a ficção-científica no século xx e narrativas de construção de realidade

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  • 8/2/2019 A Fico-cientfica no Sculo XX e Narrativas de Construo de Realidade

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    A Fico Cientfica no Sculo XX e Narrativas de

    Construo de Realidade

    1.1

    Transmutaes na Fico Cientfica

    A fico cientfica desde as obras consideradas fundadoras do gnero

    como Utopia de Thomas More e Frankenstein de Mary Shelley, passando por

    trabalhos que consolidaram o estilo como os contos de Edgar Allan Poe e os

    romances de Jlio Verne e H.G. Wells carrega em toda a sua produo o

    estigma do aparente paradoxo que constitui sua prpria definio: uma escrita de

    fico que ao mesmo tempo pretende-se cientfica.

    A cincia na constituio da fico cientfica, no entanto, presta-se

    construo de uma literatura fantstica, altamente imaginativa, mas que serve

    atravs de relaes metafricas e metonmicas como espelho, anlise e crtica do

    mundo em que vivemos. Geralmente relacionada a um tipo escapista de literatura,

    a fico cientfica vem se confirmando como a forma literria mais capaz de

    traduzir as ansiedades ps-modernas atravs de suas narrativas fantsticas, mas

    repletas de referncias falncia de antigos paradigmas.

    Pode-se dizer que a escrita da fico cientfica comea a se estabelecer

    como literatura de massa no fim da terceira dcada do sculo XX. nesse

    perodo, chamado por alguns de The Magazine Era (ATTEBERY, 2003, p.33)

    ou A Era das Revistas, que surgem diferentes publicaes formadas

    exclusivamente de textos cujos temas so caractersticos das fico cientfica, o

    que contribuiu para a distino deste gnero de outros da literatura fantstica (a

    fantasia, o conto de fadas) e para a sua massiva popularizao.

    Esse estilo de revistas era produzido de forma barata e tinha tremendo

    apelo popular, atraindo principalmente um pblico formado de jovens

    interessados em histrias fantsticas cujo objetivo tendia para o mero

    entretenimento. Esse formato de publicao, que veio a ficar conhecido como

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    pulp, foi o grande responsvel pela difuso de textos de fico cientfica

    principalmente nos Estados Unidos.

    A primeira revista desse estilo totalmente dedicada ao gnero foi a norte-

    americanaAmazing Stories. Seu editor, Hugo Gernsback, tinha interesse no s naproduo de histrias que envolviam aventuras, mistrio e romance num contexto

    espacial ou extraordinrio, mas tambm na importncia que o estilo

    desempenhava na formao dos leitores, podendo contribuir para a criao de uma

    sociedade melhor. Em um de seus editoriais, Gernsback escreveu:

    A fico cientfica no s uma idia de tremenda importncia, mas tambm um fator importante para se fazer do mundo um lugar melhor para se viver, ao

    educar o pblico para as possibilidades da cincia e a influncia da cincia navida. (...) Se cada homem, mulher, rapaz e moa, pudesse ser induzido a ler ficocientfica de imediato, certamente haveria um grande resultado positivo comunidade. (...) A fico cientfica faria as pessoas mais felizes, lhes dando umentendimento mais amplo do mundo, fazendo-as mais tolerantes.(GERNSBACK, in: ROBERTS, 2000, p.68.)1

    Nota-se que desde o princpio, a fico cientfica no era voltada

    exclusivamente para a diverso, mas possua em seu cerne a educao de leitores

    atravs de uma leitura prazerosa. As ambies de Gernsback eram a de fazerdaquela nova forma de contar histrias um instrumento de aprendizado para as

    massas. A fico cientfica seria uma forma de ensino que no fizesse esse ensino

    bvio (ATTEBERY, 2003, p.33).

    Mesmo assim, notrio que em vrias das histrias publicadas nessas

    revistas pulp faltava uma maior estruturao da narrativa, onde personagens

    eram pobremente concebidos e certos escritores usavam a prerrogativa fantstica

    da fico cientfica para apelar para o aspecto de mero choque, mostrandomonstros repulsivos ou invenes tecnolgicos de funcionamento discutvel. A

    nfase em histrias de ao acabava por minar qualquer tentativa de introspeco

    e aprofundamento. A falta de experincia de grande parte dos escritores tambm

    fica evidente devido, principalmente, novidade do gnero. Grande parte das

    1Not only is science fiction an idea of tremendous import, but it is to be an important factor inmaking the world a better place to live in, through educating the public to the possibilities ofscience and the influence of science on life. () If every man, woman, boy and girl, could be

    induced to read science fiction right along, there would certainly be a great resulting benefit to thecommunity () Science fiction would make people happier, give them a broader understanding ofthe world, make them more tolerant.

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    histrias dependia muito da construo narrativa das histrias de faroeste, ou das

    novelas de capa-e-espada e o fato de que uma pistola a laser substitua a adaga

    ou Marte sirva de Oeste americano no disfara a clara referncia.

    Muitas das histrias tambm eram altamente influenciadas pelas histriasde H.G. Wells, um dos pais da fico cientfica. Um dos temas preferidos dos

    autores de Amazing Stories era o encontro com o outro, principalmente o

    aliengena destruidor e invasor tornado clebre em A Guerra dos Mundos de

    Wells. Mas ao contrrio do autor ingls, que em seu romance constri um

    interessante panorama crtico da era vitoriana questionando o poderio do imprio

    britnico, a maioria dos autores norte-americanos das publicaes pulp

    celebrava a superioridade da humanidade com relao ameaa de um alarmanteperigo aliengena (ROBERTS, 2000, p.69).

    Assim, diferentes heris como Buck Rogers e Flash Gordon surgem para

    defender a raa humana, imbudos de um senso de americanismo que de certa

    forma permeia o incio das publicaes iniciais de fico cientfica e que para

    sempre vai associar o gnero aos Estados Unidos. Como afirma Adam Roberts:

    A fico cientfica est sendo usada para reforar uma construo ideolgica

    particular e estreita do Americanismo ao demonizar algum bode expiatriohipottico.2(ROBERTS, 2000, p.70). interessante notar como essa idia do heri

    americano como defensor da humanidade contra o outro aliengena ser

    reutilizada especialmente no cinema dos anos 50 como metfora para a luta contra

    o comunismo e posteriormente questionada por diferentes escritores dos anos 60 e

    70.

    Com uma tiragem que chegou a 100.000 cpias, a Amazing Stories deu

    origem a outras revistas que, com histrias fantsticas usando a cincia comoinstrumento criador, fizeram emergir mais do que uma literatura de fico

    cientfica, mas uma prpria cultura do gnero, com ilustraes detalhadas dos

    personagens, organizao editorial e a intensa participao dos leitores, que

    tinham publicadas as suas opinies, crticas e at mesmo histrias prprias.

    A mais importante revista a surgir baseada na frmula orquestrada por

    Hugo Gernsback foi a Astounding Stories, de John Campbell, depois renomeada

    2SF is being used to reinforce a particular, narrow ideological construction of American-ness bydemonizing some notional scapegoat.

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    Astounding Science-Fiction. Esta publicao foi a mais importante fora criativa

    para o gnero no fim dos anos 30 e nos anos 40, redesenhando o panorama da

    criao de textos de fico cientfica com relao temtica e narrativa a

    chamada Era de Ouro, com autores com Isaac Asimov, Robert A. Heinlein e A.E.Van Vogt.

    nesse perodo que a fico cientfica se afasta das narrativas de aventura

    popularizadas pela Amazing Stories (depois chamadas de space operas) para

    concentrar-se em temas mais complexos. A cincia deixa de ser vista como um

    instrumento que termina em si prprio ou mero artifcio imaginativo e passa a

    servir de base para questes fundamentais sobre a sociedade e a mente.

    Asimov, por exemplo, em seu romance Fundao, usa a teoria molecularcomo base para um conceito de histria em que possvel prever como as pessoas

    agem em sociedade e de que forma a dinmica social forma e formada pelos

    indivduos. Assim, uma nova forma de fico cientfica surge, onde a cincia

    serve de base ou pano de fundo para discusses que envolvem desde cincias

    sociais a poltica, de religio a mente humana (ATTEBERY, 2003, p.33).

    Esses temas foram desenvolvidos por outros autores e outras revistas

    durante os anos 40 e especialmente os anos 50, quando autores como Ray

    Bradbury e Arthur C. Clarke se tornaram nomes-chave da fico cientfica ao

    construrem um estilo prprio, usando os elementos fantsticos do gnero para

    explorar a ansiedade humana em relao a temas como a alteridade e o futuro.

    A sofisticao dos autores do perodo, assim como o declnio das

    publicaes em revista marca a mudana radical que ocorre na fico cientfica

    com o fim dos anos 50 e 60, quando o gnero passa a ser publicado como

    literatura dita oficial em livros e a canonizao de obras comoAdmirvel Mundo

    Novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell, que tambm passam

    finalmente a terem seu valor reconhecido como escritas de fico-cientfica. O

    gnero marginal passa a conseguir destaque, o que mudar para sempre no s a

    forma como lido mas, principalmente, como produzido.

    Com o incio dos anos 60, diversas mudanas e fatos importantes no

    Ocidente pem em questo velhos paradigmas que desde o incio do sculo XX

    vinham guiando a organizao da sociedade. Conflitos militares, transformaes

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    na ordem social, novas estruturas econmicas, revolues culturais e de costumes,

    descobertas cientficas e a corrida espacial todos esses fatores afetaro de uma

    forma ou de outra a produo de fico cientfica a partir de ento.

    O mundo, mais do que nunca, parecia prximo de uma hecatombe nuclear.A Guerra Fria atingia seu pice com a corrida armamentista dos Estados Unidos e

    da Unio Sovitica. A crise dos msseis de Cuba e o risco de um conflito jamais

    visto, tendo a radioatividade como a maior arma, vislumbrava um futuro

    apocalptico. Com o assassinato do presidente Kennedy e o incio da Guerra da

    Vietn, os Estados Unidos entravam em um dos perodos mais turbulentos de sua

    histria. Enquanto isso, diversos movimentos urbanos surgiam preconizando os

    direitos iguais e a liberdades civis: o movimento negro, o feminismo e at mesmoo movimento hippie pregando a paz mundial.

    A economia muda gradualmente sua estrutura organizacional, passando de

    um modelo fordista do incio do sculo, que no mais atende as demandas de um

    novo mercado consumidor, para um modelo de acumulao flexvel, onde surgem

    novos setores de produo. Uma das principais mudanas o perfil do novo

    trabalhador, que ao invs de ser especializado em um nico servio, tem de ser

    responsvel por diferentes tarefas e realizar todas completamente, fazendo comque o universo profissional seja um constante ciclo de aprendizagem.

    O desenvolvimento e posterior popularizao de drogas qumicas (em

    especial o LSD) foi responsvel por mudanas nos padres comportamentais da

    juventude, que com o rockn roll e a revoluo sexual criaram uma esttica

    prpria que marcaria pra sempre a forma como aquela gerao baby-boomer

    nascida aps o fim da Segunda Guerra Mundial seria vista.

    No aspecto tecnolgico, a corrida espacial ps-Sputnik o acontecimento

    mais importante. Uma das conseqncias mais positivas da Guerra Fria, o avano

    de pesquisas e o desenvolvimento de invenes que auxiliariam a explorao do

    universo, elevaram a cincia e a tecnologia a um patamar nunca visto, culminando

    com a chegada do homem Lua em 1969.

    Todas essas facetas da nova ordem mundial que se configurava nos anos

    60 iriam influenciar, direta ou indiretamente, a escrita da fico cientfica no

    perodo e nas dcadas posteriores. Autores como Brian Aldiss, J.G. Ballard e

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    Philip K. Dick seriam exemplos mximos desse perodo que ficou conhecido

    como New Wave ou Nova Onda da fico cientfica.

    O mercado editorial sofre uma profunda mudana nessa nova fase. As

    revistas de pulp de histrias de fico cientfica que eram o principal meio depublicao desde o fim dos anos 20 com Gernsback do lugar imensa

    possibilidade de produo de livros de bolso. Assim, os autores tm de se adaptar

    a esse novo formato, o que conseqentemente transforma de forma profunda a

    maneira em que uma histria escrita, j que elas tm de ser naturalmente mais

    longas e mais ateno dada aos eventos e personagens (ROBERTS, 2000, p.81).

    Tradicionalmente, diz-se que os textos do perodo da Nova Onda do conta

    do espao interior, ao contrrio da fico cientfica que se produziaanteriormente, muito mais preocupada com o espao sideral. Essa busca por novas

    formas de retratar ou desconstruir a identidade dos indivduos usando elementos

    fantsticos uma das principais caractersticas de autores do perodo.

    Um certo pessimismo tambm permeia obras da Nova Onda.

    Diferentemente de vrios trabalhos da Era de Ouro, por exemplo, que muitas

    vezes via a cincia como um instrumento que traria o bem e o progresso da

    humanidade, as histrias de fico cientfica a partir dos anos 60 em geral

    suspeitavam de avanos tecnolgicos e enfatizavam os perigos que elas poderiam

    trazer para o homem. Conceito-chave para a textualidade do perodo entropia, a

    tendncia de qualquer matria e energia desintegrar-se no vazio (BRODERICK,

    2003, p.56). Diferentes variaes desse conceito se fazem presentes da Nova

    Onda, principalmente em temas muito presentes da fico cientfica como o

    perigo do fim da humanidade e a perda da autenticidade em um mundo habitado

    por rplicas.

    Um tema caro da fico cientfica o encontro com o outro e alteridade

    finalmente pde ser explorado tambm fora dos limites da narrativa, porque pela

    primeira vez mulheres (Ursula K. Le Guin) e autores negros e gays (Samuel

    Delany) puderam ganhar voz. E mais do que nunca, a fico cientfica ganha uma

    popularidade com os tempos conflituosos dos anos 60 e 70, alm de comear a ter

    seu valor finalmente reconhecido pela academia.

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    nesse perodo que o norte-americano Philip K. Dick vai escrever seus

    mais importantes trabalhos e, atravs deles, no s redesenhar o mapa dos limites

    da fico cientfica, mas tambm traar os caminhos pelos quais o gnero pde

    subverter suas prprias regras. Com romances como The Man in the High Castle,Time Out of Joint e Do Androids Dream of Electric Sheep?, o autor ser

    responsvel por re-imaginar a forma pela qual a escrita de fico cientfica pensa a

    realidade e, numa estratgia ps-moderna, acaba por desconstru-la. Roberts

    categoriza:

    Ao invs de uma crena racionalista na eficincia da tecnologia e domecanicismo para resolver todos os problemas humanos, surgiu uma fascinaopor uma literatura experimental de vanguarda com as possibilidades artsticasdesses mesmos problemas, e em particular uma esttica paranica na qual todosos grandes sistemas eram vistos como inimigos da diferena individual. Philip K.Dick, que permanece um dos mais celebrados de todos os escritores de ficocientfica, a personificao clssica da esttica da Nova Onda. (ROBERTS,2000, p.81-82)3

    Dick o autor que representa um dos caminhos para a maturidade da

    fico cientfica, longe das aventuras espaciais da fico cientfica dos anos 30 e

    da obsesso pela tecno-cincia dos autores da Era de Ouro. Seu trabalho aparece

    como um caminho para a fico cientfica se afirmar como literatura a ser

    analisada e discutida seriamente, principalmente no que diz respeito maneira em

    que se constri a narrativa e como ela serve como uma nova forma de reler a

    contemporaneidade.

    1.2.

    Teorias Contemporneas da Narrativa

    Uma das caractersticas marcantes do pensamento ps-moderno a

    ausncia de conceitos determinados por definies precisas e estveis. As prticas

    de representao ps-modernas, em geral, se recusam a permanecer delimitadas

    por convenes e tradies: elas muitas vezes apresentam formas hbridas e

    3In place of a rationalist belief in the effectiveness of technology and machinery to solve allhuman problems, there came an avant-garde experimental literature fascination with the artistic

    possibilities of those very problems, and in particular a paranoid aesthetic in which all largesystems were seen as the enemies of individual difference. Philip K. Dick, who remains one of themost highly regarded of all SF writers, is the classic embodiment of this New Wave aesthetic.

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    aparentemente contraditrias (HUTCHEON, 1988. p. 37). O prprio

    esmaecimento de fronteiras que estabelecem diferenas entre distintos espaos

    disciplinares de construo de conhecimento abalam, como efeito adicional,

    princpios tradicionais que orientam processos cientficos de elaborao de umsaber, baseados no modelo dicotmico de objetividade e subjetividade. Neste

    mbito o discurso considerado cientfico, devido a freqentes questionamentos de

    sua natureza, vem perdendo sua legitimidade e se transforma em projeto

    provisrio, sujeito a constantes revises e a suposta cientificidade desse processo

    acaba tendo seu discurso associado a formas de imaginao e ficcionalidade,

    expressas em configuraes narrativas. no centro dessa desconstruo ps-

    moderna que podemos localizar tambm projetos e experimentos atuais de

    historiografia.

    O campo disciplinar da histria, tradicionalmente legitimado pela adeso a

    concepes positivistas, mantendo como fundamento a certeza de poder contar a

    histria como efetivamente ocorreu viu este discurso colocado sob suspeita pela

    afirmao de novos historiadores, como Paul Veyne, de que tudo histrico,

    incluindo o prprio discurso histrico. Deste modo, a funo da histria passaria a

    ser vista como organizadora de existncias e eventos passados. No sculo XIX a

    funo da histria como organizadora da cartografia do que j ocorreu atinge seu

    pice, numa poca em que o estudo dos fatos era tido como principal funo no

    s das cincias humanas, mas tambm de todas as reas que lidavam com a

    experincia do homem em sociedade a partir de sua inquestionvel autoridade

    cientfica. Compreender o sculo XIX , neste sentido, crucial para compreender

    no s como a noo de Histria se formou, mas igualmente entender as

    transformaes posteriores e as crticas em relao s convices positivistas.

    No sculo XIX, a historiografia apropriou-se do estudo cientfico da

    natureza e o adaptou para o estudo da experincia humana: primeiro coletando

    dados e depois, analisando-os. A tentativa de alguns historiadores desse perodo,

    dos quais o mais notrio foi Leopold Von Ranke, era de atribuir um status decincia histria (REIS, 2003, p. 36) ao propor uma investigao objetiva dos

    eventos localizados no passado, transformando o resultado em narrativa

    supostamente imparcial:

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    A histria cientfica do sculo XIX, em suas vrias orientaes, sustentava queno queria pensar a histria especulativamente, (...) mas sobre a histria tal comoaconteceu, como fato, como ocorrncia, como passado, como conhecimento deeventos nicos e irrepetveis, singulares, situados documentalmente em uma datae lugar. (...) O historiador-cientista ao mesmo tempo (...) busca a verdade, isto ,

    uma representao realista do que de fato ocorreu. O conhecimento histrico noseria uma reconstruo, pelo historiador, do processo histrico, mas a suareconstituio verdadeira (REIS, 2003, p. 38-39).

    Essa prtica baseava-se portanto na hiptese de ser possvel uma

    reconstruo objetiva dos fatos e de sua representao em forma de narrativa

    linear e progressiva. nesse ponto, contudo, que reside uma diferena crucial

    entre a cincia e a histria: enquanto a primeira realiza anlises com resultados

    comprovveis e repetveis, a segunda, lidando com eventos e fenmenos nicos eirrepetveis, alcana resultados variveis e, de certa forma, indeterminados.

    A questo principal, nesta tica, diz respeito objetividade e

    imparcialidade de formas expressivas narrativas quando pretendem reconstruir

    realidades anteriores e exteriores ao discurso. Mesmo focando numa descrio

    cientfica dos fatos, os historiadores do sculo XIX eram altamente dependentes

    de estruturas narrativas, de forma que algum sentido pudesse ser articulado numa

    longa linha de acontecimentos usada para produzir um enredo que serviria comouma referncia para um passado ao qual no se pode reportar diretamente. Hayden

    White, um dos mais importantes tericos da contemporaneidade no que se refere

    narratividade histrica, define esse tema de forma direta:

    Para vrios daqueles que gostariam de transformar os estudos histricos em umacincia, o contnuo uso de um modo narrativo de representao por parte doshistoriadores um sinal de fracasso metodolgico e terico. Uma disciplina queproduz relatos narrativos de seu tema principal como um fim em si prprio pareceteoricamente falha; uma que investiga seus dados com o interesse de contar umahistria sobre eles parece metodologicamente deficiente (WHITE. 1987, p. 26.) 4

    De acordo com White, portanto, uma das razes para a inadequao

    cientfica da historiografia do sculo XIX a impossibilidade de sua nomeao

    como cincia j que no se pode libertar o seu discurso da necessidade de se

    4 To many of those who would transform historical studies into a science, the continued use byhistorians of a narrative mode of representation is an index of failure at once methodological and

    theoretical. A discipline that produces narrative accounts of its subject matter as an end in itselfseems theoretically unsound; one that investigates its data in the interest of telling a story aboutthem appears methodologically deficient..

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    contar uma histria. White, assim como F. R. Ankersmith e Paul Veyne, um dos

    autores atuais que subscreve a cartilha ps-moderna da desconstruo do discurso

    histrico atravs da aproximao entre historiografia e narrativa relacionando,

    dessa forma, a histria de estratgias usadas na produo literria, j que ambas seapropriariam de configuraes semelhantes que, alm do mais, podem aproximar-

    se de prerrogativas narrativas. Mesmo se utilizando de estratgias de escrita

    parecidas, o contedo da produo historiogrfica e ficcional, no entanto, diferem

    profundamente. O prprio Hayden White afirma:

    O que distingue as narrativas histricas das narrativas ficcionais primeiramente e principalmente o seu contedo, e no a sua forma. O contedode narrativas histricas so eventos reais, eventos que realmente aconteceram, ao

    invs de eventos imaginrios, inventados pelo narrador (WHITE, 1987, p.27).5

    Mas at que ponto podemos afirmar que a histria estaria mais prxima

    dos estudos literrios que dos cientficos? O quanto de imaginao h na escrita

    histrica? possvel representar a realidade passada (e a presente) de forma

    imparcial e objetiva?

    Uma das mais importantes analistas da ps-modernidade, a crtica

    canadense Linda Hutcheon, afirma em seu livro The Politics of Postmodernism

    que a escrita historiogrfica seria uma tentativa de tornar o passado inteligvel ao

    imbu-lo de caractersticas narrativas que o dotariam de sentido. Hutcheon afirma

    que seja numa representao histrica ou ficcional, a narrativa familiar de incio,

    meio e fim implica um processo de estruturao que fornece sentido assim como

    ordenao (HUTCHEON, 1988, p.62) 6

    O valor da narrativa o que, de acordo com Hutcheon, faz o passado ser

    re-presentado, ou seja, ser percebido como real e compreensvel por um

    pblico do presente. Sobre a importncia da narrativizao, a autora categoriza:

    A narrativa ainda a forma fundamental de representao do conhecimento e issoexplica porque a crtica do conhecimento narrativo por parte da cincia positivistaprovocou uma resposta to intensa de tantos pontos de vista diferentes. Em vriasreas, a narrativa , e sempre tem sido, uma modo vlido de explicao, e

    5What distinguishes historical from ficctional stories is first and foremost their content, ratherthan their form. The content of historical stories is real events, events that really happened, rather

    than imaginary events, events invented by the narrator.6Whether it be in historical or fictional representation, the familiar form of beginning, middle, andend implies a structuring process that imparts meaning as well as order.

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    historiadores sempre se valeram de seus poderes de organizao e esclarecimento(HUTCHEON, 1988, p.67) 7

    A presena da estrutura narrativa na construo do conhecimento histrico,

    contudo, no significa que a historiografia seria apenas uma outra forma de

    produo ficcional. A narrativa organiza o conhecimento sobre um fato do

    passado, mas no altera a existncia prvia desse mesmo fato. Se por um lado

    possvel afirmar que o passado conhecido atravs de evidncias textuais

    (documentos, arquivos etc.), por outro lado errneo negar que aquele passado

    tambm seria um texto o passado teve existncia real, e o discurso narrativo o

    modo que possumos para compreend-lo:

    Dizer que o passado apenas conhecido por ns atravs de traos textuais no ,contudo, o mesmo que dizer que o passado apenas textual. (...) Essa reduoontolgica no a questo do ps-modernismo: eventos do passado existiramempiricamente, mas em termos epistemolgicos ns s podemos conhec-loshoje atravs de textos. Eventos do passado recebem sentido, e no existncia, pelasua representao na histria (HUTCHEON, 1988, p.81-82). 8

    esse sentido que transforma, segundo Linda Hutcheon, um evento em

    fato. O fato histrico seria a representao de um evento do passado atravs de

    matizes conceituais (HUTCHEON, 2000, p.845), i.e., depois de sua reordenao e

    re-escrita atravs de recursos narrativos.

    Dessa forma, a historiografia deixa de ser percebida como produo

    objetiva que serve como relatrio do passado para funcionar como uma tentativa

    de compreend-lo atravs de um modelo narrativo (HUTCHEON, 1988, p. 64).

    Assim, a histria unitria, que se encaminha para um telos, d lugar a diferentes

    formas de conhecimento histrico, plurais e multifacetadas.Essa viso ps-moderna da historiografia contrasta e muito com o

    entendimento que ainda hoje se tem do conhecimento histrico. Em uma

    7Narrative is still the quintessential way we represent knowledge and this explains why thedenigration of narrative knowledge by positivistic science has provoked such a strong responsefrom so many different domains and point of view. In many fields, narrative is, and always hasbeen, a valid mode of explanation, and historians have always availed themselves of its ordering aswell as its explanatory powers.8To say that the past is only known to us through textual traces is not, however, the same assaying that the past is only textual. () This ontological reduction is not the point of

    postmodernism: past events existed empirically, but in epistemological terms we can only knowthem today through texts. Past events are given meaning, not existence, by their representation inhistory.

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    definio recorrente do senso-comum, a histria seria a rea disciplinar das

    cincias humanas cuja responsabilidade se traduz pela tarefa de retratar

    acontecimentos do passado para uma gerao atual. A histria, como disciplina,

    seria a ordenadora de fatos importantes j ocorridos, se autonomeando detentorade um discurso da verdade uma verdade passada, qual s ela teria acesso.

    Assim, a histria seria fundamentada em um estudo do passado, retomado

    atravs de uma srie de acontecimentos constitudos por uma reunio de fatos

    (NORA, 1988, p.180).

    Um dos primeiros passos para a quebra desse paradigma a constatao de

    que a histria no o passado, mas um discurso que se sustenta pela construo

    de um conhecimento a respeito deste. Como definiu Franois Furet:

    A histria filha da narrativa. No se define por um objeto de estudo, mas porum tipo de discurso. Dizer que estuda o tempo no tem de fato outro sentido quedizer que dispes todos os objetos que estuda no tempo: fazer histria contaruma histria (FURET, s/d, p.81).

    Nesta diferena encontra-se a semente de toda uma teorizao cujo iderio

    ser discutido posteriormente. Ao aceitar a histria como uma representao do

    passado, ocorre uma dissociao entre o que ocorreu e o ato de contar acerca doocorrido. A histria, portanto, no s organizaria fatos mas tambm seria

    igualmente responsvel pela criao de um discurso com o objetivo de iluminar

    questes de realidade. A equao ento se transforma em Histria x passado,

    onde o primeiro serviria como construo e representao dos fatos por

    determinada comunidade cientfica que se pauta por um repertrio de objetivos.

    nesta viso que se baseia igualmente a distino entre histria e historiografia, at

    ento tratadas quase como sinnimas. Enquanto a primeira se preocupa com aconstruo cientfica de fatos do passado e a sua comprovao, a segunda se

    preocupa, alm disso, com a sua configurao verbal em forma de narrativa. Para

    Frank R. Ankersmit, um dos mais radicais tericos da ps-modernidade no que se

    refere ao carter ficcional do conhecimento histrico, essa seria uma caracterstica

    que o texto literrio, por exemplo, teria em comum com a historiografia:

    A natureza da viso do passado apresentado em um trabalho histrico definido

    exatamente pela linguagem usada pelo historiador em seu trabalho histrico.Devido relao entre a viso historiogrfica e a linguagem usada pelohistoriador com o intuito de expressar essa viso (...) a historiografia possui a

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    mesma opacidade e dimenso intencional que a arte (ANKERSMIT, 1989,p.145). 9

    Mas at mesmo nessa segunda equao pode-se localizar a

    problematizao do conceito do discurso histrico como representao da

    realidade. Seria ingnuo afirmar que o passado existiria em um estado natural,

    apenas aguardando para ser usado como matria-prima para o historiador curioso

    em investig-lo.

    Ao considerarmos que o discurso da historiografia pode ter uma

    preocupao artstico-narrativa, evidente que sua traduo da realidade vai se

    dar em termos de uma organizao estrutural de controle dos infindveis

    fenmenos e eventos que formam o caos do cotidiano transformando-os em um

    discurso narrativo que pretende ser plausvel. Citando Paul Ricoeur, o terico

    David Carr afirma:

    Se o papel da narrativa apresentar algo novo ao mundo, e o que apresenta asntese do heterogneo, ento ela provavelmente d aos eventos do mundo umaforma que eles no tm. Uma histria redescreve o mundo; em outras palavras,ela o descreve como se fosse o que presumivelmente, de fato, no (CARR,

    1986. p.125)

    10

    Assim como o terico da literatura Roland Barthes, o historiador David

    Carr acredita que a realidade no pode ser reproduzida fielmente pela arte, j que

    enquanto a primeira se exprime atravs de mensagens embaralhadas, a segunda

    organiza o discurso para tornar o seu entendimento acessvel.

    Um dos elementos-chave para essa redescrio do mundo, como afirma

    Carr, a linguagem. atravs da linguagem que as variveis entre-cruzadas darealidade se sincronizam e adquirem siginificado. Em Os Fundamentos da Vida

    9The nature of the view of the past presented in a historical work is defined exactly by thelanguage used by the historian in his or her historical work. Because of the relation betweenhistoriographical view and the language used by the historian in order to express his view ()historiography possesses the same opacity and intensional dimension as art. (ANKERSMIT,1989, p.145).10If the role of narrative is to introduce something new into the world, and what it introduces isthe synthesis of the heterogeneous, then presumably it attaches to the events of the world a form

    they do not otherwise have. A story redescribes the world; in other words, it describes it as if itwere what presumably, in fact, it is not.

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    Cotidiana, Peter Berger e Thomas Luckmann sublinham a importncia da

    linguagem como o instrumento que dota a realidade de sentido - dessa forma, a

    linguagem seria o grande objetificador da realidade. Segundo eles:

    A linguagem usada na vida cotidiana fornece continuamente as necessriasobjetivaes e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vidacotidiana ganha significado para mim (...) A linguagem marca as coordenadas deminha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significao(BERGER & LUCKMANN, 1973, p. 39).

    Indo mais longe, poderamos afirmar que o nosso entendimento do mundo

    depende altamente das construes lingsticas usadas; a linguagem, como

    instrumento social por excelncia, influencia fortemente a forma de percepo darealidade. Assim, alguns tericos at chegam afirmao radical, de que o

    chamado mundo real seria apenas uma construo lingstica (BOOKER, 1994,

    p. 81). Essa viso solipsista no subscrita neste trabalho, mas sustentamos a

    idia construtivista de que o discurso lingstico como organizador de uma ordem

    no existe necessariamente no referente real, tratando-se to somente de um

    aspecto da linguagem. interessante notar o carter dbio do discurso nesse caso:

    enquanto faz o pblico crer numa idia que diz respeito ao mundo dosacontecimentos, na verdade tal idia existe apenas na narrativa que criada sobre

    os acontecimentos. Neste mbito faz sentido que os novos historiadores no

    deixem margem a dvidas em relao sua tarefa. Eles no pretendem oferecer a

    realidade dos fatos, mas apenas so capazes de oferecer o efeito de real.

    Qual seria ento a verdade sobre o passado? Levando ao extremo a idia

    de que h diferentes passados quanto pessoas que os narram, seria impossvel

    atingir uma prerrogativa autntica sobre o que se passou. O que h na verdade noso cpias, mas sim interpretaes pessoais e repletas de subjetividade com

    respeito ao referente real. E se h vises de mundo diferentes, h diferentes

    formas de se apropriar da realidade verdadeira. Peter Berger conclui:

    A compreenso verdadeira de nosso passado depende de nosso ponto de vista.Alm disso, obviamente, nosso ponto de vista pode mudar. Por conseguinte, averdade uma questo no s de geografia como tambm da hora do dia. Acompreenso de hoje torna-se a desculpa de amanh e vice-versa (BERGER

    & LUCKMANN, 1973, p. 39).

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    Um diferente foco narrativo se instaura e altera profundamente as prprias

    estruturas do passado que se representa. A histria re-escrita com novos

    personagens, um novo objetivo; novos acontecimentos so apresentados e os que

    j se conheciam, so tratados sob outra tica se configura ento uma alternaoem larga escala, onde a prpria fronteira que delimita interpretao de inveno

    torna-se tnue.

    Se a compreenso do mundo depende, assim, de determinado aparato

    lingstico, qual a fora subjetiva que o constri? A resposta pode se encontrar

    em outra marcada diferena entre a vida e a arte. Para que uma narrativa seja

    inteligvel e funcione como ferramenta de representar a realidade, necessrio

    que ela se apresente como no s de forma ordenada, mas tambm com pontos devista delimitados: existe um narrador/escritor/historiador que consegue aquilatar a

    totalidade da obra e existem os personagens que so os agentes da ao. Dessa

    forma, enquanto o primeiro conduz a obra tendo em vista seu objetivo final e

    colocando suas estratgias narrativas em perspectiva (seleo, nfase, foco

    narrativo), os segundos encontram-se no meio do turbilho desordenado dos

    acontecimentos, e seus pontos de vista so sempre delineados pelo momento

    presente. A arte difere ento da vida no que concerne autoridade fornecidaquele que narra o evento; falta realidade o ponto de vista abrangente que o

    narrador acumula na esfera cotidiana no se cria um enredo, apenas vivemos os

    eventos enquanto eles acontecem.

    Afirmar que a vida real totalmente desordenada enquanto a narrativa

    possui uma seqncia lgica , todavia, uma idia reducionista. inegvel que

    narrativas so possuidoras de um encadeamento lgico, at devido posio

    privilegiada em que se encontra o sujeito-narrador do enredo. Ele v os fatos distncia e assim compreende o escopo das situaes ocorridas. No entanto,

    possvel identificar na vivncia cotidiana momentos que podem sinalizar uma

    suposta seqncia nas atividades humanas. Exemplos bvios podem ser

    encontrados no nascimento e na morte de um indivduo, que claramente indicam o

    incio e o fim da narrativa humana. H outros momentos, porm, que assinalam

    estruturas de incio, meio e fim na vivncia real: uma mudana geogrfica, de

    emprego, ou at mesmo um casamento (ou o fim dele). Esses acontecimentosgeralmente no so reconhecidos como incio ou fim de algo por haver outros

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    momentos anteriores e posteriores a eles, no tendo uma concluso definitiva

    como no trmino de um romance. A seqncia das atividades humanas no tem a

    capacidade de acompanhar o carter totalizante de uma obra artstica. Mesmo

    assim, negar s atividades humanas a lgica da ordem de seus eventos deixar denotar o que a realidade tem de mais rico.

    A questo da somatria de acontecimentos cronolgicos na vida de um

    indivduo apreendida pelo senso comum equivocadamente como natural. Na

    conscincia ingnua prevalece um consenso geral de que a existncia consiste de

    uma seqncia de eventos com incio, meio e fim eventos estes que so os

    formadores da biografia de cada pessoa. nessa viso, contudo, que reside uma

    problemtica fundamental para entender a natureza da construo da realidade.Tal ordenao de eventos, cujo resultado final constitui o retrato de experincias

    individuais, no pode abarcar a totalidade e a complexidade de episdios

    ocorridos. Ocorre um processo de reduo de complexidade acompanhado pela

    escolha de acontecimentos, a partir da deciso sobre quais deles devem ser

    includos na histria particular do indivduo. Assim, a importncia do que ocorreu

    na vida de algum, mesmo que organizado em ordem cronolgica, relativizada,

    transformando-se parcialmente em escolha subjetiva. A seleo, portanto, o fator

    crucial para a formao de uma narrativa pessoal. Como afirma Paul Veyne:

    Os fatos no existem isoladamente, no sentido de que o tecido da histria o quechamaremos de uma trama, de uma mistura muito humana e pouco cientfica decausas materiais, de fins e acasos; de uma fatia de vida que o historiador isolousegundo sua convenincia (...) impossvel descrever uma totalidade, e todadescrio seletiva (VEYNE, 1998, p.42-43).

    Quando transferimos esta problematizao para os estudoshistoriogrficos, ela se torna ainda mais complexa. Como marcar o incio e o fim

    de uma era? Como selecionar aquilo que realmente importa em um dado momento

    da histria? E quais prerrogativas podem ser usadas para tomar essas decises?

    Uma estratgia bsica utilizada por ambos, historiadores e bigrafos, usar como

    ponto de partida os chamados momentos crticos em que algo decisivo

    acontece e precedida por vrias mudanas. Mas como escolher esses momentos

    crticos?

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    Peter Berger levanta essas entre outras questes em seu texto Alternao

    e Biografia ou Como adquirir um passado pr-fabricado. Nele, o autor se

    pergunta:

    Exatamente em que ponto da histria da civilizao ocidental devemos supor quetenha comeado a Idade Mdia? E exatamente em que ponto da biografia de umapessoa podemos supor que sua juventude tenha terminado? (...) At mesmo osmais otimistas historiadores e bigrafos tm seus momentos de dvida quanto escolha desses acontecimentos verdadeiramente decisivos (BERGER, 1983,p.66).

    O problema da escolha parece ser de fcil resoluo ao passarmos para o

    terreno do senso comum. De acordo com uma espcie de consonncia social, a

    melhor forma de compreender o passado se daria em uma fase avanada desocializao do indivduo, o que acontece apenas quando atinge certo estgio de

    maturidade. Em outras palavras, quando atinge um perodo avanado da vida e

    uma suposta sabedoria, e os momentos passados tornam-se mais claros permitindo

    a apreenso do real significado de sua relevncia. Neste momento, como afirma

    Berger, o homem se encontra em uma posio epistemologicamente

    privilegiada (BERGER, 1983, p. 66), em sintonia com o universo social que o

    circunda. Dessa forma, dirige o seu olhar para suas antigas ambies e realizaesde forma correspondente sua situao confortvel de espectador localizado em

    um tempo futuro em relao quele enxergado com lentes da maturidade.

    Embora parea ser mais claro solucionar o problema da escolha de

    momentos crticos, a soluo atravs da maturidade evidencia uma dificuldade

    de ordem diferente. Se a fase madura da vida do indivduo considerada o melhor

    perodo para analisar momentos do passado, no se pode esquecer que este

    perodo tambm se encontra imbudo das convices do presente acerca daprpria vida. Portanto, acontecimentos passados so ordenados e representados de

    acordo com processos seletivos que destacam eventos tidos por relevantes. Nesta

    perspectiva, os prprios momentos crticos localizados no fluxo temporal de

    uma vida narrada so sujeitos a constantes modificaes de lugar. Em seu texto,

    Berger relembra ainda o conceito psicanaltico de percepo seletiva, segundo o

    qual em qualquer situao dada, diante de um nmero infinito de coisas que

    poderiam ser notadas, s notamos aquilo que tem relevncia para nossos objetivosimediatos (BERGER, 1983, p.77).. Esse pressuposto no questiona a existncia

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    do passado, mas acentua que a nossa construo de sentido depende de nossas

    escolhas em funo da relevncia atribuda a determinados eventos que passam a

    ocupar lugar significativo em nossa memria. Assim sendo, o passado

    transformado em conhecimento flexvel, vivo, permitindo transformaes emanipulao constante.

    Essas concepes encontram um novo espao de reflexo em formas de

    pensamento construtivistas, colocando no centro de suas indagaes uma nova

    articulao entre observador e objeto observado que se afasta de modelos

    tradicionais dicotmicos que situam sujeito e objeto de conhecimento em campos

    opostos.

    Siegfried J. Schmidt foi um dos tericos que exploraram essa chamadarevoluo epistemolgica ao analisar a atitude do historiador em relao aos

    objetos de seu interesse. Em seu texto Sobre a escrita de histrias de literatura:

    observaes de um ponto de vista construtivista, ele coloca em questo a suposta

    inteno dos historiadores em analisar fatos empricos e representar o passado de

    forma objetiva, o que legitimaria o seu valor histrico. Schmidt problematiza essa

    suposta verdadeira natureza do passado ao destacar as caractersticas especficas

    da prtica do historiador inserido em uma comunidade cientfica que se sustenta ese legitima a partir da adeso a determinados objetivos e formas de construo de

    conhecimento privilegiados, que do contorno sua atividade como historiador.

    Schmidt afirma:

    Um dado, esteja ele situado no passado ou no presente, nada mais que um dado luz de molduras tericas de um observador especfico, isto , um sistema vivode cognio. Aqui (...) a natureza construtivista de nossas operaes cognitivastorna-se evidente e deve ser seriamente considerada de modo a evitar falcias

    objetivistas (SCHMIDT, 1982, p. 104).

    A percepo dos fatos, ainda que permeada por elementos subjetivos do

    historiador particular, nesta tica, corresponde, por assim dizer, a um olhar

    profissional, moldado por um lugar institucional e por determinados objetivos e

    formas de escrita. O resultado desta operao historiogrfica altamente

    convencional e estereotipada se legitima com o selo de objetividade, no pela

    correspondncia entre fatos e sua representao verdadeira, mas por processos

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    intersubjetivos aceitos em determinada comunidade cientfica. Os dados do

    passado tm de ser concatenados em unidades coerentes, no s para reduzir as

    complexidades do que j aconteceu para um pblico do presente, mas tambm

    para confirmar as molduras tericas que o observador deseja imprimir aos fatos.Um exemplo pontual dado por Schmidt ilustra essa concepo a partir do exemplo

    da histria da literatura, organizada em perodos, gneros e estilos, que colocam

    diferentes obras e escritores sob o mesmo rtulo, freqentemente com o intuito de

    homogeneizar eventuais vozes dissonantes. Em relao construo de sentido

    dos prprios textos literrios o autor afirma:

    Os textos no so vistos como possuindo seu significado e sendo literrios; em

    vez disso, so os sujeitos que constroem significados a partir de textos e elespercebem e tratam textos como fenmenos literrios em seu domnio cognitivopela aplicao de normas lingsticas e convenes que internalizaram noprocesso de socializao nos seus respectivos grupos sociais (SCHMIDT, 1982,p. 113).

    Em outras palavras, o sentido do texto produto de uma construo

    interativa que ocorre em processos de comunicao literria, em funo da

    participao de distintos agentes inseridos em determinados contextos histricos

    sociais e culturais, marcados por certos horizontes de expectativa que orientam oseu olhar na construo de sentido e que, no caso da literatura, depende

    igualmente de processos de socializao especficos.

    , portanto, atravs da idia de construtividade que Schmidt evidencia um

    princpio central na discusso da natureza emprica da histria: a

    intersubjetividade. Esse conceito situa um novo olhar com relao idia de

    construo e reconstruo dos fatos histricos, remodelando, assim, o que se

    entende por objetividade. A intersubjetividade parte do princpio de que noexiste uma percepo do objeto anterior ou exterior ao processo de observao.

    Assim, o objeto inevitavelmente construdo pelo observador.

    Colocadas em uma macro-perspectiva, isso significa que as nossas formas

    de representao so incapazes de reproduzir a realidade, mas apenas o que ns

    mesmos construmos. Neste sentido, Schmidt afirma:

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    No h tais coisas como os significados, as obras de arte, a histria, a realidade,mas, em vez disso, significados, obras de arte, histrias e realidades. Suaobjetividade intuitivamente sentida por ser explicada como o resultado daintersubjetividade (SCHMIDT, 1982, p. 14).

    Em suma, a estrutura Sujeito x Objeto em que cada um se localizaria

    em planos distintos d lugar a uma viso integrada de Sujeito Objeto, em

    que ambos passam a ser vistos como unidos na construo de novas percepes de

    realidade como resultado de prticas intersubjetivas. Como bem resume o terico

    alemo, os historiadores

    no tratam de matrias objetivas ou de acontecimentos histricos auto-evidentes.Sempre trabalham com matrias interpretadas em contextos cognitivos

    presentes. Conseqentemente, no existe algo como um critrio objetivo parahistrias literrias admissveis, aceitveis ou necessrias (SCHMIDT, 1982, p.116).

    O tambm terico alemo Gebhard Rusch, em seu texto Teoria da

    histria, historiografia e diacronologia partilha da opinio de Schmidt no que se

    refere ao princpio do construtivismo na conceitualizao do fato histrico. O

    terico inicialmente se concentra exatamente na aparente dicotomia

    construo/reconstruo para atestar que ambos os termos na verdade se

    relacionam e que alcanariam o mesmo objetivo. Rusch apresenta em seu texto o

    duplo trabalho no campo da histria: a reproduo (o conhecimento preciso, o

    reflexo) e a transformao (a constante reinterpretao dos fatos). Para ele, ambos

    os processos funcionam de forma anloga em vista de uma construo da

    histria. Nesta tica, a reproduo s seria possvel se as reivindicaes

    objetivistas fossem mantidas (RUSCH, 1996, p.137.)

    Em seu texto, Rusch menciona o trabalho de Humberto R. Maturana comoum dos mais importantes na contribuio para a construo de uma teoria

    construtivista do conhecimento. O bilogo chileno o idealizador da teoria dos

    sistemas autopoiticos que, em linhas gerais, explica os organismos vivos como

    sistemas que se mantm vivos por estarem em um processo de permanente

    autoproduo e permanente reproduo (RUSCH, 1996, p.144). Dessa

    concepo pode-se inferir que os indivduos quando acreditam estar se

    relacionando com a realidade, na verdade esto interagindo com a sua prpria

    construo dela. A nossa idia de conhecimento, portanto, passa necessariamente

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    pela noo de autopoiesis e o entendimento que temos do real (seja ele presente

    ou passado) revela-se, em ltima anlise, como uma estratgia do nosso sistema

    cognitivo. Rusch explica esse novo princpio da seguinte forma:

    Se nos dermos conta de que nossa vivncia das coisas do mundo algo comoum truque da organizao auto-referencial de nossos sistemas nervosos, por assimdizer, uma modalidade de funcionamento dos sistemas cognitivos humanos nosprocessos de sua autopoiesis, ento, torna-se claro que, na realidade, no vivemosno mundo que percebemos (...) mas mantemos nossa experincia com epor meioda gerao de um mundo realizado por nossas cognies (RUSCH, 1996, p.147).

    por esse motivo que qualquer tentativa de objetividade ou autenticidade

    no contato com o real uma empreitada fracassada, j que tudo sujeito ao nosso

    modelo cognitivo que constri os objetos e processos do real com que temos

    contato. Assim como Schmidt, Rusch acredita que a melhor soluo seria a

    construo de conhecimento baseado em processos intersubjetivos e

    intercambiveis que medeiam o nosso acesso a realidades o estabelecimento de

    intersubjetividades para termos acesso realidade.

    Como se localizam sua funo histrica e sua transformao em escrita

    neste novo entendimento dos fatos? Se o mundo como o percebemos construdoatravs de processos intersubjetivos tornando impossvel uma verdadeira

    representao do real, o passado como momento na linha temporal tampouco

    poderia ser reconstrudo de forma objetiva. Na perspectiva construtivista, em

    suma, os fatos no so re-escritos, mas sim criados pelos historiadores de acordo

    com molduras conceituais especficas e cognitivas consensualmente aceitas.

    Como conclui Rusch, a historiografia uma empresa construtiva e no

    reconstrutiva (RUSCH, 1993, p.137). Diferentemente da perspectiva positivista

    da histria, o construtivismo, atravs da aproximao entre o sujeito receptor e o

    objeto histrico, configura uma estrutura de conhecimento baseada na construo

    dos acontecimentos. Schmidt sumariza o contexto construtivista da seguinte

    forma:

    A narrao (como qualquer princpio de concatenao de dados) ocasiona umaordem ou unidade denominada esteticamente, que depende exclusivamente daatividade construtiva do historiador, de seus interesses, pressuposies, valores,

    competncias e assim por diante. Coerncia, unidade, verdade, sentido histrico

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    etc. fazem parte do modelo de histria do historiador e no so traos inerentes prpria histria (SCHMIDT, 1996, P.104).

    O terico alemo Hans Ulrich Gumbrecht adverte, neste mbito, sobre o

    perigo de ver a realidade transformada em discurso, como ocorre em certas

    vertentes construtivistas do New Historicism americano que reduzem a

    experincia humana a meras formas de construo social:

    A confuso entre a inevitvel subjetividade dos historiadores e o carter deinveno da realidade histrica continua problemtica. No, claro, porque atransformao da historiografia em literatura pode levar alguns historiadores ase tornarem mais ambiciosos em relao sua escrita. O problema srio comeaquando a insistncia na subjetividade dos historiadores leva eliminao dapremissa de que existe uma realidade para alm desta subjetividade(GUMBRECHT, 1999, p. 465).

    Assim, Gumbrecht reafirma a noo da moldura cognitiva presente na

    escrita historiogrfica e na subjetividade que h em representaes do passado

    (que chama de inevitvel). No entanto, como Schmidt e Rusch, ele deixa claro

    que a realidade existe, mesmo que seja de forma plural, tendo construdo o seu

    texto a partir de diferentes pontos de vista. A subjetividade como um dos fatores

    na construo do mundo real, mas no deveria ser vista como forma de

    substituio.

    inegvel, todavia, que h uma certa semelhana entre o trabalho do

    historiador e do escritor no que se refere criao de discursos, j que no

    discurso (histrico ou ficcional) que se constri a ao dos personagens

    (histricos ou ficcionais)(BERGER, 1983, p. 71).

    Quais seriam as conseqncias para a historiografia dessa ruptura com aidia de cincia ou pureza cientfica na histria e sua aproximao com os

    discursos narrativos e ficcionais? Primeiramente, importante dizer que a

    historiografia no teria seu valor como rea do conhecimento diminudo apenas

    por reconhecer que utiliza alguns recursos literrios na construo de seus textos.

    Pelo contrrio: as vozes dissonantes da historiografia, reescrevendo fatos sob

    ngulos distintos, apenas enriqueceriam a discusso sobre as diferentes foras que

    atuam na representao de um evento histrico.

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    A historiografia tambm ganharia muito com o fato de fazer uso de

    variadas tcnicas narrativas na construo do seu discurso. No veladamente,

    ainda tentando reproduzir um nvel de autenticidade; mas de forma aberta

    reestruturando o passado de acordo com o ponto de vista.Uma outra e definitiva conseqncia da unio entre historiografia e

    narrativa apresentada por Hayden White:

    Longe de ser um oposto antittico da narrativa histrica, a narrativa ficcional oseu complemento e aliado no esforo humano universal de refletir o mistrio datemporalidade. De fato, a narrativa de fico permite aos historiadores perceberclaramente o interesse metafsico motivando seus esforos tradicionais de dizer oque realmente aconteceu no passado em forma de histria (WHITE, 1987,

    p.180)

    11

    White aponta para uma questo ainda maior que a prpria escrita da

    histria. De acordo com o terico, a aceitao de similaridades entre um discurso

    ficcional e outro histrico levantaria o questionamento por parte do historiador da

    razo pela qual ele resolveu se dedicar escrita de algo que realmente

    aconteceu questionamento esse considerado por White de cunho metafsico, j

    que o confronto com o passado atesta a temporalidade da existncia humana, suafugacidade, e o por fim a prpria morte.

    Em resumo, seria altamente conservador e reducionista no reconhecer as

    vantagens que se h na aproximao prtica e terica dos discursos da histria e

    da narrativa. As barreiras que dividem a subjetividade e da objetividade so

    demolidas em prol de representaes da realidade que enriquecem o sentido da

    prpria existncia humana. No se trata de afirmar que tudo inveno. Pelo

    contrrio, trata-se da busca de uma representao mais plausvel do mundoexterior. De certo modo, o gnero do romance histrico desempenhou esse papel

    de representar um mundo exterior e anterior de forma bem sucedida. Tendo seu

    pice no sculo XIX considerado o sculo da histria como cincia esse tipo

    de literatura objetivava uma nova figurao narrativa para entender a experincia

    11Far from being an antithetical opposite of historical narrative, fictional narrative is itscomplement and ally in the universal human effort to reflect on the mystery of temporality. Indeed,

    narrative fiction permits historians to perceive clearly the metaphysical interest motivating theirtraditional effort to tell what really happened in the past in the form of a story.

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    da realidade atravs de instrumentos de ficcionalizao do passado. Os romances

    de Walter Scott, por exemplo, seriam instrumentos para essa reconfigurao do

    passado e uma inscrio da subjetividade na descrio do passado que deu origem

    ao presente.No mundo contemporneo, no entanto, existe a necessidade de novas

    formas de encarar a pluralidade do real e a temporalidade e talvez a fico

    cientfica seja a mais adequada para esse papel. Para Fredric Jameson chega a

    dizer seria uma espcie de gnero anlogo e sucessor do romance histrico:

    O subgnero [fico cientfica] pode ser considerado uma forma historicamentenova e original que nos oferece uma analogia com a emergncia do romancehistrico no sculo XIX (...) A fico cientfica como gnero tem uma relaoestrutural e dialtica com o romance histrico (...) Se o romance histricocorrespondia ao aparecimento da historicidade, do sentido da histria em suaacepo moderna, forte, ps-sculo XVIII, a fico cientfica correspondeigualmente ao esmaecimento ou bloqueio dessa historicidade e, em especial, emnossa prpria poca (a era ps-moderna). (JAMESON, 2002, p. 289-290)

    Em outras palavras, a fico cientfica, servindo de contraponto ficcional

    concepo de novas teorias da narrativa, oferece uma forma de figurao do

    momento atual assim como o romance histrico o fez em seu pice no sculo

    XIX, ainda que de sinais invertidos. Na sntese de McHale, seria como se a

    fico cientfica nos ajudasse a historicizar o presente ao reimagin-lo como

    passado de um futuro determinado, da mesma forma que a fico histrica nos

    ajudou de forma parecida ao reimaginar o presente como futuro de um passado

    determinado (McHALE, 1992, pp.238-9) 12

    12

    [Science fiction] helps us historicize our present by reimagining it as thepast of a determinatefuture, just as historical fiction once helped us in a similar way by reimagining the present as thefuture of a determinate past.

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    1.3

    Philip K. Dick e a nfase na Construo da Histria

    Tendo comeado a publicar seus trabalhos no fim dos anos 50 e atingido opice criativo nos anos 60 e 70, Philip K. Dick (1928-1982) o escritor smbolo

    da Nova Onda de fico cientfica norte-americana. Seus mais de 50 volumes de

    livros e contos so ao mesmo tempo um retrato das efervescentes idias

    decorrentes dos movimentos da contracultura daquela fase e uma descrio

    visionria da discusso dos principais temas que viriam tomar de assalto a

    indstria cultural do final do sculo XX: a originalidade da arte, a perda da

    identidade, a desconstruo da realidade, a narratividade do discurso histrico.Sua obra est intimamente ligada ao avano e a maturidade que a fico

    cientfica adquiriu na segunda metade do sculo XX, principalmente no que diz

    respeito a uma reavaliao do valor esttico e literrio do gnero alm do gueto de

    sub-literatura ou literatura de massa. Lawrence Sutin, um dos grandes

    especialistas na obra de Dick afirma:

    Philip K. Dick (...) se tornou, desde sua morte, o foco de uma das maisformidveis reavaliaes dos tempos modernos. Desde seu longo status deescritor pulp de fico cientficabarata, Dick agora tem emergido nas mentesde uma grande variedade de crticos e artistas como um dos mais excepcionais evisionrios talentos na histria da literatura americana. (SUTIN, 1995, p. x )13

    Vrios livros de Dick vm sendo relanados ao redor do mundo (inclusive

    no Brasil) e a publicao de quatro de seus romances na prestigiosa edio da

    Library of America , para alguns crticos, uma forte indicao de que o autor

    finalmente entrou para o cnone da literatura norte-americana.

    Alm do mais, muitos trabalhos de Philip K. Dick tm sido descobertos

    pelo cinema, o que justifica a popularizao de sua obra. Blade Runner, a

    adaptao do romance Do Androids Dream of Electric Sheep?, vem desde seu

    lanamento adquirindo um status de clssico cinematogrfico e atestando as idias

    13Philip K. Dick (...) has become, since his death, the focus of one of the most remarkable literaryreappraisals of modern times. From his longtime status as patronized pulp writer of trashy

    science fiction, Dick has now emerged in the minds of a broad range of critics and fellow artists as one of the most unique and visionary talents in the history of American literature.

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    visionrias da histria de Dick. Outros filmes (O Vingador do Futuro de Paul

    Verhoeven, Minority Reportde Steven Spielberg, O Pagamento de John Woo e O

    Homem Duplo de Richard Linklater) serviram para popularizar os contos e

    romances do autor entre um pblico cada vez mais interessado em conhecer aliteratura de Dick. Sua importncia na produo de fico cientfica

    contempornea inegvel:

    Philip K Dick vagava beira de uma grandeza s perceptvel atravs doentendimento dos temas da fico cientfica que ele transformou e nos quaisdeixou sua marca; sua importncia para a rea, embora inicialmente indireta, temapenas crescido desde sua morte em 1982. (CLUTE, 2003, p.69)14

    Esse reconhecimento tardio da obra do autor contrasta profundamente com

    o incio de sua carreira. Dois fatores tm influncia marcante na escrita de Dick ao

    comear a escrever suas histrias: primeiramente, o autor estuda por um tempo na

    Universidade de Berkeley, onde seu vido interesse por literatura (era um f dos

    realistas franceses) o levou a entrar em contato com a filosofia, de Plato a

    Bergson. As idias desses pensadores, principalmente no que dizia respeito

    construo e o sentido da realidade, fascinavam Philip K. Dick e diferentes

    questionamentos sobre o tema se faro presentes no seu trabalho posterior.

    Outro fator crucial que vai ter um efeito em sua produo quando

    diagnosticado esquizofrnico, o que aprofunda ainda mais o interesse do autor por

    diferentes formas de percepo da realidade. Esse receiturio e a posterior

    experincia de Dick com drogas vo acabar por acentuar em seu trabalho a busca

    por formas de percepo do mundo que vo alm dos sentidos existentes.

    Dick comea a publicar suas histrias no incio da dcada de 50 em

    revistas pulp de fico cientfica e passa a se dedicar exclusivamente carreira

    de escritor. Escreve em grande quantidade, e vrios de romances no chegaram a

    ser publicados imediatamente, o que lhe acarretou srios problemas financeiros.

    medida que aprimorava sua narrativa e dedica-se a fundo ao tema da

    fico cientfica, Dick passa a elaborar diferentes temticas que posteriormente

    tornaro a marca registrada de seu estilo literrio. Como escreveu o prprio autor,

    14

    Philip K. Dick hovered at the edge of a greatness only perceivable through an understanding ofthe sf motifs he transformed and on which he laid his imprint; his importance the field, thoughinitially indirect, has only grown since his death in 1982.

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    atravs dos anos a fico cientfica cresceu, amadurecendo em direo a uma

    maior conscincia e responsabilidade social. (DICK, 1995, p.9).15 A principal

    dessas temticas talvez seja a natureza da iluso que permeia o mundo que nos

    rodeia. A partir da, o autor pe em xeque a noo do real, ao mostrar em suashistrias que a realidade nica no existe, mas sim inmeras verses do real.

    Dessa forma, o autntico e genuno pode ser manipulado de forma subjetiva em

    camadas variadas, at que no saiba mais onde termina o artificial e comea o real

    um mundo de simulacro.

    Alguns romances so fundamentais na evoluo de Dick de escritor de

    revistas baratas de fico cientfica a autor aclamado da New Wave. Esses livros

    representam os questionamentos-chave do escritor em toda a sua obra: O que oreal? e O que o humano? Desses romances, trs foram escolhidos para

    ilustrar a natureza da preocupao ontolgica de Dick e de como ela dialoga com

    teorias contemporneas da narrativa e da historiografia.

    O primeiro deles Time Out of Joint (Tempo Fora dos Eixos, em traduo

    livre), de 1959. O ttulo do romance tirado de uma clebre passagem deHamlet

    em que o prncipe, aps descobrir da trama de assassinato que levou morte de

    seu pai, brada: The time is out of joint; O cursed spite/ That ever I was born toset it right!16 (O tempo est fora dos eixos; Oh dio maldito/ Ter nascido para

    coloc-lo em ordem!). Nesse romance, o personagem principal, Ragle Gumm,

    acredita que vive nos EUA dos anos 50, resolvendo palavras cruzadas de um

    jornal como profisso. No entanto, a partir de eventos curiosos do dia a dia,

    percebe que h algo estranho no tecido da realidade em que habita. medida que

    a narrativa prossegue, o protagonista (assim como os leitores) descobre que aquele

    mundo um construto, j que se trata de uma comunidade imaginada e idealizadade forma pacfica dos anos 50 mas o verdadeiro ano em que se passa a histria

    1998, quando uma sociedade decadente tomada por uma guerra nuclear

    interplanetria.

    Nesse romance, Dick aborda a multiplicidade de realidades que pode

    habitar uma nica configurao de espao-tempo ao colocar lado a lado a

    15

    Over the years stf [scientifiction] has grown, matured toward greater social awareness andresponsibility.16 SHAKESPEARE, 1994, p.54-55.

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    estrutura de um tempo real exterior decadente e a estrutura de um tempo

    artificial interior idlico. O choque desses dois universos paralelos leva ao exame

    da noo de identidade por parte dos personagens e at que ponto o mundo pode

    ser uma mera simulao.O segundo romance a ser abordado neste trabalho The Man in the High

    Castle, de 1962. Trata-se de um trabalho de histria alternativa, um dos temas

    clssicos da fico cientfica. A histria alternativa consiste em mostrar um

    acontecimento globalmente conhecido geralmente de importncia histrica e

    alter-lo, mostrando-o sob outra perspectiva. Em linhas gerais, romances dessa

    natureza comeam como um e se...? para depois mostrar as conseqncias

    daquela alterao. No caso de The Man in the High Castle, a pergunta feita porDick : E se os alemes e japoneses tivessem vencido a Segunda Guerra

    Mundial?.

    Assim com a vitria do Eixo ao fim da Segunda Guerra, o mundo

    encontra-se mergulhado numa bipolaridade anloga quela da Guerra Fria, ou

    seja, divido em duas reas de influncia: uma alem e outra japonesa. Essa diviso

    ainda mais fortemente marcada no territrio norte-americano: a costa oeste

    pertence ao imprio japons, enquanto a costa leste territrio do Reich nazista.Os Estados Unidos em 1962 so uma espcie de colnia onde, numa relao

    aparentemente harmnica, convivem pessoas de diversas raas e origens: no s

    alemes e japoneses, mas tambm os americanos nativos entre eles judeus

    perseguidos e negros tornados escravos.

    O perodo abordado no romance o mesmo no qual ele foi escrito: 1962.

    Dessa forma, portanto, Dick cria um universo que imediatamente paralelo ao do

    leitor. Nesta nova realidade, que tem alemes e japoneses como vencedores, fatose personagens do passado so desfamiliarizados e modificados: Franklin D.

    Roosevelt assassinado, Hitler sobrevive num asilo, corrodo pela sfilis, fornos

    para a aniquilao de judeus so construdos em Nova York, a maioria da

    populao africana exterminada.

    No entanto, Dick leva essa re-escrita histrica a outros nveis, tornando

    inexata a linha que divide histria, fico e realidade. Isso ocorre porque um dos

    personagens de The Man in the High Castle Hawthorne Abendsen um

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    escritor de fico cientfica que tambm escreve um romance sobre um universo

    paralelo. Em seu livro The Grasshopper Lies Heavy (O Gafanhoto Torna-se

    Pesado), Abendsen descreve um mundo onde o Eixo perdedor e EUA e

    Inglaterra so os grandes vencedores da Segunda Guerra. Dick cria, portanto, nos uma histria paralela do leitor, mas tambm em uma estratgia

    metaficcional cria uma fico paralela sua prpria.

    Neste romance, Dick explicita os limites entre a escrita historiogrfica e a

    fico cientfica, provando o quanto h de nostlgico e historicizado nas criaes

    em criaes fantsticas ficcionais e, de certa forma, expondo o quanto h de

    subjetivo no conhecimento histrica. Alm disso, a natureza metaficcional de The

    Man in the High Castle mais uma camada da discusso das fronteiras entreautenticidade e cpia, um dos temas centrais do romance e de toda a carreira do

    autor.

    O terceiro trabalho de Dick a ser discutido Do Androids Dream of

    Electric Sheep? Esse romance, que foi adaptado para o cinema no filme Blade

    Runner O Caador de Andrides, se passa em 1992, (ou seja, vinte e quatro

    anos aps a data de publicao da primeira edio do livro) um perodo aps a

    chamada World War Terminus, uma espcie de terceira guerra mundial quedevasta grande parte do planeta. Devido imensa destruio, grande parte da

    populao parte para colnias espaciais fora da Terra, em busca de uma vida

    melhor. Aqueles que ainda sobrevivem na Terra so cidados de terceira classe,

    seja por no terem condies econmicas de viver em outro planeta, ou por no

    passarem nos exames fsicos necessrios para sair da Terra.

    Grande parte da populao do planeta anseia por possuir algum animal de

    estimao, atividade considerada como dever cvico, smbolo de status e tambmuma forma de se relacionar com algo vivo, j que a maioria das espcies encontra-

    se em extino.

    Como encontrar algum animal depois do conflito mundial raridade

    devido grande quantidade de radiao que dizimou a maioria das espcies, os

    preos para adquirir um animal domstico so estratosfricos. Para atender

    demanda, animais artificiais so construdos roboticamente projetados, so

    idnticos aos autnticos. Andrides tambm so projetados, cpias idnticas de

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    seres humanos, para auxiliar nas colnias interplanetrias. Esses andrides so

    mantidos num estado de quase escravido, e sua nica funo servir ao homem.

    Quando um grupo desses andrides foge para a Terra (onde sua permanncia

    proibida), um caador de recompensas responsvel por extermin-los.A discusso aqui entre onde termina a simulao e comea o genuno se d

    primeiramente no terreno do corpo. Ao tornar ambgua a relao entre seres

    humanos e andrides, o autor tece um comentrio sobre qual o trao humano

    distintivo e o que o difere das mquinas. Mas quando os robs humanides

    passam a agir como humanos e os humanos se comportam como mquinas que

    Dick eleva a questo a nveis metafsicos, fazendo com que ambos os grupos se

    perguntem a sua verdadeira natureza e o objetivo de sua prpria existncia.Nos trs romances supracitados, portanto, Philip K. Dick desenvolve

    metaforicamente ou at mesmo diretamente sua preocupao pela falncia da

    idia de uma realidade nica. Com a multiplicidade de representaes do real,

    como distinguir o verdadeiro do falso? E mesmo assim, o falso seria o oposto do

    verdadeiro ou apenas uma verso diferente dele? Como se pode ter confiana na

    veracidade num mundo onde a prpria certeza encontra-se fragmentada?

    Essas perguntas so desdobradas na obra de Dick (especialmente nos

    romances a serem abordados nesse trabalho) atravs de trs temas quase sempre

    presentes em suas narrativas. Primeiramente, o controle das instituies sobre o

    indivduo; em segundo lugar, as caractersticas essenciais da natureza humana; e

    finalmente, a preocupao com o conhecimento histrico.

    Em vrios trabalhos do autor possvel perceber que instituies dotadas

    de um discurso de poder sejam elas de aspecto poltico, econmico ou at

    mesmo religioso trabalham com o intuito de velar seus interesses controladores

    com o intuito de dominar os indivduos. Esse controle exercido na maioria das

    vezes fabricando fatos ou conhecimento que os personagens acreditam ser

    verdadeiros. Essa crena por parte dos personagens se d devido a sua

    desorientao diante das rpidas e indefinidas mudanas pelas quais seu universo

    de tempo/espao vem passando. Mas quando uma brecha na realidade se faz

    presente, revelando-se como fabricao ou iluso, que se inicia uma busca pela

    verdade. Em suas obras quase tudo no terreno scio-poltico (na maioria das

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    vezes assustadoramente) conspiratrio (SLUSSER, 1988, p.20). Alm do mais, a

    fronteira entre o pblico e o privado praticamente abolida, pois a dominao por

    parte de instituies controladoras encontra-se inserida na vida pessoal. Nessa

    perspectiva, fica claro que

    A presena das mega-corporaes na vida do indivduo comum, os compls entreelas e o governo na luta pelo controle da mente e das informaes adquiridaspelos sujeitos, fazem parte dessa rede de relaes sociais e polticas nas quais ospersonagens se encontram envolvidos. (AMARAL, 2006, p.162).

    Isso explica porque alguns dos livros de Philip K. Dick funcionam quase

    como romances policiais, em que personagens-detetive partem em busca de pistas

    para provar uma teoria. Tal teoria geralmente gira em torno do aspecto de

    simulao em que se encontram e a concluso a que costumam chegar a de que

    foram enganados por certezas manufaturadas criadas por sistemas detentores de

    poder.

    A busca por um conhecimento libertador que lhes abra as portas da

    percepo feita por qualquer membro da sociedade que anseie por escapar da

    atmosfera limitadora em que vive seja ele humano ou andride. Principalmente

    no segundo caso, curioso notar que quem exerce o papel controlador o homem,

    que a classe favorecida porque , em si prpria, natural e genuna. No entanto,

    os andrides tambm buscam essa autenticidade talvez at porque eles prprios

    no o so. Isso faz com que um embate entre as regras humanas e as necessidades

    andrides seja iminente em todo o romance de Dick que aborde temas ligados

    inteligncia artificial.

    Em seu artigo de 1972, The Android and the Human, Philip K. Dick cita

    Spinoza ao discutir a existncia humana e a humanide: A tentativa de persistir

    em sua prpria existncia a essncia da individualidade. (DICK, 1995, p.203)

    Essa , de certa forma, a natureza da motivao andride, pois o que acaba pode

    definir esses seres artificiais na obra do autor menos a sua composio mecnica

    e mais o seu desejo de existir livre das amarras impostas pelo homem.

    O terceiro e talvez mais relevante desdobramento da questo sobre a

    significncia da realidade encontra-se na preocupao sobre o conhecimentohistrico presente em inmeros trabalhos de Philip K. Dick. Os romances de Dick

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    de certa forma apresentam um valor paradigmtico para a questo da histria e da

    historicidade em geral (JAMESON, 2002, p.289), o que amplia a temtica da

    gerao de escritores da Nova Onda de fico cientfica dos anos 60. O autor foi

    um dos primeiros ao lidar com o gnero no como futurologia ou mera previso,mas ao perceber como os impulsos de recordao e preservao dialogam com o

    leitmotiv desse estilo, procura ver seu presente como histria (passada)

    (JAMESON, 2002, p.301).

    Dick se destaca nesta perspectiva histrica da fico cientfica, onde o

    conceito de historicidade passa a existir lado a lado de exploraes espaciais ou

    andrides, temas geralmente relacionados a textos sobre o futuro. Como poucos

    escritores do perodo, Dick compreende a afirmao do crtico Adam Roberts:

    A fico cientfica no nos projeta para o futuro; ela nos relata histrias sobre opresente e, ainda mais importante, sobre o passado que deu origem a essepresente(...) A fico cientfica um estilo historiogrfico, uma forma simblicade se escrever a histria. (ROBERTS, 2000. p.35-36.)17

    Essa escrita simblica da histria atravs da fico cientfica realizada

    por Dick no como se a historiografia fosse responsvel por retratar de forma

    exata e objetiva os acontecimentos do passado. Pelo contrrio: o autor v o

    prprio passado como uma realidade alternativa, que acreditamos estar ligada

    nossa apenas pelo desejo de explicar de forma causal os fatos do presente. A nica

    forma atravs da qual possvel ter acesso ao passado atravs da fico. Um

    interessante exemplo dado pelo prprio Dick para provar seu ponto:

    Por exemplo, um antroplogo encontra um crnio na frica de quase 3 milhesde anos. Ele o observa, o testa, e ento em seu artigo da Nature ou Scientific

    American nos relata o que ele encontrou na verdade. Mas eu posso me ver (...) devolta 2.8 milhes de anos e, pelo que sei, loucas especulaes que eu no possoprovarme viriam mente. (...) Se for verdade que os humanos tenham vividonaquele tempo eu iria imaginar toda uma cultura, e especular como num sonhovoluntrio, como deve ter sido o mundo daquela pessoa. (...) O que eu vejo oque supostamente devo chamar de um ambiente ficcional que o crnio meinforma. Uma histria que o crnio pode estar querendo dizer. Pode a palavracrucial, porque ns no sabemos, ns no temos os artefatos, e ainda assim euvejo mais do que eu tenho em minhas mos. Cada objeto uma pista, uma chave,para um mundo inteiramente diferente do nosso passado, presente ou futuro,

    17

    SF does not project us into the future; it relates to us stories about our present, and moreimportantly about the past that led to this present. () SF is a historiographic mode, a means ofsymbolically write about history.

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    no este mundo imediato, e esse crnio me informa desse outro mundo, e issoeu devo imaginar por minha conta. (DICK,1995, p.72)18

    A partir desse ponto de vista, pode-se dizer que a fico cientfica funciona como

    uma historiografia imaginativa, em que o passado explorado atravs da fico de

    um mundo ao qual no podemos ter acesso. O que Dick prope uma espcie de

    arqueologia do imaginrio, onde a histria j ocorrida pode ser revivida atravs da

    fico, que nos permite ir alm do material e do objetivo e possibilita questionar a

    subjetividade presente em qualquer discurso.

    A construo de um conhecimento do passado pode ser feito muitas e

    repetidas vezes ao recordar fatos que j ocorreram. Para tal, utiliza-se a memria,

    porque assim h uma evidncia dada pelo inconsciente de que algo realmente

    existiu. Cabe aqui, no entanto, uma importante discusso: ns lembramos de um

    evento do passado porque ele existiu? Ou ele existiu porque nos lembramos dele?

    o passado que d forma lembrana ou a recordao que d forma ao

    passado?

    A memria nos romances de Dick usada pelos personagens quase como

    um instrumento de orientao, porque as lembranas do passado tm um valor

    confivel em meio aos simulacros que permeiam a realidade. Assim, em Do

    Androids Dream of Electric Sheep?, por exemplo, a memria dos indivduos o

    que legitima sua existncia real e, acima de tudo, humana.

    A memria, contudo, s pode ser comprovada por aquele que a possui.

    Portanto, faz-se necessrio algum artefato para materializar certos conhecimentos

    do passado vividos em primeira pessoa. Os meios usados para tal geralmente so

    elementos miditicos, geralmente de carter visual, que possam comprovar aquiloque a memria recorda. Fotografias e vdeos se tornam ento reflexos concretos

    18 For example, an anthropologist finds a humanoid skull in Africa almost 3 million years old. Helooks at it, subjects it to tests, and then in his article in Nature or Scientific American tells us whathe actually found. But I can see myself () back at the 2.8-million-year striation, and as I see it,wild speculations that I cannot prove would come to my mind () If true, humans lived that longago and I would imagine a whole culture, and speculate as if in a voluntary dream, what thatpersons world might have been like () What I see is what I suppose I would have to call afictional environment that that skull tells me of. A story that that skull might wish to say. Mightis the crucial word, because we dont know, we dont have the artifacts, and yet I see more than I

    hold in my hand. Each object is a clue, a key, to an entire world, and this skull tells me of thisother world, and this I must dream up myself.

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    do consciente, dando forma e sentido s lembranas. Sobre esse aspecto pictrico

    da memria, Bukatman chega a afirmar:

    Fotos estabelecem coisas realidade, identidade, histria porque nos

    acreditamos que elas estejam fundamentalmente conectadas ao que elasrepresentam. De alguma forma, a luz refletida por um corpo foi fixada no papel eme chega aos olhos no momento presente. (BUKATMAN, 1997, p.78)19

    O que Dick faz emDo Androids Dream of Electric Sheep? investigar a

    suposta objetividade presente na memria e nos artifcios usados para represent-

    la. Vrios andrides personagens do romance, por exemplo, desconhecem a sua

    condio robtica porque tm memrias artificialmente implantadas, o que lhes

    proporciona a impresso de seres humanos. Mais do que isso, eles dispem defotografias antigas, como recordaes de famlia, para lhes dar a impresso de que

    eles tiveram uma infncia, uma experincia prvia em resumo, um passado.

    Essa fabricao da histria (e por conseguinte, da identidade) dos andrides por

    parte de uma mega-corporao simboliza como os objetivos capitalistas podem

    exercer tal presso nos indivduos que acaba por influenciar a sua prpria noo

    de humanidade. Assim, nem a mente est a salvo do controle capitalista, porque

    at mesmo as lembranas podem ser manipuladas. Porm, mais do que isso, Dick

    cria uma notvel metfora para as incertezas da ps-modernidade, em que

    princpios padro da objetividade so problematizados. As fotos so apenas uma

    superfcie plana que tem por trs uma lembrana que pode nunca ter existido.

    Scott Bukatman explica especialmente essa relao entre a memria e a

    fotografia:

    As inescapveis fotografias (...) esto constantemente sendo manuseadas ereviradas, o que enfatiza a sua igualmente inescapvel superficialidade e falta deprofundidade. As memrias no so menos indelveis que o papel em que afotografia foi impressa; a histria perde seu valor de garantia de verdade,estabilidade e sentido unificado. Fotos so constantemente invocadas comosignos, mas elas so ao final signos vazios, significantes do nada. (BUKATMAN,1997, p.80)20

    19 Photos nail things down reality, identity, history because we believe them to be sofundamentally connected top what they depict. Somehow, the light reflecting from a body hasbeen fixed on paper and reaches out to my eye in the present moment.20 The inescapable photographs (...) are constantly being handled and flipped over, whichemphasises their equally inescapable flatness and depthlessness. Memories are no more indelible

    than the paper a photograph is printed on; history is devalued as a guarantor of truth, stability andunified meaning. Photographs are constantly invoked as signs, but they are ultimately empty signs,signifiers of nothing.

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    Esse desejo de recordao que se faz presente no s em Do Androids

    Dream of Electric Sheep? mas em outras obras de Philip K. Dick diz respeito a

    uma obsesso por reviver, pelo menos na memria, um perodo antigo em que os

    paradigmas da sociedade estivessem bem consolidados e onde as relaes entre osindivduos se desse de forma mais concreta, sem ser mediada pelo espetculo que

    invade todas as esferas da existncia na ps