a experiência do limite. a tradução de la vérité en peinture

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  • 8/13/2019 a experincia do limite. a traduo de La Vrit en peinture

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    OLIVIA AUGUSTA NIEMEYER DOS SANTOS

    A EXPERINCIA DO LIMITE: A TRADUO DELA VRIT EN PEINTURE

    CAMPINAS

    2010

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    A EXPERINCIA DO LIMITE: A TRADUO DE LA VRIT EN PEINTURE

    Tese apresentada ao Departamento de LingusticaAplicada do Instituto de Estudos da Linguagem daUniversidade Estadual de Campinas como requisitoparcial para a obteno do ttulo de Doutora emLingustica Aplicada.

    Orientadora: Viviane Veras

    UNICAMP

    2010

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    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

    Sa59eSantos, Olivia Niemeyer.

    A experincia do limites: a traduo de La Vrit en peinture /Olivia Augusta Niemeyer dos Santos. -- Campinas, SP : [s.n.], 2010.

    Orientador : Maria Viviane do Amaral Veras.Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto

    de Estudos da Linguagem.

    1. Jacques Derrida. A verdade em pintura. 2. Traduo einterpretao. 3. Desconstruo (Traduo). 4. Limites. I. Veras,Maria Viviane do Amaral. II. Universidade Estadual de Campinas.Instituto de Estudos da Linguagem. III. Ttulo.

    oe/iel

    Ttulo em ingls: "The experience of limits: the translation ofLa Vrit en peinture".

    Palavras-chave em ingls (Keywords): Jacques Derrida. La vrit en peinture. Interpretingand translating; Deconstruction (Translating); Limits.

    rea de concentrao: Teoria, prtica e ensino da traduo.

    Titulao: Doutor em Lingustica Aplicada.

    Banca examinadora: Profa. Dra. Maria Viviane do Amaral Veras (orientadora), Profa. Dra.Lenita Maria Rimoli Esteves, Profa. Dra. Flavia Trocoli Xavier da Silva, Prof. Dr. Daniel doNascimento e Silva e Profa. Dra. Maria Helena Pires Martins.

    Data da defesa: 02/08/2010.

    Programa de Ps-Graduao: Programa de Ps-Graduao em Lingustica Aplicada.

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    Ao Professor Paulo Roberto Ottoni (in memoriam)

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    v

    Agradeo minha orientadora, Viviane Veras, pela ateno, firme apoio e carinho que sempre

    me proporcionou.

    Agradeo a Jeanne-Marie Gagnebin de Bons e a Viviane Veras pelo estmulo por ocasio da

    qualificao de projeto.

    Agradeo a Maria Augusta Barros de Mattos e a Jos Carlos Pinto de Oliveira pelasqualificaes de rea.

    Agradeo a Flavia Trocoli e a Fbio Duro pelas crticas pontuais e sugestes por ocasio do

    exame de qualificao.

    Agradeo a Lenita Rimoli Esteves, Flavia Trocoli, Maria Helena Pires Martins e a Daniel do

    Nascimento e Silva por terem aceitado participar da banca de defesa desta tese.

    Agradeo aos meus professores do Instituto de Estudos de Linguagem pela formao recebida

    ao longo de todos esses anos.

    Agradeo a Rose de Almeida Marcelino e a Claudio Pereira Platero por toda a ajuda recebida.

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    RESUMO

    Minha tese pretende considerar a experincia da traduo de La Vrit en peinture (JacquesDerrida, 1978), em seus vrios aspectos, e reconhecer, na singularidade desse ato tradutrio,algumas das questes e pressupostos que percorrerem o pensamento ocidental: a oposiofora/dentro; a possibilidade/impossibilidade do encontro com o outro; o mito da origem e arestituio como apropriao. A metfora biolgica da autoimunidade, utilizada por JacquesDerrida em seus ltimos textos (e articulada, por ele, religio, cincia e democracia), o

    ponto de partida para essa reflexo: nosso corpo possui um sistema imunolgico que evita quealgo de fora que o estranho ou o estrangeiro (um vrus ou bactria, por exemplo) , uma vezdentro dos limites do corpo, o destrua. No entanto, em algumas ocasies, entra emfuncionamento outro sistema, autoimunolgico, que ataca ou enfraquece esse mesmo sistemaimunolgico, permitindo que o de fora invada os limites do dentro. Mas essa invaso no sempre ou no somente uma ameaa, um perigo. tambm o que permite, por exemplo, aaceitao de um enxerto ou de um rgo retirado de outra pessoa. Permite que algo de forasalve o paciente. Possibilita, portanto, uma sobrevida. Sobrevida do corpo e, utilizando oconceito de autoimunidade de forma mais ampla, sobrevida da democracia, da cincia (amudana de paradigma) ou do texto original (o comentrio, a interpretao, a traduo).Procuro articular os quatros captulos deA verdade em pinturacom os quatro captulos da tese:no primeiro, para reconhecer a complexa relao entre original e traduo a partir da lgica doparergon, considerando que a traduo trabalha sempre com o que est dentrodas fronteiras dooriginal; no segundo, para refletir sobre o ponto limite, a experincia daquilo que permaneceirredutivelmente idiomtico, mas que, mesmo assim, deve se entregar a uma deciso detraduo; no terceiro, para avaliar a posio do original como paradigma, suspeitando dapossibilidade de uma origem absoluta ou modelo primeiro; no quarto e ltimo captulo, paraexaminar a questo do par e o desejo da tradutora de restituir a verdade do original, levandoem conta a afirmao de Derrida: toda restituio constitui uma apropriao.

    Palavras-chave: traduo, Jacques Derrida,A verdade em pintura, desconstruo, limites

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    ABSTRACT

    My thesis takes into consideration the experience of translating La vrit enpeinture(JacquesDerrida, 1978) in its various aspects, and in the singularity of this translation processrecognises some of the questions and presuppositions which pervade Western thought: theoutside/inside oppositions; the possibility/impossibility of an encounter with the fellow man;the myths of origin and restitution as appropriation. The biological metaphor of autoimmunityused by Jacques Derrida in his last texts (and blended by him, with religion, science anddemocracy) is the starting point for this reflection: our body has an immunologic system that isprevented from destruction by something from "outside" something alien or foreign such as,

    for example, a virus or a bacterium which may get "inside" the limits of the body.Nevertheless, on some occasions, another system an autoimmunologic one is activated, andit attacks or weakens this very immunologic system, allowing the "outside" to invade the limitsof the "inside". Not always, or not only, though, is this invasion a threat, a danger. This is alsowhat allows, for example, the acceptance of a grafting or an organ taken from another person. Itallows something from the "outside" to save the patient. Therefore, it enables a survival survival of the body and, by using the concept of autoimmunity in a wider sense, survival ofdemocracy, of science (a change in the paradigm) or of the original text (the commentary, theinterpretation, the translation). I try to link the four chapters of A verdade em pintura with thefour chapters of my thesis: in the first chapter, the aim is to recognise the complex relationbetween the original and the translation from the logical perspective of the parergon,considering that translation always deals with what is inside the frontiers of the original;in thesecond chapter, I reflect on the borderline, on the experience of that which remains irreduciblyidiomatic, but even so should surrender to a translation decision; in the third chapter, my goal isto assess the place of the original as a paradigm, suspecting the possibility of an absolute originor primary model; in the fourth and last chapter, I examine the original/translation dyad and thetranslator's wish to restitute the "truth of the original", bearing in mind Derrida's statement that"every restitution is an appropriation."

    Key words: translation, Jacques Derrida,La vrit enpeinture, deconstruction, limits

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    INTRODUO

    Por onde comear, todavia, se todo incio, todaintroduo, todo ponto de partida j seencontram afetados pela impossibilidade de umcomeo absoluto?1

    M. Lisse,L exprience de la lecture.

    Comear por uma "Introduo" uma reflexo sobre a traduo de um livro de

    Jacques Derrida implica entender que possa haver uma penetrao de fora para dentro de

    um texto. Nos termos de Marc Goldschmit2:

    [...] a introduao supe que o leitor se situe no exterior e que apassagem para o interior a compreenso do conjunto do projeto,do sentido e do que est em jogo - est reservada ou interdita, quedemanda, em todo caso, a presena e a autoridade de um condutor.

    (Goldschmit 2003, p. 9)

    Supe que esse condutor, aquele que escreveu a introduo, um sujeito suposto

    saber, conhea o "mapa" do seu trabalho, seus caminhos e desvios, saiba relatar o que

    deve ser considerado "dentro" ou "fora" do seu texto. Supe que um introdutor possua as

    chaves e as senhas da tese e que poderia evitar aos leitores, uma errncia interminvel.

    Que possa, em suma, orientar os leitores para os significados corretamente situados

    "dentro" das fronteiras de um "querer dizer" autoral. Mas A verdade em pintura, como

    1Ao longo deste trabalho, as citaes em portugus, quando no referidas a determinado tradutor, foramtraduzidas por mim.2Goldschmit, Marc (2003).Jacques Derrida, une introduction. Paris: Agora Pocket

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    tantos outros livros de Derrida, ensina a suspeitar da noo de fronteira, de limites bem

    marcados entre o fora e o dentro de um texto, assim como de uma tese, de uma obra de

    arte, de um original.

    Mas preciso um comeo a desconstruo nao pretende esquecer a tradio

    acadmica nem pode prescindir de seus instrumentos que oscile entre a impossibilidade

    de se introduzir ao pensamento derridiano "de fora" e a necessidade de fazer justamente

    isso. Ao mesmo tempo, pretende chamar ateno para a problematizao de toda e

    qualquer tentativa de controle sobre a leitura de um texto.

    Jacques Derrida, em sua obra, parte ao (e, possivelmente, de) encontro de outros

    filsofos, da arte, da poesia, da literatura, da psicanlise, e, o que nos interessa aqui, da

    traduo. Um filsofo que convoca vrias lnguas, vrias pocas, sempre espera do que

    vem do outro, incluindo seu leitor e tradutor. Ele se faz ouvir a partir de outras vozes,

    vozes que, como em Restitution, desdobram-se, agregam-se e se dispersam

    continuamente, a ponto de no sabermos, exatamente, quem est falando. Mesmo os

    textos em que, aparentemente, escutamos somente o autor encerram uma polifonia no

    interior de um monlogo. Essas vozes, Derrida no escreve sobre elas, mas se coloca

    escuta, o que permite que elas prprias tomem a palavra.

    EmLa vrit en peinture3, Derrida se coloca escuta de Immanuel Kant, Walter

    Benjamin, Martin Heidegger e dos artistas Valrio Adami, Vincent Van Gogh e Gerard

    Titus-Carmel.

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    certamente sedutor, para uma artista visual, um ttulo que anuncia a Verdade...

    sobrea pintura, napintura, dapintura. E eis aqui, em cena, a tradutora. Para este texto4, a

    traduo me deu aoportunidade delevantar questes sobre limites, origem, hospitalidade,

    autoimunidade, como nos protegemos dee nos abrimosparao outro, para o estrangeiro.

    Em seus pontos limites, aqueles que resistem mais explicitamente passagem para outra

    lngua, a traduo deLa Vrit en peinturepode ser considerada um operador apropriado

    para refletir sobre alteridade em seus diversos aspectos.

    Alm disso, gostaria de acrescentar a esta tese pensada a partir da traduo de

    um livro sobre arte, e para fazer jus importncia de La Vrit en peinture para afilosofia contempornea uma questo esttica que se coloca de forma insistente em

    nossos dias: a ligao entre o fazer artstico, sua apreciao e os discursos sobre arte. A

    arte contempornea existiria sem um discurso?

    Derrida comenta, em entrevista a Peter Brunette e David Wills 5, que se considera

    tecnicamente incompetente para falar sobre arte, mas competente para questionar os

    processos de legitimao desse domnio, sua institucionalizao, seus limites e a prpria

    questo da competncia. O gesto de Derrida em La Vrit en peinture consiste, de um

    modo geral, em procurar aquilo que, no campo artstico e ao redor das obras, representa

    uma fora de resistncia autoridade filosfica, ao discurso filosfico ou, em outras

    palavras, ao logocentrismo6.

    Uma obra espacial se apresenta em silncio, afirma Derrida nessa entrevista, mas

    necessrio diferenciar o mudo do taciturno, duas formas de entender o silncio da

    3Derrida, J. (1978).La Vrit en peinture. Paris: Champs-Flammarion.4Texto que se apresenta como requisito para a obteno do ttulo de doutora em Lingustica Aplicada.5 Brunette, Peter e Wills, David (1994 b). 'The Spacial Arts: An Interview with Jacques Derrida' emDeconstruction and the visual arts: art, media, architecture. Cambridge University Press.6Cf. Brunette 1994 b, p. 10.

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    obra de arte. Por um lado, a obra de um absoluto mutismo, nopode falar. Ser

    absolutamente estrangeira ou heterognea ao discurso encenaria talvez um desejo de

    escapar da subordinao ao discurso. Por outro lado, elapodefalar, podemos sempre nos

    referir nossa prpria experincia dessas obras mudas, podemos sempre interpret-las.

    Derrida acrescenta:

    Quer dizer, essas obras mudas j so, de fato, bastante falantes,cheias de discursos virtuais e, desse ponto de vista, a obrasilenciosa se torna um discurso ainda mais autoritrio torna-se oprprio lugar de uma palavra que ainda mais poderosa por sersilenciosa e que carrega em si, como faz o aforismo, uma

    virtualidade discursiva que infinitamente autoritria,teologicamente autoritria em certo sentido. Assim, pode ser ditoque o maior poder logocntrico reside no silncio de uma obra e alibertao dessa autoridade feita pelo discurso, um discurso quevai relativizar as coisas, vai se emancipar, recusa-se a ajoelhar-sediante da autoridade representada pela escultura ou arquitetura.(Brunette 1994, p. 12 e 13)

    crtica de que a desconstruo no seria pertinente para a apreciao de obras

    visuais, Derrida responde que a desconstruo mais efetiva a que no se limita a textos

    discursivos, e, certamente, no se limita a textos filosficos, embora se sinta mais

    vontade com filosofia e literatura7.

    verdade, por razes que tm a ver, em parte, com minha prpriahistria e arqueologia, que meu investimento em linguagem maisforte, mais antigo, e me d mais alegria do que meus investimentosno plstico ou visual ou espacial. (Brunette 1994, p. 19)

    No h nada que no seja textualizado, no sentido expandido da palavra texto,

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    Desconstruo pode ser pensada como foi ao longo da traduo de La Vrit en

    peinture como um modo de refletir atribudo a Jacques Derrida e que examina

    paradoxos e conceitos estabelecidos pela tradio filosfica ocidental; uma ideia sem

    ideias-chave ou ento uma reflexo filosfica em que todas as ideias so ideias-chave;

    uma fora que desloca e dissemina a ordem herdada; uma reao ao estruturalismo

    dominante na Frana em dado momento; uma forma de ler textos literrios e filosficos

    explorando o que no foi percebido nem pretendido por um autor, nem mesmo

    inconscientemente; uma nfase nas contradies entre o que afirmado e o que

    descrito em um texto; uma espectrologia que desafia a noo de presena plena; umasuspeita que recai sobre nossos pensamentos mais reconfortantes, como o que

    denominamos origem e fim, inteno, deciso, justia, perdo, humanidade, animalidade,

    identidade, amizade, memria, morte; um vrus que infecta a filosofia10; consideraes

    sobre a traduo como um texto suplementar e essencial ao mesmo tempo, tanto

    secundrio ao original quanto sua condio de possibilidade; uma ateno contnua

    iterabilidade como repetio do mesmo e alteridade; um pensar diferente sobre as

    questes de limites, fronteiras, margens, molduras; o esforo em levar ao limite as

    afirmaes de um autor; um deslocamento entre o centro e as margens de um texto

    literrio ou de uma reflexo filosfica; a reabilitao do que sempre foi considerado erro,

    fraqueza, crise, ponto limite dos estudos tradutrios e sua incorporao prpria

    teorizao; a reformulao do conceito de conceito, seus pressupostos, seus limites e suas

    10 Contaminao, seduo ou runa pelo vrus, como comenta Brunette, falando de sua experinciapessoal, mas que pode ser atribuda a qualquer um (a mim, com certeza). Segundo o autor, ele se tornou'incapaz' de escutar uma preleo sobre quase qualquer assunto, desde que foi 'arruinado' peladesconstruo. Assim que algum, dando uma conferncia, divide seu tpico em trs partes, de imediatopercebe que o nmero um poderia realmente ser considerado parte do nmero trs ou que o nmero dois e onmero um, na verdade, se sobrepem... E Derrida responde: eu tambm. (Brunette e Wills 1994, p. 30)

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    possibilidades; a celebrao e o luto pela esttica, conceito levado ao limite por

    contradies internas e por exigncias econmicas, revelando seu compromisso com a

    ideologia e sua confiana no capitalismo; o entrelaamento, a incorporao e, portanto, a

    transformao de campos tericos como filosofia, arte, psicanlise, feminismo,

    marxismo, ps-estruturalismo, ps-modernismo; a necessidade de liberar novos conceitos

    para dar conta das transformaes j vivenciadas em nossa poca; a abertura para o

    acontecimento, para o que cai, inesperadamente sobre ns, como um raio; um inqurito

    sobre a competncia em diversos campos tericos, como ela formada, seus processos de

    legitimao, de institucionalizao, isto , tanto o que estabelece a competncia deexplicitar os limites de um domnio seu corpus , quanto o questionamento do prprio

    conceito de limites e de competncia; a implicao na filosofia de termos indecidveis

    como pharmakon, parergon, hymen, etc.; uma prtica em desalojar as palavras de seu

    significado conhecido pela toro do lxico, da sintaxe....

    Esse jogo de enumerao poderia continuar por muito tempo. Mas confio que o

    efeito desestabilizador desse excesso (como faz Derrida com a numerologia de Titus-

    Carmel11) explicite de forma mais estridente a dificuldade em responder objetivamente

    pergunta o que a desconstruo e se esta "tese" desconstrutivista. Dificuldade

    exacerbada pela constatao depois dessa enumerao da tentativa de atribuir uma

    ideia de profundidade ou eloquncia tese; tentativa que se torna suspeita no momento

    em que glorifica a si prpria.

    Na opinio de alguns crticos de Derrida, a desconstruo simplesmente algo

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    que apareceu na Frana, foi digerido e, aparentemente, esvaziou-se por volta de 1973.

    Derrida responde a essa provocao:

    Isso tanto verdadeiro quanto falso. verdade que a desconstruoapareceu de certa maneira em certo tempo na Frana e que houveum atraso em sua transmisso. Houve um processo de assimilaoe, portanto, aparentemente, de digesto e evacuao que ocorreu naFrana, entre 1966-7 e 1972-3 e desse ponto de vista pode-se dizerque acabou. Ao mesmo tempo, muitas vezes significa repdio ouressentimento em funo de algo que, em minha opinio, ainda nochegou Frana. (Brunette e Wills 1994, p. 30)

    Para John Caputo12, em poucas palavras,

    [...] desconstruo respeito, respeito pelo outro, uma respeitosa eresponsvel afirmao do outro, uma forma de, se no apagar, pelomenos delimitar o narcisismo do self (que , bem literalmente, atautologia) e para fazer algum espao para o outro ser. Esta umaboa maneira de comear a pensar sobre instituies, tradies,comunidades, justia e religio. (Caputo 1999, p. 44)

    Marc Goldschmit avana uma definio:

    [A desconstruo] no o projeto filosfico arbitrrio de um autor:ela , melhor dizendo, o princpio de runa que est inscrito emtodo texto desde sua escritura; dito de outra forma, ela age comoum vrus inseminado na origem e que desmonta, antecipadamente,qualquer "montagem" textual ou institucional. Nesse sentido, adesconstruo no nem uma crtica nem uma crtica da crtica: elano se sobrepe os textos dos quais fala. (Goldschmit 1997, p. 20)

    A mesma dificuldade encontrada na definio de desconstruo habita a pergunta:

    esta tese desconstrutivista?. Seria possvel, e muito mais fcil, responder a isso se a

    11Cf. Derrida (1978), pp 234 240 e o captulo III desta tese.12Caputo, J. (1997). Desconstruction in a Nutshell. A conversation with Jacques Derrida. NY: FordhamUnivesity Press.

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    desconstruo nos apresentasse um "manifesto" (como j se fez no campo artstico), um

    conjunto de coordenadas, de procedimentos, de protocolos que serviriam de pontos de

    referncia em direo verdade da desconstruo, que reconfortariam uma tese que

    pretendesse se colocar dentro dos limites daquilo que desconstruo. Como dizer

    de uma tese que ela desconstrutivista se os pontos de referncia propostos por Derrida

    enviam a outros pontos, a outras referncias; se os sinais de trnsito que iriam indicar a

    boa direo apontam para vrios nortes; se as interseces de caminhos levam a desvios

    infindveis?

    Dessa forma, eu no diria (levada pelas pertinentes inquietaes da banca dequalificao) que minha tese desconstrutivista. Ela contm, como qualquer texto, o

    vrus da desconstruo, o vrus que desencadeia um processo de autoimunidade que

    permite que o leitor encontre os pontos cegos neste texto e desconstrua ou construa, a

    partir deles, novas significaes.

    Goldschmit examina uma confuso recorrente que aproxima a desconstruo de

    uma "teologia negativa", supondo que teologia negativa consista em que toda linguagem

    predicativa permanece inadequada essncia de Deus e, portanto, somente atribuies

    negativas poderiam pretender dar uma resposta pergunta "o que Deus" e, o que nos

    interessa aqui, "o que a desconstruo". A desconstruo tenta se esquivar de toda

    pergunta metafsica e sua retrica pode "fazer pensar" na teologia negativa: como falar

    sem falar da desconstruo "como falar de Deus", "como falar dele sem falar dele?"13.

    A desconstruo elabora outra sintaxe, inscreve-se de outra forma para tentar se subtrair a

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    essa apropriao. Seus "quase-conceitos" no "so", no pertencem metafsica da

    presena ou da presena do presente, da terceira pessoa do verbo ser, e nem mesmo de

    sua ausncia.

    Passo a palavra a Jacques Derrida: ainda na entrevista a Brunette e Wills, o

    filsofo ajuda a quase-conceitualizar a desconstruo, concentrando-se em alguns de

    seus aspectos. Derrida afirma que o que lhe interessa, sobretudo, a fora

    desconstrutiva quanto hegemonia filosfica. Um gesto que consiste em encontrar, ou

    pelo menos procurar seja o que for que, na obra, represente sua fora de resistncia

    autoridade filosfica e ao discurso filosfico

    14

    . Ainda nessa entrevista, Derrida se dizum pouco surpreso pela amplitude do uso da reflexo desconstrutivista, como por

    exemplo, em arquitetura, cinema ou direito. Mas minha surpresa somente meia

    surpresa, porque a desconstruo, como foi concebida ou percebida, torna essa amplitude

    necessria15. Em outro texto16, Derrida arrisca uma nica definio to breve, elptica

    e econmica quanto uma senha: plus dune langue, mais de uma lngua, no mais uma

    lngua..., o que no esclarece tanto assim e, ao contrrio, abre para novas tradues.

    Talvez fosse mais produtivo modificar a pergunta inicial para O que o que a

    desconstruo, j que desconstruo pode ser entendida tambm como uma reflexo que

    abala a pertinncia da questo o que . O jornal italiano Poesiaperguntou a Derrida o

    que poesia, e recebeu como resposta o texto Che cos la poesia 17. Para responder a

    essa pergunta, que coisa a poesia (Quem ousa me perguntar isso?), em duas

    13CF. Goldschmit 2003, p. 149 150.14Cf. Brunette, P. e Wills, D. (1994), pp. 10, 11.15Brunette, P. e Wills, D. (1994), p. 1116Derrida, J. (1986b), pp. 14 -15.17Derrida, J. (1988). 'Che cos' la poesia' (1988) em Kamuf, P. (1991) (ed.).A Derrida Reader betweenthe blinds. Columbia University Press, p. 221 e seqncia.

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    palavras, Derrida leva o leitor por cruzamentos e desvios que envolvem o porco-

    espinho, o ditado escolar, o decorar de uma poesia, o corao (o saber de cor), a auto

    estrada... Dessa forma, a pergunta o que , que coisa no recebe de Derrida uma

    resposta direta que revelaria a essncia da poesia, sua substncia, o substrato capaz de

    permanecer o mesmo e ntegro ao receber a diversidade dos dizeres poticos. O risco

    de responder a o que desconstruo, assim como a o que poesia, percorre o

    mesmo caminho do porco-espinho atravessando a rodovia: ameaador pelos eriar de

    seus espinhos e desarmado por se fechar, por se cegar, enrolando-se sobre si mesmo. A

    desconstruo permanece sempre em perigo, ou, como comenta Goldschmit, h umconstrangimento interno na reflexo derridiana que se prestaria, muito facilmente,

    falsificao pelos seus leitores: "a incompreenso talvez o risco estrutural da

    desconstruo, se ela perfura o tmpano da orelha filosfica"18.

    Deveramos poder estar fora da desconstruo para poder responder o que

    desconstruo, para prometer dizer a sua verdade interior, mas isso no possvel, no

    h esse lugar fora, a salvo da linguagem, no h como responder a essa pergunta sem

    restaurar o prprio logocentrismo que Derrida procura abalar. Ao contrrio, a

    desconstruo trabalha pelas margens, com a necessria contaminao do fora no

    dentro, examinando justamente os limites entre as oposies e os limites da pergunta o

    que ; os limites que nos trazem de volta minha reflexo sobre/em A verdade em

    pintura.

    18 Cf. Goldschmit 2003, p. 186 187.

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    A hospitalidade

    O tema do limite e da invaso do inimigo em nossa casa j era inspecionado por

    Derrida por meio do quase-conceito de hospitalidade, em que o filsofo desenha os

    contornos de uma geografia impossvel, ilcita da proximidade. Como esclarece

    Anne Dufourmantelle, Hostis, em latim, significa hspede, mas tambm hostil,

    inimigo. O pensamento , para a autora, essencialmente, um potencial de domnio. Ele

    nunca deixa de encaminhar o desconhecido ao conhecido, de fatiar o mistrio para faz-lo

    seu, para clare-lo. Nome-lo

    19

    .Em francs, como bem conhecido, h um deslizamento entre hte/hspede e

    hte/hospedeiro, o termo em francs designa tanto aquele que recebe em casa o

    visitante quanto o prprio visitante. Na lngua portuguesa j houve esse deslizar entre

    hspede/hospedeiro, como pude verificar no Dicionrio Aurlio. No verbete

    hospedeiro, lemos: aquele que hospeda, o dono da hospedaria. E no verbete

    hspede: aquele que se aloja temporariamente na casa alheia. E, em seguida, entre

    parnteses, podemos ler um significa desusado do termo hspede: hospedeiro20.

    O hspede j est dentro da casa do hospedeiro e, por mais essa razo, se torna

    um perigoso estranho, um hostis. La Vrit en peinture, o original, esse hspede(iro)

    19 Dufourmantelle, A. (2003). Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade(traduo de Anne Dufourmantelle invite Jacques Derrida rpondre De Lhospitalit, por AntonioRomane, reviso tcnica de Paulo Ottoni). So Paulo: Escuta. Nota 2, p. 6 e p. 30.20

    No Novo Diccionario da lngua portugueza, datado de 1870 (Faria, E., 3 edio, Lisboa: Escritrio deFrancisco Arthur da Silva), podemos ler, entre outras significaes: Hspeda, sf: estalajadeira; mulher aquem se d hospedagem; (ant) esposa, mulher. Hspede, sm (segue um comentrio: em egyp,petsignificasenhor, dono e eiou heisignifica casa). O termo latino (hospes, tis) significa: o que agasalhado, o queagasalha o passageiro, ou pessoa que vem de fora e no da famlia; dono de estalagem. No GrandeDiccionario Portuguez ou Thesouro da lngua portugueza, de frei Domingos Vieira, de 1873 (Porto:Editores: Ernesto Chardon e Bartholomeu H. de Moraes), encontramos: Hospeda, sf. Mulher que dpousada nas estalagens, ou quartos de aluguer mulher a quem se d hospedagem. Hospede: pessoaagasalhada em hospedaria, ou em casa particular dono de estalagem estalajadeiro.

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    recebido com todo seu estranhamento pela lngua portuguesa, entra pela nossa fronteira

    lingstica e , ao mesmo tempo, invadido porA verdade em pintura.

    Para Derrida, preciso pensar a hospitalidade (e a traduo, podemos

    acrescentar), o encontro com o absolutamente outro, no pelo vis da reconciliao ou da

    tolerncia uma relao de fora, unilateral, de cima para baixo, que impe condies e

    exige a adaptao do outro a minha tradio mas como uma experincia-limite: tentar

    dizer aquilo que chega at ns e que no dominamos. A traduo, nos seus pontos limites,

    hospeda o original, o estrangeiro, e experimenta suas aporias, suas exigncias, permite

    que a potncia do limite atue nesse confronto com o outro, anunciando e provocando (porum processo de autoimunidade, como veremos mais tarde) a abertura para a alteridade

    incontornvel do estrangeiro. Alguma coisa dentro do nosso prprio territrio

    lingustico alterado ou precisa se modificar para dar a ver a necessidade e a

    possibilidade de se ir ao encontro dee entrar em relao como outro pela traduo.

    Em Altrits21, o filsofo refora que preciso partir desse paradoxo: a relao

    com o outro uma relao louca que compreende o outro em certa relao de

    incompreenso, uma relao sem relao. Continua Derrida:

    Para entrar em relao com o outro, preciso que a interruposeja possvel; preciso que a relao seja uma relao deinterrupo. E a interrupo, aqui, no interrompe a relao com ooutro, ela abre a relao ao outro. [...] Se fizermos dela umarelao do tipo hegeliana, de apaziguamento, reconciliao,totalizao, etc., coloca-se a questo do apagamento do outro namediao, pela mediao. (Derrida 1986, pp. 81 - 82)

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    No limiar que nos separa do outro, observamos a novidade do territrio

    desconhecido, acolhemos o estrangeiro o original sem deixar de aceitar a

    impossibilidade da hospitalidade incondicional que permanece, apesar de impossvel, a

    nica digna desse nome. Dialogando com Helne Cixous22, o filsofo argelino aproxima

    a hospitalidade do perdo: perdoar s possvel quando se perdoa o imperdovel. E isso

    vale tambm para o dom, para a hospitalidade. Continua Derrida: eu poderia

    multiplicar os conceitos que obedecem a essa mesma lgica, em que a nica possibilidade

    da coisa, a experincia da impossibilidade.

    Em discurso agradecendo o prmio Adorno

    23

    , recebido em setembro 2001,Derrida examina a possibilidade do impossvel:

    A possibilidade do impossvel no pode ser seno sonhada, mas opensamento, um pensamento absolutamente diferente da relaoentre possvel e impossvel, esse outro pensamento pelo qual, hmuito tempo, eu respiro e s vezes perco o flego, em meus cursosou em meus percursos, h, talvez, mais afinidade que a da prpriafilosofia com o sonho. Seria preciso, mesmo ao acordar, continuara velar pelo sonho. Dessa possibilidade do impossvel, e do queseria necessrio fazer para tentar pens-la de outra forma, depensar o pensamento de outra forma [...], tento, da minha maneira,tirar algumas consequncias ticas, jurdicas e polticas, tratando-se seja do tempo, do dom, da hospitalidade, do perdo, da deciso ou da democracia por vir. (Derrida 2002a, p. 20).

    E o ato tradutrio que reproduz e produz o texto que, ao mesmo tempo, trai

    d a ver essa lgica com muita propriedade: o aventurar-se ao encontro do original

    21Derrida, J. e Labarrire, P.-J. (1986a). Altrits, Paris: Osris.

    22Magazine Littraire (2004), n 430, Abril, entrevista apresentada por Aliette Armel, 'Du mot la vie: undialogue entre Jacques Derrida et Hlne Cixous', cf. p. 28.23Derrida, J. (2002c), Fichus. Paris: Galile.

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    possvel na sua impossibilidade, e essa experincia-limite revela a importncia e a

    potncia dos estudos da traduo para a reflexo desconstrutivista.

    essa, portanto, a tese deste trabalho: articular a experincia da traduo sua

    possibilidade com a experincia da potncia do limite sua impossibilidade quando,

    por um processo de autoimunidade, abre-se o texto original para o estrangeiro.

    Considerar a experincia do ato tradutrio como uma espcie de paradigma e reconhecer,

    na singularidade da traduo de La Vrit en peinture algumas das questes e

    pressupostos que percorrem o pensamento ocidental, tanto no campo lingustico como no

    da arte: a oposio fora/dentro; a possibilidade/impossibilidade do encontro com o outro;o mito da origem e a restituio como apropriao.

    Onde estabelecer esta tese? Na moldura, em um entorno obra de Derrida, o que

    cria duas possibilidades (como os dois sapatos de Van Gogh e o par de tradutoras de

    Heidegger): considerar, por um lado, a tesecomo parergon da traduo de La Vrit en

    peinture livro que serve de ponto de partida e referncia ao longo do trabalho , algo

    que acompanha com comentrios um texto aberto a mltiplas interpretaes; e, por outro

    lado, considerar a traduocomoparergon, um texto destacado da tese, que pode ser lido

    por si e no somente como complemento de um trabalho acadmico.

    Podemos considerar tambm que toda traduo j contm uma tese, entendida

    como um levantamento de questes e decises tericas sobre traduo; e toda tese pode

    ser vista como uma traduo, uma interpretao regrada de outros autores, algo que vem

    de fora, uma prtese, afirma Derrida, o que se d a ler, se d a ler por citaes24.

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    A autoimunidade

    Em Espectros de Marx25, Derrida j introduzia o quase-conceito de

    autoimunidade:

    O eu vivo autoimune [...] Para proteger sua vida, para seconstituir como nico eu vivo, para se referir, como o mesmo, ele necessariamente levado a acolher o outro no interior [...], ele deve,portanto, dirigir ao mesmo tempo por ele mesmo e contra elemesmo as defesas imunitrias aparentemente destinadas ao no-eu,

    ao inimigo, ao oponente, ao adversrio. (Derrida 1994, p. 188)

    O tema aprofundado em Voyous26, na entrevista Auto-imunidade: suicdios

    reais e simblicos27 e em Foi et Savoir28, quando o filsofo francs examina questes

    polticas, teolgicas e filosficas com nfase nos conceitos de soberania, identidade,

    democracia, em como os herdamos e como os transformamos. Para considerar a fora

    retrica da palavra autoimunidade e examinar esse movimento entre o fora e o

    dentro de fronteiras (especialmente entre textos, entre original e traduo) acompanho a

    palestra apresentada durante o Encontro Internacional de Araraquara, em 2005, pelo

    24Derrida, J. (1981). Glas. Paris: Denol/Gonthier, p. 235.25Derrida, J. (1994). Espectros de Marx: o estado da dvida, o trabalho do luto e a nova internacional t(Spectres de Marx: L'tat de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationaletraduzido por AnnaMaria Skinner). Rio de Janeiro: Relume-Dumar.26Derrida, J. (2003a). Voyous. Paris: Galile.27Borradori, G (2004). Auto-imunidade: suicdios reais e simblicos, em Filosofia em tempo de terror -dilogos com Jrgen Habermas e Jacques Derrida(traduo de Philosophy in a time of terrorpor RobertoMuggiati). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.28Derrida, J. (2000). Foi et Savoir- suivi deLe Sicle et le Pardon. Paris: Seuil.

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    tradutor de Voyous para o ingls, Michael Naas, e sua publicao posterior em

    portugus29.

    Derrida recorre a noes que se encontram forados limites da filosofia para se

    aproximar desse quase-conceito de autoimunidade. Em longa nota de rodap, Derrida

    tenta explicar o uso desse termo retirado da biologia e articulado, por ele, religio,

    cincia, democracia: nosso corpo possui um sistema imunolgico que evita que algo de

    fora que o estranho ou o estrangeiro (um vrus ou bactria, por exemplo) , uma vez

    dentro dos limites do corpo, o destrua. No entanto, em algumas ocasies, entra em

    funcionamento um outro sistema, autoimunolgico, que ataca ou enfraquece esse mesmosistema imunolgico, permitindo que o de fora invada os limites do dentro. Mas essa

    invaso no sempre ou no somente uma ameaa, um perigo. tambm o que

    permite, por exemplo, a aceitao de um enxerto ou de um rgo retirado de outra pessoa.

    Permite que algo de fora salve o paciente. Possibilita, portanto, uma sobrevida.

    Sobrevida do corpo e, utilizando o conceito de autoimunidade de forma mais ampla ou

    como uma "metfora biolgica", sobrevida da democracia, da cincia (a mudana de

    paradigma) ou do texto original (o comentrio, a interpretao, a traduo). O filsofo

    continua:

    Quanto ao processo da autoimunizao, que nos interessaparticularmente aqui, ele consiste em organismos vivos, como bemse sabe, e em proteger a si mesmo contra sua autoproteo,destruindo seus prprios sistemas imunolgicos. medida que ofenmeno desses anticorpos estende-se para uma zona de patologiamais ampla, quando recorremos cada vez mais s virtudes positivasde imunodepressivos destinados a limitar os mecanismos derejeio e a facilitar a tolerncia a certos transplantes de rgo,

    29Naas, M. (2006). 'Uma nao... indivisvel: Jacques Derrida e a soberania que no ousa dizer sue nome' (traduode Alcides Cardoso dos Santos) em Cardoso dos Santos, A; Duro, F. e Villa da Silva. M. das Graas (orgs).

    Desconstrues e contextos nacionais. Rio de Janeiro: 7 letras.

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    sentimo-nos autorizados a falar de uma espcie de lgica geral deautoimunizao. (Derrida 2000, p. 67, nota 23)

    No foi esta a primeira incurso de Derrida no territrio da biologia. Na entrevista

    a Peter Brunette e David Wills, Derrida afirma: tudo que fiz foi dominado pelo

    pensamento do vrus [...] o vrus podendo ser muitas coisas30. Mesmo em termos

    biolgicos, o vrus desarranja a comunicao e , alm disso, uma coisa que no est

    nem viva nem morta; o vrus no um micrbio. Continua Derrida:

    Se voc segue essas duas trilhas, a de um parasita que rompe a

    destinao, de um ponto de vista de comunicao [...] e que, poroutro lado, no est nem morto nem vivo, voc tem a matriz detudo que fiz desde que comecei a escrever. [...]. No texto quecitei31, fao aluso possvel interseco entre a AIDS e o vrus docomputador como duas foras capazes de dilacerar a destinao.(Brunette e Wills 1994, p. 12)

    O vrus dilacera a destinao, no sentido de no ser mais possvel seguir suas

    trajetrias, e isso em todos os campos: exrcito, polcia, comrcio, questes estratgicas.

    Segundo Naas, em Voyous, Derrida inscreve a autoimunidade em uma srie de

    outros termos (indecidibilidade, aporia, double bind, diffrance), no para construir uma

    equivalncia, mas para deix-la mais compreensvel, conservando ainda sua fora de

    ruptura. O que esses termos tm em comum uma antinomia interno/externo, uma

    indecidibilidade. A autoimunidade origina-se no simplesmente do fato de que no

    podemos nunca saber se algo ser ou no benfico, se algo se mostrar como ameaa ou

    oportunidade, mas do fato de que a oportunidade uma ameaa e a ameaa uma

    30 Brunette, P., e Wills, D. (1994). 'The Spatial Arts: an interview with Jacques Derrida', emDesconstruction and the Visual Arts. Art, Media, Architecture. Cambridge University Press. p. 12.31Derrida refere-se ao texto 'Rhtorique de la drogue' ((1992), em Points de suspension: entretiens. Paris:Galile. P. 241 267.

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    oportunidade. Para Derrida, preciso continuar sempre a negociar entre essas antinomias,

    a inventar novas formas de calcular ou raciocinar entre elas32. Naas lembra tambm que

    autoimunidade no oposto imunidade. Ela secretada pela imunidade. a fora

    autodestrutiva produzida pelo prprio gesto imunizador, uma fora fraca que inibe o

    poder de soberania.

    Ao tema da autoimunidade, o filsofo argelino concede um lugar de honra.

    Derrida considerou legtimo estender os limites desse conceito para alm do conhecido

    processo biolgico: a desconstruo (a autoimunidade) opera em ns o que acontece

    , nos discursos, nos corpos, nas instituies e nos Estados.Segundo Derrida, as aporias inerentes aos conceitos de soberania, autoidentidade

    e democracia permanecem irredutveis devido a uma autoimunidade constitutiva,

    graas a uma lgica ilgica[...] que ao mesmo tempo os ameaa e permite que sejam

    perpetuamente repensados e reinscritos [...], um processo que est inevitvel e

    irredutivelmente em andamento em quase todo lugar33, incluindo, com certeza

    acrescento eu , o texto original e o texto traduzido, j que, em pontos limites, a traduo

    se volta contra si mesma, contra sua prpria possibilidade.

    Essa "autoagresso" se d a ver com muita clareza nas notas de rodap da minha

    traduo. Em uma segunda leitura deA verdade em pinturanotei uma quantidade incrvel

    de notas de rodap sobre a traduo de "entendre". Da primeira pgina pgina 12, contei

    cinco N.d.t.: "No original, entendre, que significa, em francs, tanto entender como

    escutar" 34. A traduo tenta se proteger de sua prpria impossibilidade, tenta aparar os

    32Cf. Naas, opus cit., p. 28.33Cf. Naas, opus cit, p. 16.34O Atilfcoloca o verbo 'entendre' no 'domnio da audio' mas, ao citar seu uso por Guy de Maupassant('Julie, dit-il, je ne te permets point de parler ainsi de ta matresse. Tu entends, nest-ce-pas, ne loublie plus

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    "golpes" que vm de fora. Essas notas foram suprimidas, aceitando que o deslizar entre

    "entender" e "escutar" em francs no pode ser transportado para o portugus em todas

    suas nuances. Esse verbo, num texto derridiano, ressalta a importncia da ideia de

    presena plena na tradio filosfica, da compreenso ligada fala, tema recorrente na

    desconstruo. No "Glossrio da traduo", includo no final de Posies35, o tradutor

    Tomaz Tadeu da Silva privilegia a traduo de "entendre" por "ouvir" e comenta em

    nota: "Mas tambm, ambiguamente, "entender", em expresses como 'sentendre parler'".

    Optei, finalmente, por traduzir, sempre que possvel, por "entender", na esperana

    (v?) de que os leitores possam distanciar-se desse "querer dizer" da tradutora e fazeruma leitura no limite entre "compreender" e "escutar". E deixei somente uma nota,

    comentando que essa deciso foi reforada por dois dicionrios de lngua portuguesa que

    explicitam a ambiguidade do verbo "entender", acrescentando que tambm pode ser

    entendido no sentido de "ouvir". Os dois citam exemplos semelhantes: "a balbrdia no

    me permitiu entender o conferencista" (Aurlio); "o barulho impediu que entendssemos

    o conferencista" (Houaiss).

    As inmeras notas de rodap sobre "entendre" e a procura, neste texto, pelo aval

    de dicionrios, reforam tambm, e sobretudo, o desejo da tradutora de dar a ver seu

    angustiante e necessrio processo de deciso; processo que no pode deixar de

    testemunhar e, ao mesmo tempo, velar a riqueza do texto original. A retirada de todas

    essas notas deflagra tanto o reconhecimento do "suicdio" da traduo por parte da

    tradutora, como uma ingnua "ocultao de provas"... Traduzir por "entender" no um

    lavenir'), o Atilf comenta: "Nesse emprego, ideia de percepo da expresso acrescenta-se a de suacompreenso". E continua: 'Poderamos, s vezes, substituir a frmula pelo sinnimo familiar 'compris'?'.35 Derrida, J. (2001a). Posies (traduo de Positions por Tomaz Tadeu da Silva). Belo Horizonte:Autntica.

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    erro, mas, certamente, uma deciso redutora, em um texto derridiano. A supresso do

    excesso de notas (do excesso de zelo?) evita sobrecarregar o texto final em portugus

    com explicaes cuja pretenso (intil) seria conduzir a interpretao do leitor. Evita

    tambm acumular, indiretamente, desculpas pela promessa no cumprida de entregar ao

    leitor de A verdade em pintura, a verdade de La Vrit en peinture, a verdade em

    traduo.

    Percebi, tambm em uma segunda leitura, quando se l como outro, que "atenuei",

    de alguma forma, apressadamente, as afirmaes pontuais de Derrida, utilizando o

    imperfeito, em vez do presente, do futuro ou do futuro anterior. Angstia da tradutoradividida entre audcia e modstia. Por um lado, a coragem em fazer falar Derrida em

    portugus; por outro, a (falsa) modstia, a dificuldade em tomar a palavra de forma

    assertiva, tentando se esconder (condicionalmente) por trs dos tempos verbais

    derridianos:

    Dans la langue francaise [...] cela peut vouloir dire et sentendre[...] (p. 9)Na lngua francesa [...] poderia (pode) querer dizer e se entender[...]

    Tout ce que Kant aura entrevue sous le nom deparergon[...]Tudo o que Kant teria [ter] entrevisto sob o nome deparergon[...]

    Mais ce dire-l pourra bien tre aussi um faire [...]Mas esse dizer poderia [poder] bem ser um fazer [...]

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    Para Evando Nascimento, os tempos verbais privilegiados por Derrida para

    estabelecer a temporalidade clssica "out of joint" so o imperfeito e o futuro anterior.

    Continua Nascimento:

    A preferncia pelo imperfeito evidente, pois ele desconstri desdeseu interior a ideia de um tempo perfeito, como referncia a umpresente nico e absoluto. Quanto ao futuro anterior, a rasura talvezseja ainda mais contundente, na medida em que ele perturba algica que coloca o futuro como posterior ao passado e ao presente.Como imaginar um acontecimento se dando no cruzamento de umfuturo que antecede as duas outras modalidades temporais? [...] Otempo desconstrudo sempre intempestivo em relao a si

    prprio, espaado, um verdadeiro contratempo (Nascimento 1999,p. 217)

    Marc Goldschmit ressalta a questo do futuro anterior na leitura de Rousseau por

    Derrida: ao pretender separar a presena da representao, a origem pura absolutamente

    separada do suplemento, Rousseau deixaria transparecer que no possvel remontar do

    suplemento origem, pois este est sempre e desde sempre contaminando a origem. A

    ideia de suplemento em Rousseau estaria baseada na "louca lgica temporal" da

    precedncia da origem em relao ao suplemento. Continua Goldschmit:

    [...] precedncia que Derrida deixa entrever por uma estranhamarca de gramtica: 'Lorigine aura(it) d tre pure'. A pureza daorigem , com efeito, conjugada por Rousseau no futuro anterior('aura d'); o futuro de um passado e de uma anterioridade, ,portanto, um futuro passado. H, nesse sentido, um atraso dapureza em relao origem e a impureza torna-se ento a origemda pureza, se bem que a pureza desejada por Rousseau no podeser, ento, seno retrospectiva. O futuro anterior [...] significa que a

    pureza da origem, na origem, ter sido a condio incondicional de

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    tudo e de todo suplemento, mas ela se torna condicional econdicionada pelo suplemento e pelo artifcio da escritura. Naorigem da origem h o suplemento do suplemento, a origem sendonada mais que um suplemento de suplemento. (Goldschmit 2003,p. 53)

    Essa temporalidade "out of joint", como pensada por Derrida, articula-se com a

    questo da antecedncia/precedncia do prefcio, do post-scriptum e, o que interessa

    nesta tese, da traduo. Da traduo como condio de possibilidade do original,

    condio a priori da leitura de um texto, o fantasma de um futuro do passado que visita o

    original.

    A metfora poltico-biolgica de Derrida reala que a questo da incluso do que

    est fora no dentro se impe nesse momento em que as relaes entre pases esto

    sendo abaladas por migraes, em que as guerras no se fazem mais nos limites bem

    demarcados politicamente, nem com avies inimigos que ultrapassam essas fronteiras,

    mas dentro do espao do prprio pas, com seus prprios recursos, ou em espaos virtuais

    que no esto nem fora nem dentro de nada.

    Neste trabalho, a metfora biolgica da autoimunidade, utilizada por Derrida em

    seus ltimos textos, o ponto de partida para comentar a traduo de La vrit en

    peinture, procurando articular os quatros captulos do livro com quatro momentos do ato

    tradutrio: 1. a fronteira entre original e traduo; 2. o ponto limite; 3. o paradigma e seus

    desdobramento e 4. a restituio do texto a quem de direito, ao autor. No se trata de

    apagar as diferenas entre original e traduo, mas de problematizar essa diferenciao,

    ou, para ficar dentro da metfora poltica/biolgica de Derrida, de examinar suas

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    fronteiras.

    Digamos que, para permanecer na moldura, no limite, escrevo aqui, quatro vezes

    como faz Derrida na sua "advertncia" ao leitor, logo no incio deLa Vrit en peinture

    em redor de um ato tradutrio.

    Em redor, e no diretamente sobre a traduo de La Vrit en peinturepara no

    transformar a minha tese em uma traduo comentada. Depois de estabelecer, com a

    frase anterior, os limites da minha tese no uma traduo comentada , tento

    ultrapassar esses limites, comentando as notas de rodap que inclu ou exclui em Averdade em pintura, considerando que essas notas so pertinentes em uma tese que fala

    de fronteiras, de processo autoimunolgico e de parergon: as notas do tradutor estariam

    forado texto de chegada e da tese, mas participariam, de forma instigante, no interior

    desses dois textos. esse o desafio: dos limites, eu passo. No comentar diretamente a

    traduo, mas coment-la de alguma maneira, pelas suas bordas, para constitu-la, insisto

    mais uma vez, a partir da lgica parergonal.

    No captulo I, para examinar a questo do parergon: segundo Derrida, a histria

    da arte sempre procurou emoldurar, colocar limites explcitos entre arte e no-arte. Isso

    tambm acontece na traduo que trabalha, necessariamente, com o que est dentro do

    original, deixando fora o que est fora. Porm, como afirma Kant, o parergon, embora

    fora dos limites do ergon, participa da obra. Este trabalho articula a metfora da

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    autoimunidade utilizada por Derrida para examinar questes polticas, teolgicas e

    filosficas com o ato tradutrio, com a finalidade de examinar os complexos limites

    entre original e traduo.

    O captulo 2, para examinar a impossibilidade de traduzir o ttulo do ensaio +R:

    as homofonias em Derrida como um importante limite da traduo para o portugus.

    Mas, justamente, a traduo pode ser mais instigante e suas questes mais abrangentes

    quando examinada nos seus limites, na borda, na moldura, nos seus pontos crticos. A

    traduo ser vista, nesse captulo, como a experincia da fora construtora da aporia, do

    limite. O que acontece quando se chega na beira de um abismo, da impossibilidade detraduzir? Nesse limite, algo acontece, as palavras podem dizer algo diferente do que

    diziam no original, do a ver novas configuraes semnticas. Esse captulo focaliza a

    criao de neologismos como estratgia necessria no momento em que o tradutor se

    aproxima de uma fronteira, quando percebe a possibilidade/impossibilidade da traduo.

    No captulo 3, para instituir o original como o modelo a ser seguido, o paradigma

    oferecido em toda sua importncia de ato criador, originrio, e que, no entanto, se

    problematiza durante o ato tradutrio: morre e renasce em suas tradues, em sua

    descendncia.

    No captulo 4, para examinar a questo do par e o desejo de restituir a verdade

    do original quando se trata de traduo, a partir da afirmao de Derrida: toda

    restituio constitui uma apropriao. O debate em torno do quadro de Van Gogh ajuda

    a compreender e afastar os fantasmas que ainda rondam o ato tradutrio: o culto

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    origem, a ladainha das intenes, a mstica do sentido nico.

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    CAPTULO I

    A TRADUO DE PARERGON: A EXPERINCIA DO LIMITE

    O ser no limite: estas palavras no formamainda uma proposio, menos ainda umdiscurso. Mas h a, se jogarmos com elas, comque engendrar quase todas as frases deste livro

    J. Derrida, "Tmpano,Margens da filosofia.

    O pensamento filosfico de Immanuel Kant tradicionalmente dividido em duas

    fases: apr-crtica(1755-1780) e a crtica(de 1781 em diante) que inclui a publicao da

    Crtica da razo pura em que o filsofo examina as condies de possibilidade e os

    limites do emprego da razo a partir de princpios a priori e da Crtica da razo

    prtica, que no contm, a priori, princpios constitutivos e na qual o filsofo levanta

    questes sobre os fundamentos da lei moral. Essa segunda fase do sistema filosfico

    kantiano apoia-se, portanto, em uma oposio bem delimitada: razo pura/razo prtica.

    O problema para Kant passa a ser a criao de uma ponte sobre o abismo que separa

    esses dois campos, um termo mdio entre o entendimento e a razo, cujos princpios,

    em caso de necessidade, poderiam ser ajustados a cada parte de ambas ( filosofia

    terica ou prtica) e que resolveria, dessa forma, a dicotomia natureza/liberdade, o que

    comporta grandes dificuldades. A Crtica da faculdade do juzo36 que analisa os

    ajuizamentos que se chamam estticos e concernem ao belo e ao sublime da natureza ou

    36 Kant, I. (1995). Crtica da faculdade do juzo (traduo de Kritik der Urteilskraft und Schriften porValrio Rohden e Antnio Marques). Rio de Janeiro: Forense Universitria, pp. 12-13.

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    da arte37 parece fazer isso. Essa terceira Crtica ultrapassa as fronteiras da esttica

    incluindo a Crtica da Faculdade de Juzo Teleolgicaque analisa o fim ou o propsito

    que daria sentido natureza. Na Crtica da faculdade do juzo, Kant estabelece uma rede

    de outras oposies necessrias para o embasamento de seu pensamento:

    sensvel/inteligvel, sujeito/objeto, essencial/acidental, terico/prtico, natureza/costume,

    e, o que interessa principalmente neste captulo, a dicotomia dentro/fora. preciso

    determinar os limites entre o que intrnseco ao objeto esttico e o que extrnseco,

    contingente, o que deve ser afastado para que possamos afirmar com propriedade isto

    belo. O importante do mtodo crtico de Kant no estender o nosso conhecimento domundo, mas aprofundar nosso conhecimento sobre o homem. Saber o que o homem pode

    saber e que no pode: um pensamento sobre limites.

    Kant por Derrida

    Para Jacques Derrida, Kant utiliza o julgamento esttico para ocultar a

    impossibilidade de resolver essas oposies. Os textos de Derrida so atpicos cruzam

    a literatura, a lingustica, a religio e atravessam, afirma Sarah Kofman 38, os livros da

    tradio filosfica ocidental que Derrida denomina incontornveis, como os de

    Heidegger, de Nietzsche, de Kant, de Hegel, de Freud. Autores, segundo as palavras de

    Derrida, nos rastros dos quais eu escrevo, aqueles livros em cujas margens e

    entrelinhas eu desenho e decifro um texto que , ao mesmo tempo, muito semelhante e

    37Kant 1995, prlogo, V e VI, p. 12 e 13.38Kofman, S. (1984).Lecturesde Derrida. Paris: Galile.

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    completamente outro [...]"39. A leitura derridiana no tem como objetivo, como sabemos,

    louvar ou refutar o texto em questo, mas sim examin-lo rigorosa e minuciosamente,

    procurando os pontos de instabilidade nos quais opera o que Derrida denomina

    indecidvel, tendo sempre o cuidado de evitar que esse exame se transforme em um

    conjunto disponvel de procedimentos regulamentados, de prticas metdicas, de

    caminhos acessveis.

    A reflexo desconstrutivista sobre o pensamento esttico kantiano inicia com uma

    leitura atenta, cuidadosa e detalhista da terceira Crtica, chamando a ateno para o lugar

    em que o texto kantiano se abre para novas leituras, novas interpretaes. o pontocego, o lugar da aporia que excede as intenes do autor, o ponto-limite em que a

    Crtica da faculdade do juzo se revela instvel, deslizante, sem fugir, todavia, de uma

    rigorosa lgica textual. Um lugar aportico que, paradoxalmente, abre caminho para

    novas configuraes tericas. Em La vrit en peinture, Derrida comenta a tradicional

    necessidade de estabelecer limites bem demarcados entre fora e o dentro da obra de

    arte:

    Ora, preciso saber do que falamos, o que concerneintrinsecamente ao valor de beleza e o que permanece exterior aseu sentido imanente de beleza. Esse requerimento permanente distinguir entre o sentido interno ou prprio e a circunstncia doobjeto do qual se fala organiza todos os discursos filosficossobre a arte, o sentido da arte e o sentido, simplesmente, de Platoa Hegel, Husserl e Heidegger. Pressupe um discurso sobre olimite entre o dentro e o fora do objeto de arte, aqui, um discurso

    sobre a moldura. Onde encontr-lo? (Derrida 1978, p. 53)

    E Derrida encontra esse ponto limite da Crtica da faculdade do juzo, no 14,

    39 Derrida, J. (2001). Posies (traduo de Positions, por Tomaz Tadeu da Silva). Belo Horizonte:Autntica, p. 10.

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    para o mundo contingente, unifica e divide a obra. um indecidvel, ao lado de tantos

    outros destacados por Derrida nos textos tradicionais da filosofia: pharmakon, hymen,

    suplemento, espectro, zumbi, vrus e outros, termos que escapam das oposies bem

    emolduradas pela metafsica e que tiveram de permanecer fora dos limites do

    pensamento ocidental. David Krell40, em epgrafe a Broken Frames, cita

    Economimesis41, texto de Derrida que, comoLa vrit en peinture,focaliza a esttica:

    No estamos prximos de dispor de critrios rigorosos para decidirsobre uma especificidade filosfica, sobre limites emoldurando umcorpus ou o prprio de um sistema. O projeto de tal delimitao j

    pertence, ele mesmo, a um conjunto que ainda deve ser pensado. Eo conceito de pertencimento (a um conjunto) deixa-se trabalhar, atmesmo deslocar, pela estrutura doparergon. (Derrida 1975, p. 57).

    Para reforar o double bind que coloca a moldura dentro e fora da obra,

    podemos considerar que, retirando a moldura da Mona Lisa ela continua sendo a Mona

    Lisa "de sempre". Atualmente, essa questo parece menos importante, o impressionismo

    e a abstrao na pintura trouxeram no somente o fim da representao realista na

    natureza, mas tambm o fim da arte como algo separado de seu entorno. A moldura

    cessou de ser uma fronteira entre a obra e o mundo e se torna um indicador do novo

    status da arte no sculo XX.

    Mas j foi uma questo polmica. Os impressionistas, de um modo geral, foram

    os primeiros a teorizar sobre a moldura, questionando o dourado brilhante e trabalhado

    dos enquadramentos da poca, substituindo-os por molduras brancas ou coloridas,

    40Krell, D. (2000).The purest of bastards, works on mourning, art and affirmation in thought of JacquesDerrida. The Pennsiylvania State University Press.41Derrida, J. (1975). 'Economimesis', em Agacinscki, et all, Mimesis des Articulations. La philosophie eneffet. Paris: Aubier-Flammarion.

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    especialmente depois de 187742. A escolha da moldura branca pelos pintores

    independentes foi razo suficiente para excluir esses impressionistas dos sales oficiais.

    Indagado se as pinturas, por serem objetos de luxo, combinariam melhor com o dourado

    das molduras, Degas respondeu: As suas podem ser, senhor [objetos de luxo]. Mas as

    nossas so objetos de absoluta necessidade43.

    Van Gogh, em carta para seu irmo Tho44, recomenda como deve ser a moldura

    e a parede (outra moldura) onde o quadro dos Comedores de batata seria pendurado, o

    que ilustra a importncia da moldura e do entorno para o pintor:

    [...] um quadro que ficaria bem cercado de ouro, tenho certeza.Ficaria igualmente bem numa parede coberta por um papel quetivesse o tom profundo do trigo maduro. Caso ele no sejadestacado do resto desta maneira, ele simplesmente nem deve servisto. [...] Pense nisto, por favor, se quiser v-lo como ele deve servisto. Esta proximidade com um tom dourado, ao mesmo tempo,ilumina certas manchas em lugares que voc no imaginaria, esuprime o aspecto marmreo que ele teria caso fosse colocado, porinfelicidade, sobre um fundo bao ou preto. (Van Gogh 1986, pp99 100)

    George Seurat, em particular, na opinio de Lebensztejn, um exemplo pertinente

    nessa questo. Como cada rea de cor influencia outras reas adjacentes, a tonalidade do

    enquadramento deveria ser calculada para no interferir de forma prejudicial no quadro.

    O artista chegou mesmo a pintar uma barra entre a tela e a moldura para amenizar a

    participao do enquadramento nas cores. Com isso, Seurat tornou os limites de sua

    42 Cf Lebensztejn, J.-C., 'Starting out from the frame (vignettes)' em Brunette, P. e Wills, D. (1994).Deconstruction and the visual arts: art, media, architecture. Cambridge University Press, p. 128 esequncia.43Citado por Lebensztejn,opus cit., p. 130.44Van Gogh, V. (1986). Cartas a Tho (traduo de Lettres de Vincent Van Gogh son frre ThoporPierre Ruprecht), Porto Alegre: L&PM.

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    obra indeterminados. Onde agora se podem colocar esses limites? Antes ou depois da

    moldura? Entre a borda pintada na tela ou a moldura pintada?45. Lebensztejn afirma:

    Interferir com a moldura significa interferir com a Arte e com ostatus que nossa cultura ofereceu Arte. Era lgico que, no inciodo sculo 20, os artistas das vanguardas, ocupados em subverter oprprio aspecto, definio e essncia da pintura, atacassem seuslimites. (Lebensztejn 1994, p. 130)

    Mas no podemos deduzir que a moldura se tornou absolutamente fora da obra

    de arte, embora essa questo numa poca em que as instalaes artsticas dominam as

    exposies e em que as autoridades reservam espaos para o grafittinas ruas das cidades tenha perdido sua importncia e premncia. Talvez a moldura (frame) tenha sido

    emoldurada (framed), no dizer pitoresco de Lebensztejn46. E podemos tambm ampliar a

    desconstruo da moldura por Kant e Derrida acrescendo que os muros dos museus, os

    catlogos e os discursos dos crticos podem ser vistos como enquadramentos ou parerga

    para a arte contempornea, algo que no est nem dentro nem fora do trabalho de um

    artista.

    A questo do limite em Derrida

    O que sugere o termo limite no ttulo deste trabalho, em posio de destaque,

    acima da obra? Umparergonfora/dentro da obra?

    O limite marca um espao em volta de um territrio geopoltico, de uma obra de

    arte, de um texto e determina o lugar onde uma coisa termina e a outra comea, "como na

    45Lebensztejn opus cit., p. 129.46Lembrando que, em ingls, 'to frame' significa tambm 'armar uma cilada, uma armadilha, incriminaralgum'.

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    geografia"; nas palavras de Giovanna Borradori47, "o trabalho filosfico de clarificar o

    significado de conceitos, categorias e valores, bem como campos tericos como a tica e

    a poltica, consiste em traar fronteiras ao redor deles48. Em nota, Borradori esclarece

    esse ponto:

    As fronteiras so mais centrais filosofia do que maioria dasoutras disciplinas, uma vez que traar fronteiras conceituais no exatamente o que a filosofia faz, mas aquilo do que ela trata. Asfronteiras da prpria filosofia tm sido a principal questofilosfica desde os gregos. Por 2.500 anos de histria, a filosofianunca parou de examinar e justificar suas fronteiras, traando-asrepetidas vezes e de diferentes maneiras. (Borradori 2004, p. 198,

    nota 11)

    A filosofia pensa seu outro, relaciona-se com o no-filosfico, com prticas e

    saberes outros, fazendo sempre ressoar sua prpria voz, emprestando ao outro suas

    categorias e conceitos. Empresta seu logos ao outro. Um filosofema tem seus limites, mas

    esses limites so porosos, o seu exterior no o surpreende, includo na economia de seu

    discurso; "um discurso que se chamou filosofia" reconheceu, concebeu, declinou o

    limite, de todas as formas e, "para melhor dispor dele", transgrediu-o49.

    Como entravar essa economia, pergunta Derrida, destinada a amortecer,

    abafar, interdizer as pancadas do exterior...? E acrescenta:

    Como interpretar mas a interpretao no pode mais ser aquiuma teoria ou uma prtica discursiva da filosofia to entranha esingular propriedade de um discurso que organiza a economia dasua representao, a lei do seu prprio tecido, de tal forma que o

    47Borradori, G. (2004). Filosofia em tempos de terror: dilogos com Jrgen Habermas e JacquesDerrida(traduo de Philosophy in a time of terror, dialogues with Jrgen Habermas and Jacques Derrida porRoberto Muggiati). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.48Borradori 2004, p. 154.49 Derrida, J. (1991a). Tmpano, em Margens da filosofia (traduo de Marges de la philosophie porJoaquim Torres Costa e Antonio Magalhes). Campinas: Papirus, p. 11.

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    seu exterior no seja o seu exterior, no o surpreenda nunca, que algica da sua heteronmia discorra ainda no subterrneo do seuautismo. (Derrida1991a, p. 17)

    E Derrida pergunta: Que forma pode ter este jogo de limite/passagem? eexplicita que no h nem uma resposta, nem uma resposta, mas transformao e

    deslocamento da questo do limite. E isso que pretende este trabalho, partindo da

    traduo de La vrit en peinture e seguindo Derrida: examinar, deslocar, lanar um

    outro olhar sobre a questo do limite, considerando o ato tradutrio, a partir deA verdade

    em pintura, um instrumento pertinente para esse exame.

    H um movimento recorrente no discurso filosfico no pensar por dicotomias,

    especialmente que Derrida aponta em vrias ocasies: depois de dividir um juzo em

    dois, de situar um dos termos como bom e o outro como mau, secundrio, marginal

    ou infiel, esse discurso acrescenta que existe o mau pode ser bom, o que atrai o

    mau para dentro das fronteiras do bom.

    Em Kant, temos a diviso entre ergon (a obra) e parergon (um acrscimo

    externo). Este ltimo moldura, vestes das esttuas, colunata , por sua vez,

    subdividido: h o parergon de ostentao, de adorno, como a moldura dourada

    (adequado somente para recomendar, pelo seu atrativo, o quadro ao aplauso, ento ele se

    chama adorno[...] e rompe com a autntica beleza) e o parergonque participa da obra,

    e que aumenta, pela sua forma, a complacncia do gosto50.

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    Giovanna Borradori destaca mais uma questo de limite em Derrida: limite entre

    razo e religio51. O subttulo de Foi et Savoir "As duas fontes da 'religio' nos limites

    da simples razo", que se apropria do ttulo de uma obra de Kant, A religio dentro dos

    limites estritos da razo. Segundo Borradori, o projeto de Kant para conter a religio

    "dentro" dos limites da razo abalada por Derrida, que a coloca, no "dentro", mas

    "nos" limites da razo, o que "indica a interdependncia do que includo e do que

    excludo por esse limite". Afirma Borradori:

    Explorar a interveno de Derrida sobre o texto de Kant no smostrar o alcance do envolvimento do primeiro com o legado doIluminismo, mas tambm ira desfazer qualquer suspeita de que sualeitura do terrorismo global como uma crise autoimune possa estarfirmando uma postura niilista (Borradori, 2004, p. 168).

    Derrida complica, dobra o que est fora para dentro dos limites, revelando que as

    fronteiras (toda forma de fronteira, de limite) atravessam o interior que elas,

    supostamente, delimitam e separam 52.

    Em Apories53, Derrida liga a questo da fronteira do problema e da aporia.

    Primeiramente, o problema da traduo de "problema": o termo remete a dois sentidos:

    tantoprojeoquantoproteo. Tanto o que jogado diante de ns como uma tarefa a

    ser feita, uma questo a ser resolvida , quanto o que nos serve de proteo, algo que

    50Kant opus cit., 14.51Borradori, G. (2004). Filosofia em tempos de terror: dilogos com Jrgen Habermas e JacquesDerrida(traduo de Philosophy em a time of terror, dialogues with Jrgen Habermas and Jacques Derrida porRoberto Muggiati). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.52Cf. Goldschmit, M. (2003).Jacques Derrida, une introduction. Agora Pocket, p. 114.53Derrida, J. (1996).Apories. Mourir sattendre aux 'limites de la vrit. Paris: Galile.

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    colocado adiante para nos abrigar, substituir, esconder um segredo, nos esconder em caso

    de perigo. E o filsofo acrescenta: Toda fronteira problemticanesses dois sentidos54.

    Para Derrida, a palavra problema se relaciona problematicamente com outro

    termo grego, aporia, que, no plural, serve de ttulo ao livro. A experincia da no-

    passagem, do permanecer diante de uma porta, um limiar, uma fronteira, uma linha, ou

    simplesmente, da borda ou da abordagem do outro enquanto tal 55. Algo nos barra a

    passagem, algo que, ao mesmo tempo, nos projeta em direo ao outro e, como um

    escudo, nos impede essa passagem. No h propriamente uma fronteira a ultrapassar ou

    que possa nos proteger. Trata-se da fazer a experincia no passiva da aporia. Natraduo, a experincia no passiva da aporia exige decises difceis, mas que devem ser

    feitas e, algumas vezes, comentadas.

    Em Parergon, lemos:

    Laissons. Que veut dire "laisser" [...], que fait "laisser"? etc. (p.34)Deixemos de lado: que quer dizer deixar [...], o que fazdeixar? etc.

    Uma nota foi acrescentada, ressaltando a homofonia entre "laissons" e "Leons

    sur lesthtique" de Hegel, e revelando tambm a derrota da traduo. H, para a

    tradutora, duas possibilidades de derrota (e uma melhor que a outra..., como acontece

    com as dicotomias tantas vezes examinadas por Derrida). A primeira: a tradutora no ter

    tido, logo de incio, a audcia ou o conhecimento de chegar at a borda do abismo, de se

    arriscar a errar e reconhecer esse erro em uma nota. A segunda: ela pode falhar, mas, pelo

    54Derrida 1996, p. 30.55Derrida 1996, p.31.

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    menos, tomou, no limite, uma deciso, e levantou uma questo tradutria no espao

    reservado a ela: as N.d.t.

    As decises em traduo nunca so tranquilas. Em A verdade em pintura, optei

    por seguir a grafia prxima do francs, utilizando "abysmo" (abyme, uma referncia

    herldica) e "abismo" (abme, um precipcio sem fundo), e conservei em francs, em

    itlico, a expresso "en abyme". Como em:

    Le cercleet labyme, tel serait le titre [p. 28]Le cercle et labme, donc, Le cercle en abyme [p. 29]

    O crculo e o abysmo, tal seria o ttulo.O crculo e o abismo; portanto, o crculo en abyme.

    primeira vista, pode parecer uma deciso tranquila. Essa opo deixa

    transparecer uma passagem entre La vrit.. e A verdade... e, ao mesmo tempo, revela

    uma situao intransponvel, sem sada, entre os dois textos. Como dar conta da

    referncia ao verbo "abmer", como de tantas outras homofonias em Derrida? Este

    comentrio, por exemplo, levou-me a acrescentar, em "Parergon", a nota seguinte:

    Derrida utiliza o termo "abyme" na sua forma arcaica, com "y",emprestado de Andr Gide; a traduo recorrer, quandonecessrio, ao termo tambm arcaico em portugus: "abysmo". Oautor utiliza tambm a palavra "abme" que significa abismo, emportugus, e que, em francs, remete tambm ao verbo "abmer"(deteriorar). Nesta traduo, conservo em francs a expresso enabyme,em itlico. Como Derrida emprega, vrias vezes, o recurso

    das aspas ou do itlico, ao utilizar tambm esses recursos, porconta prpria (por exemplo, toda vez que uma palavra ou umaexpresso conservada em francs), reconheo que estouconfundindo o leitor que no sabe se no original o termo estaria ou

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    O termo "en abme" remete tambm ao momento que reconhecemos, pelas aporias

    do texto e pelas possibilidades/impossibilidades da traduo, que um significante remete

    a outro significante, que o significado nunca est presente; ele infinito, "sem fundo",

    est sempre sendo adiado para "alm do fundo do abismo", numa situao de diferena e

    de diferimento.

    A questo do gnero literrio permite ao filsofo ressaltar outro aspecto do

    "abismo" ou da "aporia": o texto apresenta a si prprio como um conto, ou um romance,

    ou um poema, etc. Essa re-marca (assim como o ttulo, o prefcio, as notas da tradutora)

    no pertence exatamente ao texto nem se coloca fora dele, participa do texto semparticipar, e, nesse caso, pode ser visto como um parergon, na forma como examina

    Derrida emA verdade em pintura.

    O tema da nossa dcada, explicita o filsofo, destaca a fronteira como limite ou a

    fronteira como traado. E exige a experincia das aporias necessrias e impossveis

    que concernem essa temtica. O autor como costuma fazer recorrentemente e

    excessivamente divide e subdivide e re-subdivide as diferenas entre as mltiplas

    fronteiras e diversas aporias; fao, portanto, um recorte no texto derridiano e relevo o que

    me interessa no momento: duas fronteiras aparentemente heterogneas: de um lado, a

    fronteira entre contedos (coisas, objetos, referentes, como queiramos: territrios,

    pases, Estados, naes, culturas, lnguas, etc.58) e, de outro lado, o limite entre um

    conceito e outro, segundo a barra opositional. Temos aqui um duplo conceito de

    fronteiras, um duplo conceito de hospitalidade e um duplo conceito de dever: o dever de

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    honrar e assumir a memria europeia, lembrar o que foi prometido sob esse nome

    Europa, cultivando, entretanto, a crtica dessa herana; e o dever de abrir o territrio

    para aquilo que no nem nunca ser Europa. Acolher o estrangeiro para integr-lo,

    mas tambm para aceit-lo em sua alteridade. Em suma, um dever de traduo59.

    Um lado da fronteira obseda o outro lado, um tipo de aporia se entrelaa com

    outro tipo. Primeiramente, a aporia como uma porta fechada, uma fronteira insupervel

    ou que exige o conhecimento de uma senha para permitir a abertura para o outro lado.

    Em segundo lugar, o impasse vem do fato de que no h fronteiras, os traados so

    porosos, oscilam e no se deixam definir. Finalmente, a aporia de um terceiro tipo: oprprio impasse se torna impossvel, no h passagem, a experincia do passo se perde,

    no h traduo, conservamos o termo em francs, entre aspas, entre parnteses, criamos

    um galicismo, um neologismo ou consideramos o termo como j traduzido.

    No texto "introdutrio", na fronteira com o captulo I deA verdade em pintura 60,

    a nota em que eu comento a traduo (ou no-traduo) depasse-partoutfoi modificada

    para dar conta desse termo "j traduzido", mas que deixa, como sempre, um resto. Nessa

    fronteira entre captulos, Derrida enumera algumas dicotomias (ou "oposies bifaciais")

    que fazem parte da histria da arte ocidental. Um espao "entre", que deve ser solicitado,

    "para dar lugar verdade em pintura". Espao que se refere, de alguma forma, a

    fronteiras: entre o quadro e a parede; entre a borda de dentro e a de fora da moldura; entre

    a moldura e o quadro; entre o tema principal e seus "acompanhamentos"; entre a imagem

    e o que o pintor "quis dizer" (o meio e a mensagem, a imagem formal e a inteno do

    autor).

    58Derrida 1996, p. 39.59Cf. Derrida 1996, p. 41 e sequncia.60Derrida 1978, p. 17-18.

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    Le trait alors se divise en ce lieu o il a lieu. Lemblme de cetopos parat introuvable, je lemprunte la nomenclature de l'encadrement: cest le passe-partout. (Derrida 1978, p. 17)

    "O trao se divide, ento, nesse lugar onde ele acontece. Oemblema desse topos parece no poder ser encontrado, eu oempresto da nomenclatura do enquadramento: opasse-partout".

    Opasse-partoutno precisa ser traduzido. Deixado em francs na traduo (como

    outros termos em A verdade em pintura), esse termo ilustra o prprio tema do passe-

    partoutemLa Vrit en peinture: nem dentro nem fora dos limites pertinentes pintura,

    nem dentro nem fora do portugus, virando a face para um lado e para o outro dafronteira entre Brasil e Frana61. Deixar o termo em francs no propriamente uma

    escolha e no precisa realmente de nota para chamar a ateno do leitor para essa

    operao de decalque que importa o lxico estrangeiro para o portugus conservando sua

    grafia intacta. Noto tambm que o termo est sendo modificado: na minha experincia

    pessoal, os moldureiros e seus ajudantes pronunciam muitas vezes "passepatur"62.

    Passe-partout entrou em nossa lngua pela porta da esttica (e pela porta das

    moldurarias) e j recebeu o aval dos dicionrios. No entanto, ainda considerei relevante

    acrescentar outra nota destacando outra significao, um resto que a traduo no pode

    incluir "dentro" do portugus: chave universal, chave para todas as fechaduras.

    Fronteira, aporia, dever, traduo, esses temas se cruzam nos textos derridianos.

    Podemos afirmar que, ao examinar os limites da tarefa tradutora a partir da traduo de

    La Vrit en peinture, trata-se de ressaltar a urgncia de problematizar o conceito de

    61 Em portugus tambm utilizamos a expresso 'passe-partout': papel que se coloca entre a obra e amoldura. Em francs, remete tambm 'chave-mestra', aquela que permite a passagem, que 'passa por tudo'62 Em busca na Internet, podemos encontrar anncios do tipo: 'moldura em madeira com passepaturtambm em madeira'.

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    limite em todo o seu alcance, em toda sua potncia, em todos os campos polticos,

    lingusticos, religiosos, psicanalticos, artsticos, tudo o que nos limita com o outro e

    nossa prpria identificao, em toda sua complexidade. Trata-se, neste texto, de destacar

    a necessidade de examinar, a partir dos estudos de traduo, os pressupostos metafsicos

    que regem a noo de fronteiras, a fim de reinscrev-la em outras cadeias de

    significaes. Um livro sobre arte, como La Vrit en peinture, constitui outra forma de

    rodear a questo tradutria (e a histria da arte), contornando-a, sem dela desviar a

    ateno. A traduo de uma obra artstica para um discurso possvel/impossvel, como

    toda traduo, possvel/impossvel como a leitura e traduo desse texto intitulado LaVrit en peinture .

    Os estudos de traduo e o limite

    Por que fazer uma reflexo desconstrutivista sobre a traduo a partir do ensaio

    Parergon? Porque, emA verdade em pintura, trata-se da questo da moldura, de limites

    demarcados e estendemos essa questo para examinar a fronteira entre original e

    traduo, debater as aporias encontradas pela tradutora e a potncia dessas aporias para a

    questo tradutria. E nesses pontos limites que a traduo se d a ver em toda sua

    complexidade, o lugar onde a traduo, mais explicitamente do que em outro, deixa de

    ser vista como um ato servil e secundrio e ganha consistncia prpria.

    A questo tradutria, como est sendo examinada aqui, possui afinidade,

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    parentesco com o ensaio Parergon, embora nele a traduo no seja includa como

    parerga. A ligao entre esse ensaio e a traduo, a partir de A verdade em pintura,

    revela uma ligao ou analogia forada, o que leva a pensar que , de alguma forma, a

    traduo est e no est fora do Parergon, est nas molduras do ensaio, no limite, mas

    permite ver o que est dentro, participa dele. Uma vez facilitadora, a traduo de um

    texto filosfico, por exemplo, pode ser qualificada de adorno como a moldura

    dourada descrita por Kant63, aquilo que atrai o leitor pela sua didtica, mas no faz jus

    complexidade do pensar filosfico. A traduo de +R(par dessous le march)por "+(a)R

    (ainda por cima. Do mercado)", minha primeira opo, poderia encurtar um caminho deleitura? Ou seria um "adorno", como comenta Kant sobre a moldura dourada.

    Uma discusso esttico-desconstrutivista, se existe, ter trabalhado os conceitos

    artsticos da tradio, questionando seus pressupostos onto-teleolgico e, ao mesmo

    tempo, ter ultrapassado seus limites, demasiadamente cerceados pelos dogmas da

    tradio, com a finalidade de abrir novas formas de levantar questes sobre arte, como

    faz Derrida emLa Vrit en peinture. Da mesma forma, uma viso desconstrutivista nos

    Estudos de traduo, a partir da lgica doparergon,procura levantar os pontos de aporia,

    as situaes-limites reveladas pelo ato tradutrio para poder considerar o texto traduzido

    um outro texto alm ou fora do original e que, ao mesmo tempo, participa do dentro

    do original, uma dobra do fora no dentro, uma moldura que enquadra e transborda as

    fronteiras entre dois ou mais sistemas lingsticos.

    Em nossa poca, vrios filsofos passaram a interrogar a tarefa do tradutor por

    63Cf. Kant opus cit. 14.

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    outros ngulos, acrescentando novas configuraes aos conceitos j desgastados dos

    estudos tradicionais sobre traduo. Segundo Antoine Berman64(1984):

    No sculo XX, a traduo entrou no horizonte filosfico como umaquesto explcita e crucial com pensadores to diferentes comoWittgenstein, Karl Popper, A. Quine, Heidegger, Gadamer e, maisrecentemente, Michel Serres e, sobretudo, Jacques Derrida.(Berman 1984, p.295)

    Para Derrida65, a filosofia ocidental define-se como projeto de traduo, como

    fixao de certo conceito de traduo, e sua histria exige, fundamentalmente, a presena

    de um significado transcendental independente da lngua, resguardado no texto traduzido.

    Derrida continua:

    S h filosofia se a traduo nesse sentido possvel, portanto, atese da filosofia a tradutibilidade, a tradutibilidade no sentidocorrente, transporte de um sentido, de um valor de verdade, de umalinguagem na outra, sem dano essencial. Portanto, a passagem, oprograma de traduo, a passagem filosofia, nomeu esprito, eraisso: a origem da filosofia a traduo, a tese da tradutibilidade, eem toda parte em que a traduo, nesse sentido, derrotada, nadamenos a filosofia que derrotada. (Derrida 1982, pp. 159-160)

    A reflexo desconstrutivista problematiza a noo de equivalncia e abandona a

    apreciao de perdas e ganhos em relao a um original estvel, articulando a tarefa do

    tradutor com reflexes contemporneas, constituindo assim diferentes objetos de estudo e

    novos ngulos de tematizao. Ao longo de toda a sua obra, o filsofo argelino examina

    pontualmente a questo tradutria, especialmente esse jogo entre o fora e o dentro da

    moldura do original, e o movimento de re-apropriao que faz a filosofia, depois de

    64Berman, A. (1984 ).Lpreuve de ltranger. Paris: Gallimard.65Derrida, J. (1982).LOreille de lautre. Montral: VLB.

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    expulsar ou rebaixar um dos termos da dicotomia original/traduo para fora de seus

    limites. E a traduo d a ver esse movimento entre fronteiras de forma muito explcita:

    a tradutora escreve a partir de um original, La Vrit en peinture,ultrapassando o limite

    do que o autor quis dizer ou pretendeu escrever nas entrelinhas de seu texto. Mas sem

    que isso seja uma escolha, um transgredir voluntrio.

    Ao contrrio, o que pretende o leitor e o tradutor sua tarefa, seu desejo

    captar o sentido depositado no texto, proteg-lo em suas margens, em suas molduras,

    lutar pela sua unidade e transport-la, sem perda considervel, para sua lngua de

    chegada.Mas a tradutora faz mais do que sua inquietao permite; ele desloca, enxerta e

    modifica as bordas do querer dizer do autor. Ela coloca para dentro do texto o que est

    fora, em um movimento de inflexo que desarranja a boa ordem do conceito de

    traduo como transporte de significados de uma lngua a outra.

    Sabemos que Derrida escreve para no ser traduzido e, entretanto, se oferece ao

    ato tradutrio sem condio. o filsofo da traduo e avana barreiras contra a

    traduo de seus textos. Utiliza estratgias textuais que criam textos-limites e produzem

    foras de interpretao que minam as fronteiras entre possibilidade e impossibilidade de

    recuperao do querer dizer do autor. Naturalmente podemos entender que isso acontece

    em qualquer traduo, mas em alguns de seus textos, como o que se mostra neste

    trabalho, isso mais aparente. Em outras palavras,A verdade em pinturad a pensar um

    processo de autoimunidade um processo que atrai o que est fora das fronteiras do texto

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