a evolução das espécies-da natureza ao liberalismo econômico

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  • 7/30/2019 A evoluo das espcies-da Natureza ao liberalismo econmico

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    A evoluo das espcies: da Natureza ao liberalismo econmico

    Gildo Magalhes

    Prof. Associado, Livre-Docente em Histria da CinciaDepartamento de Histria,

    FFLCH/USP

    Resumo: a influncia de Charles Darwin ultrapassa as fronteiras da biologia, ou at mesmo

    das cincias como um todo. De fato, sua teoria da evoluo por meio da seleo natural ganhou os

    campos da sociologia, antropologia, economia e muitas outras reas de conhecimento. Nesse

    amplo contexto, o darwinismo a partir da sua verso dita sinttica, em que foi complementado por

    contribuies de bilogos do sculo XX, se tornou to paradigmtico que suas bases so aceitas

    como verdades bvias e indiscutveis, sob pena de a sua contestao levar ao ridculo. No entanto,essa teoria s plenamente compreensvel luz da comparao das suas idias com as

    contemporneas na Gr-Bretanha de Darwin, especialmente o liberalismo econmico. Um exame

    crtico das suas fundaes histricas e ideolgicas mostra uma face que est longe de ser aceitvel.

    Por outro lado, a confrontao com o criacionismo religioso se revela um falso dilema, pois os

    problemas mais srios do darwinismo esto do lado cientfico. Surge ento a pergunta: estaramos

    diante de uma teoria adequada aos fatos, porm baseada em noes contestveis, ou ser o

    darwinismo uma teoria destinada a ser ultrapassada como explicao evolucionista? Neste caso, a

    busca de outros paradigmas, alm de reabrir questes que a maioria dos bilogos tem evitado h

    mais de um sculo, representar um choque tambm para todos os que se apoiaram no darwinismo

    para justificar seus modelos e concluses.

    Palavras-chave: evolucionismo, liberalismo, paradigma

    Abstract:Charles Darwins influence goes far beyond the frontiers of biology, or even the

    sciences. As a matter of fact, his evolution theory by means of natural selection has stretched

    throughout sociology, anthropology, economy and many other areas of knowledge. Within such

    ample contexts, Darwinism since the so called synthetic version, which was a complementation by

    20thCentury biologists, has become so paradigmatic that its bases are accepted as obvious and

    unchallengeable truths, and ridicule is brought upon those who dare disputing it. However, this

    theory is fully understandable only under the light of comparing his ideas with contemporary ones

    in Darwins Great Britain, especially economic liberalism. A critical review of its historical and

    ideological foundations shows a face that is far from being acceptable. On the other hand, its

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    confrontation with religious creationism turns out to be a false dilemma, for the most serious

    problems of Darwinism lie on the scientific side. A question arises then: do we have a theory that

    is adequate to facts, though based on questionable grounds, or is Darwinism bound to be outdated

    as an evolutionist explanation? In the latter case, the search for other paradigms, besides

    reopening questions that most biologists have avoided for over a century, will represent a blow

    also to those who have counted on Darwinism to justify their models and conclusions.

    Keywords: evolution theories, liberalism, paradigm

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    A fair result can be obtained only by fully stating and balancing

    the facts and arguments on both sides of each question1

    Charles Darwin

    1. Introduo

    O darwinismo, nas diversas formulaes que recebeu desde sua proposio inicial por

    Charles Darwin emA Origem das Espcies2, seja a do neodarwinismo, seja a da verso sinttica,

    ou ainda outras, uma teoria amplamente aceita por bilogos e no-bilogos. Dito da maneira

    mais simples, a evoluo por seleo natural de caractersticas geradas pelo surgimento de

    mutaes ao acaso (das quais se originam variaes com relao a um conjunto denominado

    espcie) e subseqente seleo de algumas dessas mutaes pela ao do meio exterior

    (geralmente chamado de ambiente, ou mais genericamente de natureza), aplicada a tais seresvivos3. O resultado final se expressa na condio de indivduos com tais mutaes serem mais

    adaptados s hostilidades do ambiente e conseguirem ter mais descendentes do que as variaes

    menos adaptadas.

    Saudado como um pilar da cincia contempornea, ocorre no entanto que um exame das

    bases e aplicaes do darwinismo revela um paradigma que vem sendo bastante questionado desde

    sua apresentao4. Trata-se de uma revoluo cientfica cuja histria, na verdade pouco

    conhecida, em cerca de cento e cinqenta anos de permanente crise, mas to ferrenhamente

    defendida pela comunidade cientfica, que se torna difcil contest-la, sem o perigo de descrdito

    imediato, e quem o faz corre o risco de ser considerado no-cientfico ou irremediavelmente

    obsoleto. Seus defensores naturalmente no tm dvida de que uma teoria cientfica bem

    sucedida, e, apesar disso, se esmiuado, o darwinismo se parece bem mais com um dogma. certo

    que a teoria vem conseguindo enfrentar vrias crticas com aparente satisfao, mas acaba sendo

    1 Um resultado justo s pode ser obtido a partir da citao completa e equilibrada dos fatos e argumentosdos dois lados de uma questo Charles Darwin. Uma verso anterior e resumida do presente texto foiapresentada na 5 Semana Temtica de Biologia da USP em 2002. O autor agradece o parecerista

    annimo daRevista de Histria Comparada pelas sugestes dadas.2 A primeira edio de 1859 e se lhe seguiram mais cinco , at 1872, sendo a alterao mais significativaa da quinta edio (1869). Alm de edies feitas em Portugal, no Brasil encontram-se disponveistradues em textos publicados pelas editoras Ediouro, Hemus, Itatiaia, Jorge Zahar, Madras e MartinClaret.3 Mais rigorosamente falando, os bilogos darwinistas diriam que no existe uma relao de causa e efeitoligando as variaes do gentipo com os desafios impostos pelo meio, e portanto essas variaes parecemse dar ao acaso.4 Vide por exemplo Barbieri (1987), Behe (1997), Blanc (1994), Chauvin (1999), Hugunin (1995),Jablonka e Lamb (2005), Lvtrup (1987) Steele et al. (1998) este, em especial, apresenta evidnciasempricas desse questionamento e Wells (2000 ).

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    remendada moda dos epiciclos, apesar da complicao que representam os artifcios destinados a

    salvar essa teoria. Mais importante: trata-se de uma teoria cujos pressupostos filosficos e

    ideolgicos no so suficientemente explicitados para todos.

    O debate em torno da questo existe, mas ele acaba sendo desfigurado como uma luta da

    cincia (o darwinismo) contra a ignorncia, e seus verdadeiros fundamentos acabam ficando meioescondidos de nossos alunos de cincias biolgicas, ou mesmo de histria das cincias, devido

    ao propsito de se torn-los antes de tudo adeptos dos paradigmas vigentes, sem lhes dar

    oportunidade para explorarem as possibilidades contrrias a tais paradigmas. A omisso a regra

    geral, apesar de que muitos dos adeptos do darwinismo sabem que existem outros pontos de vista,

    e negam-se a falar nisto ou a escrever sobre as dissenses, a no ser para ridiculariz-las. o que

    temos por exemplo numa publicao recente (Ridley, 1997), em que so apresentados 64 trabalhos

    sobre evoluo, muitos deles de clssicos dos sculos XIX e XX, sem incluir um s que fosse

    contrrio ao darwinismo.

    Um contra-exemplo da atualidade do debate, que raramente chega ao conhecimento pblico

    como aconteceu neste caso, o nmero especial de Les Cahiers de Science et Vie (1991),

    significativamente intitulado Darwin ou Lamarck, a Querela da Evoluo. Temos outra exceo

    no trabalho de mile Nol (1981), que selecionou nove cientistas de renome envolvidos com as

    biocincias, mas teve o cuidado de reunir tanto pessoas favorveis quanto contrrias ao

    darwinismo, havendo mesmo aquelas que declararam no ter muita certeza quanto posio mais

    correta5. No cotidiano, temos observado que um bom nmero de cientistas dessa rea preferem

    dizer que no lhes importa se a teoria est correta ou no, pois no dependem dela nos seus

    afazeres dirios. Evidentemente esta postura que se pretende pragmtica no satisfatria, pois

    todos encontramos no dia-a-dia aluses diretas ou indiretas de aplicaes do darwinismo em

    alguma de suas formas.

    Com o presente ensaio, objetiva-se rever sumariamente as posies em jogo no domnio da

    biologia, mas certamente esse escopo pode ser proveitosamente ampliado para incluir toda uma

    gama de aplicaes em outros campos da cultura, da economia antropologia, da epistemologia e

    da psicologia behaviorista literatura. Inicialmente, vamos rever alguns fatos mais conhecidos da

    biografia de Darwin.

    2. As contribuies de Darwin

    5 Muitos cientistas contrrios ao darwinismo so franceses, notavelmente como no caso de Grass (1973),mas a oposio no se explica como mera anglofobia, pois na Frana h tambm defensores radicais dodarwinismo como Jacques Monod e Franois Jacob. Por outro lado, h bilogos anti-darwinistas emoutros pases, como Edward Steele na Austrlia e Eva Jablonka em Israel.

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    Charles Darwin (1809 1882) nasceu perto de Shrewsbury em famlia inglesa de posses,

    com antecedentes notveis. Seu av paterno, Erasmus Darwin, foi um pensador que escreveu obra

    evolucionista influente poca, com uma teoria transformista que continha afinidades com a de

    outro evolucionista, o francs Jean-Baptiste Lamarck. Por parte de me, era neto de JosuahWedgewood, rico industrial da cermica que participou da chamada revoluo industrial na Gr -

    Bretanha, associando-se a James Watt e outros em aplicaes de mquinas a vapor para vrios

    empreendimentos 6.

    A biografia de Charles Darwin interessante, embora a maior parte do que se escreve a

    respeito seja laudatrio e pouco crtico (especialmente quando se trata de bigrafos britnicos),

    realando sempre seu lado de gnio (p. ex. Buican, 1990). Em trabalho recente, Desmond e

    Moore (2001) apresentam um enfoque mais interessante, examinando as razes sociais e culturais

    do biografado, porm mantendo o tom benevolente para com os tormentos pessoais e dilemasmorais de Darwin, especialmente sua relao com a religio. bem conhecida sua viagem pelo

    mundo a bordo do Beagle, em que fez anotaes sobre fauna, flora e geologia dos lugares

    visitados. Tambm se conhece sua amizade com Charles Lyell, um dos fundadores da moderna

    geologia e que tinha sido amigo j de seu av Erasmus. Sua vida confortvel proporcionada pelas

    rendas de uma boa herana lhe deram o tempo necessrio para se tornar um aplicado naturalista ,

    menos por formao do que por ser um amador dedicado, tendo resultado uma vasta e influente

    obra. A relao de trabalhos publicados por Darwin, a seguir, d uma idia de seu empenho e

    interesses, enquanto estudioso da Histria Natural.

    i) Remarks upon the Habits of the Genera Geospiza, Camarhynchus, Cactornis and

    Certhidea of Gould (Observaes sobre os Hbitos dos Gneros Geospiza, Camarhynchus,

    Cactornis e Certhidea de Gould - 1837)

    ii) On Certain Areas of Elevation and Subsidence in the Pacific and Indian Oceans, as

    Deduced from the Study of Coral Formations (Sobre Certas reas de Elevao e Depresso nos

    Oceanos Pacfico e ndico, como Deduzidos a partir do Estudo de Formaes de Coral - 1838)

    iii) Narrative of the Surveying Voyages of His Majestys Ships Adventure and Beagle,

    between the years 1826 and 1836, describing Their Examination of the Southern Shores of South

    6 Erasmus Darwin fez parte da Sociedade Lunar, organizao informal que desenvolveu conceitualmenteas aplicaes da cincia industrializao por meio da mquina a vapor e da construo de canais, e daqual participaram tambm Benjamin Franklin, Joseph Priestley e Matthew Boulton, alm dos j citadosJames Watt e Josuah Wedgewood (cf. Jenny Uglow, The lunar men. New York: Farrar, Straus andGiroux, 2002)

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    America, and the BeaglesCircumnavigation of the Globe. Vol. III. Journal and Remarks, 1832-

    1836 (Narrativa das Viagens de Levantamento dos Navios de Sua MajestadeAdventure eBeagle,

    entre os anos de 1826 e 1836, descrevendo seu Exame das Costas Meridionais da Amrica do Sul,

    e a Circunavegao do Globo peloBeagle. Vol. III. Dirio e Observaes, 1832-1836 - 1839)

    iv) Humble-Bees (Mamangabas - 1841)v) The Structure and Distribution of Coral Reefs (A Estrutura e Distribuio de Recifes

    de Coral - 1842)

    vi) Geological Observations on South America (Observaes Geolgicas na Amrica do

    Sul - 1846)

    vii) Does Salt-water Kill Seeds? (A gua Salgada Mata Sementes? - 1855)

    viii) Productiveness of Foreign Seed (Produtividade de Semente Estrangeira - 1857)

    ix) On the Tendency of Species to Form Varieties; and on the Perpetuation of Varieties

    and Species by Natural Means of Selection (Sobre a Tendncia das Espcies FormaremVariedades; e sobre a Perpetuao de Variedades e Espcies por Meios Naturais de Seleo -

    1858)

    x) On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of

    Favoured Races in the Struggle for Life (Sobre a Origem das Espcies por Meio de Seleo

    Natural, ou a Preservao de Raas Favorecidas na Luta pela Vida -1859)

    xi) Natural Selection (Seleo Natural - 1860)

    xii) Fertilisation of Orchids by Insect Agency (Fertilizao de Orqudeas por Insetos

    Agentes - 1860)

    xiii) On the Various Contrivances by Which British and Foreign Orchids are Fertilised by

    Insects, and on the Good Effects of Intercrossing (Sobre os Vrios Estratagemas pelos quais

    Orqudeas Britnicas e Estrangeiras so Fertilizadas por Insetos, e sobre os Bons Efeitos do

    Entrecruzamento - 1862)

    xiv) Variations Effected by Cultivation (Variaes Efetuadas por Cultivo - 1862)

    xv) Recollections of Professor Henslow (Recordaes do Professor Henslow -1862)

    xvi) The Variation of Animals and Plants under Domestication (A Variao de Animais e

    Plantas sob Domesticao - 1868)

    xvii) Origin of Species (Origem das Espcies a quinta edio, retrabalhada - 1869)

    xviii) The Descent of Man and Selection in Relation to Sex ( A Descendncia do Homem

    e Seleo em Relao ao Sexo - 1871)

    xix) Pangenesis (Pangnese - 1871)

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    xx) The Expression of the Emotions in Man and Animals (A Expresso das Emoes no

    Homem e nos Animais - 1872)

    xxi) Perceptions in the Lower Animals (Percepes nos Animais Inferiores 1873)

    xxii) Flowers of the Primrose Destroyed by Birds (Flores de Primavera Destrudas por

    Pssaros - 1874)xxiii) Insectivorous Plants (Plantas Insetvoras - 1875)

    xxiv) The Effects of Cross and Self-Fertilisationin the Vegetable Kingdom (Os Efeitos de

    Fertilizao Cruzada e Auto-fertilizao no Reino Vegetal - 1876)

    xxv) Sexual Selection in Relation to Monkeys (Seleo Sexual em Relao a Macacos -

    1876)

    xxvi) The Different Forms of Flowers on Plants of the Same Species (As Diferentes

    Formas de Flores em Plantas da Mesma Espcie - 1877)

    xxvii) A Biographical Sketch of an Infant (Um Esboo Biogrfico duma Criana -1877)xxviii)Erasmus Darwin (1879)

    xxix) The Power of Movement in Plants (O Poder do Movimento em Plantas - 1880)

    xxx) The Formation of Vegetable Mould, through the Action of Worms, with Observations

    on Their Habits (A Formao de Terra Vegetal, por meio da Ao de Minhocas, com

    Observaes de seus Hbitos - 1881)

    Alm desses trabalhos de zoologia, botnica, geologia e biografia, postumamente foram

    editadas sua autobiografia e numerosa correspondncia, bem como parte dos seus dirios, restando

    ainda por publicar estes na ntegra.

    Tambm famoso o episdio da prioridade na publicao da sua teoria evolutiva. Em termos

    do que hoje consagrado na prtica cientfica, a prioridade seria de Alfred Wallace, mas Lyell

    orientou Darwin a publicar sua prpria teoria juntamente com o manuscrito que este recebera de

    Wallace, apesar de as duas teorias conterem tambm pontos de diferena. A explicao usual

    acomoda esses embaraos dizendo que se trata de um caso tpico de descobertas simultneas e

    independentes. Na verdade, a historiografia oficial desses eventos, escrita por adeptos do

    darwinismo, comea a sofrer contestaes, pois h uma discrepncia entre a verso preliminar de

    Darwin para o famoso captulo IV deA Origem das Espcies e a verso final da publicao (1859),

    que estranhamente coincide muito bem com o manuscrito de Wallace. Desde a dcada de 1980 foi

    levantada a hiptese de que Darwin teria inserido o texto de Wallace no seu, naturalmente

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    omitindo o nome de Wallace, podendo mesmo Lyell ter destrudo as provas materiais desse plgio

    (Ferreira, 1990, pp. 59-63)7.

    3. Bases ideolgicas do darwinismo

    A prpria disputa por uma prioridade na publicao pareceria algo forada, uma vez que

    havia vrias outras teorias evolutivas j propostas, alm das de Darwin e Wallace, algumas com

    bastante superposio a estas. O que fez com que a de Darwin fosse to amplamente divulgada? A

    resposta est na ideologia na qual se apoiava implicitamente Darwin: no laissez-faire do

    liberalismo econmico (que nada tem a ver com os princpios do liberalismo como doutrina da

    liberdade individual, consagrados como direitos universais) como defendido por Adam Smith em

    A Riqueza das Naes (1776). Toda uma tradio da filosofia empiricista britnica que desgua em

    Adam Smith, ao prever a regulao do conjunto da economia pela mo invisvel do mercado, secasava bem tambm com a teoria econmica de Thomas Malthus. Este, em seu ensaio sobre as

    populaes (publicado em 1798 e confessamente livro de cabeceira de Darwin na viagem com o

    Beagle), propunha que a demografia humana cresceria geometricamente, enquanto que os recursos

    cresceriam menos, de forma aritmtica.

    So conhecidas as solues de Malthus para a superpopulao resultante desse suposto

    desencontro: epidemias, guerras, a fome e outras catstrofes se incumbiriam de estabelecer um

    equilbrio, o que se casava bem com os ensinamentos de Adam Smith sobre a auto-regulao do

    mercado. Certamente no auge do imperialismo e colonialismo britnico, uma teoria evolutiva que

    defendia aspectos como uma inevitvel luta pela vida, espcies mais favorecidas e uma seleo em

    que o acaso desempenha um papel capital, tinha condies de atrair a seu favor a opinio pblica

    da sociedade vitoriana, que se enxergou justificada pela cincia e ajudou a promover

    ideologicamente a teoria de Darwin8.

    O darwinismo legitima assim a desigualdade das classes e das raas, bem como aceita a luta,

    e por extenso as guerras, como fator crucial para a civilizao, pois determina quem o mais apto

    (Ruffi, 1988)9. Esta uma tendncia peculiar e coerente com toda a corrente filosfica do

    empiricismo britnico, como por exemplo no conceito de sociedade apresentado por Thomas

    7 Se confirmado, este teria sido um episdio digno da sobrevivncia do mais apto!...8 Ainda que a seleo natural atue em indivduos, e no diretamente em espcies, o favorecimento deindivduos com determinadas caractersticas que redunda na seleo de uma espcie, que assim seconsolida, ou surge individualizada.9 Muitos defensores do darwinismo insistem que esses aspectos no so devidos a Darwin, mas sim aalguns de seus seguidores, invocando o horror que Darwin diz ter sentido ao conhecer a escravido noBrasil, em sua viagem com oBeagle. Independentemente de seus sentimentos, Darwin teve o destemor dedefender a supremacia do colonizador branco na frica, em The Descent of Man.

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    Hobbes, que concluiu pela afirmao de que "o homem o lobo do homem". O neo- liberalismo

    de hoje, especialmente depois da era Thatcher, e que chegou mais tarde ao poder no Brasil pelas

    mos principalmente dos governos de Collor e Fernando Henrique Cardoso, admite os mesmos

    princpios que os similares do liberalismo da era vitoriana, apenas intensificados pela atuao

    global do capital.A teoria malthusiana igualmente a base ideolgica de movimentos mais atuais, como o que

    propunha o crescimento nulo da populao na dcada de 1970, embora tenha havido um

    abrandamento do radicalismo dessa proposta, que deu lugar quela outra aparentemente mais

    suave, a do crescimento sustentvel. E na biologia, o espectro da ameaa do crescimento

    populacional na sombra de Malthus tem sido a justificativa de aes ambientalistas de cunho

    ecolgico conservador, que defendem o darwinismo ferozmente (como em Ehrlich, 1993). Essas

    propostas se baseiam em inferies estatsticas to duvidosas que, no obstante sua aparente

    convico, so passveis de contestao tambm matematicamente, pois se baseiam em pseudo-perigos como o aumento populacional, o super-aquecimento do planeta, o fim da biodiversidade e

    a escassez de alimentos e de energia, teses que carecem de fundamentao cientfica como j o

    demonstrou recentemente um ecologista arrependido e ex-militante do movimento Greenpeace

    (Lomborg, 2001)10.

    De fato, as anlises estatsticas de Lomborg demonstram que, pelo contrrio, a crescente

    urbanizao tende a minorar os problemas econmicos da sociedade, e que a Terra ainda tem

    muito potencial para crescimento demogrfico e possibilidades imensas de alimentar

    adequadamente essa populao. Historicamente as pessoas da atualidade esto sendo melhor

    alimentadas do que antigamente, mas o espectro da fome existe devido a um problema distributivo,

    ou seja poltico, e no tcnico ou de falta de alimentos. A sade e a expectativa de vida s tm

    aumentado, at mesmo nos pases subdesenvolvidos. Claro que necessrio cuidar nacional e

    internacionalmente do referido problema da distribuio de bens e riquezas, mas a deciso de fazer

    as economias crescerem e acelerarem cada vez mais tambm vital para se resolver o problema.

    Aprofundar a industrializao a melhor alternativa para todos e de todos os pontos de vista,

    apesar do peso da ideologia anti-industrialista que se associou ao mito de sociedade ps-

    industrial. A industrializao pode ajudar inclusive a diminuir a concentrao de poluentes no ar;

    10 Lomborg foi imediatamente bombardeado pela crtica de boa parte do establishment cientfico,inclusive pelos redatores de Scientific Americanque procuraram desqualific-lo de todas as maneiras. Noentanto, outros autores tm apontado as distores da questo ecolgica quando transplantada para oecologismo, que se torna um discurso ideolgico. Como exemplos, cito a leitura interessante que ArthurHerman faz do ecologismo enquanto manifestao de tendncia pessimista na historiografia (A idia dedecadncia da Histria Ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1999). Cf. tambm, de Pierre Alphandry etal. O equvoco ecolgico (So Paulo: Brasiliense, 1992), de Elaine Dewar, Cloak of green (Toronto:Lorimer, 1994), de Lorenzo Carrasco et al.Mfia verde (Rio de Janeiro: MSIa, 2001).

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    em particular, j foi demonstrado que a chuva cida no est correlacionada com a emisso agentes

    nocivos como NOx ou SO2 (Lomborg, 2001).

    Recuperando uma agenda perdida na pregao romntica por um planeta mais limpo,

    insistimos que a industrializao intensificada tambm o nico remdio adequado para

    problemas como a poluio das guas e o processamento do lixo, naturalmente agravados pelaindustrializao. O uso de pesticidas (tanto industriais quanto naturais) no pode ser descartado

    para a produo de alimentos e eliminao da fome, tendo baixssima correlao com doenas.

    Estudos mais desapaixonados tambm questionam que a variao do tamanho do buraco de oznio

    seja uma funo de efeitos de emisso causados pela industrializao, pois existiu antes da era

    idustrial (Maduro, 1990). Mesmo o aquecimento global tem sido contrariado por diversos

    especialistas em meteorologia, que em verdade apontam para a hiptese contrria, a de estarmos

    caminhando para uma nova era glacial (Hecht, 1994). O desflorestamento do planeta certamente

    um problema, mas localizado e a rea cortada pode ser reflorestada, at mesmo se recuperandoparte da diversidade vegetal e animal. Alis, a propalada reduo da biodiversidade em 40.000

    espcies por ano (mesmo no havendo consenso entre os bilogos que permita saber exatamente o

    que uma espcie) se revelou falsa, pois est mais perto de 200 espcies por ano e a extino

    pode ser desacelerada (Lomborg, 2001). gua e matrias-primas, inclusive os combustveis no

    do sinal de exausto e novas tecnologias tm tornado possvel tanto seu reaproveitamento quanto

    a descoberta de mais fontes energticas. Em contrapartida, todas as propostas ambientalistas

    radicais tm um fundo na matriz malthusiano-darwinista.

    Os antecedentes econmicos e ideolgicos citados fizeram com que a obra de Darwin fosse

    muito bem divulgada pelos seus incentivadores, inclusive pela sempre citada contribuio do

    confronto pblico entre seu arquidefensor Thomas Huxley e o bispo criacionista Sam Wilberforce.

    Com o alarde e sensacionalismo criados em torno do episdio, logo a idia de Darwin chegou a

    outros pases. A propsito daquele debate, ele continha algumas sutilezas que a sua apresentao

    caricatural no deixa perceber, e algumas questes por ele levantadas continuaram sendo

    disputadas at hoje (Hellman, 1999). O grande impulso para a popularizao das idias darwinistas

    foi dado pela adeso de Herbert Spencer, na Inglaterra, e de Ernst Haeckel, na Alemanha, dois

    escritores muito populares e com afinidades ideolgicas com a teoria de Darwin. No Brasil, o

    darwinismo teria chegado j na dcada de 1860, atravs de tradues francesas das obras de

    Darwin, Spencer, Haeckel e outros. Sua entrada nos meios acadmicos brasileiros se deu com o

    mdico Miranda de Azevedo em 1874 (Collichio, 1988), tendo-se divulgado pelo uso dos

    conceitos de evoluo darwinista to marcantes nas obras de pensadores como Slvio Romero e

    Tobias Barreto.

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    Por outro lado, houve srias objees a que nem Darwin nem seus patrocinadores souberam

    responder na poca, tais como a idade da Terra e a diluio pouco a pouco das caractersticas dos

    progenitores, e portanto das variaes, ao longo das geraes (o chamado paradoxo de Jenkin).

    Esta ltima dificuldade precisou esperar pela integrao do mendelismo ao darwinismo, o que se

    deu com a teoria sinttica, a partir dos anos 1920. Deve-se notar porm o ataque plenamentecontemporneo a Darwin, de origem mais filosfica e especulativa, feito pelo ingls Samuel

    Butler, que publicou j em 1863 seu artigo Darwin entre as Mquinas. A este se seguiu seu

    romance Erewhon, uma vigorosa stira contra a hipocrisia moral vitoriana, na qual as mquinas

    seguem um esquema evolutivo darwiniano, para desnudar o que eram justificativas de domnio

    das classes abastadas sobre as mais pobres. O tema de Butler se presta admiravelmente discusso

    da possibilidade de inteligncia artificial - lembrando porm que a inteligncia humana um

    desafio no respondido pelo darwinismo (Blanc, 1994). As idias de Butler foram modernamente

    retomadas em conexo sobre a discusso de mquinas que fazem outras mquinas, juntamente com

    uma outra hiptese, a de que o lamarckismo explicaria o mecanismo da evoluo nos primrdios

    da vida (Dyson, 1998), sendo gradativamente substitudo pelo mecanismo da seleo natural

    darwiniana ao longo do tempo.

    A teoria darwinista da evoluo , para seus atuais adeptos extremados, to poderosa que

    mesmo para eventuais formas de vida aliengena, eles acreditam que esta ter se desenvolvido

    forosamente de acordo com os princpios desta teoria (Dawkins, 1998). Os argumentos contrrios

    ao darwinismo, quando expostos por darwinistas ortodoxos como Ernest Mayr ou Richard

    Dawkins, so sofismas que admitem o darwinismo como ponto de partida - para chegarem ao

    mesmo ponto de onde partiram. Por outro lado, embora seja uma aparente dissidncia, como se

    ver adiante, o chamado "saltacionismo" procura no fundo defender a teoria darwinista e atualiz-

    la, ainda que s custas de seu axioma de transformaes lentas e graduais. Os seguidores da linha

    saltacionista afirmam que a evoluo materialista, no finalista e no admite uma noo de

    progresso (Gould, 1979). Mesmo havendo subscrito a hiptese contrria da teoria sinttica, de

    que a seleo natural no o nico mecanismo determinante da evoluo, ao longo de seus livros

    Stephen Jay Gould lembra que o prprio Darwin tambm falava de outros mecanismos alm da

    seleo natural e Gould acaba fazendo concesses para nada mudar de fundamental, pois discorda

    veementemente de que o darwinismo esteja em crise ou em vias de ser superado seus esforos

    so, pelo contrrio, para revigor-lo.

    Uma das aplicaes mais esdrxulas dos seguidores do darwinismo tem sido a da

    epistemologia cientfica. Segundo essa viso, filsofos das cincias bastante renomados, entre os

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    quais Karl Popper e David Hull, de maneiras e com alcances diferentes 11, teriam proposto que o

    prprio conhecimento avana por hipteses que so selecionadas por mecanismos anlogos ao da

    seleo natural: as idias evoluem, sendo selecionadas as mais aptas na luta por sua existncia

    (Ruiz e Ayala, 1998). Pode-se contra-argumentar notando que a histria das cincias mostra que,

    diferentemente da evoluo biolgica, h idias que vo e vm, dando-se o retorno e atualizao deuma idia muito tempo depois do seu abandono (como por exemplo a teoria do sistema planetrio

    heliocntrico de Aristarco e outros gregos, que s retorna aps o Renascimento). Julgamos que a

    epistemologia, enquanto estudo do processo geral do conhecimento depende de se exercer um

    dom, este sim resultado da evoluo biolgica e no da seleo natural, que a criatividade

    humana.

    4. O evolucionismo sem Darwin

    Pode-se indagar: mas h hoje em dia alguma teoria da evoluo sem Darwin? Comecemos

    lembrando que a idia de luta pela vida, com a sobrevivncia e sucesso dos mais aptos, bastante

    antiga, pois j se encontra no filsofo Lucrcio (98 54 a.C.), no seu longo poema De rerum

    natura, de cunho epicurista. A possibilidade de transformao s contudo veiculada com mais

    nfase aps a descoberta das clulas ao microscpio (Barbieri, 1987). A comprovao de que h

    microrganismos invisveis a olho nu durante o sculo XVII possibilitou uma idia de alterao

    histrica nas formas de vida, em que aumentavam sua complexidade e diversidade. No sculo

    XVIII foi estreitada a relao de paralelismo entre evoluo e desenvolvimento embrionrio, pois

    o embrio realiza a alterao de algo pequeno em seres diversificados e complexos; de fato, em

    1744 o cientista Albrecht von Haller introduziu a palavra evoluo para descrever o

    desenvolvimento do embrio (Gould, 1979). Sucederam-se ento vrias teorias propostas para a

    evoluo, antes da de Charles Darwin, inclusive a de seu av Erasmus Darwin.

    A primeira teoria da evoluo que se pode considerar completa foi a de Jean-Baptiste

    Lamarck, publicada em 1809, na Filosofia Zoolgica, baseada em trs grandes princpios. Segundo

    Barbieri (1987), tais princpios formam uma teoria correta da evoluo se destitudos das ltimas

    partes (indicadas em itlico, a seguir):

    a) A vida surgiu superfcie da Terra sob a forma de microrganismospor gerao

    espontnea;

    11 Cf. especialmente, de David Hull Science as a process. An evolutionary account of the socialand conceptual development of science (Chicago: University of Chicago, 1988) e de Karl Popper,Conhecimento objetivo (edio original de 1972; a traduo brasileira de 1975 ed. Itatiaia).

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    b) Os mecanismos alteraram-se e adaptaram-se ao ambiente, mediante a

    hereditariedade dos caracteres adquiridos;

    c) A complexidade dos organismos aumentou com o tempo, porque h neles uma

    tendncia intrnseca que os impele para nveis de organizao cada vez mais complexos.

    Segundo Bourguignon (1990), Lamarck apresentou quatro leis da vida de forma algodiferente em 1815, mas que se podem equiparar aos trs princpios acima, acrescidos de sua teoria

    da progresso biolgica.

    Minha hiptese a de que no preciso retirar nada das proposies lamarckianas, embora

    seus pormenores possam conter inmeros erros. Na primeira proposio, entenda-se por gerao

    espontnea no aquela destruda pelo argumento dos experimentos de Redi, Spallanzani e Pasteur,

    mas a formao primitiva de organismos replicantes como as bactrias, a partir por exemplo de

    cadeias de RNA. Neste caso, as origens da vida foram a partir da no-vida, ou seja uma gerao,

    sob determinadas condies, "espontnea".Para manter a segunda proposio de Lamarck, necessrio contrariar o dogma central da

    biologia molecular ps-Crick/Watson e admitir como que uma extenso do que ocorre na

    transcriptase reversa e que obrigasse a protena a agir sobre o RNA, que por sua vez agiria sobre o

    DNA como codificante, uma realimentao teoricamente possvel e que no vai contra nenhuma

    lei fsico-qumica conhecida. Vrios autores (como por exemplo Blanc, 1994; Bourguigon, 1990;

    Barbieri, 1987; Thullier, 1994) j apontaram que o prprio Darwin era um neo-lamarckiano, pois

    subscrevia inteiramente a tese de Lamarck de que o uso e desuso de rgos, enfim de que alguns

    novos hbitos ensejados por mudanas no meio, produzem efeitos hereditrios ao longo de

    numerosas geraes. Para Darwin, so apenas aqueles caracteres que no so herdados os que

    esto sujeitos seleo natural (Bourguigon, 1990). As teses lamarckistas a esse respeito foram

    conservadas at por renomados bilogos mais contemporneos, como o francs Pierre Grass

    (1973). Hoje esta hiptese volta a ser examinada, como por exemplo nos casos da resistncia

    adquirida pelos mosquitos aos pesticidas organofosforados (Bourguigon, 1990, p 140), em

    mutaes bacterianas ou ainda em anticorpos de coelhos, como nas experincias de Steele (1998) e

    Cairns (Chauvin, 1999).

    Na terceira proposio lamarckiana, encontramos um ponto de vista defendido at por

    numerosos darwinistas ortodoxos, como Thomas e Julian Huxley, Mayr e Dawkins, embora

    rejeitada por darwinistas no-ortodoxos, como Stephen Jay Gould. Esse aspecto do lamarckismo

    talvez seja mais polmico ainda do que os anteriores, pois carrega em seu bojo a noo de

    progresso como paralela evoluo biolgica, e pelo qual o estgio mais perfeito conhecido seria

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    o homem. Na fsica, algo equivalente admitido pelas teorias antrpicas, em maior ou menor grau,

    conforme se aceite o chamado princpio antrpico forte ou fraco, respectivamente.

    Muitas pessoas pensam erroneamente que criticar a teoria darwiniana da evoluo significa

    defender o criacionismo religioso na sua forma fundamentalista, isto , a que toma literalmente a

    interpretao das escrituras sagradas (no caso majoritrio a Bblia, especialmente no livro deGnesis). verdade que esta oposio se torna forte quando conceitos teolgicos simplistas so

    assumidos, mas ela se esvai na medida em que se examinam conceitos mais sofisticados de

    Divindade, como os do paleontlogo e filsofo Teilhard de Chardin. Isto de qualquer maneira um

    falso debate, pois seus termos se situam em esferas diferentes, s que muitas vezes essa polmica

    tem sido habilmente utilizada para opor um dogmatismo a outro. possvel propor uma teoria da

    evoluo sem a seleo natural como mecanismo principal, acreditando ao mesmo tempo que a

    idade do Universo seja de muitos bilhes de anos e que todos organismos que conhecemos na

    Terra tenham um ou mais ancestrais comuns. Ou seja, h teorias evolutivas contrrias aodarwinismo que no so msticas assim como h darwinistas que tambm tm convices

    religiosas, o que mostra que artigos de f podem ser relativamente independentes de posies

    cientficas. Geralmente os meios de comunicao e divulgao cientfica, e mesmo os prprios

    crculos cientficos insistem porm em alimentar essa oposio, que no chega a penetrar no

    mago das questes realmente interessantes e relevantes.

    Lembramos ainda que h diversas outras teorias evolutivas propostas posteriormente de

    Darwin, que no examinaremos aqui. Dentre estas, podemse citar (de acordo com Bourguigon,

    1990): a viso de holognese do sculo XX (D. Rosa), a da pedomorfose e neotenia (W. Garstang,

    A. Vandel) e a da fenocpia (Jean Piaget). H ainda, de acordo com o mesmo autor uma srie de

    proposies relativas coerncia interna do ser vivo (Andr Pichot), flutuaes (Ilya Prigogine),

    catstrofes (Ren Thom), auto-organizao (Henri Atlan e Verena Winiwarter), reaes auto-

    catalticas que levam o sistema a sair da borda do caos (Stuart Kauffman) e outras que lanaram

    hipteses ainda no transformadas em teorias da evoluo, mas que parecem convergir para tal

    num futuro prximo.

    Seguindo uma indicao de Carol Hugunin (1995) destacaremos a seguir algumas

    fundamentaes apresentadas por Darwin em Sobre a Origem das Espcies porMeio de Seleo

    Natural, ou a Preservao de Raas Favorecidas na Luta pela Vida, e as contrastaremos com

    idias evolucionistas alternativas.

    5. Variaes ao acaso, selecionadas naturalmente pela maior descendncia

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    O acaso na teoria darwinista age como um pseudo igualador das oportunidades das diversas

    espcies ou variaes terem maior descendncia. Uma varivel, o tempo, se encarrega ento de

    fazer sobressair os indivduos mais adaptados a outra varivel, o ambiente, num processo que,

    como proposto, se d totalmente ao acaso. A isto se chama de processo natural de seleo, parafazer analogia com a seleo artificial feita de maneira determinista por criadores de pombos (e,

    incidentalmente, tambm praticada por Darwin), de gado ou milho.

    A seleo de mutaes produzidas ao acaso pode trazer uma certa facilidade de descrever

    determinadas evolues, especialmente uma vez que elas j se considerem ocorridas, mas de forma

    alguma consegue de per si explicar o fenmeno evolucionista. A probabilidade de uma nica

    molcula, como por exemplo a do albmen do ovo, ser produzida por acaso e pela ao trmica

    usual, supondo um meio constitudo por substncias convenientes e com 500 trilhes de vibraes

    por segundo (aproximadamente correspondendo velocidade da luz) de 2 x 10 -321, ou seja de10243 anos (Hugunin, 1995) e se estima que o Universo teria pouco mais de 1010 anos, resultando

    uma chance praticamente nula de a vida ocorrer por acaso. Resulta que seria preciso que o gen j

    tivesse a idia do conjunto a fabricar, antes de fabric-lo. este tambm o argumento contra o

    desenvolvimento do olho por acaso, a partir das reaes bioqumicas necessrias (Behe, 1997).

    Acontece que muitos evolucionistas desde os darwinianos de primeira hora, como Thomas

    Huxley, no aceitaram a seleo natural como sendo o nico fator importante na evoluo (Morris,

    2000). De toda maneira, um mecanismo (fora da seleo natural) cuja ao seria imprevisvel (j

    que intervm sempre o acaso) muito pouco til na cincia. Da se sugerir que a seleo feita em

    indivduos por contingncias externas no teria o poder de criar, mas s o de organizar as espcies

    (Chauvin, 1999).

    Indo mais alm no questionamento, pode-se indagar: o universo como um todo regido pelo

    acaso e entrpico (como nos modelos de Newton para a fsica, de Adam Smith para a economia

    poltica, ou de Darwin para a evoluo)? Ou neguentrpico e dependente duma geometria no-

    linear de espao-tempo que direciona os fenmenos dentro de si, num sentido de otimizao,

    verificado com um mnimo dispndio de energia? Neste caso, variaes ao acaso no resultaro em

    caminhos de mnima energia, caso se apliquem evoluo teoremas do clculo variacional e da

    estabilidade de sistemas.

    Acreditamos que foi por intuir essa dificuldade, e no por motivaes puramente de ordem

    tica ou filosfica que outros evolucionistas, como Lamarck, Haeckel, Dwight Dana, etc.,

    apontavam para a direcionalidade da evoluo. Se a finalidade de um rgo est dada para resolver

    um problema num dado ambiente, ento o ambiente pode ter influenciado direta ou indiretamente

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    seu desenvolvimento; caso se queira tratar isto pelo acaso, no mnimo se deveria usar uma

    estatstica do tipo de probabilidades condicionadas, que pode alterar em muito o clculo em

    relao ao puro acaso.

    Por outro lado, a crena de que tudo se trata de um clculo de probabilidades, em ltima

    instncia um apelo para o reducionismo biolgico. Muito pelo contrrio, porm, a vida no sereduz a fenmenos fsico-qumicos e as tentativas de diversos bilogos como Jacques Monod e

    Franois Jacob de tratar essa questo revelam um vis ideolgico para o mecanicismo. Isto se

    evidencia com a tentativa de decifrar o enigma vital contentando-se com um dado "positivo", hoje

    tido como o programa contido no genoma da espcie, e no buscando as causas do

    desenvolvimento desse tipo de dado, que antes um resultado do que uma causa (Atlan, 1992).

    Seria to ambicioso como querer que um computador se construsse a si mesmo, a partir de

    impulsos ao acaso que favorecessem uma construo mais eficaz e o computador fosse assim

    gerando seus prprios programas de construo.

    A falcia do genoma como plano de partida do organismo portanto conceitual, o que se

    verifica at mesmo quantitativamente: sua memria no conteria sequer o plano detalhado das

    sinapses cerebrais, com as suas 1014 conexes. O que o genoma contm so as instrues para se

    construir determinadas protenas, os dois tipos de RNA e o prprio DNA, alm de uma

    organizao hierrquica. Essa limitao justifica uma hiptese recente que busca complementar a

    explicao causal do genoma com a do seu meio, que uma clula (e mais corretamente um grupo

    de clulas), que possa dialogar com o DNA (Chauvin, 1999)12.

    Em vista das dificuldades inerentes apontadas nos modelos darwinistas, uma soluo

    alternativa a de considerar que h na natureza um processo de auto-organizao, prprio da

    termodinmica de sistemas abertos, e que propicie localmente uma diminuio da entropia. Uma

    verso aproximada disso aquela a que chegaram os tericos da termodinmica dos sistemas no-

    lineares, como Ilya Prigogine, considerando sistemas materiais complexos que se estruturam

    espontaneamente, de forma a minimizar a produo coletiva de entropia (Jacquard, 1988). A auto-

    organizao como mecanismo uma alternativa seleo natural. Naturalmente, pode-se

    questionar: como esse princpio aparece?

    A resposta deveria ser procurada na prpria estrutura do Universo, dentro do qual a vida

    um aspecto importante, mas no o nico. A origem e evoluo da vida podem ento ser

    consideradas em analogia com a origem e evoluo dos elementos qumicos na forma da tabela

    12 Penso que possveis interaes do genoma e do citoplasma no so explicadas pela seleo natural, eeste um campo propcio para a pesquisa biomolecular que deveria ser incentivado.

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    peridica, a partir de entidades como as chamadas partculas atmicas. Certamente a questo

    pode ser ainda refinada para a prpria fsica, em que a energia tende a se auto-organizar em

    pacotes que so as ditas partculas. A complexidade decorre da capacidade natural que tem a

    matria de se auto-organizar, capacidade esta entendida no como um mecanismo (pois seno

    poderia sofrer dos mesmos entraves que o mecanicismo darwinista), mas sim como um processopermanente, uma propriedade do Universo que provavelmente sempre interveio em tudo que

    existe.

    Faria ento parte da complexidade natural que molculas com certo peso molecular, como

    alguns tipos de RNA e mesmo peptdeos que estavam presentes quando a Terra era um planeta

    jovem, consigam se replicar (Morris, 2000). interessante assinalar aqui que todas as

    transformaes evolutivas so marcadas por quebras de simetria, observao para a qual Pasteur

    foi o primeiro a contribuir com descobertas fundamentais no seu trabalho sobre isomeria ptica no

    cido racmico, quando estudou o problema das doenas das uvas vinferas. A assimetria queengendra a complexidade, que por sua vez acarreta a tendncia evoluo.

    O Universo portanto, desde seus constituintes fundamentais at os fenmenos vitais poderia

    ser compreendido como resultante da aplicao de um princpio nico, que a auto-organizao,

    que leva inevitavelmente complexidade, por aplicao reiterada do princpio, como aconteceu

    com a criao da vida. Isso repe a questo da direcionalidade ao longo do tempo, que passa a

    existir de fato e no como uma abstrao fabricada a posteriori.

    Pelo contrrio, a falta de um princpio ordenador tem levado os darwinistas a esposarem

    noes de adaptacionismo em que se faz amplo uso de sofismas, pelos quais eles justificam as

    adaptaes pelas prprias necessidades de adaptao, conduzindo isto sim a um finalismo ingnuo

    (Chauvin, 1999). Esta deficincia do darwinismo s pode ser superada admitindo-se que as

    variaes sejam dirigidas a uma finalidade (teleologia), que no determinista, ou fixista, mas que

    deriva da mencionada tendncia universal complexificao.

    6. Diferenciao das espcies por variaes pequenas e graduais

    O darwinismo ortodoxo tem sido associado a variaes contnuas e lineares, de certa forma

    unidimensionais (que hoje diramos se darem ao nvel dos gens), mas nem Darwin nem os seus

    seguidores conseguiram realmente explicar a origem das espcies e alguns no aderiram idia de

    transies lentas e graduais, como por exemplo Thomas Huxley (Morris, 2000). Darwin, em A

    Origem das espcies (1859), nem sequer acreditava inteiramente no conceito de espcie, achando

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    que o que havia eram conjuntos de mutaes, as variedades que seriam definidas mais

    fortemente.

    Faz parte da problemtica da taxonomia e da evoluo que a variao e seleo sejam

    conceitos diferentes, mas muitos bilogos costumam englob-las num mesmo processo (Barbieri,

    1987; Chauvin, 1999). As diferentes vises dos bilogos mais atuais sobre o conceito de espcieindicam que a questo permanece largamente em aberto: as circunstncias da especiao ainda so

    um mistrio que a cincia tem dificuldade em resolver, tambm do ponto de vista bioqumico

    (Barbieri, 1987).

    As populaes possuem algum grau de variao fenotpica, com ou sem base gentica. Alm

    disso, toda espcie apresenta polimorfismo, sendo este uma manifestao da variao genotpica,

    de onde se conclui novamente que esse tipo de variao no pode ter sido o motor da evoluo mas

    apenas algo que influenciou sua ramificao em sub-grupos como as espcies (Chandebois, 1996).

    Pierre Grass vai mais alm, dizendo que o darwinismo se limita a variaes dentro de uma mesma

    espcie, e que nada tem a dizer sobre as linhas evolutivas maiores, isto , de gneros, famlias etc.

    (in Nol, 1981).

    Note-se tambm que a teoria darwinista de variaes graduais dificilmente explicaria o

    surgimento de divises bem acima da especiao, como a dos reinos vegetal e animal. No

    explicando a origem das espcies, tem-se mais uma forte razo para que a seleo natural no

    possa ser o mecanismo geral da evoluo, mas sim e quando muito, um mecanismo do equilbrio

    das populaes (Bourguigon, 1990).

    O fato que os registros fsseis no demonstram as alteraes graduais previstas, o que

    levou Stephen Jay Gould e Niles Eldredge a proporem na dcada de 1970 que as espcies esto

    normalmente em estase. Seria assim relativamente rara a evoluo, que se caracterizaria pelo

    aparecimento abrupto de uma espcie, o saltacionismo, ou evoluo pontuada, ou o

    aparecimento de grupos inteiros como no caso das aves, dos cordados, ou insetos. Gould chegou a

    ser chamado de marxista, por defender na biologia revolues ao invs de transies graduais13.

    Acusaes semelhantes, conquanto claramente infundadas, cercaram a comemorao do centsimo

    aniversrio da sede do Museu Britnico em 1981, quando darwinistas ortodoxos acusaram a nova

    exposio de fsseis de ser uma apologia da revoluo e estar de acordo com a Dialtica da

    Natureza, de Engels, devido apresentao de esquemas de classificao cladistas que, segundo

    13 No obstante o grau de desinformao que cerca o assunto, Gould nunca deixou de ser um ferrenhodarwinista, discordando apenas no detalhe de que as especiaes seriam de longa durao, para seremmais bruscas. O papel do acaso para Gould radicalmente parecido com o do darwinismo maiscomportado (cf. Gould, 2001).

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    tais crticos, apoiariam as transformaes descontnuas das espcies (Thuillier, 1981)14. A

    transformao abrupta j havia sido defendida por Cuvier em 1830, juntamente com sua outra

    objeo ao evolucionismo, a saber a existncia de filos, que no teriam ligao entre si hoje

    vemos as arqueobactrias como elementos comuns a toda vida, mas naquele tempo eram os filos as

    menores unidades de mesma base taxonmica e que poderiam funcionar como um tipo demximo divisor comum.

    Como referido atrs, a hiptese de seleo natural descreve um mecanismo que ajuda a

    conservar espcies (variaes) existentes e no a criar novas espcies. A alegao de bilogos de

    que j se constatou em tempos relativamente muito curtos a criao in natura de espcies vegetais

    e animais contestada por alguns outros cientistas. Casos clssicos desta suposta evidncia da

    seleo natural em ao direta (e h relativamente poucos), como o da mariposa da btula tm sido

    objeto de muitas divergncias. As conhecidas experincias de Kettlewell a este respeito com uma

    espcie de mariposa que se torna negra nas zonas industriais, confundindo-se com o tronco cobertode fuligem das btulas, no seriam uma evidncia da seleo natural em marcha, j que tal

    mariposa nunca pousa nos troncos das btulas, mas sim sob as folhas dos ramos; tampouco as

    experincias com drosfilas aladas e pteras de Teissier conseguiram demonstrar a evoluo

    natural, pois parecem ter sido eivadas de equvocos (Chauvin, 1999).

    Em termos de biologia molecular, o darwinismo se defronta com este problema: como passar

    da microevoluo macroevoluo? H neste campo dificuldades atuais em querer usar a seleo

    natural para explicar a vida e que foram de certa forma antecipadas pelo prprio Darwin, quando

    este se deparou com problemas em torno da evoluo de um rgo complexo (cf. suas obras

    Origem das espcies eA Fecundao das Orqudeas). J referimos atrs o exemplo clssico do

    olho, tambm levantado por Darwin e que vai passando pelas reflexes de vrios filsofos como

    Bergson no incio do sculo XX at chegar nas objees de bioqumicos atuais (Behe, 1997)15.

    Voltamos por essa via ao ponto relevante j mencionado, de que o darwinismo moderno v

    no gen uma espcie de comando (reducionista), mas mesmo que um determinado gen traduza um

    nico comando que seja para fabricar uma protena especfica, esta uma concepo muito

    simplificadora da biologia pois no explica porque as coisas so assim (Schtzenberger, 1996).

    Ser que o material gentico tem outros papis alm de simplesmente transmitir o cdigo

    gentico? E como poderia haver gens independentes, que decidissem o que fazer, sem uma

    participao interrelacionada dos outros gens?

    14 A cladstica na verdade no anti-darwinista: assim como assinalado na nota anterior, o saltacionismopode ser perfeitamente darwinista, conforme o caso de Gould o demonstra.15 As tentativas de bilogos como Richard Dawkins em dar conta do fenmeno da evoluo gradativa dergos complexos foram recusadas por Behe com o argumento de serem do tipopost hoc.

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    A viso mecanicista do homem como mquina de transmisso de gens um ponto

    fundamental para justificar teorias da sociobiologia, denunciadas no somente por cientistas

    sociais mas tambm por bilogos crticos (como por exemplo: Blanc, 1994; Thuillier, 1994;

    Lewontin, 1993) como no cientficas e sim novas formas da ideologia do eugenismo, movimento

    fundado pelo primo de Darwin, Francis Galton, e disseminado pelo filho de Darwin, Leonard. Aeugenia se propagou rapidamente, fazendo parte de vrias ideologias mdicas e de sade pblica

    da primeira metade do sculo XX alm da sua conhecida influncia em movimentos racistas e

    fascistas, como o nazismo16. Associado a este lado existe tambm todo um terreno de pseudo-

    cincias, como a frenologia e as tipologias criminosas de Lombroso (que foi paradoxalmente uma

    pessoa filiada ao socialismo). O Brasil ainda tem sociedades eugnicas e a eugenia est presente

    at hoje em alguns pontos do sistema educacional brasileiro (Bizzo, 1998).

    Nesta manifestao extremada do darwinismo (por alguns chamada de ultradarwinismo)

    que a eugenia, admite-se a existncia de um tipo gentico uniforme. Ocorre porm que aspesquisas mostraram que o que h uma vasta diversidade gentica entre as populaes para uma

    dada espcie. Concluses a respeito de tal diversidade levaram proposio da teoria do

    neutralismo das variaes, como no trabalho feito por Motoo Kimura: a grande maioria dos alelos

    seria neutra do ponto de vista da seleo natural. O polimorfismo, admitido quando pelo menos 2%

    dos indivduos so heterozigotos em relao a um determinado carter das populaes, enorme:

    pelo menos 15% dos caracteres de um indivduo so heterozigotos (Jaquard, 1988). Assim, Kimura

    chegou concluso de que a maior parte dos gens neutra do ponto de vista da seleo natural.

    Esta soluo contudo mais darwiniana do que parece, por apoiar ainda mais o acaso: a

    substituio de um alelo no funcional (que a maioria dos casos, como visto) por outro devida

    ao acaso. O darwinismo retorna por esta outra via do acaso e reforado tambm porque se

    preserva o recurso seleo natural, desta vez para a parte reconhecidamente funcional dos gens.

    Observamos que isto converge coerentemente de novo com a sociobiologia, quando esta

    aplica a teoria da seleo natural aos comportamentos, de forma que exista uma natureza

    humana geneticamente programada. Desta vez, a j citada teoria da neutralidade refora a base

    para bilogos como Ernst Mayr recusarem a igualdade entre os seres humanos, j que

    geneticamente sempre h variaes produzidas continuamente, de forma aleatria e sem

    compromisso com a seleo. Concorrendo para uma viso sociobiolgica encontra-se a chamada

    16Naturalmente pesquisas feitas em nome da eugenia e do higienismo podem se revelar como tendo valorcientfico, pois investigaram problemas reais, assim como no caso da sociobiologia o que no nos deveimpedir de questionar seus fundamentos cientficos e ideolgicos, especialmente quando est em jogo ofenmeno humano.

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    psicologia evolucionria, que tambm procura demonstrar que muitos dos comportamentos

    humanos tm fundamentao gentica.

    A sociobiologia tem faces que parecem boazinhas, como a da defesa darwinista do

    altrusmo animal, e a do aprovisionamento (foraging) timo, que fazem generalizaes de

    comportamentos animais para o humano. Na verdade, sem falar na questionabilidade dos dadosquantitativos levantados por estes argumentos, esses comportamentos encontram outras

    explicaes dadas pelos bilogos que no o darwinismo, e que so de ordem etolgica e

    fisiolgica. Dentre as teses sociobiolgicas com tal fundamentao h algumas que caminham

    diretamente para conceitos de eugenia, quando aplicadas espcie humana, como o investimento

    parental, e outras que no caminham para lugar algum, como a coevoluo, presumida como

    explicao do parasitismo e mimetismo (Chauvin, 1999).

    Estudos de embriologia apresentam resultados embaraosos para a diferenciao das espcies

    no darwinismo, desde a chamada lei de Haeckel (com a clebre afirmao de que a ontogneserecapitula a filognese algo nunca desmentido categoricamente, mas de que no se sabe o como e

    porqu), at os resultados surpreendentes da radiao mitogentica observada por Alexander

    Gurvitch, comprovando que h uma forma de a clula se comunicar com o meio (Voeikov,

    1999).

    Para explicar tais resultados, acreditamos ser possvel usar a hiptese referida atrs, de que a

    receita do desenvolvimento embrionrio no est escrita no DNA e sim no citoplasma da clula

    (Chandebois, 1996). Isto se daria de forma que o surgimento de tecidos e rgos obedea a um

    plano global e simbitico de complexidade, com funes desencadeadas internamente clula pela

    ao do seu entorno. interessante que isto recoloca em discusso uma teoria epigentica da

    evoluo, desta vez de forma mais moderna do que a epigenia em Maupertuis ou Needham no

    sculo XVIII. Nesse tipo de teoria da evoluo, teramos no citoplasma a memria da espcie; uma

    nova espcie surgiria ento quando as modificaes do fundo citoplasmtico repercutissem no

    genoma aps a fecundao do ovo, atingindo assim os cromossomas paterno e materno de um

    mesmo par (Chandebois, 1996, p. 216). Ora isto representa a possibilidade de herana de

    caracteres adquiridos, agora traduzvel em linguagem da biologia molecular, ponto a que

    voltaremos mais frente.

    De toda forma, o saltacionismo, ao menos aquele proposto por Gould e Eldredge, que na

    verdade retoma uma concepo mais antiga de Richard Goldschmidt (1940), tambm uma forma

    de darwinismo, que se v porm em dificuldades para explicar as macromutaes a partir da

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    biologia molecular17. O resultado dessas inconsistncias foi a fabricao de uma explicao

    estatstica para a existncia de tendncias progressivas, como a complexificao crescente do

    sistema nervoso central (Schtzenberger, 1996), ao invs de se admitir uma tendncia natural para

    a complexificao, que por sua vez daria um fundamento biolgico para a concepo de progresso,

    assunto a que tambm retomaremos oportunamente mais adiante.

    7. Sobrevivncia do mais apto uma competio feroz

    Desde os tempos de Darwin se apontou para a tautologia das descries que concluam pela

    sobrevivncia do mais apto (expresso cunhada por seu conterrneo Spencer) para sobreviver.

    No fundo, essa fraqueza decorre de ser pequeno o valor das explicaes da seleo natural, sempre

    do tipo post hoc, ergo propter hoc. A justificativa maior para essa teoria enfatizar a luta pela

    sobrevivncia, como apontado atrs, parece ter sido a da economia poltica do colonialismobritnico. A ideologia da competio autnoma entre os indivduos e empresas era um baluarte do

    liberalismo teorizado por Adam Smith. Na situao idealizada por ele no h um fio condutor da

    economia, como seria o de um Estado dirigista. Pelo contrrio, tudo deixado mo invisvel do

    mercado, que o homlogo seleo natural de Darwin. Spencer, um dos darwinistas mais

    radicais do sculo XIX, estendeu o conceito de sobrevivncia do mais apto na natureza esfera

    econmica e social (e ele mesmo chamou isto de darwinismo social).

    Mas no se esquea que o prprio Darwin, especialmente emA Descendncia do Homem fez

    apologia da eliminao dos mais fracos pela seleo natural (Blanc, 1994), ao invs de se alinhar

    com os que achavam que se devia contrariar o laissez-faire do liberalismo, por exemplo tendo

    mdicos para a populao mais desassistida, educao, cuidados sociais e outros itens de uma

    agenda de um welfare state. Os defensores de Darwin tentam esconder que ele mostrou certas

    inclinaes racistas em sua obra, mas Darwin no resistiu a flertar com a eugenia (Blanc, 1994;

    Thullier,1994). A extenso radical da eugenia para a limpeza racial pela eliminao dos que no

    conseguem competir foi reafirmada como tese de bilogos como Konrad Lorenz no tempo da

    Alemanha nazista, e no tem deixado de surgir em vrios momentos, inclusive nas discusses

    atuais sobre a tica da clonagem.

    A natureza talvez seja porm diferente da selvageria da luta pela sobrevivncia - ela exibe

    um tipo de harmonia que se poderia considerar homloga quela descrita pela concordncia

    17 claro que uma teoria evolucionista mas no darwinista poderia admitir a existncia de saltos maiores,descontnuos. Exatamente devido complexificao, e ao contrrio das explicaes darwinistas, diramosque se trataria de saltos no lineares, geomtricos, que se dariam talvez ao nvel dos cromossomos.

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    catlica de Nicolau de Cusa no sc. XV, que pregava a convivncia pacfica entre as diferentes

    religies. Mais modernamente, no Iluminismo, essa tese de harmonia entre contrrios se expressou

    no ideal republicano de reconhecimento dos mesmos direitos, independentemente de diferenas

    sociais e econmicas, de opinies e culturas. Isto no quer dizer que se defenda a utopia de um

    jardim ednico, onde o carneiro pastaria ao lado do lobo, mas quer dizer que h uma relao deregulao coletiva. O indivduo e os processos individuais (inclusive episdios de luta pela

    sobrevivncia) existem na histria enquanto ao mesmo tempo se observam regras dentro do todo, o

    que mais uma vez vai contra o puro acaso.

    Apenas as espcies menos complexas (referindo-nos ao ponto de vista do desenvolvimento

    de seus rgos) parecem primeira vista obedecer a teoria malthusiana que serviu de base a

    Darwin, em que h um nmero prodigioso de descendentes em cada gerao, dos quais s poucos

    chegaro fase adulta e apta para a reproduo, e em que a sobrevivncia parece ser devida ao

    acaso e maior adaptao ao meio. Alguns peixes, rpteis e insetos podem comer uns aos outros eat mesmo seus parceiros sexuais e seus prprios ovos. Mas animais como os mamferos

    superiores parecem agir diferentemente, com estruturas sociais mais elaboradas e o cuidado

    coletivo da prole. Portanto, mesmo em nveis menos complexos do que o homem, a regra no a

    competio e a seleo, mas sim a cooperao e a interdependncia entre os organismos, e isto no

    decorre de razes egostas, pois est em concordncia com a tendncia complexificao por ns

    defendida, que leva ao surgimento de componentes de socializao.

    O que resta da teoria darwiniana de evoluo sem essa influncia das idias malthusianas? A

    noo de seleo natural considera como evidncia de sucesso a descendncia numerosa. Quando

    se tenta aplicar o esquema darwinista para explicar a cooperao e o altrusmo, estes ento

    ocorreriam por uma questo de egosmo gentico, para produzir descendncia mais numerosa,

    como se a informao gentica se materializasse na forma de um raciocnio mental instintivo.

    Negam-se assim a prpria cooperao, o altrusmo e a socializao como fatores formadores de

    comportamento, pois para o darwinista a deciso de ajudar outro membro da espcie ou mesmo

    outra espcie se deve a tal iniciativa individualista e no social. A harmonia da natureza

    contraposta competio feroz pela sobrevivncia coloca portanto uma questo mais radical do

    que a proposta por aqueles que, como Gould, repetem a frase de Darwin, de que a seleo natural

    no deveria ser o nico mecanismo da seleo: a resposta no poderia ser um mecanismo fixo.

    A propsito da competio entre indivduos, observamos que o endocruzamento

    (inbreeding) foi observado por Darwin entre criadores de cavalos, ces e pombos para a seleo

    artificial de caractersticas desejadas. conhecido que esta seleo gentica pode conduzir

    rapidamente a doenas, como se observa facilmente hoje nos ces pastores alemes. Animais

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    domesticados podem ser mais vantajosamente selecionados por exocruzamentos (outbreeding,

    ou misturados), para maior versatilidade e vigor. o que acontece tambm com sementes hbr idas,

    de interesse agronmico exatamente por terem aquelas qualidades.

    Por outro lado, a questo de sobrevivncia tem uma relao mtua com o meio ambiente, que

    no fixo, pois tem havido evolues geolgicas e climatolgicas constantemente, s vezes empoucos milhares de anos, de forma que uma evoluo por seleo natural no teria tempo para

    produzir adaptaes perfeitas com ambientes instveis. A prpria evoluo se d de forma a que a

    vida seja cada vez mais homeosttica (capaz de regular suas condies fisiolgicas internas, a

    despeito de variaes no meio), at chegar nos pssaros e mamferos que so homeotrmicos.

    E, finalmente, lembramos que o ser vivo est continuamente modificando seu ambiente. O

    aparecimento da fotossntese um grande exemplo disto, pois o enriquecimento da atmosfera com

    oxignio levou vida aerbica, e posteriormente mxima mobilidade graas ao desenvolvimento

    de um sistema nervoso, que por sua vez levou a um novo relacionamento com o meio(Bourguignon, 1990). O homem modifica ainda mais radicalmente seu meio, porque o faz em

    tempos recordes, podendo inclusive usar seu crebro para refletir sobre esse fato e tomar decises

    ambientais, quando assim o deseja. Desta forma, nem o meio ambiente nem tampouco a seleo

    natural, ou ainda a sua conjuno, podem ser os nicos mecanismos da evoluo. A existncia de

    uma descendncia mais numerosa um resultado e no uma causa, enquanto que a miscigenao

    parece muito mais adequada para a dinmica dum ambiente em evoluo.

    8. Igualdade natural entre as espcies, inclusive a humana

    Do ponto de vista da seleo natural, o homem parece ser uma espcie pouco apta a

    sobreviver, sendo mais fraco e nu, mas na verdade a espcie mais adaptada a condies

    ambientais instveis, condio fundamental para a evoluo e j referida no item precedente18. Foi

    devido ao uso da sua capacidade racional pelo homem que sua presena se imps s demais formas

    de vida, o que o levou a criar a linguagem articulada, a viver em sociedades complexas e enfim, ao

    contrrio das demais espcies, a fabricar uma cultura altamente elaborada e transmissvel sem ser

    de forma gentica. devido infncia prolongada que o homem desenvolve sua inteligncia e

    criatividade, que o capacitam a assimilar e desenvolver tecnologias, desde o fogo at as

    espaonaves. A Terra e sua biosfera so o oposto de um ambiente fixo (Vernadsky, 1997) e a

    18 No se trata de mero chauvinismo, mas por outro lado justificvel no estudo da cultura uma dose deantropocentrismo, pois nosso olhar sobre a Natureza no nem pode ser neutro, j que resulta dacompreenso a que chegou a espcie humana sobre si mesma.

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    evoluo tem nela agido para gerar novas espcies que sucedem outras extintas sem tanta

    versatilidade para transformar a biosfera.

    A viso darwinista do homem como mais um animal entre os demais tambm est por trs

    das propostas de prtica eugnica. Mas antepondo-se a esta viso, observamos que a cultura fez

    com que a evoluo fosse levada na direo desejada pelo homem, criando um tipo delamarckismo social como reconhecido at por defensores do darwinismo (Gould, 1979).

    O aparecimento e desenvolvimento da mente no podem ser devidamente explicados pela

    seleo natural, e isto em ltima anlise que diferencia o homem dos demais animais. Prova

    disso so as variveis propostas para justificar a evoluo humana, tais como capacidade craniana,

    bipedismo, etc., que concorrem com o crebro na mesma seqncia do famoso paradoxo do ovo e

    da galinha: quem nasceu primeiro? O homem, provavelmente j desde pelo menos 2 milhes de

    anos, tem a capacidade de falar ( pelos registros fsseis da anatomia da faringe) e desenvolveu a

    linguagem articulada que o caracteriza, de forma diferente da linguagem de qualquer animal.

    Se por um lado o aparecimento do homem encontra dificuldades explicativas em termos de

    seleo natural, certo que sua evoluo biolgica parece estacionada, pelo menos desde uns cem

    mil anos, fora talvez algumas variaes de menor importncia, como a cor da pele. O homem

    tornou-se agente cultural e econmico de seu contnuo desenvolvimento, enfim um homo sapiens,

    desde essa poca recente, ou sua evoluo cultural comea a se evidenciar quando os restos fsseis

    nos pem em frente de algum que j era humano devido a ser homo faber, um fabricante de

    ferramentas? Neste caso, teremos que recuar mesmo muito mais tempo e provavelmente qualquer

    humanide teria, ainda que tosca e preliminarmente, o conjunto de todas as condies potenciais

    surgidas ex abrupto num salto evolutivo nico.

    Tambm no fenmeno humano podemos discutir a empregabilidade do conceito de acaso. O

    acaso revela-se como um contingenciamento das suas aes, mas isto devido ao enorme nmero

    de variveis em jogo, de difcil anlise. De certa forma, a cultura humana anula um componente

    poderoso da imprevisibilidade: sabemos que, garantidas certas premissas (como ser capaz de evitar

    uma guerra nuclear de holocausto total, evitar colises catastrficas com asterides, etc.), uma

    certeza e no por acaso que vamos descobrir coisas como a cura para AIDS e cncer, certo que

    vamos saber mais fsica e qumica daqui a um sculo, sem dvida saberemos como buscar novas

    fontes de energia e poderemos com segurana prever que erradicaremos a fome se os homens e

    seus governos assim o quiserem, e assim por diante. Por outro lado, as demais espcies se sujeitam

    mais fortemente ao referido contingenciamento.

    Em sntese, o homem consegue desvendar na natureza os princpios de ordenao do

    universo, como se evidencia por exemplo pelos estudos de forma e crescimento de DArcy

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    Thompson (1992), em que o esquema da chamada seo urea (ou divina, como diziam os

    antigos) permite compreender fatos bsicos de reproduo e desenvolvimento mantendo-se a

    forma original. Usando sua razo os humanos descobriram assim algo que na verdade existiria com

    ou sem o surgimento do homem. S que o homem penetra nessa explicao, que a sua prpria

    explicao existencial. Ser crescer, no sentido evolutivo e no sentido de uma direcionalidade doprocesso vital.

    Contrariando-se a premissa darwinista de igualdade entre as espcies, e passando a

    considerar o homem como ponto mais elevado da evoluo, abordemos agora brevemente uma

    anlise de um dos pontos mais polmicos que se instauraram no debate cultural, o do progresso. A

    aceitao do darwinismo pela cincia foi o fulcro sobre o qual se levantou a alavanca do

    relativismo cultural, que impregnou as cincias humanas e que ainda impera como seu paradigma,

    negando a noo de progresso, relegado a uma posio de ideologia enganosa.

    9. A idia de progresso

    A maioria dos intrpretes atuais da obra de Darwin, especialmente os bilogos, opina que

    para ele a evoluo no tem o sentido de progresso ou de complexificao. Igualmente, a maioria

    dos bilogos rejeita a idia de progresso aplicada evoluo. Stephen Jay Gould, por exemplo,

    acredita na contingncia absoluta, em que a aparncia de ordem apenas porque se observariam

    extremos (caudas) de distribuies estatsticas e no as suas regies centrais (Gould, 2001).

    O progresso medido como maior eficincia, maior complexidade, etc. (cf. Barahona, 1998),

    obviamente no deixa de conter juzos de valor antropocntricos, mas justo que assim o seja, pois

    a mente humana o ponto alto de complexidade que se verificou na evoluo biolgica - s a

    mente altamente desenvolvida do homem poderia julgar o processo do qual ela faz parte! Por outro

    lado, a evoluo biolgica poderia ser equacionada com o progresso devido ao j mencionado

    comportamento social elementar at no nvel das clulas, em que a informao potencializada

    no pelo cdigo gentico de cada uma, mas pela interao das diferentes partes do citoplasma para

    uma dada clula e resultante da interao de diferentes clulas entre si (Chandebois, 1996).

    Para fazer frente s objees matemticas de Gould, o biofsico Jorge Wagensberg (2002)

    props uma definio quantitativa de progresso aplicvel aos seres vivos. Com uma formulao

    que parte da definio de entropia em acordo com a teoria da informao, ele demonstra uma

    identidade matemtica, que se pode assim exprimir em linguagem simplificada:

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    (complexidade de um sistema) + (capacidade de antecipao do sistema quanto a mudanas

    no ambiente) (incerteza do ambiente) + (ao do sistema sobre o ambiente)

    Desta identidade possvel a definio de uma varivel, a que se pode dar o nome de

    progresso (para ficar de acordo com o sentido mais intuitivo que a palavra adquiriu na pocacontempornea), e que est ligada independncia do sistema com relao ao seu ambiente. D esta

    forma, quanto menores as variaes de um sistema com relao s variaes do meio ambiente,

    maior ser sua independncia e maior o grau de progresso alcanado. Com isto se consegue um

    paralelo entre complexidade, evoluo e progresso: todos parecem seguir a flecha do tempo, pois

    embora localmente e por algum tempo possa haver retrocesso nessas categorias, no geral uma vez

    que elas foram instauradas no h volta para trs.

    Pode-se opor alguma restrio nesta formulao pretenso de abrangncia do conceito

    informacional de entropia para se medir o conhecimento, pois este no se reduz simples

    informao, e isto representa a diferena entre o que um computador sabe (mesmo ampliado

    atravs de recursos como a internet) e o que um ser humano faz quando cria algo novo. No

    entanto, no h dvida de que a definio acima, mesmo contendo algum elemento reducionista,

    apresenta um argumento na mesma linguagem matemtica que chega a ser usada por alguns dos

    defensores da eliminao do conceito de progresso. uma conceituao capaz portanto de demolir

    o relativismo cultural embutido na ojeriza de bilogos e cientistas sociais pelo progresso19.

    Opondo-nos mais uma vez ao darwinismo, insistimos que podemos considerar que as

    variaes das espcies no surgem ao acaso, mas como um fenmeno natural da criao de ordem

    de um nvel superior, com um dispndio mnimo de energia, otimizado de acordo com os

    princpios de Fermat e Leibniz a esse respeito. A ideologia do liberalismo que promove a noo

    de acaso como fonte da evoluo, e isto traz conseqncias importantes para a noo de liberdade

    humana.

    A liberdade humana no pode ser circunscrita a um conjunto de informaes codificadas,

    por maior que seja sua capacidade de armazenamento. A criatividade da mente que diferencia um

    rob programado de qualquer ser humano. O crebro humano e sua propriedade de criar cultura

    parecem desafiar qualquer explicao darwinista (Blanc, 1994), de nada valendo o recurso s

    adaptaes sem finalidade momentnea, ou exaptaes de Stephen Jay Gould. Estas poderiam

    ser vistas como tentativas frustradas (cf. Chauvin, 1999) de escapar tautologia fundamental do

    19 A posio destes contra a ideologia do progresso se insere na esteira da idia de decadncia na histriaocidental. No pretendemos aqui desenvolver mais este argumento, limitando-nos no momento a afirmarque preciso reverter essa tendncia, livrando a cultura do clima de pessimismo que foi assim instalado.

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    darwinismo, a citada aptido de sobreviverem os mais aptos Mesmo sem entrar na criao

    cientfica e artstica, o mero funcionamento normal da mente manifesto pelo pensamento

    consciente um srio problema para os darwinistas.

    O obstculo geral ao darwinismo, visto por este ngulo, novamente que ele adota uma

    forma de mecanicismo, ou reducionismo. Nenhum tipo de algoritmo pode descrever ofuncionamento da mente humana, como demonstrou Roger Penrose em seu argumento matemtico

    de funes no-recursivas para provar a impossibilidade da inteligncia artificial (Penrose, 1990).

    Ora, julgamos que o crebro humano um exemplo mais complexo de um processo no -linear que

    a prpria evoluo do universo, portanto explicar a seleo em termos algortmicos como a

    descrio at hoje sugerida pela biologia molecular, certamente uma ultra-simplificao que pode

    ter at um certo valor descritivo, mas no apreende a essncia do fenmeno. A extenso dessa

    idia reducionista atravs da psicologia evolutiva considera que a mente humana composta de

    mdulos mentais, como se houvesse um grande nmero de processadores paralelos no crebro,com funes especficas. Entretanto, embora haja algumas reas cerebrais efetivamente mais

    especializadas em determinadas atividades, as pesquisas indicam que o crebro tem grande

    capacidade de remanejamentos e funciona com uma coordenao ampla e disseminada mesmo

    pessoas com problemas mentais srios tm ainda a capacidade decisiva de criar, que a atividade

    humana por excelncia.

    10. Observaes finais

    A histria no se baseia unilateralmente em heris ou viles, embora no negue o papel do

    indivduo. Se o todo das relaes sociais que determina as tendncias de mudanas nessas

    relaes, certo que as caractersticas individuais mudam o rosto da histria (como j dizia

    Plekhnov a propsito do papel do indivduo). A histria das cincias, desde que se tornou campo

    tambm de historiadores profissionais, filsofos, socilogos e outros, tem desmistificado tantos

    heris da cincia exatamente porque v o cientista inserido numa sociedade, imerso portanto nas

    idias e prticas nela correntes.

    A cincia no obra de gnios isolados, mas resulta de uma sucesso de pessoas trabalhando

    e se influenciando mutuamente. As teorias cientficas se constrem baseadas em idias, em

    interpretaes de fatos que tambm so idias, e em sua capacidade para explicar o Universo em

    que vivemos. verdade que h um fator determinante na histria da cincia, que a criatividade

    humana, encontrada nos cientistas, mas tambm nos artistas e mesmo na gente comum em graus

    diversos, e essa criatividade se manifesta basicamente em indivduos.

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    Darwin foi um indivduo que empreendeu diversas pesquisas de histria natural, fez um

    trabalho dedicado e chegou a concluses importantes, muitas delas equivocadas. O comportamento

    de Darwin como pessoa humana parece ter deixado muito a desejar em diversas ocasies, ele pode

    at ter cometido uma ou outra fraude, como na alterao de seu manuscrito de A Origem das

    Espcies, mas fatos semelhantes aconteceram tambm com outras pessoas. Ele , no obstante,responsvel pela sua teoria, cuja ideologia tem buscado se sustentar com apoio mtuo na ideologia

    geral do capitalismo como sistema, e suas idias traem essas inspiraes. Isto tem valido sua

    teoria evolutiva por seleo natural muitos ataques, alguns at respondidos, mas de maneira no

    definitiva. A maioria das respostas que ele e seus seguidores deram no foram suficientes para

    contentar diversos cientistas e no-cientistas mais descomprometidos com sua ideologia

    inspiradora. Pelo contrrio, muitas dessas respostas foram de molde a apenas tentar evitar os

    problemas, mas s ampliaram as dvidas.

    Um programa na ordem do dia o de reavaliar as bases da vida sem o peso dos paradigmas eassim poder dar conta de fenmenos j conhecidos h tempos, como a assimetria observada por

    Pasteur na passagem da luz polarizada, e tantas assimetrias de campos no Universo. Assim se

    poderia comear a tentar explicar as descobertas na embriologia por von Baer e Hans Driesch, ou

    da radiao mitogentica por Gurvitch, ou ainda a evoluo do conjunto total da biosfera proposta

    por Vernadsky (1997). Para este cientista fundador da biogeoqumica, a prpria biosfera (que

    inclui desde camadas geolgicas das rochas, at as camadas da estratosfera) que est

    continuamente em evoluo, e no somente as espcies. O pensamento humano criativo, ou

    cientfico, assim por ele visto como uma nova fora geolgica na biosfera, qualitativamente

    diferente das foras fsico-qumicas e biolgicas anteriores, o que passou a dar biosfera o carter

    distinto de noosfera, atravs do fenmeno do conhecimento.

    A organizao interna que dita a evoluo e aqui se aplica apenas em sentido de metfora

    a imagem do automvel que alguns crticos do darwinismo tm usado: o motor da evoluo seria

    a direcionalidade (progresso) e a variao genotpica sua direo (onde intervm o acaso na

    forma de buracos na estrada, etc., o que faz variar a conduo). O darwinismo como teoria

    evolutiva to falacioso quanto tomar o motor pela direo. O homem porm chegou num ponto

    em que intervm em ambos elementos da "dirigibilidade". Sua liberdade a expresso de uma

    qualidade tendencial presente tambm na primeira forma de vida celular, e se passaram muitas

    pocas at que algum pudesse refletir e escrever sobre isso.

    Para modificar o estado atual seria preciso que os evolucionistas darwinistas aceitassem

    discutir com aqueles outros evolucionistas que no aceitam o darwinismo em nenhuma de suas

    formas e o faam deixando de considerar de antemo seus opositores como defensores retrgrados

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    da terra plana ou coisa pior. Caso contrrio, vai-se perpetuar o ensino de uma teoria como um

    dogma sobre o qual se devem necessariamente construir a biologia, antropologia, psicologia,

    economia e muitas outras reas do conhecimento, e no como uma hiptese de trabalho. E a

    histria das cincias j demonstrou o quo longe da Verdade est uma teoria que se pretenda ao

    mesmo tempo ser cientfica e a verdade ltima.

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