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A EXPANSÃO DO MILHO TRANSGÊNICO EM SERGIPE: TRANSFORMAÇÕES PRODUTIVAS NA AGRICULTURA CAMPONESA PAULO ADRIANO SANTOS SILVA 1 Resumo Sob a égide do Estado, a produção de milho transgênico tem crescido, em todo território brasileiro, por meio da difusão das políticas públicas de crédito agrícola e dos pacotes tecnológicos da agricultura comercial. A intensificação desse novo modelo de produção, baseado no pacote (crédito + máquinas+ sementes transgênicas + agrotóxicos) tem provocado uma nova dinâmica nos pequenos e médios estabelecimentos rurais do país. Em 2017, o milho foi responsável por mais de 40% da produção nacional e se constituiu como base fundamental na alimentação de outros setores do agronegócio, a exemplo da avicultura, suinocultura e bovinocultura. Embora o maior volume de produção se concentre nas regiões Sul, Sudeste e, sobretudo no Centro-Oeste, o cultivo de milho vem crescendo expressivamente no Nordeste. Esta região foi responsável pela produção de 5.555.181 milhões de toneladas de milho, em 2017, com destaque para os estados da Bahia, Maranhão, Piauí e, mais recentemente, Sergipe. Diante disso, o objetivo deste trabalho é analisar como o avanço do agronegócio do milho transgênico provocou alterações no modo de vida e na dinâmica produtiva da agricultura camponesa do Estado de Sergipe. Para alcançar este objetivo, utilizamos o método empírico-analítico e adotamos os seguintes procedimentos metodológicos: 1º) Levantamento bibliográfico; 2º) Pesquisa documental; 3º) Trabalho de campo; 4º) Sistematização e análise dos dados e 5º) reflexão dos resultados. Elaboramos uma amostragem, baseada na aplicação da técnica (snowball), “bola de neve”, que consiste na identificação de pessoas (camponeses que produzem milho) que foram utilizadas como informantes para identificar outros camponeses que também estão envolvidas com a mesma atividade agrícola comercial. O conceito de “snowball”, de Bailey (1994), faz analogia a uma bola de neve que começa pequena e ao rolar torna-se cada vez maior. Por meio desta pesquisa constatamos que, se por um lado ocorreu a edificação da produção de milho transgênico, com o expressivo aumento dos índices de produtividade, por outro ocasionou, de forma negativa, a redução da produção de alimentos para autoconsumo, aumento dos riscos de contaminação por agrotóxicos, endividamento com os bancos e a ampliação da precarização do trabalho camponês, mascarado pelo falacioso discurso ideológico, do agronegócio, de desenvolvimento econômico e modernização das atividades agrícolas. Com isso, concluímos que essa lógica produtiva, baseada em um modelo químico, técnico, semi- empresarial, e subordinado a lógica do agronegócio, reduziu a autonomia e implicou diretamente na materialização do modo de vida tradicional dos homens e mulheres que vivem do e no campo sergipano. Palavras-chave: Agricultura camponesa, milho transgênico e agronegócio. Abstract Under the aegis of the State, the production of transgenic corn has been growing throughout Brazil, through the issuance of public growth policies and technological packages of commercial agriculture. The intensification of this new model of production, based on the package (credit + machinery + transgenic seeds + pesticides) has brought a new dynamic in 1 Doutorando em Geografia Agrária pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGEO da Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais – GRUPAM. E-mail de contato: [email protected]

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A EXPANSÃO DO MILHO TRANSGÊNICO EM SERGIPE:

TRANSFORMAÇÕES PRODUTIVAS NA AGRICULTURA

CAMPONESA

PAULO ADRIANO SANTOS SILVA 1

Resumo Sob a égide do Estado, a produção de milho transgênico tem crescido, em todo território brasileiro, por meio da difusão das políticas públicas de crédito agrícola e dos pacotes tecnológicos da agricultura comercial. A intensificação desse novo modelo de produção, baseado no pacote (crédito + máquinas+ sementes transgênicas + agrotóxicos) tem provocado uma nova dinâmica nos pequenos e médios estabelecimentos rurais do país. Em 2017, o milho foi responsável por mais de 40% da produção nacional e se constituiu como base fundamental na alimentação de outros setores do agronegócio, a exemplo da avicultura, suinocultura e bovinocultura. Embora o maior volume de produção se concentre nas regiões Sul, Sudeste e, sobretudo no Centro-Oeste, o cultivo de milho vem crescendo expressivamente no Nordeste. Esta região foi responsável pela produção de 5.555.181 milhões de toneladas de milho, em 2017, com destaque para os estados da Bahia, Maranhão, Piauí e, mais recentemente, Sergipe. Diante disso, o objetivo deste trabalho é analisar como o avanço do agronegócio do milho transgênico provocou alterações no modo de vida e na dinâmica produtiva da agricultura camponesa do Estado de Sergipe. Para alcançar este objetivo, utilizamos o método empírico-analítico e adotamos os seguintes procedimentos metodológicos: 1º) Levantamento bibliográfico; 2º) Pesquisa documental; 3º) Trabalho de campo; 4º) Sistematização e análise dos dados e 5º) reflexão dos resultados. Elaboramos uma amostragem, baseada na aplicação da técnica (snowball), “bola de neve”, que consiste na identificação de pessoas (camponeses que produzem milho) que foram utilizadas como informantes para identificar outros camponeses que também estão envolvidas com a mesma atividade agrícola comercial. O conceito de “snowball”, de Bailey (1994), faz analogia a uma bola de neve que começa pequena e ao rolar torna-se cada vez maior. Por meio desta pesquisa constatamos que, se por um lado ocorreu a edificação da produção de milho transgênico, com o expressivo aumento dos índices de produtividade, por outro ocasionou, de forma negativa, a redução da produção de alimentos para autoconsumo, aumento dos riscos de contaminação por agrotóxicos, endividamento com os bancos e a ampliação da precarização do trabalho camponês, mascarado pelo falacioso discurso ideológico, do agronegócio, de desenvolvimento econômico e modernização das atividades agrícolas. Com isso, concluímos que essa lógica produtiva, baseada em um modelo químico, técnico, semi-empresarial, e subordinado a lógica do agronegócio, reduziu a autonomia e implicou diretamente na materialização do modo de vida tradicional dos homens e mulheres que vivem do e no campo sergipano.

Palavras-chave: Agricultura camponesa, milho transgênico e agronegócio.

Abstract Under the aegis of the State, the production of transgenic corn has been growing throughout Brazil, through the issuance of public growth policies and technological packages of commercial agriculture. The intensification of this new model of production, based on the package (credit + machinery + transgenic seeds + pesticides) has brought a new dynamic in

1 Doutorando em Geografia Agrária pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGEO da Universidade Federal de Sergipe. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alimentos e Manifestações Tradicionais – GRUPAM. E-mail de contato: [email protected]

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the small and medium rural establishments of the country. In 2017, maize accounted for more than 40% of the national production and was the fundamental basis for feeding other sectors of agribusiness, an example of poultry farming, swine farming and cattle breeding. Although higher volume of production is concentrated in the South, Southeast and especially in the Midwest, maize cultivation has been growing significantly in the Northeast. This region was responsible for the production of 5,555,181 million tons of maize in 2017, with emphasis on the states of Bahia, Maranhão, Piauí and, more recently, Sergipe. Therefore, this work aims to analyze how the progress of the agribusiness of transgenic maize caused changes in the way of life and production of peasant agriculture in the State of Sergipe. To achieve this goal, we used the empirical-analytical method and we adopted the following methodological procedures: 1º) Bibliographic survey; 2º) Documental research; 3º) Fieldwork; 4º) Systematization and analysis of data and 5º) reflection of results. We prepared a sampling, based on the application of the Snowball technique, which consists of identifying people (peasants who produce corn) who were used as informants to identify other peasants who are also involved in the same agricultural activity commercial. Bailey’s (1994) Snowball concept makes an analogy to a snowball that starts small and rolling becomes larger and larger. Through this research, we verified that, while on the one hand the construction of transgenic maize production, with the significant increase in productivity indexes occurred, on the other, it caused, in a negative way, the reduction of food production for self consumption, increased the risk of contamination by pesticides, indebtedness with the banks and the expansion of the precariousness of peasant labor, masked by the fallacious ideological agribusiness discourse, economic development and modernization of agricultural activities. With this, we conclude that this productive logic, based on a chemical, technical, semi-business model, and subordinated to agribusiness logic, reduced autonomy and directly implied the materialization of the traditional way of life of men and women living in the in the countryside of Sergipe.

Keywords: Peasant agriculture, transgenic maize, agribusiness. .

1- Introdução

O milho, também conhecido na língua Tupi como abati, auati e avati, é um

cereal historicamente cultivado em diversas partes do mundo. De acordo com os

estudos de Pollan (2006), Mazoyer e Roudart (2010) e Mary Poll (2007), os

primeiros registros do cultivo do milho datam de há 7.300 anos, e foram encontrados

em pequenas ilhas próximas ao litoral do México, no golfo do México e seu nome, de

origem indígena caribenha, significa “sustento da vida”. Por ser um cereal

extensamente versátil e conter substâncias altamente nutritivas, ao longo do tempo,

o milho foi utilizado como base da alimentação humana e animal de várias

civilizações.

No Brasil, o hábito de cultivar o milho antecede a chegada dos europeus no

território nacional. Conforme a análise feita por Francelli et al, (2015) o milho era

cultivado pelos índios, muito antes do desembarque dos portugueses no sul da

Bahia, e as tribos tupis e guaranis tinham no cereal o principal ingrediente de sua

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dieta. Com a chegada dos portugueses ao Brasil, o consumo de milho aumentou

expressivamente e novos hábitos alimentares foram incorporados pela população, a

partir da incrementação das especiarias nos alimentos derivados do milho.

No cenário atual, o milho é o cereal mais produzido e consumido do mundo.

Os dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) apontam que

a produção mundial deste cereal atingiu cerca de 990 milhões de toneladas, em

2018. Os Estados Unidos, seguido pela China e Brasil são responsáveis por mais de

60% da produção mundial.

No Brasil, sob o domínio dos transgênicos, o cultivo de milho tem crescido

vertiginosamente, nas grandes, médias e pequenas propriedades rurais. De acordo

com o Censo Agropecuário, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE,

o Brasil produziu o equivalente a 90.822.485 milhões de toneladas de milho

transgênico em 2017, se consolidando como terceiro maior produtor mundial deste

grão.

Com isso, o objetivo deste trabalho é analisar como o avanço do agronegócio

do milho transgênico provocou alterações no modo de vida e na dinâmica produtiva

da agricultura camponesa do Estado de Sergipe. Para alcançar este objetivo,

utilizamos o método empírico-analítico e adotamos os seguintes procedimentos

metodológicos: 1º) Levantamento bibliográfico; 2º) Pesquisa documental; 3º)

Trabalho de campo; 4º) Sistematização dos dados e 5º) reflexão dos resultados.

Essa pesquisa nos permitiu realizar uma análise da dinâmica produtiva dos

camponeses que cultivam milho transgênico no campo sergipano. No sentido de

facilitar a compreensão deste trabalho, além desta introdução e das considerações

finais, fizemos uma análise sobre a atual configuração da produção de milho em

Sergipe, retratando o crescimento dos níveis produtivos, as alterações na relação de

uso deste cereal, as ações que impulsionaram essas transformações e os

rebatimentos no modo de vida e na dinâmica produtiva desses camponeses.

2. Reflexos da expansão do milho transgênico no espaço agrário

sergipano

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O segmento do agronegócio que mais cresceu, na última década, foi a

produção de milho, tornando-se o segundo grão mais produzido no país. Em 2017, o

referido grão foi responsável por mais de 40% da produção nacional e se constituiu

como base fundamental na alimentação de outros setores do agronegócio, a

exemplo da avicultura, suinocultura e bovinocultura.

Embora o maior volume de produção se concentre nas regiões Sul, Sudeste

e, sobretudo no Centro-Oeste, o cultivo de milho vem crescendo expressivamente

no Nordeste. Esta região foi responsável pela produção de 5.555.181 milhões de

toneladas de milho, em 2017, com destaque para os estados da Bahia, Maranhão,

Piauí e, mais recentemente, Sergipe.

Com o advento dos pacotes tecnológicos na agricultura, associado ao

aumento nos índices de precipitação pluviométrica, Sergipe registrou em 2017, de

acordo com o IBGE, um crescimento de 462,9% na produção de grãos, com

destaque para o milho. Os dados apontam que a produção deste grão saltou de

86.595 toneladas, em 2003, para 843.762, em 2017, o que corresponde a um

crescimento de 874,38%, em pouco mais de uma década. Vejamos no gráfico

abaixo:

Gráfico 01 (Quilograma por hectare - Milho)

Sergipe/2003-2017

Fonte: IBGE – Produção Agrícola Municipal 2003 - 2017. Elaboração: SILVA, Paulo Adriano Santos, 2018.

0

1.000

2.000

3.000

4.000

5.000

6.000

7.000

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

Produtos da lavoura temporária = Milho

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A Secretaria de Estado da Agricultura e Desenvolvimento Rural – SEAGRI,

em parceria com a Empresa de Desenvolvimento Agropecuário de Sergipe –

EMDAGRO e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA, foram

as principais responsáveis pelo crescimento do agronegócio do milho transgênico no

Estado. Seminários, visitas técnicas de campo, experiências laboratoriais,

distribuição de sementes transgênicas, somaram-se para que a produção de milho

se alavancasse nos grandes estabelecimentos e, mais recentemente, nos

estabelecimentos de domínio camponês. O aumento dos financiamentos agrícolas,

que possibilitou a aquisição dos pacotes tecnológicos, (fertilizantes químicos +

agrotóxicos + sementes transgênicas), fizeram da produção de milho, outrora

tradicional, um negócio técnico e eminentemente comercial.

Figuras 01 e 02 Produção de milho transgênico (Sergipe)

Fotos: SILVA, Paulo Adriano Santos, 2019.

As ações desenvolvidas pelo governo do estado, associadas aos índices de

chuvas, influenciaram diretamente no aumento da produtividade desta commoditie

em Sergipe. Constatamos isso na fala do ex-secretário de Agricultura do Estado,

Leal (2018):

“A Emdagro tem acompanhamento em todos os municípios do estado. A sua orientação, assim como da Embrapa, é determinante para que haja um suporte técnico suficiente para que se continue produzindo não somente em termos de quantidade de área plantada, mas para aumentar a produtividade, que é a quantidade de grãos produzidos dentro de um mesmo espaço geográfico”.

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O governo de Sergipe elaborou o Programa Estadual de Distribuição de

Sementes e Mecanização Agrícola no sentido de fomentar atividades agrícolas com

viabilidade produtiva no estado. Inúmeras ações foram desenvolvidas com o intuito

de estimular a produtividade e consolidar um modelo de produção de milho

transgênico em grande escala.

Figuras 03, 04 e 05 Programa Estadual de Distribuição de Sementes e Mecanização Agrícola

Secretaria de Estado da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário e da Pesca - SEAGRI

Fonte: Governo de Sergipe, 2017.

No ano de 2016, o Governo de Sergipe, por meio da Secretaria de Estado da

Agricultura, do Desenvolvimento Agrário e da Pesca - SEAGRI distribuiu 247

toneladas de milho transgênico e 14.545 horas de trator, contemplando mais de

24.700 agricultores do estado. O investimento, estimado em 3,9 milhões de reais,

feito para fomentar a produção de milho em Sergipe, veio do Fundo de Erradicação

e Combate à Pobreza.

É importante destacar que até os anos 1990, os agricultores sergipanos,

sobretudo os pequenos e médios, usavam técnicas tradicionais de cultivos, com a

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utilização prioritária de sementes crioulas, reduzido uso de sementes modificadas e

insumos químicos nas lavouras de milho. (Oliveira, 2010). De acordo com os relatos

históricos, oriundos das memórias dos camponeses idosos, o milho era produzido

nas roças, de forma consorciada com outros alimentos, a exemplo do feijão,

mandioca, macaxeira, abóbora, melancia, melão, quiabo, tomate, pimentão, dentre

outros gêneros alimentícios. Ao analisar a condição camponesa e a dinâmica da

agricultura sergipana, Diniz (1996, p. 124), na década de 1990, já apontava que “a

lavoura camponesa em Sergipe é feita, basicamente, num sistema consorciado, em

que vários produtos são plantados juntos na mesma terra”.

Esses alimentos eram cultivados, de forma agroecológica, com base nos

conhecimentos hereditários, transmitidos de pais para filhos. Os camponeses

utilizavam utensílios manuais, como enxada, foice, machado; fertilizantes naturais,

como esterco e urina de gado; e aravam a terra com o auxílio de instrumentos de

tração animal. Durante este período, o cultivo apresentava pouca expressividade,

destinando-se ao consumo familiar e comunitário, ou seja, tinha apenas valor de

uso.

A agricultura camponesa tradicional, baseada em saberes, princípios e valores

de usos dos recursos naturais, representava para além da importância do

abastecimento interno para alimentação, a possibilidade de reprodução autônoma

dessas famílias. Os camponeses plantavam milho com sementes de origem crioula

e, durante a safra, selecionavam as melhores espigas e guardavam os melhores

grãos para semear no ano seguinte. Essa forma de plantio se estendia a todas as

sementes e mudas plantadas, na mesma roça, com o milho crioulo.

Nesse contexto, Ribeiro e Lino (2014), demonstram a importância da

preservação das raças, das mudas e, sobretudo, das sementes crioulas, para

manutenção autônoma do campesinato, apontando que as sementes aparecem

como forma de auxílio para os camponeses na sua sobrevivência, pois além de ser

um alimento, representa muito mais, pois retrata a cultura de cada comunidade, que

é um elemento central no modo de vida do camponês.

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De acordo com as informações obtidas em campo, o milho era plantado no dia

19 de Março, em homenagem ao Padroeiro São José, e era colhido no dia 23 de

Junho, no dia de São João. Ainda verde, o milho era colhido em forma de mutirão e

repartido entre familiares e vizinhos, para celebrar o dia festivo do mês junino.

Durante esse dia, várias comidas eram confeccionadas, a exemplo da pamonha,

canjica, mungunzá, pipoca, cuscuz, mingau, além de ser consumido assado e

cozido, pelos camponeses. Este calendário se baseava nos princípios da natureza e

das festas religiosas, selando as tradições do catolicismo popular com a cultura do

povo sertanejo. Corroborando com isso, Guimarães, (2010, p. 100) assevera que “os

camponeses utilizam o território para a produção de alimentos visando o

autoconsumo; e por outro lado, é também um espaço onde vivem, com suas

crenças, tradições e religiões”.

Além da celebração e da comensalidade no dia de São João, comumente os

camponeses se reuniam no dia de colher, descascar, bater2 e estocar o milho seco,

para ser utilizado, durante o resto do ano, na alimentação da família, do gado e das

aves. O mesmo processo acontecia durante colheita do feijão e da mandioca. Por

meio dessas memórias, constatamos que existia uma dimensão histórica, cultural e

simbólica, inerente a essas atividades rurícolas, que contribuíam para estreitar os

laços de reciprocidade, e, por conseguinte, reforçar a identidade camponesa dessas

famílias.

As particularidades tradicionais da agricultura camponesa foram paulatinamente

substituídas, com a adesão do projeto de modernização agrícola, por máquinas de

médio e grande porte, insumos químicos e sementes geneticamente modificadas.

Essa modernização acarretou o aumento da dependência com os bancos, haja vista

a necessidade constante de crédito e eliminou as decisões dos camponeses, que

outrora produziam de forma autônoma. Essas mudanças também contribuíram para

a desagregação dos hábitos alimentares das comunidades sertanejas, a exemplo do

novo padrão alimentar instituído pela oferta de alimentos industrializados.

2 Procedimento manual realizado pelos camponeses para debulhar o milho, separando o grão do sabugo, através

de uma estrutura confeccionada com galhos de árvores, chamada de Giral.

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Menezes (2012), analisando as alterações dos hábitos alimentares das

comunidades tradicionais do Sertão, atribuiu esse fenômeno à influência da

globalização, do marketing e das alterações na base técnica da agricultura:

As sementes híbridas eliminam, paulatinamente, as sementes crioulas; os agroquímicos são utilizados de forma descontrolada; as máquinas avançam no campo e os cultivos nos moldes do agrobusiness. Ainda percebemos no espaço familiar as alterações provocadas no padrão alimentar de grande parte das comunidades rurais, com a inserção dos produtos eletroeletrônicos, uma vez que, nos lares, com a expansão do programa Luz no Campo, a televisão contribuirá para tais mudanças, tendo em vista que o marketing e a propaganda difundem novos alimentos destacando a praticidade a despeito do uso dos produtos tradicionais (MENEZES, 2012, p. 5).

Com o declínio dos cultivos tradicionais e o aumento da dependência dos

alimentos industrializados, percebemos que na atualidade, com exceções muito

limitadas, a maioria dos produtos, oriundos da produção camponesa, são destinados

para o mercado de commodities (CARVALHO, 2013). Em determinadas regiões do

Brasil, a produção para o autoconsumo foi bastante reduzida, o que representa o

aumento na dependência dos produtos fornecidos pelos supermercados. Nesse

contexto, constatamos que o avanço do milho transgênico provocou uma redução

significativa em área plantada, dos cultivos de mandioca e feijão, no campo

sergipano. Vejamos os dados abaixo:

Gráfico 02 Área Plantada

Feijão e Mandioca (Ha) Sergipe / 2000 – 2017

Fonte: IBGE – Produção Agrícola Municipal 2000-2017. Elaboração: SILVA, Paulo Adriano Santos, 2018.

0

20.000

40.000

60.000

80.000

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017

Feijão Mandioca

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Em Sergipe, os cultivos de feijão e mandioca sofreram uma redução

considerável em relação aos anos de 2006 a 2017, sendo o feijão o cultivo que mais

perdeu espaço durante este mesmo período. Com relação ao cultivo de mandioca,

observamos uma grande redução na área plantada entre 2000 e 2017, com tímidas

oscilações positivas entre 2005 e 2007.

O milho transgênico se expandiu em detrimento de culturas importantes para

a alimentação e para a reprodução do modo de vida no campo. Tal processo é

semelhante à análise realizada por Carvalho (2013), que afirma que essa imersão

do mercado capitalista rompeu com valores e com comportamentos que

configuravam o jeito de ser e de viver dos camponeses.

A substituição dos cultivos tradicionais por esta commoditie contribuiu para o

enfraquecimento da autonomia produtiva, da soberania alimentar e o aumento da

dependência da alimentação imposta pelas indústrias fornecedoras de alimentos

industrializados. A alteração da dinâmica produtiva da agricultura camponesa, que

transformou o alimento em commoditie, reduziu às práticas tradicionais campesinas,

como a pamonhada, farinhada, festas religiosas e mutirões, eliminou a

heterogeneidade alimentar e paulatinamente reduziu os hábitos e costumes dessas

comunidades rurais.

3. - Considerações Finais

A produção de milho transgênico em Sergipe, alicerçada pelos pacotes

tecnológicos, apresenta-se de modo dual na contemporaneidade. Se por um lado

ocorreu a edificação desta commoditie, com o expressivo aumento dos índices de

produtividade, por outro ocasionou, de forma negativa, a redução da produção de

alimentos para autoconsumo e o aumento da precarização do trabalho, mascarado

pelo falacioso discurso do agronegócio de desenvolvimento econômico e

modernização das atividades agrícolas.

Com isso, concluímos que essa lógica produtiva, baseada em um modelo

técnico, semi-empresarial, e subordinado a lógica do agronegócio, reduziu a

autonomia e implicou diretamente na reprodução e na materialização do modo de

vida tradicional dos homens e mulheres que vivem do e no campo sergipano.

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