obra ou do autor de onde extrai sua

versão da história – prática comum na Antiguidade –, utiliza-a, porém, no paralelo que faz

entre a ação de Caim e a de Rômulo, para demonstrar que, diferentemente do bem, o mal tem

uma duração delimitada pelo Bem Supremo. Mesmo que houvesse, humanamente falando,

um cidade perfeita, coisa que Roma não era, ainda assim isso não seriam mais do que um

simulacro imperfeito da Cidade celeste. Sendo terrena, tanto Roma como qualquer outra

cidade estava/está à mercê da fortuna, ora venturosa, ora não; e tudo isso regido pela Divina

Providência228

. Não há, aí, lugar para um acaso caótico na criação, mas, nela e na história,

eventos ordenados, teleologicamente encadeados.

O acontecido entre Rômulo e Remo mostra como a cidade terrena se divide contra si

mesma; o sucedido entre Caim e Abel é reflexo da inimizade que existe entre as

duas cidades, entre a Cidade de Deus e a dos homens. Em suma, que os maus lutam

uns contra os outros e, por sua vez, contra os bons. Mas os bons, se perfeitos, não

podem ter nenhuma alteração entre si229

.

226

De civ. Dei., XV, 5. 227

De civ. Dei, XV, 5. 228

Tal modo de ver o desenrolar histórico, ligando-o ao governo divino, perdurará por quase toda a Idade Média.

O marxista húngaro Mészáros, não deixou de considerar tal modelo “educativo” medieval, ligado à metafísica

que ele, evidentemente, questiona: “Os sistemas representativos na Idade Média”, diz ele, “caracterizavam-se

pela obliteração radical da vitalidade da verdadeira particularidade histórica. Em vez disso, eles sobrepunham

tanto às personalidades como aos eventos registrados a universalidade abstrata de uma „filosofia da história‟

religiosamente preconcebida em que tudo teria de estar diretamente subordinado à postulada obra da Divina

Providência, como instâncias positivas ou negativas – ou seja, exemplificações ilustradas – dessa Providência.

Assim, segundo santo Agostinho, autor da maior filosofia da história de inspiração religiosa, „na torrente da

história humana, duas correntes se encontram e misturam-se: a corrente do mal, que flui de Adão, e a do bem,

que vem de Deus‟” (MÉSZÁROS, 2002, p. 60). 229

De civ. Dei, XV, 5.

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No mesmo sentido, de uma perspectiva espiritualista, o Hiponense relaciona um

texto da Epístola aos romanos230

à luta que se processa entre as duas cidades, comparando-a à

luta interna do cristão contra a sua natureza carnal. Enquanto a carne se apega às coisas da

cidade terrena, o espírito se volta para as coisas da Cidade celeste. De modo que o dualismo

refletido nas duas cidades marca, na verdade, o conflito ontológico entre o bem e o mal –

tema que é central em toda a redação da De civitate Dei231

e em praticamente todas as suas

obras. Mesmo os bons, devido à sua natureza carnal, podem ser encontrados, às vezes, em

conflito com os maus (por desejar aquilo que apetece sua natureza carnal) e sempre consigo

mesmos (por desejarem vencer os apetites dessa natureza). A luta moral do cristão se

configura assim:

Em cada homem a carne apetece contra o espírito e o espírito contra a carne. Por

isso a concupiscência espiritual deste pode lutar contra a carnal daquele, como os

bons e os maus lutam entre si. É certo, além disso, poderem lutar entre si as

concupiscências carnais de dois bons, embora não perfeitos, como lutam entre si os

maus, até a sanidade dos capazes lograr a derradeira vitória232

.

Sendo imperfeita, a carne milita tanto contra o Espírito. O ideal moral é, como na

Carta a Diogneto, modelar: no exemplo prático da negatividade retributiva da má ação.

Assim, idealisticamente falando, se ele é ferido, não fere; se lhe devem, perdoa – como no

exemplo evangélico do servo que teve uma altíssima dívida perdoada233

. O perdão é a “moeda

do Reino”, e nele se manifesta o amor, que não leva em conta os muitos defeitos do Outro, ao

230

De civ. Dei, XV, 5. Na Epistola, o texto é como segue: “Quem vive segundo a carne tem a mente voltada para

o que a carne deseja; mas quem vive de acordo com o Espírito, tem a mente voltada para o que o Espírito deseja”

(Rm 8, 5; NVI). 231

Sobre o problema do mal na obra do Bispo de Hipona, ver: COSTA, Marcos R. N. O problema do mal na

polêmica antimaniquéia de Santo Agostinho. Porto Alegre: EDIPUCRS/UNICAP, 2002. Ver ainda: EVANS,

G. R. Agostinho sobre o mal. Trad. de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1995. 232

De civ. Dei, XV, 5. 233

De civ. Dei, XV, 6. O texto utilizado por Agostinho é o de Mt 18, 23-35 (NVI), que diz o seguinte: “O reino

dos céus é semelhante a um rei que desejava acertar contas com seus servos. Quando começou o acerto, foi

trazido à sua presença um que lhe devia uma enorme quantidade de prata. Como não tinha condições de pagar, o

senhor ordenou que ele, sua mulher, seus filhos e tudo o ele possuía fossem vendidos para pagar a dívida. O

servo prostrou-se diante dele e lhe implorou: „Tem paciência comigo, e eu te pagarei tudo‟. O senhor daquele

servo teve compaixão dele, cancelou a dívida e o deixou ir. Mas quando aquele servo saiu, encontrou um de seus

conservos, que lhe devia cem denários. Agarrou-o e começou a sufocá-lo dizendo: „Pague o que me deve!‟ Então

o seu conservo caiu de joelhos e implorou-lhe: „Tenha paciência comigo, e eu lhe pagarei!‟ Mas ele não quis.

Antes, saiu e mandou lançá-lo na prisão, até que pagasse a dívida. Quando os outros servos, companheiros dele,

viram o que havia acontecido, ficaram muito tristes e foram contar ao seu senhor tudo o que havia acontecido.

Então o senhor chamou o servo e disse: „Servo mau, cancelei toda a sua dívida porque você me implorou. Você

não devia ter tido misericórdia do seu conservo como eu tive de você?‟ Irado, seu senhor entregou-o aos

torturadores, até que pagasse tudo que lhe devia. Assim também lhes fará meu Pai celeste, se cada um de vocês

não perdoar de coração a seu irmão.”

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ponto de lhe negar o perdão, quando esse é requerido, buscado com legítimo arrependimento.

Do mesmo modo que o rei agiu em relação ao homem que não perdoou os míseros cem

denários do seu companheiro, tendo ele mesmo sido perdoado de uma enorme dívida de dez

mil talentos, assim também o Senhor agirá em relação àquele que, tendo sido perdoado por

Deus de seus pecados, não souber perdoar as ofensas do Outro.

2.2.4. “A medida de amar é amar sem medidas”: o duplo repouso do peregrino

No comentário que faz à Regra de santo Agostinho, Clodovis Boff lembra que o

povo, na sua religiosidade simples, costuma repetir, sem saber, o primeiro e fundamental

mandamento da/na Regra, que diz: “Antes de tudo, irmãos caríssimos, amai a Deus e depois

ao próximo”234

. “Primeiro a Deus...”, diz o povo235

. O amor a Deus se mostra no amor ao

próximo. E qual é a medida desse amor? É aquela que Agostinho já conhece de uma carta de

um discípulo de Severo, endereçada ao seu mestre, e que diz: “A medida do amor é o amor

sem medida.236

No amor (o Espírito) ao amans (o Pai), o cristão, no amatur (o Filho), encontra o seu

primeiro repouso237

; o outro repouso, final, onde o amor nunca cessa, mesmo quando cessar a

fé e a esperança, está no celeste porvir, na Cidade celeste, que é para onde ele se dirige, do

tempo para a eternidade. Até lá, o amor e o perdão entre os cristãos – e em extensão aos

pagãos –, Agostinho enfatiza, é a “medicina de Deus” para curar suas almas do sofrimento

neste “vale de lágrimas”. “Assim se curam os cidadãos da Cidade celeste que peregrinam por

este vale de lágrimas e suspiram pela paz da pátria soberana. O Espírito Santo opera

interiormente, para surtir efeito o remédio aplicado no exterior”238

. Portanto, quem age no

homem interior – e que fomenta sua boa ação exterior – é o Espírito, pois que, sem ele, o

234

Regra, n. 1. Parafraseando o versículo 20 do capítulo 4 da primeira Epístola de são João, Agostinho diz que,

se alguém não ama o seu próximo, a quem vê, tampouco pode dizer que ama a Deus, que não é visto senão no

próximo. Assim: “É começando pelo segundo amor que se chega ao primeiro amor” (Serm., 265, 9). Toda “a

Regra de Santo Agostinho”, diz Clodovis Boff, “prefere falar de amor. Toda ela é assim colocada sob o signo do

amor. Aliás, Agostinho não cansa de lembrá-lo, também e sobretudo quando parece que o amor pode ser deixado

de lado, como no caso da correção de um irmão (26), do castigo (27-28) ou do exercício da autoridade (43 e 46).

E termina sua regra dizendo que ela deve ser observada „com amor‟ (48).” (BOFF, 2009, p. 49). 235

BOFF, 2009, p. 50. 236

Epist., 109, 2; entre as cartas agostinianas. 237

A analogia aparece em De Trin., VIII, 10,14: “O amor, porém, supõe alguém que ame e alguém que seja

amado com amor. Assim, encontram-se três realidades: o que ama, o que é amado e o mesmo amor. O que é,

portanto, o amor, senão uma certa vida que enlaça dois seres, ou tenta enlaçar, a saber: o que ama e o que é

amado?” Comentando a passagem acima, Huisman afirma: “Aquele que ama, aquele que é amado e o amor

constituem uma unidade.” (HUISMAN, 2000, p. 257). 238

De civ. Dei, XV, 6.

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homem jamais responderia favoravelmente ao projeto de Deus, tanto em relação às ações

morais quanto às espirituais. Nesse último sentido, mais que no primeiro, o homem é sempre

o sujeito da ação (passivo), ao passo em que Deus, mediante sua graça, é agente ativo, a

Divina Providência. Contrapondo a doutrina que Pelágio expunha em uma obra intitulada De

natura239

, Agostinho acredita que a justificação não pode advir do esforço humano, embora se

inscreva nos limites do seu agir; sem o auxílio da graça, porém, todo esforço está fadado ao

fracasso. O livre-arbítrio e a observância dos Mandamentos, por maior que seja o zelo com

que se faça, dá-se insuficiente à justificação pessoal.

Aí se apresenta, necessária à justificação, a doutrina da graça240

– caríssima a

Agostinho e que lhe valeu, em reconhecimento, o honroso título de “doutor da graça”241

– e a

do Mestre interior (ou da iluminação). Internamente, o Mestre dirige o cristão para a boa ação,

que só pode ser aquela que é fincada na Verdade. Os mestres exteriores, mesmo os melhores,

não podem fazer mais do que incitar seus discípulos à ação242

; mas, com que autoridade o

fazem, se eles próprios não forem dirigidos pelo Mestre que opera internamente? Tanto a

vontade de crer como o querer crer vem de Deus; do mesmo modo é a ação moral boa, a boa

vontade243

.

239

Escrita na Sicília em 414, em forma de diálogo, tal obra chegou às mãos de Agostinho por intermédio dos

jovens monges Timásio e Tiago (cf. De nat. grat., I, 1). “Nesta obra”, diz Agustinho Belmonte, “Pelágio

desenvolve um ensino fundando-se numa concepção de uma natureza humana sadia, vigorosa, íntegra, capaz de

cumprir toda a lei, levando vida imaculada. O homem pelagiano goza de perfeito equilíbrio moral. O pecado não

atinge sua natureza, mas seu mérito. Quando peca, torna-se culpável de sua má ação. Perdoado, volta à sua

perfeição. Não é prisioneiro de uma inclinação mórbida para o mal” (BELMONTE, Agustinho. Introdução. In:

AGOSTINHO, Santo. A natureza da graça. In: _____. A graça. Trad. de Agostinho Belmonte. São Paulo:

Paulus, 1998/1999. v. 1. p. 105. (Col. Patrística, 13). 240

As obras de Agostinho em que a doutrina da graça é melhor apresentada, são: De spiritu et littera (Sobre o

espírito e a letra), De natura et gratia (Sobre a natureza e a graça), De gratia Christi et peccato originali (Sobre

a graça de Cristo e o pecado original), De gratia el libero arbitrio (Sobre a graça e o livre-arbítrio), De

correctione et gratia (Sobre a correção da graça), De praedestinatione sanctorum (Sobre a predestinação dos

santos) e De dono perseverantiae (Sobre o dom da perseverança). A tradição teológica classificou tais obras

como “escritos sobre a graça”. Uma recente edição em língua portuguesa (Paulus) reuniu as referidas obras em

dois volumes, com o título geral: A graça. Cf. AGOSTINHO, Santo. A graça. 2. ed. Trad. de Agustinho

Belmonte. São Paulo: Paulus, 1998/1999. 2 v. (Col. Patrística, 12/13). 241

“Foi o maior defensor da graça, mas suspeito de desvalorizar a natureza, criador de uma doutrina

antropológica pessimista fundada na convicção de que, desde a queda de Adão, a natureza humana está

profundamente corrompida, incapaz, por si só, de um ato bom. Fora da graça, só incertezas e misérias. A

natureza é cega e corrupta. Desta polêmica nasceram as doutrinas católicas ocidentais do pecado original, da

graça, da predestinação e da satisfação vicária” (BELMONTE, 1998, p. 109 242

“Quanto a mim”, diz Adeodato, “advertido pelas tuas palavras, aprendi que o homem, pelas palavras, não é

mais que incitado a aprender, e que é de muito pouco valor o fato de que grande parte do pensamento de quem

fala se manifesta pela locução. Se realmente se dizem coisas verdadeiras, só o ensina Aquele que quando nos

falavam de fora, nos advertiu de que Ele habitava no interior” (De Mag., XI-XIV). 243

De nat. grat., XXXIII – XXXIV. “Esse ensinamento”, diz Agostinho, “não somente não desvaloriza o que

está escrito: Que é que possuis que não tenhas recebido? mas o confirma. Pois a alma não tem capacidade de

receber e conservar os dons, aos quais se refere a sentença, a não ser consentindo. Por isso, o que tem e o que

recebe vem de Deus, mas o receber e o conservar dependem de quem recebe e possui” (De nat. grat., XXXIV,

60).

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Embora, para falar aos sentidos humanos, aos corpóreos em espécie humana e aos

outros em sonhos, Deus se sirva das criaturas a Ele sujeitas, é inútil para o homem a

pregação das verdades, se Ele não opera e move interiormente com sua graça. Mas

Deus faz isso com juízo muito secreto, mas justo, e dos vasos de misericórdia

discerne os vasos de ira244

.

Os sentidos, aí, atestam aquilo que é externamente manifesto, mas o convencimento

interior é ação divina. Referindo-se aos vasos de ira, alguns exemplificados pela história

bíblica – como no caso de Esaú ou do faraó que persegue Moisés e o povo hebreu –,

Agostinho se remete novamente ao apóstolo Paulo, privilegiando-o. O exemplo modelar,

positivo ou negativo, com base nas Escrituras, é um recurso recorrente em Agostinho – como

o era em são Paulo –, visando à memória visual do fato, com o fito de tornar o exemplo vivo

àquele que não o viveu de per si. É como diz Mészáros, que já citamos:

Eles [os medievais, seguindo o exemplo de Agostinho] sobrepunham tanto às

personalidades como aos eventos registrados a universalidade abstrata de uma

“filosofia da história” religiosamente preconcebida em que tudo teria de estar

diretamente subordinado à postulada obra da Divina Providência, como instâncias

positivas ou negativas – ou seja, exemplificações ilustradas – dessa Providência245

.

Há quem veja, no modelo político-moral de Agostinho, conforme encontrado no De

civitate, não apenas a representação conflituosa entre duas cidades, mas três (tertium quid): a

terrena, sendo uma em particular, em relação à civitas Dei, que é outra; e a do Diabo (civitas

diaboli). “Essa osmose histórica das duas cidades, distintas na ordem ideal”, diz Abreu,

“conduziu alguns a quererem, na senda duma influência platônica, atribuir a Agostinho uma

terceira cidade, resultante do encontro histórico das duas primeiras na ordem real”246

. O tema

das três cidades escapa ao nosso interesse, mas não tem sido negligenciado por estudiosos da

obra do Hiponense, bem como por alguns historiadores247

.

Há ainda, em relação ao conflito das cidades, o tema que se volta naturalmente a um

agostinismo político, conforme aqui enfocado na bese da historicidade linear e progressiva da

De civitate Dei, envolvendo os seguintes aspectos, distintos e conciliares: 1) o princípio de

244

De civ. Dei, XV, 6. 245

MÉSZÁROS, 2002, p. 60. 246

ABREU, 2006, p. 18. 247

Neste sentido: JOURNET, Charles. Les trois Cités: Celle de Dieu, Celle de l‟Homme, Celle du Diable. In:

Nova et Vetera, v. 33, p. 25-48, 1958. RAMOS, 1984, p. 259-265. MARROU. Civitas Dei, Civitas Terrena:

num tertium quid? In: Studia Patristica, v. 64, p. 342-51, 1957. HAWKING, Peter S. Polemical counterpoint in

“De Civitate Dei”. In: Augustinian Studies, v. 6, p. 97-106, 1975. LANGA, Pedro. La “Ciudad de Dios” y La

“Ciudad del Hombre”: convergencias y tensiones. In: Estudio Augustiniano, v. 25, p. 512-13. 1990.

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uma sociedade sobrenatural fundada na Soberania de Deus; 2) as consequências (ações)

práticas de ser membro dessa sociedade, tanto na esfera religiosa quanto na secular e 3) as

consequências práticas tardias, obtidas da obra no decorrer da Idade Média, favorecendo –

mesmo que não fosse esse o pensamento primário do Hiponense – o domínio da Igreja sobre o

Estado, sobre as ciências e suas eventuais consequências históricas248

. Nesse particular,

Gilson nos diz que:

Pessoalmente, Agostinho representou-se a condição política dos cristãos de uma

maneira que se parece muito com a que a Carta a Diogneta descrevia. Ele viu a

Cidade de Deus continuando sua peregrinação através da Cidade terrestre e nela

recrutando membros de toda condição, de toda nacionalidade e de todos os idiomas,

que usam a paz relativa da Cidade terrestre para desfrutar um dia da paz suprema da

Cidade de Deus249

.

Em hipótese alguma podemos pressupor que Agostinho tenha previsto a evolução

que suas idéias teriam na formação do pensamento cristão-medieval em toda a sua extensão,

como na relação Igreja-Estado. Nesse ponto, vale a máxima de que as idéias são maiores que

aqueles que as idealizam.

No levantamento das datas históricas dos flagelos dos pagãos, o Hiponense contou,

por exemplo, com o laborioso trabalho do padre espanhol Paulo Orósio (c. 385-420).

Aceitando a sugestão de Agostinho, com quem havia se encontrado em 411, Orósio compôs a

Historiarum adversus paganos, onde procura demonstrar que todos os que estão “fora da

cidade de Deus”, os gentiles (ou pagani, por viverem em “aldeias”, pagi), sofreram no

passado tantos males quanto os que agora, com a presença dos godos, sofrem; e dos quais se

queixam, acusando os cristãos. Nas palavras de Gilson: “Nunca a história foi mais claramente

escrita com vista a provar uma tese, e a de Orósio poderia, de fato, se intitular „Crimes e

Castigos‟”250

. Na Historiarum adversus paganos, todos os impérios têm seus momentos de

apogeu e queda, pois que todo o poder pertence a Deus. Os poderes seculares, derivados do

poder real (ou do poder de Deus), nada mais são que setas a apontar para esse poder – a

hierarquia do poder secular (para usar um termo mais moderno) se espelha na hierarquia

celeste-espiritual, no governo da Cidade celeste. Todos os eventos temporais, o apogeu e a

248

Mais sobre o agostinianismo político, ver: BROWN, Peter. Political Society. In: MARKUS, Robert A. (Ed.).

Augustine: a Collection of Critical Essays. New York: Doubleday, 1972. p. 311-35. BREZZI, Paolo.

L‟influenza di S. Agostino sulla storiagrafia e sulle dottrine politiche del Medio Evo. In: Humanitas, v. 9, oct.-

nov., p. 988, 1954. E sobre a influência que a De civitate Dei vai ter na famosa “doutrina dos dois reinos” ou dos

“dois gládios”, por toda a Idade Média, e que vai esbarrar em Lutero, ver: EBELING, 1988, p. 139-51. 249

GILSON, 1998, p. 199. 250

GILSON, 1998, p. 200.

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queda dos impérios, seguem um programa divino. Mesmo que os homens não o saibam,

incluindo os cristãos, tudo concorre para o bem deles e para maior glória de Deus251

.

Esse vasto quadro da seqüência providencial dos impérios permanecerá sob os olhos

dos historiadores da Idade Média e, inclusive no século XVII, o Bosseut do Discurso

sobre a história universal será o continuador de Orósio, mais ainda, talvez, do que

de Agostinho252

.

Tanto Orósio quanto Agostinho entendem que, não sendo o Império (ou a república)

fundado na justiça, e ainda sujeito à temporalidade, deve se sujeitar ao governo de Deus; esse,

sim, justo, eterno, sábio e bom, mesmo em face do sofrimento pelo qual se pode perguntar:

“por quê?”253

. Também é certo que, baseados talvez menos em Agostinho do que em Orósio,

ou mesmo em Ambrósio, que afirmava que a Igreja era chefe do mundo romano, como já

vimos254

, quase todos os pensadores cristãos da Idade Média defenderão o domínio da Igreja

sobre os reis, sobre a cultura e, por extensão, sobre as ciências. “As Historiae de Orósio”, diz-

nos Gilson,

vão até o ano de 418. Nessa data, ainda não se vê ser esboçada a doutrina que,

aplicando os princípios colocados pela Cidade de Deus, vai levar progressivamente

à “teoria pontifical” da Idade Média. Gelásio I, papa de 492 a 496, observa que o

imperador é filho da Igreja, não seu chefe, mas o poder temporal e o poder espiritual

são distintos a seus olhos, cada um deles derivando sua autoridade de Deus e só

dependendo dEle em sua esfera própria. Assim, o rei está submetido ao bispo na

ordem espiritual, como o bispo está submetido ao rei na ordem temporal. O

dualismo de Gelásio I guarda alguma relação com a doutrina que Dante sustentará

em sua Monarquia: os dois poderes estão coordenados para o mesmo fim último, e

não se trata de uma autoridade temporal direta ou indireta do papa sobre o

imperador. Para que esta última tese seja sustentada, será preciso, em primeiro lugar,

que a Cidade de Deus se confunda praticamente com a Igreja, como de resto o

próprio Agostinho convidava a fazer: Civitas Dei quae este sancta Ecclesia (VIII,

24); Civitas Dei, hoc est ejus Ecclesia (XIII, 16); Christus et ejus Ecclesia quae

Civitas Dei est (XVI, 24). Mas será necessário, além disso, que o temporal seja

concebido como envolto no espiritual, o Estado na Igreja. A partir desse momento, a

Igreja poderá reivindicar seus direitos sobre o temporal, dando-lhe a Sabedoria

251

Também o poeta cristão Aurélio Prudêncio Clemente (c. 348-405), “o Virgílio e o Horácio cristãos”

(BENTLEY apud MORESCHINI; NORELI, 2000. p. 428), numa famosa passagem do seu poema Contra

Symmaque, afirmava que a dominação de Roma, a unificação dos povos e a imposição de uma pax, mesmo à

custa da espada, obedeciam a um programa divino, unindo os povos sob uma mesma lei para que Cristo os

unisse numa mesma fé: “En ades, omnipotens, concordibus influe terris! / Jam mundus te, Christe, capit, quem

congrege nexu / Pax et Roma tenent” (PRUDÊNCIO. Contra Symmaque, 2, 578-636). 252

GILSON, 1998, p. 201. 253

Cf. De civ. Dei, XIX, 21-22. E assim: “Se os árbaros foram enviados para dentro das fronteiras romanas

somente para que [...] a Igreja de Cristo se enchesse de hunos e suevos, de vândalos e burgúndios, de diversos e

inumeráveis povos de crentes”, diz Orósio, “louvada e exaltada seja a misericórdia de Deus, ainda que isto se dê

mediante a nossa própria destruição.” (Orósio apud GONZALEZ, Justo L. Até os confins da terra: uma

História ilustrada do cristianismo – A Era das Trevas. Trad. de Hans Udo Fuchs. São Paulo: Sociedade Religiosa

Edições Vida Nova, 1981. p. 1. v. 3.). 254

AMBRÓSIO, Epist., 11, 4.

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cristã, de que é detentora, autoridade para conduzir as nações, e o próprio Império

até o fim supremo que Deus lhes destinou255

.

Quando o Hiponense diz que “há certos filósofos, contra cujas calúnias defendemos a

cidade de Deus, quer dizer, a Igreja”256

, está, de fato, confundindo o tema de sua obra com a

Igreja e, como também fizera Ambrósio, está envolvendo o estado temporal na esfera

espiritual, e o Estado, por ontonomásia, na Igreja. E se não podemos provar que ele falava da

Igreja Invisível (formada pelos santos de Deus), também não podemos provar que tivesse em

mente a Igreja visível, institucional, formada pelo povo que nela se reúne. O mais provável,

dada a prevalecente natureza espiritualista da obra, é que tivesse em mente a primeira opção.

E, por esse mesmo caminho, não se pode esboçar qualquer acusação de que

Agostinho tenha iniciado o processo de subordinação do Estado à Igreja – mesmo porque, até

onde pudemos ver, os santos estão mais interessados nas coisas de Deus do que nas coisas

terrenas. Por isso que na Carta a Diogneto, dos cristãos, diz-se que, “enquanto cidadãos, de

tudo participam” e, na cidade, não se ocupam em possuir honras, títulos ou propriedades

terrenas, mas, ao contrário, como diz o Hiponense, “servem em mútua caridade, os

governantes, aconselhando, e os súditos, obedecendo, [...] à espera do prêmio na sociedade

dos santos, de homens e de anjos, com o fim de que Deus seja tudo em todas as coisas”257

.

O Livro XV da De civitate Dei apresenta, em síntese e de modo muito prático, o

modelo ético-moral que se espera dos cristãos, que esperam a beatitude eterna, conforme

prometida pelo Senhor sobre o monte. A obra inteira repousa à sombra da última bem-

aventurança que, conforme o Hiponense, volta-se à primeira, revelando a perfeição do

programa ético do Reino. O livro todo reclama à memória as palavras do Senhor, que diz:

“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos

céus”. Sim, as bem-aventuranças são apresentadas como graus de perfeição, e “os primeiros

graus vão recebendo uns dos outros a sua perfeição para, no oitavo, retornar ao ponto de

partida”258

. Consideradas como compêndio da doutrina cristã, as bem-aventuranças

sumarizam as condições indispensáveis para se ingressar na Cidade celeste; a observação dos

seus preceitos denuncia o cidadão da Cidade celeste, como a aurora que denuncia/anuncia o

dia.

255

GILSON, 1998, p. 201-2. 256

De civ. Dei, XIII, 16. 257

De civ. Dei, XIV, 28. 258

De serm. Dom., I, 3, 10.

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Conforme o crescimento da influência e prestígio de Agostinho na Igreja e nas

teologias ocidentais, as implicações ético-morais de sua doutrina serão notáveis e notadas ao

longo da História, marcando profundamente a vida das pessoas e suas maneiras de pensar e

agir – e isso ainda será perceptível, muitos séculos depois, por exemplo, na formação

espiritual e cultural do povo brasileiro, quando da chegada do europeu e a consequente

cristianização dos nativos, dos escravos vindos de África e dos próprios colonizadores em

contato com este tão Novo Mundo, este paraíso feito, a fazer-se. Disso trata o próximo

capítulo.

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3. A recepção da moral agostiniana no Brasil, de 1500 a

1808

Depois de São Paulo, Santo Agostinho é o personagem mais importante para

a instalação e o desenvolvimento do cristianismo. – Jacques Le Goff

3.1. Cultura e cultura cristã: literatura e transmissão de idéias

Neste capítulo, que trata da recepção da filosofia/teologia moral de Agostinho no

Brasil, não será possível fazer um apanhado pormenorizado sobre todos os períodos e as

etapas, em que foram sedimentados ou sedimentando-se, historicamente, alguns aspectos

marcantes da cultura brasileira – que, a princípio, nada mais foi do que a imitação da cultura

européia; cultura de culturas. Não ignoramos que tal periodização seja pertinente e até

conveniente1; talvez em um trabalho muito maior, e somente focado na temática da “recepção

das idéias” – que em nosso caso estariam diretamente ligadas às idéias do colonizador (dito)

cristão, (dito) civilizado; ou daquilo que, aos olhos da cristandade européia, era a civilização,

a civilité (conceito por si só problemático e repleto de implicações que escapam à nossa

1 Quem defende a necessidade dessa periodização é José Antonio Tobias em sua História das idéias no Brasil,

de 1987. O autor sustenta com ênfases variadas que é necessário periodizar as etapas do desenvolvimento da

consciência intelectual e literária do Brasil, porque tal necessidade “nasce do mais íntimo do ser do homem, é-

lhe uma necessidade natural e espontânea”. Defende o afirmado dizendo que: “A inteligência humana, por ser

limitada e imperfeita, só pode entender dividindo. E quando se trata de coisas riquíssimas e descomunalmente

extensas como é a História do Brasil, então mais do que nunca, só mesmo dividindo através da periodização é

que o homem poderá ir entendendo cada vez mais a realidade da mesma História do Brasil, embora jamais possa

entendê-la em toda a sua vitalidade e complexidade”. (TOBIAS, José Antonio. História das idéias no Brasil.

São Paulo: EPU, 1987. p. 14-15). Outro exemplo de periodização, no que diz respeito ao Ensino Religioso no

Brasil, é o que encontramos na obra de FIGUEIREDO, Anísia de Paulo. O Ensino Religioso no Brasil:

tendências, conquistas, perspectivas. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 7-15. (Col. Ensino Religioso Escolar. Série

Pensamentos). Nas páginas introdutórias, a autora apresenta uma breve visão panorâmica da educação no Brasil,

desde a Colônia até 1985, que fica aí como data inconclusa, e atual.

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temática)2. Não ignoramos também que, na medida em que o tempo foi passando, alguns

aspectos da cultura nativa (do indígena) e dos africanos para cá trazidos serão, de um modo

bastante parcimonioso, absorvidos no modelo moral majoritário: o cristão católico.

Assim, evitando anacronismos em função de uma diacronia elementar, veremos que

o pensamento ético/moral de Agostinho, com destaque para o período colonial, nos chega

quase que exclusivamente por meio de fragmentos e doxografias3, ou da instrução oral – na

catequese e nas celebrações religiosas, com destaque, naturalmente, para os padres da

Companhia de Jesus4. Nesse particular e não por acaso, Afrânio Peixoto, num discurso em

1936, numa das reuniões que o Instituto de Cooperação Intelectual da Liga das Nações

realizou, em Buenos Aires, referindo-se às origens culturais do Brasil, disse que recebeu

“tudo dos portugueses e dos padres jesuítas que o haviam descoberto e educado”5. O mesmo

mote perpassa a obra de Jackson de Figueiredo (1891-1930), como também veremos.

2 “A antítese fundamental que expressa a auto-imagem do Ocidente na Idade Média opõe Cristianismo a

paganismo ou, para ser mais exato, o Cristianismo correto, romano-latino, por um lado, e o paganismo e a

heresia, incluindo o Cristianismo grego e oriental, por outro. Em nome da cruz e mais tarde da civilização, a

sociedade do Ocidente empenha-se, durante a Idade Média, em guerras de colonização e expansão. E a despeito

de toda a sua secularização, o lema „civilização‟ conserva sempre um eco da Cristandade Latina e das Cruzadas

de cavaleiros e senhores feudais. [...] O conceito de civilité adquiriu significado para o mundo Ocidental numa

época em que a sociedade cavaleirosa e a unidade da Igreja Católica se esbaroavam. É a encarnação de uma

sociedade que, como estágio específico da formação dos costumes ocidentais , ou a „civilização‟, não foi menos

importante do que a sociedade feudal que a precedeu. O conceito de civilité, também, constitui expressão e

símbolo de uma formação social que enfeixava as mais variadas nacionalidades, na qual, como na Igreja, uma

língua comum é falada, inicialmente o italiano e, em seguida, cada vez mais o francês. Essas línguas assumem a

função antes desempenhada pelo latim. Traduzem a unidade da Europa e, simultaneamente, a nova formação

social que lhe fornece a espinha dorsal, a sociedade de corte.” (ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Trad.

de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. v. 1, p. 67). 3 Quando mencionado em algum texto, sermão, etc. A exemplo da Doutrina cristã de Anchieta ou O sermão de

Santo Agostinho, de Vieira. E isso aí, da escrita, já representa outro grande problema, ao qual daremos alguma

atenção – principalmente porque o texto escrito foi, para o próprio Agostinho, arma contra as heresias do seu

tempo e veículo de propagação da doutrina cristã. Daí que, na formação cultural/espiritual/intelectual do Brasil,

isso do livro e dos livros de Agostinho não pode ser ignorado. 4 “Embora se deva acenar à presença esporádica de alguns religiosos nas primeiras décadas (sobretudo

franciscanos), é a partir de 1549 que se oficializa a vinda de religiosos com a chegada do primeiro grupo da

Companhia de Jesus. O que vai caracterizar a atividade dos religiosos nesse período é a dependência do projeto

colonial lusitano. É o rei quem dirige os destinos da Igreja do Brasil nos primeiros séculos, por força do

padroado. O catolicismo é a religião oficial trazida para a colônia. O Brasil se constitui assim uma cristandade

„dependente‟ de Portugal, embora seja necessário destacar também suas características próprias. A Igreja se

estabelece no Brasil mediante a orientação da Coroa, através da Mesa da Consciência e Ordens. A cistandade

une ao mesmo tempo interesses políticos e religiosos, e é em nome da cristandade que os religiosos colaboram

com o poder civil nas guerras contra os franceses, os holandeses e os gentios. [...] Até 1580, os jesuítas tiveram

exclusividade na atividade religiosa do Brasil, como os missionários „oficiais‟ da Coroa.” (AZZI, Riolando.

História dos religiosos no Brasil. In: _____. [Org.]. A vida religiosa no Brasil: emfoques históricos. São Paulo:

Paulinas / CEHILA, 1983. p. 11-12. [Col. Estudos e Debates Latino-americanos, 5]. p. 9-23). 5 AFRÂNIO PEIXOTO apud FRANCOVICH, Guilhermo. Filósofos brasileiros. Trad. de Nísia Nóbrega. Rio

de Janeiro. Presença Edições, 1979. p. 17. Na Introdução, Francovich diz que, embora às vezes não percebamos

a penetração e a influência que as idéias dos antigos têm sobre nós, sobre nossa formação, e “se algumas vezes

temos a impressão de que não são necessárias é que estão de tal forma arraigadas, pela tradição, em nossa

consciência que nos parecem inatas e naturais e que, para adquiri-las, não foi necessário nenhum esforço. [...]

Esquecemo-nos de que até o catecismo que memorizamos na infância contém a essência das idéias de Santo

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A Companhia herdou os louros da magistratura – a marca maior da ordem – e as

críticas que falam de uma inculcação à força do modelo europeu, cristão e, filho do seu

tempo, guerreiro: pois motivado pela política de expansão européia, domínio dos novos

territórios conquistados e combate às doutrinas que destoavam da fé católica. Esse

inculcamento da cultura estrangeira, notadamente a de Portugal, foi o que levou Sérgio

Buarque de Holanda (1902-1982) a, já no primeiro parágrafo de Raízes do Brasil (1936),

afirmar que “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”6, de tão marcante e insistente a

tentativa de implantação da cultura européia no Brasil, e por tudo o que essa cultura externa

promoveu em nossas formas de convívio, em nossas idéias, etc. Sim! Aprender, nos inícios do

Brasil, era o mesmo que imitar, repetir; constatação do óbvio para quem examina a literatura

dos períodos colonial e monárquico7 – onde pululavam os sermões, poemas, glosas (cópias),

Tomás de Aquino, Aristóteles e outros filósofos antigos” (FRANCOVICH, 1979, p. 13); e aqui, entre os antigos,

sem dúvida, podemos inserir a figura de Agostinho. Publicada em 1939, no Rio de janeiro, traduzido do

espanhol, a obra de Francovich retratava as idéias de alguns pensadores brasileiros que, a seu ver, melhor

representavam a “alma intelectual” do Brasil. E essa “alma” padecia de originalidade. 6 “A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, senão

adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e

mais rico em conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas

idéias, e timbrando em manter tudo isso e, ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje

desterrados em nossa terra”. (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia

das Letras, 2007. p. 31). E, mais adiante: “Podemos dizer que de lá [de Portugal] nos veio a forma atual de nossa

cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma” (HOLANDA, 2007, p. 40). Com relação à

forte presença de Agostinho na cultura portugasa, tema recorrente entre os estudiosos lusitanos, ver:

DOMINGUES, Joaquim; GALA, Elísio; GOMES, Pinharanda. Santo Agostinho na cultura portuguesa:

contributo bibliográfico. Lisboa: Fundação Lusíada, 2000. 150 p. (Col. Lusíada – Documentos, 3). Também

Joaquim Duarte Cardoso, dando conta de um Congresso Internacional sobre Santo Agostinho, realizado na sede

da Universidade de Lisboa, de 13 a 16 de novembro de 2000, com a participação de mais de 400 estudiosos do

pensamento do Hiponense, depois de falar da importância e abrangência das Confissões de “S. Agostinho na

diversidade das suas dimensões – filosófica e teológica, literária e de cultura, pedagógica e histórica, da

espiritualidade e da mística, acentuando nomeadamente a sua presença no pensamento português” (CARDOSO,

Joaquim Duarte. As “Confissões”, 1600 anos depois. In: Revista portuguesa de Filosofia, Braga, v. 57, fasc. 1,

p. 167, 2001), fala de “um longo estudo sobre a presença das Confissões na literatura e na cultura portuguesa

([feito por] João Marques da Universidade do Porto) [ajudou] a enquadrar e a sublinhar a presença e a

actualidade deste texto de referência da cultura do Ocidente” (CARDOSO, 2001, p. 168). 7 Pensar diferente disso requer uma dupla revisão histórica, conforme propõe Flávio R. Kothe: “A revisão do

cânone literário brasileiro implica prévia revisão do relacionamento entre o cânone literário português e o

brasileiro, já que este foi montado como se fosse um ramo daquele, o que não corresponde à formação do

sistema a partir de uma ótica diversa da européia.” (KOTHE, Flávio R. O cânone colonial: ensaio. Brasília:

Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 144). Mais adiante, Kothe, tratando sobre a tradição histórico-literária

brasileira e de como ela mantém o modelo herdado de Portugal, afirma que, na “formação” da literatura nacional,

“o caráter assimétrico da „parceria‟ [colonizador e colonizado] [...] não precisa ser feito à força: aparece como

prestígio, melhor qualidade artística, força teórica, reconhecimento, modo. Pode levar, depois de um estágio de

imitação copiativa, a uma produção mais original, em que a prioridade não reside mais no texto modelar de fora,

e sim na realidade interna. Aos poucos, cria-se uma tradição interna, em que textos criados dentro do país,

primeiro em forma de tradição ou imitações simplificadoras, depois passam a servir, por sua vez, de modelo e

sugestão a outros textos, na mesma „língua‟ e no „mesmo‟ sistema, respondendo a uma realidade assemelhada.

Praticamente não há outro caminho para o desenvolvimento da literatura nacional em países colonizados.

Constitui-se um legado de dominação. Os colonizadores precisam reavaliar o legado tradicional numa

perspectiva pós-colonial: o cânone brasileiro faz, pelo contrário, a auratização da dominação e da espoliação

sofridas. Introjetou-as de tal maneira que não foi capaz de fazer uma reavaliação crítica desse jugo, continuando

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autos e escritos moralistas, fundamentados na tradição cristã patrístico-medieval, segundo o

cristianismo romanizado, incluindo os códigos de direito8. Nas entrelinhas dessa catequese

do/no Novo Mundo, tentaremos identificar as pegadas de Agostinho, ou daquilo que nos foi

por ele legado, notadamente no que concerne à ética, à moral.

Lugar comum na produção intelectual dos dois primeiros séculos é o dualístico

conflito entre as idéias sobre o bem e sobre o mal (ou o bom e o mau – numa acepção moral e

prática); dualismo esse que, com base nos Evangelhos e no neoplatonismo, está presente nas

obras De libero arbitrio, De ordine ou a De moribus Ecclesiae Catholicae, de Agostinho, que

é onde ressoam os temas mais centrais da sua moral – conforme atesta o grande número de

obras de seus comentadores. Duas outras obras essenciais para a temática são as Confessiones

e a De civitate Dei.

O enorme sucesso que a Confessiones sempre teve, trazia a reflexão moral para o

interior do indivíduo, assomado a trechos famosos de De civitate e de outras obras. Obras que

não eram, realmente, desconhecidas dos religiosos que por aqui chegavam, ou dos primeiros

intelectuais (escritores) que por aqui surgiram, com ou sem a intenção de disseminar a fé e a

moral dos Padres. Moral essa que, por exemplo, mesmo sem os retoques da filosofia, aparece

nas entrelinhas do Compêndio narrativo do peregrino da América (1728), de Nuno Marques

Pereira (autor natural de Cairu, na Bahia9); obra que alguns quiseram eleger como “o primeiro

romance brasileiro”. Se fosse assim, então o “primeiro romance brasileiro” nada mais seria do

que um compêndio moral marcadamente situado dentro da tradição da Igreja, daquilo que ela

pregava e propagava como sendo “os bons costumes” conforme a tradição (da Escritura e dos

a obedecer ao ditado de seu antigo senhor” (KOTHE, 1997, p. 146). Também Anísia de Paulo Figueiredo,

observando o modo como a educação colonial, predominantemente religiosa, se baseava num caráter

disciplinador e de adequação à civilidade do conquistador, afirma: “[De 1500 a 1800] o Ensino religioso é

efetivado como cristianização por delegação pontifícia, justificativa do poder estabelecido. Compreedido como

ensino da religião, é questão de cumprimento dos acordos entre a Igreja Católica e o Monarca de Portugal, em

decorrência do regime de padroado. Além do método de doutrinação empregado, o mesmo ensino,

compreendido como catequese, tem um caráter disciplinador imposto a todo tipo de evangelização. Visa à

conquista de índios e negros aos novos esquemas civilizatórios e a sua conseqüente adesão ao catolicismo.”

(FIGUEIREDO, 1995, p. 9). Para Afrânio Coutinho, por fim, e voltando à questão da nossa libertação literária,

“a evolução de nossa literatura foi uma luta entre a tradição importada e a busca de uma nova tradição de cunho

local ou nativo” (COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 17. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 2001. p. 35). Um processo do qual, ainda hoje, não nos livramos completamente; e, agora, não nos parece

mais tão relevante tal “libertação”, e nem necessária. 8 Com relação ao tratamento “legal” dado aos ecravos na Colônia, tema que desenvolveremos mais adiante,

Marvim Harris, por exemplo, afirma: “Os códigos portugueses e espanhóis eram essencialmente a continuação

ou prolongamento de leis medievais que, em última análise, remontavam à lei romana.” (HARRIS, Marvin.

Padrões raciais nas Américas. Trad. de Maria Luíza Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p.

119. [Col. Problemas, Temas e Debates, 7]). 9

“[Nuno M. Pereira] nasceu na Bahia, em 1652 e faleceu em Lisboa, em 1728. De biografia desconhecida, sabe-

se apenas que foi presbítero secular.” (CASTELLO, José Aderaldo. Manifestação literária da Era Colonial

(1500-1808/1836): a literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1960. v. 1, p. 125).

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Padres). O Peregrino, não apenas por sua temática cristã, é um espelho da moral da Igreja

Católica lusitana – aquela que se desejava copiar no Brasil –, e foi um enorme sucesso

editorial à época10

.

No povoamento do Brasil, foram muitas as etapas e as culturas que, aqui,

promoveram não apenas a nossa tão conhecida variedade étnica (termo político que, embora

não nos agrade, facilita a exposição), mas também, ao longo dos séculos, nossa cosmovisão,

nossa língua, nossa “alma nacional”11

.

Tratar das contribuições externas em nossa formação é pertinente porque, nessas

influências, não estão apenas as cosmovisões progressivas que impõem seu valor, ou suas

idéias de valor (moral, político, religioso, estético, etc.), mas as mordaças da adequação do

dominado ao dominador12

– e isso precisa ser sempre notado para que a História não seja

10

E daí os favores do imperador a Manoel Fernandes da Costa, que faz ser publicada uma segunda edição,

garantindo-se o privilégio (direito sobre a obra) por 10 anos; fato pouco comum, mesmo em Portugal. De 1728 a

1765 foram publicadas nada menos que 5 edições da obra, que em suas repetidas edições trazia o enorme título:

Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam varios discursos Espirituaes, e moraes, com

muitas advertencia, e documentos contra os abusos, que se achão introdisidos pela malicia diabolica no estado

do Brasil. Dedico à Virgem da Vitória, emperatris do ceo, rainha do mundo, e Senhora da Piedade, Mãy de

Deos. Autor Nuno Marques Pereira. Lisboa Occidental, Na Officina de Manoel Fernandes da Costa, Impressor

do Santo Officio. Anno de M.DCC.XXVIII. Com todas as Licenças necessárias. Tema da moda, a moral cristã

para o Brasil colônia também aparecerá, seguindo as pegadas do Peregrino, em outra obra famosa, de Mathias

Aires Ramos da Silva de Eça (1705-1763), com a primeira edição em 1752; trata-se do livro Reflexões sobre A

Vaidade dos homens, ou Discursos Moraes Sobre os effeitos da Vaidade, offerecidos a Elrey Nosso Senhor D.

Joseph o I. Por Mathias Aires Ramos da Silva de Eça. Lisboa, (25), Na Officina de Francisco Luiz Ameno,

Impressor da Rev. Fabrica da S. Igreja de Lisboa. M.DCC.LII. Com as licenças necessarias. Mathias Aires teve

uma irmã, Teresa Margarida da Silva e Horta (1711/1712-1787). Essa, inspirada pelo irmão e na onda de sucesso

das obras moralistas que medravam entre os séculos XVII e XVIII, escreveu as Aventuras de Diófanes (que teve,

de 1752 a 1818, nada menos que quatro edições), imitando as Aventuras de Telêmaco, do francês François de

Salignac de La Mothe (1651-1715), Duque de Fénelon. No que diz respeito à produção literária no Brasil, no

período colonial, a obra de Rubens Borba de Moraes (MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia brasileira do

período colonial: catálogo comentado das obras dos autores nascidos no Brasil e publicadas antes de 1808. São

Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros / USP, 1969.) é, sem dúvida, uma das melhores referências. 11

“Costuma-se falar de uma „nacionalidade brasileira‟, mas ela é mais uma ficção jurídica, militar, política e

escolar do que uma realidade social e um fato étnico”. (KOTHE, 1997, p. 176). A identidade nacional é um dos

temas mais fecundos nas discussões dos que escrevem sobre a História do Brasil, ou a sua literatura, libertando-a

do modelo português, ou, mais tarde, Francês. Daí que os portugueses António José Saraiva e Óscar Lopes,

tratando sobre a “típica literatura portuguesa” em relação à brasileira, e reconhecendo as dificuldades de tal

cisão, afirmam que “seria difícil, se não mesmo impossível, apontar uma divisória intrínseca, o mais razoável

será deixar de incluir no nosso estudo da literatura portuguesa as obras posteriores à data da proclamação da

independência desse país” (SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 5. ed.

Corrigida e aumentada. Porto: Porto Editora / Empresa Lit. Fluminense, LDA, [s.d.]). É uma saída estratégica. A

mesma dificuldade, e talvez ainda maior, é notada do lado de cá. Nesse sentido, ver: COUTINHO, 2001, p. 7-75;

KOTHE, 1997, p. 103-40ss. 12

De fato, “el caráter de imposición cultural favoreción en los textos de literatura brasileña del período colonial

una ambigüedad, que no es la sola fluctuación semántica del discurso, exacerbada por el Barroco, sino que está

ligada al hecho de que el discurso literario luso-brasileño y enfrentaba como contradicción las culturas oprimidas

e escluídas. Es evidente que nuestra literatura es la del sector dominante. (CÂNDIDO, Antonio et al. La

literatura latinoamericana como processo. Buenos Aires: Centro Editor de America Latina, 1985. p. 81). Em

maior extensão temporal, segundo Kothe, a dominação transformou-se em “identidade”. “Cinco séculos de

dependência e periferia tornaram tão intrínseca a dominação externa no Brasil que ela se tornou sua natureza,

não sendo mais propriamente percebida como um comando e um discurso externo, a corresponder antes ao modo

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sempre reescrita com os mesmos personagens, e para que o dominado veja novas perspectivas

em seu horizonte. Nos três primeiros séculos, principalmente, esse domínio se deu por meio

da literatura, da música e da religião; e nessa ainda mais e de modo mais perceptível: por suas

regras, dogmas e proibições fincadas na idéia de um juízo porvir (e mesmo terreal) àquele que

infringisse a doutrina estabelecida, oficial. A História da religião no Brasil colonial poderia

ser reescrita com toda a justiça do mundo como uma História do medo. E mesmo que não

tenhamos a intenção de fazer juízos históricos, aqui, a própria “voz histórica” (da História e

da historigrafia, de modo mais indieto) traz em si juízos próprios, seus por natureza;

principalmente quando desapaixonada, sem outra intenção que não o relato factual, e com o

mínimo de preconceitos.

3.1.1. Cultura e cultura cristã: helenismo e cristianismo, ou cristianismo helenizado

A Europa é historicamente herdeira do encontro entre o helenismo e o cristianismo; e

nós somos historicamente herdeiros do resultado disso. “Querendo ou não”, diz Rubem Alves,

somos, em parte, o passado que herdamos. É isto que nos torna seres históricos. A

tradição grego-hebraico-cristã que nos formou, de forma consciente ou inconsciente,

faz parte do nosso ser. E a palavra Deus desempenha uma função crucial na nossa

estruturação13

.

O cristianismo que primeiramente chegou ao Brasil foi aquele que, afetado pelo

helenismo, tornara-se um com ele, não sendo, porém, nem uma e nem outra coisa14

. Se o

modelo de orientação neoplatônica dominara a primeira fase do pensamento cristão

(Patrística), a nova orientação, de natureza mais aristotélica, prevaleceria ao final da Idade

Média, do século XII em diante, mais precisamente. A influência de Agostinho era tão grande

que, mesmo aí, ele continuava falando muito alto (principalmente do século IX em diante).

Ícone da Patrística, o Hiponense fazia elogios aos platônicos como os “philosophi ceteris

de o outro perceber as determinações do sujeito/objeto interno que ao modo de este realmente ser ou poder ser.”

(KOTHE, 1997, p. 103). 13

ALVES, Rubem. O enigma da religião. 5. ed. Campinas: Papirus, 2006. p. 60. Para o mesmo sentido, ver

também: WETZEL, Herbert. O condicionamento histórico étnico-cultural da Igreja no Brasil. In: SALLET,

Isidoro et al. Missão da Igreja no Brasil: V Semana de Reflexão Teológica. São Paulo: Edições Loyola, 1973.

p. 27-47. 14

Disso tratamos com mais propriedade, e também voltado ao pensamento de Agostinho, no artigo De como se

chegou ao conceito de Philosophia Christiana. Cf. SALES, Antonio Patativa de. De como se chegou ao conceito

de Philosophia Christiana. In: Theophilos: a journal of theology and philosophy, Canoas, v. 6/7, n. 1, p. 49-63,

2006/07.

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meliores15

”. Essa confiante aceitação perduraria por séculos. Somente no século XII, com a

descoberta e a utilização cada vez maior das obras do Estagirita, bem como o surgimento do

Nominalismo de Roscellin de Compiègne (c. 1050- c. 1120/5) e de Guilherme de Champeaux

(c. 1070-1121), e daí em diante em maior ou menor intensidade, é que tal orientação

emudecerá, fazendo brilhar as figuras de Aristóteles e, nas pegadas deste e de Agostinho,

Tomás de Aquino, dentre os mais citados nos compêndios de Filosofia. De fato, como afirma

certo historiador contemporâneo:

A influência e prestígio de Agostinho foi tanto, que seu nome aparece

repetidamente, não somente na Idade Média, mas também nos tempos da Reforma

protestante, quando reformadores como Lutero e Calvino reclamavam sua

autoridade e diziam que os seus ensinamentos concordavam com os do santo bispo

de Hipona; seus opositores católicos diziam o mesmo com relação a suas próprias

posições. Mais adiante, nas controvérsias sobre o jansenismo, a discussão, mais uma

vez, girou em torno dos ensinamentos de Agostinho16

.

Aos primeiros quatro séculos da era cristã, como início do estabelecimento das

doutrinas que vigorariam pelos séculos seguintes, forjando a cultura moral do Ocidente, o

helenismo ofereceu as bases para a razoável definição dos dogmas da fé, e Agostinho, melhor

que nenhum outro, e antes de Tomás de Aquino, soube arranjar esse complexo edifício

metafísico numa sólida estrutura argumentativa, mantendo certa sobriedade e respeito entre os

dois pontos aparentemente díspares e, geralmente, auto-replicantes. À pergunta de Tertuliano

(c. 150/55-220/22): “Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a Academia e a Igreja?”17

,

15

Cf. De Trin., IV, 16,21. Os elogios de Agostinho aos platônicos (certamente nas pessoas de Plotino e Porfírio)

estão espalhados por suas obras: Conf., VII, 20,26; 21,27; De doc. christ., II, 28,43; De Civ. Dei, VIII, 12ss;

Cont. acad., II, 2,5, etc. Se Platão fosse vivo, Agostinho acreditava seriamente nisso, ele não veria dificuldades

em aceitar a doutrina cristã. 16

GONZALEZ, Justo L. (Ed.). Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé. Trad. de Reginaldo Gomes de

Araújo. Santo André-SP: Editora Academia Cristã Ltda., 2005. p. 31. 17

Atribuiu-se a Tertuliano, equivocadamente, a máxima: credo quia absurdum, como afirmação da fé cristã em

oposição à filosofia dos gregos, embora tenha formulado as seguintes frases paralelas: credibile quia ineptum est

(“é crível precisamente porque é inepto”, De carne Christi 5), e certum est quia impossibile (“é certo

precisamente porque é impossível”). Referindo-se a Platão, Tertuliano mencionava-o como omnium

haereticorum condimentarium (“o provedor de todos os hereges”, De anima 23,5). E, contra Aristóteles,

arremetia paus e pedras: “Miserável Aristóteles! Foi ele quem lhes ensinou [aos pagãos] a dialética, arte de

construir e de demolir, mutável nas opiniões, forçada nas conjecturas, obtusa nas argumentações [...]. Estejam

atentos aqueles que puseram em circulação um cristianismo estóico, platônico ou dialético! Não devemos ser

movidos pela curiosidade, depois que veio Jesus Cristo, nem pelo desejo de novas investigações, depois que

temos o Evangelho. A partir do momento em que cremos, não desejemos senão crer. Este é, de fato, o primeiro

artigo de nosso credo: [fora de Jesus Cristo] nada há mais que devamos crer” (De praescriptione 7,12). É de

Tertuliano a célebre expressão Christus cogitabatur (“cogitava em Cristo”), que é a maneira como ele pensa a

ação divina a formar o corpo do primeiro homem. Ou seja, ao moldar o corpo de Adão, Deus “pensava em

Cristo”, que modelava o corpo da espécie na qual o Verbo encarnaria. A teologia cristã deve a ele também o fato

de, pela primeira vez, de modo mais profundo, o mistério da Trindade haver sido delineado, com as explicitações

que permitiriam a Agostinho, e mais tarde a Tomás de Aquino, dar a forma praticamente acabada ao dogma.

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Agostinho responde com um turbilhão de livros que, não somente eram dignos de respeito

intelectual como também eram coerentes e concordes, aplacando os ânimos dos dois lados

(dos que rejeitavam a filosofia e dos que a aceitavam). “Os que são chamados filósofos,

especialmente os platônicos, quando puderam, por vezes, enunciar teses verdadeiras e

compatíveis com a nossa fé, é preciso não somente não serem eles temidos nem evitados, mas

antes que reivindiquemos essas verdades para nosso uso”18

.

O caminho estava aberto não somente para a assimilação das verdades ditas pelos

pagãos, mas também para a utilização das mesmas. Tal fórmula seria muito útil daí por diante.

No mais marcante momento da cristianização da Europa, do século VIII ao X19

, os cristãos se

depararam com uma literatura vasta, rica... e pagã. O que fazer com tal literatura? Destruí-la,

meramente, não era nem o melhor e nem o meio mais indicado para manter a ordem e a

tranquilidade diante daqueles que não adotavam a nova fé – o que não impediu grandes

conflitos –; a beleza e o poder de tal literatura não foram ignorados pelos evangelizadores e

nem, menos ainda, pelos evangelizados. A dificuldade (literatura cristã versus literatura pagã)

era um fato no tempo de Agostinho, “mas no século 5° a questão já estava resolvida”20

. A

Justo L. Gonzalez diz que “algumas de suas declarações – „o sangue dos cristãos é semente‟, „o que tem Atenas a

ver com Jerusalém‟? „a alma é naturalmente cristã‟ etc. – se tornaram parte da herança comum da civilização

ocidental” (GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão: do início até o Concílio de

Calcedônia. Trad. de Paulo Arantes. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. v. 1, p. 181). Embora Tertuliano seja

apresentado como o maior opositor da filosofia, em defesa da fé cristã, há quem discorde de tal radicalismo a ele

atribuído, enxergando certas idéias conciliares; o dominicano Batista Mondin é um desses: “Delineia-se neste

ponto um modo de impostar as relações entre fé e razão, entre filosofia e cristianismo, que está muito longe do

que será formulado na história da filosofia cristã: para Tertuliano, contrariamente ao que se costuma dizer, entre

estas duas formas do saber e da cultura nunca houve nem pode haver, em linha de princípio, uma clara antítese,

porque, na sua forma originária de filosofia do senso comum, entre fé e razão, entre filosofia e cristianismo

existe mais bem uma inata, conatural convergência e sintonia” (MONDIN, Batista. Storia della Teologia.

Bolonha: Edizioni Studio Domenicano, 1996. v. 1, p. 155). Para os textos citados, de Tertuliano, ver: VIVES,

José. Tertuliano. In: _____. Los Padres de la Iglesia: textos doctrinales del cristianismo desde los orígenes hasta

san Atanasio. Selección y traducción de José Vives, S.I. Barcelona: Editorial Herder, 1982. p. 361-420. 18

De doc. christ., II, C 41,60-62. Ernst Benz diz que, daí em diante, “a fusão entre o helenismo e o cristianismo

prosseguiu até os últimos séculos. É o que demonstra a participação do platonismo cristão na história intelectual

da Inglaterra e da França, e também um vulto como Friedrich Schleiermacher (1768-1834), cuja tradução de

Platão para a língua alemã figura ao lado de seus discursos „Sobre a Religião‟” (BENZ, Ernst. Descrição do

cristianismo. Trad. de Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 75). 19

Conforme Le Goff, a cristianização da Europa teve uma “viva retomada” – o sentido aqui é de ênfase – no

século 8º e prosseguiu nos séculos 9° e 10°, realizando-se “lentamente, e não sem choques” (LE GOFF, Jacques.

A civilização do ocidente medieval. Trad. de José Rivair de Macedo. Bauru-SP: EDUSC, 2005. p. 61. [Col.

História]). O século XIII viu o aparecimento da Ordem dos Frades Menores (os Franciscanos, como seriam

conhecidos) – que veio a existência contra a vontade de Francisco de Assis (morto em 1226) – e dos Pregadores,

que tem no cônego espanhol Domingos de Gusman (1170 - 1221) o seu fundador – e daí serem chamados de

Dominicanos. Enquanto os Frades Menores adotavam a Regra de São Francisco, que lhe causou grandes tristezas

ao ser redigida, a Regra dos Dominicanos era a de Santo Agostinho, que também visava reconduzir os hereges

ao caminho da fé da Igreja e da moral cristãs, pela prática da Palavra e pela demonstração da piedade encarnada

na vida simples. “Contemporâneos, os Frades Menores e os Pregadores [...] foram a substância das ordens

mendicantes que no século 13 integravam a nova milícia da Igreja”. (LE GOFF, 2005, p. 79). 20

LE GOFF, 2005, p. 108: “Toda a literatura pagã foi um problema para a Idade Média cristã, mas no século 5°

a questão já estava resolvida.”

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resposta ao problema novo era velha. Agostinho mais uma vez se imporia como autoridade

intelectual e moral. Ainda no século XVI, com Tomaso Campanella (1568-1639) – para citar

um exemplo, apenas – essa temática era abordada com o mesmo discurso do Hiponense, que é

citado como exemplo primeiro. “A teologia”, diz ele,

embora não necessite, pelo que lhe diz respeito, de provas tiradas da ciência

humana, destas tem necessidade, pelo que nos diz respeito, para que possamos nos

rebustecer e entender o que é sobrenatural a partir do sensível e natural. Isto é

provado pelo testemunho de Agostinho, Jerônimo, Dionísio e outros Padres que

ensinaram o que se deveria fazer e o fizeram eles mesmos21

.

Na sequência, Campanella ponteia o texto com exemplos, mostrando como a

filosofia e os livros dos sábios pagãos foram utilizados pelos Padres, com o fito de fortalecer a

fé, elevando-a a um nível superior à própria doutrina dos pensadores pagãos22

.

3.1.2. Cultura e cultura cristã: a “posse do livro” como dilema moral

À piedade cristã, o mero fato de “possuir o livro” podia constituir-se em um

problema moral, contrário à fé: “ser possuído por ele”. É o que se constata em relação a um

curioso sonho que Jerônimo tem, e que relata numa carta à Eustáquia: “De súbito”, diz ele,

arrebatado, sou conduzido em espírito ao Tribunal do Juiz, onde havia tanta luz e

tanto era o brilho dos circunstantes, que, prostrado por terra, eu não ousava elevar os

olhos. Interrogado sobre a minha condição, respondi que era cristão. Mas aquele que

estava sentado disse: “mentes; tu és ciceroniano, não cristão”; “onde está o teu

tesouro, ali também está o teu coração”23

.

Embora Jerônimo houvesse optado por uma vida de renúncia, jejuns, orações e

pobreza, mantinha os seus livros, que lhe eram como um patrimônio espiritual; mas isso

gerava o conflito relatado na carta. Como poderia ser cristão e, ao mesmo tempo, prezar pela

21

CAMPANELLA, Tomaso. Apologia de Galileu. Trad. e Org. de Emanuela Dias. São Paulo: Hedra, 2007. p.

54-5. (Segunda Tese). 22

Assim, Campanella diz que Jerônimo, na Carta a Magno, dize-lhe: “não sabes o que deves admirar em

primeiro lugar: a erudição profana ou a ciência bíblica; [Jerônimo] acrescenta que por essas razões o apóstolo

Paulo tinha lido os poetas e os filósofos, que até citava freqüentemente. Gregório, nas Morais, explicando o texto

de Jó que criou a Ursa e Órion diz que isto foi tirado da doutrina dos astrônomos profanos”. (CAMPANELLA,

2007, p. 55). 23

Ep. ad Eust., 22, 30. O texto do sonho, traduzido na integra, encontra-se em: ARNS, Dom Paulo Evaristo. A

técnica do livro segundo são Jerônimo. 2. ed. Trad. de Cleone Augusto Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify,

2007. p. 125-6. A tradução do texto latino é feita pelo citado autor. Ver comentários adicionais sobre essa

passagem em: NOVAES, Moacyr. Linguagem e Verdade nas Confissões. In: PALACIOS, Pelayo Moreno.

(Org.). Tempo e Razão: 1.600 anos das Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2002. p. 33. (Col. Leituras

Filosóficas).

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oratória e pela linguagem rebuscada que caracterizavam seus escritos? “O amor à elegância de

Cícero e o cuidado com a linguagem culta eram objeto de um verdadeiro drama interior24

”;

“diante do tribunal de Cristo: torturado e ameaçado, o pobre asceta renuncia a toda leitura dos

livros profanos que engloba com o nome de codices saeculares25

”.

Agostinho, à semelhança de Jerônimo – com quem chegou a trocar vasta

correspondência, embora nunca tenham se conhecido pessoalmente26

–, também admirava o

estilo de Cícero. Nos primeiros contatos com os Evangelhos, em certa época da sua vida,

chega mesmo a depreciar o estilo rude desses em relação à fina oratória ciceroneana27

, e

admirava Plotino, por sua sabedoria e por seu desapego à matéria28

, e conheceu Aristóteles,

empregando as suas Categorias29

. Com toda essa bagagem, Agostinho resolve o dicotômico

conflito de Jerônimo entendendo a limitação da linguagem (conforme demonstra no De

Magistro30

), aceitando a literatura pagã naquilo que ela tem de bom, naquilo que ela direciona

o homem à Verdade – como fizera Platão, e Aristóteles, e Plotino, e Cícero. Sim, afirma

Novaes,

É possível encontrar uma reconciliação, desde que se tomasse todo o legado pagão

de literatura e eloqüência, numa perspectiva conveniente. Entende-se bem, para

evitar a dicotomia, era preciso, de uma parte, assimilar os valores da cultura clássica

às exigências morais e especulativas do cristianismo; de outra parte, conciliar queria

dizer reconhecer o valor literário justamente das Escrituras, ainda que segundo outro

cânone31

.

Conforme o programa estabelecido no De doctrina christiana, não somente era

possível a utilização de obras de autores pagãos como eram benéficas sob vários aspectos. O

próprio apóstolo Paulo já fizera isso ao citar filósofos pagãos no seu discurso no Areópago;

24

NOVAES, 2002, p. 33. 25

ARNS, 2007, p. 105. Tyrannius Rufinus (345-410), destinatário da Apologia adversus libros Rufini 3, de

Jerônimo – redigida entre 401 e 402 –, por exemplo, menciona essa fraqueza do seu opositor pelo codex de

Cícero: “[...] capita integra dictata ex codice Ciceronis insurunt” (Ap. adv. Hier., 2, 8, PL, XXI, 360, B). 26

Cf. AUGUSTINE, Saint; JEROME, Saint. Letters of Augustine (N. 28, 71, 82) and the Letters of Jerome (N.

112). In: A select library of Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church.Trad. introd. and

explanatory notes of Henry Wace and Philip Schaff. Oxford: Parker; New York: Christian Literature Co., 1890-

1900. Ver ainda: MOHRMANN, Christine. Saint Jérôme et Saint Augustin sur Tertullien. In: Vigiliae

Christianae: a review of early christian life and language. New York: Brill Academic Publishers, 1951. v. 5, n.

1, p. 111-12. 27

Cf. Conf., III, 9. 28

Cf. Cont. acad., III, 41; De beat. vit., IV; Sol., I-IX; Carta 6, 1; Conf., VII, 13; VIII, 3. “O ensinamento de

Plotino contrastava com o dos maniqueus e ajudou Agostinho a reconsiderar sua posição metafísica.” (RAEPER,

William; SMITH, Linda. Introdução ao estudo das idéias: religião e filosofia no passado e no presente. Trad.

de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Loyola, 1997. p. 26). 29

Cf. Conf., IV, 16,28-31; De Trin., V, 5,6; 7,8. 30

Cf. De Mag., XIV; Conf., VII, 17,23. 31

NOVAES, 2002, p. 39.

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Agostinho estava ciente disso ao pensar na união da fides à ratio, ou da ratio à fides, e essa,

sempre, como senhora. São Pedro Damião (c. 1006/7-1072) reafirmará tal programa ao

referir-se à philosophia como ancilla theologiae, como fizera Filo, em relação às doutrinas

helênicas e o judaísmo32

. Nessa mesma intenção, Basílio de Cesaréia (329-376) escreverá

uma Exortação aos jovens a respeito do modo de tirar proveito das letras helênicas; obra

que, com o pretexto de ensinar aos seus sobrinhos, é, na verdade, um tratado pedagógico onde

explica o modo como a filosofia e a Paidéia grega podem levar o cristão ao ascetismo,

devendo ele, pois, saber o que nela é útil ou fútil: “Devemos imitar as abelhas: sugar o mel e

deixar o veneno”, dizia ele.

Embora tenhamos falado do conflito de Jerônimo em relação à literatura pagã, ele

mesmo viria a adotar “o mesmo compromisso que Santo Agostinho: que o autor cristão

utilizasse seus modelos pagãos como os judeus do Deuteronômio tinham utilizado as

prisioneiras de guerra, a quem cortaram o cabelo, cortaram as unhas e deram nova vestimenta

antes de às desposar”33

.

A vastíssima produção literária de Agostinho foi, desde o início, sua maior e melhor

arma contra as heresias que proliferavam entre os cristãos dos primeiros séculos, e seria, nos

séculos seguintes, a base da cultura moral e espiritual do Ocidente. Não nos enganemos,

porém, ao considerar o alcance dessa literatura, ao menos antes do século IX, que é quando,

segundo J. N. Hillgarth, a influência do Hiponense, por suas obras, seria “sentida mais

claramente”34

, e tal influência não diminuirá até a segunda metade do século XII. Para Tomás

32

De congressu quaerendae eruditionis gratia, 79-80. Disso tratamos no final do primeiro capítulo. 33

LE GOFF, 2005, p. 108. Nas palavras do Hiponense: “Os que são chamados filósofos, especialmente os

platônicos, quando puderam, por vezes, enunciar teses verdadeiras e compatíveis com a nossa fé, é preciso não

somente não serem eles temidos nem evitados, mas antes que reivindiquemos essas verdades para nosso uso,

como alguém que retoma seus bens a possuidores injustos. [...] Aliás, que outra coisa fizeram muitos dos nossos

bons fiéis? Não vemos sobrecarregado com ouro, prata, vestes tiradas do Egito, Cipriano, esse doutor suavíssimo

e beatíssimo mártir? Com que quantidade, Lactâncio? E Victorino, Optato, Hilário, sem citar os que vivem ainda

hoje? Com que quantidade, inumeráveis gregos o fizeram? [...] Os pagãos [do Egito] deram seu ouro, sua prata,

suas vestes ao povo de Deus, ao sair do Egito, porque ignoravam que esses dons passariam ao serviço de Cristo.

Esse fato narrado no Êxodo é, sem dúvida alguma, figura que simbolizava, de antemão, o que acabo de dizer,

sem que isso impeça, aliás, alguma outra explicação de igual valor ou talvez melhor.” (De doc. christ., II, C

41,60-62). Ver ainda: De doc. christ., IV, 9. Este programa do De doctrina será um lugar comum por toda a

Idade Média. 34

HILLGARTH, J. N. Cristianismo e paganismo, 350-750: a conversão da Europa ocidental. Trad. de Fábio

Assunção Lombardi Rezende. São Paulo: Madras, 2004. p. 21: “A especulação de Agostinho ou Boetio era

inacessível e seria incompreensível mesmo para o mais estudado homem da época”, diz Hillgarth, acrescentando

que “a influência dessas obras foi sentida muito mais claramente a partir do século IX”. Anstes, dissera: “A

cultura romana mais posterior era predominantemente literária e demonstrada principalmente por citações

apropriadas, cumprimento educado ou epigrama. Ainda assim, quem podia acompanhar a elaborada sátira das

cartas de São Jerônimo ou mesmo a dialética da Cidade de Deus, de Santo Agostinho, era pouco em número.

Não é por acaso que uma grande parte deste livro consiste de sermões e vidas de santos”. (HILLGARTH, 2004,

p. 20-1). Os santos são modelos simples de conduta e moral cristãs a serem imitados; e escrever sobre eles

dispensavam as elaboradas especulações filosófico-teológicas. As hagiografias tornaram-se famosas.

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de Aquino, Agostinho “é tido como intocável”, e o Aquinate “evita ao máximo contradizer as

afirmações do Mestre do Ocidente”35

. Desse modo, ainda em Tomás de Aquino e até a

Refoma protestante do século XVI, o Hiponense continua falando, sendo exaustivamente

invocado como autoridade, como mestre36

. A teologia que dominará os séculos seguintes, por

essa e outras vias, ainda reverbera a voz da Patrística, completamente dominada pelo

pensamento do Bispo de Hipona. “Agostinho é a Patrística”37

.

3.1.3. Cultura e cultura cristã: o Novo Mundo

Na Espanha, durante a colonização do México e do Peru – para não fugirmos ao

contexto latino-americano –, a figura de Agostinho tem um bom destaque; como o mostram

os historiadores da Igreja, sejam os da Católica ou Protestante. Vejamos, de modo breve e a

título de ilustração, alguns exemplos.

Em 28 de abril de 1572, chegaria a Lima o jesuíta espanhol e moralista José de

Acosta (1540-1600); aí ele desenvolveria um árduo trabalho pedagógico e evangelístico. Para

tanto, entre 1584 e 1585, redigiria um relevante manual de doutrina cristã que é, “sin género

35

LUPI, João. Tomás lê Orígenes. In: DE BONI, Luis A.; PICH, Roberto H. A recepção do pensamento greco-

romano, árabe e judaico pelo Ocidente Medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 488. (Col. Filosofia,

171). Sobre o respeito de Tomás de Aquino por Agostinho, em comparação a Orígenes, Lupi questiona: “Se é a

influência do platonismo que desagrada a Tomás, é como o arsenal de Aristóteles que ela é combatida, o que

também é explícito e freqüente. Não é só o aristotelismo que faz a Escolástica, é a rejeição da tradição platônica

dentro da Patrística e do Cristianismo. Resta a pergunta: e Agostinho, que tanto venera Platão, porque nunca é

criticado? Porque é que em Orígenes se vêem as más influências platônicas, e em Agostinho não? São as

escolhas de Tomás, de demorariam muito tempo para explicar, mas cuja existência é inegável.” (LUPI, 2004, p.

496-7). “Não será exagero dizer-se que a alta estatura de Agostinho domina toda a Filosofia Medieval. O que

não significa que sua autoridade (principalmente a partir do século XIII) seja admitida, sempre e por toda a parte,

sem contestação” (JEAUNEAU, 1980, p. 13). 36

De tantos testemunhos sobre a grandeza e a influência de Agostinho, o de W. Walker é modelar: “Em

Agostinho a Igreja antiga atingiu o seu ponto religioso mais elevado desde os tempos apostólicos. Sua influência

no Oriente foi relativamente pequena, em virtude da natureza dos problemas de que principalmente se ocupou.

Todo o cristianismo ocidental, porém, é-lhe devedor. A ele, mais que a qualquer outro personagem, deveu-se a

superioridade que a vida religiosa no Ocidente veio a ter sobre a do Oriente. Estava fadado a ser pai de muitos

dos que viriam a ser os elementos mais característicos do catolicismo romano medieval, como, de resto,

igualmente da Reforma [séc. XVI]. Fundamentada embora nas Escrituras, na filosofia e na tradição eclesiástica,

sua teologia enraizava-se tão profundamente na sua própria experiência que a sua história pessoal adquire foros

de verdadeira interpretação do homem.” (WALKER, Williston. História da Igreja cristã. Trad. de D. Glênio

Vergara dos Santos e N. Durval da Silva. 4. ed. Rio de Janeiro: JUERP; São Paulo: ASTE, 1983. v. 1, p. 231). 37

HIRSHBERGER, Johannes. História da filosofia na Idade Média. 2. Ed. Trad. de Alexandre Correia. São

Paulo: Editora Herder, 1966. p. 29. Logo na seqüência, utilizando-se de duas citações de conhecidos

comentadores de Agostinho, Hirschberger acrescenta: “„A influência patrística na Filosofia medieval coexiste

com a sobrevivência e o continuado influxo de AGOSTINHO na Idade Média‟ [...]. Que pode chamar-se o

mestre do Ocidente, mostra-o o fato da sua influência ainda para além da Idade Média. É uma das colunas da

Filosofia cristã de todos os tempos. „Com AGOSTINHO chegamos ao ponto culminante da Patrística e, talvez,

do toda a Filosofia cristã‟ [...]”. (HIRSHBERGER, 1966, p. 29).

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de dudas, lo más acabado de la teología catequética americana”38

. O catecismo De doctrina

christiana de Acosta será o primeiro livro publicado nas Américas. De declarada influência

agostiniano-renascentista39

,

o Catecismo considera necessário interrogar primeramente sobre la condición

humana, antes de perguntar sobre los misterios de Dios [...]; y que ofrece una

antropología cristiana riquísima, en la que se combina las tesis filosóficas dualistas

(composición alma y corpo) com la doctrina teológica de que el hombre es imagen y

semejanza de Dios. Nos parece que estos pressupuostos, de gran calidad doctrinal,

supusieron una fundamentación sólida y rica a la catequesis americana posterior40

.

De fato, tais pressupostos, já bastante sólidos na prática comum da catequese, se

manterão ao longo de mais alguns séculos, no Peru, na Espanha, no México e, como veremos,

no Brasil. De autoria de Acosta é também o Tercero catecismo o Catecismo por sermones,

que é seu instrumento pastoral mais importante, preparado e traduzido nas línguas aymará,

castelhano e quechua. Acosta pensa nos sermões como alimento ligeiro e de fácil assimilação

e digestão, para que os índios aprendam pouco a pouco, conforme as suas condições, os

fundamentos rudimentares da fé católica. Agostinho é colocado como exemplo:

Es cosa notable lo que San Agustín [...] advierte que es ver el lenguage y plática que

tienen las amas o madres com sus chiquillos de teta, hablando aniñadamente y

gorgeando com ellos. Y aum los hombres com canas, en siendo padres, no se

empachan de parlar con sus hijuelos a su tono y repetirles tayta y mama, y, en

efecto, hacerse niños com ellos41

.

Também o jesuíta mexicano Juan Martínez de la Parra (1655-1701), ao escrever o

Luz de verdades católicas, declara seu débito ao De catechizandis rudibus, de Agostinho42

;

que também influenciara diretamente na redação do Catecismo y exposición de la doctrina

cristiana, do jesuíta espanhol Jerónimo Martínez de Ripalda (1536-1618), publicado em

Toledo, em 1618. Do jesuíta peruano Juan Pérez de Manacho (1565-1626), que foi

reconhecido catedrático na Universidade de San Marcos (1601 a 1604, depois 1620 a 1624) e

38

SARANYANA, Josep Ignasi. El III Concilio Limense (1582-1583). In: _____. (Dir.). Teología en América

Latina: desde los orígenes a la Guerra de Sucesión (1943-1715). Madrid: Iberoamericana; Frankfurt am Main:

Vervuert, 1999. v. 1, p. 174. 39

Defendia-se a necessidade de, primeiro, humanizar o homem, para, depois, melhor evangelizá-lo. Também

Acosta, em sua História natural e moral das Índias (de 1589), afirma que a procedência dos homens das

Américas (os índios) se dava pela rota ao norte, que se comunica com a Ásia. Sendo humanos, eram

descendentes de Adão, que era descendente de Deus e, logo, seus filhos. 40

SARANYANA, 1999, p. 176. 41

ACOSTA apud SARANYANA, 1999, p. 177. 42

Imitando a Agostinho, depois de expor o tema de cada doutrina, De la Parra procura terminar com uma

exortação de caráter moral, de modo breve e sereno.

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professor no Colégio Máximo de San Pablo, de Lima e em Cuzco, consta que tinha excelente

manejo das fontes patrísticas e medievais, e que era “muy pegado a San Agustín”43

. Já na obra

de San Antonino de Florencia (1389-1459), conhecido como um dos grandes moralistas da

baixa Idade Média, “no faltan citaciones de los clásicos, como Platón, Plutarco e Cicerón,

aunque Aristóteles se lleva la palma, siendo el autor más traído, después de Santo Tomás. Los

Padres de la Iglesia se encuentran también presentes, principalmente San Agustín”44

. O

mexicano frei Juan Zapata y Sandoval (c.1547–m.1630), por sua vez, escreveu uma obra de

moral importantíssima, a De iustitia distributiva, seguindo as idéias de Tomás de Aquino,

defendendo uma posição “americana” da fé, tendo em vista a situação dos negros no México.

Zapata y Sandoval era negro, e agostiniano. Sua obra tem a marca da contestação e da

denúncia.

Assim, como se vê, a América Latina, de um modo bastante abrangente, teve sempre

e de modo muito marcante a doutrina moral de Agostinho nos começos da sua História. Aliás,

conforme Elisa Luque Alcaíde, é esse alinhamento da História da Igreja com a História

secular que marca e demarca a doutrina moral de Agostinho, em relação a de Tomás de

Aquino ou de Duns Scotus, por exemplo; e isso, assim, até a sua derrocada, lá pelo século

XVII. Nas palavras dela:

Siempre prevaleció la teología moral sobre la dogmática; aunque hubo algunos

buenos comentaristas de la Suma theologiae del Aquinate e del Primer libro de las

Sentencias de Duns Escoto, la mayoría de los tratados escritos fueron de doctrina

moral y pastoral. Los agustinos en línea com el Hiponense, se distinguen por la

teología histórica: Grijalba describe la universalidad de la Iglesia proyectada desde

América al Oriente; Calancha inserta las eras históricas americanas en la história

bíblica. La teología en los centros de estudios de las Órdenes va haciéndose más y

más acadêmica y, adentrado el siglo XVII, pierde vigor e incidencia en la sociedad45

.

Principalmente por causa da teleologia histórico-escatológica empregada por

Agostinho na redação da De civitate, bem como a relação paralelo-conflitiva entre a cidade

terrena (dos homens, do Diabo [?]) e a Cidade celeste (dos santos, de Deus), a doctrina moral

y pastoral de Agostinho e dos “agustinos en línea com el Hiponense” se manterá na dualidade

aproximação/distanciamento. No mundo, na cidade terrena, a aproximação tem a ver com o

43

SARANYANA, Josep Ignasi. La teologia moral em hispanoamerica desde sus orígenes asta comienzos del

siglo XVIII. In: _____. (Dir.). Teología en América Latina: desde los orígenes a la Guerra de Sucesión (1943-

1715). Madrid: Iberoamericana; Frankfurt am Main: Vervuert, 1999. v. 1, p. 374. 44

SARANYANA, 1999, p. 400-1. 45

ALCAÍDE, Elisa Luque. Las crónicas americanas escritas por religiosos. In: SARANYANA, Josep Ignasi.

(Dir.). Teología en América Latina: desde los orígenes a la Guerra de Sucesión (1702-1714). Madrid:

Iberoamericana; Frankfurt am Main: Vervuert, 1999. v. 1, p. 611.

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cumprimento do mandamento evangélico, mas é preciso, daí de onde os homens estão, o

distanciamento – que tem a ver com o afastar-se do mundo (i.e., das obras contrárias à

doctrina christiana). As ações do cristão, no mundo, têm na moral evangélica o modelo,

sendo esta, mais que dogmática (entendida pela razão), histórico-prática; pois que, embora

ligada a um evento histórico-situado, transcende a ele.

Algo a mais deve ser considerado aqui, principalmente, agora, na questão da tradição

e da transmissão da filosofia/teologia moral de Agostinho no Brasil; trata-se da língua. Tanto

a obra de Agostinho quanto a de Tomás de Aquino, originalmente redigidas em latim, têm o

peso da língua como autoridade impositiva46

. As grandes figuras dominantes, depois dos

gregos, são os poetas de alma latina, como Horácio (65-8 a.C.), Virgílio (70-19 a.C.) – que

escreveu a Eneida por encomenda de Júlio César (100-44 a.C.) – ou Dante Alighieri (1265-

1321), ou mestres da oratória e filósofos, como Cícero (106-43 a.C.) e Catão, o Censor (243-

149 a.C.), dentre outros. A literatura, embora com limites, revela a alma dos povos pelos

caminhos do tempo; e isso transforma-a num importantíssimo guia histórico-documental para

a compreensão das idéias, dos costumes, da luta e da vida daqueles que nos antecederam.

3.1.4. Cultura e cultura cristã: raízes das nossas raízes

Na história de Portugal, conforme narrada em sua vasta produção literária, a cultura

greco-romana – e não precisamos lembrar a tradição cristã que Roma teria e divulgaria

pesadamente, desde o século II –, e não somente ela, é base e fundamento; o Brasil seria o

herdeiro de boa parte dessa cultura, e de outras que prevaleceram ou se amoldaram a esta. De

fato, nas palavras de António José Saraiva e Óscar Lopes:

46

Na colônia, embora houvesse uma imposição da língua civilizada (e cristã), a língua nativa era valorizada na

medida em que servisse de ponte para essa outra – conduzindo o nativo à língua do colonizador. Somente no

século XVIII foi que a língua portuguesa, de fato, foi oficialmente imposta. A natureza da língua como

“imposição”, e no sentido que teve no Brasil colonial, foi estudada por Bethania Mariani, que diz: “A língua

portuguesa, instituição da nação portuguesa, foi intitucionalizada na colônia, ou seja, foi necessário um ato

político-jurídico [o Diretório dos índios] para institucionalizar, oficializar de modo impositivo que era essa, e

apenas essa, a língua que devia ser falada, ensinada e escrita, exatamente nos moldes da gramática portuguesa

vigente na Corte.” (MARIANI, Bethania. Colonização lingüística: línguas, política e religião no Brasil [séculos

XVI a XVIII] e nos Estados Unidos da América [século XVIII]. Campinas: Pontes, 2004. p. 33). Convém notar

que o Diretório é obra do século XVIII, promulgado por Pombal como forma de reafirmação da língua

portuguesa na colônia, de uma vez por todas: “Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações

[...] introduzir logo nos povos conquistados seu próprio idioma”, dizia ele. Como estratégia catequético-

pedagógica, segundo consta em documentos e cartas de missionários da Companhia, também o tupi era

aprendido pelos padres – era a língua geral, brasílica (cf. MARIANI, 2004, p. 95). No Diretório, ela aparece

como “invenção diabólica” que deveria ser suprimida.

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Pelas suas relações com a história social e, especificamente, com a da cultura, e

ainda por evidência intrínseca, não se podem negar certas características universais

ou, pelo menos, muito extensas na história literária, isto é, uma história mais ou

menos universal da literatura. [...] A história da literatura portuguesa, em especial,

está compreendida dentro deste contexto histórico-cultural, pois assimila aportações

milenárias (hebraicas e gregas, por ex.), e influências fundamentais das grandes

literaturas do Ocidente europeu, bem visíveis desde a sua origem47

.

Com relação à nossa matriz cultural, ou pelo menos a maior, foram alguns povos do

Mediterrâneo que começaram a colonizá-la, por volta do século VII a.C. Inicialmente os

fenícios, vindos do Líbano, depois os gregos e os cartagineses. Mas, no século III a.C., os

romanos, em guerra contra Cartago, já haviam conquistado a Península Ibérica (que é onde

estão localizados Portugal e Espanha), dando início à colônia que chamaram de “Portus

Calle” [“Porto no rio Cale”, afluente do Douro] – Portugal é o território mais ocidental da

Europa. Tendo vencido os lusitanos (antiga tribo que habitava às margens do rio Douro) e os

celtas (que viviam mais ao norte), Roma iria controlar, pelos sete anos seguintes, os destinos

de Portugal; e seria assim até a sua decadência. Se a margem sul do Mediterrâneo estava, no

século VI, sob a influência do Islã, a margem norte era dos cristãos. Dois grupos

irreconciliáveis. Em 711, árabes e berberes (muçulmanos) invadiram Portugal, e por 700 anos

foram seus senhores. Foram os castelhanos – liderados pelo reino de Castela, que eram

cristãos – quem, ao norte da Península Ibérica, começaram a lutar para expulsar os

muçulmanos. Os castelhanos, por isso, julgavam-se os legítimos donos de Portugal. Sob o

comando de D. João I, que era membro da Ordem de Avis, iniciaram-se as lutas que

libertariam Portugal de Castela, o que ocorreu em 1385, na famosa batalha de Aljubarrota. A

Casa de Avis, iniciada com D. João, reinaria pelos próximos 200 anos. Com o infante D.

Henrique, filho de D. João I, começaria o período das grandes navegações e descobrimentos.

Mas, à força do tempo, a cultura lusitana vai sendo, ela mesma, diluída em culturas

intelectualmente predominantes. E a herança brasileira já é, aí, uma herança confusa,

fragmentada, inserida num emaranhado de influências externas. Grosso modo, isso tudo

explica um pouco da nossa confusa identidade. Seja como for, o modelo ético-político do

período colonial, no Brasil e em Espanha, tinham diferenças; e essas diferenças já tinham a

ver com esse predomínio das culturas externas, intelectualmente superiores. “Se puede

afirmar con Comblin que el control de la vida socioeconómica, típico de la edade media”,

afirma Hans-Jürgen Prien, “así como la pretensión normativa de la ética Cristiana que iba

47

SARAIVA; LOPES, [s.d.], p. 12.

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emparejado con aquél, subsistió con virulencia por más tiempo en Hispanoamérica que en

Brasil”48

.

A idéia de uma cultura “latino-americana” – e da própria América Latina –, foi uma

criação do imperialismo francês, por volta de 1830. Privilegiava os latinos e a cultura latina

como se fossem próprios do continente, o que, a bem da verdade, foi uma forma de repressão

aos povos e culturas do novo continente, julgados como incivilizados49

.

A língua e a literatura portuguesa não figuravam entre os grandes sistemas de

transmissão de idéias. Os dois mais conhecidos sonetos (“Alma minha gentil” e “Amor é fogo

que arde”) do maior vulto literário de Portugal, Luís Vaz de Camões (c. 1524-1590), por

exemplo, não são dele, mas de Francesco Petrarca (1304-1374), pedra fundamental da poesia

lírica italiana e, sem dúvida, uma das grandes influências da literatura do Ocidente. A

literatura portuguesa “foi grandemente uma literatura de imitação de outras literaturas”, diz

Kothe50

. E é nessa imitação da imitação que, nos primeiros séculos pós-descobrimento, nossa

cultura literária tem seus matizes: seja pela imposição da língua nas colônias, seja na

catequização dos índios e, depois, na submissão dos escravos. O modelo português,

48

PRIEN, Hans-Jüngen. La historia del cristianismo en America Latina. Trad. castelhana de Josep Barnadas.

Salamanca: Ediciones Sígueme, S.A. / São Leopoldo: Editora Sinodal, 1985. p. 185. (Col. El Peso de los Dias,

21). Diferentemente de Las Casas e outros, que “viviam da ética medieval” (PRIEN, 1985, p. 185), o

missionários católicos, no Brasil, viviam sob circunstâncias diferentes, conforme acrescente Prien: “En Portugal,

por el contrario, ya en el siglo XVI la alianza determinante entre el absolutismo y el mercantilismo rechazó toda

intromisión éticamente fundada de la iglesia en el âmbito económico y socil, reivindicando con ello

prácticamente la autonomía de tales ámbitos vitales. Nadie gozaba del derecho de criticar la política económica

dirigida por el rey. Esto explica la „tradición de silencio‟ brasileña, la tácita aceptación del orden legal” (PRIEN,

1985, p. 185). 49

O nome dado ao grande continente, “América”, é, também, não somente um engano histórico – pois não foi

Américo Vespúcio quem o descobriu – e eurocêntrico, como também um profundo desrespeito e desprezo aos

nativos, que são rotulados como nada. Para ser é preciso ser europeu. O nativo, não-civilizado, está na categoria

do animal irracional e, portanto, não é (este ponto, mais adiante, quando tratarmos sobre o problema do índio e a

“escravidão natural”, será desenvolvido). Ainda contra tal nomenclatura, Ciro Flamarion S. Cardoso afirma:

“„América Latina‟ é uma expressão usual, mas inadequada. Designa as porções do continente americano

colonizadas por espanhóis e portugueses. Ora, segundo um critério lingüístico, não se entende por que não

integram a América Latina também Guiana Francesa, Haiti (no passado a colônia francesa de Saint-Domingue),

Martinica, Guadalupe e Quebec (Canadá francês). E do ponto de vista das estruturas econômico-sociais, se

persarmos na situação vigente nos séculos XVII e XVIII, a Jamaica, desde 1660 colônia inglesa e portanto

exterior à América Latina, era bastante similar às regiões de plantations escravistas do Brasil, enquanto Brasil e

Nova Espanha (México), ambos colônias latino-americanas, apresentavam notável constraste estrutural.”

(CARDOSO, Ciro Flamarion S. O trabalho na América Latina colonial. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1988.

p. 7-8 [Série Princípios]). Cardoso, mesmo reconhecendo a inadequação do nome, diz: “Mesmo assim, manter-

nos-emos nos limites tradicionais, tendo o cuidado de ressaltar, na medida do possível, a heterogeneidade do

conjunto que chamamos de América Latina” (CARDOSO, 1998, p. 8). Assim também procederemos. 50

KOTHE, 1997, p. 144. “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda

ordem no jardim das musas”, diz Antonio Cândido. (CÂNDIDO, Antonio. Prefácio da 1ª edição. In: Formação

da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. Ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 2000. 2 v. p. 9. [Col.

Reconquista do Brasil, 177-178]). No que diz respeito ao “fazer filosofia” em Portugal ou às idéias filosóficas

que aí eram estudadas, de 1521 a 1844, ver: PRAÇA, Lopes. História da filosofia em Portugal. 3. ed. Fixação

do texto, Introdução, Notas e Bibliografia por Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 1988. (Col.

Filosofia & Ensaios). A primeira edição da obra de Lopes Praça, hoje clássica em sua temática, é de 1868.

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hegemônico, se manterá até os inícios do século XIX. E mesmo que se atenue isso, não há

como não perceber que, do ponto de vista da história sócio-cultural, “os duzentos primeiros

anos da colonização brasileira nada mais representa do que uma reprodução (com pequenas

variantes locais) da realidade da vida na metrópole”51

, na metrópole portuguesa – inclusive na

arquitetura52

. E, mais ainda, como afirma José Antonio Tobias, “a colonização portuguesa no

Brasil foi colonização de litoral”53

. Ainda nos séculos XIX e XX os interiores do Brasil, às

elites litorâneas, permaneciam como um grande desconhecido.

Quando Euclídes da Cunha escreveu Os sertões, em 1906, revelou ao Brasil uma

face da população que, às grandes metrópoles, parecia inexistente – algo muito próximo do

binômio Herr und Knecht, empregado por G. W. F. Hegel (1770-1831) em sua

Phänomenologie des Geistes (1806) e utilizado por Roland Corbisier em suas considerações

sobre o colonizador e o colonizado, onde aquele aparece como ser, e o outro, não-ser54

. De

fato, Os sertões “é um livro que fornece imagens e enunciados para diferentes discursos

regionais”, afirma Durval Muniz de Albuquerque Jr., acrescentando que:

Em Euclídes aparece formulado o par de opostos que vai perpassar os discursos

sobre a nacionalidade: o paulista versos o sertanejo. [...] O sertão surge como

colagem dessas imagens [espaço substancial, emocional, etc.], sempre vistas como

exóticas, distantes da civilização litorânea55

.

51

TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 18.

De fato, o Pe. Fernão Cardim (1548?-1625), nas suas descrições do Brasil, por exemplo, afirma que “Este Brasil

é outro Portugal”. (CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte / São Paulo: Itatiaia /

Edusp, 1980. p. 157). 52

O modelo de cidade português, na colônia, era composto por duas cidades: a alta, onde habitavam os nobres e

os mais abastados – servindo a altura também como proteção contra o índio, o holandês, etc. – e a baixa, que era

onde ficava a plebe, a classe mais, como a cidade, baixa. De modo alegórico, é uma adequação da posição

política à espiritual, e vice-versa. Nesse dualismo marcante da arquitetura colonial, do modelo português de

estabelecer e estabelecer-se, está representada a Cidade celeste e a cidade terrena – modelos que se remetem a

Agostinho e à consciência político-coletiva que se gerou, daí. 53

TOBIAS, 1987, p. 41. No testemunho de Viriato Corrêa (1884-1967): “O homem branco como que perdeu a

noção de humanidade e criou para o homem negro uma situação inferior à dos irracionais. O negro não era gente,

às vezes era menos que um bicho. Certos senhores tratavam melhor os seus cães e os seus cavalos do que os seus

escravos. Vivia o negro mal alimentado, mal vestido, mal compreendido, a sofrer pacientemente castigos

revoltantes.” (CORRÊA, Viriato. História da liberdade no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;

Brasília: INL, 1974. p. 22). 54

Cf. CORBISIER, Roland. Formação e problema da cultura brasileira. Rio: MEC, 1960. p. 29-30. Sem

pátria, sem família, sem nada, o africano escravizado não é mais que não-ser. 55

ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 3. Ed. Recife: FJN, Ed.

Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p. 53-54. A realidade dos interiores, na pena realista de Euclídes, é um

manifesto que desvela o violento binômio litoral/interior (ou sertão), denuncia a violência contra as “raças” e

conclama à integração nacional – palavra que estava em voga no seu tempo. O messianismo de Canudos, que

tem a figura do cearence de Quixeramobim, beato Antônio Conselheiro (1830-1897), como cabeça, conforme

aparece na terceira parte de Os sertões – como foi convencionado chamá-la –, é um catolicismo extra-oficial,

entrincheirado na idéia medieval de uma monarquia real – que acreditava que o rei era um eleito de Deus –,

crente na figura mitológica de D. Sebastião e, por isso e muito mais, anti-republicano, logo combatível. O

Nordeste baiano, aos olhos de quem lia os relatos de Euclídes, era “o fim do mundo”, um “elo perdido”. O

catolicismo popular, místico, tinha em Conselheiro o seu modelo; e embora a Igreja “oficial” o recriminasse,

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Se considerarmos que, desde a chegada dos portugueses em 1500 até os séculos

XVII56

e XVIII – e não muito antes da vinda da família imperial para o Brasil, no século XIX,

que é quando a colônia se transforma em sede imperial, no Rio de Janeiro, e o Brasil

experimenta um desenvolvimento acelerado e, na Carta de 13 de maio de 1816, D. João VI

fala da colônia como “Reino” –, o Brasil era em quase toda a sua extensão uma nação de

analfabetos, notaremos as implicações que envolvem uma história da sua formação cultural

partindo de sua história literária. Além do mais, boa parte da literatura produzida até esse

período nada mais era do que um elogio às elites e ao estilo de vida europeu, relegando as

classes pobres, ou interioranas, ao ostracismo ou às caricaturas. Literatura de elite, elogio de

classes, louvação da metrópole, caricatura romancesca das minorias, nisso se resume, salvas

as poucas exceções, a produção literária do Brasil; e por isso a assertiva de Antônio Cândido,

de que devemos amar a literatura brasileira porque é “ela que nos expressa”, é coisa que não

merece crédito. Ou, como diz Kothe: “Ela não só não expressa a maior parte da população

brasileira, nem a sua perspectiva correta, mas é inclusive contra boa parte dela”57

. Aliás, em

unindo-se às elites, era ele quem estava mesmo com o povo. Para se ter uma idéia de como a Igreja, ou o

catolicismo das elites era totalmente outro que esse, popular, e de como o povo o via, ver: SOUZA, Ney. Um

relato do catolicismo no Brasil na época da Independência. In: _____. (Org.). Temas da teologia latino-

americana. São Paulo: Paulus, 2007. p. 147-65. (Col. Alternativas). 56

É do século XVII em diante que surgem as primeiras diferenças entre “Igreja” e “religião” católicas, no

dualismo que, destacado pela presença de “outra igreja” – a dos protestantes ou mesmo a dos missionários

oratorianos, que tomam o lugar dos jesuítas expulsos, e que são de influência jansenista (cf. HOORNAERT,

Eduardo. Verdadeira e falsa religião no Nordeste. Salvador: Editora Beneditina Ltda., 1972. p. 73-86) – e,

mesmo que modestamente notado, de outro modelo que, diferentemente do anterior (que enfatizava a Igreja

enquanto comunidade), dá ênfase à salvação individual mediante o arrependimento dos pecados, a obediência, o

pietismo e/ou a penitência. De todo modo, e por isso tudo – e ainda mais pela escacez de padres – a Igreja

Católica, como unidade, se afastou do povo (Cf. VALLIER, Ivan. Las elites religiosas en Amérique Latina:

catolicismo, liderazgo y cambio social. In: LIPSET, S. M; SOLARI, A. E. Elites y desarrollo en América

Latina. Buenos Aires: Paidos, 1967. p. 150-189). Esse afastamento foi notado por Gilberto Freyre (FREYRE,

Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de

Janeiro: Maia & Schmidt, 1933) ao apontar um catolicismo rural que era diferente do catolicismo romano,

eclesiástico, ético, transcendental, urbano (Cf. RIBEIRO, René. Contribuição das civilizações africanas à

América Latina: as religiões do povo. In: VV.AA. Relatório oficial ao Colóquio Negritude et Amérique Latine.

Universidade de Dakar, 7 a 12 de janeiro de 1974. Mimeografado). Fato que não é exclusivo do Brasil, mas em

toda a América latina. Vives, por exemplo, do seu país, diz: “Chile, um país católico segundo as estatísticas, não

ia à missa...” (VIVES apud VALLIER, 1967, p. 154, nota 8). Santo Agostinho sobreviveu melhor no catolicismo

urbano, menos dado aos carismas, aos mistérios. 57

KOTHE, 1997, p. 125. Noutra parte, Kothe diz: “Do Padre Vieira, impõe-se, na escola, a leitura de trechos do

„Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal‟ como se a salvação nacional fosse todos combaterem os

holandeses conforme os interesses da Coroa Portuguesa, como se a administração de Nassau não tivesse feito,

em termos de ciência e arte, mais pelo Brasil do que o colonialismo português, como se não tivesse representado

um nível de organização econômica e cultural superior ao português” (KOTHE, 1997, p. 130). E mais: “Durante

a ditadura Vargas, autores como Mário de Andrade e Carlos Drummond assumiram cargos de confiança e

direção na área cultural, enquanto outros, como Oswald de Andrade e Graciliano Ramos, eram presos e

torturados: seria tão simplório dizer que os primeiros foram consagrados porque convenientes ao poder e que os

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relação aos interiores, mesmo os senhores de engenho, que podiam pagar por alguma

instrução, não viam qualquer utilidade em saber ler58

. O interior, por esse e outros motivos,

era sinônimo de inferior.

A idéia de que interior é sinônimo de coisa inferior originou-se do início da

colonização portuguesa e varou os cinco séculos de História do Brasil, até hoje. [...].

A filosofia do “interior = inferior” é fruto do bandeirante – e remotamente do

português – que plantado em sua capital ou sua cidade, ia para o interior à cata de

pau-brasil, de índios, de ouro, de pedras preciosas e, decorrido certo tempo,

regressava a Lisboa, à civilização, ao litoral, à cidade, ao seu lar59

.

Principalmente durante os dois primeiros séculos do Brasil, os jesuítas foram os

principais educadores; e isso lhes traria alguns problemas. Um deles, talvez o maior, senão o

mais imediato – a depender do lado que se veja –, dizia respeito aos brasis (os índios

brasileiros) e aos escravos africanos trazidos para cá aos montes e preteridos, quase sempre,

nas disputas teológicas no que diz respeito ao problema moral da escravidão. Nesse sentido,

se é que podemos assim dizer, os índios foram mais agraciados que os afros. Mas a mesma

vergonha moral ocorre também no período dito “holandês” (1630-1654), principalmente no

Nordeste – e tudo isso com o consentimento do próprio Nassau60

. A atenção dos missionários

reformados (protestantes calvinistas), vindos de Holanda e da França, se voltou, de início, à

evangelização dos índios; somente já perto de serem expulsos foi que os escravos também

entraram nessa agenda da Igreja Reformada.

Assim, se por um lado os missionários protestantes e católicos se impuseram contra o

extermínio físico dos índios, por outro, e mesmo que o tenham feito de modo inconsciente,

cooperaram com o extermínio da cultura de índios e africanos, seguindo uma mentalidade

segundos não serviram ao sistema, mas expressavam „a dura realidade‟, quanto seria não apenas ingênuo supor

que a fama nada tivesse a ver com a política” (KOTHE, 1997, p. 136). 58

A exemplo do que acontecia na Europa medieval, onde o senhor feudal “prezava-se de não ter instrução e

orgulhava-se de ser cavaleiro” (TOBIAS, 1987, p. 23), também no Brasil, “o senhor de engenho, assim como o

fazendeiro dos primeiros séculos, por herança da Idade Média, não tinham necessidade de instrução.” (TOBIAS,

1987, p. 23). 59

TOBIAS, 1987, p. 41. Mais sobre os povos indígenas e a colonozação do Nordeste, ver: PUNTONI, Pedro. A

guerra dos bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo:

Hucitec / Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2002. 323 p. (Col. Estudos Históricos, 44). 60

“Caso houvessem dado ouvidos à inquirição de alerta por parte do pastor recifense Jacobus Dapper, no início

do governo de Nassau, sobre se era lícito um cristão negociar ou possuir escravos, talvez pudessem ter ajudado,

não somete individual, mas também estruturalmente [a diaconia], e assim teriam dado mais atenção aos mais

pobres de todos, que eram os escravos. O próprio Conde, entretanto, pensava que era impossível fazer algo no

Brasil sem ajuda de escravos, e que se alguém se sentisse com a consciência culpada (referindo-se na carta a

pessoas como o rev. Dapper) seria somente por causa de escrúpulos desnecessários, assumindo desta forma uma

posição, decerto em conformidade com o pensamento da sua época, mas contrária ao pensamento do pai

intelectual da Companhia, o belga Usselincx, e do pai espiritual da Igreja Reformada, o francês João Calvino.”

(SCHALKWIJK, Frans Leonard. Igreja e Estado no Brasil holandês: 1630-1654. 2. ed. São Paulo: Sociedade

Religiosa Edições Vida Nova, 1989. p. 215).

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bem comum à época. A vida espiritual, na catequese de um e de outro grupo, grosso modo, se

resumia ao adestramento que visava adequar o silvícola, primeiraente, e o africano aos

modelos europeus, impondo-se contra os seus costumes pagãos, contra a idolatria ancestral e

as imoralidades do/no Novo Mundo – e essas, quase sempre, associadas ao sexo e às crenças

religiosas. Outro problema diz respeito à luta dos jesuítas contra as idéias reformistas e

filosóficas que já dominavam boa parte da Europa. O Brasil, conforme a leitura de alguns

críticos da Igreja católica, usado como ponto de resistência, foi vítima de grande atraso

científico-político, saindo da Idade da Pedra e permanecendo por muito tempo numa “Idade

Média” pós-Idade Média, um arremedo do Barroco que, não por coincidência, havia nascido

em Roma61

. A bem da verdade, os ecos dessas ebulições na Europa nos chegavam sempre

muito tarde, e já bastante distorcidos.

3.1.5. Cultura e cultura cristã: “Ele está no meio de vós”

Missionários católicos, principalmente Franciscanos e Capuchinhos, seriam os

maiores desbravadores dos interiores do Nordeste, a cata de índios, de mestiços e de toda a

“gente menor”, com o fito de catequizá-los62

, atendendo, sempre de modo muito precário e

limitado – embora aclamados pelo povo simples – aos povoados ignorados pelas autoridades,

mas “não por Deus”. Nisso, no Brasil, e principalmente na colônia, nenhuma ordem religiosa

se equipararia à Companhia de Jesus. Nela, pioneira e icônica é a figura do padre José de

Anchieta (1534-1597), que passaria à História como o “Apóstolo do Brasil”63

. Também, entre

61

“Barroco tem sido o termo usado pelos historiadores da arte durante quase um século para designar o estilo

dominante no período 1600-1750. O seu significado original – „irregular, contorcido, grotesco‟ – está largamente

ultrapassado. Hoje é opinião geral que o novo estilo nasceu em Roma nos últimos anos do séc. XVI. Mas

discute-se ainda se o barroco é a última fase do Renascimento ou se constitui uma era distinta tanto do

Renascimento como da época moderna. [...] Deparamo-nos com dificuldades [...] quando tentamos relacionar a

arte barroca com a ciência e a filosofia do período. Tal ligação existe de fato durante o Pro-Renascimento e o

Renascimento Pleno: um artista podia então ser também um humanista e um homem da ciência” (JOHSON, H.

W. História Geral da arte: Renascimento e Barroco. 2. Ed. Trad. de J. A. Ferreira de Almeida e Maria Manuela

Rocheta Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 715-16). 62

Neste sentido, ver: FREYRE, Gilberto. A propósito de frades: sugestões em torno da influência de religiosos

de São Francisco e de outras ordens sobre o desenvolvimento de modernas civilizações cristãs, especialmente

das hispânicas nos trópicos. Salvador: Aguiar Souza, 1959. A Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (OFMC)

chegou a Pernanbuco quando ainda na ocupação holandesa, em 1642, oriundos da França. Formariam aí a

Província Nossa Senhora da Penha do Nordeste do Brasil, que compreende os Estados de Pernambuco, Paraíba,

Alagoas e Rio Grande do Norte. “Carregamos conosco um grande legado missionário deixado ao longo dos

últimos séculos por missionários franceses e italianos que atuaram em diversos recantos nordestinos”, afirma o

capuchinho SILVA, Jociel João da. Frades capuchinhos no Nordeste. In: Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil. Memória, projeto, seguimento: missões populares da Igreja no Brasil. Brasília: Edições CNBB, 2007. p.

24. Na Província do Rio Grande do Sul, os Capuchinhos só chegariam, vindos de Sabóia, na França, em 1896. 63

Com relação a Anchieta, e para que não se alimente o mito da virtude sã e imaculada, convém atentar ao que

Marina Massimi diz, que é como segue: “É curioso que o início da aventura missionária desse homem, que será

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os “que abogaron por un cristianismo consecuente con el sermón del monte, figuran entre

otros los jesuitas padre Miguel Garcia (1550-1614), primer professor de teología, y el padre

Gonçalo Leite (1546-1603), primer professor de filosofía del país”64

. Outros nomes, de tantos,

não facilitam uma listagem completa; lembramos dos pioneiros.

Até 1759, pela união da Igreja com o Estado – que, nas aulas de Teologia Moral do

Colégio de Artes da Universidade de Coimbra e das Faculdades de Filosofia no Brasil dos

séculos XVI e XVII, era considerada, juntamente com a doutrina dos juros, imoral –, os

jesuítas foram os “professores oficiais” dos brasileiros65

, transmitindo por várias gerações a

herança aristotélico-tomista66

, subordinados à orientação da Igreja de Roma. Somente uma

pequena parcela da população, de fato e de direito, “gozava dos privilégios” do ideal

pedagógico-jesuítico67

. Tanto em relação à economia quanto à filosofia – e aqui estão

inclusos as idéias dominantes68

, o poder da aristocracia e as diferenças e relações das diversas

classes sociais –, o mundo que Portugal plantou nos séculos XVI, floresceria nos séculos

definido como o „grande apóstolo do Brasil‟, seja marcado pela contingência e, poderíamos dizer, pelas

banalidades das circunstâncias referidas por Rodrigues [Pedro Rodrigues, padre provincial do Brasil, no ano de

1598, e biógrafo de Anchieta]. Inicialmente, não se trata de Anchieta partir para simplesmente realizar o projeto

missionário, mas de achar um lugar de vida cujas condições climáticas sejam adequadas ao restabelecimento de

seu precário estado de saúde” (MASSIMI, Marina et al. Navegadores, colonos, missionários na Terra de

Santa Cruz: um estudo psicológico da correspondência epistolar. São Paulo: Loyola, 1997. p. 99-114). 64

PRIEN, 1985, p. 185. 65

Palavra até então inexistente, pelo menos no sentido atual. Foi do tráfico do pau-brasil, abundante no

Nordeste, que veio o termo “brasileiro”. E assim até o final do século XVII e metade do XVIII. O comércio do

“pau-de-tinta” seria a primeira grande fonte de lucros que a Coroa encontraria por aqui. Seu comércio cresceu

tanto que, em menos de uma década, a Terra de Santa Cruz – conforme D. Manuel havia rebatizado o novo

território que Cabral chamara de Ilha de Vera Cruz, mas que era conhecida mesmo por “Terra dos Papagaios” –

receberia o nome de Terra do Brasil. 66

“A Filosofia Cristã no Brasil está toda impregnada de Aristóteles e de Tomás de Aquino, como se comprova

pelos programas do Colégio de Artes da Universidade de Coimbra e das Faculdades de Filosofia no Brasil dos

séculos XVI e XVII. O Ratio Studiorum e os Estatutos da Universidade de Coimbra revelam que era ensinada a

totalidade da Filosofia, inclusive a Metafísica e a Lógica. A Psicologia Filosófica, integrante desse ensino,

constituía juntamente com a Teodicéia fundamento para o estudo da Teologia.” (TOBIAS, 1987, p. 81-2). A

Ratio atque Instituto Studiorum, ensinada em Coimbra e no Brasil, também foi aplicada em todos os colégios da

Companhia, mundo afora, e foi, certamente, o maior projeto de ensino feito até então; não por acaso Descartes

foi estudar em La Flèche, e Pierre Bayle (1647-1706), um calvinista filho de pastor calvinista, em um colégio da

Companhia, em Tolosa, também na França. 67

O mais completo relato – mas não o mais crítico – sobre a atuação da Companhia de Jesus no Brasil, em

língua portuguesa é, certamente, a obra em 10 volumes (sendo que os vols. II, III e IV se subdividem em Tomos

“A”, perfazendo um total de 13 vols.) do jesuíta Serafim LEITE. História da Companhia de Jesus no Brasil.

Lisboa: Livraria Portugália; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. v. 1. O último volume, o X, tem a data

de 1950. A mais lúcida e crítica, sem os estragos da paixão, é a de HOORNAERT, Eduardo et al. História da

Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo: primeira época, período colonial. 5. Ed. Petrópolis:

Vozes, 2008. (Col. História Geral da Igreja na América Latina, II/1). 68

Conforme TOBIAS, 1987, p. 13: “A „idéia‟ de filosofia cristã que proximamente veio de Portugal e

remotamente de Roma e de Cristo, começou no Brasil com o Descobrimento, e veio varando séculos de História

até hoje”. E, noutra parte: “A Europa sempre foi cristã, desde que existe o Cristianismo. Pode ter havido, como

realmente houve, crises e divisões familiares, mas todas as facções reclamam cada uma para si a autenticidade do

espírito cristão, o que demonstra a perenidade do Cristianismo no continente europeu, inclusive no mundo

russo.” (TOBIAS, 1987, p. 25).

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XVII, XVIII e XIX, e em quase todo o século XX; o mundo do espírito feudal, adotado desde

a Idade Média, como testemunham os engenhos (que, de outra natureza, substituíam, aqui, o

castelo medieval da Europa) e as fazendas que moldaram a História do Brasil até os dias de

hoje69

. Até 1759 não houve qualquer cisão entre a instrução dos jesuítas e Portugal; fato que

só ocorrerá com a Reforma Científica iniciada com o Marquês de Pombal (1699-1782)70

.

Quando os primeiros portugueses aportaram por aqui, a velha Europa, esta sim,

estava em pleno Renascimento – embora tal nomenclatura só começasse a ser utilizada do

século XIX em diante, e veria muito em breve, na sequência natural do tempo, de um modo

devastadoramente influente e provocador, principalmente às tradições católico-cristãs, a

Reforma Protestante e, dois séculos depois, o Iluminismo. Mas o português, diferentemente

de quase todos os países europeus, resistiria às reformas: tanto as que foram impetradas pelo

humanismo (ou Renascimento) que, voltado para a modernidade, apregoava uma superação

da Idade Média e do seu pensamento filosófico-teológico, conclamando uma volta “às

fontes”, como, e esta ainda mais, a dos protestantes luteranos e calvinistas, que, de certo

modo, eram auxiliados pelo contexto cultural da época. Uma das mentes mais brilhantes da

época, Erasmo de Roterdã (1466/69-1536), o “rei dos humanistas”, fôra membro da Ordem

dos Cônegos Regulares Agostinianos (1487). Como ele, tanto Lutero quanto Calvino e

Zwínglio, por formação, tinham influências humanistas, e eram orientados na doutrina

agostiniana. Os missionários jesuítas, no Brasil colonial, resistiriam a essas reformas de modo

combativo – na pena e na espada, mesmo quando não utilizassem dela – assegurando que a

cristandade local permanecesse na Idade Média, ou na orientação da Escolástica e do

continuísmo do magistério eclesiástico, ou no que se assemelhava a isso, como foi no caso do

Barroco – e, em tal observação, precisamos nos limitar à arquitetura. Isso aparece sem

69

Quem observa a obra maior do pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), Casa-Grande & Senzala:

formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1930), que trata sobre a colonização

portuguesa e a miscigenação racial brasileira, nota o elogioso tom com que ele se refere ao português, como

excelente colonizador responsável pela miscigenação racial, que é, segundo o autor, coisa muito positiva. Freyre

foi o primeiro a trazer os negros e os mulatos ao primeiro plano da história do Brasil. A fazenda, bem como o

engenho, nesta obra – bem como nas outras duas que completam a trilogia (Cf. FREYRE, Gilberto. Sobrados e

mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1936; _____. Ordem e progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e

semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre, aspectos de um quase meio século de transição do

trabalho escravo para o trabalho livre e da monarquia para a república. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. v.

2), têm destaque fundamental. Em Minas, de modo semelhante, embora de modo novelesco – que não deixa de

ser uma herança medieval –, duas obras de João Guimarães Rosa (1908- 1967), Sagarana (1946) e Grande

Sertão: Veredas (1956), também revelam esse lado marcante das fazendas, dos engenhos. No Rio Grande do Sul,

a trilogia de O tempo e o vento (1949, 1951 e 1961), de Érico Veríssimo (1905-1975), respalda o que aqui já foi

dito. 70

Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, foi o Primeiro-ministro de Portugal (secretário de

Estado do Reino) durante o reinado de D. José (1750 a 1777).

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contornos em quase todas as Igrejas Católicas erguidas por aqui durante os séculos XVI e

XVII, em uma espécie de testemunho silencioso. O Barroco, mais que o predomínio opcional

de um estilo, foi, na arquitetura colonial, uma estratégia político-religiosa, cultural. Se a

arquitetura renascentista se caracterizava “pelo predomínio da linha reta, pela clareza e nitidez

de contornos”, diz Coutinho, o Barroco, por sua vez,

tenta a conciliação, a incorporação, a fusão (o fusionismo é sua tendência

dominante) do ideal medieval, espiritual, supra terreno, com os novos valores que o

Renascimento pôs em voga: o humanismo, o gosto das coisas terrenas, as satisfações

mundanas e carnais. A estratégia pertenceu à Contra-Reforma, no intuito, consciente

ou inconsciente, de combater o moderno espírito absorvendo-o no que tivesse de

mais aceitável. Daí nasceu o Barroco, novo estilo de vida, que traduz em suas

contradições e distorções o caráter dilemático da época, na arte, filosofia, religião,

literatura71

.

A tradição, disciplinar, para os jesuítas, prevalecia sobre a razão e mesmo sobre a

orientação teológico-tomista72

. Estes, com uma moral aos moldes de uma milícia – e não por

acaso a regra da Ordem, escrita por Santo Inácio e publicado em Roma em 1548, com a

aprovação do papa Paulo III, se chamava Exercícios espirituais73

–, se empenhariam em

reproduzir os costumes da civilização cristã católica, com o fito de trazer à fé evangélica

71

COUTINHO, 2001, p. 93. O Barroco é definido como o período que surge imediatamente após o

Renascimento dos séculos XVI e XVII, do qual participaram todos os povos do Ocidente. “Para a teoria

moderna”, diz Coutinho, “o Barroco é um conceito amplo, com um âmbito que abarca as manifestações variadas

e diferentes conforme o país, outrora conhecidas pelos termos locais de conceitismo e culteranismo (Espanha e

Portugal), marinismo e seiscentismo (Espanha), eufuísmo (Inglaterra), preciosismo (França), silesianismo

(Alemanha), muitas delas formam imperfeitas ou não desenvolvidas. Barroco tem a vantagem de ser um termo

único, além de traduzir, por si próprio, as características estéticas e estilísticas que a época encerra.”

(COUTINHO, 2001, p. 97). 72

Como afirma o próprio Padre Vieira no Sermão de Santo Inácio, pregado em Lisboa, em 1669, no Colégio de

Santo Antão: “Do Ilustríssimo Patriarca S. Domingos (a quem com razão podemos chamar o grande Pai das

luzes) tomou Santo Inácio a Devoção da Rainha dos Anjos, e a Doutrina do Doutor Angélico. A primeira

devoção que fazia Santo Inácio todos os dias, era rezar o Rosário; e o farol que quis seguissem na Teologia as

bandeiras da sua Companhia, foi a doutrina de S. Tomás. Mas concordou Santo Inácio essa mesma Doutrina, e

essa mesma Devoção, com tal preferência, que no caso em que uma se encontrasse com a outra, a Devoção da

Senhora prevalecesse à Doutrina, e não a Doutrina à Devoção. Assim se começou a praticar nas primeiras

conclusões públicas que em Roma defendeu a Companhia, e depois sustentou com tantos livros” (VIEIRA,

Antônio. Sermão de Santo Inácio. In: Sermões: Padre Antônio Vieira. Texto estabelecido por Patrícia Ferreira,

Fabrício Corsaletti e Fabio Cesar Alves. São Paulo: Hedra, 2000. v. 1, p. 138. 73

Mais sobre os Exercícios espirituais, ver: DE RYBADENEYRA, Pedro. Vida de Ignacio de Loyola. 3. ed.

Madri: Espasa-Calbe, 1967; GUEYDAN, Édouard (Org.). Texte autographe des Exercises Spirituels et

documents contemporains (1526-1615). Paris: Desclée de Bruwer, 1986; IPARRAGUIRRE, Ignácio. Historia

de los Ejercicios de San Ignacio: desde la muerte de San Ignacio hasta la proulgacion de directorio oficial

(1556-1599). Bilbao: Imprenta Editorial Eléxpuru Hnos, 1955. 2 v. Os Exercícios espirituais, já em sua 9ª edição

brasileira (2007), está publicado pelas Edições Loyola – versão da edição portuguesa de 1961, traduzida pelo Pe.

Joaquim Abranches, e editada em Portugal pelo Mensageiro do Coração de Jesus. A primeira edição em língua

portuguesa, no Brasil, conforme se sabe, veio a lume em 1938, traduzida pelo Pe. Balduino Rambo (Tipografia

do Centro, Porto Alegre); já em 1966 seria feita uma segunda tradução, pelo Pe. Géza Koevecses; e, em 1968,

outra pelo Pe. Leme Lopes (Livraria Agir, Rio de Janeiro). Tantas traduções recentes e reedições atestam a

ampla aceitação e relevância documental-espiritual dos “Exercícios” de Santo Inácio.

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(Escritura e tradição) aos pagãos do Novo Mundo. Mas, disso, já tratamos. Quanto à literatura

jesuítica brasileira do quinhentismo, “é uma típica manifestação barroca” que, sendo uma

literatura de missão,

buscava servir o ideal religioso e pedagógico da conversão e da catequese.

Procurava infundir nos espíritos uma concepção lúgubre e pessimista quanto à vida,

mera transição para a eternidade. [...] O medo impera nessa literatura, medo da

morte, da decadência, do inferno, da passagem do tempo, ao contrário da alegria e

prazer de viver,do gosto da ação e do mundo, da claridade renascentista74

.

A imponência das Igrejas barrocas parecem apelar aos sentimentos do fiel, para que

este se sinta diminuto diante do grandioso que pretende manifestar, materialmente, a imaterial

“grandeza da glória de Deus”75

. Não é leviandade nehuma notar que se trata de um apelo à

emoção, e não à razão. É um discurso de pedra, da pedra. E é também, se se observa de modo

mais político, um modo de contenção dos ânimos que podem questionar a ordem estabelecida.

O fiel, pela orientação mais comum da Igreja, deve tão somente crer, e, crendo, obedecer.

Como observa Coutinho, a imponência é

Arte mais para os sentidos que para a inteligência, era pelos sentidos e pela

imaginação, e não pela razão, que o Barroco conquistava o homem. Daí o uso que os

jesuítas fizeram, no teatro e na arquitetura, da grandiosidade e da suntuosidade, do

luxo e da pompa, do aparatoso e do espetaculoso, do gigantesco e do terrorífico, dos

artifícios que intimidavam e impressionavam os sentidos, penetrando por eles na

mente76

.

É por isso e por outros aspectos que, como ainda veremos, é bem comum aos jesuítas

o pensamento de que, por meio da visão do grandioso – a exemplo das grandes procissões

com ruas enfeitadas e cantorias, também imitando o “modelo” português77

–, da língua

74

COUTINHO, 2001, p. 115-16. 75

“O papado patrocinava a arte em larga escala, com vista a fazer de Roma a mais bela cidade do mundo cristão,

„para a glória de Deus e da Igreja‟” (JOHNSON, 2001, p. 716). Dominado pelos jesuítas, a principal milícia anti-

reformista, o Brasil segue a tendência da Sé romana e, já com algumas influências do Maneirismo do século XVI

– que foi mais influente em Roma e Florença –, vê surgir as Igrejas católicas dos séculos seguintes – como até

hoje, principalmente espalhadas pelo Nordeste, podem ser vistas. 76

COUTINHO, 2001, p. 116. 77

Tinhorão, por exemplo, transcreve o trecho de uma longa carta do padre provincial da Companhia de Jesus,

Manoel da Nóbrega, datada de 1549, em que este descreve ao provincial de Lisboa a festa do Anjo Custódio,

realizada em Salvador, no dia 21 de julho daquele mesmo ano: “Fizemos precissão com grande música, a que

respondiam as trombetas. Ficaram os índios espantados de tal maneira, que depois pediam ao Pe. Navarro que

lhes cantasse assi como na precissão fazia” (TINHORÃO, 1998, p. 40). “O espanto dos índios”, comenta

Tinhorão, “não terá sido menor do que haviam experimentado um mês antes quando, segundo ainda o mesmo

padre Nóbrega, se realizou a procissão de Corpus Christi pelas ruas enfeitadas com ramos de árvores, incluindo

todas as suas „danças e invenções alegorias à maneira de Portugal‟. É que, tal como faz observar o tradutor e

anotador das cartas, padre Serafim Leite, em pé de página esclarecedor, essa procissão de Corpus Christi –

certamente a mais popular e mais espetacular de Portugal – incluía verdadeiras alas (no estilo das modernas

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civilizada, as idéias cristãs podem ser inculcadas, contrapondo e combatendo o paganismo e a

língua nativa que, por vezes, era considerada como sendo a língua do Diabo, ou “invenção

diabólica”. No Brasil, o Diabo falava em tupi.

Ya em los autos jesuíticos hay una cosa extremamente curiosa y sintomática para el

futuro desarollo: ellos son frecuentemente bilingües, pero quién habla tupi-guarani

El diablo, porque los santos hablan portugués. Este es un ejemplo en que se muestra

cómo la literatura fue um factor de violenta imposicón cultural: la propria lengua de

los nativos era considerada de cierta manera demoníaca78

.

É evidente, por fim, que não podemos ignorar a complexidade do fenômeno que

representa a recepção/importação das idéias de qualquer autor estrangeiro, principalmente um

tão antigo – como no caso do Hiponense. De fato, a importação de idéias externas, como

afirma José Murilo de Carvalho, “não é uma característica do subdesenvolvimento, é um

fenômeno universal. Isso não impede que certos países pós-coloniais, como os hispano-

americanos”, diz ele, “possuam alguma características que conferem peso maior à absorção de

idéias externas”79

. Sim; todas as idéias ganham nuanças ao serem adotadas por qualquer

grupo que lhe seja favorável. O comtismo, por exemplo, ao qual Carvalho se referia, já chega

ao Brasil, no século XIX, bipartido. Havia positivistas que, literalistas, eram mais adeptos do

“primeiro Comte” – aquele do Cours de philosophie positive (redigido entre 1830 e 1842) –

do que do segundo, o do Système de politique positive ou Traité de sociologie instituant La

religion de l‟humanité (1851-54). É que enquanto o “primeiro Comte” privilegiava a ciência e

a razão, o segundo tinha no sentimento a sua primeira plana, transformando o que era uma

filosofia da história em uma religião da humanidade, incluindo doutrina, culto, ritos e santos.

Em contato com o contexto brasileiro, e no conflito entre ambos, houve quem dissesse haver

um terceiro grupo80

. Se isso ocorre com as idéias de um pensador bicentenário, como no caso

do francês Auguste Comte (1798-1857), imagine-se o que não ocorre no caso do milenar

escolas de samba), pois entre as tais „danças e invenções‟ havia „mouriscas, danças, coros, músicas, bandeiras,

representações figuradas, folias, etc‟.” (TINHORÃO, 1998, p. 40). 78

CÂNDIDO, 1985, p. 80. No caso brasileiro, ao mesmo tempo em que se fala de uma “imposição da língua

portuguesa” no Brasil Colonial, pode-se, como os jesuítas dos Sete Povos de Missões, fazer uma defesa dos

índios e da sua língua, mesclando-as reciprocamente. Mas, conforme palavras de Kothe: “Era a língua que, para

o Progresso e a Ordem dos dominadores, tinha de ser liquidada, ao invés de chegar à convivência. Poderia ter-se

desenvolvido o modelo das Sete Missões em todo o país. Isso poderia ter salvo mais corpos de índios, mas

também teria destruído sua cultura, sua língua, sua identidade: ao invés de um genocídio físico, um genocídio

espiritual. Não há superioridade da língua portuguesa em si, mas ela articula mais a tecnologia e maior amplitude

cultural que a tupi-guarani ou o banto, tendendo portanto a substituí-los. A opção entre o índio e o jesuíta e uma

falsa opção.” (KOTHE, 1997, p. 183). 79

CARVALHO, José Murilo de. O positivismo brasileiro e a importação de idéias. In: GRAEBIN, Cleusa Maria

G.; LEAL, Elisabete. (Orgs). Revisitando o Positivismo. Canoas: La Salle, 1998. p. 14. 80

Cf. CARVALHO, 1998, p. 20.

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Agostinho. Sim, “mesmo sistemas fechados de pensamento, como o positivismo, podem ser

absorvidos de maneira distinta por pessoas distintas e conseqüências distintas”81

, afirma

Carvalho.

3.1.6. Cultura e cultura cristã: história e método

Tratar sobre a influência moral de um pensador que viveu de 354 a 430 da era cristã,

em nossa cultura multiétnica e de múltiplas influências é, no mínimo, coisa complexa que

merece atenção, muita atenção. Portanto, e por isso, quem se arrisca a tal empresa deve,

dentre outras, fazer um apanhado histórico-documental rigoroso – a bibliografia sobre os

começos do Brasil é muito rica e variada, embora boa parte dela seja vista com suspeita, e

com alguma razão, pelos modernos métodos de investigação dos relatos históricos – que

privilegie e respeite o progresso da idéia de moral – isso implica em deixar temas relevantes

de lado, para evitar digressões, fantasias e juízos apressados –, analisando, neste caso, as

pioneiras investidas catequético-doutrinário-educacionais dos primeiros religiosos que por

aqui chegaram, católicos ou protestantes. Ao fazer tal levantamento bibliográfico, o

pesquisador vai perceber que, embora não tencione privilegiar qualquer confissão, vai

encontrar muito mais conteúdo em relação à Igreja Católica e seus missionários – o que é bem

natural, até pela importância e tempo que eles tiverem e setores que atuaram. Priorizando o

período do Brasil colonia, até 1808, o último grupo se mostrará, consequentemente, por esse e

outros motivos, menos influente no quesito moral, e moral agostiniana – embora o Bispo de

Hipona seja, aí, em tal grupo e em tal teologia, mais presente.

Tal metodologia certamente esbarra em alguns limites, uma vez que aborda essa

parte da História mais de um aspecto cultural/religioso que político/histórico – embora seja

81

CARVALHO, 1998, p. 26. No que se refere à importação de idéias, Carvalho acrescenta: “A circulação de

idéias é um fenômeno muito complexo. Não se pode dizer simplesmente que uma idéia foi importada de um país

para o outro. Há vários elementos que se tem que levar em conta para se evitarem análises simplistas. [...] A

primeira pergunta a fazer é: o que se está de fato importando? São sistemas de idéias, são modos de pensar, são

palavras, ou se importa pelo simples fato de importar? Dou exemplos. Na década de 20, Oliveira Viana observou

que no Brasil quem não citava abundantemente autores estrangeiros, como era o caso de Alberto Torres, não era

levado a sério. Citava-se porque as regras de argumentação da época o exigiam, assim como na escolástica tinha-

se que citar Aristóteles e na antiga União Soviética se tinha de citar Marx. [...] Outras vezes o que é importado é

apenas o vocabulário. Isto é, certas palavras-chave são utilizadas para caracterizar todo um sistema de

pensamento ou toda uma ideologia. [...] Por fim, pode-se perguntar para que se importam idéias. Uma primeira

resposta já foi mencionada. Citam-se autores estrangeiros como argumento de autoridade, para que se possa ser

levado a sério. Outra razão prende-se ao que poderíamos chamar de consumismo cultural. Citar autores e idéias

de países desenvolvidos demonstra adesão a um tipo de cultura considerada superior, é chique, dá status. Tal

postura foi típica, por exemplo, da mentalidade Belle Époque no Rio de Janeiro da virada do século.”

(CARVALHO, 1998, p. 15, 17 e 19).

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inevitável não tocar nestes pontos, mesmo que não sejam enfatizados ou examinados

exaustivamente. Não nos esqueçamos, no entanto, da força que a religião cristã teve na

sedimentação da cultura ocidental, em toda a América Latina, principalmente nos três

primeiros séculos pós-descobrimento. Nisso tudo, o papel de Agostinho como “mestre do

Ocidente”, como a ele se referem Philotheus Boehner e Etienne Gilson, é de impressionante

destaque: “Nenhum dos futuros sistemas cristãos irá poder ignorá-lo”, dizem eles, concluindo

que, com efeito, “todos, de um modo ou doutro, lhe sofreram o influxo. [...] Sua doutrina,

perenemente viva, jamais cessou de reviçar a reflexão filosófica”82

. Também Le Goff,

tratando sobre a formação cultural da Europa Medieval, situando-a entre os séculos IV e V,

menciona dois autores que, segundo ele, moldaram o modelo moral/espiritual que se

estenderia pelos séculos83

: o primeiro mencionado é São Jerônimo, por sua tradução da

Septuaginta para o latim (a Vulgata) e, depois dele, Agostinho, de quem diz:

Depois de São Paulo, Santo Agostinho é o personagem mais importante para a

instalação e o desenvolvimento do cristianismo. É o grande professor da Idade

Média. [...] citarei apenas duas obras suas que são fundamentais para a história

européia. A primeira são as lembranças de sua conversão publicadas sob o título de

Confissões, que não serão apenas uma das obras mais lidas na Idade Média, mas são

também, em longo prazo, o ponto de partida até hoje da longa série de

autobiografias introspectivas. A outra grande obra é tão objetiva quanto as

Confissões são subjetivas, é a Cidade de Deus escrita após a pilhagem de Roma por

Alarico e seus godos em 410. A partir desse episódio, que aterrorizou as antigas

populações romanas e as novas populações cristãs, e que levou a crer na

proximidade do fim do mundo, Agostinho rejeita os medos milenaristas, remetendo

o fim dos tempos para um futuro somente conhecido por Deus e provavelmente

distante, e estabelecendo o programa das relações entre a Cidade de Deus e a Cidade

dos homens, um dos grandes textos do pensamento europeu por séculos84

.

82

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. Santo Agostinho, o mestre do Ocidente. In: _____. História da

Filosofia Cristã. 2. Ed. Trad. e nota introd. de Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 139, 203. Ainda nas

palavras de Boehner e Gilson: “Mais que nenhuma outra doutrina, a teologia agostiniana da história teve o efeito

de transformar a face da terra. Ainda que o „Sacro Império Romano de Nação Germânica‟ não fosse idéia do

próprio Agostinho, ele não se originou sem uma interpretação política do seu conceito do Estado de Deus. Se,

por hipótese, tivéssemos de prescindir da obra de Agostinho na história espiritual do Ocidente, depararíamos um

hiato inexplicável entre o mundo atual e os tempos evangélicos” (BOEHNER; GILSON, 1982, p. 204). 83

LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. 2. Ed. Trad. de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes,

2007. p. 30-31: “O surgimento da Europa [...] realizar-se-á através de dois fenômenos essenciais desse período

dos séculos IV e V. O primeiro desses fenômenos é a elaboração, na linha da Bíblia e do Novo Testamento, do

essencial da doutrina que os Padres da Igreja vão legar à Idade Média. [...] Insistirei em dois deles porque o seu

peso será grande na elaboração de uma cultura européia. O primeiro, São Jerônimo (c. 347-420), cuja vida situa-

se ainda na interseção do Ocidente com o Oriente onde viveu durante longo tempo como eremita, não está

completamente ligado ao futuro da Europa, mas o retenho aqui para esta obra essencial, a tradução para o latim a

partir do texto hebraico da Bíblia por cima da tradução grega anterior dita dos Setenta e considerada defeituosa.

Essa Bíblia latina vai impor-se a toda a Idade Média com diversas revisões, sendo a mais interessante a realizada

no começo do século XIII pela Universidade de Paris sobre a recensão, no século IX, do conselheiro anglo-saxão

de Carlos Magno, Alcuíno. É a Vulgata. Outro Padre da Igreja essencial é Santo Agostinho.” 84

LE GOFF, 2007, p. 31. Ainda conforme Le Goff: “Conservaram-se – além de numerosas perdas – 258

manuscritos das Confissões, 376 da Cidade de Deus e 317 da Regra. Esse legado da cultura antiga e cristã

misturadas que os Padres da Igreja transmitiram à Idade Média e à Europa continua do século V ao VIII no

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Essa educação “pelo livro” tem muitas limitações nos inícios do Brasil, e, no entanto,

é por meio dela que, de modo histórico-documental, se sabe do saber antigo (até o advento da

imagem arquivada, do vídeo, etc.), depositário que é das idéias e das ações concernentes à

ética, ao agir moral. O grosso volume do The classical moralists, compilado por Benjamim

Rand e editado em 1909 pela Universidade de Cambridge, é bom exemplo85

. A literatura, a

cristã em particular, nesse papel pedagógico-catequético, desempenhará um papel essencial na

cultura brasileira, seja pela sua utilização direta ou por meio da instrução recebida através de

quem dela se utilizou. E é por esse e outros motivos aqui já mostrados que abordaremos a

presença da moral agostiniana (ou a sua recepção) na diversificada produção literária do

Brasil no período de 1500 a 1808 – com algumas variantes temporais e culturais, para trás ou

para adiante.

3.2. Trazer o paraíso à terra: ensino, catequese e “catolicismo guerreiro”

Agostinho foi o grande mestre da catequese; não somente em sua distante paróquia

na África dos séculos III e IV (praticamente desconhecido do seu grande público), mas de

todo o mundo cristão ocidental. É bem verdade que o modo como veio a influenciar o Brasil

só se daria por vias indiretas, na transmissão das idéias e valores da cultura dominante,

hegemônica, como “adequação” impositiva da civilidade européia à incivilidade pagã do

Novo Mundo. Seja como for, aí encontraremos a “sombra de Agostinho”: nas diferentes

confissões da fé dos que vinham “em nome de Deus” e das Coroas86

, ou nos vários credos dos

contexto da fusão entre cultura antiga romana e evolução marcada pelas necessidades das populações que se

tornaram bárbaras. Alguns grandes nomes emergem dessa situação, e Karl Rand os chamou de fundadores da

Idade Média. Também se pode chamá-los de pais da cultura da Europa.” (LE GOFF, 2007, p. 32). No mesmo

sentido, trazendo para o contexto brasileiro – e isto numa leitura super atual –, o luterano Ulrich Schoenbern,

tendo em vista a influência da exegse histórico-literária que se deu com os “relatos de conversão” de Paulo e

Agostinho, afirma que: “O Apóstolo Paulo, Agostinho e outros influenciaram estruturalmente os séculos

seguintes e „promoveram‟ o surgimento de uma tradição cujas pistas continuam até hoje” (SCHOENBORN,

Ulrich. Fé entre História e experiência: migalhas exegéticas. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1982. p. 210). 85

Cf. RAND, Benjamin. (comp.). The classical moralists. Noston / New York / Chicago: Houghton Mifflin

Company / The Riverside Press Cambridge, 1909. Agostinho é o décimo filósofo na lista, antecedendo, nas

páginas dedicadas à Idade Média, Pedro Abelardo e Tomás de Aquino. 86

Na carta de Pero Vaz de Caminha (com data de 01 de maio de 1500), por exemplo, depois de uma narrativa

das riquezas do Brasil: “Porém, o melhor fruto, que dela se pode tirar, me parece que será salvar esta gente. E

esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar [...]” (CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el-

rei D. Manuel. Introd. Atual. e notas de M. Veigas Guerreiro. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda,

1974). A união entre Igreja e Estado, aí, aparece bem clara. A nova terra é vista sob dupla perspectiva:

exploração econômica e salvação (catequização) dos índios, e depois dos escravos. Cruz e Coroa (ou espada)

estão aliadas para cumprir essa tarefa. “Nos séculos seguintes da colonização, o sistema político-administrativo

aqui implantado na primeira metade do século XVI sofreu algumas alterações, sem trazerem, no entanto,

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religiosos vindos de além-mar; e ainda, no século XIX, nas grandes ondas de imigrantes que

vêem no Decreto de abertura das portas às nações amigas – carta régia de D. João,

promulgada aos 28 de janeiro de 1808, em Salvador, na Capitania da Baía de Todos os Santos

– uma chance de recomeçar a vida neste paraíso tropical.

De fato, os primeiros a atingiram as costas do Brasil, quando este ainda não era,

criam piamente na existência material de um paraíso na terra, a exemplo de Cristovão

Colombo (1450-1506). E mesmo que o paraíso não fosse esse Novo Mundo, ele poderia ser

materializado pela evangelização dos nativos, e pela assimilação dos mesmos à fé cristã e aos

costumes peculiares da santa Igreja Católica. E se por acaso os naturais não aceitassem por

livre vontade a fé que lhes trazia o paraíso, ainda tinham a opção de viver no mesmo,

mediante a força.

Ora, quando em 1498, as duas naus mais uma caravela comandadas por Vasco da

Gama (1468-1524) chegaram a Calicut (Porto Seguro), enviadas pelo venturoso D. Manuel,

viam-se em suas velas grandes cruzes encarnadas, demonstrando que, mais do que representar

o soberano português enquanto rei, representavam o Grão-Mestre da Ordem de Cristo. As

bulas papais de 1455-56 davam ao Grão-Mestre e ao Papa jurisdição espiritual sobre “as

terras, ilhas e lugares” descobertos ou a serem descobertos por Portugal. Assim, desde o

infante D. Henrique, incorporada à Coroa, a Ordem de Cristo – bem como outras duas ordens

militares portuguesas: Avis e Santiago – estava sob o comando de um membro da família real,

de conformidade com uma bula papal de 1551. Os reis eram “governadores e administradores

perpétuos” da Ordem de Cristo, tendo autoridade sobre todos os postos, cargos, benefícios e

funções eclesiásticas nos territórios ultramarinos sob seu domínio. “Esse conjunto de direitos

e privilégios, mas também de deveres, chamados de Padroado, concedido à Coroa pelos

papas, fez com que as conquistas portuguesas se fizessem sempre pela união indissolúvel da

cruz e da coroa protegida pelas armas”87

. E, conforme Bruno Feitler,

transformações que rompessem com o sistema de dominação vigente ou com os ideais que o haviam orientado”.

(INÁCIO, Inês da Conceição; LUCA, Tânia Regina de. Documentos do Brasil colonial. São Paulo: Ática,

1993. p. 38. [Série Fundamentos, 94]). 87

BOXER, Charles R. O império marítimo português 1415-1825. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. p. 227-8. No caso

do Brasil, e em especial no caso do bandeirismo – ocorrência histórica caraterística do Planalto de Piratininga –,

Dalton Sala diz que: “Em sua expansão, as bandeiras paulistas defrontaram-se com as missões jesuíticas situadas

ao longo da bacia do rio da Prata: missões religiosas são instituições também provindas da Idade Média, e o

jesuíta se considerava um soldado de Cristo capaz de empunhar tanto a cruz quanto a espada, organizando-se em

hierarquia semelhante à militar: defender a tradição valendo-se de práticas modernas, para maior glória de Deus.

Em face da expansão do islamismo, a Igreja Romana promoveu as Cruzadas e, nesse momento, o ideal de

catequese revestiu-se de uma ética guerreira da qual não se libertaria mais, posto que Loiola a endossará mais

tarde: reformou-se o pacto entre a cruz e a espada, apesar do exemplo de Francisco em face do sultão do Egito, a

quem enfrentou desprotegido e desarmado. Para os bandeirantes e para os missionários jesuítas, a fé na justiça do

objetivo e na vitória contra perigos hostis correspondia ao imaginário medieval; essa relação histórica e

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Essa união também remetia ao papel místico que alguns reis portugueses se

arrolavam enquanto evangelizadores do mundo, se necessário, pelas armas. É assim

que no século XVII, num revigoramento dessa ideologia, originada do messianismo

lusitano, o p. Antônio Vieira lembrava ao soberano que Portugal havia sido criado

por Deus para propagar a fé cristã no mundo, e que ao mesmo tempo o destino do

reino dela dependia, pois “quanto mais Portugal atuar de acordo com esse propósito,

mais certa e segura é a sua preservação; e quanto mais divergir disso, mais incerto e

perigoso é o futuro”88

.

O espírito lusitano de conquista e colonização, o “catolicismo guerreiro”, no entanto,

está de acordo com aquele que, em Cristóvão Colombo, já se mostrara, quando da sua

incursão às Índias Ocidentais, como acreditou haver chegado, e assim até a sua morte. Como

se sabe, tratava-se da “América”, conforme seria batizada em 1506, a partir da carta Novo

Mundo, de Américo Vespúcio (1454-1512). A aquisição de novos territórios era feita “para

maior glória de Deus e da rainha”, sem falar nas glórias materiais de quem descobrisse, quem

sabe, o “paraíso na terra”, conforme “apontado” nas Escrituras. Colombo, baseando-se numa

passagem do livro do profeta Isaías, acreditava na existência material de um novo mundo

neste mundo89

.

Um dia lhe caiu nos olhos, em uma leitura do Livro Sagrado, uma palavra que mais

ouvia do que lia – e era como se o profeta Isaías com ele estivesse falando: “Eu

mitológica não os impediu, entretanto, de se colocarem em campos opostos e de se combaterem decididamente”

(SALA, Dalton. Ensaios sobre Arte Colonial Luso-brasileira. São Paulo: Landy Editora, 2002. p. 55-6). 88

FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil: Nordeste 1640-1750. São Paulo:

Phoebus, 2007. p. 21-2. A citação de Vieira encontra-se em: BOXER, Charles R. A Igreja e a expansão ibérica.

Lisboa: Edições 70, 1989. p. 98. No Sermão do primeiro domingo da quaresma, pregado em 1655 na Capela

Real de Lisboa, Vieira dirige-se ao rei e, ao mesmo tempo, a Deus, numa linguagem que (co/n)funde um e/ao

outro, apelando aos dois em favor dos índios: “Senhor, estas almas não são todas remidas com o vosso sangue?

Senhor, a conversão d‟estas almas não entregastes aos reis e reino de Portugal? Senhor, estas almas não estão

encarregadas por Deus a Vossa Magestade com o reino? Senhor, será bem que estas almas se percam, e se vão

ao Inferno, contra o vosso desejo? Senhor, será bem que aquellas almas se percam, e se vão ao Inferno por nossa

culpa? Não o espero eu assim da Vossa Magestade Divina, nem da humana.” (VIEIRA, Padre António. Sermão

da primeira dominga de quaresma. In: _____. Sermões. Pref. e rev. do Pe. Gonçalo Alves. Porto: Lello & Irmãos

– Editores; Lisboa: Aillaud & Lellos, Limitada, 1907. v. 2. p. 382-415. [Obras completas do Padre Antônio

Vieira]. 15 v). 89

Tratava-se de Isaías 65,17. Colombo estava convencido de que as Índias se encontravam na vizinhança do

Paraíso Terrestre, tão impressionado estava pela beleza da Hispaniola (São Domingos/Haiti), que considerava ser

esta ilha única no mundo, pois se achava completamente coberta de toda sorte de árvores que, de tão altas,

pareciam tocar os céus, e nunca perdiam a folhagem. (Cf. COLOMBO, Cristóvão. Oeuvres. Paris: Galimard,

1961. p. 181). Os índios – assim chamados por Colombo, por acreditar haver chegado às índias – que receberam

a frota de Cabral eram tupiniquins (um dos ramos da família tupi-guarani); eles também acreditavam na

existência de um paraíso na Terra. “Uns dois mil anos antes, tinham partido dos vales dos rios Madeira e Xingu

(afluentes da margem direita do Amazonas), em busca de uma longínqua Terra Sem Males. Não a acharam, mas

acharam Pindorama, a Terra das Palmeiras.” (BUENO, Eduardo. Brasil: terra a vista: a aventura ilustrada do

descobrimento. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2003. p. 12. [Col. L&PM Pocket, 323]).

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fundarei um novo céu e uma nova terra e não mais se pensará no que era antes”. Era

o sonho da sua vida esta nova terra90

.

Prevalecia entre os viajantes ocidentais do Quinhentos, já desde a Antiguidade – e

em medidas ainda maiores na cultura medieval –, a crença na existência de um paraíso na

terra. Segundo afirma Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso,

Sabe-se que para os teólogos da Idade Média não representava o Paraíso Terreal

apenas um mundo intangível, incorpóreo, perdido no começo dos tempos, nem

simplesmente alguma fantasia vagamente piedosa, e sim uma realidade ainda

presente em sítio recôndito, mas porventura acessível. Debuxado por numerosos

cartógrafos, afincadamente buscado por viajantes e peregrinos, pareceu descortinar-

se, enfim, aos primeiros contatos dos brancos com o novo continente. Mesmo

quando não se mostrou ao alcance de olhos mortais, como pareceu mostrar-se a

Cristovão Colombo, o fato é que esteve continuamente na imaginação de

navegadores, exploradores e povoadores do hemisfério ocidental. Denunciam-na as

primeiras narrativas de viagem, os primeiros tratados descritivos, onde a todo

instante se reiterava aquela mesma tópica das visões do Paraíso que, inaugurado

desde o IV século num poema latino atribuído, erradamente segundo muitos, a

Lactâncio, e mais tarde desenvolvida por Santo Isidoro de Sevilha, alcançara, sem

sofrer mudança, notável longevidade91

.

Mas como o mito não tem o poder de superar a realidade, teve-se que “criar o paraíso

na terra”, e nada era tão eficiente e nem verdadeiro para isso do que a doutrina cristã da

Igreja, trazida à América Latina pelos seus descobridores (ou conquistadores), portugueses e

espanhóis. E, conforme um livro de George H. Williams92

, tal mencionado por Holanda,

acentuou-se nesse sentido, o papel “dos sacerdotes católicos que acompanhavam aqueles

homens”, diz; acrescentando que tais sacerdotes e conquistadores

vinham [...] animados pela crença em um Éden que generosamente se oferecia, e

estava “só a espera de ser ganho” [...]. Em contraste com eles, os peregrinos

puritanos, e depois os pioneiros do Oeste, vão buscar nas novas terras um abrigo

para a Igreja verdadeira e perseguida, e uma “selva e deserto”, na acepção dada a

estas palavras pelas santas escrituras, que através de uma subjugação espiritual e

moral, mais ainda do que pela conquista física, se há de converter no Éden ou Jardim

do Senhor93

.

90

FAERMAN, Marcos. Introdução: aventuras e visões de um velho marinheiro. In: COLOMBO, Cristovão.

Diários da descoberta da América. Trad. de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM, 1998. p. 8. (Col. L&PM

Pocket, 128). A descoberta de novas terras oferecia, além da obtenção de riquezas e posições político-comerciais

(Portugal disputava com Espanha a aquisição de novos territórios), a possibilidade da conquista desse paraíso na

terra. Para se ter uma noção desse espírito, ver o filme 1452: a conquista do paraíso, de 1992, feito em

comemoração aos 500 anos de descobrimento da América, dirigido por Ridley Scott. 91

HOLANDA, Sergio Buarque de. Prefácio à segunda edição. In: ______. Visões do Paraíso: os motivos

edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. 6. Ed. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. IX-X. 92

Cf. WILLIAMS, George H. Wilderness and Paradise in Christian Thougth. Nova York, 1962. 93

HOLANDA, 2004, p. XII-XIII.

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Na cultura americana, por exemplo, a idéia de um “paraíso na terra” ou a “fabricação

de um”, pela ação evangelizadora que poderia trazer a ética/moral do Reino de Deus à terra,

conforme Holanda, foi um tema sempre muito presente, desde Agostinho e o Pseudo-

Lactâncio até o Renascimento e a Reforma Protestante, “sem esquecer, de passagem, as

doutrinas milenaristas ou quiliásticas, que deslocam o Paraíso para um futuro mais ou menos

distante”94

. E assim,

Valendo indiferentemente para as obras piedosas e as profanas, já que podiam

indicar, ora a realidade física do deleitoso jardim, ora seu sentido espiritual ou

figurado, e também, segundo já o pretendera Santo Agostinho, e depois S. Tomás,

tanto uma coisa quanto outra, as visões do Paraíso não cessariam, por muito tempo,

de enriquecer-se de atributos novos95

.

Os motivos das vindas, claro, tinham dúbia natureza: conquista e catequese. Além

das doenças, os colonizadores (e com eles os sacerdotes a mando da Coroa) ofereciam uma

cultura e uma fé que visava transformar o nativo em cópia sua, com o fito de melhor

aproveitá-lo neste Novo Mundo. Catequese e educação: primeiro os jesuítas, depois os

calvinistas, luteranos, agostinianos, etc. Muitas foram as confissões que trouxeram uma

virtuosa proposta catequético/educativa – ou outras menos virtuosas –, fincadas na fé cristã,

na piedade e na moral, e todas essas confissões (ou pelo menos os/as que abordaremos)

tinham a doutrina agostiniana por base, mesmo que diluída nas entrelinhas da doutrina desta

ou daquela escola, deste ou daquele pensador.

Uma pesquisa historiográfica, mesmo a mais acurada, vai esbarrar em dificuldades

como, dentre outras, a diluição do pensamento do Bispo de Hipona nas teologias posteriores,

trazidas pelos missionários e já sedimentadas na formação espiritual dos colonizadores – sem

falar nas idéias dominantes que, naquele período de Renascimento e Ilustração, prevaleciam

na formação da elite intelectual que seria responsável pela educação do Novo Mundo. Não

somente pelas análises profundas que Agostinho fez a respeito da interioridade humana, mas

também, e principalmente, pelo seu gênio especulativo e pela grande capacidade de síntese,

que fundiu o caráter especulativo da Patrística grega com o caráter prático da Patrística

latina96

– embora, na sua obra, se preocupe fundamentalmente com os problemas práticos e

morais, relativos à catequese e à vida da Igreja –, o Hiponense se manteve atual, e foi

94

HOLANDA, 2004, p. XIII. 95

HOLANDA, 2004, p. 174. 96

Neste sentido, ver: MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. Agostinho. In: _____. História da literatura

cristã antiga, grega e latina. II: do Concílio de Nicéia ao início da Idade Média. Trad. de Marcos Bagno. São

Paulo: Loyola, 2000. v. 2, p. 13-67.

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atualizado nas teologias. Aí, ele aparece com o alicerce que, embora não seja visto, sustenta a

casa toda.

Em Agostinho se originou a filosofia que, pela primeira vez, procurou dar um

suporte racional ao cristianismo. Foi uma época em que a cultura helenística era decadente e o

cristianismo ascendente. Essa helenização do cristianismo, diz Eduardo Hoornaert,

“significou [às futuras conquistas de Espanha e Portugal, reinos cristãos] a dominação

colonialista”97

. Associada à dominação está, aí, a figura de Agostinho, “o maior helenizador

do cristianismo ocidental”98

. E essa influência se estendeu por toda a Idade Média e, ainda

hoje, está presente nos alicerces mais profundos da cultura cristã ocidental; e mesmo daquela

cultura/ética que pretende-se autônoma, como no caso da moral kantiana99

. Nisso tudo, e

principalmente na alta Idade Média, o pensamento de Agostinho foi vulgarizado. Isso se deu,

segundo Hoornaert, pela intelectaulização da fé. “Esse agostinianismo vulgarizado é um vasto

movimento intelectual que passa por Anselmo, santo Tomás de Aquino e Lutero, para

desembocar no mundo de hoje”100

. As bases da moral ocidental do “mundo de hoje” estão em

Agostinho, ou mais precisamente no encontro que ele promove entre a fé e a razão,

resultando, consequentemente, nessa “intelectaulização da fé”101

. É certo que outros, antes

97

HOORNAERT, Eduardo. História do cristianismo na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulus,

1994. p. 375. 98

HOORNAERT, 1994, p. 375: “Ele próprio viveu na encruzilhada de diversas influências, como a do

platonismo, do neoplatonismo, do maniqueísmo e do próprio cristianismo. É perfeitamente compreensível que

sua conversão ao cristianismo não tenha implicado no desaparecimento imediato de das influências anteriores na

sua vida”. 99

Conforme John Rawls, “um traço essencial da psicologia moral agostiniana na Religião [obra de Kant] é as

falhas morais de todos os tipos, desde as falhas menores da fragilidade e impudicícia aos piores extremos de

malevolência e perversidade dos quais somos capazes, devem surgir, não dos desejos de nossa natureza física e

social, mas unicamente do exercício de nossa livre faculdade de escolha (Rel. I 6:29-32 [23-27]). E por esse

exercício nos mantemos plenamente responsáveis. Kant sustenta a visão da origem do mal dada por Santo

Agostinho na Civitate Dei (Livro XIV, caps. 3, 11-14). Diz ele (Rel. I 6:23s. [19s].): „A liberdade da vontade é

uma natureza inteiramente única, no sentido de que um incentivo pode, qualquer que seja, coexistir com a

espontaneidade absoluta da vontade (isto é, a liberdade). Mas a lei moral, no juízo da razão, é ela mesma um

incentivo, e quem quer que faça dela a sua máxima é moralmente bom‟.” (RAWLS, John. História da filosofia

moral. Trad. de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 337). De fato, na obra de Rawls, que

propõe mostrar uma “História da filosofia moral”, Agostinho não é citado mais do que duas vezes (p. 237 e 347,

onde é dito que a moral kantiana era agostiniana, e não maniqueísta) – porque é a partir da ética/moral autônoma

kantiana que, segundo o autor, com algumas regressões a Aristóteles, a História da moral moderna é construída. 100

RAWLS, 2005, p. 375. Sobre a teologia moral do Aquinate, ver: GONZÁLEZ, Elisa García. La relación

entre la prudencia e las virtudes morales em La Summa theologiae de santo Tomás de Aquino: estudio de

la I-II, q. 58, aa. 4-5. Roma: Pontificia Universidad de la Santa Cruz / Facultad de Filosofia, 2001. (Tesis de

licenciatura). Ver, em especial, as págs. 14 a 30. 101

A temática da “intelectualização da fé” (ou da helenização do Cristianismo), hoje, está muito viva nas críticas

que alguns teólogos do “teísmo aberto” fazem quando, bem ou mal intencionados, tratam sobre as origens da

Igreja cristã. Agostinho, evidentemente, não fica de fora de tais ponderações, embora, nas palavras de Boehner e

Gilson, Agostinho queira “ser, em primeiro lugar, um teólogo, e não um filósofo”, asseverando que, “a

existência de uma síntese filosófica, fora do contexto teológico é, em derradeira análise, simples decorrência do

seu sistema”. (BOEHNER; GILSON, 1982, p. 203). Um pouco antes, os mesmos autores, de modo não

contraditório, diziam que: “Na pessoa de Agostinho a filosofia patrística e, quiçá, a filosofia cristã como tal,

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dele, já haviam feito grandes progressos nesse sentido, a exemplo de Justino, o Mártir

(começo do séc. II–m.163/67) e Clemente de Alexandria, mas nenhum logrou uma amplitude

histórica e nem uma abrangência temático-cristã tão grande e duradoura quanto ele. A

diferença entre Agostinho, no De Magistro, por exemplo, e Clemente, no Pedagogo, no que

diz respeito à educação e à catequese, é que, no Pedagogo, há apenas uma descrição do

processo pedagógico-educativo, ou uma compendiosa exposição do que a cultura cristã deve

ser – e aí a sua natureza moral102

. O De Magistro, o De vera religione e o De catechizandis

rudibus, só para citar uns exemplos mais visíveis, são colocados no centro do problema

filosófico referente à educação e à cultura. A pergunta que é feita em tais obras: é possível a

educação moral (cristã)? Se sim, de que maneira?

Não é somente injusto como também é irresponsável considerar a obra de Agostinho

como a base do esmorecimento da piedade em função da estrutura dogmático-institucional da

Igreja. No início do De Trinitate, por exemplo, ele escreve:

Todo aquele que ler estas explanações, quando tiver certeza do que afirmo, caminhe

lado a lado comigo; quando duvidar como eu, investigue comigo; quando

reconhecer que foi seu o erro, venha ter comigo; se o erro for meu, chame minha

atenção. Assim haveremos de palmilhar o caminho da caridade em direção àquele de

quem está dito: Buscai sempre a sua face (Sl 104,4)103

.

Isso nos permite, como ele mesmo fazia em suas Retractationes (ou Revisões, no seu

sentido real), reler o que se fez no passado com os olhos do presente, visando à coerência, a

relevância e o futuro da Igreja cristã no mundo. O ensino no Medievo, como se sabe, tinha o

mesmo sentido que a catequese. A Igreja era a instituição mais poderosa do Ocidente, e a

atinge o seu apogeu” (BOEHNER; GILSON, 1982, p. 139). De todo modo, não é estranho ver afirmações como

a de Gareth B. Matthews que, defendendo a ênfase que dá ao legado filosófico de Agostinho ao Ocidente, em

seu livro Augustine, de 2005, diz: “Agostinho é amplamente reconhecido como um grande teólogo. Esse

reconhecimento é inteiramente apropriado. Mas Agostinho não é hoje tão reconhecido como um importante

filósofo. Espero que este livro seja uma modesta contribuição para corrigir esse desequilíbrio”. (MATTHEWS,

Gareth. Santo Agostinho: a vida e as idéias de um filósofo adiante de seu tempo. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 15). 102

Na paidéia (educação) cristã, conforme esboçada por Clemente, três temas aparecem como centrais: em

primeiro lugar, Deus mesmo é quem assume a tarefa não apenas de criar o homem, mas também de redimi-lo e

conduzi-lo à salvação por meio de sua ação pedagógica/instrução. Em segundo lugar, somente Deus é capaz de

realizar tal programa pedagógico, que se insere em sua obra salvífica e está destinado a toda a humanidade. Por

fim, e em terceiro lugar, é através do Cristo-Logos que Deus exerce esta função pedagógica. O Cristo-Logos foi

constituido pedagogo de toda a humanidade. (Cf. CLEMENTE DE ALEJANDRIA. El Pedagogo. Trad. introd. e

notas de Marcelo Merino e Emilio Redondo. Madrid: Ciudad Nueva, 1994. p. 30-34). O Hiponense, com os

temas do conhecimento, da iluminação e do magistério, faz uma descrição e exposição semelhante a essa de

Clemente – no De cathechizandis rudibus, no De Magistrio, no De vera religione e, parcialmente, em todos os

seus escritos. 103

De Trin., I, 3,5. Mestre da oratória, Agostinho utiliza-se, aí (e como fará nos inícios de muitas outras obras),

da captatio benevolentiam, com o fito de conquistar o leitor; o que não depõe, em momento algum, contra o seu

conhecido espírito de humildade.

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filosofia de Agostinho, prevalecente, foi fundamental à definição da cultura dessa época,

maior parte disseminada pela Igreja. “Podemos até afirmar que o agostinianismo se tornou a

teologia hegemônica da instituição cristã ocidental”104

.

A doutrina de Agostinho foi a primeira grande força intelectual de uma era em que a

Igreja de Roma exerceu o seu grande poder de influência cultural. E isso se estenderia pelos

séculos a fio. Prova disso é a dificuldade que se tem de, hoje, construir-se uma teologia séria e

que permita as revisões dos fundamentos que, desde Agostinho (ou da intelectualização da

fé), já estão postos, engessados105

. Prova disso também é o recorrente retorno às obras do

Hiponense – como veremos mais adiante, na celeuma que, em pleno século XVII, na França,

se deu em torno de certas similaridades entre algumas concepções suas e a filosofia cartesiana

–; prova disso, por fim, são as críticas que algumas teólogas modernas fazem em relação às

concepções do corpo, da moral e do sexo, a exemplo de Uta Ranke-Heinemann que, valendo-

se de um texto fragmentado da obra de Fredrich Heer106

, afirma que Agostinho, “como muitos

neuróticos, [...] separa de forma radical o amor da sexualidade”107

. E embora não possamos

104

HOORNAERT, 1994, p. 375. Assim, conforme DURANT, Will. História da civilização IV: a Idade da Fé.

História da Civilização Medieval: cristianismo – islamismo – judaísmo. De Constantino a Dante: A.D. 325-1300.

Trad. de Mamede de Sousa Freitas. Rio de Janeiro. Record, [s.d.]. p. 59: “[Agostinho] estudou Platão [na

verdade, ele estudou os platônicos, como Porfírio...] e Plotino em Roma [e estudou mais em Milão do que em

Roma]: o neoplatonismo integrou-se profundamente em sua filosofia e, por intermédio dele, dominou a teologia

cristã até o tempo de Abelardo”. (No texto de Durant, as chaves são nossas). Pedro Abelardo nasceu em 1079,

no burgo de Le Pallet, próximo de Nantes, na Bretanha; morreu em 1142, em Châlons-sur-Saône, Borgonha. É

chamado por Jacques Le Goff de “o primeiro intelectual da Idade Média” (LE GOFF, Jacques. A civilização do

Ocidente Medieval. Trad. de Manuel Ruas. Lisboa: Editorial Estampa,1983. v. 2, p. 51. [Col. Nova Historia,

15]). 105

Nas palavras de Hoornaert: “A religião voluntarista de Agostinho foi amplamente divulgada nos países

colonizados pela Europa, a partir do século XVI, entre catecúmenos e seminaristas, neófitos e ouvintes em geral,

nos colégios e nas escolas, nos aldeamentos e nas paróquias. É, pois, mais do que justificado que a teologia da

libertação empreenda um processo de crítica e superação do dogmatismo que se criou em torno do pensamento

agostiniano. (HOORNAERT, 1994, p. 377). Apesar do que possa parecer, Hoornaert não faz exatamente uma

critica a essa influência de Agostinho que se estende até hoje, critica mesmo é o dogmatismo que se fez em torno

de algumas idéias suas que, para hoje, não respondem mais às necessidades, nem da Igreja (a Latino-americana,

em especial) e nem do povo que faz a Igreja. Como ele mesmo diz: “Não se trata de condenar Agostinho”

(HOORNAERT, 1994, p. 375). A alegação de autoridade (e também, decorrente disso, de culpa) que se atribui a

Agostinho, apresenta-se no trajeto que os sentidos fazem em direção à revelação – do testemunho das coisas do

mundo às coisas divinas –, não comprometendo e nem reduzindo o papel da razão, como defende Francisco

Benjamin de Souza Netto: “[...] a razão impregna o que se pode considerar voluntarismo em Agostinho e se

insiste que o vigor e a sanidade mesma está na razão direta da assecução do fim. Sem detrimento do

conhecimento das coisas terrestres e celestes, privilegia-se o conhecimento de si mesmo, com o que se precisa o

exato teor do socratismo agostiniano: é no homem, isto é, no que nele é mais íntimo que ele demanda um

conhecimento superior”. (SOUZA NETTO, Francisco Benjamin de. Agostinho: a ética. In: Revista Veritas,

Porto Alegre, v. 40, n. 159, p. 342). Para o mesmo sentido, ver: Enn. in Ps., 41, 2-3. 106

Cf. HEER, Fredrich. Gottes erste Liebe: Die Juden im Spannungsfeld der Geschichte. Esslingen, 1981. p.

69-71. 107

RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos pelo reino de Deus: mulheres, sexualidade e a Igreja Católica. 3. ed.

Trad. de Paulo Fróes. Rio de Janeiro: Record / Rosa dos Tempos, 1996. p. 88-9. Numa perspectiva romântica,

típica daquele Romantismo que marca o jovem Werter, na obra de J. W. Goethe (1749-1832), a autora parece

querer manter aquela união mística entre o amor romântico e o Desejo, ignorando-o como “mero” artifício da

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concordar com tudo o que tais teólogas dizem, principalmente porque se armam da paixão e

de uma hermenêutica assumidamente sexista, não podemos deixar de ver que, por colocarem

a questão da moral agostianiana referente ao sexo, elas têm contribuído com a atualização de

tal debate. De todo modo, e contra o modo apressado de tais juízos, o renomado agostinólogo

italiano, Agostinho Trapè, afirma que, ultimamente, “está na moda [...] falar mal sobre esse

ponto – e não somente esse – do bispo de Hipona108

”. Todavia, não obstante a leitura

apaixonada de Ranke-Heinemann sobre a “sexualidade em Agostinho” – é questionável que

tanto se associe a moral cristã à sexualidade, como se isso encerrasse a maior parte dos seus

“problemas” –; é muito coerente, porém, o que ela afirma em relação à continuidade das

idéias de Agostinho:

Agostinho é o pensador teológico que pavimentou o caminho não só para os séculos

como também para os milênios que se seguiram. As posições assumidas por ele

tiveram influência decisiva sobre os grandes teólogos medievais, por exemplo,

Tomás de Aquino [...], e sobre o jansenismo, aquele renascimento do puritanismo

extremo da França nos séculos XVII e XVIII. [...] Agostinho foi o grande criador da

imagem cristã de Deus, do mundo e da humanidade que é ainda amplamente aceita

hoje em dia109

.

Vontade – uma opção do sentimento, não da razão (cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica de las

costumbres. Introd. trad. e notas de Roberto Rodríguez Aramayo. Madrid: 1993. [Col. Classicos del

Pensamiento]). Talvez não seja exagero afirmar que tais noções, caras à modernidade, já têm o seu germe no

pensamento de Agostinho que, por influência de Platão (428/27 a.C. – c. 347 a.C.) – que por sua vez recebia

influências de Pitágoras (570/71 a.C. – c. 497) –, retoma a idéia de que “o corpo é uma prisão da alma” (cf.

Fédon, 83d), embora se mantenha numa posição confusa. Sim, o corpo, para Agostinho, não é uma prisão da

alma, mas é (cf. Conf., IX, 11,28). “O homem é uma alma que se serve de um corpo. Quando fala simplesmente

como cristão, Agostinho toma o cuidado de lembrar que o homem é a unidade da alma e do corpo; quando

filosofa, recai na definição de Platão” (GILSON, 1998, p. 146); e, mais adiante: “O corpo do homem não é a

prisão da sua alma, mas tornou-se tal por efeito do pecado original, e o primeiro objeto da vida moral é nos

libertar dele” (GILSON, 1998, p. 153). Essa guerra interior do Eu (alma X corpo: Voluntas), conforme Harold

Bloom, foi inaugurada pelo próprio Cristo, desenvolvida por Agostinho e levada à perfeição por Shakespeare:

“A internalização, em Shakespeare, vai além da de Jesus, embora Jesus tenha inaugurado o eu interior (em

permanente expansão), desenvolvido por Santo Agostinho e levado à perfeição por Shakespeare, em Hamlet,

após tê-lo reinventado em Falstaff” (BLOOM, Harold. Jesus e Javé: os nomes divinos. Trad. de José Roberto

O‟Shea. Rio de Janeiro: objetiva, 2006. p. 23.). “Seja como for, essas noções da vontade/amor/instinto de

preservação, séculos depois, serão desenvolvidas por Sigmund Freud (1856-1839), mais precisamente ao tratar

do inconsciente – tendo também raízes em Schopenhauer. (Cf. ARAMAYO, Roberto Rodríguez. Estúdio

preliminar. In: SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica de las costumbres. Introd. Trad. e notas de Roberto

Rodríguez Aramayo. Madrid: 1993. p. XXII-III. (Col. Classicos del Pensamiento). Para a citação de Freud, ver:

FREUD, Sigmund. Una dificultad del psicoanálisis. In: Obras completas. Trad. de Luis López-Ballesteros.

Madrid: Biblioteca Nueva, 1972-75. v. 7, p. 2436). Mais, nesse particular, ver: SCHOPENHAUER, Arthur. El

amor, las mujeres e otros ensayos. Trad. de Miguel Urquiola. Madrid: Editorial EDAF, S. A., 1993. p. 54ss.

Ver ainda, no mesmo sentido: ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Die erotik. Frankfurt/Main: Rütten & Loening,

1910. 108

TRAPÈ, Agostinho. S. Agostino: l‟uomo, il pastore, il mistico. Fossano: Editrice Esperienze, 1976. p. 227.

Uma leitura coerente sobre o tema da moral sexual, em Agostinho, pode ser vista em: BROWN, Peter.

Agostinho: sexualidade e sociedade. In: Corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do

cristianismo. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 318-51. 109

RANKE-HEINEMANN, 1996, p. 88. Na segunda canção dos Carmina Burana (CB 6), da edição que temos

em português, há um elogio a Agostinho, como modelo de um labor intelectual que o autor do poema, anônimo,

diz não ver mais nos estudantes, nem nos clerice vagi. Na ironia poética: “Agostinho, às escondidas, conversa

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A doutrina moral de Tomás de Aquino, nesse e em outras particularidades, se

distingue da de Agostinho. Enquanto a moral tomista é essencialmente intelectual,

intelectualista, a agostiniana é voluntarista – a vontade não é condição de conhecimento, mas

tem-no como finalidade. A doutrina agostiniana foi a primeira a delinear os caminhos da fé e

da moral católicas; mas foi na obra de Tomás de Aquino que a Igreja Católica e a ordem dos

jesuítas encontrou a instrução para a prática educacional e as ações pastorais que

implementariam durante as conquistas espanhola e portuguesa - alguns jesuítas foram

educadores e confessores de importantes reis, como no caso de D. Sebastião de Portugal. O

rompimento dessa veia político/elitista será, no século XVII, a ruína da Companhia, e

ocasionará, por fim, a expulsão da mesma e a cessação de suas obras nas colônias

portuguesas110

. Fundada por um grupo de seis estudantes, em Paris, em 14 de agosto de 1534,

tendo como cabeça Íñigo López de Loyola, ou Inácio de Loyola (1491-1556), a Companhia

representou, na educação e na moral, a linha de frente na guerra da Igreja Católica contra o

avanço da Reforma Protestante. Mas Agostinho, às duas linhas, díspares em pontos cruciais,

se mantinha, tanto como exemplo de piedade cristã quanto de zelo pela fé e pelas obras.

Os jesuítas foram os criadores de muitos dos métodos de ensino mais eficientes na

época do Brasil colonial. Foram os primeiros a construírem as instituições educacionais do

novo continente – instituições essas que estavam ligadas à Igreja, mantendo, em certos

aspectos, aquela estrutura herdada da Idade Média. E, nesse aspecto eclesiástico/moral, não há

dúvida de que a teologia/filosofia de Tomás de Aquino tinha primazia. E embora o Aquinate

utilize-se de Agostinho, faze-o em função da sua autoridade como Padre que, invocado – e às

vezes fora do grande contexto da sua obra –, corrobora com o seu próprio pensamento, que

com Bento sobre a safra do trigo, mas pensando já numa comilança.” Os clerici vagi (clérigos vagantes) foram

padres que, desempregados, entre os séculos XI e XII, principalmente na França e na Alemanha, utilizaram seus

talentos literários para compor as canções de Beuern (as Carmina Burana), que são canções jocosas, satíricas e,

mesmo, eróticas. “Boa parte da poesia profana medieval foi escrita pelos clérigos desempregados da época”, diz

Maurice van Woensel. (WOENSEL, Maurice van. Introdução. In: Carmina Burana: Canções de Beuern. Trad.

Intrd. e notas de Maurice van Woensel. São Paulo: Ars Poética, 1994. p. 19). Da segunda canção, Woensel ainda

diz: “Esta canção, além de louvar „os bons velhos tempos‟ [nas alusões „aos grandes santos da Igreja antiga:

Agostinho, Gregório e Bento‟], versa sobre o tema do „mundo às avessas1: o quente ficou frio, o moralista torna-

se um comilão, a mulher casta uma prostituta etc.” (WOENSEL, 1994, p. 165). O nome do Hiponense, aí, traz à

mente esse valor moral perdido, naquele pensamento comum de que o que se tinha, no passado, era melhor. 110

Nas palavras de DEIROS, Pablo Alberto. Historia del cristianismo en América Latina. Buenos Aires:

Fraternidade Teologica Latinoamericana, 1992. p. 292: “La expulsión de los jesuitas ha sido atribuida a diversas

causas”. O Tema é longo e irrelevante à finalidade do nosso tema; ver mais em: MORNER, Magnus. (Ed.). The

expulsion of the Jesuits from Latin America. New York: Alfred A. Knopf, 1965.

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nem sempre é o mesmo111

. É assim que o Aquinate, mantendo-se na tradição que o precede,

vale-se de Agostinho, que, em sua obra, disputa em número de citações com o Filósofo

(Aristóteles)112

.

3.3. Renascimento, Esclarecimento e agostinismo: herança brasileira

O agostinismo entrou no Brasil de modo indireto, interpretado sob novos e múltiplos

olhares. Não mais aquele com raízes no neoplatonismo – embora não houvesse como separá-

lo dele –, mas, agora, mesclado ao aristotelismo e a algumas idéias humanistas ou reformistas

do século XVI. No século XVII, ilustrado, falar-se-á desse período anterior, voltando até o

século IV, e mesmo antes desse (até o silêncio no Liceu de Aristóteles), como uma “Idade das

Trevas”. Não obstante a denominação preconceituosa das Luzes, hoje bastante combatida, a

influência de Agostinho ainda é tal que, de um modo ou de outro, por todo esse período

continua sendo lembrando: nas celeumas da razão ou nas celebrações da fé.

No século XII, na França, na figura de Pedro Abelardo (1079-1142) – que aparece na

historiografia como pioneiro na renovação da dialética, da teoria escolástica e da moral (a

moral da intenção), e por isso considerado o primeiro moralista moderno –, os clássicos ainda

eram estudados como fontes primárias do saber acumulado, a exemplo de Virgílio, Lucano, as

gramáticas de Donato e Prisciano, bem como a lógica de Aristóteles, os comentários de

Boécio, a Bíblia e os doutores gregos e latinos da Igreja, com destaque para Agostinho. Mas

os compêndios, a exemplo das Sentenças – redigidas entre 1155 e 1157, por Pedro Lombardo

(1095-1160) –, fariam da cátedra, nos sécs. XII a XV, e parte do XVI, um lugar de reprodução

do saber, por vezes tomado como fonte inquestionável do questionável, um saber engaiolado,

dogmatizado, “oficial”. Nas Sentenças, entre os Doutores, Agostinho é o mais citado.

111

Tal recurso é comum na Idade Média, e fartamente encontrado já entre os séculos II e III da era cristã, quando

“teólogos utilizam obras de seus predecessores, sem que a maior parte deles nomeiem suas fontes”, a exemplo de

“Irineu, Tertuliano e Hipólito” (ALTANER, Berthold; STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina dos

Pais da Igreja. 2. ed. Trad. das Monjas Beneditinas. São Paulo: Paulinas, 1988. p. 18. [Col. Patrologia]). Mas, no

século IV, “tornou-se mais freqüente a referência expressa a bispos anteriores, como sendo testemunhas da

doutrina eclesiástica” (ALTANER; STUIBER, 1988, p. 18). Mais adiante, Altaner e Stuiber afirmam: “A

autoridade dos Padres no seio da Igreja católica se baseia, para além de sua importância literária, primariamente

na doutrina da Igreja a respeito da Tradição como fonte de fé. [...] Além de sua importância no ambiente

eclesiástico, os Padres da Igreja ocupam lugar proeminente na literatura universal e, particularmente, na

literatura greco-romana. São eles os últimos representantes da Antiguidade, cuja arte literária, não raras vezes,

brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todas as literaturas posteriores”. (ALTANER; STUIBER,

1988, p. 21). O próprio Agostinho se valia da autoridade de teólogos e pensadores anteriores (Cícero e Sêneca,

por exemplos), como fonte de autoridade (cf. Cont. Iul., 2, 10,35). 112

Aristóteles, ou o Philosophus, é o autor mais citado por Tomás de Aquino (9.800 vezes), seguido por

Agostinho (7.805 vezes) e por Jerônimo (2.701 vezes); outros autores bastante citados são: Dionísio (1.982

vezes), Averróis, ou o Comentador (570 vezes) e Avicena (434 vezes).

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3.3.1. Novos olhares: este mundo tão novo e sua moral tão antiga

Os renascentistas, a princípio, depois os ilustrados, os nominalistas e os

reformadores, cada qual à sua proporção, apregoavam uma volta às fontes: ac fontes, ac

propter a fontibus. Quando o lema renascentista começou a ser ouvido, as obras de Agostinho

entraram no programa das publicações cuidadosas, do estudo minucioso113

, mas já não eram

tidas como inquestionáveis – o que, convém lembrar, nunca foi a sua intenção; como aparece

numa citação da De Trinitate, onde o Hiponense diz: “Não me cansarei de procurar, se tiver

alguma dúvida; e não me envergonharei de aprender, se cair em algum erro”114

. O respeito ao

Bispo de Hipona nunca diminuiu, mesmo quando alguns, a exemplo de Lutero, chegavam a

discordar da hermenêutica emprega pelo Doutor da Graça. É como atesta Oberman, tratando

da influência de Agostinho sobre o Reformador:

Encontrar a abordagem correta ou por onde começar é então visto como fator

crucial, e Lutero foi evidentemente bem sucedido nesse propósito: ele teve que

testar a escolástica pelo padrão de Santo Agostinho e então encontrar seu próprio

caminho de Santo Agostinho até São Paulo para que pudesse adquirir a chave para a

Escritura. [...] O nome de Agostinho de Hipona, um dos Pais da Igreja, é a primeira

pista definitiva para o desenvolvimento de Lutero115

.

Na França do século XVII, muita coisa mudara com a (re)ascensão do tomismo, mas

Agostinho continuava sendo citado e estudado; ele, por muitos motivos, se mantinha como

um homem atual, que ainda tinha muito a ser dito – e não era apenas por sua escrita pulsante,

como nas Confessiones, mas pela vivacidade da sua mente que elaborara temáticas sempre

atuais, e a atualizarem-se; sábio era quem o escutava com o respeito que lhe era devido. Henri

Marrou, por exemplo, afirma que:

Nada atesta melhor a posição de primeira plana ocupada por Santo Agostinho na

mentalidade do século XVII em França que o papel desempenhado por ele na

evolução do cartesianismo. Mersenne, já na primeira leitura do Discurso do Método,

e o grande Arnauld, logo depois da publicação das Meditações metafísicas,

assinalaram a Descartes a coincidência surpreendente entre certos raciocínios do

113

Foram os monges beneditinos de são Mauro que editaram toda a sua obra, no século XVII. 114

De Trin., I, 2,4; I, 3,5. No Livro III, prol. 2, ainda da De Trin., Agostinho recomenda ao leitor: “Não te

entregues aos meus escritos como se fossem as Escrituras canônicas.” 115

OBERMAN, 1989. p. 158. Agostinho conduz Lutera à (e pela) Escritura. E é a mesma Escritura que, em

1516, autoriza Lutero a afirmar: “I do not defend Augustine because I am an Augustinian; before I began reading

his works He meant nothing to me.” (OBERMAN, 1989, p. 161). Para a citação de Lutero, ver: WABr 1.70, 19-

21; to Spalatin, 19 Oct. 1516. Mais adiante voltaremos à temática de Lutero em relação a Agostinho.

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grande Doutor e o argumento do cogito. Entretanto, é o caso de perguntar se

Descartes conheceu efetivamente ou não tais textos?116

Como se sabe, Marin Mersenne (1588-1648), Andreas Colvius (1594-1671) e

Antoine Arnauld (1612-1694), contemporâneos de Descartes, apontaram a estreita afinidade

entre os dois argumentos. Descartes, numa famosa carta datada de 14 de novembro de 1640,

agradece a Colvius pela sua indicação do texto de De Trinitate XV. Consta que ele procurou a

referida obra na biblioteca municipal para, lá, ler o texto e constatar que, enquanto Agostinho

simplesmente descobre a existência daquele que duvida (algo que, segundo Descartes,

qualquer autor poderia ter constatado), ele aponta para algo essencialmente mais promissor:

que o eu pensante (res cogitans) é uma substância imaterial117

.

Essa discussão, renovada constantemente, parece irrelevante para a nossa finalidade.

Entretanto, convém salientar que, entre os que afirmavam que Descartes se inspirara no

“cogito agostiniano”118

(o seu Si fallor, sum) para formular o seu Cogito, ergo sum119

, e os

que respondiam que não, tal embate “revestiu-se [...] de extrema importância para os

contemporâneos, pois semelhante encontro pareceu-lhes admirável, providencial, pejado de

significação, vindo conferir à nova filosofia uma autoridade inesperada”120

. No calor das

discussões que a “nova filosofia” despertava, estava a dúvida, para alguns, da sua real

novidade – o que quer dizer muito, em se tratando da filosofia que vai, senão inaugurar,

representar a Filosofia Moderna, ou a Modernidade. As idéias de Agostinho, por esse viés – e

não muito bem interpretadas –, voltam com toda a força121

. “Por diferentes que fossem

(Pascal sentira-o muito bem) as perspectivas próprias a cada um dos dois pensadores”, diz

Marrou, os partidários de Descartes “situavam o cartesianismo, para grande honra sua, no

prolongamento do agostinismo”122

. Assim:

116

MARROU, Henri. Santo Agostinho e o Agostinismo. Trad. de Ruy Flores Lopes. Rio de Janeiro: Livraria

Agir Editora, 1957. p. 173. (Col. Mestres Espirituais). 117

Cf. DESCARTES, René. Oeuvres de Descartes. Publiées par ADAM, Charles; TANNERY, Paul. Paris: J.

Vrin, 1974-1982. v. 3, p. 46-51. DONATELLI, Marisa Carneiro de Oliveira Franco. Carta de René Descartes a

Marin Mersenne. In: Scientiae Studia. São Paulo: Departamento de Filosofia / FFLCH – USP, 2003. 118

Ver o “cogito agostiniano” em: De beat. vit., 2, 7; Sol., II, 1,2; De lib. arb., II, 3,7; De civ. Dei., XI, 26; De

Trin., X, 10,13-16; XV, 12,21. 119

Cf. DESCARTES, Rene. Discourse on method. Translated, with an Introduction by Laurence J. Lafleur.

New York: The Liberal Arts Press, 1950. p. 20-21. Ver ainda: DESCARTES, René. Meditações. In: Obra

escolhida. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. p. 158-9.

Meditação quarta. (Col. Clássicos Garnier). 120

MARROU, 1957, p. 173. 121

Conforme Marrou: “os primeiros partidários de Descartes não cessam de decantar esta „conformidade da

doutrina de Santo Agostinho com os sentimentos do Sr. Descartes‟”, concluindo que “por pouco que não

concluíam que, no final das contas, ele não havia inventado nada”. (MARROU, 1957, p. 173). 122

MARROU, 1957, p. 173.

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Cumpre sublinhar que, por um movimento inverso, a leitura de Descartes veio

influenciar de maneira profunda (e durável) a compreensão de Santo Agostinho.

Tem-se a impressão que, até essa data, o século XVII considerara o bispo de Hipona

sobretudo como doutor da Igreja e mestre da vida espiritual e que apenas ao contato

com Descartes é que descobre em Santo Agostinho um “homem dotado de espírito

altíssimo e de singular doutrina, não só em matéria de teologia, mas também no que

concerne a humana filosofia” – conforme escreve Arnauld nas famosas Quatrièmes

objetions123

.

Outro pensador, do mesmo período, Nicolas Malebranche (1638-1715) – talvez o

filósofo mais lido do século XVIII, embora tenha caído na obscuridade, principalmente a

partir da segunda metade do século XX –, seguidor das idéias de Descartes (com ênfase nas

questões do método e no dualismo alma/corpo), era, talvez ainda mais, e de modo

apaixonado, seguidor de Agostinho. No prefácio que faz à sua mais importante obra, De la

recherche de la vérité (1674-75), vê-se o grande número de referências à obra do Bispo de

Hipona124

, como autoridade, tanto nas questões relacionadas à razão (embora com limites)

quanto nas que diziam respeito à piedade cristã, que condena o orgulho intelectual e as

paixões mundanas, transitórias. Malebranche cria que a filosofia cartesiana era a verdadeira

filosofia cristã, mas não tinha o espírito cristão e, por isso, precisa ser corrigida; a doutrina de

Agostinho poderia fazer isso. Por isso que, nas palavras de Thomas M. Lennon:

Desde há muito tempo se aceita que Malebranche tem duas fontes principais,

Agostinho e Descartes, e que ele tentou usar o primeiro para produzir uma versão

mais cristã do último. Essa visão, que é basicamente correta, sugere que Agostinho

era a fonte de Malebranche para as visões teológicas, Descartes, para as

filosóficas125

.

Em 1667, Ambrosius Victor compilou e organizou uma série de passagens da obra

de Agostinho, disso resultou o livro Philosophia christiana, que teve uma segunda edição em

1671. Parece comum a aceitação de que Malebranche utilizava essa obra do seu companheiro

123

MARROU, 1957, p. 173. 124

Embora as referências às obras de Agostinho sejam numerosas no prefácio de De la recherche de la vérité,

elas não são tão numerosas no conjunto da obra. Mas, conforme SMITH, Plínio Junqueira. Introdução. In:

MALEBRANCHE, Nicolas. A busca da verdade: texto escolhidos. Sel. Introd. Trad. e notas de Plínio

Junqueira Smith. São Paulo: Discurso Editorial / Paulus, 2004. p. 12: “Malebranche cita Agostinho poucas vezes

[o prefácio é uma exceção], ao menos no princípio. Conforme a polêmica com Arnauld vai se desenvolvendo,

passa a citar Agostinho cada vez com mais freqüência, para mostrar que sua filosofia é mais conforme à de

Agostinho do que a de Arnauld. É difícil dizer quem tem razão sobre Agostinho, mas é certo que ambos o

conheciam bastante bem”. 125

LENNON, Thomas M. The contagious communication of strong imaginations: History, modernity and

scepticism in philosophy of Malebranche. In: SORELL, T. (Org.). The rise of modern philosophy. Oxford:

Clarendon, 1995. p. 200.

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no Oratório126

para consultar certas passagens agostinianas, indo aos originais quando

precisava aprofundar uma determinada temática. Mas mesmo antes de Victor e Malebranche,

a obra de Agostinho, bem como de outros autores dos primeiros séculos da Igreja, já eram

consultadas como fontes primárias de várias discussões relacionadas à fé e à razão

instrumental.

Essas remissões à França do século XVII são relevantes porque, por esse tempo – e

daí para frente cada vez mais –, a elite cultural brasileira via a França como o espelho da

democracia e da civilidade. E alguns ideais cristão-renascentistas estavam presentes, por

exemplo, no lema da Revolução de 1789, Liberté, Egalité, Fraternité; estigmas, dentre outros,

do “Humanismo Cristão” – “movimento” que atingia tanto a Igreja Católica quanto a da

Reforma e a Reformada127

, e que fazia de Agostinho, tanto em uma quanto em outra, uma

referência comum, ou o autor principal em matéria de doutrina, sendo o Padre mais citado nas

obras dos reformadores e pensadores. E continuaria assim por todo o século XVII, mesmo

com todas as questões anti-religiosas aqui já ventiladas.

A formação cultural do Ocidente, conforme bem sublinhou Friedric W. Nietzsche

(1844-1900) em Zur Genealogie der Moral. Eine Streitschrift (1887), principalmente, está

toda e completamente fincada na doutrina cristã e na sua moral128

; e o cristianismo encontra-

126

Comunidade eclesiástica fundada pelo cardeal Bérulle, recebendo aprovação do papa em 1613. Era bem

menos rígida do que a grande maioria das comunidades da época. Recebeu apoio real no início, mas depois se

associou ao cartesianismo e ao jansenismo. Malebranch entrou na Oratória em 1660, e em 1664 foi ordenado

padre. Permaneceu aí 55 anos, até a sua morte, em 1638. Em La philosophie de Malebranch et sa expérience

religieuse (Paris: Vrin, 1948), H. Gouhier faz comparações minuciosas da obra de Ambrosius Victor em relação

à obra de Malebranch, demonstrando claramente que este último utilizava-se do primeiro, em relação às

consultas aos textos de Agostinho. 127

A distinção, clássica, se presta a não confundir a Igreja Luterana (da Reforma) com a calvinista (Reformada),

dentre outras. O lema da Revolução Francesa era: "Liberté, Égalité, ou la Mort" (Liberdade, Igualdade, ou a

Morte), de autoria de Jean-Jacques Rousseau. Somente na Segunda República (1848), é que mudaria para

“Liberté, Égalité, Fraternité”. A idéia de “liberdade, igualdade e fraternidade”, todavia, é bem mais antiga que a

Revolução. Vestígios dela são encontrados nos manuais da primeira seita comunista, fundada por Johann

Kelperès, em 1648, e conhecida como “Comunismo Cristão”. O Messias não é apresentado como um “pescador

de almas”, mas através da trilogia em que ele é o “distribuidor de justiça” (igualdade), o “grande irmão”

(fraternidade) e o “libertador” (liberdade). “Um fato que caracterizou a época do cisma iniciado com a Reforma

foi que o humanismo se difundiu tanto no terreno romano-católico como no protestante, as duas igrejas exigindo

o cultivo da literatura grega tanto pré-cristã como da antiguidade cristã. As tentativas de superar as contendas

confessionais, promovidas pelo irenista de Helmstedt, Geoeg Calix (1586-1656), que elaborou um programa de

união com base no „consensus quiquesaecularis‟, a comum tradição dos cinco primeiros séculos da história da

Igreja, se apoiavam neste humanismo cristão” (BENZ, 1995. p. 75). 128

Cf. NIETZSCHE, Friedrich. The genealogy of morals. In: _____. The birth of tragedy and The Genealogy

of morals. Trasl. of Franscis Golffing. New York: Dubledy Anchor Books, 1956. p. 147-299. E é também neste

sentido que Nietzsche, em O anticristo, afirma: “Não há nada na vida que tenha valor, a não ser o grau de

potência – suposto que a vida mesma é vontade de potência. A moral resguardava do niilismo os enjeitados, ao

conferir a cada um um valor infinito, um valor metafísico, e ao inseri-lo em uma ordenação que não coincide

com a da potência e hierarquia do mundo: ensinou resignação, humildade, e assim por diante. Suposto que a

crença nessa moral sucumba, os enjeitados não teriam mais seu consolo – e sucumbiriam.” (NIETZSCHE,

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se nas cartas de são Paulo, e depois, pelo largo alcance que teve em sua exposição teológico-

doutrinária, na obra de Agostinho. Paulo e Agostinho são, à Igreja, pelo que dizem/escrevem

– mais até mesmo do que aquilo que é dito por Cristo, conforme registro dos evangelistas –,

os grandes artífices da estrutura doutrinária que a reflete às gentes. Assim, muito natural que

escritores famosos, a exemplo do francês Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), que

escreveu o Sermon pour la profession de Madame de La Vallière, Duchese de Vaujour

(1675)129

, inspirem-se em muitas e várias passagens das obras de Agostinho, como referência,

como espelho da legítima doutrina cristã.

Mas é certo que, no aspecto religioso (sécs. XVII ao XIX), a formação da elite

intelectual brasileira – salvo uma importância demasiado exagerada que se dê às leituras que

eram feitas da (e na) obra de Agostinho, como aquilo que se faz com Descartes quando de sua

estadia no colégio de La Flechè –, não foi tão profunda ao ponto de, no Brasil, reverberar com

alguma intensidade considerável.

Com relação aos intelectuais brasileiros desse período – séculos XVIII e XIX,

principalmente –, alguns elevados à categoria de “filósofos”130

, e quase todos de orientação

comtista ou kantiana (quando ligados às filosofias naturais e do direito) ou tomista (quando

ligados à religião, a católica, principalmente), pergunta Jorge Jaime, nesse último sentido:

“Que originalidade poderia apresentar um tomista, um neotomista que segue, fielmente, as

pegadas de São Tomás de Aquino, que seguiu de Aristóteles e Avicena? Quando se fizesse

original deixaria de ser um tomista”131

. O mesmo, certamente, e no sentido da transmissão das

idéias, poderia ser dito em relação ao pensamento de Agostinho – mas esse já bastante diluído

no conjunto da obra do Aquinate. De todo modo, na Europa, o Romantismo descobrira que a

Idade Média era a chave para que se compreendesse a cultura ocidental. Isso não equivale a

dizer que, com a redescoberta da literatura, da arte e da religiosidade medievais houvesse,

naturalmente, uma revalorização da Idade Média. Se o “fazer filosofia” na Europa tinha essa

marca do Medievo, embora lutasse contra ela, muito mais no Brasil, pela forma indireta e

menor com que se tinha acesso a tais progressos da racionalidade filosófica.

Friedrich. O anticristo. In: Obras incompletas. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova

Cultural, 1996. p. 434-5. [Os Pensadores]). 129

Cf. BOSSUET, Jacques-Bénigne. Sermon pour la profession de Madame de La Vallière, Duchese de Vaujour.

In: _____. Oeuvres complètes de Bossuet. Publiées d‟après les imprimes et les manuscrits originaux, purgées

des interpolations et rendues par F. Lachat. Paris: Librairie de Louis Vivès Éditeur, 1862. v. XI, p. 563-81. De

cinco obras de Agostinho, utilizadas no sermão, duas citações são retiradas da De Trinitate, fora as referências

indiretas. 130

Nesse sentido, ver: FRANCOVICH, 1979, p. 29-83. 131

JAIME, Jorge. História da filosofia no Brasil. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Faculdades Salesianas, 1997. v.

1, p. 19.

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Muito se discutiu sobre o “fazer filosofia no Brasil”, e o que se constata sempre é que

nesse campo de produção intelectual, e principalmente nos nossos primeiros séculos,

O que há de mais constante em toda a história da filosofia no Brasil é a influência

das ordens católicas diante da mocidade, doutrinando-a, ensinando os preceitos

aristotélico-tomistas. Se afirmamos ser são Tomás de Aquino o expoente máximo de

toda a filosofia, se todos os demais filósofos [e isso incluiria Agostinho] “erram”

quando do mestre se afastam, já temos resolvido todos os problemas filosóficos.

Para que, então, preocuparmos-nos com tais sutilezas? A base do ensino brasileiro

remonta aos professores jesuítas, aos livros dos padres e frades132

.

As mudanças por aqui, mais que preocupadas com o mundo das idéias, estavam

ligadas à vida prática, às necessidades urgentes que apelavam à técnica que pudesse trazer

algum progresso que facilitasse a vida no Novo Mundo, ainda tão hostil. Assim, enquanto os

ideais iluministas e as idéias reformistas agitavam o velho mundo, uma série de mudanças,

consequentes, se configuravam por aqui. Era uma época de grandes mudanças: nas políticas,

nas artes, nas religiões, nas filosofias e, evidentemente, naquilo tudo que é o fundamento e o

sustentáculo da moral. Em À margem da História, que tem a sua primeira edição em 1909,

Euclídes da Cunha cita o conhecido apotegma de Caspar Barleaus (1584-1648), ultra

aequinotialem non peccavi [não existe pecado abaixo do Equador], dizendo “que Barlaeus [o]

engenhou para explicar os desmandos da época colonial”133

. Esse, ao que parece, era o melhor

retrato do Brasil do século XVI, segundo o século XX.

3.3.2. Novas perspectivas: mortes e ressurreições de fantasmas

Hans-Jüngen Prien, como já vimos, menciona os nomes dos jesuítas Miguel Garcia e

Gonçalo Leite, afirmando que eles se opunham àquele “catolicismo guerreiro” e ao espírito

mercantilista e absolutista de Portugal em relação ao Brasil, enquanto colônia; e agiam assim

132

JAIME, 1997, p. 27. Nas palavras de DEIROS, 1992, p. 288: “Las instituciones de enseñanza en América

Latina eran operadas por las órdenes religiosas-dominicos, agustinos y jesuitas –, la única filosofia conocida en

estas escuelas fue la de Tomás de Aquino la de los escolásticos españoles, como Francisco de Vioria, Luis de

Molina y Francisco Suárez”. A quantidade de obras que tratam sobre a formação intelectual dos primeiros

intelectuais brasileiros é muito vasta. Além da obra de Jorge Jaime – que aqui utilizamos –, destacamos também,

para uma consulta mais breve: CRUZ COSTA. A filosofia no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1945; CZERNA,

Renato Cirell. Panorama filosófico brasileiro. In: Anais do Primeiro Congresso Brasileiro de Filosofia. São

Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia / Reitoria da Universidade de São Paulo, 1950; VITA, Luis Washington.

Panorama da filosofia no Brasil. Porto Alegre: Globo, 1969. (Série Universitária / Col. Catavento); REALE,

Miguel. A filosofia em São Paulo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura / Comissão de Literatura, 1962.

(Col. Ensaio). 133

CUNHA, Euclides da. À margem da História. Porto: Chardron, De Lello & Irmãos, 1909. p. 23.

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em função de um cristianismo mais consequênte com o Sermão do monte. Citando Hoornaert,

Prien

muestra que hasta 1759 todavía una serie de otros jesuitas siguío, en nombre del

evangelio, el “cuestionamiento del catolicismo guerrero”, en conjunto se puede decir

que también los jesuitas del Brasil siguieron una politica de participación al servicio

de los interesses de la sociedad colonial, para evitar el mal mayor: que se les retirara

de su protección las aldeias-misiones134

.

Foi no início do século XIX que a Coroa bragantina se deslocou de Portugal e

instalou-se em solo brasileiro. A presença da família imperial era, aqui, conforme os

historiadores, uma continuidade da velha monarquia portuguesa. “A vinda de D. João VI e a

criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, nada mais foi que o reconhecimento

de um estado de coisas já existentes desde muito tempo”135

. Em 1822, quando o Brasil torna-

se independente e o Primeiro Império tem o seu termo, a monarquia já estava em processo de

franca dissolução. Importa lembrar que “não foi o Brasil que se separou de Portugal; a seção

européia do Reino Unido é que se revoltou, obrigando D. João VI a regressar a Lisboa, a

aceitar constituições e romper o „commonwealth‟, etc136

.” É nessa atmosfera que o

Positivismo chega ao Brasil; segundo se diz, inaugurado pelo maranhense Miguel Joaquim

Pereira e Sá, em 1850, com a apresentação de sua tese de doutorado sobre o princípio da

Estática – tese que defenderia em dois de março do ano seguinte, sendo este “o primeiro

vestígio de influência positiva no Brasil”137

. Com a defesa das teses positivistas, a moral cristã

(ou a teologia moral, de modo mais abrangente) passaria àquele estágio de “infância da

humanidade”. Já aí, de modo marcante, está uma confissão de fé na razão esclarecida;

confissão esta que, dentre outras coisas, postula a possibilidade e a defesa de uma moral sem

o fundamento da religião estabelecida; uma moral sem Deus, autônoma, para além do bem e

do mal.

A euforia da nova ciência imprimiria valores que, fincados mais na idéia de um

poder e de uma autonomia da razão que nas temeridades de uma retribuição eterna,

questionariam o discurso teológico que, por séculos e séculos, mantivera a mente presa às

trevas, atravancando o progresso e, claro, a humanidade – uma discussão que, aqui, foge ao

134

PRIEN, 1985, p. 185. O esforço jesuítico brasileiro ante a gana explorativa da Coroa, dos bandeirantes e dos

aventureiros vindos dalém-mar, a exemplo do que impetrarão os padres Anchieta, Nóbrega, Vieira e outros, em

favor dos negros e dos índios, nem sempre resultava em algum êxito, e isso só pioraria com o passar dos tempos. 135

TORRES, João Camilo de Oliveira. O positivismo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1943. p. 43. 136

TORRES, 1943, p. 43. 137

TORRES, 1943, p. 43.

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nosso tema. Seja como for, e para este período, nas palavras de João Camilo de Oliveira

Torres:

As monarquias baseavam-se no “Direito Divino” e no feudalismo, coisas do “estado

teológico”, com a sua civilização feudal-guerreira. Seja, aliás, dito de passagem que

A. Comte (como a maioria dos seus contemporâneos) não tinha a menor noção do

que era verdadeiramente o Direito Divino. Só conheciam a sua interpretação

absolutista post-Bossuet. De modo que ele combatia um fantasma e não a verdadeira

concepção tradicional de monarquia cristã, aquilo que sto. Tomaz, Suárez e

Belarmino chamavam “Direito Divino”. Aliás, Comte andou matando muito

fantasma criado por ele mesmo ou por outrem138

.

Nem mesmo a teologia majoritária de Tomás de Aquino estava livre das navalhas da

História; e já no período colonial, sem as “modernas” atribuições culposas ao comtismo, mas

devido ao afastamento da colônia, a situação da filosofia cristã, consignada aos jesuítas,

também experimentara certa decadência139

. Se com eles era ruim, sem eles foi ainda pior.

Com a expulsão dos jesuítas, instalou-se no Brasil um vácuo histórico-educacional que

demorou a ser superado. Mesmo assim, a semente já havia sido plantada, e florescia. É assim

que o sergipano Jackson de Figueiredo, provavelmente o maior pensador brasileiro e defensor

da tradição católica – embora tenha começado seus estudos em um colégio protestante –,

enxerga na formação cultural do Brasil a própria “alma católica”, insurgindo-se contra os que

abraçavam a moda o positivismo e o materialismo em voga no seu tempo. A “própria alma”

do Brasil ou a brasilidade era, “para ele, no fundo, produto do catolicismo”140

. Nas palavras

de Francovich, Figueiredo

Esforçou-se, por demonstrar que o espírito católico se encontrava na obra de quase

todos os escritores brasileiros, manifestando-se algumas vezes conscientemente,

outras vezes sem que eles mesmos percebessem. Em suma, quis provar que “tudo o

que existia de afirmativo e de verdadeiramente vivo na civilização brasileira era

criação da igreja católica”141

.

Mas essa constatação, do futuro, tem sua sede no passado; e é para lá que devemos

retornar, antes que nos percamos em digressões ou anacronismos.

138

TORRES, 1943, p. 60. 139

“Mal tinham fundado o primeiro colégio, os jesuítas começaram a ensinar filosofia. O ensino jesuítico no

Brasil seguia, como é natural, os rumos predominantes na metrópole portuguesa. No isolamento correspondente

à época colonial, devido ao isolamento cultural em que foi caindo a Península Ibérica, o ensino, principalmente

da filosofia, tornou-se cada vez mais superficial e pobre até atingir o ponto em que se converteu em ergotismo”.

(FRANCOVICH, 1979, p. 18-9). 140

FRANCOVICH, 1979, p. 80-1. 141

FRANCOVICH, 1979, p. 83.

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3.4. O lugar de Agostinho na teologia moral dos Jesuítas e dos Reformadores

Do século XII ao XIV, na Europa, não obstante as novas direções que a Escolástica

surgente traria, a doutrina agostiniana se mantinha com algum vigor. E, no que concerne à

ética agostiniana, J. M. N. Cordon e T. C. Martinez afirmam que

o Augustinismo manteve a primazia da Vontade sobre o Entendimento, do querer

sobre o conhecer. Esta tese exercerá uma notável influência em todas as discussões

éticas medievais e o seu influxo far-se-á notar amplamente no século XIV e para

além deste, nas doutrinas de Lutero e Calvino142

.

Os sécs. XVI e XVII, com as suas grandes mudanças e inovações no quadro político,

histórico, geográfico e religioso, alterará definitivamente o modo de se “fazer teologia”, o que

implica diretamente no “viver a teologia” feita – e aqui entra o discurso moral, naturalmente –

, sobretudo devido às descobertas dos novos continentes e a utilização das novas

hermenêuticas. Diferentemente do que ocorreu em certas áreas de domínio colonial de países

católicos (como França, Espanha e Portugal), em que o catolicismo romano se estabeleceu

como forma única de cristianismo – mesmo com a presença de outras religiões –, na

colonização da América Latina, e do Brasil em especial, houve uma “indigenização do

cristianismo”, como diz Joachim Fischer143

, por causa da presença dos escravos e dos índios,

e de certas modificações doutrinais que, introduzidas, caracterizariam o “catolicismo popular”

que temos ainda hoje. Mas, mesmo assim, conforme outros autores, tais diferenças não eram

tantas, mas, antes, obedeciam a um modelo que era bastante comum – como no caso das

reduções (de reducere, “reduzir”) – por toda a latinoamérica. “Em toda a América do Sul, a

142

CORDON, J. M. N; MARTINEZ, T. C. História da filosofia: os filósofos, os textos: Iº volume: dos Pré-

socráticos à Idade Média. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. p. 98-9. 143

“Na América Latina, a igreja católica romana organizou-se conforme o modelo da cristandade: a igreja, como

„instituição dominante em quase todas as esferas da sociedade‟, abrangia tudo. Mas essa cristandade não era

independente, como a cristandade européia da Idade Média. Era dependente (de Portugal e da Espanha,

respectivamente), colonial. É o único caso de uma cristandade dependente que a história conhece” (FISCHER,

Joachim. Conquistadores, missionários, novos cristãos: missão e expansão do cristianismo do Velho Mundo

no início da Idade Moderna. São Leopoldo-RS: Comissão de Publicação / Faculdade de Teologia da Igreja

Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, 1984. p. 14. [Série História, 3]; no mesmo sentido, ver:

BRUNEAU, Thomás C. Catolicismo brasileiro em época de transição. Trad. de Margarida Oliva. São Paulo:

Edições Loyola, 1974. p. 27-56. [Col. Temas Brasileiros, 3]). Na seqüência, Fischer acrescenta: “Devido a

situação peculiar da América Latina surgiram, dentro dessa cristandade dependente, expressões e manifestações

próprias de fé católica, sobretudo entre indígenas e africanos. Vários historiadores chamam o conjunto dessas

manifestações de catolicismo popular. Trata-se de um fruto que o cristianismo trouxe especificamente na

América Latina – fruto decerta indigenização da fé cristã” (FISCHER, 1984, p. 14; ver também, para o mesmo

sentido: HOORNAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro 1550-1800: ensaio de interpretação a

partir dos oprimidos. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 98-136. [Publicações CID, História da Igreja, 1]).

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questão do choque geopolítico da cristandade hispânica e lusitana tem muita importância na

questão das reduções144

.” Aqui surgem duas questões elementares.

Na pastoral, os missionários católicos que atuavam no Brasil – grande maioria

formada por jesuítas e dominicanos – entendiam que, com as reduções, e mesmo com todos os

limites que tinham, guardavam o corpo do indígena; e, aí, num círculo mais fechado, podia-se

cuidar de sua alma, de sua vida moral.

[...] os jesuítas entenderam o “índio reduzido” como um índio livre em relação ao

“índio encomendado”. [...] No caso das ordens religiosas mais autônomas do

padroado – como os jesuítas –, o projeto das reduções tinha estruturas

autenticamente anticoloniais, que eram suportadas pelos Habsburgos como um mal

menor – já que desempenhavam a função de defesa da fronteira, no Paraguai contra

os paulistas, em Minas contra os bandeirantes do Pará etc145

.

Na questão doutrinária, boa parte se mantinha no modelo hermenêutico tomista,

combativos às inovações do Velho Mundo. No modo como divulgavam e mantinham o

modelo já estabelecido naquela moral dos séculos passados, prevalecia acima de tudo a

tradição da Igreja; essa, às vezes, obscura e mesclada de um misticismo que fugia a qualquer

enredo teológico escrito, convencional. E daí a natureza dúbia que o catolicismo brasileiro,

sempre que majoritário, mantinha – e mantém, ainda.

O catolicismo popular – característico dos interiores – que, grosso modo, desconhece

os fundamentos da doutrina oficial, cria modelos semi-autônomos de culto, e faz como pode

para manter-se vinculado à Igreja, sem saber bem os porquês de tal manutenção146

; o que

parece uma clara necessidade de pertença protecional, pertença oficial do grupo menoritário

como “braço” do majoritário. Tradição; tradução; traição. E se a figura do Hiponense é

ausente aí, a do Doctor communis muito mais; é um catolicismo de “mistérios”, apegado às

tradições que desconhecem suas próprias fontes, embora mantenham certa coesão com o

“todo” do grupo. O catolicismo intelectual, por outro lado, preserva um distanciamento

circunstancial da doutrina do Hiponense, e quando o ensino catequético/doutrinal se remete a

144

DUSSEL, Enrique. Introdução: As reduções: um modelo de evangelização e um controle hegemônico. In:

HOORNAERT, Eduardo. (Org.). Das reduções latino-americanas às lutas indígenas atuais: IX Simpósio

Latino-americano da CEHILA, Manaus, 29 de julho a 01 de agosto de 1981. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.

p. 18. 145

DUSSEL, 1982, p. 18-9. Na verdade, e ainda conforme Dussel: “Nos quinze ciclos de evangelização (oito

hispânicos e cinco lusitanos) houve experiências de reduções. Todavia, nas grandes culturas urbanas [...] as

reduções foram antes doutrinas, paróquias de índios, aldeias, e tudo isso, fundamentalmente, como processo de

reorganização de civilização e como instrumento pedagógico para a catequese, doutrinação, vida litúrgica.”

(DUSSEL, 1982, p. 19). 146

Neste sentido, ver: SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade

popular no Brasil colonial. 2. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Dê-se atenção especial ao capítulo

“Religiosidade popular na colônia”, da página 118 em diante.

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ele, é de modo terceirizado: sua doutrina, assistemática e não oficial, é, porém, necessária. E

como não seria? No lastro dos dois modelos está a moral secular que foi implantada, pela

própria imposição do tempo e da História que nele se inscreveu.

De um modo mais abrangente, e bem abrangente, o Aquinate sistematizou a

“doutrina oficial da Igreja” – embora os sistemas teológicos, tal como conhecemos hoje,

sejam produto da Modernidade. Também os protestantes, com base nas doutrinas de

Agostinho, acharam o lastro àquilo que, nas suas próprias construções teológicas, viria a ser

conhecido como doctrina reformata. Mas mesmo aí o nome de Agostinho era mais uma

ferramenta para o discurso do que o sustentáculo autorizado do mesmo; normal – a doctrina

reformata professa, como autoridade discursiva ou regra de fé, sola Scriptura. É muito

comum encontrar o nome de Agostinho como a continuidade intermediária entre a doutrina

dos apóstolos e a Reformada. Um dos nomes mais conhecidos do protestantismo inglês, o

pastor batista Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) – chamado de o Príncipe dos

Pregadores –, por exemplo, afirmava: “A velha verdade que Calvino pregava, que Agostinho

pregava, que Paulo pregava, é a verdade que tenho que pregar hoje, ou do contrário, serei

falso para com a minha consciência e para com o meu Deus”147

, ou: “Meu labor diário é

reavivar as velhas doutrinas de Gill, Owen, Calvino, Agostinho e Cristo”148

. O nome de

Agostinho, nos sécs. XVI, XVII e XVIII, foi apoio de muitos discursos, enfeite e floreio às

oratórias, usado, maior parte das vezes, de modo indistinto, fora da sua totalidade, do seu

grande contexto. Nas palavras de J. Pinharanda Gomes:

O nome de Santo Agostinho pode significar diferentes coisas para diferentes

pessoas. No meio católico inglês o evangelizador da Inglaterra, o beneditino Santo

Agostinho de Cantuária, do século VII, é mais contíguo à memória do que o Santo

Agostinho de Hipona, pese embora a magistralidade deste na própria eclesiologia da

Igreja Anglicana; e, sem desejar ferir sensibilidades, para muitos compositores da

tipografia antiga, “Santo Agostinho” era apenas o nome dado a um tipo de caracteres

existentes nas caixas de tipos, nome esse que se tornara corrente na arte, desde que a

primeira edição impressa das Obras de Agostinho tinha sido feita o Ocidente149

.

Entre os pioneiros na evangelização do Brasil, parece que a doutrina agostiniana,

bem como a sua moral, é mais presente entre as Igrejas Reformadas do que na própria Igreja

Católica – que se ocupava mais em combater os hereges luteranos e calvinistas e as práticas

147

SPURGEON, C. H. The Early Years. London: Barner of Truth, 1962. p. 162. 148

SPURGEON, C. H. Carta. 17 de janeiro de 1963, no The Baptist Times. 149

GOMES, J. Pinharanda. Escólio bibliográfico-augustiniano. In: DOMINGUES, Joaquim; GALA, Elísio;

GOMES, Pinharanda. Santo Agostinho na cultura portuguesa: contributo bibliográfico. Lisboa: Fundação

Lusíada, 2000. p. 87. (Col. Lusíada – Documentos, 3).

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imorais e pagãs dos naturais do Brasil, fazendo a catequese dos nativos, por vezes, funcionar

como adestramento, não como esclarecimento. Na Confissão de fé da Guanabara, que é a

primeira confissão reformada feita no Brasil, em 1557, escrita pelos missionários calvinistas

Jean de Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e André la Fon150

, o nome de Agostinho,

nas pouquíssimas páginas que a encerram151

, aparece por 06 vezes, e sempre lembrado como

autoridade, fundamentador e assegurador da fé cristã. Entre o quinto e o sexto artigos, que é

quando falam da Ascensão, omitindo-a nas breves respostas, dizem que poderiam falar do

tema “com muitas outras sentenças de Santo Agostinho”, mas não o fazem “temendo ser

longas”.

Credenciados pelo próprio João Calvino152

, esses primeiros missionários protestantes

serão os proto-mártires do cristianismo reformado, executados com o consentimento do padre

Anchieta e por ordem de Villegaignon – trata-se do “acordo de paz de Iperoigue, de 1763, que

foi, na verdade, o ato de traição de Villegaignon aos seus conterrâneos protestantes, que

150

“No dia 7 de março de 1557 chegou a Guanabara um grupo de huguenotes (calvinistas franceses) com o

propósito de ajudar a estabelecer um refúgio para os calvinistas perseguidos na França. Perseguidos também na

Guanabara em virtude de sua fé reformada, alguns conseguiram escapar; outros, foram condenados à morte por

Villegaignon, foram enforcados e seus corpos atirados de um despenhadeiro, em 1558. Antes de morrer,

entretanto, foram obrigados a professar por escrito sua fé, no prazo de doze horas, respondendo uma série de

perguntas que lhes foram entregues. Eles assim o fizeram, e escreveram a primeira confissão de fé na América,

sabendo que com ela estavam assinando a própria sentença de morte”, o resumo é de Paulo Anglada, que

acrescenta, como nota de rodapé: “O relato da história dos mártires huguenotes no Brasil, bem como a Confissão

de Fé que escreveram, encontra-se no livro A Tragédia da Guanabara: História dos Protomartyres do

Christianismo no Brasil, traduzido por Domingos Ribeiro; de um capítulo intitulado On the Church of the

Believers in the Country of Brazil, part of Austral America: Its Affliction and Dispersion, do livro de Jean

Crespin: l‟Histoire des Martyres, originalmente publicado em 1564. Este livro, por sua vez, é uma tradução de

um pequeno livro: Histoire des choses mémorables survenues en le terre de Brésil, partie de l‟Amérique

australe, sous le governement de N. de Villegaignon, depuis l‟an 1558, publicado em 1561, cuja autoria é

atribuída a Jean Lery, um dos huguenotes que vieram para o Brasil em 1557, o qual também publicou outro livro

sobre sua viagem ao Brasil: Histoire d‟an voyage fait en la terre du Brésil”. (ANGLADA, Paulo R. B. Sola

Scriptura: a doutrina reformada das Escrituras. São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998. p. 190-197). 151

No livro de Anglada, inteiramente transcrita, cabe em apenas duas. Cf. ANGLADA, 1998, p. 190-197. 152

Doze calvinistas, entre eles dois pastores ordenados (Pierre Richier e Guillaume Chartier), faziam parte de um

grupo de 280 pessoas que, ajudadas por Gaspar de Coligny, vieram ao encontro de Nicolau Durand de

Villegaignon, vice-almirante francês que, em 1555, chegara à baía da Guanabara, com mais 400 homens, com a

idéia de fundar uma França Antártica. Villegaignon, em um primeiro instante voltado para o Calvinisno, tornar-

se-ia, posteriormente, responsável pelo martírio desses primeiros missionários que, conforme consta,

trabalhavam, a pedido do próprio Villegaignon, tão somente com os franceses: “Quanto aos ministros e à sua

companhia, pediu-lhes para estabelecer a ordem e disciplina da Igreja segundo a forma de Genebra.” (CRESPIN,

Jean. Actes des martyrs. Genebra, 1964. p. 861). Mais sobre esse período, ver: LÉRY, Jean de. Viagem à terra

do Brasil. Trad. e notas de Sérgio Milliet. São Paulo: Martins, 1941. Jean de Léry (1534-1611), nascido em uma

família burguesa da França, adepto das idéias reformistas de Calvino, aos dezoito anos foi para Genebra estudar

com o reformador, que o enviou ao Brasil, em 1557, atendendo ao apelo de Villegaignon, para trabalhar como

teólogo, no Rio de Janeiro. Os ocorridos desse período encontram-se narrados em seu livro: Narrativa de uma

viagem feita à terra do Brasil, também chamada América, publicado em 1578, na Holanda. Outra obra, do

mesmo período: THEVET, André. As singularidades da França Antártica. Trad. de Eugênio Amado. Belo

Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978. Diferentemente de Léry, André Thevet (1502-1590), que também

era francês, pertencia à Ordem Franciscana. A malfadada colonização francesa, encabeçada por Villegaignon,

teve seu termo em 1560, com a morte de quase todos os franceses que estavam com ele.

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estavam unidos aos índios tamoios contra os colonizadores portugueses. Entretanto, não

somente pela curta permanência desses primeiros protestantes por aqui – mesmo porque

outros viriam depois –, mas pela constante presença dos jesuítas apoiados pelas armas de

Portugal, pelo menos a princípio, será assaz pequena a abrangência e o impacto do labor

protestante na evangelização do Brasil em seus primeiros anos pós-descobrimento, e,

consequentemente, na formação ético/moral do povo brasileiro153

. Não é novidade que certas

doutrinas de Agostinho, aos olhos da Igreja Católica, favoreceram certas doutrinas da Igreja

Reformada; diferentemente de Tomás de Aquino, que tem a doutrina adequada exatamente às

“necessidades da Igreja”. Seja como for, a presença dos huguenotes, no que diz respeito à

doutrina agostiniano-calvinista e à catequese, foram irrelevantes para o povo brasileiro que,

nesse primeiro momento, era praticamente formada de índios e escravos. Assim,

devemos constatar que todo o fervor religioso dos huguenotes não era suficiente

para fazê-los buscar qualquer contato missionário com os índios. Eles não apenas se

desinteressaram desta missão, mas inclusive, quando Villegaignon já pretendia

expulsá-los da ilha para o litoral, protestaram dizendo que “em sã consciência eles

não podiam se retirar com os selvagens, totalmente ignorantes da religião cristã”154

.

Um segundo momento da presença de protestantes no Brasil foi o da colonização dos

holandeses no Nordeste (1630 a 1654), tendo à frente o conde João Maurício de Nassau-

Siegen (1637-1644). No litoral nordestino, desde o Maranhão (Norte) até o rio São Francisco

(Sul), o regime holandês-calvinista esteve presente: tanto na edificação de uma cidade para os

homens – até hoje, em Recife e Olinda, por exemplo, as grandiosas obras arquitetônicas desse

período nos respaldam – como no povoamento da cidade de Deus. Essa natureza

arquitetônico/espiritual aparece na obra de evangelização empreendida pelos missionários

holandeses. Como a cidade terrena, temporal, deveria se subordinar à Cidade celeste, que é

eterna, assim também o governo secular; sem nos atermos aos juízos da reta conduta,

Maurício de Nassau parecia bem ciente disso. Outrossim, não desprezou os índios na

catequese e não foi intolerante com os católicos que, tendo sua sede episcopal na Bahia,

gozavam de plena liberdade religiosa. Os judeus, que foram, no Recife, os primeiros a

153

Ver, neste sentido, MENDONÇA, Antônio Gouvêa. O celeste porvir: a inserção do protestantismo no Brasil.

São Paulo: Paulinas, 1984. (Col. Estudos e Debates Latino-americanos, 10). 154

HOORNAERT, 2008, p. 138-9. Mais sobre a presença dos franceses no Brasil, de modo bastante documental,

ver: ANDRADA, Laércio Caldeira de. A “Igreja dos Fiéis”: Coligny, no feudo de Villegaignon. Rio de Janeiro:

Centro Brasileiro de Publicidade Ltda. [s.d.]. (Col. Biblioteca José Luiz Braga Jr., 1: História do Protestantismo

Brasileiro). CRESPIN, Jean. Los martires de Rio de Janeiro: documentos inéditos e muy raros para a historia

del protestantismo em Iberoamérica. México: Casa Unida de Publicaciones, S.R.L. / Buenos Aires: Editorial y

Librería “La Aurora”, 1955. (Col. Documentos).

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aparecerem no Novo Mundo com suas escolas talmúdicas e sinagogas, gozavam de igual

liberdade. De acordo com Hoornaert: “A chave para a compreensão da ação pastoral e

missionária dos holandeses no Brasil é o conceito de teocracia, isto é, o desejo de subordinar

todos os aspectos da vida, tanto particular como pública, aos mandamentos de Deus expressos

na Sagrada Escritura”155

. No governo de Nassau, na medida do possível, houve uma interação

entre o ministério eclesiástico – que era, essencialmente, o ministério da Palavra – e o

ministério civil, “cujo dever era regulamentar a vida pública conforme as normas da Palavra”.

Foi nesse aspecto que os judeus, por exemplo, diferentemente do que lhes ocorrera com a

vinda do Tribunal do Santo Ofíceio (1591-1595), tiveram certas liberdades. Contrariamente a

isso, nesse particular, as leituras oficiais da Igreja romana, fundamentadas numa leitura

distorcida de Agostinho, via Tomás de Aquino, faziam valer quanto podiam – com viastas ao

“bem da sociedade,o qual coincide com o bem da Igreja” – o “braço secular” medieval,

aplicando penas que visavam quebrar a resistência do herege, conduzindo-o novamente à fé.

Como isso se dava? E por que Agostinho era tão mau utilizado?

Desligada das condições concretas que lhe deram origem, a teoria agostiniana da

“severidade temperada” diante dos hereges teve enorme repercussão na formação do

catolicismo histórico, pois está na origem de atitudes repressivas, por parte da

administração central da Igreja, contra toda e qualquer divergência. Na Idade Média,

a formulação agostiniana foi manipulada pelas autoridades eclesiásticas contra

cátaros e albigences, e forneceu a base ideológica para as torturas da Inquisição.

Sem o querer, santo Agostinho foi o “pai da Inquisição”. A formulação mais

premente da teoria agostiniana sobre isso é a de Tomás de Aquino, o qual pretende

que os hereges devam ser tratados como criminosos de direito comum,

especialmente os falsariaos e os perjuros. O ponto de partida da reflexão de Tomás,

como aliás de Agostinho, é o bem da sociedade, o qual coincide com o bem da

Igreja, e que estava sendo posto em perigo pela heresia. Até a pena de morte se

permite, segundo Tomás, no caso de hereges. [...] É o famoso “braço secular” dos

teólogos medievais. Os hereges e sobretudo os apostatas quebraram a unidade da

Igreja e a fidelidade a ela, tornando-se, por conseguinte, sejeitos desprezíveis aos

olhos do mundo feudal da época de santo Tomás. Eis como Tomás lia e interpetava

Agostinho156

.

155

HOORNAERT, 2008, p. 140. Uma narrativa bastante pessoal desse período pode ser visto em BARLEUS,

Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil sob o governo de João

Maurício, Conde de Nassau. Trad. de Cláudio Brandão. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife,

1980. Kaspar van Baerle (1584-1648) era poeta, literato, latinista e teólogo calvinista. Acompanhou Maurício de

Nassau, de quem recebeu a incumbência de escrever sobre a sua administração como governador do Brasil

holandês, de 1637 a 1664. A referida obra, editada em 1647, na Holanda, seria usada pelo conde para a sua

defesa. 156

HOORNAERT, 1994, p. 376. Documentos da época dão conta de homens e mulheres que, acometidos por

alguma enfermidade física ou emocional, e descontentes com o tratamento cristão (remédios, orações, etc.),

recorrem ou à sabedoria dos índios ou dos escravos africanos. Até mesmo padres eram denunciados aos seus

superiores por recomendarem a ação desse tipo de prática religiosa. Contra tal costume, e atendendo ao

requerimento de alguns líderes da Igreja na colônia, o Tribunal do Santo Oficio, instalado em Portugal (1536),

enviou visitadores ao Brasil. Criada nos fins da Idade Média, o Tribunal tinha a função de combater qualquer

tipo de manifestação herética que representasse uma ameaça contra a hegemonia dogmática católica. Assim, e

com tal incubência, o clérigo Heitor Furtado Mendonça chega ao Brasil, em 1591 (Bahia, 09 de junho;

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No domínio holandês, prega-se que o tribunal é interno, de foro íntimo. É a Escritura

que, em tese, conforme máxima herdada dos reformadores, é regra de fé e prática. A

consciência individual, aí, aparece como fonte de discernimento para a ação moral/imoral.

Mas, contra os abusos contrários ao poder Régio, Real (ligados ao rei, ao Estado holandês),

também se sabe de excessos de zelo “pela fé, e pela moral” protestantes. Em 1645, nos

municípios de Canguaretama e São Gonçalo do Amarante (ambos no atual Rio Grande do

Norte), por exemplo, cerca de 100 católicos foram mortos. Eram mulheres, velhos e crianças,

e dois padres entre eles. Morrerm porque rejeitaram ser “batizados” no protestantismo dos

holandeses. E em 1570, enviados ao Brasil para evangelizar os índios, o jesuíta Pe. Inácio de

Azevedo (1527-1570) e mais 40 religiosos (seminaristas jesuítas e adjuntores), que vinham a

bordo da nau “S. Tiago”, foram interceptados em alto mar – a três léguas de La Palma, das

Ilhas Canárias, no dia 15 de julho – pelo calvinista huguenote Jacques Sore de Flocques.

Alguns foram degolados; todos foram jogados ao mar, aos tubarões, alguns ainda vivos.

Excessos de todos os lados.

Nos juízos menos apressados, e menos dramáticos, tanto por parte de católicos como

de protestantes, vê-se que a Escritura assume lugar de destaque – embora as interpretações

dos seus princípios morais sejam, grosso modo, condicionados às situações do momento, ou

às tradições que não têm outro fundamento que não a autoridade individual de um Padre, de

um Doutor da Igreja ou de um teólogo reconhecido. No domínio holandês, “a partir desse

princípio explica-se, primeiramente, o costume da censura morum: o exame periódico do

comportamento dos predicantes, que devia ser exemplar para toda a cristandade”. Assim

também

Explica-se [...] o zelo das assembléias classicais pela integridade da vida

matrimonial, tanto dos holandeses, expostos a todas as tentações da sociedade

colonial, como dos negros e índios, acostumados já a contínuas irregularidades. Foi

melhorada a legislação, de tal modo que, por exemplo, o negro escravo não mais

podia mudar de dono sem que sua mulher o acompanhasse na transação. Não menos

significativo para a teocracia calvinista era o empenho na observância do descanso

dominical, empenho este que a seu modo também melhorou a posição dos negros. A

cristianização da população indígena fazia parte do mesmo esforço para cristianizar

a sociedade como um todo157

.

Pernambuco, em Recife: 21 de Setembro de 1593-1595). O Tribunal, mesmo não estando instituido no Brasil,

tinha poderes na colônia, uma vez que ela estava subordinada ao Tribunal de Lisboa. A Inquisição foi extinta

gradualmente ao longo do século XVIII, mas só em 1821 se deu a extinção formal em Portugal, numa sessão das

Cortes Gerais. 157

HOORNAERT, 2008, p. 140.

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Os missionários protestantes adotariam, no esforço de cristianização dos índios, o

costume dos missionários jesuítas de fixar os índios em aldeias (reduções), com o fito de

manter instável a catequização dos mesmos. Uma edição trilíngue do Breve Catecismo, nas

línguas tupi, holandês e português, foi composto e enviado à Holanda para ser impressa – o

que nunca ocorreu, por imposição da Igreja holandesa. Por tudo isso e muito mais que aqui

não consideramos, “temos provas históricas de que, mesmo depois da expulsão dos

holandeses do Brasil, certas noções calvinistas ficaram profundamente arraigadas na mente

dos índios nordestinos”158

.

Apesar de tudo o que dissemos, com respeito ao agostinismo dos calvinistas, foram

os padres jesuítas e dominicanos, sem dúvida, que mais influenciaram na cultura teológico-

moral do povo brasileiro. “Los jesuitas fueron los educadores por excelencia a lo largo de

periodo colonial. Las escuelas jesuíticas fueron vehículos de las ideias católicas ortodoxas, al

servicio de la Iglesia colonial e de la burocracia civil”159

. O aldeamento dos índios,

mencionado por Hoornaert, foi também, para os jesuítas, um meio de manter o índio sobre

controle. Quando o padre José de Anchieta, fala dos índios que ficam fora do “controle

jesuítico”, a situação não parece ser a melhor:

Os que nesta parte mais padecem são os pobres escravos e os mais índios livres que

estão em poder dos portugueses, que não podem ser muitas vezes doutrinados pelos

padres. [...] O que mais espanta aos índios e os faz fugir dos portugueses, e por

conseqüência das igrejas, são as tiranias que com eles usam obrigando-os a servir

toda a sua vida como escravos, apartando mulheres de maridos, pais de filhos,

ferrando-os, vendendo-os etc160

.

É a dupla penalidade da opção: ou ficar com os padres e ser domesticado, ou ficar

livre e, aí, correr o risco de ter uma escravidão muito pior. Não havia muita escolha. A boa

intenção de alguns padres, quando havia, nunca pareceu suficiente para resolver o dilema. A

Igreja, ela mesma precisando de tratamento, não conseguia tratar aqueles que aldeava sob sua

tutela – prova disso é o silêncio que mantinha, dentre outros, em relação ao escravos africanos

e a mão estendida, por vezes subserviente, à burguesia. É certo que, em muitos casos, esse foi

158

HOORNAERT, 2008, p. 140. Em relação ao domínio holandês e os escravos africanos no Brasil, no mesmo

período, ver: PUNTONI, Pedro. A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico

no Atlântico Sul, 1621-1618. São Paulo: Hucitec, 1999. 207 p. (Col. Estudos Históricos, 36). 159

DEIROS, 1992, 371. Na seqüência, Deiros afirma que “la importancia del papel de los jesuitas en el sistema

educativo colonial se ve en el desastre que sufrió el mismo, com motivo de la expulsión de la orden en 1767. El

efecto negativo de la salida de los jesuitas se dejó sentir em mayor grado en la educación primaria se encontraba

mayormente em manos del clero secular” (DEIROS, 1992, p. 371). 160

ANCHIETA, 1989, p. 64.

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o meio de se evitar um “mal maior” e, certo é também, que nem todos os religiosos se

subordinavam a tal modismo, comum em tempos de colônia. Francisco de Assis, António de

Pádua e o jesuíta Franscisco Xavier (que tinham posturas severas e, no entanto, humildes

diante da opulência do clero romano, da sua hierárquia), foram modelos históricos de

excessões para muitos jesuítas que deram suas vidas entre os índios e os pobres da América

Latina. Esses santos homens do passado lhes eram como presenças vivas, não apenas

lembranças fugidias. Modelos de piedade e erudição – pelo que, em determinada época de

suas vidas, lutariam para evitar o orgulho que daí pode vir – , António e Xavier tinham o

espírito de Agostinho. Mas, para muitos, os novos tempos e o Novo Mundo, se eram um

“celeiro de missões”, era também um “celeiro de corrupções”.

No Brasil, de modo dramático, o Pe. Manuel da Nóbrega (1517-1570) – primeiro

padre provincial da Companhia no Brasil –, num primeiro momento, desejoso de cumprir

funcionalmente aquilo que requer a Companhia na ação evangelizadora, começa a ministrar

os sacramentos e ensinar a doutrina cristã aos meninos. Mas os índios, adultos, se mostram

resistentes à catequese e, aí, Nóbrega percebe a importância de, desde cedo, no Colégio,

incutir as doutrinas da fé cristã nos pequeninos. O Colégio, além de modificar a realidade

social na colônia, será um recurso permanente na inculcação dos valores morais e da doutrina

cristã. Noutro esforço de manter uma moral combativa à imoralidade, Nóbrega incentivará o

casamento entre as índias e os colonos portugueses, com o fito de, por tal miscigenação, criar

um “novo povo cristão”161

. Mas forjar esse “novo cristão”, Nóbrega perceberá, não é tarefa

fácil162

. Daí que, numa espécie de reviravolta, e vendo a

impossibilidade da realização de tais propósitos no presente, Nóbrega cogita

“remédios” para sanar uma situação que já revela suas contradições e distorções.

Dentre outros, pode-se destacar a presença de uma autoridade religiosa para

propiciar a modificação da conduta dos colonos e a constituição de aldeamentos

onde os índios vivam, sob a proteção dos jesuítas, em forma de comunidades cristãs,

separados dos moradores e de suas influências nefastas163

.

O paternalismo jesuítico, derrotado, sem conseguir “transformar o índio”, faz com

que Nóbrega endureça o “seu juízo acerca dos nativos”, chegando mesmo a sugerir castigos e

161

MASSIMI, 1997, p. 87: “Com efeito”, diz Massimi, “tais casamentos favorecem o processo de miscigenação

entre índios e europeus moradores no Brasil, contribuindo para a criação de um „novo cristão‟, expressão que

aparece com freqüência na cartas de Nóbrega e nas dos demais jesuítas”. 162

De fato, o “novo cristão” é aquela do ideário europeu, mas no Brasil, e sob a tutela da Igreja e da moral cristã-

jesuítica. 163

MASSIMI, 1997, p. 88.

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humilhações a fim de sujeitar o nativo à fé cristã164

. A disciplina militar, jesuítica, aparece

quando é necessário endurecer sem “perder a ternura”. O padre António Vieira (1608-1697),

amigo de Nóbrega, chegaria ao Brasil em 1681 para engrossar as fileiras jesuíticas,

juntamente com mais dois companheiros: os padres Jorge Benci (1650-1708) e João Antonio

Andreoni (1649-1716). Dos três, Benci é aquele que passou à história como moralista, e sua

moral, como não é estranho, repete a de Tomás de Aquino. Mas “[n]a participação de

Andreoni e Benci na mudança de rumo da Companhia de Jesus”, ambos chegaram mesmo a

se opor a Vieira – tanto nas suas idéias como na sua ação política –, “com a desistência do

compromisso ético com a defesa dos índios”165

. Assim, Darcy Ribeiro e C. de A. Moreira

Neto, tendo em mente o livro Economia cristã dos senhores no governo dos escravos, de

1700, dizem que

O livro de Benci é um manual de operação da massa escrava pelos patrões, com

vistas à sua utilização correta e eficaz. A despeito de todas as suas razões e

justificativas de caráter teológico e ético que legitimam a escravidão, o texto de

Benci é menos um tratado de moral que um instrumento normativo e utilitário166

.

Escravos ou índios tinham, para os missionários jesuítas – e isso pode ser afirmado

de modo quase genérico – um defeito difícil de ser corrigido: não eram portugueses; a falta

dessa semelhança faz com que eles sejam o objeto da ação evangelizadora, culturalista. Essa

semelhança ou esse vir a assemelhar-se, pela prática da catequese, é o que qualificará o índio,

segundo Nóbrega, como bom ou mau. “A alteridade do outro é encarada como uma

negatividade. No que o outro é diferente do mesmo, ele é errado. O erro está em não ser

semelhante, em não ser idêntico”167

.

164

Cf. MASSIMI, 1997, p. 88. A correspondência de Nóbrega é bastante rica em detalhes sobre toda essa fase;

para tanto, ver: NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil. Cartas jesuíticas N. 1. Belo Horizonte: Editora da

Universidade de São Paulo / Itatiaia, 1988. v. 147. Segunda série. (Col. Reconquista do Brasil). A mesma

“metodologia” será sugerida por Anchieta, num arremedo da máxima maquiavélica de que “os fins justificam os

meios”. “Todos esses impedimentos [de se achegarem à fé e à Igreja] e costumes [maus] são mui fáceis de se

lhes tirar se houver temor e sujeição”, diz ele. Cf. ANCHIETA, Pe. Joseph de. Sermões. Pesquisa, Introd. e

notas do Pe. Hélio Abranches Viotti, SJ. São Paulo: Loyola / Em convênio com a Vice-Postulação da Causa de

Canonização do Beato José de Anchieta, 1987. v. 7, p. 63. (Obras completas do Padre Anchieta). 165

RIBEIRO, Darcy; MOREIRA NETO, C. de A. (Org.). A fundação do Brasil: documentos dos sécs. XVI e

XVII. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 347. 166

RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p. 347. 167

HOORNAERT, 2008, p. 145.

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3.4.1. Um modelo protestante para o Novo Mundo: Lutero e Calvino, leitores de

Agostinho

As diferenças básicas entre o catolicismo e o protestantismo, partindo das

perspectivas filosóficas e teológicas de cada grupo, são apontadas na obra de James M.

Gustafson, Protestand and Roman Catholic ethics, de 1978168

. Tal divisão pouco tem a ver

com o Hiponense e, por isso, é tratada aqui com limites, para o uso que um ou outro grupo dá

à obra do santo Doutor.

A teologia (não somente a Moral) dos reformadores era, em primeiríssimo lugar e em

tese, aquela que, como também Agostinho entendia – pois a autoridade do Hiponense lhes era

muito cara e propícia –, está inteiramente contida nas Escrituras. Também para os

reformadores havia, nessa mesma teologia, um fundamento que, embora não fosse seguro

para a regula fidei, não devia ser ignorado: o ensino dos Padres da Igreja. Não por acaso

Calvino, conforme F. Hoffmann, dizia que sua doutrina podia ser completamente exposta em

frases de Agostinho169

. Nas obras de Calvino, encontram-se mais de 4.000 frases de

Agostinho. Lutero, por sua vez, creu ter encontrado em Agostinho os argumentos que

precisava contra o semi-pelagianismo que afirmava haver dentro da Igreja romana. O livro

Augustin als Quelle Luthers, de Hans-Ulrich Delius, ainda inédito no Brasil, é um tour de

force que recolhe centenas e centenas de referências do reformador às obras do Hiponense170

.

Em 1532, nas Tischreden, Lutero dizia que: Augustinum vorabam, nom legebam. De 1515 até

1527, Lutero afirmava que a sua doutrina era idêntica a de Agostinho171

. Mas isso só será

assim, para Lutero, num primeiro momento – o da maior necessidade, provavelmente. Como

um tutor, Agostinho conduziu Lutero à Escritura, e a Escritura levou-o à maioridade que,

168

GUSTAFSON, James M. Protestand and Roman Catholic ethics: prospects for rapprochement. Chicago:

The University of Chicago Press, Ltd., 1978. Para Gustafson: “The ecclesiastical function of writtings in ethics

or moral theology has been radically different in the Protestant and Roman Catholic traditions. Failure to

recognize that Catholic moral theology developed in the service of the priestly role in the sacrament of penace

has led to a great deal of misunderstanding and to misplaced criticisms by Protestant theologians. Protestants

misread moral theology in they do not remember that, like canon law, it has functioned not only pedagocally but

also „juridically‟ in Catholic Christian life. Writings in moral theology are used only to teach person what

principles ought to guide their conduct and what actions are judged morally illicit; they also provide the priest

whose vocation is to administer the sacrament of penace with criteria by which he can enumerate and judge the

seriousness of various sinful acts in order to assign the appropriate penace. […] The distinction between mortal

and venial sins, for exemple, provides a principle by which sinful acts can be clearly classified both by faithful

who confess and by the priests who hear their confessions.” (GUSTAFSON, 1978, p. 1-2). Demais

considerações, aqui, aparecem naturalmente. 169

HOFFMAN, F. Agostinismo. In: Dicionário de teologia: conceitos fundamentais da teologia atual. 2. ed.

Trad. dos teólogos do Pont. Col. Pio Brasileiro de Roma. São Paulo: Loyola, 1983. v. 1, p. 48. 170

DELIUS, Hans-Ulrich. Augustin als Quelle Luthers. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt GmbH, 1984. 171

Cf. LUTERO, Martinho. Da vontade cativa. In: _____. Obras selecionadas. Trad. de Luiz H. Dreher et al.

São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1993. v. 4, p. 53.

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sem qualquer desprezo ao Hiponense, fez com que Lutero se distanciasse dele em alguns

pontos, principalmente na hermenêutica.

Agostinho foi “descoberto” por Lutero em 1509, quatro anos após o seu ingresso na

Ordem dos Eremitas172

, em Erfurt, da qual o Hiponense é padroeiro. Essa descoberta o

entusiasmara sobremaneira. “O seu entusiasmo é então sem limites, porque julga descobrir aí

a confirmação de todas as suas teses e a solução para os seus problemas: ele recomenda a sua

leitura a todos os seus amigos”, diz Francis Ferrier173

. Lutero sempre verá Agostinho como o

grande gênio cristão que primeiramente delineou aquelas doutrinas que lhe são caras,

caríssimas à Reforma: a doutrina da graça, da predestinação, da perseverança dos santos, etc.

Lutero adota um julgamento crítico não só em relação a Agostinho, mas em relação a

todos os Pais – uma vez que ele não vê na Tradição, como via a Igreja Romana, uma

autoridade que possa se equiparar a Escritura174

–, mas, como Agostinho lhe é mais próximo,

é natural que seja o mais mencionado. Assim, nas palavras de André Benoit,

A autoridade que possuem provém não do fato de serem considerados doutores da

Igreja, mas por estarem de acordo com a Palavra de Deus. A partir dessa premissa, e

na medida em que conhecia os Pais [...], Lutero às vezes os critica, às vezes os

aprova: critica-os seguidamente, aprova-os mais raramente, pois, em resumo, para o

172

Lutero entrou no mosteiro dos eremitas agostinianos a 17 de julho de 1505. Aí, “Lutero leu Agostinho, leu os

místicos e experimentou a solução mística. Ele procurou seguir a orientação do Areopagita [Pseudo-Dionísio] e

de Boaventura a fim de „ascender até a majestade de Deus‟ e experimentar a união de sua alma com o divino”

(WATSON, Philip S. Deixa Deus ser Deus: uma interpretação da teologia de Martinho Lutero. Trad. de Paulo

F. Flor. Canoas: ULBRA, 2005. p. 39-40). 173

FERRIER, Francis. O problema do mal: pedra de escândalo. Trad. de Manuel Alves da Silva. São Paulo:

Paulinas, 1967. p. 97. (Col. Roteiro da Juventude). 174

Até o Concílio de Trento, que se deu em cinco grandes sessões, de 1545 a 1563, as diferenças valorativas

entre a tradição (παράδοζις, traditione) da Igreja e as Escrituras não eram muito bem definidas. Foi nas

controvérsias entre católicos e protestantes que foram delineadas da forma que hoje conhecemos. Na Igreja

primitiva, por exemplo, falava-se da tradição num sentido muito amplo, fazendo-se constante apelo às instruções

que a Igreja havia recebido – pois se dizia que, embora certos mandamentos e normas não constassem nas

Escrituras, haviam passado de geração em geração, e por isso eram consideradas autoritativas. No Novo

Testamento, os quatro Evangelhos continham, para os Pais, as tradições evangélicas, e, as Epístolas, “as

tradições apostólicas”. Assim, surgiram controvérsias e disputas entre os que pareciam invocar mais a tradição

que a Escritura, uma vez que a transmissão de certos ensinos, sem uma regra escrita, destoava de lugar para

lugar. “Quando se descobriu que essas tradições diferiam, uma igreja dizendo que seus mestres sempre lhe

ensinaram uma coisa, e que os mestres da outra lhe ensinaram o contrário, fez-se sentir a necessidade de algum

padrão comum e autoritativo. Daí, os mais sábios e mais excelentes dos pais insistirem em optar pela palavra

escrita e nada receber como de autoridade divina se não estivesse escrito ali [Agostinho era um desses].

Entretanto, nisso deve-se confessar que nem sempre eram consistentes. Sempre que prescrição, costume ou

convicção com base em evidência não escrita fosse valiosa contra um adversário, eles não hesitavam em fazer o

máximo uso disso” (HODGE, Charles. Teologia sistemática. Trad. De Valter Martins. São Paulo: Hagnos,

2001. p. 81), e isso seria assim até o Concílio de Trento. É certo que Agostinho se valia da autoridade da

tradição, embora privilegiasse a Escritura; e ele mesmo, no passar do tempo, seria incluído dentro das

autoridades mencionadas em conjunto com as Escrituras, principalmente quando lha interpretava.

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reformador os Pais haviam-se afastado rapidamente da justa compreensão da

Escritura175

.

Noutra parte, respondendo àqueles que perguntavam com que autoridade ele se

impunha ao ensino dos santos Padres, os doutores da Igreja primitiva – “homens santos, mais

antigos e mais instruídos do que tu” –, Lutero responde, se impondo não somente a

Agostinho, mas a qualquer outro que vá além da Escritura: “Quer seja Cipriano, Ambrósio,

Agostinho, ou São Pedro, Paulo ou João, e até mesmo um anjo vindo do céu que ensine de

outra maneira”176

. Não é que qualquer desses santos homens estivesse na mira de Lutero, o

que estava em jogo era a sua doutrina177

. Havia, na Idade Média, três marcas características

do desejo humano de auto-justificação, “escadas” que Lutero atacará, sendo que, uma delas,

era a moralidade, fincada auto-penitência, etc. Conforme diz A. Nygren:

A interpretação medieval do cristianismo é marcada do princípio ao fim pela

tendência ascendente. Essa tendência se afirma a si mesma tanto na piedade

moralista do catolicismo popular quanto na teologia racional do escolasticismo,

como também na religiosidade extática do misticismo... Todas elas conhecem um

caminho pelo qual o homem pode chegar pelos próprios esforços a Deus, seja pelo

caminho do mérito, conhecido da piedade prática, seja o caminho da avnagwgh, do

misticismo, ou o caminho do pensamento especulativo, de acordo com a analogia do

ser (analogia entis). O homem deve subir a Deus por meio de uma das três escadas

celestiais. Contra essa tendência, ou escalada, Lutero fez o seu protesto178

.

No que diz respeito à moral, aí, a grande questão é que ela é uma “piedade moralista

do catolicismo popular”, e não aquela que é ensinada por Agostinho em várias de suas obras.

Agostinho, convém lembrar, não é um santo da Igreja Católica, mas do Cristianismo – Lutero

é ciente disso –, e se sua doutrina foi deturpada nalguns pontos, o mesmo se deu com o ensino

dos próprios escritores neotestamentários. Daí também Lutero, no texto que já utilizamos,

dizer: “Quer seja Cipriano, Ambrósio, Agostinho, ou São Pedro, Paulo ou João...” Sim, para

175

BENOIT, André. A atualidade dos Pais da Igreja. Trad. de Dirson Glênio Vergara dos Santos. São Paulo:

Aste, 1966. p. 22. Lutero agia de acordo com o espírito humanista da época, aquele que apregoava o lema: ad

fontes ac propter a fontibus. Daí suas naturais limitações à autoridade de Agostinho enquanto exegeta. A

autoridade de Agostinho, em relação à Escritura era, e tinha de ser, secundária, e, jamais, normativa. Nesse

sentido também, ver DELUMEAU, Jean. Le Catholicisme entre Luther et Voltaire. Paris: PUF, 1985. 176

LUTHER, M. A commentary to the Galatians. p. 40, v. 1,12. 177

LUTHER, Martin. Tischreden. In: D. Martín Luthers Werke: kritische gesamtausgabe. Weimar: Hermann

Böhlaus Nachfolger, 1923. 2. Band. p. 388, n. 653: “O diabo vem muitas vezes e lança em meu rosto que um

grande escândalo e muitos males surgiram por causa da minha doutrina. Então, às vezes, ele realmente me põe

em apuros, e me torna ansioso e medroso. E, se eu respondo que muitas coisas boas também surgiram por causa

dela, ele pode deturpar a minha resposta magistralmente etc. Ele é um sagaz e astuto conversador que pode fazer

de uma lasca uma grande viga e as coisas boas que surgem da doutrina – que, graças a Deus, existem em grande

quantidade – ele pode transformar em mero pecado”. 178

NYGREN, Anders. Agape and Eros: a study of the Christian idea of love. London: S.P.C.K., 1932. v. 2, p.

482.

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Lutero, o “próprio cristianismo no catolicismo medieval [...] perdera o direito ao título do

nome cristão, visto que falhou em dar a Cristo seu devido lugar como único mediador entre

Deus e os homens”179

. Na tese Von Menschenlehre zu meiden und Antwort auf Sprüche, so

man führet, Menschenlehre zu stärken (Acerca de evitar doutrinas humanas e resposta a

afirmações usuais para reforçar doutrinas humanas), de 1522, Lutero tenta defender uma

difícil passagem “de Agostinho”, que diz: “Eu não teria crido no evangelho se a autoridade de

toda a Igreja não me tivesse movido para isso”180

. A afirmação da fé de Agostinho,

aparentemente condicionada à “autoridade da Igreja” – o que seria contrário à doutrina cristã

–, é assim elucidada por Lutero: “Não devemos entender a Santo Agostinho no sentido de que

não creia no evangelho se não fosse movido para isso pela autoridade de toda a igreja. O que

seria falso e não cristão”181

. Lutero continua: “o sentido de Santo Agostinho deve ser o fato de

que ele não encontra o evangelho em parte alguma a não ser na Igreja [etc.]”182

. Ainda nas

Tischreden, Lutero afirma que Agostinho, dentre os antigos, é o melhor intérprete das

Escrituras183

.

Ferrier, valendo-se de um trecho mal explicado de uma carta de Felipe Melanchton

(1497-1560) a Johannes Brenz (1499-1570), faz Lutero (quem nem ao menos é mencionado

na tal carta) destoar de Agostinho na questão da doutrina da justificação pela fé, e Agostinho

discordar de São Paulo, conforme Melanchton que, por sua vez, discordará de Agostinho e de

Brenz, que aparece como conservador das “imaginações de Agostinho”184

; tratar-se-ía de, da

179

LUTHER, Martin. Select works of Martin Luther. Trad. by Henry Cole. London: Oxford University, 1826.

v. 1, p. 79. 180

WA 10, II, 72-92. LUTHER, Martin. That doctrines of men are to be rejected together with a reply to texts

quoted in difence of the doctrines of men. In: _____. Works of Martin Luther. Philadelphia: A. J. Holman

Company; Pensilvania: The Castle Press, 1915. v. 2, p. 473s. A formula enigmática de Agostinho também é,

assim, lembrada por John H. S. Burleigh na “Introdução” à edição comentada da The userfulnes of belief (cf.

BURLEIGH, John H. S. Augustine: earlier writings. Sel. and trasl. with introd. by John H. S. Burleigh.

Philadelphia: The Westminster Press, 1953. p. 288. (Col. The Library of Christian Classics, 6). 181

LUTHER, 1915, p. 452s. 182

LUTHER, 1915, p. 453. Todavia, conforme Watson: “A interpretação das palavras de Agostinho por Lutero

poderá não ser plenamente correta, mas ela está mais próxima da verdade do que aquilo que comumente tem sido

lido para dentro delas. No seu contexto original, na obra Contra epistolam manichaei (v.6), elas não intencionam

representar o próprio ponto de vista de Agostinho, mas são postas na boca de um cristão simples que está

empenhado numa discussão com um maniqueu. O próprio Agostinho, de forma alguma, veio a crer no evangelho

segundo a maneira que a citação sugere, com que está a par todo aquele que conhece um pouco da sua

peregrinação espiritual.” (WATSON, 2005, p. 243 [n. 673]). 183

WA TR. II, n. 2544a. Daí que “as primeiras críticas contundentes de Lutero dirigiam-se contra o sistema da

teología medieval”, e “na universidade de Wittenberg, o estudo da teología começou a basear-se sobretudo na

Bíblia e em Agostinho (354-430) em vez dos textos escolásticos” (FISCHER, Joachim H. Reforma: renovação

da Igreja pelo Evangelho. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006. p. 27). Uma clara predileção pelo santo Doutor, e

não por Tomás de Aquino ou as Sentenças, de Pedro Lombardo. 184

Brenz se destacou como reformador no território de Württemberg, em especial na cidade de Stuttgart. Ele e

Melanchthon trabalharam estreitamente e mantiveram vasta correspondência, conforme se encontra em:

SCHEIBLE, Heinz (Hrsg.). Melanchthon Briefwechsel: kritische und kommentierte Gesamfausgabe. Stuttgart-

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parte de Melanchthon, uma crítica ao método alegórico, bastante comum em Agostinho e, da

parte de Ferrier, e ainda mais, uma crítica a Lutero, por se distanciar de Agostinho. O trecho

citado é o que segue:

Tu ficaste nas imaginações de Agostinho, que depois, veio a negar que a justiça da

razão seja considerada como justiça diante de Deus, tendo nisso razão. Mas ele

imagina depois que somos considerados justos em virtude do cumprimento da lei

que o Espírito Santo opera em nós... Agostinho não concorda plenamente com a

doutrina de S. Paulo... e eu cito Agostinho como plenamente de acordo conosco em

razão da persuasão do público a este propósito, embora ele não explique

suficientemente a justiça pela fé185

.

Ferrier dirá que, por fim, “não se podia dizer melhor que luteranismo e augustinismo

não estão de acordo com Lutero”, e Lutero, “pretendendo encontrar em S. Paulo a teoria do

Servo-arbítrio, afastou-se imenso do pensamento de Sto. Agostinho”, sendo que Tomás de

Aquino, seguindo a mesma orientação de Lutero, evitando, no entanto, as escolhas

extremadas, “permanece dentro da ortodoxia católica”186

. Que o Aquinate permaneça dentro

da ortodoxia católica não há dúvida, mas que ele mantenha a mesma dinâmica do Hiponense

em relação à graça e o livre-arbítrio, aí não é certo. Isso aparecerá com muita clareza, por

exemplo, entre as noções de moral de boa parte da Igreja Católica do período colonial – que

chegam a ver na obra de Tomás de Aquino, por influência de Aristóteles, uma justificação

para a escravidão (natural) dos índios e dos escravos na América Latina, dentre outras

questões relativas ao Padroado187

e as suas benesses para a Igreja; e esta, de mãos dadas com

a burguesia –, bem como entre os Franciscanos e os Jansenistas que, embora dentro dessa

mesma Igreja, têm outras posturas. Nesse particular, o jansenismo merece destaque.

A descoberta da Antiguidade pagã, no Renascimento, também acentuaria tais

diferenças na maneira como as Igrejas Católicas e reformadas se portariam historicamente. Da

Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1977. 8 v. Quanto à hermenêutica de Agostinho, além do que já tratamos

no final do capítulo 1, ver: MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. História da literatura cristã antiga,

grega e latina. II: do Concílio de Nicéia ao início da Idade Média. Trad. de Marcos Bagno. São Paulo: Loyola,

2000. v. 2, p. 13-67. 185

MELANCHTON apud FERRIER, 1967, p. 98. (Mons. Christiani, l, eit.). 186

FERRIER, 1967, p. 98. Uma leitura menos radical da obra de Lutero em relação à obra de Agostinho pode ser

encontrada em BENOIT, 1966, p. 17-28. 187

“O Padroado é uma das realidades mais importantes a ser levada em consideração, quando de uma análise da

cristandade colonial. O „Padroado Régio das Índias‟ colocava praticamente nas mãos da Coroa a

responsabilidade da evangelização da América. Eram os reis católicos que enviavam os missionários e que

tinham o direito de receber os dízimos, para financiar a evangelização e o culto. Outorgava-se-lhes igualmente o

direito de criar novas Fundações eclesiásticas, como também o de escolher a apresentar os candidatos ao

episcopado e às outras dignidades eclesiásticas.” (RICHARD, Pablo. Morte das cristandades e nascimento da

Igreja: análise histórica e interpretação teológica da Igreja na América Latina. Trad. de Neroaldo Pontes de

Azevedo. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 39. [Estudos e debates latino-americanos]).

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parte das reformadas, era tido como certo que o renascimento/humanismo oferecia o risco de

o homem embriagar-se em seu próprio poder intelectual, sua “liberdade da vontade”. Lutero,

opondo-se à Escolástica e ao Nominalismo, dizia que era preciso lembrar a esse homem que

tudo vem de Deus, da graça de Deus, como fizera Agostinho na sua luta contra as idéias de

Pelágio.

Lutero, monge agostiniano, não precisa de buscar muito longe textos e uma tradução

que correspondam às suas inquietações pessoais e aos problemas que o seu tempo

levanta. Que o ponto de partida seja a experiência pessoal ou a filosofia nominalista,

sem dúvida uma e outra, o resultado para Lutero é o mesmo: a negação descarada do

livre arbítrio. Os textos de Santo Agostinho sobre o pecado original levaram o

monge saxão à certeza da degeneração radical da natureza humana viciada188

.

E não há dúvida de que no cerne da teologia moral de Agostinho, bem como na dos

reformadores, a questão do livre-arbítrio (logo da Voluntas) seja um tema central. Não por

acaso a obra moral por excelência, de Agostinho, redigida entre 388 (Livro I) e 391-5 (Livros

II e III) seja o De libero arbitrio – embora alguns autores vejam na De civitate uma amostra

melhor de tal doutrina. Tanto a ética dos reformadores como a de Agostinho são testadas e

desenvolvidas com base nas Escrituras e no serviço pastoral, diário. Falando de si mesmo,

dos seus progressos como teólogo, Lutero dizia ser um “daqueles que, como escreveu

Agostinho sobre si mesmo, fizeram progressos escrevendo e ensinando, não um daqueles que

do nada de um só golpe se tornaram os maiores”189

, e, noutra parte, afirma que Sola

experientia facit theologum190

.

A questão da vontade corrompida e da necessidade da graça para a regeneração

espiritual, que trará, consequentemente, frutos de caráter moral, é tema comum à cristandade.

Calvino seguirá Lutero em muitas das suas teses, mas divergirá nalguma que, de natureza

mais periférica, não convém serem aqui anotadas. De modo semelhante, o holandês Cornelius

Jansen (1585-1638), fundamentado na obra de Agostinho, também na intenção de reformar a

188

FERRIER, 1967, p. 81-2. 189

WA 54, 186,27-29; para a referência a Agostinho, ver: Epist. 143,2 (MPL 33,585). 190

“Só a experiência faz o teólogo”. (WA TR 1, 16,13 [n. 46; 1531]). “Muitos dos escritos de Lutero sobre temas

éticos foram desenvolvidos a partir de suas prédicas e assim foram dirigidos desde o início a um interlocutor

concreto”, diz Oswald Bayer, acrescentando que Lutero, em questões de ética, “se movimentou na tradição de

Agostinho e de sua doutrina das „duas civitates‟, a cidade de Deus ou do céu e a cidade terrena ou diabólica.

Contudo, deve-se observar que Lutero dinamiza a terminologia de Agostinho: Lutero não fala, em primeira

linha, de dois âmbitos separados, mas de dois modos de governar de Deus. Onde Agostinho fala, nos termos da

história da teologia, de duas „cidades‟, às quais pertencem em cada caso pessoas e grupos de pessoas diferentes,

para Lutero cada cristão tem parte nos dois regimentos; a diferenciação entre dois regimentos como que

atravessa a pessoa cristã”. (BAYER, Oswald. A teologia de Martinho Lutero: uma atualização. Trad. de Nélio

Schneider. São Leopoldo: Sinodal, 2007. p. 226).

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cristandade, iniciou uma reforma que preocupou a Igreja Católica dos séculos XVII e XVIII.

Jansênio era doutor em teologia pela universidade de Louvain (1619), na Bélgica, e bispo de

Ypres. Influenciado pelo belga Michel De Bay (1513-1589) e pelos estudos que esse fizera de

certas doutrinas agostinianas191

, Jansênio se uniu a Jean Duvergier de Hauranne (1581-1643),

que seria o futuro abade de Saint-Cyran, na França, na oposição ao racionalismo exagerado

dos teólogos escolásticos. Ambos desejavam o retorno do catolicismo à disciplina e à moral

dos primórdios do cristianismo.

Em 1620, com o apoio de Duvergier, Jansênio começa a redigir o livro Augustinus,

cujo manuscrito, antes de ser editado, seria entregue para avaliação da Igreja, no mesmo dia

da morte de Duvergier (06/05/1638). O livro seria publicado em sucessivas edições em

Louvain (1640), Paris (1641), e Rouen (1643). Objeto de alarde em Roma, foi condenado pela

Bula In eminenti (06/03/1642), de Urbano VIII (1568-1644). Entretanto, conforme Justo

Collantes,

o Augustinus alcançara sucesso enorme e seus defensores rejeitaram a bula,

insinuando que ela tinha sido astuciosamente “arrancada”, pelos jesuítas, de um

Papa já ancião. Determinou então Inocêncio X (1644-1655) que se examinasse a

fundo a questão; depois de meticuloso exame do livro, ordenou o Papa a

promulgação da Constituição Cum occasione, e declarau heréticas cinco proposições

do Augustinus: impossibilidade de guardar os mandamentos, impossibilidade de

resistir à graça, suficiência da liberdade de coação para merecer, negação de que

Cristo morreu por todos os homens192

.

Consta que, em janeiro de 1646, quando Etienne Pascal, pai de Blaise Pascal (1623-

1662), encontrava-se enfermo por causa de uma séria lesão na perna, dois homens piedosos

vieram cuidar dele, eram dois jansenistas. Pascal teria ficado profundamente impressionado

com aquela demonstração de espiritualidade e caridade cristãs. Assim, depois, pareceu-lhe

muito natural ser atraído para a doutrina de Jansênio. Contrastando com e ensino jesuíta de

que a graça é eficaz quando o indivíduo consente e coopera com Deus, mediante o uso do seu

livre-arbítrio, os jansenistas, fazendo coro com Lutero e Calvino, ensinavam que a graça é

totalmente imerecida e, eo ipso, concedida graciosamente por Deus àqueles que foram por Ele

191

Fala-se que De Bay (Baius) interpretava de modo muito rígido e pessimista as doutrinas sobre a graça e sobre

a justificação, em Agostinho, pelo que, em 1567, sua obra teve 79 proposições condenadas com a bula Ex

omnibus afflictionibus, de Piu V. 192

COLLANTES, Justo. A fé católica: documentos do magistério da Igreja: das origens aos nossos dias. Org.

introd. e notas de Justo Collantes, S.I. Trad. cotejada com os originais em latim e grego, e atualização com novos

documentos, de Paulo Rodrigues. Goiás: Diocese de Anápolis; Rio de Janeiro: Mosteiro de São Bento, 2003. p.

906. As proposições condenadas por Inocêncio X seguem nas págs. 906-16 da referida obra.

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predestinados. Nesse aspecto, os jansenistas mantinham a tradição do pensamento

agostiniano, e em nada diferiam do pensamento de Calvino. Mas havia diferenças.

Costuma-se acreditar que o jansenismo tem parentesco com uma de teologia

agostiniana, centrada no problema da graça – e o tem efetivamente ao tempo de

Port-Royal e de Pascal – e que pode ser encontrado, após 1650, primeiro como

movimento e, em seguida, após o caso da bula Unigenitus (1713), como partido de

oposição “patriota” contra o Estado absolutista, contra todos os “despotismos”

religiosos, políticos, econômicos, sendo um dos primeiros a dar um sentido prático à

palavra despotismo, emprestada de Montesquieu. É considerado como um bloco

antijesuíta, como um fronte unido contra todas as pretensões ultramontanas da

“Corte de Roma”, e podemos vê-lo opondo sua “catolicidade” tanto contra os

protestantes calvinistas como contra os “filósofos” das Luzes com os quais, aliás, ele

tem alguma familiaridade193

.

Em 1653, o Papa Inocêncio X qualificaria as pretensões “reformistas” dos jansenistas

no seio da Igreja Católica como heréticas. E, em continuando aceso o fogo da controvérsia,

encontramos Pascal no meio desse conflito teológico, sendo considerado, nessa posição, como

um polemista par excellence. Não por acaso uma das sínteses mais brilhantes, relativas à

doutrina da graça – tão cara aos jansenistas – em Agostinho, é aquela que, em Les pensées

(1670), é formulada por Pascal, como que dito por boca do Cristo encarnado: “Consola-te,

não me procurarias se já não me houvesses achado”194

. O “procurar” (ação da razão), assim,

tem na fé a sua garantia. O jansenismo tinha o coração (a fé) acima da razão. Isso aparece

claramente naquela que é, certamente, a mais célebre frase de Pascal: “O coração tem razões

que a própria razão desconhece”195

. Na frase, muito citada e sob todos os sentidos, estão

presentes as duas vias do conhecimento que norteia a sua doutrina filosófica: o raciocínio

lógico e a emoção. Convém salientar, entrementes, que havia diferenças entre as idéias de

Pascal e a doutrina jansenista – Pascal, de fato, não era tão jansenista quanto alguns

historiadores querem fazê-lo. De fato, numa perspectiva mais antropocêntrica que aquela

193

PLONGERON, Bernard. Como explicar as pretensões do jansenismo à “catolicidade”? Trad. de Carlos

Almeida Pereira. Revista Concilium, Petrópolis, n. 271, p. 95, 1970. 194

Pens., VII, 553; cf., para o mesmo sentindo, Conf., I, 1; X, 18-20; XIII, 1. 195

Pens., IV, 277; ou, na tradução de Sérgio Milliet: “O coração tem suas razões, que a razão não conhece” (Cf.

PASCAL. Pensamentos. 2. ed. Trad. de Sérgio Milliet. Introd. e notas de Ch. M. Des Granges. São Paulo:

Difusão Européia do Livro, 1961. p. 122. [Col. Clássicos Garnier da Difusão do Livro]). Convertido ao

cristianismo jansenista, em 1654, Pascal se opõe aos filósofos do século XVII, tendo em Descartes (Cf. Pens., II,

76-79) o seu maior representante. No pensamento 78, Pascal, como que tendo em mete um projeto para o futuro,

propõe “Escrever contra os que aprofundam demais as ciência. Descartes.” E no pensamento 78 chega a afirmar:

“Descartes: inútil e incerto”. Enquanto Descartes defendia um racionalismo e uma especulação lógica frios,

claros e precisos, aplicados a toda e qualquer forma de ciência, seja exata ou humana, Pascal, com o seu método

“coração/razão”, surge como um pensador mais humano, determinando "la ordre du coeur”. Mais, neste sentido,

ver: GAUHIER, Henri. Blaise Pascal: conversão e apologética. Trad. de Homero Santiago e Éricka Marie

Itokazu. São Paulo: Paulus / Discurso Editorial, 2005.

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postulada pelos jansenistas, mormente em relação à doutrina da Graça, Pascal, no

desenvolvimento de suas idéias filosófico-teológicas, daria à iniciativa humana uma

importância que não se alinhava às doutrinas jansenistas. Mas, embora as diferenças, a ligação

do pensador com a seita já estaria sedimentada a ponto de mantê-lo, na memória histórica,

ligado a ela.

Em Les provinciales, ou Lettres écrites à un provincial par un de ses amis, sur le

sujet des disputates présentes de la Sorbonne, que é outra obra de Pascal – escrita entre 1656

a 1657, sob o pseudônimo de Louis de Montalte, e lançada clandestinamente; motivo pelo

qual seria interrogado pela polícia –, também é possível perceber a sua defesa do

agostinianismo jansenista em confronto com as idéias do jesuíta Luiz de Molina (1536-1600).

Este, em De concordia (de 1588), opondo-se à doutrina da “escravidão da vontade”, tal

ensinada por Lutero, com base em Agostinho, ensina uma concórdia – e daí o nome da obra –

racional entre Deus e a liberdade do homem. Molina admitia o concurso geral de Deus no

governo do mundo, mas Ele não impede que as “causas segundas” se exerçam; havendo,

portanto, uma conciliação da liberdade humana com a presciência divina. O fato de Deus

saber o que o homem fará com a sua liberdade não impede que o homem seja livre. Molina se

apóia no abrandamento ensinado por Tomás de Aquino, a partir das teses agostinianas sobre a

graça, onde se afirma, dentre outras, que o pecado original não havia retirado do homem a

capacidade sobrenatural de ele mesmo atingir a redenção.

Embora as questões formuladas por Molina fossem das mais antigas, a divulgação e

os debates que se seguiram após a publicação do De concordia levaram Pascal a intervir com

a redação do Les provinciales.

Sabe-se que os jansenistas pretendiam voltar à doutrina de Agostinho no referente à

questão da graça, doutrina que Tomás de Aquino já havia atenuado bastante, e que

Molina [...] havia abandonado em favor de uma perspectiva mais otimista. Com sua

posição, os jansenistas se aproximavam da severa doutrina da predestinação de

Calvino196

.

O Les provinciales compõe-se de dezoito cartas. Nas cartas I a IV, XVII e XVIII,

conforme Denis Huisman, “Pascal justifica a doutrina jansenista contra a acusação de heresia,

mostrando que ela é a única fiel ao ensinamento de Agostinho, que é a doutrina oficial da

Igreja”. Assim fazendo

196

HUISMAN, Denis. Provinciais ou Cartas escritas a um provincial por um de seus amigos a respeito das

presentes disputas da Sorbonne. In: _____. Dicionário de obras filosóficas. Trad. de Castilho Benedetti. São

Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 461.

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Evidencia as distinções conceptuais nas quais se baseia o debate (“poder próximo”,

“graça suficiente”) e mostra que as confusões fomentadas pelos jesuítas falseiam a

discussão, que poderia terminar num acordo entre jansenistas e tomistas, contra os

molinistas. A carta V e as seguintes tratam da moral e denunciam a casuística dos

jesuítas e seu laxismo moral197

.

Seja pela assimilação ou pela divulgação de algumas das doutrinas agostinianas, a

contribuição dos jansenistas para a recepção do pensamento de Agostinho nos séculos XVII e

XVIII foi de extrema relevância. Mais que a utilização das doutrinas do Hiponense, conforme

feita pelos reformadores, os jansenistas, que não chegaram a romper radicalmente com a sé

Romana, permaneceram como guardatários das doutrinas que utilizavam, inclusive, na

oposição que faziam à moral e às pretensões políticas dos jesuítas198

. Nas palavras de Bernard

Plongeron:

Por ser um e múltiplo no tempo dos séculos XVII e XVIII e no espaço europeu –

melhor seria falar dele no plural – o jansenismo admite todas as interpretações:

“heresia”, “seita” [...], até mesmo cisma [...] e também ruptura populista de caráter

miraculoso e “profético” na crise convulsionária que vai das extremidades em torno

do túmulo do diácono Pâris no cemitério de Saint-Médard em Paris (1727-1732) te a

fundação estranha de uma “República de Jesus Cristo” pelo padre Bonjour e alguns

iluminados da região lionesa (Forez) após a Revolução Francesa199

.

A força de persuasão da doutrina dos jansenistas, no entanto, estava fadada ao

declínio – talvez por se manter, embora qualificada como herética e outros adjetivos de igual

teor, no “seio” da Igreja Católica. Na história das missões na América Latina, a presença dos

missionários jansenistas não é e nem pode passar despercebida. Mas, tanto no Brasil como em

toda a América Latina, é a doutrina dos jesuítas – tão combatidos por eles200

– que

prevalecerá, principalmente pela posição histórico-temporal que ocuparam no início da

catequização do Novo Mundo. Os jesuítas, ademais, tinham no pensamento de Tomás de

Aquino, e não no de Agostinho, o seu alicerce sistemático-doutrinário.

197

HUISMAN, 2000, p. 461. 198

Cf. TAVENEAUX, R. Jansénisme et politique. Paris: Armand Colin, 1965. (Collection U.). 199

PLONGERON, 1970. p. 95. 200

Assim, já quase ao final dos Pensamentos, Pascal afirma que: “É preciso mostrar aos heréticos, que se

prevalecem da doutrina dos jesuítas, eu não é a da Igreja... a doutrina da Igreja; e que nossas dissensões não nos

afastam do altar” (XIV, 891); e mais adiante: “Os que amam a Igreja queixam-se de ver corromperem-se os

costumes; mas, ao menos, subsistem as leis. Os outros, porém, corrompem as leis: estragam o modelo” (XIV,

894).

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Na Reforma Pombalina, de 28 de junho de 1759, no entanto, é o catecismo jansenista

que, adotado pelo Ministro do Estado do governo de D. José I, substituirá a cartilha dos

jesuítas; a finalidade era, de influência humanístico-ilustrada, substituir a anterior estrutura de

ensino religioso/jesuítico – que respondia mais à Igreja, ao Papa, do que ao Estado português.

A questão era um declarado confronto entre o regalismo pombalino e a posição ultramontana

defendida pelos inacianos. Os jesuítas também condenavam a criação da Companhia Geral do

Grão-Pará e Maranhão, afirmando que Pombal era inimigo da religião. Assomado a isso

estava o envolvimento dos jesuítas na guerra dos Sete Povos de Missões, em 1756201

, que já

mantinha a ordem sob suspeita.

Nesse particular é importante notar a maneira como os padres jesuítas ensinavam

certos ofícios, como a escultura, por exemplo, mantendo o modelo europeu como padrão. Se

isso era assim na escultura, era também na ética, na moral, na doutrina cristã. Quanto à

recepção dessa cultura cristã européia por parte dos índios dos Sete Povos, Armindo Trevisan

diz:

Muitas pessoas desinteressam-se da escultura missioneira por descobrirem nela

acentuada influência de modelos europeus. Surge uma pergunta: poderiam os

indígenas, no estágio em que se encontravam [...], revelar sua identidade cultural? E

quem eram os Jesuítas? Alguns deles, indivíduos de excelente aparelhagem

intelectual, havendo cursado universidades européias tradicionais; outros procediam

de famílias particularmente dotadas do ponto de vista estético. [...] Nos séculos XVII

e XVIII ninguém punha em dúvida a superioridade da cultura ocidental. [...] Os

Jesuítas julgavam seu dever a catequese cristã, e a catequese cultural ocidental202

.

201

“O Tratado de Madrid, de 1750, cedeu a Espanha a Portugal, em troca da parte da margem esquerda do [rio]

Prata, os Sete Povos das Missões [São Francisco de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço

Mártir, São João Batista e Santo Ângelo Custódio]. Houve resistência da parte dos indígenas [apoiados pelos

jesuítas]. Para vencê-la, aliaram-se os exércitos das duas nações. O massacre de Caibaté, em 1756, selou a sorte

dos Sete Povos” (TREVISAN, Armindo. Os Sete Povos das Missões. Porto Alegre: Painel Editora / Rede Brasil

Sul, [s.d.]. p. 20. (Série Raízes Gaúchas, 3). A guerra guaranítica durou de 1754 a 1756, resultando no

extermínio massivo de centenas de índios e das reduções jesuíticas dos Sete Povos. A obra do mineiro José

Basílio da Gama (1741-1795), O Uruguai (1769), que é um poema de cinco contos e 1.377 versos, eternizou

essa luta sangrenta entre os índios dos Sete Povos contra portugueses e espanhóis. E, embora não seja um relato

descritivo e historicamente fiel, é um resumo psicológico e imagético do que, na época, se pensava sobre o fato,

de uma perspectiva menos religiosa e mais política – Basílio, que foi padre jesuíta, desligara-se da Ordem em

1760; preso em Portugal (1769) e depois solto, no mesmo ano, trabalharia como acessor do Marquês de Pombal.

Cf. GAMA, Basílio da. O Urugai: edição anotada com texto original e versão em prosa. Org. e apresentação de

Luís Augisto Fischer; notas, versão em prosa e fixação de texto de Rodrigo Breunig. Porto Alegre: L&PM, 2009.

144p. (Col. L&PM Pocket, 796). 202

TREVISAN, [s.d.], p. 15. Para um estudo mais detalhado no que toca à presença dos jesuítas no Rio Grande

do Sul, de 1580 até a expulsão da Ordem, ver: FRANZEN, Beatriz Vasconcelos. Os jesuítas portugueses e

espanhóis e sua ação missionária no Sul do Brasil (1580-1540): um estudo comparativo. São Leopoldo: Ed.

UNISINOS, 1999. (Série acadêmica).

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Se alguma obra trazia traços indígenas, como encontramos hoje em alguns poucos

exemplares, era tida como imperfeita e de mau gosto – o contrário do que agora ocorre,

quando historiadores e etnólogos procuram, justamente aí, traços característicos e que

caracterizem essas populações indígenas nas reduções jesuíticas. O início das reduções dos

Sete Povos, em 1687, representou a última fase do avanço jesuítico. Na época da expulsão (14

de março de 1760), a Companhia tinha 25 colégios, 36 missões, 17 colégios e seminários,

além de seminários menores e escolas de primeiras letras instaladas em todas as cidades onde

havia casas da Companhia. Ao todo, 550 jesuítas foram obrigados a sair do Brasil.

Reestabelecida pelo Papa Pio VII, em 1814, a Companhia voltaria ao Brasil em 1841, sendo

os primeiros sacerdotes oriundos da Argentina, Áustria e Roma, de onde também haviam sido

expulsos. Quando expulsos, e principalmente pela propaganda que fizeram do sucesso de suas

reduções, conforme Dussel, “o que havia sido um modelo evangelizatório terminou sendo

uma utopia político-econômica que chegou a inspirar grande parte da humanidade.203

Justamente por isso Laura Greenhalg lembra que

Voltaire afirmou que as reduções jesuíticas dos séculos 16, 17 e 18 foram o triunfo

da Humanidade. Montesquieu comparou-as ao sistema político-filosófico imaginado

por Platão, em A república. Hegel salientou a evolução humana a partir de uma

utopia fundada na fraternidade entre os diferentes. E assim, em meio a finas

analogias, construiu-se a convicção de que aos discípulos de Santo Ignácio,

formados nos rigores da Companhia de Jesus e investidos de mandato divino, coube

a missão de resgatar indivíduos do período neolítico em que viviam, introduzindo-os

no Renascimento - num salto civilizatório sem escalas204

.

De 1841 lá para cá, continuariam se dedicando à educação, auxiliando as

congregações marianas, aos círculos operários, ao apostolado da oração e à cruzada

eucarística; uma das maiores editoras do Brasil, a Loyola, é jesuítica.

203

“O importante é que os jesuítas expulsos, de diversas nacionalidades européias, para justificar seus justos

esforços entre os indígenas, escreveram e propagaram pela Europa a utopia comunitária das reduções. Estas

descrições, de defesa contra a burguesia triunfante, fez pensar em outro tipo de organização. A utopia, lançada

pelos jesuítas, de suas experiências das reduções chegaram até os revolucionários também antiburgueses. Mably,

Morelli, Meslier falaram delas, e Babeuf se inspira nas propostas da reforma agrária proposta pelo padre Mably

em 1794, por vias secretas, o que havia sido um modelo evangelizatório terminou sendo uma utopia político-

econômica que chegou a inspirar grande parte da humanidade.” (DUSSEL, 1982. p. 21). 204

GREENHALG, Laura. Ouvindo a voz dos índios: centro de estudos analisa o passado das Missões não apenas

a partir da visão dos jesuítas, mas daqueles nativos que foram influenciados pelos religiosos. In: Pesquisa online

FAPESP, n. 97, 2004. Disponível em: <http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=2415&bd=1&pg=1&lg=>. Acesso

em: 20 nov. 2009.

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230

3.4.2. A moral dos santos: afirmações e mortes de modelos

A autoridade teológica de Tomás de Aquino, o Doctor communis ou Doctor

angelicus, seria formalmente aprovada em 1567, quando o Papa Pio V declarou-o “Doutor da

Igreja Universal”. E o Papa Leão XIII, reafirmaria tal autoridade com as seguintes palavras:

“Caso se encontrem Doutores em desacordo com Santo Tomás, qualquer que seja o mérito

deles, não é permitida nenhuma hesitação: sejam preteridos em favor de Santo Tomás”. Em

1923, Pio XI referiu-se a ele como “o primeiro de todos os intelectuais católicos”. Jacques

Maritain (1882-1973), um dos mais aclamados entre os filósofos tomistas, diz que “a

santidade de Santo Tomás é a santidade da inteligência”205

. No Concílio Vaticano II (1962),

recomendou-se que Tomás de Aquino fosse considerado o guia dos estudos nos seminários e

universidades católicos; ao que Paulo VI comentou: “É a primeira vez que um Concílio

Ecumênico recomenda um teólogo, e este é justamente Santo Tomás de Aquino”. Na parte em

que trata sobre a relação entre agostinianos e tomistas, Pinharanda Gomes afirma que:

Por forças das disputas quodlibetais da Escolástica e da Teologia Dogmática, criou-

se a imagem de oposição entre realismo tomista e voluntarismo augustinista. De

facto, a vontade exprime o voto da inteligência, assim se dizendo que a vontade é as

mãos da inteligência. Puro intelecto, só o divino; ao conhecimento humano é

necessária a vontade para tornar a potência em acto no caminho da perfeição. Se

dissermos que Santo Agostinho está cheio de Santo Tomás, só por alegoria se dirá,

porque o Anjo das Escolas é muito mais tardio, mas, na recíproca, como em tempos

nos dizia o tomista dominicano e bom amigo Padre Raul Rolo: “Tomás está cheio de

Agostinho”206

.

O que levou o Aquinate a “prevalecer” sobre Agostinho, na preferência

teológico/doutrinal/moral da Igreja Católica foi a necessidade temporal de uma elaboração

doutrinário-sistemática da fé, defendendo-a “contra os ataques do judaísmo e do islamismo,

com argumentos que se apóiam, não numa posição sustentada pela Fé, mas em argumentos da

razão pura, orientada pela filosofia de Aristóteles”207

. Embora a autoridade de Agostinho

permaneça por toda a Idade Média, é em Tomás de Aquino que a Igreja encontrará as bases

205

JACQUES MARITAIN apud Dictionnaire Universel des Lettres (Dir. Pierre Clarac). Paris: Société

d‟Édition de Dictionnaires et Encyclopédies, 1961. p. 862. Em DEIROS, 1992, p. 287, vemos que “El

escolasticismo [...], fue aquella enseñanza filosófica propia de la Edade Media, en la que predominaban los

conceptos del filósofo griego Aristóteles (del siglo IV a. de J.C.), y que fue especialmente desarrollada por el

teólogo católico italiano Tomás de Aquino (1225-1274). Este escolasticismo constituyó el sistema de ideas

básico de la Iglesia que fue transplantada en América. El escolasticismo había llegado a ser la filosofia oficial de

Espana, y como tal había sido exportada al Nuevo Mundo”. 206

GOMES, 2000, p. 142. 207

TREVISAN, Armindo. Biografia de Santo Tomás de Aquino. In: AQUINO, Santo Tomás de. O Credo. Trad.

Pref. Introd. e notas de Armindo Trevisan. Petrópolis: Vozes, 2006. p. 12.

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que julgará sólidas para se manter como instituição. Famosa é a maneira assistemática com a

qual Agostinho elaborava os seus escritos. Os novos tempos exigiam uma sistematização

daqueles pontos doutrinários que eram fundamentais à Igreja, à fé da Igreja. E não há dúvida

de que Tomás de Aquino, nesse aspecto, superou o Bispo de Hipona.

Por isso, e por outros aspectos que fogem ao nosso interesse imediato, é que a

entrada de Agostinho na América Latina, e no Brasil, em particular, se deu de modo indireto,

via Tomás de Aquino, ou por meio dos teólogos que o privilegiavam – que é o caso dos

inacianos. Na prática da Igreja Católica do período colonial, e mesmo depois dela, o

pensamento de Agostinho será, em conformidade com as palavras de Leão XIII, “preterido” à

grande obra do Aquinate. Não se trataria, no entanto, de medir quem era o maior, mas quem,

àquele momento histórico, tinha a teologia mais eficaz. A teologia de Agostinho não seria

ultrapassada – nem “preterida”, exatamente –, mas assimilada no grande conjunto do corpus

tomasiano. Mas, na História da Igreja, Agostinho não é apenas um personagem eminente,

chega mesmo a confundir-se com ela, sendo um daqueles que a fez.

A História da Igreja é uma componente da Eclesiologia, constituída nos três pés da

Escritura, da Tradição e do Magistério. Ora, Santo Agostinho, seja em que tratado

for, sempre nos aparece, porque a sua autoridade, ou magistério, se tornou

inevitável. A Eclesiologia abunda em Santo Agostinho, como se ele fosse o pai da

Igreja organizada no mundo208

.

Na História da Igreja – ou da sua base teológico-doutrinal –, depois do apóstolo

Paulo, Agostinho foi, sem qualquer sombra de dúvida, aquele que mais contribuiu para o seu

desenvolvimento, embora não tenha feito isso, ao elaborar a sua grande obra teológico-

filosófico-doutrinal, de modo sistemático.

Dir-se-ia que o seu espírito, sempre vivo e pujante, empenhado em concitar o

homem a decisões éticas e teológicas sempre novas, não comporta sequer a idéia de

um sistema. Seja como for, a história no-lo apresenta como a figura que –

conjugando, da maneira mais feliz, o ardor púnico ao espírito helênico e à vontade

romana – iria ser o pioneiro do pensamento cristão, o preceptor dos povos e o

orientador dos séculos209

.

Sim, isso foi assim por toda a Idade Média, e ainda era entre os teólogos do

Renascimento e os Protestantes europeus, que mudariam de modo definitivo as grandes linhas

da História do Ocidente, e grande parte da do Oriente. Não nos esqueçamos de como as idéias

208

GOMES, 2000, p. 128. 209

BOEHNER; GILSON, 1982, p. 139.

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reformistas moldaram grandes parcelas da mentalidade européia e, por extensão, embora de

modo menos radical, o pensamento latino-americano colonizado – principalmente por parte

dos espanhois e portugueses. Ademais, seja por meio dos Luteranos que emigraram para o sul

do Brasil ou dos Batistas (americanos) e Calvinistas (americanos, franceses e holandeses) que

chegaram ao Nordeste e demais regiões – desde os primeiros anos do seu descobrimento –, a

doutrina de Santo Agostinho, por meio da doutrina de Lutero e de Calvino (o lado

protestante), e mesmo diluída na monumental obra de Tomás de Aquino (o lado Católico),

estava presente. Seja revisitada como orientação direta, ou no silêncio eloquente das

entrelinhas na pregação cristã: através dos autos, sermões, prédicas e documentos.

A grande influência de Agostinho, em Portugal, será uma rica heranças para as suas

futuras colônias. Em 1989, no estudo que examinava as influências do pensamento do

Hiponense em Portugal210

, feito por Francisco da Gama Caeiro (1928-1994), viam-se os

grandes matizes do gênio do Bispo de Hipona ali fincadas. Um estudo semelhante, no Brasil,

ainda está por ser feito – o que apresentamos agora, relacionado ao tema da moral, requer, por

sua natureza, muitos limites. Todavia, dado a nossa proximidade com Portugal – tanto na

língua como na herança colonial –, parece relevante observar que, grosso modo, um apanhado

nominalístico já diz muito. “Uns nomes”, diz Gomes, “cujas obras indicam a leitura e a

meditação de Agostinho, orto – ou pseudo – não importa o caso”211

. Assim, e na sequência,

Gomes cita:

Nos séculos XIV-XV, D. João I, D. Duarte, Infante D. Pedro, Fr. André do Prado, D.

Fr. Álvaro Pais, Fr. João Claro, O.C., e Gomes Anes de Azurara, por exemplo. No

século XVI-XVII, Luís de Molina, S.J., Pedro de Fonseca, S.J., Amador Arrais,

O.C., Gil Vicente, Bartolomeu dos Mártires, O.P., Álvaro Gomes, Francisco Manuel

de Melo, António Vieira, Manuel Bernardes, Sebastião Toscano, João de Barros,

Jerónimo Osório, Francisco Suarez e Heitor Pinto. Há outros, até Santo António, do

século XIII, ficava para aí esquecido... O século XVIII tem muito Santo Agostinho,

tanto mais que, na Faculdade de Teologia os seus Sermões tinham de ser lidos212

.

Não é possível, aqui, analisarmos todos os nomes aí citados, mas podemos observar

que, em relação ao teatro português – mormente por causa da influência que ele terá nos

primeiros séculos do Brasil colonial, como veremos –, o nome de Gil Vicente (1465-1536)

merece destaque. De fato, no teatro português do século XVI, notadamente o religioso,

210

Cf. CAEIRO, Francisco da Gama. Presença de Santo Agostinho no pensamento filosófico português.

Didaskalia, Portugal, v. 19, n. 1, p. 81-94, 1989. Também em Eborensia, Portugal, v. 2, n. 3-4, p. 27-38, 1989. 211

GOMES, 2000, p. 135. 212

GOMES, 2000, p. 135.

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tipicamente medieval213

, representado nos mistérios, momos e moralidades, a figura do

Hiponense não é ignorada. Gil Vicente, provavelmente o maior vulto desse período, no Auto

da Alma (1518), faz de Santo Agostinho a personagem da fala inicial, o prólogo, explicando a

alegoria, onde a vida terrena é vista como uma peregrinação214

. Além de Agostinho, o Auto da

Alma é também elencado por são Jerônimo, Ambrósio de Milão e Tomás de Aquino – mas

todos esses doutores da Igreja são quase mudos na obra inteira, com destaque para Tomás de

Aquino, que não fala uma única vez215

. Quando Gil Vicente quer dar voz aos doutores da

Igreja, é Santo Agostinho que domina a cena, como se a figura de maior autoridade. É de

Agostinho, pois, a primeira e a última fala no Auto da Alma, introduzindo-o e, depois,

concluindo-o.

Seja na opção exegética – que é a da tradição da igreja cristã: a Escritura sendo lida

em seu sentido alegórico (ou tipológico), tropológico (ou moral) e anagógico (ou

escatológico) – ou nos apelos morais, o vulto de Agostinho perpassa a obra de Gil Vicente, e,

às vezes, respalda-a, como no Auto da Alma. Também é clara a relação entre as três potências

da alma – entendimento, vontade e memória – e as tríades tão características ao pensamento

de Agostinho em De Trinitate, e noutras obras onde repete certos pontos aí mais fixados.

Portanto, “assim como em todas as obras de devoção de Gil Vicente, as três potencias [...]

concedidas à Alma, no auto vicentino de mesmo nome, se fazem presentes”216

.

Gil Vicente, portanto, assume a tradição exegético/moral de Agostinho e da Igreja –

como já vimos e ainda veremos –, embora faça críticas à conduta dos cristãos e do clero (mas

não à fé cristã217

); atua na transição da Idade Média para o Renascimento218

e, num plano

213

Em Portugal, durante a Idade Média, não houve um teatro propriamente dito. Com relação ao teatro

português, bem como as complicações em inseri-lo dentro do contexto europeu, de natureza dramático-humana,

ver: STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História do teatro português. Lisboa: Potugália Editora, 1969. 214

Cf. RECKERT, Stephen. Espírito e letra de Gil Vicente. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983.

p. 106-07. 215

Há, em todo o texto, 6 grandes falas de Agostinho – incluindo uma oração à ele dirigida, pela Igreja, que

também é uma personagem –, 5 falas de são Jerônimo, pequenas, e apenas uma de santo Ambrósio. O

personagem de Tomás de Aquino porta-se como coadjuvante, apenas. Cf. em: VICENTE, Gil. Auto da Alma. In:

_____. Três autos: Da Alma, Da barca do inferno, De Mofina Mendes. Introd. de Leogedário A. de Azevedo

Filho; adap. de Walmir Ayala. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. p. 17-77. (Col. Biblioteca

Folha, 7). 216

VALLE, 2006. p. 27. 217

“A Igreja, como instituição, nunca foi o alvo da crítica vicentina. Seus ataques eram direcionados ao escuso

comercio com as indulgências, também criticado por Lutero, bem como a duvidosa tendência para atribuir à

intervenção direta de Deus os fenômenos naturais, não raro interpretando-os como castigos resultantes de falhas

humanas”. (MOREIRA, Zenóbia Collares. Humor e crítica no teatro de Gil Vicente. Natal: RN Econômico

Gráfica e Editora, 2005. p. 50). 218

“Em sua obra, Gil Vicente revela muito nitidamente o perfil típico do homem que viveu no período de

transição da Idade Média crepuscular para o Renascimento nascente. Assim, não obstante a sua vinculação à

herança medieval, em alguns autos e farsas, o teatro vicentino apresenta traços clássicos e renascentistas,

principalmente pela intencionalidade moralizadora da sátira irreverente, pela crítica audaciosa, que põe em xeque

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menor, a Modernidade, situado extraordinariamente no momento mais glorioso da Coroa

portuguesa – era o auge do reinado de D. Manuel I, o Venturoso (1469-1521)219

. Fora isso

tudo há o fato de, em grandes medidas, o teatro vicentino estar em Anchieta e Vieira. De fato,

“José de Anchieta [...] prolongou a tradição do auto religioso no Brasil colonial”, como afirma

Eulália M. L. Lobo220

.

3.5. O espelho lusitano: Agostinho e os autos vicentinos

O Brasil do século XVI – que ainda não era o Brasil, conforme seria inventado221

séculos depois –, em seu processo civilizatório e cultural, aos moldes lusitano-europeus,

dominantes, deveria ser conforme a tradição cristã; e Portugal era o seu espelho mais

próximo. Mas Portugal não era o melhor modelo de piedade e moral cristãs, embora seus reis

e religião oficial professassem a fé cristã. Por esse tempo, Gil Vicente – que em alguns

aspectos, ao criticar o clero, Roma e a Inquisição, esteve ao lado de Lutero, embora

inconscientemente – seria uma voz soante que, por meio de suas obras, tentava “corrigir os

costumes corrompidos e a degradação moral que se verificavam em todas as camadas sociais,

com especial gravidade no meio eclesiástico, onde a boa qualidade moral e a austeridade de

vida se reduziam na mesma proporção em que a perversão se expandia”222

.

A importância de inserir Gil Vicente, ou sua obra, dentro desse processo de

transmissão da moral agostiniana ao Brasil se dá por todos esses fatores já apontados, e

também porque, de um modo mais geral, como diz Zanóbia Collares Moreira,

a questão das indulgências, pela teimosa ousadia de satirizar a escolástica, a conduta do clero e, finalmente, pela

introdução de elementos da mitologia em algumas dessas peças”. (MOREIRA, 2005, p. 18). 219

Foi no reinado de D. Manuel que, dentre outras coisas, Vasco da Gama (c. 1460/68-1524), em 1498, a bordo

da nau São Gabriel, descobriu o caminho marítimo para a Índia, contornando o Sul do continente africano,

através do Cabo da Boa Esperança – convém ressaltar que a Índia já era conhecida dos povos ocidentais desde

Alexandre, o Grande, e desde o Império Romano. Dois anos depois se comemoraria a chegada de Cabral ao

Brasil. 220

LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Imigração portuguesa no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2001. p. 73. (Col.

Estudos Históricos, 43). Lobo ainda diz que Anchieta “usava três línguas: português, espanhol e tupi. [...] Seu

teatro tinha caráter doutrinário e uma preocupação estética. [...] Nas alegorias, os diálogos dos demônios eram

em tupi”. (LOBO, 2001, p. 73). E a utilização dada à língua, com ênfase numa “língua dos anjos” e uma língua

dos demônios, diz muito no que diz respeito ao processo civilizatório, doutrinário. 221

No que diz respeito ao tema da “invenção da América”, impossível de ser, aqui, desenvolvido em seus

aspectos políticos e culturais, ver: O‟GORMAN, Edmundo. La invención de América. México: Fondo de

Cultura Econômica, 1958. HEMMING, John. Red Gold: the conquest of the Brasilian Indians 1500-1760.

Cambridge: Harvard University Press, 1978. FÉLIX, Idemburgo Pereira Frazão. Os filhos de Iracema: símbolo

de uma Nacionalidade. In. VV.AA. América: descoberta ou invenção: 4º Colóquio da UERJ. Rio de Janeiro:

Imago Editora, 1992. p. 191-99. (Série Diversos). SCHIAVO, Cléia. América: invenção masculina/re-invenção

feminina. In: VV.AA., 1992. p. 324-28. 222

MOREIRA, 2005, p. 19.

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Gil Vicente esteve no olho do furacão da crise religiosa iniciada pela rebeldia

luterana na segunda década do século XVI. Em 1531 havia sido inaugurado o

movimento para restabelecer a Inquisição em Portugal. Portanto, em 1536, já não

havia clima favorável para as críticas aos atos desabonadores do clero e da cúria

levantadas pelo dramaturgo. É oportuno frisar que o período em que ocorrem as

mais acirradas diatribes de Gil Vicente contra o clero e contra Roma vai de 1517,

data da insurreição de Lutero, até 1533, ano que assinala o início do atuante

pontificado de Paulo III e o advento de uma rigorosa atividade de restauração da

disciplina da Igreja223

.

Gil Vicente foi, além do fundador-mor do teatro português, o primeiro escritor que,

detentor de uma incrível visão dramático-satírica, soube e teve coragem de avaliar a sociedade

de sua época, introduzindo uma crítica social que lhe era perigosa, e uma visão político-

religiosa que lhe era igualmente cara224

. “A sua arma de combate às deformações sociais e a

estratégia de moralização dos costumes é a sátira mordaz, a ironia refinada, o uso da

caricatura e a força dramática que emprestava às suas personagens”225

. Santo Agostinho, no

Auto da Alma – que é considerada por alguns autores como a sua obra mais refinada e límpida

–, seria uma delas.

A alegoria bíblica é sempre muito presente nas peças religiosas de Gil Vicente; aliás,

é a alegorese (forma de composição que trata o texto de modo não literal) que às

fundamenta226

. Na carta-prefácio que envia a D. Duardos, em 1522 ou 23, é o próprio Gil

Vicente quem classifica suas obras, chamando-as de “comédias, farças y moralidades que he

compuesto”. Destacam-se, nesse autor, as moralidades – gênero dramático contemporâneo ao

mistério –, onde a luta entre o Bem (virtudes) e o Mal (vícios) é o tema principal. No mistério,

a história bíblica é encenada, dando ênfase às situações espirituais e morais de certos

personagens que, assistidos, são identificados com a situação daqueles que o assistem. Os

mistérios, provavelmente, têm como ponto de partida o Ordo prophetarum, onde a História

223

MOREIRA, 2005, p. 21. 224

O Auto da barca do inferno, por exemplo, durante o período em que a Inquisição atuou em solo português, foi

proibido de ser encenado em público, chegando mesmo a sofrer alterações (nas Compilaçam, de 1586) em sua

redação original, por causa de tal censura. A instalação da Inquisição em Portugal foi solicitada por D. Manuel I

ao papa Clemente VII, que através da bula Cum ad nihil magis, datada de 17 de dezembro de 1531, inaugurou-a

– embora tenha anulado tal decisão um ano depois. Somente em 23 de maio de 1536, pela redação de uma bula

de teor semelhante e título idêntico à primeira, foi que o Tribunal do Santo Ofício foi oficialmente instaurado,

extinguindo-se gradualmente ao longo do século XVIII, e, formalmente, em 1821. No levantamento de

produções de teses e dissertações defendidas nos cursos de Filosofia, História e Letras, conforme constam no

Banco de Teses da CAPES e Teses Brasileiras do ABICT, de 1990 a 2002, Gil Vicente aparece em 12 trabalhos,

sendo um dos autores mais lembrados, e sempre ligado à contestação moral da cristandade oficial (cf.

MACEDO, José Rivais. [Org.]. Os estudos medievais no Brasil: catálogo de dissertações e teses – Filosofia,

Letras, História [1900-2002]. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003). 225

MOREIRA, 2005, p. 47. 226

Mantendo-se na tradição cristã, Gil Vicente fundamenta a sua “exegese” nos sentidos: Alegórico (ou

tipológico), Tropológico (ou moral) e Anagógico (ou escatológico). Da hermenêutica agostiniana já tratamos no

cap. 2.

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Bíblica é encenada de conformidade com o Sermo contra iudaeos, paganos et arianos de

symbolo, do Pseudo-Agostinho, redigido provavelmente no século VI231

. O teatro religioso

surgiu, provavelmente, no século IX, “da interpretação alegórica da liturgia, que permite

àqueles que a presenciam depreender dos seus ritos, muitos deles dotados de forte carga

dramática, um significado oculto os torna participantes daquilo que assistem”232

. Nos autos

vicentinos, no entanto, a ação moral (cristã) e as recompensas eternas são encenadas de modo

mais aberto, metafísico/atemporal. Alan E. Knigt nota a diferença entre os mistérios e as

moralidades acenando que, nos primeiros, o mundo é representado de uma perspectiva

histórica, enquanto nas últimas têm-se um universo imaginário ou ficcional233

, como no caso

do Auto da barca do inferno, em que Gil Vicente utiliza-se de Caronte (ou Barqueiro dos

Mortos, ou Barqueiro dos Infernos), conhecido barqueiro da mitologia grega que conduz as

almas através do Aqueronte (rio de águas tumultuosas que delimitava a região infernal) ao

Hades, conforme aparece em A divina comédia, de Dante Alighieri, no início do século XIV –

não se sabe com certeza quando tal personagem surgiu na literatura; não aparece nem em

Hesíodo e nem em Homero, por exemplos, mas já está em Virgílio. A alegoria moral,

representada em Caronte, chega a Gil Vicente, ao que tudo indica, por meio de Íñigo López

Mendonza (1398-1458), Marquês de Santillana, cabeça brilhante das letras ibéricas do século

XV234

. Impossível não notar as semelhanças entre as três partes de A divina comédia –

231

No referido sermão, “é clara a intenção de convencer os não-convertidos de que Cristo é o verdadeiro

Messias, através das profecias feitas tanto por pagãos como por pessoas bíblicas. Assim, a peça nos apresenta

personagens da tradição pagã (Virgílio, Nabucodonosor e a Sibila Erutéia) e profetas hebreus (Isaías, Jeremias,

Daniel, Moisés, Davi, Habacuc, Simeão, Elisabete e João Batista). Todos eles anunciam o nascimento de Cristo.

A vinda deste não somente cumpre as profecias, mas também é a garantia de que está estabelecida a aliança de

Deus com os homens, tornando possível a redenção de todos”. (MOREIRA, 2005, p. 14; nota 5). A figura do

Pseudo-Agostinho na literatura portuguesa é bastante presente, com obras editadas desde o século XIII. No

apanhado bibliográfico feito por Joaquim Domingues, Elísio Gala e Pinharanda Gomes, constam nada menos

que 14 títulos, entre obras avulsas ou reunidas em coleções. Cf. DOMINGUES; GALA; GOMES, 2000, p. 21. 232

DOMINGUES; GALA; GOMES, 2000, p. 12. Originado, provavelmente, “do Alleluia, que, nas festas

litúrgicas, era adornado com músicas e letras distintas, dando origem ao tropos – pequenos textos recitativos

destinados ao coro, quase sempre sob a forma de diálogos, cujos exemplos mais antigos são os Quem quaeritis.

Com a evolução destes, pela incorporação de novas personagens e formas alheias à liturgia, a representação

dramática acaba por sair do coro”. (DOMINGUES; GALA; GOMES, 2000, p. 12) 233

KNIGTH, Alan E. France. In: SIMON, Eckehard. The theater of Medieval Europe: new research in early

drama. Cambridge UP: Ed. Simon Eckhard, 1993. p. 115. 234

Poeta, político, e humanista do século XV, viveu em Guadalajara, em seu antigo palácio, onde formou a

grande biblioteca dos Mendonza, e escreveu as famosas Asturias de Santillana. Sua obra se insere dentro da

tradição da Escola alegórico-dantesca. Foi, sem dúvida, um dos maiores admiradores de Dante Alighieri na

Espanha. Também assimilou o que pôde do humanismo de Petrarca (1304-1374) e de Giovanni Boccaccio

(1313-1375). Depois de sua morte, em 1458, foi sepultado no mausoléu dos Mendonza, no Mosteiro de San

Francisco. Suas obras de conteúdos morais mais evidentes são: Lamentaçión de Spaña, Doctrinal de privados,

Proverbios de gloriosa doctrina e o diálogo de Bías contra Fortuna, um dos seus melhores escritos e que mais

se assemelha à glosa de tópicos senequistas, tratando de um tema muito comum à época: as mudanças da

Fortuna.

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237

inferno, purgatório e paraíso – é o pano de fundo das Barcas. Não somente a ordem dos

ambientes é a mesma, como também o gênero (cômico) e os progressos espirituais235

.

Embora compostas em épocas diferentes236

, as Barcas formam uma trilogia onde

“todo o gênero humano está representado, bem como os seus vícios e virtudes”237

. Assim,

Os embates entre os Vícios e as Virtudes simbolizam a luta travada internamente por

cada ser humano. Este, portanto, vê-se refletido no protagonista da peça, que,

cercado pelas entidades que intervêm no seu destino, deve escolher quais deverão

acompanhá-lo. Deste modo, ao representar tal luta, as moralidades também

encenam, embora indiretamente, a História Sagrada238

.

Os personagens dos autos, imitação dos tipos baixos (peiorum imitatio) da sociedade,

são o retrato da sua pobreza moral mais latente – mas sempre mostrando que, entre tantos

danados, há aqueles que se salvam, pela humildade, pela santidade239

. Eles são, naquilo que

têm de mal – a se ver pelo resultado final representado –, o espelho para os vivos, que são,

imediatamente, os espectadores. De modo que, nas palavras de A. J. Saraiva: “A vasta

História do homem, da origem à Redenção, que é o assunto dos vastos mistérios, encontra-se

reduzida nas moralidades à sua expressão mais puramente dialética”240

. Como na missa, que

235

Para uma análise breve de A divina comédia, como gênero literário e obra tipicamente medieval, ver: ZILES,

Urbano. A Divina comédia de Dante Aliguieri. In: STEIN, Ernildo; PIERPAULI, José Ricardo et al. (Orgs). A

cidade dos homens e a cidade de Deus. Porto Alegre: EST, 2007. p. 133-44. E, quanto à edição brasileira da

própria: ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Trad. pref. e notas de Hernani Donato. São Paulo: Círculo do

Livro, [s.d.]. 236

Conforme denominadas na Compilaçam de toda las obras de Gil Vicente (conjunto da obra de Gil Vicente,

reunidas num só volume pelo seu filho, Luís Vicente, em 1562): Barca do inferno (1516?), Barca do purgatório

(1518) e Barca da glória (1519). “A constatação de que a Trilogia das barcas é uma moralidade vicentina que

visa representar uma situação post-mortem pela qual, segundo a doutrina cristã, todos os homens passarão,

evidenciando o conjunto de forças opostas (Vícios e Virtudes) que regem a vida do ser humano, torna muito

clara sua unidade, bem como seu propósito edificante. [...] Esta unidade fica muito clara na primeira cena da

Barca da glória, quando o Diabo manda chamar a Morte e faz alusão às duas barcas que antecederam a esta.”

(VALLE, 2006, p. 25). 237

VALLE, 2006, p. 24. 238

VALLE, 2006, p. 16. 239

No elenco do Auto da barca do Inferno consta: um Fidalgo (um nobre); um Onzeneiro (banqueiro, agiota,

usuário – que cobra juros com usura, ou onzena); Joane, o Parvo (um pobre, moralmente inocente por sua

ignorância); um Sapateiro (ou “capateiro”, oficial mecânico); um Frade (sacerdote do baixo clero); Florença

(mulher do padre, umazinha qualquer); uma Alcoviteira (meretriz dona de meretrício); um Judeu (ímpio, por ser

usurário e concorde na condenação de Cristo); um Corregedor (juiz de pequena alçada); um Procurador (ofício

de magistrados); um Enforcado (condenado pelo direito positivo do Estado) e quatro Cavaleiros (heróis da fé

que lutaram na África, na Guerra Santa). Por se tratar de gênero inferior – com personagens inferiores –, cômico,

e por representar certos vícios morais, a primeira Barca não podia ser encenada na capela, onde se encenavam os

autos de devoção; poderia ser encenada na câmara da rainha enferma, ou ao venturoso D. Manuel, conforme

palavras do próprio Gil Vicente, no início da edição estabelecida por Jane Tutikian: “Auto de moralidade

composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha dona Lianor, nossa senhora,

e representado per seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei dom Manuel, primeiro de Portugal deste

nome.” (VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno. Introd. Notas e fixação de texto de Jane Tutikian. Porto

Alegre: L&PM, 2006. p. 21. [Col. L&PM Pocket, 463]). 240

SARAIVA, António José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. Lisboa: Livraria Bertrand, 1991. p. 53.

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238

tem a função de rememorar o sacrifício de Cristo, através da Eucaristia, principalmente, as

peças religiosas de Gil Vicente têm a função de apregoar as virtudes morais herdadas da

tradição cristã241

. Nisso tudo, e para efeito metodológico, o papel da memória, como já vimos

no primeiro capítulo, é de extrema importância. O que são os mistérios e as moralidades senão

o rememorar, de modo representacional, cênico, o alertar para o que, na ficção, pode vir a ser

na realidade post mortem? Aqui, no apelo final, da memória à memória, os três sentidos da

exegese bíblica da tradição cristã – o alegórico (ou tipológico), o tropológico (ou moral) e o

anagógico (ou escatológico) – se unem numa cartada final. Sim,

A prédica vicentina está relacionada ao propósito de reavivar a memória do

espectador, enfatizando a necessidade de se recordar a História Sagrada, na qual se

encontra a salvação humana. Somente a anamnese permitirá ao homem atingir a

plenitude da vida moral. É por isso que, no Breve sumário, já no exórdio feito pelo

anjo, tem-se que tal apresentação da “história de Deus” será realizada porque

“convém se lembrar”. No Auto da alma (1518), a protagonista – a Alma,

personagem alegórica, símbolo de cada ser humano – tem a memória como um dos

dons (potências) a ela concedidos por Deus. É através desta e do entendimento que

ela consegue restituir sua vontade e prosseguir no caminho que a guiará até a Igreja,

onde lhe serão servidas as iguarias que restituirão suas forças, sendo-lhe possível

alcançar a salvação242

.

Mais adiante, Valle acrescenta que:

Assim como em todas as obras de devoção de Gil Vicente, as três potências –

entendimento, vontade e memória – concedidas à Alma, no auto vicentino de mesmo

nome, se fazem presentes. É nítida a intenção do autor de reavivar a memória dos

espectadores, propiciando-lhes o entendimento daquilo que a tradição cristã, fundada

na interpretação das Escrituras, tem como verdadeiro e bom, e, conseqüentemente,

reavivando-lhes a vontade de participar da eternidade de Deus243

.

Numa das últimas falas de A barca do inferno, os quatro Cavaleiros – que são

aqueles que morreram na Cruzada, na guerra santa, pelejando por Cristo em terras africanas, e

que são santos – apelam à memória dos que assistem ao auto, entoando um cântico que diz:

– Senhores que trabalhais

241

“Desta forma, o Auto da barca do Inferno, ao representar tipos humanos considerados baixos, parece querer,

num primeiro momento, alertar para a necessidade urgente de se corrigirem os costumes de acordo com a

tradição cristã. [...] Há na Barca do Inferno, mais do que nas outras duas que formam a trilogia, uma ênfase do

sentido moral ou tropológico”. (VALLE, 2006, p. 31). “Diz-se que os anos 1517-1519 marcam o apogeu da

moralidade religiosa em Gil Vicente. É o período em que escreve a série das três barcas: do Inferno, da Glória e

do Paraíso. Ainda, assim, delas, a obra-prima é a primeira”. (TUTIKIAN, Jane. Introdução. In: VICENTE, Gil.

Auto da barca do inferno. Introd. Notas e fixação de texto de Jane Tutikian. Porto Alegre: L&PM, 2006. p. 10.

[Col. L&PM Pocket, 463]). 242

TUTIKIAN, 2006, p. 21. 243

TUTIKIAN, 2006, p. 27.

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239

póla vida transitória,

memória por Deus memória

deste temeroso cais!

À barca, à barca mortais

porém na vida perdida

se perde a barca da vida244

.

O apelo, à memória e à moral, destina-se aos vivos, e a História Sagrada – como

aparece na De civitate Dei – entrelaça-se com a história dos homens. A ficção sopra os ventos

do futuro, em que a Morte – personagem que não aparece, mas está inserida em todo o

contexto da Barca – reina como uma certeza entre os dois destinos eternos, representados nos

personagens do Diabo e do Anjo, e nas barcas que eles conduzem. O apelo à memória, como

numa epígrafe, será lembrado por Ramiro Guedes de Campos, em 1937, ao imaginar o

próprio Gil Vicente quando da sua morte e chegada à “Barca da Glória”:

Pela vida transitória

Transpassa o claror da fé

Se o riso vai em maré

A Deus por sua vitória.

Memória, ao mundo memória

Desta barca refulgente!

Entra. Embarca Gil Vicente

Na tua Barca da Glória!245

Aliás, no próprio epitáfio de Gil Vicente, de punho do próprio, se escreveria entre

ornamentos de colunas, flores, pássaros e ossos humanos, o lembrete final:

244

VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno. Org. por Ricardo Martins Valle. São Paulo: Hedra, 2006. p. 101

(105). No texto fixado por Jane Tutikian – com base no texto de António José Saraiva, de 1988, e que tem por

base a edição em cordel, de 1518, revista pelo próprio Gil Vicente –, consta: “Senhores que trabalhais / póla

vida transitória, / memória, por Deus, memória / deste temeroso cais! / À barca, à barca, mortais, / barca bem

guarnecida, / à barca, à barca da vida!” (TUTIKIAN, 2006, p. 69). E, no que diz respeito aos cavaleiros e à

maneira apoteótica que entram em cena, Tutikian afirma: “A chegada dos quatro Cavaleiros de Deus difere de

todas as demais. A exemplo do Frei Babriel, eles chegam cantando; entretanto, sua canção é de redenção e eles

não se aproximam da barca do Inferno. É o único momento do auto em que o Diabo, de fato, perde a ação. Eles

têm consciência de que aquele não é seu lugar e se dirigem à barca da Glória. Acontece que os cavaleiros que

morriam nas Cruzadas, a guerra santa, eram absolvidos de todos os seus pecados e tinham direito ao Paraíso em

virtude da „Bula da Cruzada‟, outorgada pelo papa”. (TUTIKIAN, 2006, p. 70-1). E, noutra parte, nota que “nem

o parvo nem os cavaleiros trazem nada da vida terrena. Isso porque os objetos que as demais personagens portam

consigo representam, simbolicamente, seus vícios e seus pecados e a continuidade da vida em pecado”

(TUTIKIAN, 2006, p. 11). Isso tudo, assim dito, lembra o que Agostinho, em In Epistolam Ioannis ad Parthos,

tractatus decem, ao comentar 1Jo 2,16-17, afirma: “Que preferes: Amar as coisas temporais e passar com o

tempo, ou desapegar-te do mundo e viver eternamente com Deus? O rio das coisas temporais arrasta; mas junto

ao rio ergueu-se uma árvore – nosso Senhor Jesus Cristo. [...] Estás sendo arrastado? Segura-te em Cristo. O

amor do mundo te envolve? Segura-te em Cristo. Por causa de ti, ele fez-se temporal, para que te tornasses

eterno”. (In Epist. Ioan., II, 10). AGOSTINHO, Santo. Comentário da primeira Epístola de São João. Trad.

org. introd. e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1989. (Col. Espiritualidade). 245

ASSUNÇÃO, Maria Emília Simões. A vida. In: Gil Vicente. Editorial Verbo, 1972. p. 21. (Col. Gigantes da

Literatura Universal, 4).

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240

Sepultura de Gil Vicente.

O gram juyzo esperando

jaço aqui nesta morada

tambem da vida cansada

descansando.

[...]

Preguntame quem fuy eu

atenta bem para mi

porque tal fuy coma ti

i tal has de ser comeu.

E pois tudo a isto vem

oo lector de meu conselho

tomame por teu espelho

olhame e olha te bem

A morte não é fim, conforme a tradição cristã; é passagem. Convém ao cristão, neste

mundo, como peregrino – como no “Prólogo” da Barca da Alma, em que Agostinho faz às

vezes do introductore –, enxergar na história humana as vestigia Dei, contemplando-as para

além de si mesmas, da História mesma; uma meta-História, ou o natural sendo (e servindo)

como simulacro para o antinatural, para o metafísico-sobrenatural. Tal visão tem, em si, o

apelo do túmulo, e é, a um só tempo, apelo da História (logo da memória) e da morte da

História Secular, que se dirige para a História Eterna – e essa teleologia, naturalmente, difere

daquela visão antiga, dos gregos; é outra novidade do/no cristianismo, da tradição cristã. E é

assim que, desde o século IV, atribui-se à História essa função moralizante246

. E, “com o

Cristianismo”, diz Valle,

este atributo tornou-se ainda mais evidente, instigando os cristãos a imitarem as

Virtudes das pessoas históricas narradas nas Escrituras, principalmente as de Cristo.

A partir do século IX, o termo História também designa as narrações da vida de

santos – as hagiografias. A vida excepcionalmente virtuosa das pessoas é

reconhecida e santificada pela Igreja, que vê como edificadora neste mundo da

Cidade Celeste247

.

O fato de, tanto os Cavaleiros quanto Joane, o Parvo248

, não trazerem nada consigo,

tem uma representação simbólico-franciscana muito marcante, enfatizando o valor do

246

Cf. HARTOG, François. A História de Homero a Santo Agostinho. Belo Horizonte: Editora da UFMG,

2001. p. 171, 183-85. Para o mesmo sentido: GUENÉE, Bernard. Qu‟est-ce que l‟histoire? In: _____. Histoire et

culture historique dans l’Occident Médiévale. Paris: Aubier, 1991. p. 27. (Collection Historique). Na

contracapa da edição da L&PM (2006), os editores afirmam que, “muito mais que uma sátira da sociedade

lisboeta em princípios do século 16, mais do que uma farsa ou um auto de moralidade (embora também o seja),

Auto da barca do inferno é um bem-humorado arrazoamento dos vícios que corroem o mundo e uma crítica –

infelizmente ainda válida – à organização da sociedade dos homens”. 247

VALLE, 2006, p. 23. (nota 17). 248

Personagem recorrente na obra vicentina e que, segundo alguns, representa o seu alter-ego; representa,

incontestavelmente, o mais humilde e o pobre, tiranizado e desprezado pela nobreza da época.

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241

desapego material. De influência humanista, Gil Vicente, principalmente através do Parvo, faz

sobressair certas críticas/sátiras religioso-sociais que, de tão próximos, são ecos de Erasmo de

Rotterdã249

. A simplicidade de vida – de inspiração franciscana –, às vezes confundida com a

ignorância intelectual, conserva, de uma interpretação mais alegórica, a “doutrina paulina” de

que “a letra mata e o espírito vivifica”250

. É por isso que o Parvo, antes da chegada apoteótica

dos quatro Cavaleiros vindos da Guerra Santa, é o único que entra na barca do Anjo, que lhe

diz:

Anjo – Tu, que queres?

Parvo – Quereis-me passar além?

Anjo – Quem és tu?

Parvo – Não sou ninguém.

Anjo – Tu passarás se quiseres

porque em todos teus fazeres

per malícia não erraste

tua simpreza te baste

pera gozar dos prazeres251

.

O Auto da barca do Inferno, portanto, vem engrossar os volumes de obras que têm a

intenção de manter a fé e a tradição da Igreja, conforme herdada da sua História, dos seus

santos e das Escrituras – segundo reza a mais comum tradição da hermenêutica católica –,

mas também, de modo mais particular, criticar os abusos do clero de da nobreza, alertando

para o termo comum e àquele destino que é divisado nas figuras do Diabo, do Anjo. A última

fala da Barca é justamente a do Anjo que, interrompendo o início de um diálogo que o Diabo

insinua com os Cavaleiros, diz:

Ó cavaleiros de Deus!

a vós estou esperando

que morrestes pelejando

por Cristo senhor dos céus,

sois livres de todo o mal,

249

“Note-se que não há, no geral, na criação dramática de Gil Vicente, o conflito de caracteres. Isso se deve ao

fato de se revelar muito mais como um teatro polêmico, um teatro de idéias (participando do debate de idéias que

agita a primeira metade do século 16, assumindo a forma de discussão teológica, coincidindo, em alguns pontos,

com a crítica reformadora de Erasmo (Elogio da Loucura, 1501), que critica não a fé, mas a Igreja, e revelando a

inspiração franciscana e a crença na ordem da natureza que obedece a leis constantes) – e como um teatro de

sátira social (desenvolvido através de uma imensa galeria de tipos que servem de instrumento para a condenação

de determinados padrões de comportamento e que servem também para desvendar e desmistificar o

funcionamento da sociedade da sua época)”. (TUTIKIAN, 2006, p. 12). 250

Conforme 2Co 3,6. 251

VICENTE, 2006, p. 70 (38). “Não sou ninguém”, é a resposta de Joane, que se assemelha àquela dada por

Ulisses ao gigante Polifemo, dos Cíclopes, no Livro IX da Odisséia, de Homero. Tanto um quanto o outro

conseguem êxito por assim se nomearem – um pela esperteza, outro pela simplicidade. Joane, na Barca, é o mais

humilde, o mais “ingênuo” e, no entanto, é o mais sábio – conforme as prerrogativas dos santos, segundo o

apóstolo São Paulo em 1Co 1,28-29.

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242

santos por certo sem falha

que quem morre em tal batalha

merece paz eternal252

.

Na Barca, mais do que uma defesa da guerra santa, as Cruzadas – que ficaram no

ideário popular como demonstração de amor à Igreja, à fé cristã e desapego à vida terrena253

, está o apelo à guerra moral do dia-a-dia, para que seja vivida em simplicidade cristã, como

sintetizada nas figuras de Joane e dos Cavaleiros. Os personagens, na barca do Anjo, precisam

ir adiante, assim também aqueles que lhos assistiam. O Anjo segue além; a Barca tem seu

termo.

3.6. A escola vicentina e os autos de Anchieta

Apesar de manter-se na tradição da moralidade cristã, o teatro vicentino, no Brasil

Colonial, não era lá tão bem visto. Embora sejam “raras as referências a representações

teatrais no Brasil, antes da primeira peça criada por Anchieta, [...] é certo que elas existiam

desde os primeiros tempos da colônia”, diz o jesuíta Armando Cardoso254

. De fato, conforme

o próprio Anchieta afirma, mencionando um auto encomendado por Nóbrega, que

empenhava-se “por impedir alguns abusos que se faziam com autos nas igrejas, [Nóbrega] fez

com [...] que deixassem de representar um que tinham, e mandou-lhes fazer outro por um

irmão, a que chamavam „Pregação Universal‟”255

. Trecho ao qual Cardoso faz as seguintes

considerações:

252

VICENTE, 2006, p. 102 (107). Na edição de Tutikian: “Ó cavaleiros de Deos, / a vós estou esperando, que

morrestes pelejando / por Cristo, senhor dos céus! / Sois livres de todo mal, / mártires da Madre Igreja, / que

quem morre em tal peleja / merece paz eternal” (TUTIKIAN, 2006, p. 70). Na indicação de cena, entre as falas

820-30, Gil Vicente, descrevendo a entrada dos Cavaleiros, diz: “Vem quatro cavaleiros cantando, os quais

trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento da Sua santa fé católica morreram em

poder dos mouros. Absolutos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem tem dos mistérios da Paixão

d‟Aquele por quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Igreja”.

(VICENTE, 2006, p. 68). 253

Com a queda de São João de Akko (Israel), em 1291, a Nona Cruzada (que alguns autores afirmam ser uma

continuidade da Oitava) marcou o fim das investidas dos imperadores cristãos e dos papas contra os mouros e

islâmicos. Mais sobre as Cruzadas e as motivações que lhas moviam, bem como a participação de Portugal nas

mesmas, ver: FLETCHER, Richard A. A cruz e o crescente: cristianismo e islã, de Maomé à Reforma. Trad. de

Andréa Rocha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. 254

CARDOSO, ARMANDO. Introdução. In: ANCHIETA, Pe. Joseph de. Teatro de Anchieta: originais

acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo Pe. Armando Cardoso, SJ. São Paulo: Loyola,

1977. v. 3. p. 49. (Obras completas do Padre Anchieta). 255

ANCHIETA. Cart., 476. ANCHIETA, Pe. Joseph de. Cartas de Anchieta – correspondência ativa e passiva.

Introd. Trad. e notas pelo Pe. Hélio Abranches Viotti, SJ. São Paulo: Loyola, 1984. v. 6. (Obras completas do

Padre Anchieta).

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Note-se a proposição inicial: “por impedir alguns abusos que se faziam com autos

nas igrejas”. O tom da frase parece supor comuns no Brasil de então a representação

de autos e o abuso de os exibirem em igrejas. Era de fato um abuso, e já vinha de

Portugal, a execução de tais peças no recinto sagrado, pois nem sempre os autos

eram de devoção, e estes, como divertimentos populares, apresentavam personagens

ou trechos menos convenientes à casa de Deus. Tal devia ser o que maiorias da

colônia, organizadores dos festejos públicos, propunham à representação numa

igreja dos Jesuítas256

.

A moral dos colonizadores, duvidosa, choca-se com o ideal pedagógico-catequético

dos Jesuítas. E o gosto popular, realçado pela fama do teatro vicentino, por meio de um

Afonso Álvares – “um dos muitos seguidores de Gil Vicente”257

–, por exemplo, é combatida

com o teatro da Igreja. Se Nóbrega encomendara um auto a “um irmão”, é do próprio punho

e do gênio de Anchieta que vêm os numerosos temas para as novas representações, os novos

autos, estes, sim, de acordo com a doutrina e a moral da Igreja, mas não livre das influências

dominantes258

.

Essa moral da Igreja Católica, combativa, em Anchieta, associa as idéias reformistas,

oriundas da Europa, à causa do Diabo; como no caso do Auto da Vila de Vitória ou S.

Maurício, escrito em 1595259

, a pedido da confraria de São Maurício, que tinha sede na Igreja

de São Tiago (Vila de Vitória do Espírito Santo). No referido auto, no Ato II, Satanás

conversa com Lúcifer, repreendendo-o por este querer sair, sozinho, a tentar São Maurício.

256

CARDOSO, 1977, p. 49. 257

CARDOSO, 1977, p. 49. “Falando-se de „autos‟ no Brasil do século XVI”, diz Cardoso, “quando em Portugal

Gil Vicente alcançara um ápice de popularidade jamais atingido por seus sucessores, é natural que se pense em

peças dele e de sua escola, que se espalharam enormemente entre o povo simples do reino e das colônias”

(CARDOSO, 1977, p. 49). De modo utilitário, os autos “são parte dos divertimentos populares de cunho

sagrado, instituídos pelos Jesuítas para educação cristã da colônia, tanto índia como portuguesa. Desde

Pernambuco até S. Vicente, o Visitador P. Cristovão de Gouveia SJ é recebido com festas, em que, ao lado de

atos religiosos e sãos divertimentos, figuram pequenas composições teatrais. Tal o diálogo da Ave Maria,

composto em Portugal pelo P. Álvaro Lobo SJ, historiador, [que], como tantos outros, militava na escola de Gil

Vicente, e sua peça chegara à Terra de Santa Cruz na bagagem de um jesuíta missionário, que a aproveitou na

festa do Visitador” (CARDOSO, 1977, p. 50). E no que toca ao Anjo e a Alma, personagens comuns de Gil

Vicente, e “realidade da doutrina católica, [serviram, no teatro de Anchieta] para familiarizar o índio com o

conceito de luta do bem contra o mal” (CARDOSO, 1977, p. 55). 258

Conforme CARDOSO, Pe. Armando. Introdução histórico-literária. In: ANCHIETA, Pe. Joseph de. Teatro

de Anchieta – Parte I: originais acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo Pe. Armando

Cardoso, SJ. São Paulo: Loyola, 1977. v. 3, p. 14. (Obras completas do Padre Anchieta): “O primeiro contato de

Anchieta com o teatro deu-se certamente em Coimbra. Estavam em voga os Autos de Gil Vicente e de sua

escola. Na própria Coimbra se tinham representado pela primeira vez, em 1527, três peças do Mestre Gil. [...]

Antes da edição complexiva das obras de Gil Vicente em 1562, vários de seus Autos foram impressos em

separado e espalhados por toda a parte, como a Barca do Inferno em 1517 ou 18, o da História de Deus em 1527,

o da Mofina Mendes em 1534. É impossível Anchieta não os ter conhecido e admirado: métrica, prosódia e

muitas idéias de seus Autos são semelhantes às do grande Mestre.” 259

Na ocasião da apresentação desse auto, conforme consta, “S. Maurício, tribuno da Legião Tebana, martirizada

toda em Agaunum, na atual Suíça (Saint Maurice), cerca do ano 287, por Maximiano, era venerado com seus

companheiros na Igreja de S. Tiago de Vitória, por causa de suas relíquias, entre as quais figurava como mais

insigne, a cabeça do seu herói principal: este era invocado como protetor contra a epidemia e a seca”

(CARDOSO, 1977, p. 286).

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Declarando-se “fiel servo” e “melhor amigo” de Lúcifer, Satanás aponta outros amigos a este,

os quais podem auxiliá-lo na luta contra o santo mártir. O texto, redigido em português e

castelhano, é como segue:

Mau mês e piores anos

Deus te dê no fresco inferno!

Acrescentem-se teus danos

nesses banhos soberanos

do teu fogo sempiterno!

Onde irás,

sem levar a Satanás,

teu fiel servo contigo?

Tens outro melhor amigo?

Eu te dou a Barrabás

e com Judas te maldigo!

Com Maforma e com Lutero,

com Calvino e Melentão,

te cubra tal maldição

que te queimes, bem o quero,

ardendo como tição!260

Os dois personagens do Evangelho, um que foi solto no lugar de Cristo e o outro que

o traiu, precedem a Lutero, Calvino e Melanchton – jocosamente apelidado de “Melentão” –,

cabeças da Reforma Protestante – detratada como “Maforma” (há quem acredite que, na

verdade, a “Maforma”, aí, se trata de uma referência a Maomé). Os dois primeiros, feitos

inimigos de Cristo, juntam-se aos outros três que, feitos amigos de Satanás/Lúcifer (que

Anchieta faz distinção), tornam-se inimigos da Igreja.

Além da doutrinação do índio, principalmente por meio dos autos, Anchieta redigiu

um Catecismo Brasílico, onde expõe, nas línguas tupi e portuguesa, as doutrinas centrais da fé

católico-cristã. Quando fala das “Potências da alma”, faz eco ao ensino agostiniano, dizendo

que “Três sobre as coisas potências da alma da gente: 1. Memória das coisas; 2. Inteligência

delas; 3. Vontade delas”261

. Memoria, Intellectus, Voluntas. E quando fala das virtudes

teologais, as “Três virtudes que falam de Deus” (Mosapýr tekókatú Tupã mombeguába),

rememora: “1. Fé (crer em Deus); 2. esperança (esperar em Deus); 3. Caridade (amar a

260

ANCHIETA, Pe. Joseph de. Auto da Vila de Vitória ou S. Maurício. In: _____. Teatro de Anchieta – Parte

I: originais acompanhados de tradução versificada, introdução e notas pelo Pe. Armando Cardoso, SJ. São Paulo:

Loyola, 1977. v. 3, p. 289-90. (Obras completas do Padre Anchieta). 261

DC, p. 8-8v: “Mosapýr mbaé resé asé ánga ékatuába: 1. Mbaé resé imaeduasába; 2. Itekókuapába; 3. Imbaé

potasába.” ANCHIETA, Pe. Joseph de. Doutrina cristã: Tomo 1: Catecismo brasílico. Introd. Trad. e notas do

Pe. Armando Cardoso, SJ. São Paulo: Loyola / Em convênio com a Vice-Postulação da Causa de Canonização

do Beato José de Anchieta, 1992. v. 10, p. 152. (Obras completas do Padre Anchieta).

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245

Deus)”262

, fazendo-as precederem a nomeação dos “Sete dons do Espírito Santo: 1. Sabedoria

(segundo a vontade de Deus saber as coisas); 2. Entendimento; 3. Conselho (segundo a

doutrina de Deus declarar as coisas); 4. Fortaleza (na comida); 5. Ciência (saber coisas); 6.

Compaixão dos outros; 7. Honrar ou amar a Deus”263

. No Catecismo de Anchieta – que é

onde também se encontra a sua doutrina –, quando responde às perguntas: “Quem é o regedor

da Igreja?”, e: “De que maneira [o Regedor rege]?”, encontram-se as respostas: “Deus

Espírito Santo”, e: “Ensinando-lhes interiormente o que há de crer e obrar”264

. Até 1584,

Anchieta dá conta de nada menos que cem mil índios batizados265

.

Também o Pai-nosso, na Doutrina cristã, de Anchieta, segue o modelo agostiniano e,

naturalmente, se divide em sete petições, expostas em tupi e português, uma ao lado da

outra266

. Nos 22 sermões – apenas dois são completos – e fragmentos que sobraram de suas

prédicas, encontram-se nada menos que 10 referências, algumas indiretas, à doutrina de

Agostinho, e apenas 01 a Tomás de Aquino, de modo indireto.

Na oratória sacra da colônia, abundam as referências a Agostinho, como autoridade

na fé e na razão, servindo como confirmador daquilo que se deseja crido, crível. Os modelos,

repletos de refinada oratória, são retratos do tempo. Os discursos vieirianos, por exemplo,

nadam mais são do que retratos da época, e mostram a “maneira jesuítico-barroca de ver o

mundo, [...] sem a predestinação, doutrina tão cara à corrente jansenista que os jesuítas

combatiam”267

, diz Domingues, acrescentando que: “O discurso de Vieira tem como fontes

principais a Bíblia e os Padres da Igreja. [E] como fontes secundárias, a liturgia, a hagiografia

e o Livro dos exercícios espirituais de Santo Inácio”268

.

262

ANCHIETA, 1992, p. 152: “1. Tupã rerobiára. / 2. Tupã resé jerobiára. / 3. Tupã rausúba.” (DC2, p. 7 v-8). 263

ANCHIETA, 1992, p. 153: “Sete Tupã Espírito Santo remimeénga: / 1. Tupã remimotára rupí mbaé kuába. /

2. Tekókuába. / 3. Tupã omotekókuapába rupí mbaé mombeú. / 4. Miúatã. / 5. Mbaé kuába. / 6. Morausubára. /

7. Tupã moabaeté.” (DC2, p. 8). 264

VIOTTI, Pe. Hélio Abranches. Introdução geral. In: ANCHIETA, Pe. Joseph de. Sermões. Pesquisa, Introd. e

notas do Pe. Hélio Abranches Viotti, SJ. São Paulo: Loyola / Em convênio com a Vice-Postulação da Causa de

Canonização do Beato José de Anchieta, 1987. v. 7, p. 18. (Obras completas do Padre Anchieta). Na nota nº 01,

na pág. 87 da referida obra, talvez por distração, o Pe. Viotti, referenciando certa passagem de Anchieta,

relaciona-a a Agostinho, creditando a doutrina (sobre a origem do mal) a Tomás de Aquino: “O mal”, diz ele, “é

carência do bem. Não existe de per si, nem foi criado por Deus. Santo Tomás”. 265

Cf. VIOTTI, 1987, p. 8. (Intrd. Geral). 266

Texto fax-similar: APGSI n. 29, ms. 1730 (DC, p. 43-9), em: ANCHIETA, Pe. Joseph de. Doutrina cristã. In:

_____. Diálogo da fé. Introdução histórico-literária e notas do Pe. Armando Cardoso, SJ. São Paulo: Loyola /

Em convênio com a Vice-Postulação da Causa de Canonização do Beato José de Anchieta, 1988. v. 8, p. 219-

324. (Obras completas do Padre Anchieta). (Edição bilíngüe). 267

DOMINGUES, Thereza da Conceição Aparecida. O múltiplo Vieira: estudo dos sermões indigenistas. São

Paulo: Annablume, 2001. p. 62. (Col. Literatura: Selo Universitário, 174). 268

DOMINGUES, 2001, p. 63. “Sendo plurívoco, polêmico, popular e místico, Vieira assume o discurso de sua

época. Há perfeita convivência dos opostos: o espírito culto e o popular; o racional e o místico; o monarquista e

o libertário; o brasileiro e o português. Nele sobrenatural e natural não se excluem, pois o sobrenatural é a

dilatação do natural”. (DOMINGUES, 2001, p. 63). Afrânio Coutunho diz “que, muito menos que à retórica

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246

No mesmo período, embora menos conhecidos, podem ser alistados os nomes de

padres pregadores como: Antônio de Sá (1627-1678), Eusébio de Matos (1629-1692) – este,

em 1677, deixou a Companhia para tornar-se carmelita –; Manuel do Couto Júnior, SJ. (1573-

1639). Noutros jesuítas dos séculos XVII e XVIII, a lembrança do nome de Agostinho é

frequente. Dentre os muitos nomes, lembramos de: Francisco de Matos (1632-1720); Mateus

de Moura (1639-1728); Jorge Benci, já mencionado; Ângelo dos Reis (1664-1723); Félix

Xavier (1695-1770); Manuel Xavier Ribeiro (1713-1780); Simão Marques (1684-1767);

Valentim Mendes (1589-1767). Digno de menção ainda são os nomes dos beneditinos

Ruperto de Jesus (1644-1708) e Gaspar da Madre de Deus (1715-1800), e dos freis

franciscanos Manuel de Santa Maria Itaparica (n. 1704) e Antônio de Santa Úrsula Rodovalho

(m. 1817); só para citar alguns.

São homens que seguem o modelo dos séculos que lhes antecedem. Nos sécs. XIII e

XIV, na Europa, “para nos atermos tão-somente a dados quantitativos”, como diz De Boni,

“observamos que, desde Alexandre de Hales até Ockham, isto é, no período áureo da

universidade medieval, sem exceção, o Filósofo disputa com Agostinho a primazia no número

de citações”269

, como já vimos. No Brasil colonial, como se vê, a tradição secular foi mantida.

Um levantamento numérico das referências a Agostinho, feitas pelos evangelizadores

da América Latina, vai sempre denunciar a empatia dos teólogos, filósofos e pregadores pelo

nome do Bispo de Hipona; o que não é nenhuma novidade. Quando o Pe. Luiz Cechinato faz

uma lista dos “mais famosos „Padres da Igreja‟”, é a Agostinho que ele qualifica como “o

maior de todos”270

, e os pregadores de todos os tempos sempre souberam disso, unânimes. No

escrito De unico vocationis modo omnium gentium ad veram religionem, redigido entre 1533

e 1534, e que é considerado o primeiro escrito do frei Bartolomé de Las Casas (1544-1547),

na Guatemala, no México, encontramos 10 referências ao nome de São João Crisóstomo, 3 a

Anselmo, 1 a Jerônimo, 2 a Atanásio, 1 a Ambrósio, 2 a Cícero, 2 a Aristóteles, 1 a Alberico,

ciceroniana e clássica, foi no contato dos doutrinadores e dos modelos de baixa latinidade – os romanos da fase

argêntea e os cristãos dos primeiros tempos da Igreja, que Vieira foi tomar gosto literário. [...] Por último, não

estará longe de encontrar-se naquele clima mental, isto é, na filosofia e na estética neo-platônica, a origem de

suas preocupações proféticas e messiânicas, aliás, muito em voga no tempo” (COUTINHO, Afrânio. Aspectos

da literatura barroca. Rio de Janeiro: A Noite, 1950. p. 120). No mesmo sentido: CANTEL, Raymond. Les

sermons de Vieira: étude du style. Paris: Ed. Hispano-Americanas, 1959. 269

DE BONI, 2004, p. 542. 270

CECHINATO, Luiz. Os 20 séculos de caminhada da Igreja: principais acontecimentos da cristandade,

desde os tempos de Jesus até João Paulo II. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 96.

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247

1 a Bartolo, 3 a Baldo, 10 a Maomé e 2 a Agostinho271

– a doutrina de Las Casas, sem destoar

da do Hiponense, dá-se em favor dos índios e em combate ao islamismo.

No De único, a referência a Agostinho aparece numa citação que, de ordem moral, se

insere no conjunto do escrito: uma defesa contra a escravidão dos índios. Isso assim, em

números, diz muito acerca da teologia libertadora de Las Casas entre os latinos272

. Outro autor

que se impôs contra a escravidão dos índios, também usando o pensamento e a obra de

Agostinho, foi Francisco de Vitoria (1483-1546) – que fundadou a escola de Salamanca e

passou à História como pineiro do Direito Internacional e do Direito das Gentes273

–,

contemporâneo de Las Casas. No De único, de Las Casas, não é estranho que não apareça

uma única referência a Tomás de Aquino, pois que, nesse particular, referente à escravidão, o

Aquinate, com base em Aristóteles, parece também sugerir uma phýsei doulós274

– o que não

ocorrera na Antiguidade Tardia (que é onde encontramos Agostinho) e nem na chamada

primeira Idade Média, e isso assim até o século XIII, ficando a doutrina da phýsei doulós no

esquecimento por quase quinze séculos275

.

O descrédito e o esquecimento em que cai o pensamento político aristotélico se deve

também à hostilidade dos Padres da Igreja, para os quais Aristóteles havia negado

271

Evitamos, de propósito, as referências aos autores bíblicos, que abundam no referido documento – com

especial destaque para as cartas de São Paulo. Com relação ao texto, ver: LAS CASAS, Bartolomeu de. Do

único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião... In: SUESS, Paulo. (Org.). A conquista espiritual da

América Espanhola: 200 documentos: século XVI. Petrópolis: Vozes, 1992. p. 485-498. 272

Mais sobre o trabalho de Las Casas, ver: DEIROS, 1992, p. 280-85; BIDEGÁIN, Ana María. História dos

cristãos na América Latina. Trad. de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993. v. 1, p. 75-8. 273

Principalemente em De indis et de jure belli relectiones e De iure belli (ou De indis, pars posterior), de 1539;

e em De potestate civili (1528). Na De indis, por exemplo, quando pergunta se “é lícito aos cristãos fazerem o

serviço militar e a guerra”, diz que, sim, mas por uma causa justa: “Esta conclusão”, diz ele, mostrando conhecer

bem a obra do Hiponense, “nos é oferecida por Agostinho em muitas passagens de suas obras. Com efeito, trata

desta questão em Contra Faustum (XXII, 74-75), no livro das 83 Quaestiones (De diversis quaestionibus,

LXXXIII, questão 31, 1), no De Verbis Domini (Sermo 82, 1), no segundo livro Contra Maniqueu (Contra

Faustum Manichaeum, XXII, 74), no sermão De Puero Centurionis (Ad Marcellinun, epistola 138) e na carta Ad

Bonifacium (Epistola ad Bonifacium, 4) faz um brilhante desenvolvimento dela.” (De indis, primeira questão).

Mais adiante, Vitoria, depois de alguns argumentos, diz que “isso se prova, como digo, pela autoridade de

Agostinho”, etc. (VITORIA, Francisco de. Os índios e o direito da guerra (De indis et de jure belli

relectiones). Trad. de Ciro Mioranza. Ijuí: Editora Unijuí, 2006. p. 116-7. [Col. Clássicos do direito

internacional]). 274

Vários são os textos de Aristóteles, na Política, que tratam sobre a “escravidão natural”; os mais elucidativos:

Pol., I, 5, 1254a 21-24; 1254a 14-18; 1254b 15-20, etc. Luiz Alberto De Boni sugere que, numa leitura das

obras dos franciscanos João Peckham, Pedro de João Olive ou Boaventura, aí pelo século XIII, nota-se um

posicionamento em defesa da fé cristã contra as heresias dos averroístas e aristotélicos, e “percebe-se que lhes

parecia suspeita até mesmo a posição de Tomás de Aquino, que também se engajara contra os averroístas” (DE

BONI, 2004, p. 542). 275

De fato, conforme Jean Aubonnet: “Durant quinze cent ans (IV s. av. J.C. – XIII s. ap. J.C.) la Politique

semble être restée ignorée, ou n‟avoir connu qu‟un diffusion limitée, même en Orient, comme le font supposer

certains índices. Aprés Cicéron, chez qui il y a quelques références aux théses de la Politique, on ne trouve plus

guére de traces de l‟ouvrage d‟Aristote” (AUBONNET, J. Le destin de l‟æuvre: la Politique dans l‟histoire dês

idées. In: ARISTOTE. Politique. Texte etabli et traduit para Jean Aubonnet. Paris: Les Belles Lettres, 1991. v. 1,

p. CXLVI.

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248

dogmas fundamentais da religião, tais como a providência divina, a imortalidade da

alma, a criação do mundo, e havia oferecido uma série de argumentos dialéticos aos

defensores das heresias276

.

Mesmo antes da grande influência que os Padres da Igreja viriam a exercer,

afirmando que, na nova fraternidade universal da doctrina christiana, não havia distinção

entre “bárbaros e gregos, judeus e romanos, escravos e livres”277

, os filósofos da escola de

Epicuro e da stoa já haviam difundido com muito sucesso o igualitarismo cosmopolita, fruto

da crise da polis grega, ramificada nas conquistas de Alexandre, o Grande, e na constituição

da cosmópolis helenístico-romana. E embora o cristianismo polemize com epicureus e

estóicos, se identifica profundamente com o seu igualitarismo e cosmopolitismo278

. Mas isso

não significou um posicionamento dos cristãos ou dos estóicos contra a escravidão ou a

phýsei doulós aristotélica, aliás, a temática sequer fora mencionada em seus textos279

.

3.7. A questão dos escravos: “Sem os quais no Brasil não se pode passar”

Tratar da moralidade cristã no Brasil colonial e evitar a embaraçosa questão da

escravidão de índios (aqui achados) e africanos (para cá trazidos) é, no mínimo, uma

imoralidade. A Igreja Católica brasileira, em sua marcha histórica, inicialmente reproduzia o

modelo lusitano-medieval, de onde vinha a maior parte dos seus religiosos; depois,

adequando-se ao modelo colonial e do colonizador, optou por um serviço preservacionista –

tendo em vista, principalmente, a ameaça protestante e a sua própria permanência enquanto

instituição “a serviço de”... termo que, muitas vezes, tornou-se confuso – e, o tanto que pôde,

defendeu os índios, mas sem a força suficiente que impedisse a dizimação de povos inteiros.

276

TOSI, Giuseppe. Aristóteles e os índios: a recepção da teoria aristotélica da escravidão natural entre a Idade

Média Tardia e a Idade Moderna. In: BONI, Luiz A.; PICH, Roberto H. (orgs.). A recepção do pensamento

greco-romano, árabe e judaico pelo Ocidente Medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 764-5. (Col.

Filosofia, 171). Ver ainda, para a mesma constatação: AUBONNET. 1991, p. CXLVI. 277

Cl., 3, 11. 278

“Será sobretudo o estoicismo a marcar uma ruptura com a cidade antiga, propondo como modelo de uma

nova cidade a comunidade civil do mundo, composta pelos deuses e pelos homens e regida pela mesma lei

natural entendida como lógos ou razão divina. Nesta cosmópolis, onde tudo está subordinado ao bem superior do

universo, os escravos e os bárbaros são considerados livres e iguais enquanto homens unidos entre eles pelo

princípio do amor (phylía). Uma conseqüência do universalismo estóico é que a reta razão (orthós lógos) está

presente em todos os homens e comanda a todos eles de fazer o bem e evitar o mal.” (TOSI, 2004, p. 765).

Tertuliano é um dos poucos, dos que se tem notícia, a cristicar duramente essa relativa aceitação de certas

doutrinas estóicas, mesmo quando concordes com a Escritura – logo, para ele, desnecessárias. “Nossa escola”,

diz, “é a do pórtico de Salomão, que ensinou que se havia de buscar ao Senhor com simplicidade de coração.

Não como esses que têm saído com um cristianismo estóico, platônico ou dialético. Não necessitamos da

curiosidade, uma vez que Jesus cristo veio, não temos que investigar depois do Evangelho. Cremos, e não há

nada que devamos crer mais do que o objeto da fé” (De praescriptione, 7, 1s). 279

Cf. GARNSEY, Peter. Ideas of slavery from Aristotle to Augustine. Cambridge: Cambridge University

Press, 1996. p. 1.

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249

Os afros, nesse processo todo, tornaram-se uma questão secundária, pelo fato de que “sem os

quais no Brasil não se pode passar” (conforme consta em um documento datado de 15 de abril

de 1797, assinado pelo frei Rosendo de Porciúncula), dada a necessidade da mão-de-obra

pesada nas plantações (plantage), na criação de gado e no trabalho doméstico. É preciso dizer,

por uma honestidade histórica, que havia diferença entre o serviço pesado de plantage

(principalmente no Nordeste, com a cana de açúcar, e em Minas, com o café) e outros

serviços mais “leves”, como o da criação de gado ou o trabalho doméstico (Rio Grande do Sul

e Ceará, por exemplos). Assomado a isso, pode-se também pensar na mentalidade comum da

época, na “naturalidade” que era ter/possuir escravos280

. Em O Apóstolo, semanário de

orientação católica publicado no Rio de Janeiro, até 1887, conforme dito por Evaristo Morais,

“nunca se manifestara simpaticamente à agitação libertadora”281

.

A postura da Igreja Católica no Brasil, desde a Colônia – é isso se deu até mesmo

pela situação histórica –, era de conservadora e fechada às críticas. Ao estabelecer mediações

ideológicas e teológicas entre o problema dos escravos e sua posição perante o mesmo,

acomodava-se às posições já tomadas, por necessidade282

e por um desvio teológico-

280

O “modelo brasileiro” é espelho do que se deu por toda a América Latina e Caribe. “A Igreja e seus

representantes que se estabeleceram durante o século XVI nas ilhas do Caribe, e no resto da Ibero-América, não

questionaram a instituição da escravidão. A Igreja dependia da escravidão; escravos trabalhavam no serviço

doméstico para os clérigos, na construção de catedrais e das igrejas conventuais e nas terras dos conventos. Neste

contexto, os membros do clero não podiam imaginar o funcionamento estrutural das colônias espanholas sem os

escravos africanos.” (LAMPE, Armando. História do cristianismo no Caribe. Trad. de Lúcia Matilde Endlich

Orth. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Cehila, 1995. p. 64. [Col. Cehila]). Mais adiante, Lampe acrescenta: “Desde

a expansão colonialista européia no Caribe a partir de 1492, um importante fundamento da empresa colonial era

a religião cristã. Para a grande maioria dos missionários, católicos e protestantes, que chegaram ao Caribe, não

havia contradição entre evagelização e colonização. Consideravam os africanos e indígenas, e seus descendentes,

como bárbaros que tinham de ser cristianizados. Pregar o evangelho significava ao mesmo tempo impor a cultura

ocidental.” (LAMPE, 1995. p. 99). 281

MORAIS (MORAIS, Evaristo de. A Campanha Abolicionista. Rio de janeiro: Livraria Editora Leite

Ribeiro, 1934) apud MOURA, Clóvis. Igreja Católica e a escravidão. In: _____. Dicionário da escravidão

negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 197. Depois de tal data, e acatando

o decreto Real, Morais, conforme citado por Moura, afirma que o periódico “desculpava-se, excessivamente, da

antiga indiferença, dizendo ter, antes, encarado a questão sobre outro prisma” (MOURA, 2004, p. 197). 282

“Ao defender a produção de açúcar, a Igreja se comprometia inevitavelmente a defender a escravidão. Foi o

que manifestaram os bispos e outros membros do clero durante o século XVI. Não puderam promover uma luta

contra a escravidão, já que muitas das instituições da Igreja possuíam escravos e se aproveitavam da força de

trabalho dos mesmos. Todos, como os demais, aceitavam o sistema escravista onde os negros escravos eram

considerados como não-pessoa”. (LAMPE, 1995. p. 65). Também nesse sentido, diz José Oscar Beozzo: “[...]

não é suficiente abrir um capítulo sobre a questão da escravidão negra na História da Igreja de países como o

Brasil, mas seria necessário, partindo da absoluta centralidade do escravo negro para o funcionamento do sistema

colonial, reler toda a História da Igreja a partir desse ponto focal. Isto permitiria ainda enfatizar a importância

fundamental que adquire no sistema escravista a relação entre senhores e escravos, classes opostos e entrelaçadas

no mesmo destino, e o papel que desempenha a Igreja, ela própria escravista e participando a fundo do sistema

com fazendas, engenhos, navios, com numerosa escravaria produtiva e doméstica nos conventos, sés episcopais,

recolhimentos e casas paroquiais. Dessa prática escravista da Igreja dento de um sistema totalmente apoiado na

escravidão, vão resultar não apenas um engajamento concreto, acomodado às circunstâncias, mas a necessidade

de um suporte teórico, de uma verdadeira teologia da escravidão, de uma moral escravista, de uma catequese

impregnada da ideologia escravocrata e de uma estrutura sacramental daí derivada.” (BEOZZO, José Oscar. As

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psicológico-situacional, a exemplo do que dizia o padre Loureto Couto, afirmando que Deus

agia “com misericórdia ao permitir que os negros fossem escravizados, porque assim eles

tinham acesso ao evangelho, vindo ao encontro dele”. Mas a Igreja Reformada, no Nordeste

do Brasil, principalmente durante o “período holandês”, na questão da escravidão, também

não foi modelar283

; e como foram na Espanha e no Caribe, também aí os holandeses e

franceses – boa parte deles de orientação protestante – foram responsáveis pelo tráfico de um

enorme contigente de escravos trazidos da África. Aí também, como ocorreu no Brasil, os

escravos africanos ficaram em segundo plano na agenda de evangelização, tanta da Igreja

Católica quanto da Igreja Reformada284

.

Somente no final da ocupação holandesa é que os holandeses, executando dívidas de

senhores de engenho, entraram no processo de produção de açúcar, sendo que, até então,

mantinham-se como financiadores e compradores do produto. Conforme o testemunho

histórico, a escravidão de plantage se comporta sempre da mesma forma. E é aí que podemos

encontrar o virtuoso Nassau, em interesse da Compahia Neerlandesa das Índias Ocidentais

(WIC), sendo tão escravocrata quanto os portugueses. Sabendo que a oferta abundante de

escravos africanos era de fundamental importância para a WIC e, também, para a produção de

açúcar, em 1637 ele enviou o coronel Hans Koin como chefe da expedição naval que

conquistaria o Forte de São Jorge da Mina (28 de agosto), na África, a fim de garantir o

tráfico. Pouco depois, em 1638, tentou ocupar a Bahia, mas não conseguiu se firmar naquelas

terras. Entretanto, a malfadada expedição tornou-se bastante rentável, graças à pilhagem do

Recôncavo e ao apresamento de boa quantidade de escravos que foram, depois, vendidos, em

Recife. Dois anos mais tarde, em 1640, lançou-se Nassau à conquista de Angola. A armada

Américas negras e a História da Igreja: questões metodológicas. In: CEHILA. Escravidão negra e História da

Igreja na América Latina e no Caribe. Trad. de Luiz Carlos Nishiura. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 61). 283

“Por vezes se ouve dizer que a colonização holandesa foi „melhor‟ que a ibérica. A „lenda negra‟ que se criou

em torno dos comportamentos dos conquistadores espanhóis corrobora essa idéia. Na realidade, o escravismo foi

igual em todas as partes, só mudou de aparência, não de sentido. Como observou Joaquim Nabuco, a respeito do

nordeste brasileiro, a „brandura dos senhores‟ correspondia à „resignação dos escravos‟. Onde os escravos eram

resignados, o senhor branco podia se dar ao luxo de se mostrar brando e inclusive magnânimo. Há muito jogo de

cintura em tudo isso: a „conversa mole‟ do senhor tentava ignorar a tática do „corpo mole‟ usada pelo escravo.

Uma gravura holandesa mostra o senhor branco rodeado de mulheres negras e com a numerosa prole que ele

teve com elas, meninos brancos misturados com negros, em Suriname. [...] Outra gravura apresenta de forma

bem realista um leilão de escravos, também em Suriname. São situações idênticas às que encontramos por toda

parte onde vigorou o escravismo colonial, seja na América do Norte, no Caribe, ou no Brasil.” (HOORNAERT,

Eduardo. História do cristianismo na América Latina e no Caribe. São Paulo: Paulus, 1994. p. 261-62). 284

“Após o desmoronamento da hegemonia espanhola no Caribe, surgiu no século XVII um Caribe fragmentado

em diversas colônias. O tráfico de escravos da África conheceu seu auge nestes séculos XVII e XVIII. O

protestantismo penetrou nesse período no Caribe inglês e holandês. Apesar de já estar presente no Caribe desde o

século XII, foi entretanto necessário esperar até o final do século XVIII e especialmente o século XIX para que o

protestantismo penetrasse na população negra. A Igreja protestante e a Igreja Reformada, as mais antigas no

Caribe, não se dedicaram ao trabalho missionário entre os escravos.” (LAMPE, 1995. p. 72).

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251

que para lá enviou chegou a tomar Luanda. De Angola se exportavam anualmente 15 mil

escravos, dos quais 10 mil para as minas e fazendas da América Espanhola e cinco mil para o

Brasil. Esse tráfico era avaliado em 6 milhões de florins, dos quais 1 milhão apenas em

impostos.

Não sendo rico nem em ouro e nem em prata (as ilhas das Antilhas), a produção do

açúcar foi a riqueza que a Espanha e as nações da Europa explorou no Caribe; e, para tal,

necessitou-se de mão-de-obra escrava (índios e negros). Os holandeses e franceses foram os

principais traficantes de escravos para o Caribe, havendo, em 1612, rompido o monopólio do

comércio internacional de escravos africanos, que até então pertencia aos portugueses.

“Durante a ocupação holandesa do Nordeste do Brasil, eles desempenharam o papel

dominante no transporte de escravos para a América”285

.

Também os calvinistas, no extremo-sul da África, dão exemplos do sistema

escravocrata, grosso modo, tão comum à época286

. Conforme consta, em 6 de abril de 1652 –

portanto, não muito após a volta de Nassau para a Holanda – Jan van Riebeek (1619-1677), da

WIC, iniciou a colonização holandesa da região e fundou a cidade do Cabo287

. Durante os

séculos XVII e XVIII, a colônia do Cabo presenciou a chegada e a instalação de calvinistas,

principalmente dos Países Baixos, mas também de outros países da Europa, e da França, em

especial. Esses calvinistas não conseguiram disciplinar os nativos para as suas atividades

agrícolas e, por isso, começaram a importar escravos da Indinésia, de Madagascar e da Índia,

escravos esses que chegaram a constituir mais da metade da população da colônia288

.

285

LAMPE, 1995, p. 67. 286

Tão comum que, mesmo alforriados, a exemplo do revolucionário François-Dominique Toussaint Louverture

(1743-1803), possuíam escravos. Toussaint-Louverture foi um cocheiro que encabeçou uma grande revolta negra

em São Domingos, a Revolução haitiana (1791-1804). “Como homens de seu tempo”, diz Olivier Pétrè-

Grenouilleau, “os escravos ainda não tinham tido a chance de imaginar uma sociedade sem escravidão”.

(PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, Olivier. A história da escravidão. Trad. de Mariana Echalar. São Paulo:

Boitempo, 2009. p. 37). Mais, neste sentido: SCHENKE, Karl L. Diário da África. Porto Alegre: EDIPUCRS,

2009. 287

KIRBY, Robert. (Org.). The secret letters of Jan van Riebeeck. London / England: Penguin Books, 1992.

HUNT, John; CAMPBELL, Heather-Ann. Dutch South Africa: early settlers at the Cape, 1652-1708. Leicester:

Matador, 2005. 288

Séculos depois, em 1911, agora numa colônia inglesa na África do Sul, ainda valia a “Lei da Igreja

Reformada Holandesa” (“The Dutch Reformed Church Act”), proibindo os negros de se tornarem membros com

plenos direitos naquela igreja. No Brasil, conforme historiado por Schalkwijk, “A atenção missionária voltou-se,

em segundo lugar, para os africanos. Embora muito pouco pouco se fez por esse grupo, desde o início até o fim

da ocupação holandesa, foram recebidos na Igreja Cristã Reformada. Parece que os primeiros africanos foram

„recebidos‟, pelo partor Johannes Baers, no início da ocupação holandesa, porque diz em seu panfleto Olinda, de

1630, que no culto da Igreja da Sé de Olinda „muitos pretos e pretas... escutavam humildemente, e eram também

(assim dizia-se) batizados‟. Mas o rev. Baers não os havia batizado, e sim queria enfatizar que esses africanos já

podiam ser considerados quase como membros da Igreja Reformada.” (SCHALKWIJK, 1989, p. 222).

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A questão dos afrros no Brasil é uma questão moral par excellence na história da

moral cristã, seja entre os católicos289

ou entre os protestantes290

. Mas é devido ao domínio

maior do catolicismo que, naturalmente, a questão se lhes pesa mais: nas críticas dos autores

que examinam o problema, a exemplo do que Beozzo aponta:

É esse comprometimento teórico-prático com o sistema escravocrata que tornará tão

difícil à Igreja do Brasil qualquer participação mais consequente nas lutas pelo fim

do tráfico negreiro e pela abolição da escravatura, como bem notou Joaquim

Nabuco: “Nem os bispos nem os vigários, nem os confessores, estranham o mercado

de entes humanos... Dois dos nossos prelados (dom Vital, do Recife, e dom Macedo

Costa, de Belém) foram sentenciados à prisão com trabalho, pela guerra que

moveram à maçonaria; nenhum deles, porém, aceitou a responsabilidade de

descontentar a escravidão”. Acrescenta ainda Nabuco: “Grande número de padres

possuem escravos, sem que o celibato clerical os proíba. Esse contato, ou antes

contágio, da escravidão deu à religião, entre nós, o caráter materialista que ela tem,

destruiu-lhe a face ideal, e tirou-lhe toda a possibilidade de desempenhar na vida

social do país o papel de uma força consciente”291

.

Sempre relegados a um segundo plano, principalmente em relação aos índios (que

também foram escravizados292

), os escravos africanos são, no dizer do jesuíta padre Nóbrega,

289

“Uma aventura espiritual fascinante consiste em fazer uma leitura de Calderón em nossos cenários barrocos

de Minas Gerais, Olinda, Salvador da Bahia, São Luís. O teatro da „época de ouro‟ (1530-1660) não se exprime

apenas nos dramas construídos por palavras e gestos, ou nas pinturas e esculturas, mas também e sobretudo nos

cenários que são as cidades barrocas coloniais. [...] O sacerdote carregado nos ombros de negros escravos

demonstrava a todos que o mundo espiritual, do livro e da pregação, da penitência e do sacramento, era

infinitamente mais importante que o mundo material dos carregadores que labutavam e sofriam.”

(HOORNAERT, 1994, p. 275-76). 290

“Uma gravura publicada no século XVIII em Leiden, na Holanda, representa um pastor da Igreja reformada

holandesa que exerce seu ministério no campo de concentração de Elmina, na „costa de ouro‟ da África

ocidental, donde dezenas de milhares de escravos negros foram embarcados para a América. O pastor é negro. O

texto que acompanha a gravura diz: „Contemple esse mouro: / sua pele é negra, / mas sua alma e branca, / pois

Jesus reza por ele. / Ele vai levar a fé, / a esperança e a caridade / aos mouros, para que estes, / embranquecidos,

sempre louvem ao Cordeiro.‟ (HOORNAERT, 1994, p. 151). 291

BEOZZO, 1987, p. 61. 292

Dos invasores espanhóis, Harris afirma que eles “tinham perfeita consciência da centralidade do problema da

mão-de-obra no seu programa de colonização” (HARRIS, 1967, p. 18), e os nativos eram contados como

cooperadores, forçados, à solução de tal problema. Em 1509, Fernando, rei de Espanha, em relação à Espaniola,

declarara que “a maior necessidade da ilha no momento é mais índios, para que aqueles que vão daqui para

aqueles reinos para minerar ouro tenham índios que o façam” (Apud SIMPSON, Lesley B. The encomienda in

New Spain. Berkeley: University of Califirnia Press, 1950, p. 23). “Por volta de 1585”, diz Harris, “Sir Francis

Drake relatava que nem um só índio tinha sido deixado com vida na Espaniola. Os índios de Pôrto Rico, das

Bahamas e da Jamaica também foram dizimados antes de 1600” (HARRIS, 1967, p. 21, sic.). E, antes: “No fim

do século XVII, praticamente tôda a população [indígena] do Caribe tinha sido dizimada. Uma situação

semelhante prevaleceu no Brasil. Os homens tanto quanto as mulheres das tribos costeiras do Brasil

demonstraram ser péssimos plantadores e seu elevado índice de mortalidade transformava-os em péssimos

investimentos” (HARRIS, 1967, p. 21, sic.). E daí a substituição do índio pelos escravos trazidos de toda a

África. Numa carta de 1522, que Hernan Cortez envia a Dom Carlos, rei de Espanha, uma sangrentavitória sobre

os índios é atribuída à ação de Deus, que estava do lado dos espanhóis: “Graças a esta vitória que Deus nosso

snhor nos concedeu neste dia, se tornou mais próximo o momento de se ganhar toda a cidade, porque os nativos

sofreram um grande abalo, enquanto que os nossos amigos dobravam seu ânimo. A única perda que tivemos

naquele dia foi de uma égua. [...] Eram, todavia, os mais miseráveis, na maioria mulheres e adolescentes que

andavam desarmados. Fizemos tanto dano neles e em tudo o que podíamos que entre mortos e presos passaram

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“gente por sua natureza serviçal”293

. Conforme Clóvis Moura, “a Igreja Católica Apostólica

Romana sempre marchou em sincronia com os interesses da escravidão moderna”294

, e

embora não possamos concordar com tais generalizações – às vezes fundamentada mais na

paixão que na razão –, Moura tem razão e excelentes argumentos quando fala da escravidão

de africanos no Brasil, e mesmo assim, de modo apaixonado e desejoso de uma justiça

histórica. O longo verbete que ele redige sobre as relações da Igreja Católica com a

escravidão, no seu Dicionário da escravidão negra no Brasil (2004), é bom exemplo do que

aí dizemos. Do padre Vieira, por exemplo, consta que, em 1633, no dia São João Evangelista,

disse, referindo-se aos escravos imitadores do Cristo crucificado, em Lisboa,

pregando perante a Rainha: “Não é minha intenção que não haja escravos; antes

procurei nesta corte, como é notório, e se pode ver na minha proposta, que se

fizesse, como fez, uma junta dos maiores letrados sobre esse ponto e se declarassem,

como se declararam, por ele que está registrada, as causas do cativeiro lícito”295

.

Moura cita Luiz Edmundo. Esse, em 1956, historiando sobre o mesmo período, dizia

que “padre que não tivesse escravo era padre de pouca consideração”296

. Ter escravo

equivalia a ter status social e, com ele, o respeito das classes297

.

de seiscentas pessoas” (CORTEZ, Hernan. A conquista do México. 2. Ed. Trad. de Jurandir Soares dos Santos.

Ilustrações de Théodore de Bry. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 135-6. [Col. L&PM Pocket, 450]). Na conquista

do México, em 30 anos, a soma de nativos mortos chegou a 20 milhões. 293

Uma declarada aceitação da doutrina aristotélico-tomasiana da phýsei doulós. O padre Nóbrega, falando das

causas de certas decadências e atrasos no Estado do Maranhão, na Colônia, diz que “A nona e última causa, que

em parte vem forçosa, é de ser todo o serviço dos moradores daquele Estado com índios naturais da terra, os

quais por sua natural fraqueza e pelo ócio, descaso e liberdade em que se criam, não são capazes de aturar por

muito tempo o trabalho que os portugueses os fazem servir, principalmente os das canas, engenhos e tabacos,

sendo muitos os que por esta causa continuamente estão morrendo”, e daí ele próprio recomenda que sejam

utilizados escravos trazidos de Angola, “que é gente por sua natureza serviçal, dura e capaz de todo trabalho, e

que o atura, e vive por muitos anos, se a fome e o mau tratamento os não acaba”, e, portanto, ele conclui: “Nem

no Estado do Maranhão, que é parte do mesmo Brasil, haverá remédio permanente de vida, enquanto não

entrarem na maior força do serviço escravos de Angola”. (NÓBREGA apud MOURA, Clóvis. Igreja Católica e a

escravidão. In: _____. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 2004. p. 195). 294

MOURA, 2004. p. 194. 295

VIEIRA apud MOURA, 2004, p. 195-6. 296

EDMUNDO (EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. Rio de Janeiro: Conquista,

1956. 3 v.) apud MOURA, 2004, p. 196. “Assim”, diz Moura, “não eram apenas os padres que tinham escravos.

As instituições católicas – irmandades, conventos e paróquias – também os possuíam. Somente a ordem de São

Bento contava com mais de mil escravos em suas fazendas. [...] Em 1800, a fazenda Araçariguana, que pertencia

aos jesuítas, possuía 105 escravos, devendo-se destacar que uma estava fugida desde 23 de agosto de 1799. O

Convento de Nossa Senhora, fundado em 1645, tinha, em 1802 como bens de raiz, além „de umas terras cujas

braças ignoro‟, bois, casas, casas de romeiros e senzalas, dezoito escravos para o „serviço do convento‟ e quatro

„fêmeas‟ cujas funções não são especificadas. [...] Mesmo conventos que por princípio faziam voto de pobreza,

como os franciscanos, eram proprietários de escravos. Documento de 15 de abril de 1797, assinado pelo frei

Rosendo de Porciúncula, comunicando o estado de quase penúria do estabelecimento na Paraíba, afirma que „o

convento de Santo Antônio da Cidade da Paraíba que algum dia conservava até trinta religiosos, hoje tem

somente quatro, a saber: três sacerdotes, dos quais um se acha no peditório no Sertão de Guaguaribe chamado

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Talvez o maior representante da luta por liberdade, entre os escravos brasileiros – ao

menos na historiografia e no imaginário popular –, seja Zumbi dos Palmares. Nascido num

quilombo298

, foi capturado em uma das muitas expedições que visavam recapturar escravos

fugidos, e dado ao padre António de Melo (em 1655), padre do distrito de Porto Calvo, ao Sul

de Pernambuco. Conforme consta, foi batizado com o nome de Francisco e bem criado pelo

padre Lopes, que lhe deu excelente educação e fez elogios por seu engenho “jamais

imaginado na sua raça e que bem poucas vezes encontrara em brancos”. Francisco chega a ser

feito coroinha pelo padre Lopes, mas, de tanto ouvir sobre as façanhas dos escravos dos

Palmares e por saber que lá estão os seus, foge para lá, em 1670, aos quinze anos. Francisco

ignora o nome cristão que recebera e se autonomeia Zumbi – que pode ter os sentidos de

“Deus da Guerra”, “Fantasma Imortal” ou “Morto Vivo”. Mais do que um grupo de escravos

rebeldes, Palmares foi, como diz Ynaê Lopes dos Santos, de modo romancesco299

, “um reino

livre dentro de um país de escravos. [...]. O rei de Portugal [D. Pedro II] chega a escrever uma

carta para Zumbi [1685], porém de nada adianta. Palmares não quer diálogo com os

portugueses”300

. O resto de sua vida será de lutas em favor da liberdade do povo dos

Pe. Mestre Custodio, Fr. Felix do Rosário e o presidente Fr. Rosendo de Porciúncula e o outro é leigo, o qual

anda no peditório de açúcar e legumes para sustento dos religiosos, esmolas cotidianas na portaria e o culto

divino chamado Fr. Manuel da Piedade. Tem também o Convento treze escravos, a maior parte já velhos, um

coxo e outro aleijado, para o serviço do convento, sem os quais no Brasil não se pode passar‟”. (MOURA, 2004,

p. 196-7). Só pra citar alguns exemplos numéricos. 297

As dúvidas morais que o moralista da Nova Espanha, padre Francisco Calderon (1583-1661), teve em um

escrito como o, em seu primeiro título, Cuestión moral em que se trata si los negros son comprenhendidos en

este nombre: neófitos, y si gozan dels Privilegios de los indios, escrito em 1638, e cujos originais se encontram

na Biblioteca Nacional do México, faltaram ao Brasil durante o período da escravidão. Os padres foram mudos

ou quase mudos diante dos africanos. Ter escravos também era, aos olhos da elite – e de quem desejava fazer

parte dela –, um meio de afirmação e ascenção social. 298

No Brasil houve vários quilombos (Minas Gerais, Mato Grosso, Maranhão, Bahia, Jabaquara, etc.). Com

relação a esses e ao de Palmares, ver: GENNARI, Emilio. Em busca da liberdade: traços das lutas escravas no

Brasil. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2008. 299

Os excessos nos elogios de Santos já se encontram, por exemplo, na obra de FREITAS, Décio. Palmares, a

guerra dos escravos. Porto Alegre: Movimento, 1973. Afirmações como, Palmares sendo “um reino livre dentro

de um país de escravos”, não se sustentam, e é coisa que se tem de discordar – até pelo fato de se saber que

escravos, na mesma época, também possuíam escravos, tanto aqui como na África. Em Minas, só pra citar um

exemplo, 30% dos proprietários de escravos eram, também, africanos. Um dos primeiros a oferecer uma visão

romântica de Palmares, de modo muito breve, é Viriato Corrêa: “Palmares”, diz ele, “com o correr dos tempos,

cresceu muito: tornou-se uma verdadeira nação dentro do Brasil. E a organização do seu governo era semelhante

à organização de qualquer reino civilizado. Gangazuma [o Rei supremo] tinha os seus ministros e a sua corte,

como outro rei qualquer. A Gangazuma só se falava de joelhos. O reino de Palmares (chamamos-lhe reino e não

república), durou cerca de cinqüenta anos. Era uma nação forte”. (CORRÊA, 1974. p. 22). 300

SANTOS, Ynaê Lopes dos. Zumbi dos Palmares: pernambucano, 1655-1695. In: Caros amigos: Zumbi /

Chiquinho Gonzaga. São Paulo: Editora Casa Amarela, [s.d.]. p. 4. (Col. Caros Amigos, fasc. 1). Na referida

carta, consta: “Eu El-Rei faço saber a vós capitão Zumbi dos Palmares que eu hei por bem perdoar-vos de todos

os excessos que haveis praticado assim contra minha Real fazenda como contra os povos de Pernambuco, e que

assim o faço por entender que vossa rebeldia teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em

desobediência às minhas reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa

mulher e vossos filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e

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Palmares, até sua morte, em 1695. Até 1870 – que é de onde temos dados precisos –, não

somente os senhores dos engenhos e as classes elitizadas tinham escravos em suas posses,

mas também a Igreja em suas diversas Ordens e Instituições.

No relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas de 1870,

conforme anotado por Mário Maestri Filho, consta que

Os beneditinos possuíam 41 religiosos, onze mosteiros, sete engenhos, mais de

quarenta fazendas e engenhos, duas olarias, 250 casas e 1 265 escravos. Os

carmelitas, com 49 religiosos e catorze conventos, possuíam quatro engenhos, mais

de quarenta fazendas e terrenos, 136 prédios, duas olarias e 1 050 escravos. Os

mercedários, com apenas um religioso, eram proprietários de quatro fazendas e

duzentos escravos. [...] Com 25 conventos e 85 religiosos, [os franciscanos]

possuíam mais de quatro dezenas de negros. As ordens femininas – Clarissa,

Ursulina, concepcionista, carmelita descalça – juntas tinham 94 religiosas e quatro

centenas de escravos e “servas”301

.

Os noviciados haviam sido fechados pelo Império, e daí o número baixo de

religiosos que se encontravam nos conventos e mosteiros.

3.8. A doutrina moral agostiniana e a doutrina da phýsei doulós

Agostinho foi o primeiro pensador cristão a defender que a escravidão natural não

podia pertencer ao campo do direito natural, conforme deveria ter sido na terra antes da

Queda, e que, logo, não pode ser assim também na cidade de Deus.

En San Agustín a encontrar la creencia en la unidad intrínseca de la espécie humana,

predicada ya por el paganismo cosmopolita. De una parte recoge la inquietud

sembrada por la fantasia de los viajeros acerca de los hombres monstruosos. Y de

otra – para nosotros la fundamental – afirma que cualquier hombre nascido en

cualquier región, es decir, animal racional mortal, por más inusitada que parezca a

nuestros sentidos la forma o el color de su cuerpo, o movimiento, o voz, o fuerza en

cualquier parte o calidad de la naturaleza, ninguno de los fieles dudará que trae su

origen del primero hombre302

.

fiéis súditos, sob minha real proteção, do que fica ciente meu governador que vai para o governo dessa

capitania.” (Apud SANTOS, [s.d.], p. 14). 301

MAESTRI FILHO, Mário. A cruz e a senzala. In: D. O. Leitura. São Paulo, 1988. fls. 6 (7) 302

ZAVALA, Silvio. 3. Ed. La filosofía política en la conquista de América. México: Fondo de Cultura

Económica, 1977. p. 43. (Col. Tierra Firme). “Desde mucho antes del descubrimiento colombino se creia en la

existencia de especies monstruosas de hombres. Habló de ellas Plinio en su Historia natural. Más tarde

recordaba San Agustín, en su Ciudad de Dios, que en las historias de los y en los mosaicos que adornaban la

plaza de Cartago aparecían tales monstruos, planteándose la duda acerca de si pertenecían en verdad a la espécie

humana y, por lo tanto, si descendían de Adán”. (ZAVALA, 1977, p. 18).

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É uma “concepção coerente com os princípios do cristianismo”, que ele defenderá

arduamente “com argumentos e justificativas tanto dogmáticas quanto morais e pastorais”303

.

No paraíso terrestre – que era espelho do celestial –, a intentio Dei era “que os homens

tivessem dominium sobre os animais, mas não sobre outros homens”, afirma Tosi, concluindo

que, segundo Agostinho:

A origem da escravidão é uma das conseqüências do pecado original que introduziu

o mal no mundo, nas suas mais variadas formas, entre elas a submissão do homem

por parte de outro homem num estado de servidão. [...] Do ponto de vista moral e

pastoral, a principal, quando não única recomendação que Agostinho e os Padres da

Igreja dirigem aos cristãos donos de escravos é de considerar o escravo como um

irmão e um filho de Deus, e, portanto, tratá-lo com humanidade sem crueldade304

.

É a mesma idéia defendida, lugar comum, pelo jesuíta italiano Jorge Benci (1650-

1708)305

, em sua obra: Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. Aí, logo no

primeiro parágrafo da Introdução, ele escreve:

Que sendo o género humano livre por natureza, e senhor não sòmente de si, senão

também de todas as mais criaturas (pois todas elas as sujeitou Deus a seus pés, como

diz David, chegasse grande parte dele a cair na servidão e cativeiro, ficando uns

senhores e outros servos, foi sem dúvida um dos efeitos do pecado original de

nossos primeiros pais Adão e Eva, donde se originam todos os nossos males306

.

Logo adiante, citando o Bispo de Hipona em duas obras307

, Benci, que “não tem o

propósito deliberado de condenar o escravismo”308

, justifica-o, com base na teologia

303

GARNSEY, 1996, p. 206. De fato, Zavala acrescenta que “esta hermandad racional que se sobrepone a las

diversidades naturales es la que permite a San Agustín resolver, por lógica y no por experiencia de viajero, que o

lo que se escribe de algunas naciones no es cierto, o si lo es, no son hombres, o si son hombres, sin duda

descienden de Adán. El texto agustino no se refere concretamente a la servidumbre, pero lo recordamos ahora

porque, al mantener la racionalidad general de la especie humana por tener La racionalidad general de la

Creación, abre paso a la idea generosa de la hermandad de todos los hombres. Y este concepto estaba llamado,

más tarde o más temprano, a chocar con la doctrina que, apoyándose en las diferencias de razón, concluía por

justificar el dominio de ciertos pueblos prudentes sobre otros que se consideraban incapaces y nacidos para la

servidumbre”. (ZAVALA, 1977, p. 43-4). 304

TOSI, 2004, p. 766-7. Conforme palavras de Pétré-Grenouilleau: “[...] apesar de são Paulo pedir aos escravos

que obedecessem a seus „senhores‟ e a estes que tratassem bem seus escravos, Santo Agostinho agiu no sentido

contrário. De fato, no século IV, ele deu origem a uma doutrina que teve um belo destino. Ela transformou a

escravidão em punição dos pecados dos homens e desse modo permitiu que fosse justificada. A Igreja era

também uma grande proprietária de escravos. Embora estimulasse a alforria entre os leigos, vetava tal prática a si

mesma.” (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009. p. 77). 305

Benci chegou ao Brasil em 1681, no mesmo período que Vieira e João Antonio Andreoni (que usava o

pseudônimo de André João Antonil). Andreoni desempenhou vários cargos no Colégio dos Jesuítas da Bahía, e

foi Visitador e Secretário do Provincial. Em 1700 deixou o Brasil e foi enviado à Lisboa, sendo encarregado, aí,

dos assuntos da Província do Brasil, e assim até o seu falecimento em 1708. 306

BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos: livro brasileiro de 1700. São Paulo:

Editorial Grijalbo, 1977. p. 47. (Col. Brasil Ontem e Hoje, 3). 307

“D. Aug. Lib. 29, de Civit. Dei, c. 15” (BENCI, 1977, p. 48; nota “d”).

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agostiniana aplicada à necessidade e à conveniência da colônia; ademais, como afirmam

Pedro de Alcântara Figueira e Claudinei M. M. Mendes: “O escravismo implantado no Brasil

era a pedra mais valiosa engastada na coroa que cingia a cabeça do cristianíssimo rei de

Portugal”309

.

A doutrina de Agostinho – mesmo por uma questão político-cultural que, hoje, não

nos cabe o juízo –, já quase muda no que diz respeito à phýsei doulós, emudecerá ainda mais

ante a nova e esmagadora influência que já, na época do descobrimento, tinha e teria a

teologia de Tomás de Aquino. A teologia do Doutro Angélico – e mais ainda o humanismo de

Juan Ginés de Sepúlveda (1489–1573)310

, a quem Las Casas vai combater na disputa de

Valladolid, em 1550311

–, em relação à phýsei doulós, tinha muito mais a dizer, e mais

favorecendo-a.

Na verdade, segundo Garnsey, o único autor cristão que faz um questionamento

realmente radical quanto à posição da Igreja e a questão da escravidão foi Gregório de Nissa,

para quem a escravidão não era somente uma consequência do pecado (Agostinho), mas era,

ela mesma, um pecado, devendo ser eliminada312

. A escravidão humana era, para Gregório –

que, nesse ponto, seguia de perto a doutrina estóica –, incompatível com dignidade humana,

que é a imagem de Deus. “Paga-se pela imagem de Deus?”, perguntava ele, numa diatribe313

.

A própria questão da humanidade de Cristo, que identificava-se com a humanidade

toda, levantava questões sérias – tanto para Agostinho quanto para Gregório de Nissa – que

não passaram despercebidas; principalmente quando relacionadas às doutrinas bíblicas da

308

FIGUEIRA, Pedro de Alcântara; MENDES, Claudinei M. M. Estudo preliminar: o escravismo no Brasil. In:

BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos: livro brasileiro de 1700. São Paulo:

Editorial Grijalbo, 1977. p. 35. (Col. Brasil Ontem e Hoje, 3). 309

FIGUEIRA; MENDES, 1997, p. 13. 310

Sepúlveda – que era um peripatético clássico, dos que na Italia eram chamados helenistas ou alejandristas –,

em seu Dialogum de justis belli causis (1550) reafirmará as teses de Oviedo e a doutrina da phýsei doulós num

aristotelismo puro que se coloca frontalmente em oposição a Las Casas. A oposição de Las Casas a Aristóteles é

a mesma que tinham os Padres da Igreja, e que se manteria pela Idade Média, até os inícios do século XIII. Já

nos Pais, por influência do apóstolo Paulo e dos estóicos, há a idéia de uma “união dos povos”, pela doutrina

bíblica da imago Dei. (cf. ZAVALA, 1977, p. 43, acima citado). 311

Principalmente contra Sepúlveda, a favor de Las Casas e em defesa dos índios, surgem os reformadores

Francisco de Vitoria e Domingos de Soto (que presidiu a Junta de Valladolid), bem como os jesuítas Luis de

Molina e Francisco Suárez. Esses, movendo-se na autoridade de Vitoria, exporão as doutrinas jurídicas e morais

que condenam a idéia de uma “servidão natural” e evidenciam, pela primeira vez, as idéias que desembocam no

viria a ser conhecido como direito “direito internacional”. Na questão indígena, porém, nenhum desses

professores religiosos contava com um conhecimento da situação comparável ao de Las Casas, que é merecedor

de honra histórica: “Porque [...] dedicou incansável e apaixonadamente cinquenta anos de sua vida à defesa dos

indígenas oprimidos da América e porque quis fazer da colonização espanhola uma missão pacífica de

cristianismo e humanidade.” (KONETZKE, Richard. Ramón Menéndez Pidal und der Streit um Las Casas. In:

Romanische Forschungen 76 [1964]. p. 447, apud PRIEN, 1985, p. 170). 312

GARNSEY, 1996, p. 83. 313

Omelie IV, Eccl. 2, 7.

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Queda, da encarnação do Logos/Verbo e do gênero humano cativo, escravizado social,

espiritual e moralmente. Todos os povos do mundo, não obstante todas as suas diferenças e

deficiências morais, têm em Cristo a identidade humana. “Uma variante singularmente bela

dessa doutrina”, diz Joseph Ratzinger – que fez a sua tese de doutoramento fundamentada no

pensamento do Hiponense314

–, “foi conservada por Agostinho, em continuidade com uma

tradição oriental. Explicando Salmos, frisa que as quatro letras que constituem o nome „Adão‟

são igualmente as iniciais das palavras gregas que significam os quatro pontos cardeais”315

.

De fato, em Agostinho, encontramos que:

Assim, pois, Adão foi disperso sobre todo o globo terrestre. Originalmente,

encontrava-se num único lugar. Mais tarde, porém, caiu e no mesmo momento se fez

em pedaços e encheu toda a terra. Mas a misericórdia de Deus ajuntou novamente,

de todos os lados, os pedaços e fundiu-os novamente no fogo do amor, consertando

o que estava quebrado316

.

Essa doutrina da solidariedade da raça, ligada ao Cristo enquanto carne e, à graça,

mediante a fé317

, além dos paralelos evidentes no texto de são Paulo318

, também parece muito

evidente para Gregório. “Trata-se verdadeiramente de uma realidade, a tal ponto que Gregório

de Nissa pensava poder dizer: assim como, propriamente, não se pode falar de três Deuses,

assim também não se pode falar do homem no plural”319

, diz Ratzinger. E assim,

Aquilo que acontece à natureza humana em determinado ponto, repercute, de certo

modo, em toda a natureza e não pode ficar sem influência sobre os demais

314

Trata-se da tese: O povo e a Casa de Deus na doutrina da Igreja de Santo Agostinho, defendida em 1953. Sob

a orientação do professor de teologia fundamental Gottlieb Söhngen, Ratzinger obteve a habilitação para a

docência apresentando a dissertação: A teologia da história em São Boaventuta. Boaventura foi um franciscano-

agostiniano. 315

RATZINGER, Joseph. A união das nações: uma visão dos Padres da Igreja. Trad. de Frans van de Vater. São

Paulo: Loyola, 1975. p. 25. 316

In Ps., 95, 15; PL 37, 1236. 317

Neste sentido, Ratzinger, interpretando Gregório, diz que: “A humanidade de Jesus Cristo é a divina vara de

pesca que fisgou a única humanidade de todos os homens, e a puxa para si, de modo que toda essa humanidade

de todos os homens, é introduzida na união do corpo de Cristo, o Homem-Deus, e, desta forma, arrancada da

mortal separação do isolamento que se chama „pecado‟” (RATZINGER, 1975, p. 26-7). Uma investigação

aprofundada sobre a doutrina da solidariedade da raça, em Adão (na Queda) e em Cristo (na encarnação e graça),

pode ser vista, com fartas referências, em: SHEDD, Russell Philip. Man in community: a study of St Paul‟s

application of Old Testament and Early Jewish conceptions of human solidarity. London: The Epworth Press,

1958. 209 p. A tradução brasileira de Man in community (Cf. SHEDD, Russell P. A solidariedade da raça: o

homem em Adão e em Cristo. Trad. de Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Edições Vida Nova, 1995),

modificada, omite muitas notas de rodapé – como a 69 do capítulo III, na página 107 da Parte 2; ou a 101, no

capítulo IV, no original; ausentes nas páginas 105 e 143 (que omite completamente uma longa citação de

Agostinho na Ep. ad Anatolium, 4) da edição brasileira – que são elucidativas e relevantes ao tema, ora

relacionando-o diretamente a Agostinho, hora à sua autoridade, conforme a tradição do tema na Igreja e na

teologia. 318

Cf. Rm 5, 12-21; 1Co 15, 21-22. 319

RATZINGER, 1975, p. 26.

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portadores da mesma natureza. Se o ser humano e, por assim dizer, um único

organismo vivo, tocar nele, seja onde for, é tocar na humanidade inteira320

.

A escravidão romana, atrelada à grande propriedade e sem reconhecer qualquer

direito ao escravo, começou a ser demolida com as legislações cristãs de Constantino e de

Teodósio I, o Grande (346-395)321

; essa última publicada em 380, mesmo ano do seu batismo.

Aí se reconhecia o escravo como humano, lhe garantindo certos direitos. Na Idade Média

vamos encontrar não mais o escravo, mas o servo da terra, com direitos e deveres bem

delimitados já na legislação carolíngia – principalmente de Carlos Magno (742-814)322

em

diante. Eram reduzidos à escravidão os prisioneiros de guerra, principalmente os provenientes

de embates entre árabes e cristãos. Nos portos do Mediterrâneo, no final do século XI,

encontravam-se eslavos escravidos à venda (e daí vem o nome de “escravo”, corruptela de

eslavo323

). No século XII, com a entrada de Aristóteles, como já vimos, foi que, depois de

tanto, levantou-se novamente o problema do “escravo por natureza”. Nenhum dos medievais

dos séculos XIII e XIV vai negar a dignidade de pessoa aos menos aptos e nem pregar o

retorno ao modelo de escravidão da época de Aristóteles. Duns Scotus é o primeiro a negar

que se possam escravizar as pessoas e toma como louco aquele que voluntariamente a isso se

submete. Com a descoberta das Américas e a urgente questão da mão-de-obra, o problema

320

RATZINGER, 1975, p. 26. 321

Foi durante o governo de Teodósio que houve uma das maiores ascenções da Igreja Católica sobre o poder

secular. Depois de vencer a guerra contra Petrónio Máximo (imperador do Ocidente) e tendo ordenado um

massacre em Tessalônica,Teodósio, como de costume, pretendia assentar-se como presbítero na igreja de Milão,

da qual Ambrósio era o bispo. Este não somente o proibiu de fazê-lo (a não ser que o imperador fizesse uma

confissão pública dos seus atos medonhos) como o excluiu da comunhão durante 8 meses. Foi um período de

grande tensão. Mas, durante o Natal, Teodósio vestiu-se com um saco de penitência (a exemplo do que faziam os

reis de Israel, no Velho Testamento) e, depois da penitência, foi perdoado e recebido. Ele afirmaria, depois, em

elogio a Ambrósio: “Sem dúvida, Ambrósio me fez compreender pela primeira vez o que deve ser um bispo”.

Assim, e desde então, o poder eclesiástico de julgar os poderes públicos, não só em questões dogmáticas mas

também por seus erros, prevaleceu até os tempos modernos, embora, hoje, já não se note tanto a força que um

dia teve. 322

É oportuno notar que, “para o Ocidente, e para o papado, a coroação de Carlos Magno teve conseqüências

importantíssimas. [...] Mais do que nunca se separava o Oriente do Ocidente. Aos olhos do próprio imperador

parecia cumprir-se o sonho da Cidade de Deus de Agostinho, a saber, a união da cristandade num reino de Deus,

do qual ele era o cabeça terreno” (WALKER, 1983, p. 270). Não se pode culpar Agostinho, e nem a sua obra,

por quaisquer interpretações errôneas feitas, aí e por toda a Idade Média – e o mesmo que pode ser dito em

relação ao governo temporal e eterno, pode também ser mantido em relação aos tantos temas obardados pelo

Bispo de Hipona. Certo é que, com Carlos Magno, parece que a Igreja entra numa nova fase; fase que vai

perdurar por todo o medievo. 323

“No Ocidente, um momento crítico nas atitudes em relação à escravidão foi meados do século XI, o final da

Era Viking. Os vikings tinham sido grandes traficantes de escravos; suas depedrações no mundo eslavo e a

venda de eslavos em mercados de escravos ajudaram a dar ao mundo ocidental o termo „slave‟ [em inglês, slav

(eslavo) e slave (escravo) são vocábulos quase homófonos e hemógrafos – nota do tradutor português]”. (LYON,

Henry R. Escravidão. In: _____. [Org.]. Dicionário da Idade Média. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar Editor, 1997. p. 133).

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vem à baila, novamente. E assim chegamos novamente no ponto em que ficamos em nossa

investigação.

Até que ponto tais considerações repercutiam na mente dos colonizadores das

Américas? Isso, certamente, nunca poderá ser sabido com certeza. A doutrina agostino-

gregoriana da união dos povos na humanidade de Cristo – ou do Logos, para o pensamento

mais abrangente dos estóicos –, não impediu que o próprio Agostinho, nesse mesmo tempo,

visse a servidão como uma penalidade divina sobre a rebelião primal, sobre o pecado que,

mais do que ao corpo, aprisionava o espírito. Uma doutrina abolicionista que desconsiderasse

a laicização moral dos escravos, não seria, afinal, um afrouxamento da disciplina imposta pelo

próprio Deus?324

A questão não tinha uma resposta satisfatória; o tempo e a cultura ainda não

lha permitiam. Perde tempo quem procura referências em Agostinho que reprovem a

escravidão; encontram-se, todavia, exemplos modelares de convívio senhor/escravo, aos

moldes das recomendações de são Paulo a Filemon, referentes ao escravo Onésimo325

.

Quem examinou tal problema, no tempo de (e para) Agostinho, foi A. Hamman, em:

La vie quotidienne em Afrique du Nord au temps de Saint Augustin, de 1985. Aí, diz que, “na

época de santo Agostinho, a mão-de-obra servil já havia diminuído muito no campo: era cara

para comprar e menos rentável no uso”326

. Assomado aos custos que advinham de ter um

324

Em Gênesis 9, 25, depois de narrada a história de uma vinha plantada por Noé, e de sua embriaguez com o

vinho, fruto da primeira colheita, fala-se da nudez do mesmo, vista por seu filho, Cam, que é amaldiçoado pelo

pai, com as seguintes palavras: “Maldito seja Canaã! Que seja para seus irmãos o escravo dos escravos”. “Foi

sobre essa base mais do que vaga que alguns comentadores afirmaram ter se apoiado para legitimar, muito tempo

depois, o comércio de escravos negros tanto para o mundo muçulmano como para a América colonial. Para eles,

não havia nenhuma dúvida de que Cam era negro e, por isso, todas as populações negras tinham sido condenadas

a serem escravas dos outros povos da Terra! As interpretações desse texto foram tão numerosas e misturadas

umas com as outras por quase 2 mil anos, que hoje é quase impossível saber quem realmente deu origem a essa

deturpação evidente do texto bíblico. O que é certo, porém, é que ela recebeu destaque a partir do momento em

que o tráfico negreiro se desenvolveu, isto é, depois do século VII no mundo muçulmano e depois do século XV

na América. No fim do século XV, numa das primeiras bíblias impressas, ainda se podia consultar a árvore

genealógica dos descendentes de um Caim branco, na qual apenas um dos muitos personagens era visivelmente

negro. Isso prova que a ligação de Caim com a África negra estava longe de ser aceita por todos como um fato

evidente.” (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009. p. 48). Certo é que, “no começo da Idade Média”, com as

ressalvas que já fizemos, “a escravidão estava generalizada em todo o mundo europeu, instituição herdada tanto

de fontes clássicas quanto germânicas. A atitude da Igreja cristã foi ambivalente, opondo-se à venda de escravos

cristãos e não-cristãos, mas propensa a aceitar a própria escravidão como consequência da natureza pecaminosa

do homem”. (LYON, 1997, p. 133). 325

Onésimo havia fugido e, achando-se preso na mesma cela em que estava Paulo, coverte-se ao cristianismo.

De volta ao seu senhor, Filemon, amigo de Paulo, leva, deste àquele, saudações e recomendações. (Cf. Fil., 8-

21). No Sermão 161, 9 (PL 37, 1635), Agostinho fala dos maus-tratos aos escravos trazidos da Mauritânia

(espancamentos, ferros nos pés e calabouços), e repreende tais excessos. Fala de uns escravos com as mãos

esmagadas por uma mó, e que clamavam “Piedade, piedade!” à mão que lhes batia (cf. In Ps., 122, 7; PL 37,

1635). 326

HAMMAN, A. Santo Agostinho e seu tempo. Trad. de Álvaro Cunha. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 102.

(Col. Patrologia). Havia, evidentemente, excessos e exceções. Uma senhora riquíssima, por nome Melânia, antes

de deixar a África, libertou, de uma só vez, oito mil escravos (cf. Vita Melanie, 34; Hist. Lausíaca, c. 119; cf.

Paulino de Nola, Carmina 21, v. 257-263). A existência de escravas era, aos seus senhores, fonte da tentação a

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escravo, havia os problemas morais relativos ao trato e uma série de outros fatores que faziam

da escravidão, do século VIII em diante, uma prática bastante diferenciada daquela que se

daria no Brasil, muitos séculos depois327

. “A servidão, que choca a nossa sensibilidade”, diz

ele, “não era sentida do mesmo modo na Antiguidade tardia”328

.

O problema dos escravos havia evoluído no curso dos primeiros séculos: no século

IV, a situação não era mais aquela do século III. A veneração com que a comunidade

africana cercava a escrava mártir Felicidade, juntamente com a nobre Perpétua, era

uma lição permanente, que não deixou de produzir frutos. [...] Os escravos tinham o

direito de guardar para si uma parte dos benefícios gerados por seu trabalho, o que

constituía um pecúlio que, muitas vezes, permitia-lhes comprar sua liberdade. Na

prática, sua situação não se diferenciava muito da dos colonos, que cada vez mais

iam tomando o seu lugar329

.

A Igreja, na época de Agostinho – é desde o apóstolo Paulo que ela, enquanto

instituição, reconhece a estrutura do Estado romano como legitima e constituída por Deus –, e

mesmo ainda na Colônia, preferiu agir sobre as pessoas, e não sobre as estruturas; não

obstante, às vezes, haver atuado nos dois lados. Homem do seu tempo, embora reconhecido

como à frente dele330

, Agostinho não tinha muito a fazer – e mesmo assim o fez – em relação

ao que, hoje, entusiastas teóricos e anacrônicos questionam: sobre o sexo, sobre a hierarquia

que eles, geralmente, se entregavam, levando tais escravas, mais comum das vezes, à prostituição. Hamman fala

do esqueleto de uma mulher de cerca de quarenta anos de idade que foi encontrado e que “levava uma coleira de

chumbo sobre a qual estavam gravados o seu nome e a sua profissão: Adultera, meretrix. Tane quia fugivi de

Bulla Regia. („Adúltera e meretriz. Captura-me, pois fugi de Bula Régia.‟). Em nota, Hamman diz que “Adultera

é a forma de denominação para prostituição” (HAMMAN, 1989, p. 103, 333). Tais práticas abusivas, beirando

ao sadismo, no entanto, se favam mais comumente nos domínios rurais que, isolados, encobriam os desmandos

do senhor ou do administrador, “longe de qualquer controle judiciário ou policial, [onde se] podia burlar o

Direito e a legalidade” (HAMMAN, 1989, p. 103), e onde ninguém ousaria denunciá-los, como diz Agostinho

em um dos seus sermões. (Cf. Serm., 153, 6; PL 38, 828). 327

“Com a evolução de uma economia dominial a partir do século VIII, surgiu uma elaborada gradação de

liberdade e não-liberdade, na melhor das hipóteses, conjeturais e, na pior, positivamente enganadoras. Os

senhores mostraram-se inclinados a considerar mais lucrativo utilizar camponeses, melhor descritos em termos

modernos como servos, do que escravos: quer dizer, homens que possuíam alguns lotes de terra que usavam para

manter-se a si mesmos e às famílias, mas vinculados à gleba, às disciplinas do domínio senhorial, e responsáveis

pelo cultivo exaustivo das terras do senhor.” (LYON, 1997, p. 133). 328

HAMMAN, 1989, p. 104. “Embora alguns filósofos estóicos da época a contestassem”, diz Hamman, “ela

apresentava-se como um fato e uma necessidade, ao mesmo tempo econômica e social. [...] Sem chegar a apoiar

os movimentos de revolta, a Igreja do fim do Império, do Ocidente ao Oriente, já começava a duvidar da

legitimidade da instituição. Realista, João Crisóstomo via na servidão o preço da avareza e da estupidez: uma

mão-de-obra barata. Em A cidade de Deus, o Bispo de Hipona a explica como uma tara devida ao pecado”

(HAMMAN, 1989, p. 104). Contrário ao que é dito por Hamman, Pétré-Grenouilleau diz que “os pensadores

estóicos afirmaram a unidade do gênero humano; sem criticar a instituição escravagista, eles pregaram o „bom

uso‟ do escravo”. (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009. p. 75; a ênfase é nossa). 329

HAMMAN, 1989, p. 102. 330

A obra de MATTHEWS, Gareth. Santo Agostinho: a vida e as idéias de um filósofo adiante de seu tempo.

Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, só pra citar um exemplo evidente já pelo título, é

um modelo desse reconhecimento. Por suas especulações sempre pungentes, Agostinho é, por vezes,

mencionado como um “contemporâneo de todas as épocas”.

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eclesiástica ou a escravidão, por exemplos. Mas “quando via um escravo sendo avaliado,

vendido no mercado como um cavalo, uma parcela de terra ou um objeto de prata”, diz

Hamman,

ele começa a se interrogar sobre a legitimidade de tal situação, que feria a dignidade

humana: “uma grave questão”, diz ele, mas à qual não ousava responder. Ele

protesta contra a desumanização comercial, por ferir a consciência cristã, mas, na

enumeração dos bens, ele próprio colocou o escravo entre o dinheiro e os animais331

.

A situação dos escravos da/na África de Agostinho, como se vê, era completamente

outra da que se deu por aqui. Escritores contemporâneos como Robin Blackburn, numa leitura

apressada, indireta e descontextualizada da opera omnia do Hiponense, citam autores

igualmente contemporâneos que são, comum das vezes, anacrônicos, mau intecionados e

geralmente desarranjados da opera omnia. Tais autores tratam sobre a doutrina de Agostinho

acerca a escravidão, como na obra de Gervase Corcoran, Saint Augustine on Slavery, em que

o autor lha apresenta nos seguintes termos:

Todos os que são escravos são escravos justamente. Disto não se pode concluir que

todo senhor é um senhor injustamente, porque ele também é um pecador. Segundo

Santo Agostinho, ser um senhor também é condenação, porque o senhor está mais

exposto à libido dominandi, e quanto mais agir como senhor (isto é, dispuser de seus

inferiores para seu próprio uso), mais será escravo332

.

Não basta mencionar uma epístola do apóstolo Paulo, favorável à escravidão –

porque os crentes também, mesmo os livres, conforme sua doutrina, são “escravos de Cristo”

–, para concluir que Agostinho, pela autoridade que atribuía ao Apóstolo, era resolvido em tal

questão. Também não basta ligar tal idéia à doutrina do “pecado original” e, daí, concluir que

o esboço está pronto. Há que se considerar a questão histórica e as noções do tempo que eram

marcantes e sempre presentes no pensamento do Hiponense, não deixando que tal questão

passe despercebida, mesmo que não escreva um tratado sobre a mesma, não tendo, enfim,

uma solução político-teológica concorde, fechada; não se deve exigir tanto dele. Há que se

331

HAMMAN, 1989, p. 104. No Sermão 21, 6 e 356, 3.7 (PL 38, 145; 39, 1576-1577), Agostinho encoraja a

Igreja a libertar seus escravos – que poderia ser feito na própria Igreja –, e na Epistola 185, 15 (PL 38, 145) dá o

modelo cerimonial: “Se tu queres libertar teu escravo, conduze-o pela mão à Igreja. Faça-se silêncio. Seja lido o

ato de libertação, onde exprimes tua nova intenção. Tu proclamas que lhe dás a liberdade porque ele se mostrou

fiel a ti em tudo. E ele rasga o ato de compra”. 332

CORCORAN, Gervase. Saint Augustine on Slavery. Roma: Institutum Patristicum Augustinianum, 1985. p.

71. (Col. Studia Ephemeridis Augustinianurn, n. 22). Para a utilização de Corcoran por Blackburn e demais

considerações sobre a temática, ver: BLACKBURN, Robin. A construção do escravismo no Novo Mundo: do

Barroco ao Moderno. Trad. de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2003. p. 52.

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considerar, por fim, a questão do tratamento dispensado aos escravos no tempo de Aristóteles,

no tempo de Paulo e no tempo de Agostinho. Acima de tudo, não parece justo mencionar um

autor sem referenciá-lo em sua própria obra, com critérios, para que juízos equivocados – e

geralmente condenatórios, como tem se tornado moda ao se mencionar o nome do Hiponense

nalguns temas populares – não sejam edificados sobre interpretações superficiais. A doutrina

de Agostinho, ao mesmo tempo em que não tinha uma “saída mágica” para o problema da

escravidão, questionava o fato de haverem escravos, ensinava o amor a todas as criaturas (são,

afinal, vestigia Dei) e o tratamento cordial, além de incentivar os senhores a libertarem os

seus escravos. Não era possível amar e fazer as obras contrárias ao amor; daí a famosa frase:

“Ama e faze o que quiseres333

.” Ou, no mesmo sentido: “Ama, e assim não poderás fazer

senão o bem334

.” Nisso tudo valia, e para tudo o mais, o imperativo do amor.

Mas voz de Agostinho tornou-se quase afônica no período colonial. No Brasil de

Anchieta, a escravidão de afros e índios era, quando era, apenas abrandada pela doutrina dos

sacerdotes que criam que o batismo lhes dava uma alma e que, após a morte, depois de

sofrerem neste vale de lágrimas, conforme houvessem se comportado (salvação pelas obras)

em vida, receberiam os méritos da piedade fincada na fé. “É somente pelo batismo que esse

homem natural se torna „uma pessoa na Igreja de Cristo‟”335

; assim criam, assim ensinavam,

assim faziam. Até antes do batismo, o batismo cristão, o indivíduo – no sentido que já vimos

no primeiro capítulo – não era pessoa, era uma criatura (coisa criada), como qualquer animal

na natureza. O batismo de índios e negros, mesmo administrados à força, lhes concedia uma

alma, e a alma lhes retirava, conforme a crença de certos autores medievais “baseados em

Aristóteles e Tomás de Aquino”336

, a bestialidade, tornando-os aptos para o Reino, caso

permanecessem escravos da fé, e da/na Igreja Católica. Sim, extra Ecclesiam nullus omnino

salvatur. Fora da Igreja, como dizia São Cipriano de Cartago (m. 258)337

, é a danação eterna.

333

In Ioan. Evang., 7, 8. 334

In Ioan. Evang., 10, 7. 335

MESLIN, Michel. A pessoa. In: RÉMOND, René (Org.). As grandes descobertas do cristianismo. Trad. de

Paulo Gaspar de Menezes. São Paulo: Loyola, 2005. p. 52. 336

“Nos comentários que os autores medievais dedicam ao argumento [dos “bárbaros desalmados”, “escravos

por natureza”], estas várias acepções de bárbaro, convivem, às vezes, sem distinções ulteriores. Nota-se, porém,

uma tendência a acentuar alguns elementos da barbárie, em particular a bestialidade (teriotés) que, no texto

aristotélico, merece apenas uma vaga referência. Embora Aristóteles fale da existência de costumes bestiais de

alguns povos bárbaros da região de Ponto Euxino ou, mais genericamente, de „lugares distantes‟, o discurso

sobre a bestialidade se refere sobretudo a caracteres individuais e raros, produzidos pela doença ou pela hábito”

(TOSI, 2004, p. 770). 337

De catholicae ecclesiae unitate, 6: CCL 3, 253-254 (ver ainda em: Conc. Lateranense IV, Cap. 1. De fide

catholica: DS 802; ver ainda: Carta do Santo Ofício ao Arcebispo de Boston: Denz., n. 3866-3872). É comum a

afirmação de que Cipriano é o excelente mestre da moral cristã, e o ponto mais elevado da Patrística grega

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Máxima que o próprio Agostinho defenderia, mas sem as conotações atuais338

. O discurso de

quase todos os padres durante a colonização da América Latina não diferia muito – salvo

aqueles que reclamam dos excessos de violência – do discurso da tradição da Igreja, que

recomenda um “suportar na fé”339

; bastante cômodo a quem recomenda. O problema dos

“bárbaros” (na América Latina) era novo, e a doutrina dos padres, velha; não havia como ter

um posicionamento único. Alguns autores medievais, inclusive, valendo-se do argumento da

teriotés e da phýsei doulós, legitimam a escravidão

utilizando as palavras de Tomás de Aquino, se é verdade que “com o termo

„bárbaros‟ se entende algo de estranho (extraneum)”, agora uma estranheza relativa

ou específica (estraneitas secundum quid), era substituída por uma estranheza

absoluta (estraneitas simpliciter); o barbarus se tornava um estranho ao gênero

humano (estaneus humano generi) e, de um defeito de comunicação se passava a um

defeito de razão340

.

Assim, conforme o próprio Tomás de Aquino, os bárbaros “devem ser considerados

como naturalmente irracionais, não porque não possuem nenhum tipo de razão, mas por causa

de que [...] vivem somente conforme os sentidos”341

. “A impressão é que a classe definida

pelo conceito de bárbaro-escravo”, conclui Fioravanti,

apesar de precisar as suas conotações (canibalismo, falta de humanae litterae,

intempéries aeris) permaneceu, na Idade Média, uma categoria vazia. [...] Porém,

com a descoberta do Novo Mundo, nos primeiros contatos com as novas populações,

ela começará a funcionar e poderemos ler, no Demócrates Segundo de Sepúlveda,

grávidas, agora, de implicações bem mais pesadas, as mesmas expressões que

encontramos nos textos de Alberto Magno e de Tomás de Aquino342

.

oriental, sendo o maior entre os “Padres capadócios” (ele mesmo, Gregório de Nissa, seu irmão, e Gregório de

Nazianzo). 338

Epist., 73, 21; PL 1123 AB; In Ioan. Evang., 45, 11-12. Exemplo das “conotações atuais” é a Declaração

Dominus Iesus, do, na época, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger (ele

mesmo de formação agostiniana), emitida às comunidades católicas no ano 2000, para fazer frente à onda de

ecumenismo que parecia se instalar no seio da Igreja de Roma. Aí, com o uso ilegítimo (cf. Dom. Iesus, VI, 20)

de tais textos (pois anacrônicos à situação histórica), tantos os de Cipriano quanto os de Irineu (Adversus

Haereses, III, 24, 1: SC 211, 472-474), e afirmado que “Existe portanto uma única Igreja de Cristo, que subsiste

na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele.” (Dom. Iesus, IV,

17). CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Declaração Dominus Iesus: sobre a unicidade e

universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2000. (Documentos da Igreja). 339

Se isso, dito assim, parece generalizar demais, é que acreditamos que a História da violenta colonização da

America Latina, e do Brasil em especial, está muito bem documentada – e cada vez mais sendo enriquecida com

novas leituras –; o que nos dispensa certas minúcias. 340

FIORAVANTI, G. Servi, rustice, barbari: interpretazioni della Politica aristotélica. Annali della scuola

Normale di Pisa. 1981. p. 423. (Serie III, XI, 2). 341

FIORAVANTI, 1981, p. 427. A citação para Thomas de Aquino encontra-se In octo libros politicorum, 7, 5,

n. 1120-1123. 342

FIORAVANTI, 1981, p. 429.

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Se houve, no século XVI, na Espanha, um preenchimento dessa categoria do barbari

simpliciter de Tomás de Aquino, no Brasil não foi muito diferente343

. Assomado a isso, a

visão dominante da Igreja vislumbra um novo motivo para a pregação cristã como justa causa

de submissão e até de guerra aos índios, não somente quando ela é obstaculizada ativamente,

mas também quando eles, mesmo permitindo a pregação, se recusam à conversão, tornando-

se, portanto, inúteis para o Estado e inimigos da Igreja de Deus – conforme reza um texto

1510, de Johannes Major, precedendo em pouco as considerações dos teólogos e juristas da

junta de Burgos (1512), que também aplicam aos índios as opiniões de Aristóteles. No mundo

das idéias, era a chamada Segunda Escolástica.

De Vitoria a Suárez, de Salamanca a Coimbra, discutiram-se os temas do momento: a

escravidão dos nativos do Novo Mundo. No entanto, quando a escravidão não foi mais a dos

índios, mas a dos afros, os argumentos dos mestres tornaram-se dúbios344

e, em verdade, não

se condenou a escravidão. Nas palavras insuspeitas de J. Höffner, “a Escolástica tardia não

impediu, apenas encobriu o comércio e a posse de escravos”345

. Querela a parte, certo mesmo

é que não houve, no Brasil, uma voz tão ressoante quanto a de Las Casas, em Espanha,

rebatendo as falas do bispo franciscano Juan de Quevedo (1450-1519) e do cronista Gonzalo

Fernández de Oviedo (1478-1557), que, dentre outros absurdos, utilizavam-se de Aristóteles

para justificarem a escravidão dos índios do Novo Mundo346

. A estes, Las Casas afirma que

343

Cf. ZAVALA, 1977, p. 18-20. 344

Foi somente já perto de sua morte que, conforme Lampe, “Las Casas estava bem consciente de que não se

pode servir a dois senhores, „Deus e o ouro‟ [...]. Da mesma forma que a escravidão indígena, a escravidão

africana acabou sendo um sacrifício desumano ao deus dinheiro e, por isso, Las Casas protestou contra ambas.”

(LAMPE, 1995, p. 64). 345

HÖFFNER, J. Christentum und Menschenwürde, das Anliegen des spanischen Kolonialethik in

Zeitalter. Trier: Paulinus Verlag, 1947. p. 271. 346

Oviedo chega a dizer, na sua L‟Histoire des Indes (1555), depois de mencionar o extermínio de quase todos

os índios da Hipaniola, que acredita que Nosso Senhor permitiu tal extermínio, para eliminar os “grandes e

abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e animalescas”. (OVIEDO, G. Fernandes de. apud

ROMANO, Ruggiero. Os mecanismos da Conquista Colonial: os conquistadores. 3. ed. Trad. de Marilda

Pedreira. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 76. [Col. Khronos, 4]). Juan Ginés de Sepúlveda (1494-1573) – que

era um peripatético clássico, dos que na Italia eram chamados helenistas ou alejandristas –, em seu Dialogum de

justis belli causis (1550) reafirmará as teses de Oviedo e a doutrina da phýsei doulós num aristotelismo puro que

coloca-se frontalmente em oposição a Las Casas. Em suas palavras: “[...] as feras são domadas e submetidas ao

império do homem. Por esta razão, o homem manda na mulher, o adulto, na criança, o pai, no filho: isto quer

dizer que os mais poderosos e os perfeitos dominam os mais fracos e os mais imperfeitos. Constata-se esta

mesma situação entre os homens; pois há os que, por natureza, são senhores e outros que, por natureza, são

servos. Os que ultrapassam os outros pela prudência e pela razão, mesmo que não os dominem pela força física,

são, pela própria natureza, os senhores; por outro lado, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo quando têm as

forças físicas para realizar todas as tarefas necessárias, são, por natureza, servos. E é justo e útil que sejam

servos, e vemos que isto é sancionado pela própria lei divina. Pois está escrito no livro dos provérbios: „O tolo

servirá ao sábio.‟ Assim são as nações bárbaras e desumanas, estranhas à vida civil e aos costumes pacíficos. E

sempre será justo e de acordo com o direito natural que essas pessoas sejam submetidas ao império de príncipes

e de nações mais cultivadas e humanas, de modo que, graças à virtude dos últimos e à prudência de suas leis,

eles abandonam a barbárie e se adaptam a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se recusam esse

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“Aristóteles era um pagão que estará queimando no inferno e que os seus princípios deveriam

ser aceitos somente se fossem conformes à nossa santa religião”347

. A oposição de Las Casas

a Aristóteles é a mesma que tinham os Padres da Igreja, e que se manteria pela Idade Média,

até os inícios do século XIII348

. “Todos os esforços de Las Casas se concentravam na abolição

da escravatura indígena. [Mas] nem ele nem a Igreja atacaram com suficiente vigor essa

instituição de modo a impedir que os Jesuítas possuíssem considerável quantidade de escravos

negros na América Espanhola”349

. O mesmo vale, mas com menor intensidade ainda, para o

Brasil e para os esforços dos religiosos do período colonial.

As obras de Las Casas, principalmente a Brevísima relación de la destrucción de las

Indias, e os relatos de Cristovão Colombo, que acreditava ter chegado ao “paraíso na terra”,

tornaram comum a crença que atribui um tipo de bondade ingênua aos índios (os habitantes

das “Índias” – que era onde Colombo cria haver chegado, e assim nomeara aos seus

“naturais”, como também eram tratados nos documentos espanhóis da época). Criou-se assim

o mito do “bom selvagem”, que viraria lugar comum na literatura européia da Modernidade.

Somam-se ao imaginário popular os genocídios promovidos pelos colonizadores europeus e a

brutalidade com que trucidaram os povos indígenas350

. O índio em seu estado natural,

pensavam alguns, é mais puro e livre do que os homens da degenerada civilização. Michael

Eyquem de Montaigne (1533-1592) foi o primeiro grande nome da Europa a fazer referência

aos índios brasileiros, graças às informações obtidas por um enviado seu à França Antártica –

império, é permissível impô-lo por meio das armas e tal guerra será justa assim como o declara o direito natural

[...]. Concluindo: é justo, normal e de acordo com a lei natural que os homens probos, inteligentes, virtuosos e

humanos dominem todos os que não possuem estas virtudes”. Ver o texto completo em J. Genesii Sepulvedae

Cordubensis Democrates alter, sive de justis belli causis apud Indos = Demócrates segundo o De las justas

causas de la guerra contra los índios. Disponível em: <

http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12593394228031524198624/p0000001.htm> Acesso em:

21 out. 2008. 347

HANKE, Lewis. All Mankind is One: a study of the disputation between Bartolomé de lãs Casas and Juan

Ginés de Sepúlveda in 1550 on the intellectual and religious capacity of the American Indians. Illinois: Northern

Illinois University Press, 1974. p. 11. Para mais, no mesmo sentido, ver: GLIOZZI, Giuliano. Adamo e Il

nuovo: La nascita dell‟antropologia come ideologia coloniale: dalle genealogie idee razziali (1500-1700).

Fiorenze: La Nueva Italia, 1977. p. 288ss. 348

“Pelo nome „filósofo‟, na Idade Média, eram chamados os pagãos do passado, considerando-se Aristóteles

como o maior de todos eles, como o Filósofo por antonomásia.” (DE BONI, Luiz A. Pedro de João Olive: De

como devem ser folheados os livros dos filósofos. In: _____; PICH, Roberto H. (orgs.). A recepção do

pensamento greco-romano, árabe e judaico pelo Ocidente Medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p.

541. (Col. Filosofia, 171). 349

DIFFIE, Bailey Wallys. Latin American civilization: Colonial Period. Harrisburg: The Telegraph Press,

1945. p. 437. 350

Em L‟Histoire des Indes, Oviedo conta que “O almirante Colombo encontrou, quando descobriu esta Ilha

Hispaniola, um milhão de índios e índias... dos quais, e dos que nasceram desde então, não creio que estejam

vivos, no presente ano de 1535, quinhentos, incluindo tanto crianças como adultos, que sejam naturais, legítimos

e da raça dos primeiros índios... Alguns fizeram esses índios trabalhar excessivamente. Outros não lhes deram

nada para comer como bem lhes convinha”. (Oviedo apud Romano, 2007, p. 76).

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o Brasil, durante o tempo de Villegaignon. Visto que os índios desconheciam o que fosse a

“mentira”, a “traição” e a “avareza”, e mais alguns atributos que contrastavam com os maus

costumes da França, viu-os como seres criados por Deus em estado puro351

. Depois de

Montaigne, o autor mais comum de ser lembrado, no mesmo nível, é Jean-Jacques Rousseau

(1712-1778), pelo seu Discours sur l‟origine et les fundaments de l‟inégalité parmi les

homines, de 1755, onde fala do “bom selvagem” – mas que, em relação aos povos indígenas,

nada tem a ver352

.

Anchieta, que conviveu com os mesmos índios, no entanto, faz outras considerações

a respeito deles. Diz que, por exemplo, “os impedimentos que há para a conversão e

perseverar na vida cristã da parte dos índios, são seus costumes inveterados, como em todas as

outras nações”353

, embora os portugueses, com o fito de explorá-los fisicamente, tratem-lhes

“por selvagens”354

. Havia, aqui, aquilo que, no dizer de Stanley M. Elkins, comparando a

escravatura nos Estados Unidos e a da América Latina, chamou de “escravidão pesada”. Lá,

segundo ele, por volta de 1850, a escravidão “era, em geral, num sentido „físico‟,

provavelmente bastante suave” em relação ao modelo espanhol e português. Elkins, no

entanto, diz que, mesmo que a escravatura (nos EUA) fosse mais suave que em qualquer outra

parte do hemisfério ocidental,

Ainda assim seria perder de vista o objetivo fazer a comparação em termos de

conforto físico. Num caso estaríamos tratando da crueldade do homem para com o

homem, e no outro, com o cuidado, manutenção, e indulgência dos homens para

com as criaturas que legal e moralmente não eram homens – pelo menos não no

sentido em que a cristandade tradicionalmente define a natureza do homem355

.

351

Cf. MONTAIGNE, Michael de. Ensaios. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes,

2000/2001. (“Dos Canibais”. L. I, cap. XXXI). 352

Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os

homens. Apres. e coments. de Jean-François Brunstein. Trad. de Iracema Gomes Soares e Maria Cristina Roveri

Nagle. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Ática, 1989. As paixões que poluem a mente e

inflamam o corpo dos homens civilizados não são estranhas às sociedades indígenas, são apenas diferentes. O

“bom selvagem” de Rousseau, ao nível das utopias, existe enquanto ideal, e como fábula político-moral às

civilizações, qualquer uma. 353

ANCHIETA, 1987, p. 63. 354

ANCHIETA, 1987, p. 63. 355

ELKINS, Stanley M. Slavery: a problem in American Institucional and Intellectual Life. Chicago: University

of Chicago Press, 1959. p. 78. (Tradução própria). Retirando-se os excessos de Stanley – e eles existem –, a

mentalidade da Igreja (e falamos aqui de modo superficial) em relação aos escravos (índios e negros) sempre

variou muito, e muitas vezes conforme a situação. Isso significa que os juízos, mesmo os mais benévolos,

merecem reconsiderações. A idéia de um “senhor bondoso” – o dono da fazenda, o colonizador ou mesmo os

religiosos (quase todos os padres da Companhia de Jesus possuíam escravos) – é tratada como mito por Marvin

Harris, no capítulo 6 do seu livro: Padrões raciais nas Américas (1964), um texto que, nesse particular, merece

atenção.

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As observações de Anchieta em sua Breve informação do Brasil, de 1584, em

relação aos índios brasileiros são relevantes para que notemos que a orientação dos jesuítas,

de modo quase unânime, com suas deficiências ou não, ainda se mantém na base da doutrina

moral de Agostinho, na tradição mais antiga da Igreja – o que, por vezes, contraria a

orientação tomista – e no posicionamento próprio, dado à circunstância356

. Anchieta observa

que os índios, na guerra, ao matarem a outrem, “contentam-se com lhes quebrar a cabeça com

um pau, que é morte fácil. [...] Se de alguma crueldade usam, ainda que raramente, é com o

exemplo dos portugueses e franceses”357

. O índio, assim, parece ter um lado bom, destoante

do colonizador, e além do mais, parecem ter sido dignos do esforço evangélico dos próprios

apóstolos do Nosso Senhor. Anchieta, nesse sentido, diz que os índios “têm alguma notícia do

dilúvio, mas muito confusa”; relatam-no conforme os mais antigos; que também falavam da

presença de dois homens que viveram entre eles,

um bom e outro mau, ao bom chamavam Çumé, que deve ser o apóstolo S. Tomé, e

este dizem que lhes fazia boas obras mas não se lembravam em particular de nada.

[...] O outro chamavam Maira, que dizem que lhes fazia mal e era contrário de

Çumé, e por esta causa os que estão em guerra com os portugueses lhes chamam

Maira358

.

A “boa selvageria”, ou a “inocência mental” dos índios carece, para Anchieta, da

instrução cristã, e embora esse índio só tenha adquirido alguma crueldade “com o exemplo

dos portugueses e franceses”, ele carece da moral desses homens civilizados, cristãos. O

mesmo Anchieta que, em 1574, prega o sermão Contra o cativeiro dos índios, em Santos359

,

356

“Aí há conexões inescusáveis com a teologia e a moral”, diz Zavala, “porque no século XVI espanhol [e

verifivamos isso também no Brasil do mesmo século] os problemas humanos se enfocam preferencialmente no

ponto de vista da consciência. Assim o demonstram aquelas Sumas de tratos e contratos em que o teólogo se

propõe ilustrar ao mercador com respeito aos perigos que acham a sua alma. Da mesma maneira se estende nos

tratados políticos à saúde da consciência do príncipe e na dos homens de armas, como os conquistadores, que

vivem expostos a tentações contínuas”. (ZAVALA, 1977, p. 19-20 [tradução própria]). 357

ANCHIETA, Pe. Joseph de. Breve informação do Brasil. In: _____. Textos históricos. Pesquisa, Introd. e

notas do Pe. Hélio Abranches Viotti, SJ. São Paulo: Loyola / Em convênio com a Vice-Postulação da Causa de

Canonização do Beato José de Anchieta, 1989. v. 9, p. 60. (Obras completas do Padre Anchieta). 358

ANCHIETA, 1989, p. 62. A ligação, curiosa, do nome Çumé, ao do apóstolo, é reforçada por Anchieta

dizendo que: “Em algumas partes se acham pegadas de homens impressas em pedra, máxime em São Vicente,

onde no cabo de uma praia, em uma pedreira mui rija, em que bate continuamente o mar, estão muitas pegadas,

como de duas pessoas diferentes, umas maiores, outras menores que parecem frescas como de pés que vinham

cheios de areia, mas revera elas estão impressas na pedra. Estas é possível que fossem deste santo apóstolo e

algum seu discípulo” (ANCHIETA, 1989, p. 62). 359

ANCHIETA, 1987. p. 79. “Em 1576 [Anchieta] denunciara a Felipe II o tesoureiro real Fernando Montalvo

as tropas dos „portugueses de San Pablo‟, por seus „malos tratamientos y de sus tupies‟, na região de „viazá‟, ou

seja, na região da Laguna em Santa Catarina, onde vivia um ramo dos carijós, conhecidos no Brasil como índios

patos. Sua presença ali „causava pânico‟. Contra essas excursões predatórias se opunha energicamente o padre

Nóbrega, em seu tempo. E com não menor veemência o superior de São Vicente (1567-1577), padre José de

Anchieta”. (VIOTTI, 1987, p. 79).

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quando trata Dos impedimentos para a conversão dos brasis e, depois de convertidos, para o

aproveitamento nos costumes da vida cristã, diz que os brasis “são de uma natureza tão

descansada que, se não forem sempre aguilhoados, pouco bastará para não irem à missa nem

buscarem outros remédios para a sua salvação”, afirmando, em seguida, que

Todos esses impedimentos e costumes são mui fáceis de se lhes tirar se houver

temor e sujeição, como se viu por experiência desde o tempo do governador Mem de

Sá até agora; porque com o os obrigar a se juntar e terem igreja, bastou para

receberem a doutrina dos padres e perseverar nela até agora, e assim será sempre,

durando a sujeição360

.

A doutrina cristã da colônia traduz-se em obediência moral, e esta, por sua vez,

reduz-se ao cumprimento de “mandamentos” e à prática de rituais, muitas vezes, com

significados obscuros. Embora se diga que, “no fim do século XIII, a Europa inteira possuía a

mesma linguagem arquitetônica, expressão de uma fé comum, de uma unidade moral, de uma

síntese espiritual de que Tomás de Aquino foi o teólogo”361

, no Brasil, três séculos depois, o

Tomismo ainda era, de certo modo, recente, e flertando com Aristóteles, o “pai dos

hereges”362

–, não tinha ainda a influência que cresceria do final do século XVII em diante, na

Igreja Católica. No século XVI, aqui, há certa distância histórico-intelectual do Velho Mundo,

já dominado pelo Aquinate, pelos nominalistas363

e pelos reformadores que viam além de

Agostinho, mas sempre sobre os seus ombros.

360

ANCHIETA, 1987, p. 63. 361

PIERRARD, Pierre. História da Igreja Católica. Trad. de Serafim Ferreira. Lisboa: Planeta Editora, [s.d]. p.

142. Essa “unidade” é bem questinável, principalmente pelo lento processo em que, mesmo na Europa, o

pensamento do Aquinate foi ganhando espaço. Ademais, como diz De Boni: “Convém observar que Tomás, logo

após sua morte, não gozava do prestígio que séculos posteriores lhe concederam, e suas idéias não eram aceitas

sem restrições nem mesmo em boa parte da ordem dos dominicanos” (DE BONI, Luis A. As condenações de

1277: os limites do diálogo entre a Filosofia e a Teologia. In: _____. [Org.]. Lógica e linguagem na Idade

Média: atas do 4º Encontro de Filosofia Medieval da Comissão de Filosofia Medieval do Brasil. Porto Alegre, 8-

12 de Novembro de 1993. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 132. [Col. Filosofia, 23]). 362

“Miserum Aristotelem!”, dizia Tertuliano. Cf. De praescriptione haereticorum, c. 7. Rechaçado na Patrística

e, depois esquecido, Aristóteles ressurge por meio dos filósofos árabes, principalmente, nos sécs. XII e XIII, mas

mesmo aí a suspeita da Igreja recaiu sobre ele, que sempre foi visto com suspeição. Em 1210, um concílio

provincial parisiense proibiu que se ensinassem as obras de Aristóteles sobre filosofia natural, bem como fossem

lidos seus comentários. Em 1215, a ordenação do Studium de Paris, pelo legado papal Cardial Roberto de

Courçan, confirmou a proibição e ainda incluiu a Metafísica. Mas as proibições não se estenderam para outras

universidades importantes (como em Tolosa ou nas universidades da Inglaterra) – o que foi amenizando as

suspeitas. De 1231 – que foi quando Gregório IX determinou que as obras de filosofia ficassem proibidas

somente até serem verificadas por teólogos autorizados – a1263, já não se falavam em proibições, sendo as obras

estudadas livremente. Em 1366, por fim, o papa passou a exigir, como condição para a licenciatura na Faculdade

das Artes, que as obras de Aristóteles fossem ensinadas, todas elas. Era a vitória do estagirita. 363

O Nominalismo, grosso modo, diz respeito à doutrina que se opõe à idéia dos universais. Gêneros ou

espécies, por exemplo, nada mais são do que simples nomes, sem realidade fora do espírito ou da mente. A única

realidade são os indivíduos e os objetos individualmente considerados. O universal não tem existência própria, e

apenas mais um nome, um vocábulo com significado geral, mas sem conteúdo concreto, residindo apenas no

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O nome de Agostinho é uma constante nos sermões de António Vieira – é quase raro

ler um sermão seu em que o nome do Hiponense não apareça pelo menos uma vez –, que,

inclusive, compõe um Sermão de Santo Agostinho, que prega na Igreja e convento de São

Vicente de Fora, em Lisboa, em 1648. A finalidade, conforme o comentário atribuído ao

padre Honorati, na edição portuguesa364

, “é ter um assumpto não menos encomiástico que

moral”, e que, nesse particular, “é um dos mais instructivos”365

. Todos conhecem a fama de

Vieira, por seus sermões. Vieira é o modelo do orador católico do período Barroco. Na leitura

que faz da posição de Vieira e da Igreja Católica, no Brasil do século XVII, Thereza da C. A.

Domingues diz que:

Na época do Brasil colonial, a Igreja do Brasil foi marcada por duas posições

conflitantes: a posição sacerdotal, em que cumpria a sua missão profética, e a

posição política, em que se tornava justificadora da dominação. Na primeira posição

– a profética – a igreja era “a reveladora de Deus na face do outro” e assumia o

papel de protetora dos oprimidos contra os poderosos; na segunda – a política –, ao

contrário, a Igreja, não podendo, ela mesma vencer os poderosos, unia-se a eles,

num mesmo programa de dominação. Exercia, ao mesmo tempo, o papel do

dominador e do dominado. Ora estava num campo, ora noutro. Paradoxalmente,

conseguia, às vezes, estar nas duas posições ao mesmo tempo366

.

A obra de Domingues, embora destaque mais o método de Vieira, partindo de

leituras com base na Intertextualidade, merece atenção pelo fato de destacar doze sermões,

pregados no Maranhão e em Lisboa, de 1653 a 1655, sempre com ênfase na questão do índio,

e de como a Igreja e os colonizadores se portavam em relação a eles. Vieira, principalmente

nos sermões indigenistas, conforme Domingues, aparece como polêmico, satírico, astucioso,

irreverente, lúcido, denunciando de modo carnavalizado, como também fizera “Gil Vicente,

repudiando a hipocrisia medieval”, e “socializando a visão individualista da retórica

individual e no particular. No segundo período da escolástica medieval (século XIII em diante), com Alberto

Magno e Tomás de Aquino, prevaleceu a posição do realismo moderado. O nominalismo, no entanto, nos sécs.

XV e XVI, ressurgiu com toda a força – sem ser ortodoxo em relação à teoria escolástica, favorecia as ciências

naturais. Na Idade Média, com Rossellino de Compiègne (c. 1050-c. 1120/5), Guilherme de Champeaux (c.

1070-1121) e Pedro Abelardo, o problema dos universais teve importância axial. Nomes como os de Guilherme

de Ockham (1290/85-1349), Pedro d‟Ailly (1350-1420) e especialmente Gabriel Biel (c. 1420-1495),

nominalistas e mestres da via moderna (que se opunha ao realismo exagerado de Champeaux) que era ensinada

em Erfurt, foram os preceptores teológicos de Lutero. Mais sobre a querela dos universais, em Nicolau de Cusa

(1401-1464) – o último filósofo da Idade Média –, ver: RIOS, José González. Académicos y Peripatéticos em la

cuestión de los Universales, a la luz de la Concordantia Philosophorum de Nicolás de Cusa. In: DE BONI, Luiz

A.; PICH, Roberto H. (Orgs.). A recepção do pensamento greco-romano, árabe e judaico pelo Ocidente

Medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 717-29. (Col. Filosofia, 171). 364

Cf. VIEIRA, Padre Antônio. Sermão de Santo Agostinho. In: _____. Sermões. Rev. pelo Pe. Gonçalo Alves.

Porto: Lello & Irmãos – Editores; Lisboa: Aillaud & Lellos, Limitada, 1951. v. 8, p. 181. (Obras completas do

Padre Antônio Vieira). 15 v. 365

Padre Honorati, em: VIEIRA, 1951, p. 181. (nota). 366

DOMINGUES, 2001, p. 44-5.

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católica”367

. Vieira mantém a estrutura consagrada da retórica, didaticamente dividindo o

sermão em: 1) Prólogo (tema, sequência evangélica, intróito, plano do sermão, invocação,

dedicatória); 2) Argumento (corpo do sermão) e 3) Peroração (resumo, exortação). Quem

observa, com alguma atenção, as obras de Agostinho – principalmente os sermões –, nota a

semelhança rítmica, e, principalmente, o desfecho. Mesmo assim, conforme o historiador

católico Eduardo Hoornaert, nos discursos dos padres desse período,

Nos cronistas que narram os feitos da evangelização, encontramos uma identificação

na prática entre diversas terminologias: aumento da religião cristã (discurso

universalista), pregação do evangelho (discurso doutrinário), salvação das almas

(discurso soteriológico), redução dos índios (discurso guerreiro e redutivo)368

.

E, nas palavras de Domingues:

Todos esses discursos estão na obra de Vieira. [...] Há como que dois ou mais

Vieiras à procura do ouvinte ou do leitor. Um Vieira seria o Vieira-cortesão,

ideólogo do imperialismo, pronto a atualizar-se de todos os recursos para apoiar o

rei, com sua palavra cadente e ações arrojadas; o outro seria o Vieira-sacerdote, de

espírito aberto, que, entregue à luta pela liberdade dos índios, usa de todos os meios

para obter o apoio do rei369

.

Daí que, quando se lê, no Sermão de Santo Agostinho, um Vieira que diz, a título de

Prólogo (introdução),

Ao maior Santo entre os doutores, e ao maior Doutor entre os Santos, celebra n‟este

grande theatro como a pai, a primogenita de suas famílias. O Evangelho que n‟esta

solenidade canta a Igreja, não só no-lo propõe applicado a S.to

Agostinho, senão

também explicado por S.to

Agostinho. Eu porém venerando uma e outra coisa,

quanto devo, assim na applicação, como na explicação, acho uma implicação não

pequena. De sorte que temos hoje o Evangelho aplicado a Agostinho, explicado por

Agostinho, e implicado com Agostinho370

.

Tem-se a impressão de que, aí, fala mais o orador do que a oração – não pelos trocadilhos, tão

frequentes e naturais na própria obra de Agostinho, mas pela dualidade funcional que tais

discursos (e eles devem ser lidos em sua extensão) podem ou podiam ter. Certo mesmo é que

a Igreja Católica do Brasil colonial, aliada à Coroa e, ao mesmo tempo, identificada e

identificando-se como a legítima herdeira da legítima doutrina cristã, esteve, por várias vezes,

367

DOMINGUES, 2001, p. 20. 368

HOORNAERT, 2008. p. 26. 369

DOMINGUES, 2001, p. 45-6. Para as relações entre Vieira e o Império, ver: RODRIGUES, José Honório.

Antônio Vieira, doutrinador do imperialismo português. Kriterion, Belho Horizonte, n. 61/62, p. 628-51, 1962. 370

VIEIRA, 1951, p. 181.

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confusa; confusa em relação ao lado que deveria mais alimentar. Na dúvida, criou um terceiro

lado, o dela mesma: esse podia se manter, sem o elemento da dúvida, como uma ponte entre

os dois pólos, mas não havia um abismo a separá-los, então ela criou aquele sobre o qual

podia se estender, com alguma segurança. E fez isso de vários modos, um deles, que nos

interessa, foi “rejeitar” certas doutrinas agostinianas em função de outras, a de Tomás de

Aquino, por exemplo.

Autores contemporâneos do Aquinate, como Boaventura, a quem Agostinho era a

autoridade em matéria de doutrina, foram eclipsados, no decorrer da História, pelo gênio do

Doutor Angélico. São raras, nos relatos históricos, as menções ao nome do nobre franciscano.

Boaventura olhava com suspeita a teologia da sua época, enamorada do aristotelismo; recorria

a Agostinho como base segura da fé aliada à razão. “Agostinho é citado 3.050 vezes na obra

de Boaventura, tendo primazia o De Trinitate, os tratados sobre São João, sobre o Gênesis e

sobre os Salmos, o De civitate Dei e os Sermões”371

. São palavras de Luis Alberto De Boni,

que acrescenta:

Dele Boaventura herda, entre tantas coisas, através da tradição medieval, a doutrina

do exemplarismo, boa parte da teoria do conhecimento, a tese sobre a iluminação

divina, as linhas gerais do estudo da Trindade, e o apreço pelo neoplatonismo. A

consideração que por ele possui pode deduzir-se de uma passagem onde, ao falar

sobre o conhecimento, diz: ... parece que, entre os filósofos, Platão haja recebido a

linguagem da sabedoria, e Aristóteles a da ciência. Aquele volta-se para as

realidades superiores, este, ao contrário, principalmente para as inferiores. Mas

tanto a linguagem da sabedoria como a da ciência foram dadas pelo Espírito Santo,

de modo excelente, a Agostinho, como ao principal expositor de toda a Escritura372

.

Houve, principalmente por causa dessa “linguagem da ciência” aristotélica voltada às

“coisas inferiores”, um período de desconfiança para com as obras de Tomás de Aquino, mas

isso não durou tanto e, aos novos tempos (marcados pelo Renascimento e pela Ilustração,

principalmente), a voz do Aquinate em acordo com a de Aristóteles, ofereceu aquilo que ia

além das “coisas do alto”, do argumento do amor e da fé. Com o Aquinate a Igreja pôde

combater, com certa igualdade, os argumentos da “razão pura”. Agostinho estava “superado”.

Em 1879, quando foi publicada a encíclica Aeterni Patris, do Papa Leão XIII,

começou-se a falar num “movimento restauracionista” do tomismo, que também seria

371

DE BONI, Luis A. Apresentação. In: SÃO BOAVENTURA. Obras escolhidas. Trad. de Luis A. De Boni,

Jerônimo Jerkovic e Frei Saturnino Schneider; Org. de Luis A. De Boni. Porto Alegre / Caxias do Sul: Escola

Superior de Teologia São Lourenço de Brindes / Livraria Sulina Editora / Universidade Federal do Rio Grande

do Sul / Universidade de Caxias do Sul / Editora Vozes, 1983. p. XVI. 372

DE BONI, 1983, p. XVI-VII.

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conhecido como a “terceira escolástica”. O método de Tomás de Aquino voltaria aos estudos

regulares e aos seminários de teologia – principalmente na Ordem dos Pregadores373

. Já

a família regular inspirada em Santo Agostinho arvorou o seu próprio doutor, ou

mestre escola, Egídio Romano [...], que, num dado momento de sua vida, teve

posições tomistas, sem prejuízo de ser considerado o fundador da Escola

Augustiniana, presente nos institutos augustinianos, mas sem uma tão sensível

expiração pública como as do escotismo, e do tomismo, já que o baconismo dos

Carmelitas também não se tornou muito conhecido374

.

Assim, enquanto o escotismo e o tomismo ganhavam terreno, as comunidades

agostinianas não mostravam o mesmo ânimo, vindo a ser, conforme Gomes, um

“complemento do tomismo escolástico, em que surge como prolegómeno de teologia e da

virtude religiosa, e, com sua vertente incarnacional, pode fundamentar, como fundamentou,

um existencialismo cristão”375

. Para esse período, agora dominado pela teologia do Aquinate,

fala-se numa terceira escolástica – precedida pela escolástica medieval e a Segunda

escolástica, que dominaria todo o século XVII376

. Mesmo aí, nas palavras de Gomes, “todos

373

A Ordo Prædicatorum – também conhecida por Ordem dos Dominicanos ou Ordem Dominicana – foi

fundada por São Domingos de Gusmão (1170-1221), em 1216, em Toulouse, na França. 374

GOMES, 2000, p. 136. 375

GOMES, 2000, p. 136. Nesse sentido, a título de introdução à temática, ver o artigo de GOUVÊA, Ricardo

Quadros. Kierkegaard lendo Agostinho: introdução a um diálogo filosófico-teológico. Fides Reformata, São

Paulo, v. 4, n. 2, p. 12-37, 1999. Segundo esse autor, “há cerca de quarenta comentários explícitos sobre

Agostinho na obra de Kierkegaard” (GOUVÊA, 1999, p. 13). Também Albert Camus (1913-1960), para o seu

doutoramento em filosofia, escreveu a tese Métaphysique chrétienne et néoplatonisme, entre Plotin e Saint

Augustin (1936); e embora seja conhecido pelo seu existencialismo anti-cristão, a imagem de um Agostinho que

questiona o mal lhe era muito viva, como quando foi convidado para pronunciar-se aos dominicanos do mosteiro

Latour-Marbourg, em Paris: “Gostaria de deixar claro o fato de que não me sinto possuidor de uma verdade

absoluta ou mensagen”, diz ele. “Por essa razão”, continua, “jamais partirei do princípio de que a verdade cristã

seja uma ilusão, porém, sempre do fato de eu não ter conseguido acesso a ela”. E mais adiante: “Pergunto aos

cristãos: Continuará Sócrates a ser abandonado? Arriscar-nos-emos a permanecer como assistentes à já tatas

vezes repetida execução de Sócrates? Nós estamos diante do mal. Sinto-me realmente como Agostinho antes da

sua conversão: „Procurava pela origem do mal, mas não conseguia resolver essa questão‟. Mas eu sei, juntamente

com outros, o que fazer, pelo menos para não aumentar o mal, se podemos limitá-lo. [...] E se os cristãos não nos

ajudarem nisso, quem então, nesse mundo, poderá ajudar-nos?” (CAMUS apud BERNDT, Aldo. Absurdo,

revolta e exílio na obra de Albert Camus. Estudos teológicos, São Leopoldo, ano 1. n. 1, p. 67-8, 1961. 376

Há, no final do século XVII, um ponto de desvio concernente à incorporação ibérica da tradição intelectual da

Europa ocidental. Conforme MORSE, Richard. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Trad. de

Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 28-29, as convulsões nos campos intelectual e

teológico – e não havia uma separação entre intelectualidade e espiritualidade neste período – forçaram em

Portugal e Espanha a uma reorientação do paradigma cultural oficial. É neste contexto que a Segunda Escolástica

surge com toda a força. A Segunda Escolástica está ligada – até mesmo como sinônimo – à releitura dos textos

de são Tomás de Aquino. Tal retomada tem, em Portugal, destaque. Mormente no que diz respeito à direção

intelectual dos estudos, uma vez que o Ratio atque Instituto Studiorum – a “bíblia” jesuítica da educação formal

– recomendava a observância fiel das doutrinas aristotélicas, reinterpretada que estavam em são Tomás (Cf.

MORSE, 1995, p. 29).

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bebem de Agostinho, uns mais, outros menos, e, com efeito, não é só a Escola Franciscana

que, apesar de Boaventura e de Escoto, está imersa em augustinismo”377

.

3.9. Primeiras obras traduzidas, iconografia e popularidade de Agostinho no Brasil

A grande influência de Agostinho no Ocidente, bem como a disseminação e recepção

da sua doutrina moral, foi algo que, de modo progressivo, esteve sempre muito ligado à sua

grande produção literária378

, à leitura da mesma e o respeito que ela impunha, seja por sua

beleza estilística, teológico/doutrinal ou filosófica379

. Prova disso são as repetidas edições das

Confessiones, por exemplo, ou de tratados grandiosos como o De civitate Dei, De Trinitate,

etc. Agostinho também, como já vimos, foi precursor de várias linhas do pensamento

filosófico que, na contemporaneidade, se mantêm na moda, na vanguarda. No Brasil colonial,

no entanto, a produção de livros em língua portuguesa esteve sempre dependente de Portugal.

Foi somente em inícios do século XIX que o Brasil viu surgir, de modo muito acanhado,

alguma luz na sua história editorial380

. De modo muito lento é que a indústria do livro foi,

377

GOMES, 2000, p. 137. Na seqüência da citação: “[...] também a tradição tomista abunda, e mais do que pode

julgar-se, na inspiração dessa magistral espiritualidade, que procura não apenas o saber, mas também o amor”

(GOMES, 2000, p. 137). 378

Em 1954, a BAC (Biblioteca de Autores Cristianos) publicou, no volume XII das “Obras de San Agustín”, os

tratados de moral, reunidos num só volume, quais sejam: Del bien del matromonio; Sobre la santa virginidad;

De bíen de la viuvez; De la continencia; Sobre la paciencia; El combate cristiano; Sobre la mentira; Contra la

mentira; Dal trabajo de los monjes; El sermón de la montaña. Todos os livros (ou cartas), em latim e castelhano,

são precedidos de uma introdução geral sobre a obra e suas pretensões; a tradução é rica em notas explicativas. 379

Em Santo Agostinho, livro de Teixeira Pascoaes, que teve a sua primeira edição em 1945, consta: “Caso grave

e muito grave, traduzir as Confissões, um livro filosófico e místico, realista e poético, complexo e delicado, em

que há frutos só doçura e murmúrios, relâmpagos e nuvens, um espaço teológico e astronômico, onde os anjos e

as estrelas ardem na mesma claridade” (PASCOAES, Teixeira de. Santo Agostinho. Lisboa: Assírio & Alvim,

1995. p. 109-110). Nas “Notas prévias à tradução”, feitas para uma tradução portuguesa das Confissões, esse

mesmo respeito ao pensamento e ao estilo do Hiponense aparece, daí os tradutores afirmarem, dentre outras

coisas: “Percorrendo os palácios da memória humana ou mergulhando no tempo sem tempo antes do tempo,

Agostinho analisou conceitos, criou imagens, manipulou sentidos, deu largas ao seu temperamento artístico, de

que o leitor de língua portuguesa só desfrutará plenamente confrontando a tradução com o original latino”

(SANTO, Arnaldo do Espírito; BEATO, João Beato; PIMENTEL, Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa.

Notas prévias à tradução. In: SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. de Arnaldo do Espírito Santo, João

Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel. Lisboa: Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e

Brasileira / Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001. p. IX-XII, XI). 380

“Qualquer pequeno escrito original que surgisse no Brasil colonial deveria, forçosamente, ou ser publicado na

Europa ou permanecer na forma de manuscrito. Assim, as Cartas chilenas (comumente atribuídas a Gonzaga),

escritas em 1788 ou 89, não foram impressas senão em 1845; a História do Brasil de Vicente do Salvador (de

1627) só surgiu em 1889, e a poesia de Gregório de Matos, composta entre 1660 e 1692, teve que esperar até

1904” (HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. Trad. de Maria da Penha Villalobos e Lólio

Lourenço de Oliveira. São Paulo: T. A. Queiroz: Editora da Universidade de São Paulo, 1985. p. 22 [Col. Coroa

Vermelha: Estudos Brasileiros, 6); ver também: MENEZES, Djacir. Evolução do pensamento literário no

Brasil. Rio de Janeiro: Edição da “Organização Simões”, 1954. (Col. “Rex”). Menezes, tratando sobre “os

primeiros sinais literários” no Brasil colonial, diz que são desapontadores, que “são meras imitações dos modelos

portugueses, sem qualquer utilidade social ou política”, e, quando fala de como era a literatura em Portugal,

citando José Veríssimo, diz: “Em Portugal, pois poetas e literatos faziam até parte da domesticidade da corte e

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desde então, crescendo, e com ela as primeiras edições das obras do Hiponense – que ainda

estão, boa parte, por serem traduzidas.

No que diz respeito às traduções, em língua portuguesa, as Confissões é a primeira

que aparece, em 1783, traduzida por “hum devoto”, em Portugal – a primeira edição

castelhana é de 1554, pelo Fr. Sebastião Toscano, O.E.S.A, atendendo a um pedido de D.

Leonor de Mascarenhas381

.

É evidente que, ao longo dos séculos, grandes trechos, não somente das Confessiones

(ou Liber Confessionum), mas também de muitas outras obras do Bispo de Hipona,

apareceriam traduzidos em obras de ilustres escritores. Nada menos que duzentos e trinta anos

separam a tradução castelhana da portuguesa. A segunda tradução portuguesa das Confissões,

que é a primeira a aparecer no Brasil, só seria feita cento e cinquenta anos depois, em 1941,

pelos jesuítas portugueses J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. A primeira edição

brasileira das Confissões, que é a mesma dos padres Santos e Pina, só seria publicada em

1988, pela editora Vozes, de Petrópolis, Rio de Janeiro.

O Soliloquiorum, libri duo (de 386), seria traduzindo em 1784, em Portugal, por um

anônimo, com o título de Solilóquios Devotos. O Padre José Augusto Rodrigues Amado

(1900-1974), que foi Vice-Reitor do Seminário de Coimbra, foi o primeiro a traduzir os cinco

volumes dos Tractatus in Ioannes evangelium (Comentários ao Evangelho de S. João) – o

quinto volume tem o imprimatur do arcebispo-bispo conde D. Ernesto Sena de Oliveira, com

a data de 22 de janeiro de 1952 –, do Comentário a I epístola de S. João (em 1958) e do

Comentário ao Apocalipse. Outras obras, sempre de modo muito lento, apareceriam depois, a

exemplo de Contra os Acadêmicos (1945) e de De Magistro (1947), traduzidas mais de um

século e meio depois da primeira edição das Confissões, em 1783. Depois veio Da Ordem

(1964) e o volume de Sermões para a Páscoa (1974); O livre-arbítrio (1986), Diálogos sobre

a felicidade (1988), A natureza do bem (1992) e o Catecismo (1999). As traduções no

português de Portugal não eram tão acessíveis, mesmo aos mais abastados, e não eram

vulgarmente encontradas, como hoje. A Regra de santo Agostinho, hoje, é adotada por várias

famílias religiosas, masculinas e femininas. Entre as mulheres: as Cônegas de Santo

das grandes casas fidalgas e ricas, que os aposentavam e pensionavam, em troca dos poemas e escrituras com

que infalivelmente celebravam a família em cada um dos seus sucessos domésticos, nascimentos, casamentos,

mortes, façanhas guerreiras, vantagens sociais obtidas, aniversários. Como havia desses poetas efetivos,

privados, caseiros, os havia também ocasionais, não menos prontos às louvas hiperbólicas, à lisonja enfim, toda a

bajulação rasteira, em cambio da proteção solicitada ou em paga de alguma graça obtida”. (MENEZES, 1954, p.

46-47). 381

De D. Leonor (Almada, 24 Out., 1503 – Madrid, 20 de Dez., 1584), convém lembrar que “foi aia da Infanta

Dona Maria, filha de D. Manuel I, e que viveu e morreu em Madrid, com o pesado encargo de ser educadora dos

príncipes”. (MENEZES, 1954, p. 103).

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Agostinho, as Agostinianas de Meaux, as Brigidinas, as Visitandinas (de Santa Joana de

Chantal e São Francisco de Sales), as Irmãs do Bom Pastor (de São João Eudes), as Irmãs de

Santa Mônica, as Irmãs de Santa Rita, as Damas de São Tomás de Vila Nova, as Irmãs

Ursalinas e outras. Entre as sete ordens mendicantes, quatro adotam a Regra; são elas: os

Agostinianos (que têm vários ramos), os Mercedários, os Dominicanos e os Servos de Maria.

Além destes, os Cônegos de Santo Agostinho, os Premonstratenses, os Trinitários, os

Crucíferos, os Aleixianos, os Irmãos de São João de Deus, os Assuncionistas, etc. Assim, de

vários modos e meios, a obra do Hiponense, ou partes dela, vai se preservando e sendo

transmitida pela História.

O número de excertos, coletâneas de citações de Agostinho ou temas referentes a ele

é cada vez maior, seguindo a onda do mercado editorial crescente e popularidade do Bispo de

Hipona, por esse ou aquele motivo. No Catálogo de dissertações e teses redigidas sobre o

pensamento medieval, no Brasil, somente entre 1990 e 2002, organizado por José Rivair

Macedo e publicado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2003, constam nada

menos que 15 dissertações de Mestrado ou teses de Doutorado com o nome de Agostinho

diretamente ligado à temática382

– sem contar as que têm ligações indiretas, relativamente

associadas ao seu pensamento.

Um levantamento dessa natureza serve para que vejamos, salvo as citações em obras

de outros autores, que a obra de Agostinho, em traduções, só começou a aparecer na língua

pátria muito tarde – o que só vem a corroborar com a nossa afirmação de que o Bispo de

Hipona sempre foi mais conhecido por boca dos outros autores (com suas interpretações) do

que por ele mesmo; isso, ao menos nos três primeiros séculos, que foi onde concentramos

nossa investigação383

. O que nos leva àquela inevitável via da transmissão indireta e, por isso,

consequentemente e naturalmente, a alguma desconfiança dos maus juízos, dos juízos

apressados. De um autor tão usado por tantas confissões e comunidade de fé, é de se supor

que tal pensamento seja, não raro, distorcido conforme a conveniência da eisegese de cada um

– exemplo disso, um apenas, é o que certas teólogas, como já vimos, afirmarem em relação à

moral sexual “de Agostinho”.

382

Cf. MACEDO, 2003, p. 31, 33, 47, 54-5, 59, 71, 77, 87, 90, 99, 102, 112. 383

Um estudo sobre o legado de Agostinho à modernidade foi feito por Eudaldo Forment, é merece ser visto

como complemento – principalmente pela parte européia, aqui, praticamente ignorada. Cf. FORMENT, Eudaldo.

El legado agustiniano y la modernidad. In: Revista Agustiniana, Madrid, v. 38, n. 115-116, p. 219-67,

enero/agosto. 1997.

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3.9.1. Iconografia agostiniana e lugares nomeados à sua memória

É provável que a primeira vez em que o nome Agostinho tenha sido mencionado em

solo brasileiro, deu-se em 1502, quando Américo Vespúcio, após costear o litoral do Nordeste

brasileiro, notou que o Brasil não era uma ilha, mas um vasto continente, nomeando alguns

dos seus acidentes geográficos, como a baía de Todos os Santos, o Rio São Francisco e o

Cabo de Santo Agostinho384

, nomes que homenageavam o santo do dia. A pinacoteca do

Instituto Ricardo Brennand, em Recife, abriga aquela que é, no Brasil e fora dele, a maior

coleção de obras autênticas do pintor holandês Frans Post (1612-1680)385

. Entre as pinturas,

uma gravura de 1645, com vista panorâmica da praia de Suape, na cidade do Cabo, e uma

flâmula alada que a nomeia: caput S. Avgustini; a mesma que se vê, reproduzida, no livro de

Caspar Barlaeus (1584-1648)386

.

Não são incomuns, embora também não seja vulgar, no Nordeste, principalmente por

haver sido palco das “primeiras histórias do Brasil”, principalmente nas Igrejas dos

Franciscanos e das irmãs Carmelitas – sem contar, óbvio, com as instituições ligadas às várias

Ordens que levam o nome de Agostinho –, as referências icônicas a Agostinho; exemplares

são as Igrejas de São Francisco, hoje Centro Cultural de São Francisco, em João Pessoa,

Paraíba, e a Igreja e Convento Santo Antônio, em Igarassu, Pernambuco, ambas do século

XVI. Na sacristia da Igreja de Santo Antônio – transformada em um museu, e próxima à

Igreja dos Santos Cosme e Damião, a mais antiga Igreja Católica do Brasil –, há um arcaz,

provavelmente do século XVII; sobre ele, e compondo-o, o conhecido ícone do Senhor

crucificado, ladeado por quatro quadros que representam os quatro doutores da Igreja latina:

Agostinho, Gregório Magno (540-604), Ambrósio e Jerônimo. Agostinho é o primeiro, à

destra do Senhor, com Gregório à sua direita. Porém, antes dos doutores, ao lado do

crucificado, há espelhos que têm o mesmo formato e tamanho dos quadros; como se desse a

384

As escolas do Cabo, hoje, ensinam que o primeiro a chegar no seu litoral, no dia 20 ou 26 de janeiro de 1500,

ou entre 20 de janeiro e 20 de fevereiro, ou outra data – porque existem várias em vários textos por toda a parte –

, foi o navegante e explorador espanhol Vicente Yañez Pinzon (c. 1462-1514), que integrara a primeira Armada

de Colombo (1412). Conta-se que o mesmo tomou posse do Cabo, em nome da Coroa espanhola, mas, devido ao

Tratado de Tordesilhas (1494-1750), o lugar não seria reclamado até a chegada dos portugueses, três meses

depois. Pelo Tratado, respeitava-se o meridiano imaginário que estabelecia que apenas as terras localizadas a 370

léguas a Oeste do Arquipélago de Cabo Verde, no Atlântico, perteneciam à Coroa espanhola; o que ficasse a

leste, pertencia aos portugueses, ou pertenceria – que foi o caso do Cabo. As primeiras povoações só chegariam

aí na segunda metade do século XVI. 385

Frans Janszoon Post (1612-1680) chegou ao Brasil em 1637, com apenas 21 anos de idade. Tomou parte em

diversas expedições do Conde Maurício de Nassau, com o objetivo de montar uma grande coleção de desenhos

que representassem o Brasil Holandês, do Maranhão até a Bahía. 386

Trata-se da ilustração nº 37. Cf. BARLAEUS, C. Nederlandsch Brasilìë onder net bewing van Jahan

Maurits Grave van Nassau 1637-1644, übersetzt v. S.P. L‟Honoré Naber, Den Haag, 1923.

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entender que, mesmo o menor, na fé, se faz grande, como e com os doutores, próximos do

senhor; e é isso que o fiel via ao contemplar a sua imagem refletida no espelho do móvel, ao

lado de Gregório Magno, à esquerda do Senhor, e Ambrósio, à sua esquerda. Nas pinturas,

cada doutor é representado por aquilo que lhe caracteriza: livros, pombas voando sobre suas

cabeças (símbolo do Espírito Santo, da inspiração divina), etc. O Hiponense, aí, tem os olhos

voltados para o céu e segura em sua mão direita, como se doando, um coração em chamas; e é

o seu coração – como é comum que o Bispo de Hipona seja representado, dado a imagem que

aparece tão vivamente nas suas Confessiones.

Ícones de Agostinho, juntamente com os Doutores Latinos, há por várias Igrejas

espalhadas pelo Brasil; mas, o que elas dizem àqueles que as contemplam? Um estudo

iconográfico do Hiponense, no Brasil – à semelhança do levantamento bibliográfico já

referido –, também está por ser feito. Parece-nos que o papel da pintura sacra, à semelhança

dos vitrais ou das imagens da Quaresma, é servir de leitura àqueles que não sabem ler, servir

de memorial aos que sabem, e ainda nessa pedagogia: representar a ação do sagrado na

história humana e o testemunho dos homens de fé, tocados por ela. Eles, os homens da fé, nas

representações da arte, são os modelos para o povo. É com tal intenção que as imagens na

pintura sacra, e bem aí os ícones de Agostinho – que não lhe correspondem, realmente –,

existem.

É evidente que essas leituras, com base nos ícones e na arquitetura de um período,

tornam-se subjetivas, mais que a própria fé. Trata-se de uma hermenêutica sem método,

naturalmente fundada no “olhar da fé”, do “do coração”, “da alma”. O rigor científico ou

sistemático, por isso, é empregado quase que como uma “licença poética”. É evidente, por

fim, que a mera aparição icônica de Agostinho em alguns poucos quadros, ou no seu nome

dado a uma cidade, ou a capelas várias, Igrejas e colégios, bem como nos incontáveis

Agostinhos, assim registrados, não representa uma influência diretamente ligada à sua ética,

sua moral ou mesmo à sua teologia e filosofia. Entrementes, como esperamos haver sido

notado, há um motivo histórico documental de o nome do Hiponense ser e estar associado a

tantas coisas. Aqueles que ouvem o nome de Agostinho, mesmo pela força da tradição

histórico-cultural, salvas as exceções, estão envoltas em influências que eles mesmos

desconhecem. Exemplo disso é a repetição, comum, de algumas frases de Agostinho que, ao

longo do tempo, transformaram-se em adágios populares, tais como: “Quem dá aos pobres,

empresta a Deus387

”; “Deus ama o pecador, mas odeia o pecado388

”; “A medida de amar é

387

“Todo homem que faz ato de benevolência dá emprestado a Deus”. (De Serm. Dom., I, 20, 68).

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amar sem medidas”389

, etc. Prova disso também é a utilização da sua imagem contradita,

como no caso da estampa na flâmula do tradicional Prêmio Angelo Agostini, onde a figura do

famoso desenhista italiano, abaixo do nome “Sto. Agostini”, ostenta uma aureola quadrada e o

dito jocoso, em latim: “Nihil sacrum est”390

.

3.9.2. O que os livros não dizem, e o que se diz à boca miúda

A discussão sobre a origem da literatura brasileira, suas relações com Portugal, com

a França e com as grandes potências literárias, é, ainda hoje, muito viva – e isso tudo atrelado

à pergunta pela influência que a Europa letrada legou à cultura brasileira. De fato, quando

José Adearaldo Castello, escrevendo sobre a literatura brasileira produzida no período

colonial – na época barroca (1601-1768) –, fala da vida espiritual na colônia, diz que devemos

considerar as condições de ensino além da Igreja, oriundas, grosso modo, de estudantes

brasileiros formados em Coimbra. “Quanto à vida espiritual do Brasil-Colônia”, diz ele,

Tivemos ensejo de considerá-la em outra parte [páginas 31 a 57]. Referimo-nos,

partcularmente, às condições de ensino. Devemos relembrar que, favorecidos pelo

nosso desenvolvimento econômico, concentrado em Pernambuco, Bahia, Rio de

Janeiro e Minas Gerais, as famílias brasileiras ou as portuguêsas radicadas na terra

passaram a enviar seus filhos, depois dos estudos preliminares no Brasil-Colônia,

para os cursos superiores em Portugal. São justamente êstes estudantes brasileiros da

Universidade de Coimbra que, ao regressarem, se tornam os principais

representantes das manifestações literárias européias que aqui repercutiram. A

educação de brasileiros em Coimbra se de um lado contribuiu para o

desenvolvimento literário do Brasil-Colônia, de outro reforçou o espírito ou a

mentalidade portuguêsa entre nós391

.

Não se pode ignorar que o acesso aos livros não era coisa fácil; e, ademais, não basta

ter o livro, é preciso saber ler e, mais que isso, para que a leitura seja eficaz, saber interpretar

o texto lido. Quando pensamos no pouco acesso às letras, pensamos no grande número de

388

Que, na Carta 221 (Patrologia latina, 1845, v. 33), aparece assim: “Ame o pecador, mas odeie o pecado”. 389

Epist., 109, 2. 390

O Prêmio Angelo Agostini, criado em 1984, é uma das mais tradicionais premiações de arte sequencial

realizada no Brasil. Foi criado e organizado pela Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São

Paulo (AQC-ESP). O nome é uma homenagem a Angelo Agostini (piemontês nascido em Farcelle, Itália, a 8 de

abril de 1843), que chegou ao Brasil em 1859 (e onde morreu, em 1910). Agostini, anticlerical, republicano e

abolicionista, é o criador da primeira história em quadrinhos (a “nona arte”) feita no Brasil: As aventuras de Nhô

Quim ou Impressões de uma viagem à Corte, que começou a ser publicada em 30 de janeiro de 1869. 391

CASTELLO, José Aderaldo. Manifestação literária da Era Colonial (1500-1808/1836): a literatura

brasileira. 3. Ed. São Paulo: Cultrix, 1960. v. 1. p. 61. Dois livros clássicos sobre os inícios das manifestações

literárias no Brasil: COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 17. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil, 2001; CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. Ed. Belo

Horizonte: Editora Itatiaia Ltda., 2000. 2 v. (Col. Reconquista do Brasil, 177-178).

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analfabetos que constituíam a maior parte da população brasileira nos seus primeiros séculos.

Não foi a menos de cinco décadas que o problema do analfabetismo, no Brasil, começou a ser

tratado mais seriamente; quando foi visto, conforme alguns líderes políticos, notadamente os

de influência esquerdista, como um entrave ao progresso. As grandes massas, iletradas,

costumam repetir o que ouvem, quase sempre de modo acrítico. E, antes do advento e

popularização do rádio e depois da TV, o que mais lhes falava ainda era a Igreja – que foi, por

muito tempo, à grande maioria do povo brasileiro, o único programa do final de semana.

Uma discussão sobre a influência da literatura nos primeiros séculos do Brasil, de

modo direto, considera apenas o público elitizado, logo mínimo; primeiramente da corte e

depois das grandes cidades. Tal discussão, naturalmente, ignorará, como se invisíveis fossem

as grandes massas que, espalhadas pelos interiores, nem sabiam ler e nem podiam comprar

livros, tendo-os como objetos de luxo, de demonstração de poder. Ter uma biblioteca em casa,

no Brasil, por muito tempo (e para muitos ainda hoje), era símbolo de abastança, de status e

opulência; o livro ainda é, para muitos, capital simbólico. A transmissão do saber dos livros

foi, nos Brasil, principalmente nos seus dois primeiros séculos, uma tarefa da Igreja, da

catequese, e depois das Universidades que, ou vinculadas ou tuteladas por elas, mantinham o

controle sobre as informações, postergando o livre pensar, o ousar ir além do estabelecido, do

engessado que, assumido como dogma, tem no status quo o seu porto seguro. Nem é preciso

lembrar que o Sapere aude, lema da Ilustração – originalmente utilizado por Horácio –, era

evitado e temido pelos padres que catequizavam o povo do Brasil na santa fé da Igreja; da

Igreja de Roma. Daí não ser estranho notar que a Igreja, ainda hoje, principalmente em sua

liturgia, mantenha modelos que se ligam diretamente à liturgia medieval; porque a tradição,

como vimos, tem peso quase que equivalente ao da Escritura.

A cultura ocidental ainda é, em grandes medidas, a cultura cristã; e isso não sofreu

muitas mudanças392

, não obstante o crescimento do secularismo e a penetração de outras

392

As inúmeras edições e traduções de Zur Genealogie der Moral. Eine Streitschrift [Genealogia da moral: uma

polêmica], obra de 1887, de Nietzsche, e a utilização que se faz dela nas academias – como nós mesmos tivemos

oportunidade de estudá-la ainda na Graduação –, são testemunhos evidentes do que aqui é afirmado. Na

“primeira dissertação”, por exemplo, Nietzsche cita Tomás de Aquino e Tertuliano, ridicularizando-os (Cf.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. notas e posfácio de Paulo César de Souza.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 40, [Primeira Dissertação, § 15]), após haver afirmado, ainda no

“Prólogo”: “De fato, já quando era um garoto de treze anos me perseguia o problema da origem do bem e do

mal: a ele dediquei, numa idade em que se tem „o coração dividido entre brinquedos e Deus‟, minha primeira

brincadeira literária, meu primeiro exercício filosófico – quanto à „solução‟ que encontrei então, rendi

homenagens a Deus, como é justo, fazendo-o Pai do mal.” (NIETZSCHE, 1998, p. 9 [§ 3]). Mais adiante, na

“Terceira dissertação” [§ 24]: “Sim, não há dúvida – e aqui deixo falar a minha Gaia ciência, cf. seu livro

quinto, seção 344 – „o homem veraz, naquele ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma

um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e na medida em que afirma esse „outro mundo‟,

como? ele não deve assim negar o seu oposto, este mundo, nosso mundo?... É ainda uma fé metafísica, aquela

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religiões. Assim, embora alguns indivíduos mencionem o nome de Agostinho aleatoriamente,

não o fazem sem trazer em si, impressas na alma – porque é a cultura que também nos dá uma

alma, uma identidade –, aquelas concepções sobre o bom, o bem, o agir conforme a fé,

conforme a razão, conforme o recebido. Não é isso que faz a Igreja em sua prática

catequética? Não é isto que fazem as ordens religiosas quando preservam e transmitem a

doutrina do seu fundador? A moral cristã é a alma do Ocidente, e, por herança direta, a nossa

alma.

A presença de Agostinho, no Brasil, não se deu apenas por suas obras, direta ou

indiretamente transmitidas; missionários agostinianos também trabalharam em prol da fé do

Bispo de Hipona, e no intento de legá-la à posteridade. No Brasil, foi no dia 17 de junho de

1899 que chegaram ao Rio de Janeiro, provenientes da Espanha, os primeiros religiosos

Agostinianos da Província de Filipinas: Padres Joaquín Fernández, Alfredo Carrocera Valdés,

Cándido de San Miguel, Baltasar Gamarra e o Frei Maximiano Andrés. Depois de uma breve

permanência na então capital da República, os agostinianos partiram para Catalão (sudeste do

Estado de Goiás), chegando aí no dia 2 de julho do mesmo ano. Alugaram uma pobre casa,

tão pobre que, se fôssemos mencionar aqui o mobiliário de que dispunham, ficaríamos

admirados pela sua privação e simplicidade. Pouco tempo depois os religiosos tomaram conta

da Paróquia de Ipamerí. Isso aconteceu no dia 16 de agosto de 1899393

.

O modelo doutrinal e catequético dos agostinianos, no Brasil, não diferia (em

obediência à Regra) daquele que tiveram por todo o mundo, a exemplo dos missionários

agostinianos italianos em Macau394

. O que determinava as diferenças – ou a adequação – na

administração da Regra eram as culturas em que os missionários se inseriam.

sobre a qual repousa a nossa fé na ciência – e nós, homens do conhecimento de hoje, nós, ateus e antimetafísicos,

também nós tiramos ainda nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era

também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... Mas como, se precisamente isto se torna

cada vez mais incrível, se nada mais se revela divino, exceto o erro, a cegueira, a mentira – se Deus mesmo se

revela como nossa mais longa mentira?” (NIETZSCHE, 1998, p. 139-40). 393

VV.AA. Cem anos de Santo Agostinho no Brsil. In: Ordem de Santo Agostinho no Brasil – OSA.

Disponível em: ‹http://www.osa.org.br/osa/› Acesso em: 29 mai. 2007. Na mesma página é possível encontrar

uma revista on-line que, lançada em 1999, comemorava os cem anos da Ordem de Santo Agostinho no Brasil.

Cf: ‹http://www.osa.org.br/osa/revista/pag1.htm› 394

Macau foi colonizada por Portugal no século XV, e só se tornaria independe em dezembro de1999, sendo

incorporada à República Popular da China. Foi o primeiro entreposto e a última colônia européia na China. A

Ordem dos Agostinianos está presente em Macau desde 1586. Foi expulsa em 1712, vítima da política anti-

clerical que havia em Portugal no século XVIII – suavizada tal política, no século XIX, a Confraria de Nosso

Senhor Bom Jesus dos Passos, em 1873, tornou-se a nova proprietária da Igreja de Santo Agostinho, que é hoje

monumento hitórico do Centro Cultural de Macau, que, por sua vez, foi eleito Patrimônio Mundial da

Humanidade, pela UNESCO. Por cima do altar-mor da referida Igreja há uma grande imagem de Agostinho,

toda esculpida em mármore.

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3.9.3. Santo Agostinho: um popular santo impopular

Embora não se conheça nenhum milagre atribuído a Agostinho395

– uma exigência

moderna –, ele foi canonizado em 1622, popularmente reconhecido como santo e Doutor da

Igreja. O dia da sua morte, 28 de agosto, é o dia em que a Igreja Romana celebra-o. Agostinho

é também reconhecido como santo padroeiro dos cervejeiros, dos impressores, dos teólogos e

de um grande número de cidades e dioceses, tendo, no Brasil, vários colégios e instituições

que levam o seu nome. Mas, embora todo esse reconhecimento, não é comum ver um devoto

do Hiponense, ou mesmo alguém, pelos méritos do seu nome, suplicar uma graça. Daí Gomes

afirmar que

Os “Doutores da Igreja”, dignos de culto e de piedade, raro conseguem a calorosa

efectividade da piedade popular. Dos trinta e três “Doutores” da Igreja (catálogo de

1997, após a proclamação de Santa Teresinha, pelo Santo Padre João Paulo II) os

mais antigos quatro (Ambrósio, Jerônimo, Agostinho e S. Gregório Magno) e

também os posteriores surgem ao comum do povo um tanto figuras distantes, a

quem se torna difícil apelar nas calamidades396

.

Acontece que o catolicismo, no Brasil, tendo a sua maior força nas classes populares

– assim nos parece –, parece se identificar mais e melhor com os santos sofredores e

humildes, os “santos populares”397

. Nomes como o de Agostinho ou de Tomás de Aquino, por

395

Há um relato estenográfico de, provavelmente, 425, conforme consta em Sermones 320-23 (PL, 32, col. 1442-

46), de Agostinho, em que um homem chamado Paulo (da Capadócia, na Cesaréia), acometido por terríveis

tremores – bem como os seus dez irmãos –, advindos, segundo ele, de uma maldição rogada por sua mãe. Esta se

enforcara ao arrepender-se do que fizera. Ele e uma irmã sua, tempos depois, saem em peregrinação até o altar de

São Laurêncio, Mártir, em Ravena; de lá rumam para vários outros pontos de peregrinação, onde se falam de

milagres obtidos pela ação de Deus e das relíquias dos santos. Os dois irmãos chegam a Ancona, na Itália (esse

altar teria sido erguido a partir de uma pedra que atingira o cotovelo de santo Estevão, quando do seu martírio),

mas não é curado ali. Em Uzila, na África, a irmã tem uma visão: “Um velho, venerável por seu brilhante

aspecto e cabelos vrancos”, diz a moça, conforme relatodo por Paulo, “disse-se que, dentro de três meses, eu

receberia a saúde que desejava.” E Paulo continua: “Minha irmã, em outra visão, viu Sua Santidade [ou seja,

Agostinho] como nós o vemos hoje. Assim, aprendemos que deveríamos vir aqui”. (Ver o relato completo em:

HILLGARTH, 2004, p. 42-5). “Ao lidar com o culto aos mártires, Agostinho tentou sempre manter o devido

equilíbrio teológico. Como disse no Sermão 318: „O Mártir Estevão é homenageado aqui, mas o Recompensador

de Estevão é adorado‟. Mas os quatro sermões de Agostinho [...] a respeito da cura miraculosa de um irmão e

uma irmã no altar de Santo Estevão, em Hipona, nos idos do ano 425, concordam completamente nos relatos

(frequentemente lidos na Igreja de Hipona) de milagres e visões atribuídas a relíquias. [...] Sendo originário de

uma região que falava grego, Paulo nunca poderia comandar o latim de Agostinho ou suas referências teológicas.

Esses milagres de 425 d.C. foram usados por Agostinho em A cidade de Deus, XXII, 8, onde declara que, em

424-26, quase 70 milgres ocorreram no altar em Hipona”. (HILLGARTH, 2004, p. 33-4). E assim, embora

Agostinho esteja na visão dos dois irmãos, é à intenção de Estevão que o milagre, por ação de Deus, é atribuído. 396

GOMES, 2000, p. 86. 397

A temática do “catolicismo popular”, elevada ao nível de “problema” frente ao catolicismo instituído, oficial,

ou “não popular”, é tratada por AZZI, Riolando. O Episcopado no Brasil frente ao Catolicismo popular.

Petrópolis: Vozes, 1977. Ver ainda, e para o mesmo sentido: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. O catolicismo do

povo. In: _____et al. Evangelização e comportamento religioso popular. Petrópolis: Vozes, 1978. p. 11-40.

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exemplos, pertencem mais ao mundo da razão – às vezes visto como mais distante da emoção

e da fé – que ao mundo concreto, da realidade que é, geralmente, ao fiel, dura, urgente. Não

há, como alguém pode pensar, uma unidade no pensamento da Igreja Romana, embora a

estrutura, enquanto instituição, procure manter um único discurso: aquele que vem da sé de

Roma398

. Assim, em relação aos seus santos, o povo é quem, por necessidade e proximidade,

elege os seus. Santo Agostinho, por isso, muito provavelmente, é mais conhecido pelos

religiosos intelectuais que, ainda, e em obediência às determinações de Roma, têm em Tomás

de Aquino a sua voz oficial, em se tratando da teologia.

398

Não por acaso, e neste sentido, STACCONE, Guiseppe. Filosofia da Religião: o pensamento do homem

ocidental e o problema de Deus. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 191, afirma: “Toda religião, inclusive a católica (ou

antes, notadamente a católica, precisamente pelos seus esforços de permanecer „superficialmente‟ unitária, a fim

de não fragmentar-se em igrejas nacionais e em estratificações sociais), é, na realidade, uma multiplicidade de

religiões distintas, freqüentemente contraditórias. Há um catolicismo dos camponeses e um catolicismo dos

pequenos burgueses, um catolicismo das mulheres e um catolicismo dos intelectuais, também este variado e

desconexo”.

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Conclusão

Agostinho foi, sem dúvida, o mais influente pensador ocidental dos primeiros séculos

da Idade Média. Nele, como vimos, se originou a filosofia que, pela primeira vez, deu o

suporte racional que marcou o cristianismo pelos séculos seguintes; e aí, nesse suporte, o seu

pensamento ético-moral se mostrou, a um só tempo, especulativo e prático – conclamando a

cristandade a uma vida inteira, refletida (aos moldes socráticos) e a serviço do Outro (seu

“próximo”), e de Deus. De nada adianta o saber se ele não leva o sábio a ser melhor: para si –

grande abismo1 –, para o mundo e para o Outro. Assim sendo, ele (o cristão) é, para Deus,

naturalmente, melhor. Esse “melhor”, consequentemente, tem apelos morais que,

fundamentados, acabam por esbarrar em Deus: “Porque só há um que é bom”, diz o Cristo, e

esse “Uno” é fonte de todo o bem que há2.

Ora, a boa ação, assim, segue tanto uma linha horizontal – que se dirige para o Outro,

em/no amor – como uma vertical, que se volta para Deus, fonte de todo o bem e amor real3. É

no amor que o cristão encontra seu lugar na ordem do mundo. Aí, nela, ele não pode ser e

nem é fim em si mesmo, na mesma medida em que nada no mundo o é. Por meio desse amor

que a tudo ordena o indivíduo é compelido a encontrar a fonte de toda a ordem, e o ponto de

partida de tal odisséia é o próprio Eu interior, para onde volta, e de onde sai – devendo amar a

1 Conf., IV, 14,12: “Grande abismo é o homem.”

2 “Por serem bons, procedem de Deus; por não serem plenamente bons, não são Deus. Por conseguinte, o único

bem que não se pode deteriorar é Deus. Os demais bens procedem dele, podem se deteriorar por si mesmos,

porque por sua própria procedência nada são. É pelo mesmo Deus que alguns bens, em parte, não se deterioram e

que outros, deteriorados, podem recobrar a sua integridade” (De vera rel., 19, 37). 3 “O nosso amor é uma participação direta com a Bondade subsistente (como a nossa intelecção com a Verdade),

de modo que, nas criaturas, é Deus nos seus reflexos que amamos; por isso o movimento voluntário não pode

parar senão em Deus.” (THONNARD, F. –J. Compêndio de História de Filosofia. Trad. de Valente Pombo.

Paris: Sociedade de S. João Evangelista: Desclée e Cña, Editores Pontifícios, 1953. p. 243).

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quantos participam da sua natureza4. “Pelo duplo preceito do amor” [amar a Deus sobre todas

as coisas, e ao próximo como a si mesmo], diz Marcos Costa,

Agostinho faz da ordem social um prolongamento da ordem moral individual, pois a

organização dos homens em sociedade, fundamentada na reta ordem do amor, não

tem outra finalidade senão garantir a paz temporal, ou a felicidade temporal imediata

dos homens, mas tendo em vista a “paz eterna” ou “Verdadeira Felicidade” a ser

alcançada em Deus5.

Antes de Agostinho, como vimos, já há uma filosofia moral bastante desenvolvida e

diversificada, desde Platão até os epicureus e estóicos, principalmente. Tais escolas, no

entanto, não vêem essas linhas assim, tão juntas e necessárias – para que todos os espaços do

agir humano estejam preenchidos. Elas, todavia, naquilo que têm de verdade segundo as

Escrituras – e conforme a interpretação dos Padres, e de Agostinho em particular –, serão

assimiladas e desenvolvidas pelo cristianismo. Desde o apóstolo Paulo, que o Hiponense

privilegia dentre todos os escritores sagrados, esse via dupla já se faz notar, como se dois

braços fossem – para que a fé se sustentasse ainda mais e tenha um discurso que vá além do

que lhe é natural. E não é preciso dizer que, no corpo, sempre tem o braço de mais força, que

é, mais comumente, o direito. Esse braço direito da ação, em Agostinho, seria o braço da fé,

da doutrina cristã; o outro, o da razão, da filosofia. Neles, e de uma perspectiva psicológica

até então inexistente, o Hiponense introduzirá a sua doutrina da interioridade, da iluminação,

do Mestre interior. De fato, é a partir de Agostinho que, entre nós, como Hegel disse, foi

introduzido esse “elemento de interioridade que faltou aos gregos”, e “esse novo princípio é o

eixo sobre o qual gira a história universal. Até aqui, e a partir daqui, desenvolve-se a

história”6. Eis o eixo e o lastro sobre o qual fundamentamos toda a nossa investigação. Assim,

esperamos ter mostrado os primeiros alicerces desse edifício moral no qual reside a cultura do

Ocidente, e por nosso interesse próprio, a do povo brasileiro.

No livro de Arnaldo Momigliano, As raízes clássicas da historiografia moderna, a

presença de Agostinho, como um espectro onipresente, parece se esconder, quando não se

revela claramente, em cada página, em suas entrelinhas. A alma brasilis se liga a uma

tradição histórico-milenar, cristã-paulino-agostiniana. Se Agostinho, na obra de Momigliano,

4 Ep., 130, 6,13. Assim, em Conf., VII, 10,16: “Aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração,

conduzido por Vós. Pude fazê-lo, porque Vos tornastes meu auxílio. Entrei, e, com aquela vista da minha alma,

vi, acima dos meus olhos interiores e acima do meu espírito, a Luz imutável.” Ver ainda: Cont. acad., 3, 19,42;

De ord., 1, 1,3; Enn. in Ps., 145, 5. 5 COSTA, Marcos Roberto Nunes. Introdução ao pensamento ético-filosófico de Santo Agostinho. São Paulo:

Loyola, 2008. p. 54. 6 HEGEL, 1999, p. 271-2.

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não é um historiador – e não é mesmo –, o mesmo não se pode dizer em relação à sua

privilegiada posição de filósofo e, antes de tudo, de teólogo. E é nessas condições que ele

assenta as bases de muito do que, na História, na Filosofia e na Teologia, virá depois – até,

pelo menos, o nascimento da modernidade.

A Idade Média não produziu um verdadeiro historiador. As potencialidades da

concepção providencial de história não foram desenvolvidas até o século 18, quando

a cidade celestial de Santo Agostinho foi secularizada na cidade celestial de

Voltaire. O próximo passo foi a idéia romântica de história, que combinava

Tucídides com Voltaire7.

Mesmo nessa nova concepção de história mais secularizada, Momigliano reconhece

que a doutrina agostiniano-cristã está enraizada de tal modo que não pode ser, e nem é,

facilmente arrancada de seu terreno. Faz isso, além de outros modos, dizendo que, em sua

obra, “evitei discutir deliberadamente as razões mais profundas de por que os métodos gregos

e romanos de escrever a história renasceram durante a Renascença8” – tema que tratamos com

algum cuidado em nosso último capítulo. Aí, e talvez de modo irônico – pois a fé no

cristianismo enfrentava o seu período de maior descrédito –, em plenos séculos XVIII e XIX,

“as idéias cristãs penetraram nos livros modernos de história”, com algum acordo9.

Em todas essas questões relativas à história e ao seu progresso temporal, seguindo

um curso natural – antes de Agostinho, em Agostinho e depois dele, por sua obra e influência

–, o lugar e o papel da memoria foram destacados. Por ele (ou por ela) é que, conforme a

doutrina cristã, sai-se do tempo e adentra-se na eternidade, sabendo-se o que se é,

reconhecendo-se como é. É na idéia de uma história da memória, como vimos, que estão as

noções mais imediatas e psicológicas que nos dizem quem somos, o que nos tornamos e

porque isso foi/é assim e não de outra maneira. Daí, nessa memória interior, o homem se

encontra consigo mesmo, com o Outro, e os dois, com Deus. Elementos que, assim re-

conhecidos, intrinsecamente, são partes constitutivas do ser moral, revelando também, ao

mesmo tempo, a necessidade de um agir moral.

7 MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. de Maria Beatriz Borba

Florenzo. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 213-14. (Col. História). 8 MOMIGLIANO, 2004, p. 216. Tal renascimento do método histórico dos gregos e dos romanos, ainda segundo

Momagliano, se faz notar assim: “A antiguidade acreditava que o homem era mortal e a natureza imortal. O

cristianismo”, diz ele, “tornou o indivíduo imortal, mas preparou-se para aceitar o fim da natureza como um

acontecimento a ser esperado no futuro muito próximo. Maquiavel, Guicciardini, Commynes, Mariana, Hayward

acreditavam, sem dúvida, na imortalidade do indivíduo e na transitoriedade da natureza, enquanto

permanecessem como membros da sociedade cristã” (MOMIGLIANO, 2004, p. 216). 9 MOMIGLIANO, 2004, p. 217. “A moderna filosofia da história – em bases cristãs – e os modernos métodos

históricos – em bases clássicas – nunca tinham entrado em acordo” (MOMIGLIANO, 2004, p. 217).

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Na catequese, instruindo ou ensinando como instruir – é o que Agostinho faz ao

redigir, em 405, a pedido do diácono Deogratias, o De chatechizandis rudibus –, o Bispo de

Hipona mostra como a especulação sem a ação é erudição morta, dada à vaidade que, por isso,

não pode ser tomada/aceita como sabedoria. A felicidade que se obtém por meio de um tal

saber, de uma tal sabedoria, só pode ser uma felicidade vã, transitória, falsa. Ademais,

podendo ser perdida – porque posta na segurança da “razão” somente, ou numa posição

própria do indivíduo perante o mundo e o Outro (não o seu “próximo”) –, é uma felicidade

imperfeita e dada à maior infelicidade: pois o conhecimento de um bem e a experiência com

ele, faltando-o, é causa de maior dor. Foi o que vimos na primeira e na segunda parte do

capítulo dois, quando tratando sobre o Sermão do Senhor no monte e sobre a queda de Roma.

A exposição de Agostinho, assim, transita entre a erudição e a piedade, forçando-se e

esforçando-se para não abusar do saber que pensa saber que sabe, mas que não produz frutos,

estéril em si mesma. A condição peregrina da Igreja – do cristão, por extensão – não deve

ceder a tais apelos do século, do tempo; deve, antes, ouvir a voz que chama para a eternidade,

onde o horizonte da história temporal se liga ao eterno, como quem olha para longe e não

consegue fazer distinção de onde termina a terra e começa o céu. Pelo modo que se vive,

mostra-se o que sé é, a que lugar/cidade pertence: à Cidade celeste ou à cidade terrena.

A doutrina dos Padres, sendo Agostinho o maior deles, via essa dupla cidadania

como conflito a ser resolvido no final dos tempos, embora o cristão pudesse, por meio da sua

fé e da segurança que ela lhe dava, saber previamente do seu destino – o que não o livrava das

intempéries deste mundo e, menos ainda, dos sofrimentos que os apelos da sua carne, suas

paixões, promoviam. Há, pois, dois governos: o de Deus e o do Diabo, que, embora planeje

toda sorte de iniquidades, não é livre ao ponto de ir além do que Deus permita – a má ação

sofrida, assim, pela fé, é sempre suportável, e o seu apelo à prática, pela mesma fé, resistível.

Na terra, tanto Deus quanto o Diabo têm os seus agentes. Não importando posições sociais, os

servos de um ou de outro vivem em um conflito histórico, mas controlado pela divina

Providência. Sendo a autoridade investida por Deus, qualquer uma, então aqueles que mais

têm poder são os que, de Deus, mais autoridade receberam – pelo menos era o que se pensava

em relação às doutrinas das duas espadas, dos dois reinos10

– pelo uso que fazem de tal

10

Com relação à temática, na Idade Média, ver: QUIDORT, João. Sobre o poder régio e papal. Trad. de Luis

A. De Boni. Petrópolis: Vozes, 1989. (Col. Clássicos do Pensamento Político). SOUZA, José Antônio de C. R.

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autoridade, bom ou mau, cada um dará contas a Deus, que é autoridade sobre todos, sobre

tudo.

No Brasil, quando do seu descobrimento, tal doutrina ainda era muito viva. A Coroa

– quase até mais do que a Igreja – era responsável por enviar e sustentar os missionários que

disseminariam a doutrina cristã entre os infelizes pagãos do Novo Mundo, convertendo-os à

fé e adestrando-os à civilidade. Com o tempo e com o fortalecimento das instituições de

ensino, notadamente as reduções e os colégios jesuítas, o sedimento dessa cultura, importada

e aqui plantada a golpes de paus e pedras, vingou. O que temos hoje, em nossa cultura e em

nossa moral, ainda tem muito de todo esse passado não tão longínquo. Uma mesma História,

assim recontada – evitando-se a paixão pelo fato e os anacronismos que propõem denúncias –,

pode tonar-se via libertadora, como diz Maurice Sachot, que voltamos a repetir: “Uma mesma

história, vista de outro modo, torna-se uma outra história”11

. Que seja assim.

popular na Modernidade. Recife: Printer / INSAF, 2004. O número de obras sobre esta temática é vastíssimo; as

que indicamos aqui, de propósito, aproximarem o tema, antigo, do presente, e de modo bastante simplificado. 11

SACHOT, 1998. p. 9.

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