a experiência teatral como prática educativa-desgranges

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Refletir sobre a importância da recepção espetacular na formação humana.

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Page 1: A experiência teatral como prática educativa-Desgranges

A EXPERIÊNCIA TEATRAL COMO PRÁTICA EDUCATIVA:

A POSIÇÃO DO ESPECTADOR

Tomar a experiência com a arte enquanto relevante atividade educacional

constitui-se em proposição que vem sendo investigada ao longo dos tempos, e que

continua a estimular o pensamento e a atuação de artistas e educadores contemporâneos,

já que as respostas para essa questão apresentam-se, enquanto formulações históricas,

apropriadas paras diversas relações estabelecidas entre arte e sociedade nas diferentes

épocas. Em nossos dias, um dos aspectos marcantes do pensamento acerca do valor

pedagógico da arte está no desafio de tentar elucidar em que medida a experiência

artística pode, por si, ser compreendida como ação educativa. Tentaremos, pois, abordar

este aspecto do tema: como pensar a prática do teatro enquanto atividade educacional?

Ou ainda, como compreender o valor pedagógico inerente à experiência proposta ao

espectador teatral?

Tornou-se bastante comum o teatro ser apontado como valioso aliado da

educação, a freqüentação a espetáculos ser indicada, recomendada como relevante

experiência pedagógica. Esse valor educacional, intrínseco ao ato de assistir a uma

encenação teatral, contudo, tem sido definido, por vezes, de maneira um tanto vaga,

apoiada em chavões do tipo: teatro é cultura Outras vezes, percebido de maneira

reducionista, enfatizando somente suas possibilidades didáticas de transmissão de

informações e conteúdos disciplinares, ou de afirmação de uma determinada conduta

moral.

Que outras propostas, entre tantas possíveis, podemos vislumbrar na tentativa de

compreender a atividade proposta ao espectador como educacional? Como interpretar, a

partir da formulação citada acima, a relação com a arte teatral como sendo por si uma

experiência pedagógica?

MINHA LINGUAGEM, MEU MUNDO

Interessado em investigar mais profundamente essa questão, o educador francês

Philippe Meirieu realizou, em 1992, uma pesquisa que se mostrou bastante rica e

reveladora, com crianças extremamente desfavorecidas, habitantes da periferia da

cidade de Lião. Em entrevista realizada com estes meninos, que tinham entre seis e doze

anos, o educador percebeu que uma das características destas crianças, “que se sentem

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fracassadas pessoal e socialmente, é a absoluta incapacidade de pensar uma história, de

pensar a própria história.” (Meirieu, 1993, p.14)1

Meirieu esclarece que, quando conversamos com estas crianças e lhes pedimos

que para falar de si, contar a sua história, percebemos a grande dificuldade que têm de

se referir ao passado, mesmo o passado recente, em articular a linguagem para falar da

própria vida, o que se constitui em relevante deficiência, pois “os limites da minha

linguagem denotam os limites do meu mundo” (Wittgenstein, apud Alves, 2001, p. 27)2.

A dificuldade de organizar o discurso revela a pouca aptidão tanto para criar

compreensões possíveis (e ampliar as suas percepções) para os fatos do cotidiano,

quanto para atribuir sentido à própria existência. A incapacidade de contar a sua história

está diretamente relacionada, portanto, com a falta de condições para organizar e

compreender o seu passado, o que indica ainda a dificuldade de situar-se no presente e

de projetar-se no futuro.

O educador francês, analisando as entrevistas feitas com as crianças, aponta que,

mesmo as mais velhas, são incapazes, por exemplo, de utilizar algumas das expressões

tão comuns e fundamentais para dar sentido à vida, tais como: “foi a partir deste

momento que eu compreendi”, “teve um momento em minha vida que aconteceu isto e

me levou a decidir isto”, “eu descobri que”, etc. A pesquisa aponta, ainda, que estes

meninos utilizam frequentemente o “você”, e o “a gente”, para falar de si, e quase nunca

o pronome “eu”, como se não se sentissem autorizados a reconhecer a própria

capacidade de construir e compreender os fatos que compõem a sua história, tornando-

se de fato autores e sujeitos desta história.

Meirieu ressalta, contudo, que, das crianças entrevistadas, aquelas habituadas a

freqüentar salas de teatro, de cinema, e a ouvir histórias demonstram maior facilidade de

conceber um discurso narrativo, de criar histórias, e de organizar e apresentar os

acontecimentos da própria vida. A investigação indica, assim, que quem sabe ouvir uma

história sabe contar histórias. Quem ouve histórias, sendo estimulado a compreendê-las,

exercita também a capacidade de criar e contar histórias, sentindo-se, quem sabe

motivado a fazer história.

No teatro, por sua vez, uma narrativa é apresentada valendo-se conjuntamente de

vários elementos de significação: a palavra, os gestos, as sonoridades, os figurinos, os

1 Meirieu, Philippe. Le théâtre et la construction de la personalité de l’enfant : de l’événement à l’histoire. In :M. Créac’h. Les enjeux actuels du théâtre et ses rapports avecs le public. Lião : CRDP, 1993. 2 Alves, Rubem. A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir. Campinas:Papirus, 2001.

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objetos cênicos, etc. A experiência teatral desafia o espectador a, deparando-se com a

linguagem própria a esta arte, elaborar os diversos signos presentes em uma encenação.

Esse mergulho no jogo da linguagem teatral, provoca o espectador a perceber,

decodificar e interpretar de maneira pessoal os variados signos que compõem o discurso

cênico.

O mergulho na corrente viva da linguagem acende também a vontade de lançar

um olhar interpretativo para a vida, exercitando a capacidade de compreendê-la de

maneira própria. Podemos conceber assim, que a tomada de consciência se efetiva como

leitura de mundo. Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa leitura. (...)

Texto extraído de:

Desgranges, Flávio. Pedagogia do Teatro:

provocações e dialogismo. São Paulo: Hucitec, 2006.