a Ética e a estÉtica da dor: um olhar para fogo morto , de ... · concepção de lessing com a...

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A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto, de José Lins do Rego Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada) Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins Rio de Janeiro Junho de 2009

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A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto, de José Lins do Rego

Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada)

Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins

Rio de Janeiro Junho de 2009

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A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto, de

José Lins do Rego

Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb

Orientador: Professor Doutor Ronaldo Lima Lins

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal

do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da

Literatura (Literatura Comparada).

Examinada por:

___________________________________________

Presidente, Prof. Dr. Ronaldo Lima Lins

___________________________________________

Prof. Dr. Luiz Edmundo Bouças Coutinho - UFRJ

___________________________________________

Profa. Dra. Iza Terezinha Gonçalves Quelhas - UERJ

___________________________________________

Prof. Dra. Teresa Cristina Meireles de Oliveira – UFRJ, Suplente

___________________________________________

Prof. Dr. Mario Cesar Newman de Queiroz – FAETEC, Suplente

Rio de Janeiro

Junho de 2009

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Rüb, Natasha Alves Carvalho de Castro.

A ética e a estética da dor: um olhar para Fogo

Morto, de José Lins do Rego/ Natasha Alves Carvalho de

Castro Rüb. - Rio de Janeiro: UFRJ/ CLA, 2009.

xi, 150f.

Orientador: Ronaldo Lima Lins

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ CLA/ Programa de Pós-

graduação em Ciência da Literatura, 2009.

Referências Bibliográficas: f. 136-150.

1. Ética 2. Estética 3. Dor 4. José Lins do Rego I.

Lins, Ronaldo Lima. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Departamento de Ciência da Literatura

(Literatura Comparada). III. A ética e a estética da

dor: um olhar para Fogo Morto, de José Lins do Rego.

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RESUMO

A ÉTICA E A ESTÉTICA DA DOR: um olhar para Fogo Morto, de

José Lins do Rego

Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb

Ronaldo Lima Lins

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura

(Literatura Comparada), Faculdade de Letras, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

A partir dos conceitos de ética e estética podemos

delinear as representações da dor na arte. A ética é

estudada e por vezes entendida como “moral”. Essa mesma,

representada na arte, delineia o conceito de estética, que

vem sofrendo grandes transformações ao longo dos séculos. A

experiência estética que valorizava o belo, como valores

morais e físicos, agora, concerne tudo que suscite algum

tipo de epifania ao sujeito receptor. Em meio a essas

definições, no romance Fogo Morto, de José Lins do Rego,

podemos ver as formas de dor e de sublimação de seus

personagens mergulhados na paisagem e na condição de vida

precárias.

Palavras-chave: ética; estética; dor; Fogo Morto

Rio de Janeiro

Junho de 2009

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RÉSUMÉ

L’ÉTHIQUE ET L’ESTHÉTIQUE DE LA DOLEUR: um regard sur Fogo

Morto, de José Lins do Rego

Natasha Alves Carvalho de Castro Rüb

Ronaldo Lima Lins

Résumé da Dissertação de Mestrado submetida ao

Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura

(Literatura Comparada), Faculdade de Letras, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

À partir des concepts de l’éthique et de l’esthétique

nous pouvons tracer les représentations de la doleur dans

l’art. L´éthique est étudié et par fois comprise comme “le

moral”. Celle-ci, représentée dans l’art, trace le concept

de l’esthétique, qui est en train de souffrir grandes

tranformations pendant les siècles. L’expérience esthétique

qui valorisait le beau, comme des valeurs moraux et

physiques, de nos jours, concerne tout qui suscite quelque

type d’épiphanie à l’individu récepteur. Dans ces

définitions, dans le roman Fogo Morto, de José Lins do

Rego, nous pouvons apercevoir les façons de la douleur et

de la sublimation de ses personnages plongés dans le

paysage et dans la condition de vie précaires.

Mots-clés: éthique; estéthique; douleur; Fogo Morto

Rio de Janeiro

Junho de 2009

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À minha mãe que me ensinou a viver socialmente e ao meu pai que me deseducou e me ensinou a sonhar.

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Agradecimentos

Agradeço:

Primeiramente a Deus, que, com certeza, ouviu minhas

preces e concedeu-me muita serenidade.

Ao Ronaldo Lins, meu orientador querido - por vezes

pai - pela insistência em mim, por sempre acreditar no meu

potencial. Pela paciência, compreensão, pelas broncas muito

necessárias, pelas palavras confortadoras e pelas mais

duras nas horas em que pensei que nada fosse pra frente.

Pelas indicações bibliográficas, pelos encontros de estudo.

E, principalmente, pela amizade.

Ao Capes, que me concedeu uma bolsa de estudos,

ajudando-me muito na compra de livros e no desenvolvimento

do meu trabalho.

Aos meus pais, que mesmo sem compreenderem a

totalidade do meu esforço, sempre me apoiaram, do jeito

deles. Amo-os muito, do meu jeito.

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A minha família, que mesmo que não entendam nada do

que estudo, apóiam-me em tudo que eu fizer, simplesmente

por me amar.

A todos meus amigos, sem exceção, que me escutaram por

longas noites, longos dias, meses e anos.

A meus amigos, mais caros, que me ouviram chorar nos

prazos finais, me deram apoio e sempre acreditaram em mim.

Aos que entenderam minha ausência, que me fizeram sorrir

quando precisei e me fizeram retomar a confiança em mim

mesmo, quando achei que não mais conseguiria.

A todos que passaram na minha vida, durante esse tempo

de dissertação. Todos que puderam ver minhas

transformações, meus problemas e ainda assim continuaram do

meu lado.

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“Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei.

Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma.”1

1 PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa – Antologia Poética. TUTIKIAN, Jane (org.). Porto Alegre: Leitura XXI, 2006.

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SUMÁRIO

1 - Introdução ---------------------------------------- 12

2 – A estética e a ética no campo filosófico ---------- 22

2.1 – A ética ------------------------------------ 22

2.1.2 – As concepções da ética -------------- 24

2.2 – A estética --------------------------------- 29

2.2.1 – A história da estética -------------- 31

3 – A dor --------------------------------------------- 43

3.1 - A ética da dor ----------------------------- 46

3.1.1 - O sujeito e sua vontade ------------- 50

3.1.2 - O mal-estar ------------------------- 52

3.1.3 - Do Tabu ao Totem -------------------- 55

3.2 – A estética da dor -------------------------- 58

3.2.1 – A dor sem o belo -------------------- 62

3.2.2 - As implicações do feio -------------- 64

3.2.3 - Traçando um paralelo entre Lessing

e Dostoiévski ------------------------------- 68

3.2.3.1 – Crime e Castigo -------------- 68

3.2.3.2 – Lessing e Dostoiévski -------- 74

4 - Fogo Morto, de José Lins do Rego ------------------ 81

4.1 - O movimento modernista --------------------- 81

4.2 - Fogo Morto e José Lins do Rego ------------- 84

4.2.1 – Sobre José Lins do Rego ------------- 85

4.2.2 – O ciclo da cana-de-açúcar ----------- 88

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4.2.3 – Fogo Morto -------------------------- 92

4.3 – A dor entre o regional e o psicológico ----- 94

4.4 – O paralelo da dor de Lessing e de

Fogo Morto --------------------------------------- 96

5 - A estrutura de Fogo Morto ------------------------- 99

5.1 - Os anti-heróis ---------------------------- 100

5.2 - Primeira parte – O mestre José Amaro ------ 102

5.3 - Segunda parte – O engenho de Seu Lula ----- 107

5.4 - Terceira parte – O capitão Vitorino ------- 114

5.5 – As mulheres do romance -------------------- 119

5.5 - A ética e a estética em Fogo Morto -------- 121

6 - Conclusão ---------------------------------------- 124

7 – Bibliografia ------------------------------------- 136

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1 - Introdução

“O começo da elaboração crítica é a consciência do que realmente somos, quer dizer, um conhece-te a ti mesmo como produto do processo histórico desenvolvido até agora, e que deixou em ti uma infinidade de marcas recebidas, sem benefício do inventário. É preciso efetuar, inicialmente, esse inventário.”2

No limite entre os conceitos de estética e ética, a

dor aparece na literatura com suas inúmeras formas

possíveis de representação.

Cabe definir os valores da estética e a definição

ética na construção subjetiva da arte e de seus receptores.

Os valores morais e os subjetivos são definidos e

representados de acordo com as concepções de beleza

vigentes em dado período. A arte concebe toda a natureza do

real e do fantástico, importa saber o que vale em sua

exposição.

O desconforto catártico traz algum tipo de satisfação

ao receptor da arte. Não vale só acompanhar os sentimentos

que circunscrevem a obra, mas aprendê-los. A construção

dessas sensações provoca o interesse pela psicologia do

indivíduo e suas formas de representação. Como a dor nasce,

desenvolve-se e por que sua apreensão suscita qualquer

coisa de interessante para nós?

2 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2004.

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Embora o sentimento de dor seja inerente à criação do

Homem, desde o mito do pecado original, a boa forma de

representá-lo artisticamente é permanente motivo de

discussão ainda nos dias de hoje. A interpretação de suas

dimensões varia de acordo com cada sociedade e com o

momento histórico em que se encontra. Apesar de estar

inserida em uma categoria universal, a dor não é expressa

do mesmo modo em todas as culturas e talvez não seja

sentida de forma idêntica por todos os indivíduos. Seu

limiar varia não somente de um indivíduo para outro, mas

também de acordo com sua cultura, ou seja,

independentemente de suas bases anatômicas e fisiológicas.

A dor parece ter fundamento cultural e social. A partir

dessa concepção, é pertinente a investigação de suas formas

de representação e aparição na arte, aliada às normas

estéticas.

Contudo, o conceito de estética constituiu-se sempre

em uma questão polêmica, sofrendo, de maneira progressiva,

grandes mudanças ao longo de sua história. Este, sempre

correlacionado às postulações éticas, dita as formas da

arte e da representação de todos seus elementos.

O belo era matéria fácil a retratar, mas a dor, como

forma inconveniente à beleza, precisava de regras, de

trato. Esse foi o olhar dos artistas durante muitos

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séculos: o fazer a dor não doer na arte. Sua forma expressa

deveria ser compensada por algo para que a tornasse bela,

como, por exemplo, as características virtuosas dos heróis.

Dessa forma, a beleza deveria traçar um paralelo com

os valores morais. No entanto, com o Renascimento, a figura

de Deus atada a ela desfez-se e deu-se relevo ao

relativismo estético, à concepção da geometria e das formas

perfeitas.

Diversas são as diferenças dessa concepção para a

descrição das personagens que tanto inquietam a

modernidade. A partir da constante evolução social e

cultural, pensemos um pouco sobre a necessidade da

transformação dessa forma de expressão. O crítico Lessing

desenvolve seus conceitos estéticos baseado nessa concepção

de belo. A beleza das formas perfeitas aliada aos valores

morais. Contudo, devemos entender a distância entre a

concepção de Lessing com a arte plástica e a poesia, para a

prosa – motivo de nossa discussão – dos dias atuais. Suas

teorias funcionam como base para o entendimento de nossas

inquietações.

Em seu livro Laocoonte ou sobre as fronteiras da

pintura e da poesia, o crítico elabora suas discussões

sobre a representação de Laocoonte no mármore e na poesia

de Virgílio. O que está em pauta para ele é a representação

do seu sofrimento. Lessing aborda a forma que este pode ser

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transposto para a arte sem afetar a beleza estética. Para o

crítico o belo consiste em representar a verdade da

natureza. Mas a dor e o sofrimento só se tornarão belos se

vierem acompanhados da virtude. O feio, para o crítico,

está fora dos domínios da arte.

Contudo, Lessing só abrange a pintura e pouco da

poesia. Para termos uma maior dimensão da teoria da dor na

literatura, citamos Fogo Morto, de José Lins do Rego, como

exemplo. Seus personagens passam por uma contaminação da

dor e da angústia, durante sua existência precária. Suas

representações, antes esculpidas no mármore, em Laocoonte,

são as mesmas que encontramos na consciência das

personagens. Considerando a prosa como forte manifestação

de arte nos dias de hoje, o conceito do belo e de suas

representações muda bastante em relação ao Lacoonte.

Os valores morais ligados à beleza nos trazem a

atenção para outro ponto pertinente de pesquisa: o conceito

de ética. Seus primeiros estudos, com Aristóteles,

trouxeram à tona o conceito de homem virtuoso, aquele que

deveria ser bom, mostrando-se forte e cheio de virtudes.

Contudo, os valores éticos também sofreram transformações

ao longo de séculos. Kant e sua filosofia do “agir moral”

nos deram uma nova perspectiva de interpretação do homem,

agora, completa, entendido como sujeito dotado não só de

racionalidade, mas também de sentimento. Vemos-nos, então,

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inseridos em uma sociedade legisladora de sua ética, ao

mesmo tempo em que somos empreendedores dessa mesma.

O estudo das diversas formas de composição do conceito

ético, desde seus primórdios até os dias atuais, encaminha-

nos certamente a uma definição segura.

Dessa forma, torna-se fundamental convergir os

conceitos propostos, pois a estética e a ética nos parecem

indissociáveis, na medida em que se complementam em suas

formulações. Porém, nossa matéria de estudo pertinente são

as formas de representação da dor, desde seu início até seu

desejo de sublimação. Sendo assim, cabe-nos elaborar uma

ética da dor, pautados na idéia da noção de dever, para

podermos analisar suas representações estéticas.

Em meio ao nosso estudo da definição de moral, surge o

pensamento singular de Sartre e suas formulações

existencialistas. O filósofo começa por ressaltar a

importância da alteridade e seu reconhecimento, mediante a

explicação dos conceitos de liberdade, de dor e de

angústia. Para o autor de La Nausée, somos todos

responsáveis pela existência do outro, e, da admissão dessa

responsabilidade, nasce a angústia da preocupação sobre

nossos atos.

Essa angústia, advinda da identificação e incorporação

da alteridade, é gerada também, e principalmente, pela

castração dos desejos do sujeito. Os interesses pragmáticos

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da vontade são teorizados por Schopenhauer e seu Mundo como

vontade e representação. Ele defende o indivíduo como

produto unicamente de seus desejos, capaz de passar sua

vida atrás de algo que julga bom para si. Entretanto,

mediante a conquista desse bem, o mesmo tende a cair na

insatisfação do tédio, consumindo-se na dor do nada, do

objeto conquistado, na satisfação finita.

Esse desejo permanente, defendido por Schopenhauer, é

mostrado também nos estudos de Freud sobre as pulsões do

subconsciente do indivíduo. Em seu Mal-estar na

Civilização, o psicanalista define conceitos de pulsão,

recalque, castração, id, ego e superego, delineando o

comportamento do homem inserido e perante um dado meio

social. O processo civilizatório provoca o tolhimento dos

desejos inerentes ao indivíduo, causando uma dor

dilacerante. A realização e satisfação das pulsões ficam

divididas entre consciente e inconsciente, moral e

instinto, causa da angústia insuportável da existência do

Homem.

Portanto, o indivíduo necessita criar caminhos que

levem à sublimação da dor, à amenização de sua existência.

O conceito de tabu e totem, discutido também por Freud, nos

ajuda a entender alguns dos processos de libertação tão

buscados por todo indivíduo. Ao mesmo tempo em que o Homem

se sente acuado em meio ao dever e ao instinto, ele deve

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buscar formas de canalizar seus recalques, suas dores

latentes, para que possa encontrar-se em uma unidade como

indivíduo.

A partir de todas as hipóteses levantadas, das

críticas expostas e da convergência dos três conceitos

latentes em nossos estudos – ética, estética e dor –

voltamos o olhar para o romance Fogo Morto, de José Lins do

Rego, como corpus, motivo de análise e texto comprobatório

de nossas discussões.

Romance que se destaca em meio à obra regionalista de

Lins do Rego, Fogo Morto é concebido como obra prima por

muitos críticos. Dentro das concepções inovadoras do

Modernismo, José Lins do Rego conquista seu lugar em meio à

vertente intimista com seu romance.

O Modernismo foi o momento em que demos “nova cara” à

tão buscada nacionalidade brasileira. Movimento, advindo de

influências culturais e revolucionárias da Europa,

impulsionou uma vasta produção artística de qualidade no

Brasil do início do século XX. Em meio às produções da

época, podemos dividir as obras e seus autores em duas

linhas: uma regionalista e outra intimista.

José Lins do Rego enquadra-se, primeiramente, na

vertente regionalista e retrata o sertão nordestino em seus

textos. O autor classifica seus romances em ciclos, e Fogo

Morto está inserido no da cana-de-açúcar.

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O cultivo da cana era de grande importância para a

economia brasileira da época, que exportava o açúcar como

produto valioso, de enriquecimento do país e de seus

senhores de engenho. Contudo, com a implementação, cada vez

maior, das indústrias no Brasil, os engenhos foram perdendo

sua força e tradição, até sucumbirem.

Em sua série de romances do ciclo da cana, José Lins

do Rego descreve a história do país. Contudo, Fogo Morto

apresenta-se de maneira diferente ao restante da obra. Sua

aura subjetiva o classifica como um romance ímpar dentre os

textos do escritor e a literatura brasileira.

Fogo Morto é dividido em três capítulos e apresenta

três personagens principais, que os nomeiam.

O primeiro mostra a história de José Amaro, seleiro

pobre, insatisfeito com a mesmice de sua vida pacata. Sua

esposa, Sinhá e sua filha convivem com a degradação desse

homem, que tenta de todas as formas mudar sua realidade e

destino.

O segundo fala do coronel Lula de Holanda, dono do

engenho de Santa Fé e frustrado devido a sua falta de garra

em gerir seus negócios. Sua mulher e filha sofrem com

castrações impostas pelo coronel, como única maneira que

este encontrou para mostrar sua força.

Por fim, o terceiro capítulo trata do capitão Vitorino

da Cunha, o “papa-rabo”. Figura caricata e de força no

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romance. Embora considerado louco, Vitorino é o personagem

mais importante da obra, pois consegue sublimar sua

condição precária.

Assim, devemos analisar separadamente cada capítulo e

convergi-los em uma análise maior: a representação da dor

em suas diferentes formas, pautadas nos conceitos vigentes

e estudados de ética e estética. Os personagens principais

e secundários têm sua importância bem definida e mostram

seus diferentes caminhos em direção a uma sublimação, como

única forma de amenizar sua existência dilacerante.

Diante destas formas de dor e sublimação distintas,

alcançadas pelos personagens, podemos costurar os conceitos

e hipóteses apresentados, baseados no estudo dos caminhos

até suas conquistas, degradações e loucuras. Seguiremos

mergulhados na literatura de José Lins do Rego e guiados

pela filosofia do indivíduo, da angústia e da alteridade.

Em meio à evolução textual, observamos claramente, em

Fogo Morto, o conceito de anti-héroi, tão discutido pela

modernidade. Os personagens não possuem mais a capa do

homem virtuoso colocada por preceitos aristotélicos. Eles,

agora, mostram-se como indivíduos precários, dotados da

mesma humanidade que nós. Deparamo-nos com sujeitos

semelhantes à nossa existência, e o que nos importa, no

momento, é a forma de passagem, de cada um, por todas as

crises e mazelas da individualidade e do ser social.

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Sendo assim, a estética comporta, nos dias de hoje, a

mais completa definição do belo. A arte deve ter por

objetivo nos suscitar algum tipo de catarse, e para isso

deverá representar o mais íntimo de nossos sentimentos. Não

se repugna mais o choque, é ele que nos envolve pela

experiência artística. A descoberta da ética do

caleidoscópio humano, do mosaico de caracteres e vozes que

compõem o indivíduo, não nos permite mais repugnar o feio.

Nossas formas devem coexistir na arte.

Através desse inventário, pautados em nossas hipóteses

e caminhos a serem investigados, pretendemos dar relevância

à importância dos conceitos estéticos e éticos para a

melhor compreensão das veredas da arte. E, mergulhados

nessas concepções, delinear a representação das formas da

dor, perpassando Fogo Morto, de José Lins do Rego, como

obra prima da subjetividade nos meandros do Modernismo.

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2 – A estética e a ética no campo filosófico

2.1 – A ética

A palavra “ética” é originada do grego ethos, e possui

duas variantes possíveis. Com o e curto pode ser traduzida

por costume, com o e longo, significa modo de ser, caráter.

A primeira serviu de base para a tradução latina “moral”,

enquanto que a segunda, de alguma forma, orienta a

utilização atual que damos à palavra.

Em filosofia, ética significa o que é bom para

determinado indivíduo e sociedade, e seu estudo contribui

para estabelecer a natureza de deveres no relacionamento

entre esses. Moral e ética não devem ser confundidos.

Enquanto a primeira é normativa, a segunda é teórica,

buscando explicar e justificar os costumes de uma

determinada sociedade, bem como fornecer subsídios para a

solução de seus dilemas mais comuns. A ética também não

deve ser confundida com lei, embora com certa freqüência a

lei tenha como base princípios éticos. Ao contrário do que

ocorre com esta, nenhum indivíduo pode ser compelido, pelo

Estado ou por outros, a cumprir as normas éticas, nem

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sofrer qualquer sanção pela sua desobediência; por outro

lado, a lei pode ser omissa quanto a questões compreendidas

em seu propósito.

O Homem vive em sociedade, convive com outros

indivíduos e, portanto, cabe-lhe pensar sobre sua conduta

perante estes. A ética é o julgamento do caráter moral de

uma determinada pessoa. Como doutrina filosófica, é

essencialmente especulativa e, a não ser quanto ao seu

método analítico, jamais será normativa, característica

esta, exclusiva do seu objeto de estudo, a moral. Portanto,

a ética mostra o que era moralmente aceito na Grécia

Antiga, possibilitando uma comparação com os valores

atuais. O que indica, através da comparação, mudanças no

comportamento humano, nas regras sociais e suas

conseqüências, detectando, a partir daí, problemas e/ou

indicando caminhos. Ao contrário da moral, que delimita o

que é bom e o que é ruim no comportamento dos indivíduos

para uma convivência civilizada, a ética é o indicativo do

que é mais justo ou menos injusto diante de possíveis

escolhas que afetam terceiros.

A partir dessa definição inicial sobre ética, faremos

um estudo sobre as concepções desta no campo filosófico.

Para tal, passaremos por Aristóteles, pela concepção

utilitarista e por Kant.

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2.1.2 – As concepções da ética

No campo da reflexão sobre o agir humano, destacam-se

hoje três grandes tradições filosóficas. A primeira

reporta-se aos escritos de Aristóteles que situou a sua

“ciência das virtudes” entre a Física e a Política. A

rigor, as ciências filosóficas da práxis deveriam ser três:

a Ética, centrada no agir individual, a Economia, que

deveria estar voltada para a práxis doméstica ou familiar,

e a Política, idealizando as relações humanas dentro do

universo da cidade/Estado e das cidades entre si. O que

caracteriza a ética aristotélica, e a dos seus seguidores,

é o estudo do agir a partir de uma concepção do homem como

um animal político que possui linguagem e que age

logicamente, necessitando desenvolver-se dentro de uma

sociedade concreta - num dado período de tempo e dentro das

formas do governo de uma cidade.

O ideal de Aristóteles é o do homem virtuoso, dotado

de força, de vigor, de uma excelência relacionada aos

valores práticos e intelectuais da existência. O mais

virtuoso seria o mais capaz de realizar-se como indivíduo,

atingindo assim a felicidade, meta procurada por todos.

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Esta felicidade supõe certo equilíbrio de bens, pois o

homem, ser complexo, não busca simplesmente um único.

Precisa de ar para respirar, de comida, de saúde, de

dinheiro, de amigos, de reconhecimento público e respeito

por parte da sociedade, e precisa também ter algum tempo

para poder dedicar-se às reflexões filosóficas,

metafísicas. Como podemos ver, o comportamento ético,

estudado pela filosofia da práxis dos aristotélicos, inclui

não somente as reflexões especificamente “morais”, mas

supõe também certa sabedoria ou prudência para o trato com

o mundo.

A segunda grande tradição ética, de estilo mais anglo-

saxônico, é a corrente do utilitarismo. Os seguidores deste

modo de pensar são muito pragmáticos, de certo modo

imediatistas (contentando-se com uma moral provisória).

Menos especulativos, seu maior valor ético deve consistir

em procurar o maior bem possível para o maior número

possível de homens. Esta formulação é útil e prática, pois

tem a vantagem de não perder tempo em especulações que

acabam atrapalhando, ou mesmo substituindo, o agir.

Entretanto, não há dúvidas de que no campo da moral ou da

ética as palavras jamais conseguem substituir as ações.

Porém, pode-se objetar que a corrente utilitarista não

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define exatamente o que seria este bem final para os

homens.

A terceira grande tradição filosófica, que atua e

vigora até hoje, é a da linha kantiana, centrada sobre a

noção de dever. Parte das idéias da vontade e do dever

discorre sobre a liberdade do homem, cujo conceito não pode

ser definido cientificamente, mas postulado sob pena do

homem rebaixar-se a um simples ser da natureza. Kant também

reflete sobre a felicidade e a virtude, mas sempre em

função do conceito de dever. É famosa, em sua obra, a

formulação do chamado “imperativo categórico”, que conduz o

indivíduo a agir de maneira que sua vontade possa valer

como princípio de uma legislação universal. Kant estava

apenas preocupado em fornecer-nos uma forma segura de agir.

Sua ética é formal, também chamada por alguns como

formalista.

Kant nos forneceu, na prática, um critério para o

“agir moral”. Se a intenção é agir moralmente (isto é,

racionalmente), o homem deve agir então de uma maneira

realmente universalizável. Este é o cerne da ética

kantiana: a universalização das nossas máximas - em si

subjetivas. A moral kantiana, de certo modo, pressupõe um

conceito de homem como um ser não somente racional. Este se

constitui, portanto, em um ser livre, ao mesmo tempo que

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perturbado por inclinações sensíveis, que fazem com que o

“agir bom” se apresente ao indivíduo como uma obrigação que

a sua parte racional terá de exercer sobre a sensível, como

certa coação.

O dever obriga, força-nos a fazer o que talvez não

quiséssemos ou o que, pelo menos, não nos agradaria, porque

o Homem não é perfeito, e sim dual. Mas o dever, quando nos

força, obriga a fazer aquilo que favorece a liberdade do

indivíduo, pois, também, somos seres autônomos. A liberdade

humana, no sentido positivo, consiste em poder realizar o

que vemos ser o melhor, o mais racional. Essa realização

significa causar por vontade própria um efeito no mundo, ao

lado das causas naturais que pertencem ao mecanismo da

natureza. O Homem, neste sentido, é legislador e membro de

uma sociedade ética. Legislador porque é ele que vê o que

deve ser feito, e membro ou súdito, pois obedece aos

deveres que a sua própria razão lhe formula. Neste sentido,

o indivíduo não tem um preço, mas uma dignidade, e é por

isso que a segunda fórmula do imperativo categórico diz

para agirmos de modo a não tratar jamais a humanidade tão

somente como um meio, mas também como um fim em si.

A corrente kantiana é extremamente atual. A ética do

dever é moderna porque confia no homem, na sua razão e na

sua liberdade. Mostra-o como empreendedor, o que coincide

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com o surgimento e a ascensão da sociedade industrial e

capitalista. De certo modo, esta corrente é estranha ao

capitalismo consumista, na medida em que não dá grande

valor ao gozo dos prazeres, acentuando privilegiadamente os

deveres. A felicidade de que Kant fala é a da consciência

do dever cumprido, a tranqüilidade da boa consciência. Em

relação à busca dos bens materiais, o filósofo considera

que ser feliz, neste aspecto, é um dever do homem, uma vez

que frustrado ele faz mal a si e aos outros. Temos, pois,

obrigação de fazermos tudo para sermos felizes, desde que

seja tudo o que poderia ser universalizável, dentro do

respeito aos demais. Não é a felicidade a qualquer preço.

A ética, enquanto moral fundamentada por uma reflexão

- seja ela mais espontânea ou mais sistematizada -, sempre

tem um respaldo argumentativo. Ela procura mostrar-se

racional, sempre em busca da universalização, quer dos

interesses, quer de uma natureza comum, ou de um agir

segundo máximas que possam constituir-se em leis

universais. A busca da argumentação fundamentadora é

extremamente importante numa situação de pluralismo de

valores e de globalização da sociedade. Os interesses do

grupo, do clã, ou da família ou corporação não podem mais

dizer a última palavra, assim como a moral de uma confissão

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religiosa não pode ser imposta aos que não compartilham

desta.

2.2 – A estética

O conceito de estética vem da palavra grega aisthésis

ou percepção, sensação. Constitui-se em um ramo da

filosofia que tem como objeto o estudo da natureza do belo

e dos fundamentos da arte. Estuda o julgamento e a

percepção do que é considerado belo, o conceito de obra de

arte e de criação, suas diferentes formas bem como do

trabalho artístico.

Na antigüidade, especialmente com Platão e

Aristóteles, o conceito estético3 era estudado juntamente

com a lógica e a ética. O belo, o bom e o verdadeiro

formavam uma unidade com a obra. A essência do belo só

seria alcançada criando um paralelo com o que seria bom,

tendo em conta os valores morais. Porém, na Idade Média,

surgiu a intenção de estudar os conceitos estéticos

independentes de outros ramos filosóficos.

3 Digo conceito, pois a palavra “Estética” só seria usada séculos mais tarde.

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Estes conceitos adquiriram autonomia como ciência,

destacando-se da metafísica, da lógica e da ética, com a

publicação da obra Aesthetica do educador e filósofo alemão

Alexander Gottlieb Baumgarten. Foi a primeira vez que se

usou a denominação Ética. Baumgarten traz uma nova

abordagem ao estudo da obra de arte, considerando que os

artistas deliberadamente alteram a Natureza, adicionando

elementos de sentimento a realidade percebida. Assim, o

processo criativo estaria espelhado na própria atividade

artística. Compreendendo então, de outra forma, o conceito

grego que entendia a arte como mímesis da realidade.

“Quando os alemães criaram o conceito de estética, estavam, como uma boa parte dos intelectuais de sua época, interessados no saber. Queriam instrumentos que agilizassem e aprofundassem os conhecimentos, acreditando que, com eles, criariam um mundo melhor.”4

A estética assumiu características de uma metafísica

do belo, que se esforçava para desvendar a fonte original

de todas as belezas sensíveis: reflexo do inteligível na

matéria (para Platão), manifestação sensível da idéia (para

Hegel), o belo natural e o belo arbitrário, dentre outras.

Mas, este caráter metafísico e conseqüentemente dogmático

da estética transformou-se posteriormente em uma filosofia

4 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.49.

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da arte, onde se procurou descobrir as regras da arte na

própria ação criadora (Poética) e em sua recepção, sob o

risco de impor construções a priori sobre o que é o belo.

Neste caso, a filosofia da arte tornou-se uma reflexão

sobre os procedimentos técnicos elaborados pelo homem, e

sobre as condições sociais que fazem certo tipo de ação ser

considerada artística.

A partir do estudo proposto sobre estética,

delinearemos sua história e nos pautaremos, nos capítulos

seguintes, na obra de Lessing, Laocoonte ou sobre as

fronteiras da pintura e da poesia, com o objetivo de

colocar em pauta a representação da dor na arte, passando

por suas diversas formas.

2.2.1 – A história da estética

Podemos dividir a história da estética em três fases.

Primeiramente caracterizou-se pela sua compreensão como a

teoria do belo, em seguida, como a teoria do gosto e

atualmente pode ser identificada como a filosofia da arte.

Platão preocupou-se em formular um conceito sobre o

belo para um melhor entendimento da estética. Para ele era

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impossível desvinculá-lo do mundo das idéias, ou seja, o

belo existe num plano superior e não no mundo físico. A

arte limitava-se a ser uma cópia imperfeita da natureza e o

belo transcendia o homem. Este era o bem, a verdade e a

pura perfeição.

Aristóteles, apesar de seguir a doutrina platônica,

foi mais longe em sua definição. Ele concebeu a arte como

uma criação especificamente humana, acreditando que o belo

era inerente ao Homem. Todavia, separou a beleza da arte.

Isto porque, muitas vezes o feio, o estranho ou o

surpreendente converte-se no principal objetivo da criação

artística. Assim, o filósofo separou a arte em dois tipos:

a que possui uma utilidade prática, que completa o que

falta na natureza; e a que imita a natureza, mas que também

pode abordar o que é impossível e irracional. Aristóteles

introduz, então, as regras da ordem, de grandeza, de

simetria, de determinação e de unidade.

Durante a Idade Média, o cristianismo, difundiu uma

concepção de beleza que se fundamentava na identificação de

Deus, o bem e a verdade. Dois nomes que se destacam nessa

época é o de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino.

Santo Agostinho concebia a beleza como a harmonia do todo,

ou seja, com unidade, número, igualdade, proporção e ordem.

A beleza do mundo não era mais do que o reflexo da suprema

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beleza de Deus, de onde tudo emana. A partir da beleza das

coisas poderíamos chegar à suprema. Já para São Tomás de

Aquino esta era identificada com o bem. As coisas belas

deveriam possuir três características: a perfeição, a

harmonia e a luminosidade.

No Renascimento os artistas adquirem a dimensão de

verdadeiros criadores e começa-se a desenvolver uma

concepção elitista da obra de arte. Entre as novas idéias

estéticas que então se desenvolvem podemos destacar o

relativismo estético: a beleza ligada à simbologia

geométrica e aos números, inspirada no pitagorismo e

neoplatonismo, e o estabelecimento de normas e regras fixas

para a produção e apreciação de arte.

Na segunda metade do século XVIII, a sociedade

européia atravessa uma profunda convulsão. Por sua vez, o

começo da revolução industrial, a guerra da independência

Americana e a revolução Francesa, criaram um clima propício

ao aparecimento de novas idéias sobre o belo. O

Neoclassicismo foi o principal movimento artístico deste

período, inspirado na Grécia antiga e em Roma. A arte

neoclássica foi usada de forma propagandística durante a

revolução Francesa e no Império napoleônico.

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É neste contexto que o conceito de estética passa a

ser entendido como teoria do gosto. Para os filósofos do

século XVIII é no campo do subjetivismo que vamos encontrar

resposta para o problema do belo. A teoria do gosto nos

atenta ao fato de que o que é belo para uns pode não

significar nada para outros. Assim, o problema central

passou a ser o de saber como justificar os nossos gostos.

Kant, Descartes, Leibniz e Burke tornaram-se alguns dos

mais importantes seguidores dessa teoria.

“É um período marcado pela preocupação com a cultura clássica, como atesta o livro de Lessing, o Laocoonte, no qual o mesmo efetua um trabalho de definição dos terrenos da expressão humana. Pensava-se na arte como uma forma de harmonizar diferenças, dado que a beleza constituía, na mentalidade dominante, a diretriz principal na criação. A idéia de perfeição, junto com o entendimento do Belo, implicava em algo semelhante a uma proposta à gravidade dos problemas e dos conflitos.”5

Kant foi considerado como o último grande filósofo do

início da era moderna. É famoso, sobretudo, pela sua

concepção conhecida como idealismo transcendental, ou seja,

todos nós trazemos normas e conceitos a priori para a

experiência do mundo, os quais seriam de outra forma,

impossíveis de determinar. A filosofia da natureza humana

de Kant é historicamente uma das mais determinantes fontes

5 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.49.

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do relativismo conceitual que dominou a vida intelectual do

século XX. Para o filósofo, os nossos juízos estéticos têm

um fundamento subjetivo, não se podem apoiar em conceitos

determinados. O critério de beleza que neles se exprime é o

do prazer. Apesar de subjetivo, o juízo estético, aspira à

universalidade.

Nos últimos dois séculos, ocorreram importantes

mudanças no entendimento da própria arte, em resultado de

múltiplos fatores, como a integração no domínio da arte de

novas manifestações criativas, que permitiu atenuar as

fronteiras entre arte erudita e arte para grandes massas.

Todos os conceitos são contestados e todas as fronteiras

entre artes são postas em causa. Ocorre uma dessacralização

da arte, tornando-se freqüentemente um mero produto de

consumo. Com isso, apareceram inúmeras teorias que defendem

novos critérios para sua apreciação.

A estética passou a ser então identificada como

filosofia da arte, o que levou ao questionamento do que

seria esta e do seu valor. Quando classificamos determinada

obra como arte, não temos em conta sua qualidade ou nosso

gosto, apenas pretendemos dizer que ela cabe na extensão de

um conceito pré-determinado. Com isso, nascem duas

definições: as implícitas e as explícitas. A primeira é as

que estão subentendidas no próprio conceito, que mais

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facilmente se definem com atos do que com palavras. Mas

muitas das nossas definições implícitas deixam-nos

insatisfeitos. Temos a necessidade de saber mais acerca dos

conceitos definidos, algo que seja relevante para a

compreensão deste e que nos informe acerca das propriedades

mais importantes dos objetos que fazem parte da sua

extensão. Para satisfazer este desejo, recorremos às

definições explícitas. Estas, ou teorias essencialistas,

são as que defendem que existem propriedades comuns a todas

as obras de arte e que só nelas se encontram.

A teoria da arte como imitação é uma das mais antigas.

Segundo esta, uma obra é arte somente se produzida pelo

homem e ter por função imitar algo. Sua característica

própria não reside no fato de defender que uma obra de arte

deve ser produzida pelo homem, mas na idéia de que para ser

arte deve partir da mímeses. Contudo, esse conceito nos

levaria à exclusão de inúmeras expressões artísticas, pois

apesar de muitas obras serem imitações, inúmeras são

aquelas que não se incluem nesse conceito. Ficamos, deste

modo, com uma teoria que não responde aos requisitos

anteriormente expostos acerca do que deve ser uma definição

explícita, pois defende a mímesis como única condição

necessária para a arte.

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Insatisfeitos com a teoria da arte como imitação,

muitos filósofos e artistas românticos do século XIX

propuseram uma definição que procurava se libertar das

limitações da teoria anterior, ao mesmo tempo em que

deslocava para o artista, ou criador, a chave da

compreensão da obra. Trata-se da teoria da arte como

expressão. Segundo esta, uma obra só é arte se exprime

sentimentos e emoções do artista. São muitos os testemunhos

destes que reconhecem a importância de emoções sem as quais

as suas obras não teriam certamente existido. Mais do que

isso, se é verdade que a arte provoca em nós determinadas

emoções, então é porque estas existiram no seu criador e

deram origem a tais obras.

Em relação ao critério de classificação temos os

mesmos problemas dos da teoria da mímesis, a diferença é

que, neste caso, uma maior quantidade de obras pode ser

classificada como arte, mas continuamos a não abranger

todas.

Verificando que a diversidade de obras é bem maior do

que as teorias da imitação e da expressão, uma mais

elaborada e também mais recente, conhecida como teoria da

forma significante ou formalista, decidiu abandonar a idéia

de que existe uma característica comum que possa ser

encontrada em todas as obras de arte. Esta, defendida,

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entre outros, pelo filósofo Clive Bell, considera que não

se deve começar a procurar aquilo que define a arte na

própria obra, mas sim no sujeito que a aprecia. Isto não

significa que não haja uma característica comum a todas,

mas que podemos identificá-la apenas por intermédio de um

tipo de emoção peculiar, a que chama emoção estética, que

elas e só elas, provocam em nós. Uma obra é arte se provoca

nas pessoas emoções estéticas.

Segundo esta teoria, as obras de arte provocam

emoções, mas diferentemente da teoria da arte como

expressão. A formalista centra as atenções em quem as

aprecia e nos seus sentimentos. Tendo em conta a definição

dada, reparamos que a característica de provocar emoções

estéticas constitui, simultaneamente, a condição necessária

e suficiente para que um objeto seja uma obra de arte. Mas

se essa emoção peculiar chamada “emoção estética” é

provocada pelas obras, e só por elas, então deve haver

alguma propriedade também peculiar a todas elas, que seja

capaz de provocar tal emoção nas pessoas. Segundo Clive

Bell essa característica é a forma significante.

Mesmo sendo abrangente, esta teoria apresenta muitos

problemas. Uma dificuldade é a de conseguir explicar em que

se consiste realmente a tal “forma significante”,

responsável pelas emoções que sentimos. Clive Bell,

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referindo-se apenas ao caso da pintura, diz que a forma

significante reside numa determinada combinação de linhas e

cores, mas não a refere especificamente. A idéia que fica é

que a forma significante não serve para identificar nada, e

mesmo que na pintura seja a combinação de cores e linhas,

nas restantes formas de arte teria obrigatoriamente de ser

outra coisa, e então não temos uma propriedade comum, mas

várias propriedades.

Podemos concluir que nenhuma destas teorias responde

de forma satisfatória à definição de arte. Alguns filósofos

optaram então por outras não essencialistas e alguns

decidiram simplesmente abandonar a idéia de que esta pode

ser definida.

Observemos que há uma dificuldade em definir a arte

por métodos objetivos, o que nos leva a entrar em sua

psicologia, no intuito de direcionar nossa atenção para a

sensibilidade estética.

O caráter estético de um objeto não é a sua qualidade,

mas sim a atitude que assumimos em face desse, a relação

subjetiva entre o expectador e o objeto. As representações

artísticas são tão diversas que não podem ser estudadas em

sua unidade. Só o conhecimento do espírito, da consciência

estética face à obra, permite atingir a universalidade

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necessária. Os momentos estéticos podem ser divididos em

três partes: a contemplação, a criação e a interpretação.

Proust e sua literatura defendem que o verdadeiro

sentido do prazer diante de uma obra dá-se quando esta pode

suscitar impressões em seu receptor, capáveis de fazê-lo

reestruturar o sentido de sua existência. As conclusões do

autor não representam um trabalho pronto para o receptor,

elas são somente ferramentas para sua própria experiência

existencial.

Às impressões que movem nossos sentimentos

convencionou-se chamar de sentimentos estéticos. Cada um de

nós sente o seu prazer estético onde o encontra, de acordo

com o gosto pessoal. A contemplação não é exclusiva do

receptor, o artista contempla a obra antes sequer de criá-

la. O artista começa por observar, por idealizar, antes de

conceber, sendo assim o primeiro a passar pela experiência

da observação.

Tendo por base a subjetividade estética, podemos dizer

que existem três maneiras de reagir diante da arte, ou

seja, de ter uma consciência desta. A primeira faz com que

o objeto apenas provoque indiferença ou um simples agrado;

a segunda com que provoque um prazer real, mas extremamente

subjetivo, que depende da nossa disposição e predisposição;

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e a terceira com que nos faça sentir uma alegria interior

ao ser contemplado, que nos oferece a arte como êxtase.

Contudo, o homem não se limita a contemplar, ele

também cria, procura não só expressar as suas emoções, como

as mostra de forma com que os outros as possam experimentar

quando as contemplam. Esta predisposição para produzir e

também para valorizar em termos emotivos os objetos e as

situações, constitui o que se designa por atitude estética.

A função social da estética ocupa uma posição

importante na vida do indivíduo e da sociedade. Qualquer

objeto ou qualquer ação, seja um processo natural ou uma

atividade humana, podem chegar a serem portadores da função

estética, não precisando por isso ser arte. Sabemos também

que os limites que separam o estético do extra-estético

variam de um indivíduo para outro. Mas quando substituímos

o ponto de vista individual pelo do contexto social,

verificamos que apesar de todos os matizes individuais e

fugazes, existe uma localização consideravelmente

generalizada da função estética no mundo dos objetos e dos

processos. Quando pensamos quer no tempo, quer no espaço,

ou mesmo de uma formação social para a outra, chegamos à

conclusão de que com estas transformações muda também a

localização da função estética e a delimitação da sua

esfera.

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Como já foi dito, o belo e o gosto são conceitos muito

subjetivos. Mesmo que existam normas e regras, elas são

frágeis e podem ser quebradas. Apesar do estudo da estética

implicar teorias e argumentos, cada um de nós avalia, julga

e sente de formas diferentes, e, no final, aquilo que nos

une é o prazer estético que sentimos.

As ambigüidades estéticas são provocadas no sujeito

quando suscitados sentimentos contraditórios, como o prazer

e o desconforto, atração e repúdio, tristeza e êxtase.

Estes podem ser provocados simplesmente pela desordem ou

pelo conteúdo da mensagem que a obra nos transmite. Na

pintura podemos observar obras belas e ao mesmo tempo

desconfortáveis, assim como na fotografia as imagens de

catástrofes não deixam de ser belas, como a erupção de um

vulcão ou imagens de pobreza ou sofrimento. Na literatura,

também, e, sobretudo, nos deparamos muitas vezes com esse

desconforto ambíguo.

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3 – A dor

Do latim dolore, dor significa sensação desagradável,

variável em intensidade e em extensão, produzida pela

estimulação de terminações nervosas ou por sofrimento

moral, mágoa, aflição. A dor pode ser provocada por agentes

externos ao corpo ou internos à consciência. Sendo que, por

muitas vezes, a dor física parte de uma dor moral.

A dor convencional faz parte de um sistema de alarme

do corpo. Ela nos alerta para o fato de que alguma coisa

está nos machucando, nos compelindo a solicitar ajuda. Sua

definição nem sempre é feita de forma satisfatória. Alguns

a definem como a experiência sensitiva provocada pelo

estímulo que lesa os tecidos ou ameaça destruí-los,

experiência definida introspectivamente por cada um. Essa

definição é insatisfatória, pois a relação entre a dor e a

lesão é tão variável que não se poderia definir a primeira

exclusivamente em termos de lesão. Com isso, estaríamos

ignorando a maior parte dos fatos clínicos e psicológicos

conhecidos e não considerando a dimensão afetiva, a

motivação e a cognição, como partes integrantes da

experiência.

A noção de dor como resultante e causadora de uma

perturbação global do indivíduo está presente na cultura

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Oriental, enquanto no Ocidente esta visão foi esquecida até

recentemente. A medicina chinesa, através da Acupuntura,

guarda fortemente desde sua origem o princípio que, para

ser eficaz ao se tratar a dor, é necessário reconhecer,

considerar e tratar o indivíduo em sua totalidade.

Outra definição a apresenta como uma sensação pessoal

íntima do mal, ou até mesmo como um estímulo nocivo que

assinala uma lesão atual ou eminente. Porém, esse tipo de

definição confunde a causa e a experiência, o fato físico e

o processo psicológico complexo. Uma melhor apresentação

seria baseada no reconhecimento explícito do caráter antes

flutuante da relação entre dor e lesão, e na integração da

dimensão afetiva da experiência dolorosa, que se junta à

sensorial. Temos que pensar na dor como algo que implica

não só o campo físico, mas a miséria, a angústia, o

desespero e o sentimento de urgência que fazem parte de

certas experiências.

Pelo fato de ser uma sensação íntima e pessoal,

impossível conhecer com exatidão a dor do outro. Assim pela

diversidade das experiências dolorosas, explica-se porque

tem sido impossível, até hoje, encontrar uma definição

satisfatória.

A palavra “dor” representa uma categoria de fenômenos,

compreendendo uma multidão de experiências diferentes e

únicas, tendo causas diversas e caracterizadas por

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qualidades distintas, variando segundo certo número de

critérios: somato-sensoriais, viscerais, afetivos,

culturais e cognitivos. Ela possui várias intensidades,

denominadas pelo próprio indivíduo. Esta sensação pode ser

rápida, desconfortante, desolante, horrível e atroz. Para

algumas culturas, este sintoma também pode ser associado à

expiação de culpa.

“(...) o mundo interior depende do exterior, numa espécie de influência mútua (...) Se a destruição se proclama fora, terá lugar na interioridade de cada um, determinando atitudes que a pessoa, diante de si mesma, custa a reconhecer.”6

A dor física, muitas vezes, caracteriza-se num

prolongamento da psicológica. Ela é gerada no inconsciente

do sujeito e sem encontrar nenhum ponto de fuga, é

somatizada pelo corpo. A dor da alma nasce da angústia do

sujeito, esta advinda de algum sentimento de culpa. A

expiação, que gera o transtorno, é principalmente advinda

dos cânones religiosos ou familiares. Uma pessoa sofre não

apenas pelos danos físicos que possui, mas também pelas

conseqüências emocionais, sociais e espirituais que a vida

as submete.

6 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.21.

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3.1 - A ética da dor

Vimos no estudo anterior que a ética kantiana é

pautada sobre a noção de dever. Podemos concluir que o

“agir de forma boa” do indivíduo é baseado nesse dever, e

que isso pode significar certa castração da parte racional

à sensível. A busca e o alcance da felicidade, também

refletida por Kant, devem, assim, passar pelo

reconhecimento da alteridade. Sendo assim, veremos o que

Sartre diz sobre a felicidade e a responsabilidade perante

os outros indivíduos.

“O outro é o estranho, o desconhecido, a ameaça constante, o risco, a impossibilidade da paz. É o motivo que nos leva a desejar conhecê-lo, considerando o conhecimento uma forma de domínio capaz de espantar fantasias de insegurança e construir (quem sabe?) um mundo interior menos inquieto.”7

Muitas teorias mostram a questão da dor, alimentada

por uma angústia da condição humana que nos é refletida na

literatura. Dentre outras, optamos por levantar as questões

de Sartre e do existencialismo.

Em O Existencialismo é um Humanismo vemos o homem como

único responsável por suas ações. Sartre defende que o

sujeito primeiramente existe, se descobre, surge no mundo,

7 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.31.

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e só depois se define. Ele é como se concebe, como se

deseja, não é nada mais do que o que faz. Para o filósofo,

nada existe anteriormente a este projeto, o homem será o

que tiver projetado ser. Assim, o indivíduo tem a total

responsabilidade pela sua existência.

A escolha do homem implica numa escolha coletiva, o

reconhecimento do outro. O sujeito não é responsável pela

sua restrita individualidade, mas também por todos os

outros indivíduos. A partir do momento que ele escolhe um

parâmetro, uma moral para si, está de alguma forma

pormenorizando o que encontrar fora disso. É a criação de

uma imagem do homem como julgamos que ele deve ser.

Dessas questões existenciais, Sartre define o conceito

de angústia, ou seja, o reconhecimento da alteridade e da

responsabilidade perante o outro. Sendo esta última em

proporções muito maiores do que podemos supor, pois ela

envolve toda a humanidade. O homem torna-se angustiado

quando se vê ligado a um compromisso, que não é apenas o de

escolher ser, mas também o de legislar, pronto para

escolher a humanidade inteira.

Segundo essa filosofia, a angústia não leva jamais ao

quietismo ou à inação. Ela é a condição de sua ação. Numa

pluralidade de possibilidades deve-se fazer uma escolha, a

angústia faz parte da ação. O existencialismo é justamente

oposto ao quietismo, visto que declara que só há realidade

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na ação. O homem não é senão o seu projeto, só existe na

medida em que se realiza, não é, portanto, nada mais do que

o conjunto dos seus atos.

A descoberta da alteridade e a condição angustiante

desta levam à dor dilacerante, que implica sua

responsabilidade não somente com suas escolhas e fracassos,

mas perante todos que o cercam. A angústia surge como

opressão interior advinda do reconhecimento da

responsabilidade de construir não apenas a si, mas também a

toda humanidade. Eu, como um prolongamento da sociedade e

de seus participantes, não posso me preocupar somente com

minha individualidade. É a inquietação conseqüente da

escolha projetada no nada.

"A angústia é de fato a experiência do Nada e, portanto, ela não é um fenômeno psicológico. É uma estrutura existencial da realidade-humana, nada mais do que a liberdade tomando consciência de si mesma, como sendo seu próprio Nada." 8

Cito também Kierkegaard como complemento das idéias

anteriores:

"A relação da angústia com seu objeto, com uma coisa que não é nada (e dizemos também de um modo

tópico que estamos angustiados por nada)" 9

8 SARTRE, Jean-Paul. Diário de uma Guerra Estranha: novembro 1939, março de 1940/ Jean-Paul Sartre; tradução Aulyde Soares Rodrigues e Guilherme João de Freitas Teixeira. – 2 ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p.357. 9 KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia/ Sören Kierkegaard; tradução Torrieri Guimarães. – São Paulo: Hemus, 1968, p.85.

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A Náusea10, romance de Sartre - como exemplo ao que

discutimos -, nos apresenta um personagem central que

mergulha em angústias originadas no desconforto com o "eu",

sofrendo com suas atitudes ou falta das mesmas. Escrito em

forma de diário, o romance, através de seu narrador, nos

oferece um discurso suturado por conceitos existenciais que

apresenta a angústia como a incessante reflexão humana

sobre o agir, através de atitudes gratuitas, em direção ao

Nada. A solidão de Roquentin frente à responsabilidade de

suas escolhas faz com que a presença do outro e o seu

reconhecimento seja objeto fundamental para impedir sua

queda no abismo existencial.

Podemos conceber o romance de Sartre como uma

apresentação da dupla face da angústia: o mostrar do ser

abandonado no mundo, responsável pela suas decisões; e do

temor, que se reflete como essa angústia. As opções

ultrapassam o limite do sujeito, atingem conseqüências, que

escapam do nosso controle e trazem a inquietação pelo

futuro vazio que anuncia.

Podemos observar em romances de Sartre a preocupação

em apresentar um enredo que provoque o pensamento do

leitor, ao mostrar não apenas uma simples ficção, mas

também um laboratório filosófico em que personagens

10 SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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constroem o discurso do mundo e revelam em ações as

principais discussões do autor.

3.1.1 - O sujeito e sua vontade

O reconhecimento da alteridade e a necessidade da

convivência com o outro num âmbito social preconiza o

seguimento de regras e tabus que geram cada vez mais dor,

na medida em que castram, de alguma forma, a realização do

desejo do indivíduo.

“O sentido mais próximo e imediato de nossa vida é o sofrimento, e se não fosse assim, nossa existência seria o maior dos contra-sensos, pois é um absurdo imaginar que a dor infinita, que nasce da necessidade essencial à vida, da qual o mundo está pleno, é meramente acidental e sem sentido. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, mas o mesmo não ocorre com a nossa receptividade para o prazer, que tem limites estreitos. É a infelicidade geral que é a regra.”11

Schopenhauer é o filósofo que afirma que o princípio

metafísico passa a ser regido por um poder completamente

irracional. Este criou uma filosofia baseada no

irracionalismo sistemático, onde sua teoria baseia-se na

máxima de que a inteligência humana é essencialmente um

instrumento dos interesses pragmáticos da vontade. O mundo,

na sua essência, independente da consciência, é vontade. O

11 SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte/ Metafísica do amor/ Do Sofrimento do Mundo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, p.113.

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conhecimento imediato do meu corpo, a minha intimidade,

revela-se a mim como vontade. Meu corpo me é concebido de

duas maneiras diversas, uma como representação, submetido

às leis de todos os fenômenos que me aparecem; e como algo

imediatamente conhecido que se define por meio do termo

"vontade". Ele nada é senão a vontade que me aparece

exteriormente em forma de corpo. Sei-me, intimamente, como

um ser que quer, que deseja, e que nunca deixa de querer e

de desejar.

O mundo, como Vontade e Representação, é um só, visto

de dois lados: um, pela intimidade real, como ela me é dada

na intuição imediata do meu próprio corpo, outro, da

exterioridade fenomenal ou aparente, segundo as formas

subjetivas da minha inteligência. O mundo é, portanto, na

sua essência, vontade. Porém, irracional e cega, pois a

inteligência é só uma manifestação tardia dessa. Um mundo

que, na sua essência, é vontade de viver, é também de

sofrimento e dores, pois essa vontade irracional não

encontra, fora de si, nada que seja último fim onde pudesse

cessar. O próprio ser da vontade é um querer incessante e

eterno, um ansiar que nunca pode ser satisfeito, pois a

satisfação seria a própria contradição lógica desta.

Todo desejo é sofrimento, pois é a expressão de algo

que nos falta. E enquanto esse desejo é infinito e eterno,

a satisfação é limitada e breve. Do desejo satisfeito já

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nasce outro, e uma vez que alcançamos um estado de

saciedade, surge o tédio, tortura de igual grandeza.

A teoria de Schopenhauer demonstra um grande

pessimismo, já que a vontade não possui metas e gera dor. A

felicidade seria apenas uma interrupção temporária de um

processo de infelicidade maior, pois não existe satisfação

durável.

Dentro de nossa linha de pesquisa, podemos dizer que

essa vontade e sua satisfação encontram barreiras na vida

social do sujeito, que as deve reprimir em vista a sua

responsabilidade em relação ao outro. A castração gera dor

e conseqüente angústia nas escolhas diárias do indivíduo em

direção à liberdade e a conseqüente premonição do Nada. A

fuga necessária dessa dilaceração anunciada é a busca de

uma forma de sublimação dessas rupturas do desejo. Essa

sublimação é oferecida de diferentes formas por essa mesma

sociedade castradora ou pelo subconsciente do próprio

indivíduo.

3.1.2 - O mal-estar

Em Mal-estar na Civilização, Freud mostra os vários

aspectos psicológicos trazidos ao ser selvagem pelo

processo civilizatório que o torna Homem. O delírio

coletivo que introduz a cultura ao selvagem, por meio do

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que hoje se pode reconhecer como aparelhos ideológicos de

Estado, priva o homem da satisfação de parte dos desejos e

pulsões. Ao mesmo tempo, gera satisfação ou mal-estar pela

identificação (ou não) com o outro, o reconhecimento de si

como sujeito e a preservação da própria vida e da dos

demais da espécie.

A cultura, que dá ao bicho o nome de humano, leva o

ex-selvagem à noção de si (sujeito) e do outro (objeto).

Cria-se o desejo - no lugar das pulsões instintivas - e

seus objetos, como o amor, a felicidade, a tristeza, a

frustração, a doença, a saúde, dentre outros. Reprime a

agressividade, inventa a culpa, e gera doenças na alma e no

corpo. Destrói e constrói dando sentido à vida, já que dela

passa a ter consciência. Daí é formado, então, o aparelho

psíquico: o superego, consciência da lei externa, que

introduz o princípio de realidade; o ego, que faz a

mediação entre os mundos externo e interno; e o id, mundo

instintivo das pulsões, mediado pelo segundo e reprimido

pelo primeiro.

O custo do processo civilizatório, portanto, é o

sofrimento do dar-se conta dos sentimentos, sem dar conta

necessariamente de todos eles. Evitar o sofrimento ou o que

o gera coloca o alcance do prazer em plano inferior. A

energia investida pelo ego à satisfação de seus desejos, ao

encontrar a interdição do mundo externo, é reinvestida na

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busca de medidas paliativas e construções auxiliares.

Dessas podemos citar, como exemplo, o otimismo da religião;

satisfações substitutivas, como a sublimação oferecida pela

arte; e o uso de substâncias tóxicas, que dão acesso a um

mundo fantástico e prazeroso, em lugar do mal-estar

provocado pelo princípio de realidade.

A civilização é um delírio ao qual aderimos

involuntariamente ao nascermos. Portanto, somos

constituídos pelos fragmentos dos outros. Nossa busca

eterna e que causa dor está no que nos constitui de

verdade, e o que é a noção de verdade e do real.

Vimos em Schopenhauer que o homem vive enquanto

deseja, e que se a conquista dessa paixão a faz findar,

logo esta deverá ser substituída por outra. Em Mal-estar na

Civilização, Freud desenvolve a teoria da relação entre

pulsão e civilização, delineando assim, os destinos do

desejo na modernidade. O filósofo preocupou-se em estudar o

estatuto do sujeito nela, circunscrevendo seu mal-estar.

Ao pensar nas ameaças naturais sofridas pelo homem e

nos horrores que podem ser gerados nas suas relações com os

outros, podemos delinear uma imagem de fragilidade do

sujeito que leva ao desamparo. Esse sentimento, para

Birman, é algo de ordem originária para o indivíduo, o que

marca para sempre a subjetividade humana de maneira

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“indelével e insofismável”12. O desamparo seria aquilo que

instaura o mal-estar na modernidade, como a figura de

Medéia, que mata e engole os próprios filhos. Sob sua

força, o indivíduo se encontra diante da pressão constante

das forças pulsionais, que o perpassam de diferentes

formas. Para suportar tanta dor advinda da angústia das

pulsões e do desamparo, o sujeito é obrigado a constituir

um campo de objetos capazes de oferecer um possível

horizonte de satisfação, ou seja, ele deve constituir

efetivas possibilidades de sublimação, através da

construção de uma forma singular de existência.

3.1.3 - Do Tabu ao Totem

Partiremos dos conceitos de Tabu e Totem, também

preconizados por Freud, para entender melhor o caminho da

libertação buscada por todos nós.

“O apagamento da angústia não se consuma por inteiro. Sobram bordas de inquietação e de susto, levando-nos à sensação de que seguimos à beira de um abismo, num equilíbrio que tem os dias contados.”13

Para Freud, as restrições do tabu diferem-se das

proibições religiosas ou morais. Não são baseadas em

12 Denominações dadas por Birman. 13 LINS, Ronaldo Lima. A construção e a destruição do conhecimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009, p.18.

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nenhuma ordem divina, mas impõem-se por sua própria conta.

As proibições não têm fundamento e são de origem

desconhecida. Embora sejam ininteligíveis para nós, para

aqueles que por elas são dominados são aceitas como coisa

natural. O tabu, em sua tradição, nada mais é que o temor

objetivado do poder demoníaco que se esconde em um objeto,

fazendo-se proibido qualquer ato que possa provocar esse

poder. Ao que tudo indica, o tabu foi, gradativamente,

transformando-se numa força com uma base própria,

independente da crença em demônios.

“Peu à peu le tabou devient une puissance indépendante, distincte du démonisme. Il devient la contrainte imposée par la tradition et la coutume et, en dernier lieu, par la loi.”14

O tabu consiste nas coisas e acontecimentos que nós

não soubemos “digerir”, por algum motivo desconhecido à

consciência, e que permaneceu recalcado no inconsciente,

podendo, em muitas vezes, ser trazido à tona por

acontecimentos cotidianos. Também pode caracterizar-se - e

agora fazendo uma analogia à idéia dos demônios – em certos

medos “canonizados” pela sociedade, que infere na vida de

cada indivíduo participante dela.

Outro conceito também usado por Freud e que

funcionaria como a “cura”, a libertação do tabu, é o totem.

14 FREUD, Sigmund. Totem et Tabou. Paris: Éditions Payot, 1980. p.35.

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Culturalmente, o totemismo caracteriza-se como um sistema

que ocupa o lugar da religião entre certos povos primitivos

da Austrália, da América e da África, provendo a base de

sua organização social.

Freud acredita que, provavelmente, em alguma ocasião,

a cultura totêmica em toda parte preparou o caminho para

uma civilização mais adiantada, representando, assim, uma

fase de transição entre a era dos homens primitivos e a era

dos heróis e deuses. O totem constituía-se numa classe de

objetos materiais que indivíduos de determinada crença

encaravam com supersticioso respeito, acreditando existir

entre ele e todos os membros da classe uma relação íntima e

inteiramente especial. A vinculação entre um homem e seu

totem é mutuamente benéfica, o totem protege o homem e este

mostra seu respeito por aquele de diversas maneiras.

Essa idéia cultural, tanto como algo material ou

religioso, transformou-se para Freud em seu conceito

psicanalítico de sublimação. Chegar ao totem é transpor as

barreiras do tabu através da canalização das energias por

outra via, que seria o processo da sublimação de algum

recalque inconsciente, de algum tolhimento sofrido pelo

indivíduo.

Através desses conceitos freudianos que permeiam a

psicanálise, podemos dar um novo olhar ao conceito de dor e

angústia, antes perpassado pela teoria de Sartre e o

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existencialismo. Há grandes tabus em nossa sociedade e cada

indivíduo precisa passar por eles da forma mais amena que

lhe é possível. A sublimação das castrações do nosso desejo

pode tomar diferentes formas em nossa sociedade atual. A

busca pela religião, a devoção a certo tipo de atividade, a

total entrega ao trabalho e até mesmo a loucura são opções

de desvio do desejo. A busca incessante do indivíduo é pelo

desprendimento da dor insuportável da existência, e passar

desta à liberdade da alma.

Valemo-nos da teoria de Lessing, em sua obra

Laocoonte, para exemplificar a figuração da dor nas

representações da arte. Sua crítica envolve a escultura

grega, em um episódio da guerra de Tróia, e as teorias

estéticas sobre a beleza e o feio.

3.2 – A estética da dor

Diante do conceito de estética, posteriormente

apresentado e da concepção de belo, discorreremos, agora,

sobre a teoria de Lessing, a propósito da representação da

dor na poesia e nas artes em geral, baseada na sua

comparação entre as duas representações de Laocoonte - no

mármore e no papel. Lessing se utiliza da imagem de

Laocoonte, representada pela poesia de Virgílio e pela

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escultura, para traçar uma analogia entre essas duas

últimas manifestações da arte.

O grupo de Laocoonte é uma escultura em mármore, hoje

em dia exposta no Museu do Vaticano, em Roma. A estátua

representa Laocoonte e seus dois filhos, Antiphantes e

Thymbraeus, sendo estrangulados por duas serpentes. Esse

episódio dramático da Guerra de Tróia é também relatado na

Ilíada, de Homero e na Eneida, de Virgílio. Laocoonte,

pressentindo o perigo que o cavalo de madeira representava

para a cidade, protestou contra a idéia de levá-lo para

dentro das muralhas. Sua desconfiança atrai a cólera de

Minerva que o lança uma dor horrível, fazendo-o ficar cego.

Já que, mesmo cego, ele não pára de aconselhar a destruição

do cavalo, a deusa envia duas serpentes que atacam apenas

os dois filhos de Laocoonte, que, estando cego, não os pode

ajudar. As serpentes dilaceram as crianças e enfiam-se de

volta na terra.

Em seu prefácio, o autor fala de um efeito semelhante

entre a pintura e a poesia, quando ambas representam para

nós tanto a aparência como a efetividade, elas nos iludem e

a ilusão gera prazer. Ao penetrar no interior desse prazer,

descobrimos que elas fluem da mesma fonte: a beleza, que

abarca regras gerais. Refletindo sobre o valor e a

repartição dessas regras, podemos notar que umas competem

mais à pintura e outras à poesia. Devemos, aqui, ressaltar

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que Lessing compreende sob o nome de pintura as artes

plásticas em geral.

O autor utiliza-se de uma definição de Voltaire que

diz que a pintura seria uma poesia muda e a poesia uma

pintura falada, para apontar o erro de muitos críticos de

arte quando tentam encaixar a poesia nas fronteiras

estreitas da pintura, ou deixam esta preencher toda a larga

esfera da poesia. O equívoco está em compreender a mesma

concepção de certo e errado para ambas.

Em seu livro, Lessing pretende trabalhar esses juízos,

que em sua concepção, são infundados e errôneos.

O autor nos mostra a teoria de Winckelmann, que vê

como um ponto distintivo das obras gregas uma nobre

simplicidade e uma grandeza silenciosa, tanto no

posicionamento como na expressão do ser representado. Esta

grande e plácida alma expressa nas figuras dos gregos é

vista no Laocoonte. Apesar do sofrimento extremo, a dor que

se revela em todos os músculos, exterioriza-se sem nenhuma

fúria. A tolerância da dor engrandece a alma, e Laocoonte

sofre como um grande homem. Para Winckelmann, aqui o

artista ficou abaixo da natureza e não atingiu o patético

da dor, o que faz parte de uma sabedoria especial.

Para Lessing, no que compete à falta de fúria no

semblante de Laocoonte e ao brilhantismo do artista, a

teoria de Winckelmann está correta, mas é divergente quando

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afirma que os gregos sentiam e temiam, que externavam suas

dores e aflições. A expressão de uma alma grandiosa não

pode ser a causa para que o artista não imite o grito no

mármore. Virgílio, em seu poema, expressa esse grito com o

melhor propósito, comprovando que o gritar como forma de

dor corporal pode coexistir inteiramente com a grandeza da

alma. É assim que Lessing acusa Winckelmann de conceber sua

teoria se afastando da representação poética.

“O grito é a expressão natural da dor corporal. Os guerreiros de Homero não raro caem no chão aos gritos. A Vênus arranhada grita alto, não para a expor com esse grito como a deusa branda da volúpia, mas antes para fazer justiça à natureza sofredora. (...) Por mais que Homero, de resto, eleve os seus heróis acima da natureza humana, eles permanecem, no entanto, sempre fiéis a ela quando se trata das sensações de dor e de ofensa (...) Segundo os seus atos trata-se de criaturas de tipo mais elevado; segundo os seus sentimentos, verdadeiros humanos.”15

A pintura é uma arte que imita corpos em superfície. O

artista grego pintava apenas o belo, como um exercício, seu

deleite era o êxtase provocado aos seus observadores. Nos

antigos a beleza era a suprema lei das artes plásticas. O

que é compatível deve ao menos estar subordinado a ela, o

que não for, deve ser descartado. Ao contrário, os artistas

modernos não se preocupam com o belo, com o que está

representando, mas com a forma perfeita da imitação.

Lessing defende que há graus de paixões que se mostram

através de manifestações feias e nos colocam em posições

15 LESSING. Laocoonte. p.84-85.

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tão violentas que anulam qualquer traço de beleza. Com

isso, os artistas antigos se abstinham completamente dessas

ou se colocavam em posição inferior. A cólera era reduzida

à seriedade. O encobrimento é um sacrifício que o artista

ofereceu à beleza. Não só conduziram a expressão sobre os

limites da arte, mas antes a submeteu à sua primeira lei: a

beleza.

Em Laocoonte visou-se a suprema beleza sob as

condições aceitas da expressão da dor. Esta foi obrigada a

reduzir-se, a suavizar-se. O grito transformou-se em

suspiro, para que o rosto não tomasse a forma do feio e do

desprezível.

3.2.1 – A dor sem o belo

A arte nos tempos modernos conquistou fronteiras

incomparavelmente mais amplas. A lei primordial seria a

verdade e a expressão, o belo torna-se apenas uma pequena

parte. Assim, o mais feio da natureza é transformado num

belo da arte.

A realização do efeito da arte exige um espaço para o

desdobramento do pensar. Mostrar o extremo significa atar

as asas da fantasia, por não conseguir escapar da impressão

sensível, ocupando-se de imagens fracas sobre as quais a

imaginação teme a plenitude da expressão como sua

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fronteira. A obra de arte deve fazer com que o espectador

queira ver mais, sem se abrir completamente.

“Quando, portanto, Laocoonte suspira, a imaginação pode escutá-lo gritar; se, no entanto, ele gritasse, ela não poderia nem subir um degrau acima na sua representação, nem descer um degrau abaixo, sem olhá-lo num estado mais tolerável e, portanto, mais desinteressante. Ela o escuta apenas gemendo ou já o vê morto.”16

Lessing fala do efeito da beleza corpórea na poesia.

Aquela advinda da perfeição constitui um dos meios menos

importantes que o poeta pode utilizar-se para tornar seus

personagens interessantes para nós. As qualidades do herói

devem nos ocupar de tal forma que nem sequer pensaremos na

sua figura corporal. Quando Laocoonte de Virgílio grita,

não pensamos se ele precisa de uma boca grande e se essa o

tornará feio. Os clamores constituem um traço sublime ao

ouvido, por mais que sua face apresente qualquer falta de

beleza.

O Lacoonte que grita é justamente aquele que já

conhecemos e nos afeiçoamos como o patriota mais cordato e

o pai mais afetuoso. Os heróis devem mostrar sentimento e

exteriorizar a sua dor, permitindo que a simples natureza

atue sobre eles. Se derem mostras de adestramento ou

pressão, nos deixarão indiferentes e poderão, no máximo,

suscitar admiração.

16 LESSING. Laocoonte. p.100.

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Extrapolando a visão de Virgílio, como um poeta

narrador, o autor decide falar também do dramático. O drama

é destinado à pintura vivaz do ator, devendo, por isso,

ater-se de modo mais rígido às leis da pintura material.

“Quanto mais o ator se aproxima da natureza, tanto mais sensivelmente os nossos olhos e ouvidos devem ser violentados; pois é irrefutável que eles o são na natureza, quando ouvimos manifestações da dor tão altas e violentas.”17

Ainda com o pensamento da descrição do indivíduo

voltado para a verdade da natureza, Lessing não se

preocupou com o sujeito como pluralidade. O conflito

existencial do homem será tratado por outros filósofos, o

que mudará ainda mais o conceito de beleza. Ainda que

Lessing trate o belo como um retrato fiel da natureza, ele

o alia à virtude, característica essa que não predominará

em heróis da modernidade.

3.2.2 - As implicações do feio

Lessing discorre também sobre o feio e suas

implicações na arte. O crítico afirma que uma única parte,

não apropriada, pode destruir o efeito harmonioso de outras

que tendem para a beleza. Sendo assim, o feio não poderia

ser um objeto da poesia. Contudo, Homero expõe a feiúra

17 LESSING. Laocoonte. p.106.

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extrema no Tersites, o que pode ser justificado por Lessing

que propõe que nas descrições do poeta o feio torna-se uma

aparição de imperfeições corpóreas menos repugnantes, o que

deixa de ser feiúra, pois se torna utilizável pelo poeta. O

que este não pode usar por si mesmo ele utiliza como um

ingrediente para gerar e reforçar certos sentimentos

mistos, com os quais deve entreter na falta de sentimentos

puramente agradáveis. E esses sentimentos mistos são o

ridículo e o terrível.

Tersites torna-se ridículo, não somente pela feiúra,

mas pelo contraste entre perfeições e imperfeições. Um

corpo mal formado e uma bela alma são para Lessing como

óleo e vinagre, por mais que se misturem, permanecem

separados ao paladar. Somente, quando o corpo deformado é

ao mesmo tempo delicado e doentio, desgosto e comprazimento

coexistem. Em Tersites vemos a feiúra e o inofensivo, que

juntos geram o ridículo. Assim como o terrível vem da

feiúra prejudicial.

Lessing leva a questão do uso da feiúra das formas

pelo poeta ao campo da pintura. A pintura enquanto destreza

imitadora pode expressar o feio, mas enquanto bela arte não

o quer mostrar. Nem todos os sentimentos desagradáveis

despertam gosto na imitação. As representações de medo,

tristeza e terror podem excitar somente desprazer na medida

em que tomamos o mal como algo permanente. A feiúra

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violenta contraria nosso gosto pela ordem e harmonia, e

desperta repugnância sem levar em consideração a existência

efetiva do objeto no qual nós a percebemos.

A feiúra de Tersites desagrada menos, pois possuímos a

faculdade de abstrair o feio e nos deleitar simplesmente

com a arte do pintor. Mas, para Lessing esse deleite será

interrompido a todo o momento pelo pensamento de como a

arte foi utilizada de modo ruim. Aristóteles dá outro

motivo para esse prazer, quando diz que o gostar é

proveniente da ânsia universal de saber dos seres humanos.

Porém, esse prazer que surge da satisfação da nossa ânsia

de conhecimento é momentâneo, e o desprazer que acompanha a

visão do feio é permanente.

Segundo Lessing, a feiúra das formas não pode ser por

si, e em si mesma, objeto da pintura enquanto bela arte. O

sentimento desagradável não se torna contrário graças à

imitação. Portanto, o feio não pode ser útil para a arte

enquanto ingrediente para fortalecer outros sentimentos,

como vimos no caso da poesia.

“Na poesia, a feiúra das formas perde quase totalmente o seu efeito desagradável através da transformação das suas partes coexistentes em sucessivas; desse ponto de vista ela como que deixa de ser feiúra e pode, portanto, ligar-se tanto mais intimamente a outras aparições para produzir um novo efeito particular. Por outro lado, na pintura a feiúra possui todas as suas forças reunidas e não atua de modo muito mais fraco que na natureza mesma. A feiúra inofensiva não pode, consequentemente, permanecer muito tempo ridícula; o sentimento

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desagradável predomina e o que de primeiro era divertido torna-se na seqüência simplesmente repugnante. Não se passa de modo muito diferente com a feiúra prejudicial; o terrível perde-se mais e mais e apenas o amorfo resta, só e imutável.”18

Lessing mostra a visão do crítico de arte Mendelssohn

que encontra entre as paixões desagradáveis e o asco uma

notável diferença. As paixões desagradáveis podem

frequentemente agradar o ânimo, não só na imitação como na

natureza mesma, pois elas nunca excitam um desprazer puro,

mas antes misturam a sua amargura com volúpia. No asco a

alma não reconhece uma mistura perceptível de prazer, o

desprazer é o sentimento máximo adquirido.

O crítico utiliza-se da teoria do asco para

classificar o sentimento do feio das formas. Aqui também

não há mistura de prazer, assim, não há um estado em que o

ânimo não devesse retroceder com desgosto a sua

representação. Mendelssohn ainda afirma que somente os

sentidos mais obscuros: o paladar, o olfato e o tato seriam

expostos ao asco, e que não existiria nenhum objeto

asqueroso sentido somente pela visão. O autor de Laocoonte

o contraria dizendo que podemos reconhecer tais objetos,

que não seriam repugnantes nem ao olfato, nem ao tato, mas

sim à visão. O asco relaciona-se com a imitação, da mesma

forma que o feio. Seu efeito desagradável pode tornar-se

18 LESSING. Laocoonte. p.261.

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objeto da poesia ou da pintura, pois ele é suavizado graças

à expressão.

A pintura e a poesia querem o asqueroso não somente

devido ao sentimento de asco, mas para reforçar com ele o

ridículo e o terrível. Os riscos que se correm em eleger

esse tipo de representação é que, ao passo que a surpresa

do impacto se desfaz, assim que o primeiro olhar ávido for

satisfeito, o asco se separa completamente do ridículo, ou

do terrível, e resta somente na sua própria figura crua.

Lessing, portanto, não discorre sobre a prosa, como

forma de arte. Por isso, para que possamos entender as

proposições do filósofo, agora baseadas em nossa ferramenta

principal de trabalho, propor-nos-emos em fazer um breve

estudo sobre Dostoiévski e seu romance Crime e Castigo.

3.2.3 - Traçando um paralelo entre Lessing e Dostoiévski

3.2.3.1 – Crime e Castigo

O romance Crime e Castigo gira em torno do crime de

Raskólnikov. Para ele, os indivíduos que moldam a história

da humanidade são considerados extraordinários, e seu crime

passa a ser uma espécie de auto-teste de seus limites.

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Aliena Ivanovna era uma velha odiada por muitos, por ser a

pessoa que penhorava jóias ou objetos que possuíam mais do

que um valor comercial para seus donos. Por isso, nenhum

peso seria gerado na consciência de Raskólnikov se ele a

matasse, pois se não fizesse isso, outro faria em seu

lugar. E esse foi o conforto que teve ao matar a velha, mas

pouco depois do crime, teve que fazer o mesmo com a irmã de

Aliena, Lisavieta, que havia aparecido e visto tudo.

No decorrer do romance, Raskólnikov descobre que

Lisavieta já havia costurado uma roupa sua, e a certeza de

que ela era uma boa pessoa torna-se o começo de sua

angústia interna. Se sua consciência já parecia perturbada

antes de cometer o crime, agora será o ponto crucial de

todo o seu tormento em relação ao crime cometido, o que

leva a um questionamento da existência ou não de uma moral

no cosmos. Em certa ocasião, o personagem conhece Sônia

que, sem escolha, sustenta sua família com a prostituição,

o que a caracteriza em uma figura angelical, pela qual

Raskólnikov se apaixona. Ela será uma peça importante no

processo de conversão do personagem, que, porém, não se dá

em totalidade até o final da obra.

No romance, o inspetor Porfiri Pietróvitch representa

o determinismo quando pensa em conseguir pegar Raskólnikov

pela análise psicológica do discurso. Visto que o homem em

Dostoievski é visto como inacabado, por representar um ser

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do infinito (da polifonia), este recurso de Porfiri tende

ao fracasso. Depois de uma queda, esse infinito,

característico do sujeito, é vivido como um inferno

constante, a imagem projetada no espelho passa a ser o

niilismo. A única salvação do homem está em atravessar esse

infinito perturbador, a experiência da liberdade em

Dostoiévski vem da experimentação pós-queda.

O sofrimento psicológico é revestido de certa

sacralidade, pois é ao passar pelo inferno da polifonia

interna que encontramos o sentido construtivo da travessia.

É este caminho que fará o indivíduo estar mais próximo de

ser o que ele realmente é, um ser “sobrenatural”19. O

caráter constante de polifonia do personagem nos remete ao

conflito e à angústia da travessia. A ânsia de Raskólnikov

pela busca de um significado é tão intensa, que o vagar lhe

traz febres, é um momento de “desalienação”. Tal movimento

de travessia produz um autoconhecimento, uma constante

“descoisificação”, por meio da eterna polifonia consigo

mesmo. Cito uma passagem de Crime e Castigo, que ilustra o

estado de consciência de Raskólnikov ao pensar no crime que

iria cometer:

“E de repente voltou a si.

19 Adjetivo atribuído por Luiz Felipe Pondé, em seu livro Crítica e Profecia.

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‘Depois daquilo – exclamou ele, arrancando-se do banco -, ora, por acaso aquilo vai acontecer? Será possível que vá mesmo acontecer?’ Abandonou o banco e saiu, quase correndo; quis voltar, para casa, mas esse ‘para casa’ lhe deu um súbito e terrível asco: fôra lá, no canto, naquele terrível armário que amadurecera tudo aquilo havia já mais de um mês, e ele saiu sem rumo. Seu tremor nervoso transbordou em um tremor algo febril; chagou até a sentir calafrio; ficou com frio em meio a todo aquele calorão.”20

O crítico Luiz Felipe Pondé vê a teoria de Maquiavel

na insistência de Raskólnikov em divagar sobre a figura de

Napoleão, ao longo do romance. Para ele, não há na história

um personagem que se identifique tanto com o Príncipe. E,

na linguagem de Maquiavel, o homem extraordinário é o

indivíduo que possui virtù. Para ele o ser humano é um caos

de paixões, medo, interesse e fraquezas, e qualquer outra

coisa, além disso, é metafísica, construção e não empiria.

Um bom príncipe é aquele que sabe observar o ser humano

naquilo que ele realmente é. Portanto, alguém que não

perceba que o indivíduo é incapaz de se organizar, não

serve para príncipe, pois se permitir que ele seja “livre”

e faça o que tiver vontade, a única coisa que vai conseguir

é destruir-se sem nenhuma legitimidade. Assim, o sujeito

que possui virtù é aquele que está acima dos outros, pois

consegue se reconhecer como vítima das paixões, que não

deve dar muita atenção aos seus desejos, porque se o fizer

eles o levará a destruição.

20 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. p.68.

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“Maquiavel afirma que o príncipe deve ser extremamente competente no uso da violência, isto é, se ele tiver de matar alguns milhares de pessoas em determinado momento, o que determina a avaliação de seu ato, não é um código moral anterior, mas o resultado desse ato em termos da manutenção do Estado. Mas o que é ‘estado’ senão ‘estar’ no particípio ou um ‘estando’ contínuo, no sentido de ser igual a si mesmo durante algum tempo? É o que falta ao ser humano, segundo Maquiavel: a capacidade de ser ‘estado’, isto é, ter e ser continuidade e estabilidade, enfim, sustentar uma ‘identidade’.”21

Maquiavel é radical ao falar do comportamento humano,

para ele não há nenhum sentido cosmológico nisso. O que se

vê é um espetáculo do desejo destruindo a todos e que se

alguém, por acaso, possui virtù poderá manter um estado

precário, mas, em algum sentido, melhor do que os outros,

pois o sujeito precisa desse Estado para existir, isso o

faz menos caótico do que ele realmente é.

Contudo, para Dostoiévski há a presença do niilismo

nisso tudo. Seu projeto de liberação da modernidade é de

base niilista, e diz que o ser humano vai chegar ao

absoluto e ao nada em tudo, como se isso fosse sua

liberdade. E, quando se achar na contingência absoluta,

começará a culpar os outros e eximir-se de suas

responsabilidades. Assim, podemos, de alguma forma,

aproximar Maquiavel do niilismo, pois ao dizer que o

ajuizamento sobre o valor da vida humana é o resultado da

21 PONDÉ, Luis Felipe. Crítica e Profecia.

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morte num contexto político, é afirmar que a vida humana

não é nenhuma fonte de valor.

Isto é o que está na base do pensamento de

Raskólnikov, a ideologia que o leva a fazer o que ele faz.

Seu desespero e sua agonia estão em não conseguir se

convencer daquilo que queria. No final do romance, ele

acaba se convencendo de que matou aquela mulher porque

queria e nada mais, e não por nenhuma teoria. Não foi uma

causa humanística, porque a velha era má com todos, e sim

porque ele teve seu momento de maldade voluntária. É

importante que o indivíduo faça todo o trajeto da miséria

para perceber que existe o mal sim, e que este está

hospedado nele. Isso nos mostra que existe algo de

sanidade, pois atrás da recusa da substancialidade do mal

está a sua denegação.

Indivíduos que fracassam como Raskólnikov, de alguma

forma se salvam. Mas para tanto, ele tem que pagar pelo seu

crime, e, por conseqüência, vai para a cadeia. Na

realidade, a salvação de Raskólnikov foi perceber que não

consegue se convencer de que ele é um indivíduo

extraordinário. Ele não tem virtù, não é Napoleão e não

consegue estar além da mísera condição humana, do caos que

o ser humano é, da manipulação das paixões. Para

Dostoiévski o caminho não seria negar o caos de paixões,

mas atravessá-lo, e é isso que Raskólnikov consegue ao se

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reconhecer fraco. Talvez o erro do pensamento religioso

moderno seja ter pulado o sofrimento para ir diretamente ao

remédio, há que retornar uma reflexão sobre a condição

humana para conseguir atravessar o mal e não somente

superá-lo.

Raskólnikov se julgou extraordinário e matou, pois

indivíduos extraordinários são capazes de fazer o que os

outros não fazem, não por serem melhores, mas por serem

hipócritas e mentirosos. Assim, percebe que não é

extraordinário, senão não estaria passando pela angústia do

crime cometido. Pavel Aristov, que o personagem conheceu na

prisão, é um indivíduo extraordinário de fato, pois está

acima da moral, conseguindo estabelecer o clímax do mal.

Podemos perceber isso na forma em que Raskólnikov fica

impressionado quando seu companheiro de cadeia fala dos

crimes cometidos, com completa isenção de sentimento e

culpa.

3.2.3.2 – Lessing e Dostoiévski

A expressão da dor em Dostoiévski apresenta alguns

aspectos distintos da discutida em Lessing, mas sua

essência permanecerá a mesma. Nesta última, vimos a

comparação da dor de Laocoonte em dois tipos distintos de

arte. Atendo-nos à poesia, Lessing nos mostra uma forma

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mais ampla de mostrar os sentimentos, pois, munidos da

palavra, podemos fazer com que o nosso leitor tenha um

poder maior no exercício de sua imaginação. A escrita nos

daria uma maior possibilidade de expressão, que estaria

limitada nas formas de arte visual. A imaginação fomentada

pela palavra teria um poder maior ao da visão imediata.

Em Laocoonte a dor é física, causada pela maldição de

Minerva. As serpentes que se enrolam em Raskólnikov são

psicológicas, criadas pela sua angústia da consciência. A

intensidade da dor pode ser a mesma, tendo em vista que

Laocoonte também sofre pela culpa de seus filhos estarem

sendo esmagados. A culpa aqui é a força motriz e o

dilaceramento maior da angústia desses dois personagens. O

que Virgílio e Homero mostram no corpo de Laocoonte,

Dostoiévski mostra na consciência de Raskólnikov. Cito uma

passagem do romance em que o personagem reflete sobre a

natureza do crime:

“Segundo sua convicção, ocorre que esse eclipse da razão e esse abatimento da vontade se apossam do homem como uma doença, evoluem gradualmente e chegam ao ponto máximo um pouco antes do cometimento do crime; continuam da mesma forma no próprio momento do crime e algum tempo depois dele, dependendo do indivíduo; em seguida passam da mesma forma como passa qualquer doença. Mas a questão: é a doença que gera o crime ou o próprio crime, por sua natureza específica, de certa forma é sempre acompanhado de algo como uma doença?”22

22 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. p.85.

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Na era do humanismo renascentista, Lessing fala do

paragone entre a pintura e a poesia. A preocupação do

crítico era produzir uma comparação entre essas duas formas

de arte, tendo em vista o Renascimento que se caracterizava

pela expressão perfeita dos corpos no mármore e na tela.

Lessing defende, em seu texto, a poesia como arte superior

à pintura. A primeira, ao trabalhar com a linguagem, possui

um campo mais amplo capaz de induzir o leitor a percepções

muito além do que as produzidas pela simples visão de uma

cena talhada ou pintada. E também, a figura reproduzida só

contará com um momento, enquanto a linguagem trabalhará com

diversos. Os corpos, objeto da pintura, contam apenas com o

espaço, já as ações, referentes à poesia, ilustram espaço e

tempo.

Ao analisar o romance Crime e Castigo, estaremos

observando outra forma de arte: a prosa. Esta, como a

poesia, também se utilizará da linguagem, o que lhe dará um

amplo recurso para o jogo de percepções do leitor. A dor,

tanto comparada por Lessing, não será expressa da mesma

forma, pois, saímos da era física do Renascimento e

passamos à era psicológica. O que veremos agora não é mais

a angústia do sofrimento físico, mas a da consciência. As

serpentes que se enrolam em Laooconte ainda existem, mas

ganham novas formas subjetivas, viram a alegoria da

castração e do medo, em personagens que não serão mais

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caracterizados como os heróis gregos. Aqui, eles não terão

mais a virtude como sua principal característica, mas serão

indivíduos como nós, impregnados de defeitos.

As serpentes sufocarão Raskólnikov quando ele

encontrar-se em meio à angústia do crime cometido. Minerva

aqui será sua consciência, que o lançará um doloroso

castigo. Enquanto Virgílio e Homero cantam a dor física de

Laocoonte, através de sua expressão e de seu grito,

Dostoiévski escreverá a angústia de seus personagens, pela

luta interna do sujeito e suas múltiplas vozes. Os

primeiros mostrarão um herói, cuja dor o eleva a uma

condição superior ao dos outros homens, o segundo tratará

da condição precária do ser humano, que se encontrará

perdido em meio as suas ações. Cito uma passagem onde

observamos uma descrição da angústia de Raskólnikov:

“Assim ele se atormentava e se provocava com essas perguntas, até com algum prazer. Aliás essas questões todas não eram novas, nem repentinas, mas antigas, remotas, nevrálgicas. Fazia muito que elas haviam começado a atormenta-lo e lhe tinham atormentado o coração. Há muito tempo essa melancolia de hoje surgira nele, crescera, acumulara-se e ultimamente amadurecera e se concentrara, assumindo a forma de uma pergunta terrível, absurda e fantástica, que lhe atormentara o coração e a mente, exigindo irresistivelmente uma solução. (...) Precisava decidir-se a qualquer custo, fosse lá pelo que fosse, ou... Ou renunciar totalmente à vida! – gritou de repente com furor -, aceitar docilmente o destino como ele é, de uma vez por todas, e sufocar tudo em mim, abrindo mão de qualquer direito de agir, viver e amar!’”23

23 DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Crime e Castigo. p.61.

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A dor não mais engrandece o homem, ela só o reafirma

em sua condição de sujeito precário, vítima da não

consciência de sua multiplicidade. Aqui, a linguagem

textual também se colocará como superior às artes visuais.

Algumas pinturas e esculturas da era moderna tentarão

representar a angústia psicológica do homem, mas esta não

será tão bem refletida como fizeram os autores da

subjetividade.

O grito de Laooconte pode ser sentido na consciência

de Raskólnikov. Suas diferentes vozes gritam querendo

sobrepor-se umas as outras, lutando por uma saída de suas

ações.

“Vez por outra apenas resmungava alguma coisa com seus botões, pelo hábito de monologar que ele mesmo acabara de reconhecer de si para si. No mesmo instante reconheceu que suas idéias às vezes se embaralhavam e que estava muito fraco.”24 “Mas não conseguia traduzir a sua perturbação nem em palavras, nem em exclamações. O sentimento de um asco sem fim, que começava a oprimir-lhe e angustiar-lhe o coração(...) Caminhava pela calçada como um bêbado, sem notar os transeuntes e esbarrando neles, e só se deu conta quando já estava na rua seguinte.”25

Dostoiévski, como Homero, não ameniza a dor para que

esta não se torne incômoda aos olhos do leitor, o que

também se caracteriza como uma diferença que não sentimos

mais em relação às artes visuais. Enquanto Laooconte foi

lapidado no mármore com a boca entreaberta para que seu

24 Ibdem, p.20. 25

Ibdem, p.26.

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grito não chocasse as pessoas, as artes modernas, em

oposição, abusam de expressões, cores e recursos que mexam

profundamente com os sentimentos. Agora, a dor e a angústia

devem ser passadas de maneira genuína, não somente pela

visualização do momento do personagem, mas na impressão que

a obra causa no interior dos seus espectadores.

Em Dostoiévski teremos o constante incômodo, ao ter

que conhecer a vida, as angústias e a precariedade de seus

personagens. Raskólnikov nos parecerá asqueroso,

primeiramente pela sua apatia perante os acontecimentos que

lhe ocorrem na vida, depois por sua atitude ao ver-se sem

escolha e cometer o assassinato, e por último pela sua

perturbação decorrida do ato cometido.

Os autores subjetivos não terão mais a preocupação com

a beleza, a preocupação será apenas no reflexo do sujeito

como ele é realmente. Os heróis agora são providos de

imperfeições e medos. A condição latente do indivíduo causa

náusea em quem a ela é exposto. Ler esses personagens é

ver-se como tal, é descobrir-se com o mesmo aspecto

terrível, possuidor da mesma multiplicidade angustiante.

Perceber-se como ser humano feio traz à tona o sentimento

de asco, de repugnância. E esse é um dos principais

objetivos de autores como Dostoiévski, fazer o leitor

reconhecer-se como indivíduo precário. A dor extrapola o

campo do texto e dos personagens, passando a ser o nosso

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sentimento, o do leitor que se depara com o espelho da sua

alma.

No capítulo seguinte, trataremos do romance escolhido

como foco principal de nossas hipóteses: Fogo Morto, de

José Lins do Rego, para melhor exemplificar - de maneira

mais completa - a trajetória angustiante da dor de existir

e da conscientização do outro como responsabilidade do

sujeito que vive. Romance composto de três personagens

nucleares, narra em cada capítulo de sua trama a trajetória

de cada um desses em uma pequena cidade do sertão

nordestino. Aqui veremos histórias de dor, angústia, tabus

e busca da sublimação.

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4 - Fogo Morto, de José Lins do Rego

4.1 - O movimento modernista

No decorrer da primeira década do século XX a Europa

assistiu à queda de todo seu sistema vigente. Os jovens

reagiam aos padrões da sociedade, aspirando destruir os

valores tradicionais. Semelhante reação aparentava-se à

posição socialista radical ou ao niilismo filosófico de

seus responsáveis, em uma atitude devastadora, denominada

vanguarda. A participação brasileira naquele conjunto de

idéias mostrou-se tardia. Tivemos de adaptá-las à nossa

maneira, dentro da nossa forma geográfica e histórica, e às

peculiaridades mentais aqui vigentes. O Modernismo surgiu,

a partir de tal encaminhamento, após a Semana de Arte

Moderna, e atuou como força renovadora na literatura. Após

1922, todas as tentativas de reforma foram etapas de

evolução, de condicionamento aos costumes e cultura locais.

“Quanto ao termo “modernista”, veio a caracterizar, cada vez mais intensamente, um código novo, diferente dos códigos parnasiano e simbolista. “Moderno” inclui também fatores de mensagem: motivos, temas, mitos modernos. Com o máximo de precisão semântica, dir-se-á que nem tudo que antecipa traços modernos será modernista; e nem tudo o que foi modernista parecerá, hoje, moderno.”26

26 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. pg: 331.

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Os intelectuais do início do século absorviam a

cultura trazida da Europa, de seus vários anos de estudos

fora do Brasil. Tentavam adaptar os costumes e as

tendências às cidades brasileiras, quando decidiram por

revolucionar e instaurar de vez a era do Modernismo no

país. O marco da difusão e da solidificação do movimento

aconteceu com a cerimônia da Semana de Arte Moderna, em São

Paulo. Esta representou a confluência das várias tendências

de renovação que vinham ocorrendo na arte e na cultura

brasileira antes de 22, cujo objetivo era combater a arte

tradicional.

Após o evento, eclodiram publicações de livros,

revistas e manifestos que buscavam a consolidação do

movimento e das ideologias. A preocupação estava em acertar

o passo com a modernidade intelectual dos países europeus e

dar relevo às raízes brasileiras, à criação de um produto

nacional que se distinguisse da ideologia romântica de

outrora.

A primeira fase do Modernismo caracterizou-se por

idéias relacionadas à visão nacionalista, porém crítica, da

realidade brasileira. Os autores dessa fase se propõem a

defender a reconstrução da cultura brasileira sobre bases

nacionais, promovendo uma revisão crítica do passado

histórico-social e das tradições culturais, eliminando de

vez o complexo de “colonizados”.

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Em sua segunda fase, ao lado dos problemas de um

Brasil em crise, o Modernismo deu rumo a novos estilos de

ficção marcados por uma volta ao naturalismo e pela

captação objetiva dos fatos. Tínhamos antes, uma ficção

impregnada de um realismo marcado pela idéia do

“científico” e do “impessoal”, descartado por romancistas

da década de 30. Estes amadureceram a compreensão de que o

peso da tradição se remove e se abala pela vivência sofrida

e lúcida das tensões que compõem as estruturas materiais e

morais do grupo em que se vive. Compreenderam que cada

situação devia ser expressa de maneira nova, baseando-se na

realidade nacional. A partir de então, a ficção moderna de

nossos escritores passou a dividir-se em duas grandes e

importantes linhas temáticas: a regional e a intimista.

O interesse pelo regional nasceu com Gilberto Freyre e

suas proposições do Movimento Regionalista. Formou-se uma

preocupação em descrever a região, no que compete ao

recorte geográfico, à sociedade e à cultura, imersos,

agora, em uma visão crítica das relações sociais. Essa

realidade muitas vezes se apresenta menos áspera e mais

acomodada às tradições do meio, mas em outras, podemos

observar a dureza do testemunho individual.

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4.2 - Fogo Morto e José Lins do Rego

Na produção de José Lins do Rego, o ponto principal

corresponde ao chamado ciclo da cana-de-açúcar. Partindo de

experiências autobiográficas, o escritor encontra na

memória o fundamento de seus romances, nos quais fixa

melancolicamente a decadência do engenho-de-açúcar,

substituído pela usina, como modo de produção.

O Manifesto Regionalista, assinado por Gilberto

Freyre, em 1926, contém fundamentos sociológicos e

tendências à crítica social, colocando em primeiro plano os

problemas de classe e os aspectos ultra-individuais da vida

regional. Porém os romances acabaram por absorver a

estrutura do documentário, em virtude do vezo naturalista

com que alguns autores o trataram. Terminaram

transformando-se em monografias sócio-econômicas. Na ânsia

da mímeses, o reflexo estilístico da realidade cedeu lugar

à simples retratação pitoresca.

As obras de José Lins do Rego nos mostram um caráter

regionalista de descrição social. A par disso, Fogo Morto

aparece como ponto mais alto de sua criação, onde o autor

consegue, em perfeita confluência, mostrar o enlace entre o

social e o indivíduo participante deste. Incluso ainda no

ciclo do açúcar, o romance nos traz a figura da dor e das

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inquietações humanas em plano principal ao da terra.

Romance singular demonstra um afastamento da concepção

regionalista e socialista do chamado universo “coletivo”.

Sua preocupação primeira não é a de marcar os caracteres de

uma sociedade, mas a força do personagem. José Lins do Rego

vê agora o nordestino não somente como um indivíduo

assimilado à sua realidade social e ecológica, mas ao

complexo humano integrado em circunstâncias peculiares.

José Américo de Almeida conclui que, no romance

regionalista, há “uma ausência de atmosfera introspectiva”

a favor da “massa que espontaneamente, rudemente, passa a

vibrar ao toque da arte”27, o que se torna inválido para

Fogo Morto que, na década de 40, se inscreve no estilo

regionalista – psicológico, tornando-se um romance ímpar da

obra de Lins do Rego.

4.2.1 – Sobre José Lins do Rego

José Lins do Rego publicou doze romances, um volume de

memórias (Meus Verdes Anos), um de literatura infantil

(Histórias da Velha Totônia), além de livros de viagem,

conferências e crônicas. Seus romances são normalmente

27 ALMEIDA, José Américo de. “Gilberto Freyre, Nova Forma de Expressão”. in: Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte. Ensaios sobre o autor de Casa Grande e Senzala. Publicação comemorativa. Rio de Janeiro, 1962, p. 25.

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classificados em "ciclos", séries de obras versando sobre

os mesmos temas.

Em 1932, o autor publicou seu primeiro livro, Menino

de Engenho. Custeado com seus próprios recursos, o livro

recebeu críticas favoráveis e tornou-se um grande sucesso.

No ano seguinte, publicou seu segundo romance, Doidinho. A

partir daí, José Lins do Rego tornou-se um escritor de

prestígio, estimado pelo público. Passou a publicar um

romance por ano: em 1934, Bangüê; em 1935, O Moleque

Ricardo; em 1936, Usina; em 1937, Pureza; em 1938, Pedra

Bonita; e em 1939, Riacho Doce. O autor consagrou-se como

mestre do regionalismo.

As obras do chamado “ciclo da cana-de-açúcar” são as

mais importantes. Partindo de experiências autobiográficas

– a vida no engenho do avô –, o escritor encontra na

memória o fundamento de seus romances, nos quais fixa

melancolicamente a decadência do engenho de açúcar,

substituído como modo de produção pela usina. Participante

ou pelo menos observador deste processo, José Lins do Rego

esforça-se para registrar a verdadeira revolução social

desencadeada pela nova tecnologia de produção açucareira

que, em pouco tempo, levou um grande número de senhores de

engenho a mais completa bancarrota econômica. As

características marcantes desse ciclo são: o memorialismo,

a visão de mundo sob a ótica do senhor de engenho, a

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linguagem espontânea e certa consciência crítica em relação

à miséria e ao subdesenvolvimento do Nordeste. No prefácio

de Usina, o próprio José Lins do Rego delimitou seu “ciclo

da cana-de-açúcar”:

“A história desses livros é bem simples: comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço da vida o que eu queria contar. Sucede, porém, que um romancista é muitas vezes o instrumento apenas de forças que se acham escondidas no seu interior.”28

Publicado em 1943, Fogo Morto é a última obra-prima do

regionalismo neo-realista surgido no Brasil durante a

década de 30. Obra-prima, pois percorre uma vereda

intimista que o difere e destaca dos outros textos de José

Lins do Rego. Prevalece uma narrativa direta, sem as

ousadias formais de romances como de Oswald de Andrade ou

de Mário de Andrade. Os regionalistas de 30, como Jorge

Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego, enfatizam,

assim como o modernismo inicial, o uso da linguagem

coloquial, popular, na obra de arte literária.

Fogo Morto é também o último suspiro da série de

romances a que o próprio autor haveria de chamar de “o

ciclo da cana-de-açúcar”, que tem como matéria básica o

engenho Santa Rosa, do velho José Paulino. Fogo Morto acaba

por ser a maior obra deste ciclo, pois, ao minimizar o

28 REGO. José Lins do. Usina.

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caráter autobiográfico e nostálgico das obras precedentes,

o romancista paraibano acrescenta a sua extraordinária

facilidade de narrar a objetividade e a consciência

compositiva que o caráter sentimental e espontâneo das

obras anteriores encobria. Em Fogo Morto, portanto, o

romancista maduro e consciente se sobrepõe ao memorialista

nostálgico para construir sua obra ímpar em síntese,

aprofundamento e condensação de todas as outras.

4.2.2 – O ciclo da cana-de-açúcar

O ciclo da cana-de-açúcar foi a primeira atividade

economicamente organizada do Brasil. A partir da fundação

do primeiro engenho de cana-de-açúcar por Martins Afonso de

Souza, em 1532, e por mais de dois séculos o açúcar foi o

principal produto brasileiro, convivendo, contribuindo e,

às vezes, resistindo às mudanças sócio-político-culturais

deste período. Muitos engenhos se proliferaram pela costa

brasileira. O Nordeste, principalmente o litoral

pernambucano e baiano, sorveu a maior parte da produção

açucareira da colônia.

A necessidade de colonizar a terra para defendê-la e

explorar suas riquezas fizeram com que o Governo de

Portugal instalasse engenhos produtores de açúcar no nosso

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litoral, essa cultura foi escolhida por se tratar de um

produto de alto valor no comércio europeu e por seu consumo

crescente na Europa. Logo, após as dificuldades de sua

implantação, o açúcar tornou-se o principal produto

brasileiro e foi a base de sustentação da economia e da

colonização do Brasil durante os século XVI e XVII.

Ao lado do canavial, nascia a agricultura de

subsistência, para atender a crescente necessidade de

alimentos para a casa grande, a senzala e a pequena parcela

de assalariados livres. A propriedade rural, verdadeiro

feudo, era formada da seguinte maneira: primeiramente, o

posto mais elevado na complexa sociedade açucareira cabia

ao senhor de engenho, o qual desfrutava de admirável status

social. Os engenhos eram formados por amplas propriedades

de terras ganhas através da cessão de sesmarias - lotes

abandonados cedidos pela coroa portuguesa a quem se

comprometesse a aproveitá-los para o cultivo. O senhor e

sua família moravam na casa-grande – local onde ele

desempenhava sua autoridade junto aos seus, cumprindo seu

papel de patriarca. Em segundo lugar vêm os negros escravos

que viviam nas senzalas, alojamentos nos quais conviviam

cruelmente, tratados como animais expostos aos mais atrozes

e violentos castigos. Também existia a capela que era o

local sagrado no qual aconteciam as mais belas sagrações

religiosas, e nas suas horas vagas exercia igualmente o

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papel de centro social, onde os homens livres do engenho e

das vizinhanças se reuniam. No engenho ficava ainda a

moenda, onde a cana-de-açúcar era moída.

À mulher cabia a incumbência de administrar seu lar,

devendo conservar-se recolhida fiscalizando o trabalho dos

escravos domésticos. O serviço escravo, realizado nas

lavouras canavieiras, era supervisionado pelos feitores,

que tinham a tarefa de vigiar os escravos e lhes aplicar

punições. Outros trabalhadores livres também trabalhavam no

engenho, iam de barqueiros, canoeiros, pedreiros,

carreiros, vaqueiros, pescadores e lavradores que, além de

cuidarem do cultivo da cana, também se dedicavam às

pequenas roças de milho, mandioca ou feijão, as quais

auxiliavam na subsistência, garantindo alimentação para a

casa grande, senzala e assalariados livres.

Do século XVIII ao XIX o açúcar continuou a ter

importância na economia do nosso país, embora o café viesse

a se tornar o principal produto brasileiro. Mas pouco a

pouco o açúcar perdeu mercado e foi deixando de ser a base

de sustentação da nossa economia. Outros acontecimentos que

prejudicaram o açúcar brasileiro foram: o bloqueio de

Napoleão Bonaparte contra os navios ingleses

transportadores de açúcar do nosso continente para o

mercado consumidor europeu; e o aparecimento do açúcar de

beterraba, o chamado “açúcar alemão”. Esse novo produto foi

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utilizado pelos países consumidores como substituto ao

açúcar da cana, ocorrendo o agravamento da crise e os maus

efeitos decorrentes da monocultura latifundiária em nossa

economia.

Com todos esses problemas e com o descaso do Governo

de Portugal em relação a sua colônia ocorreu a

desarticulação da economia açucareira no Brasil. A partir

de meados do século XVIII e durante todo o século XIX, o

preço do açúcar permaneceu reduzido à metade.

Os engenhos do Nordeste eram, originalmente,

estabelecimentos agrícolas destinados à cultura da cana e à

fabricação do açúcar. Com a ascensão das usinas, que

passaram a comprar dos engenhos sua produção bruta (a cana

de açúcar ainda não processada) a maior parte desses

engenhos foi, aos poucos, deixando de moer a cana para a

fabricação do açúcar. Passam, então, apenas a vender a

matéria prima às usinas, tornando-se engenhos "de fogo

morto". Perdem, assim, boa parte de seu poder, tornando-se

reféns dos preços pagos pelas usinas. É como se encontra,

ao final de Fogo Morto, o decadente engenho Santa Fé.

4.2.3 – Fogo Morto

O romance se passa no município de Pilar, na Zona da

Mata paraibana, às margens do Rio Paraíba. A maior parcela

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da ação se desenvolve nas terras do engenho Santa Fé, nos

arredores do Pilar. Na cidade, passa-se boa parte da última

seção da obra. O desenrolar dos acontecimentos dá-se

durante os primeiros anos do século XX, com uma regressão

temporal à época da fundação do engenho Santa Fé, em 1850.

E, embora seja traçada rapidamente a história do engenho

até o momento narrado, as ações em si não duram mais do que

alguns meses.

O romance é narrado em terceira pessoa. É externo o

ponto de vista do narrador, pois este não participa dos

acontecimentos narrados. Ele é onisciente, mostra o

pensamento dos personagens, suas dúvidas, problemas e

devaneios do povo dos engenhos nordestinos.

Fogo Morto é dividido em três partes. Cada uma delas

traz no título o nome de um dos três personagens principais

do romance. Porém, essas se entrecruzam, com o aparecimento

desses mesmos personagens ao longo de todo o livro. Cada um

deles, na verdade, sintetiza certa classe da população,

todas as três envolvidas por um cenário de miséria,

superstição e doença. Os três personagens nucleares são: o

mestre José Amaro, seleiro pobre e com vários conflitos

psicológicos e familiares; o coronel Lula de Holanda,

senhor de engenho inepto e decadente; e Vitorino Carneiro

da Cunha, o “papa-rabo”, herói quixotesco, defensor

estabanado dos oprimidos. É esse mesmo Vitorino, misto de

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Dom Quixote e Sancho Pança, em suas andanças e na sua busca

ingênua de justiça, quem estabelece as relações entre todas

as personagens, servindo como ponto central da narrativa.

Os fatos, dentro de cada uma das três partes, ocorrem em

ordem cronológica. As rememorações, em fluxos de

consciência, fluem do pensamento dos personagens. As

referências ao passado contribuem para um retardamento do

tempo narrativo e ajudam ao leitor na caracterização dos

personagens e de suas relações com o meio ambiente,

tornando-se evidente o momento histórico em que se situam.

A estrutura episódica do romance centra-se nos três

protagonistas que se inter-relacionam e com os demais

personagens, juntando-se no desfecho. As mulheres, embora

estruturalmente mostradas de maneira secundária,

representam um papel muito importante nessa obra. Os

personagens principais e secundários são apresentados na

exposição do enredo para se desenharem com mais perfeição

no decorrer da trama. O enredo complica-se gradativamente,

em cada uma das três partes atingindo o clímax.

4.3 – A dor entre o regional e o psicológico

As condições social e particular do indivíduo caminham

juntas na literatura, mesmo que por hora uma apareça em

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plano superior à outra. A explicação de uma sociedade dá-se

pelo reconhecimento de seus indivíduos. A partir desse

estudo é que escolhemos a obra de José Lins do Rego, para

ilustrar e aprofundar as nossas pesquisas. Em Fogo Morto

encontramos grande expressividade das questões humanas.

Antonio Candido, um dos maiores críticos da literatura

brasileira, vem em seus textos nos mostrar a ligação entre

o social e a subjetividade. Em Vários Escritos, Candido

afirma que perscrutar leis mentais e sociais é não só

explorar o espaço como um registro. Aqui ele nos aponta

para a necessidade de irmos além do simples espelhamento de

uma região.

Nossa cultura é feita da pluralidade, da miscigenação,

por isso não poderíamos ter textos que não fossem baseados

na mistura, na fusão. Se a idéia principal de uma

literatura genuína era que ela pintasse as formas de seu

povo, então o homem multiperspectivado deveria refletir uma

literatura de vários lados, influências e rostos. Cito

Bosi:

“Da cultura brasileira já houve quem a julgasse ou a quisesse unitária, coesa, cabalmente definida por esta ou aquela qualidade mestra. (...) Ocorre, porém, que não existe uma cultura brasileira homogênea, matriz dos nossos comportamentos e dos nossos discursos. Ao contrário: a admissão de seu caráter plural é um passo decisivo para compreendê-la como um ‘efeito de sentido’, resultado de um processo de

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múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço.”29

A subjetividade é a ferramenta que o escritor utiliza

em seu romance para mostrar e explorar a perspectiva da

personagem. Freqüentemente a narrativa dá-se em primeira

pessoa, mostrando a voz da consciência do sujeito. O que

vemos em Fogo Morto é o desdobramento dessa voz em muitas

outras. O que caracteriza a intersubjetividade é a certeza

de que há um múltiplo de vozes opostas e complementares

dentro da consciência de um único indivíduo. E, uma de

nossas tarefas em Fogo Morto é a de mostrar como ocorre a

coexistência dessas personalidades dentro do sujeito e a

representação da dor causada pela impotência dos

personagens diante do múltiplo que angustia. O romance

reflete a sensação do não-estar, em um mundo que não faz

sentido as suas necessidades.

4.4 – O paralelo da dor de Lessing e de Fogo Morto

José Lins do Rego e Lessing mostram em Fogo Morto e

Laocoonte ou as fronteiras da pintura e da poesia,

respectivamente, aspectos distintos acerca da expressão da

dor. Contudo, podemos apreender uma linha comum que

percorre ambas. Voltando a destacar as observações feitas

29 BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira. p.7.

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por Lessing sobre a poesia, o crítico a trata como uma

forma mais ampla que o artista tem para pintar sentimentos.

Utilizando, agora, de palavras como ferramentas, podemos

dar ao nosso leitor um poder e oportunidade maior de

trabalhar sua imaginação. Antes como uma forma de expansão

ao contrário de oposição, a escrita vem imbuída de um poder

maior de expressividade em comparação a arte visual, de

antes. A imaginação alimentada por ela nos possibilitaria

uma amplitude maior ao da visão imediata.

A intensidade e a voracidade da dor aparentam ser as

mesmas em Laocconte e nos personagens de Fogo Morto, mas

encarnadas em níveis diferentes. No primeiro a dor é

física, causada pela maldição. Contudo, no segundo, as

serpentes vestem seu caráter de alegoria, passam a

psicológicas, criadas pela sua angústia da consciência. A

culpa do fracasso é, em Fogo Morto, o que desencadeia o

dilaceramento maior da angústia desses personagens. Aqui, o

corpo e a consciência sofrem da mesma forma, o que varia é

sua causa, desenvolvimento e conseqüência.

Como já vimos em Dostoievski, o romance Fogo Morto,

dá-nos a dimensão da prosa, como outra possibilidade de

arte, não citada por Lessing. No entanto, esta, como a

poesia, é também construída por palavras e utiliza-se

dessas como suas ferramentas. Ao sairmos da era física, tão

cultuada pelo Renascimento, conhecemos o psicológico. A dor

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de Lessing e seu Laocoonte teve que se adaptar, ou melhor,

que se estender à consciência. Antes de aflorar ao corpo,

ela nasce do interior do indivíduo. As serpentes e o

castigo de Minerva tomam a forma da castração e do medo,

enrolando-se e sufocando personagens dotados, agora, de

problemas humanos. É o reflexo de nossa precariedade, mais

do que nunca, cantada pelos artistas de nosso tempo.

Enquanto Virgílio e Homero cantam a dor física de

Laocoonte, através de sua expressão e de seu grito, José

Lins do Rego escreverá a angústia de seus personagens, pela

luta interna do sujeito e suas múltiplas vozes, e pela

consciência dilaceradora da sua responsabilidade pelo

outro. Os primeiros mostrarão um herói, cuja dor o eleva a

uma condição superior ao dos outros homens, o segundo

tratará da condição precária do ser humano, que se

encontrará perdido em meio as suas ações. Cito uma passagem

onde observamos uma descrição da angústia de José Amaro:

“José Passarinho se calara. A tarde era triste com o vento desembestado no mundo. O capitão Vitorino Carneiro da Cunha era mais homem do que ele. Estava com medo do povo. Não saía de casa com medo do povo. Os homens tinham feito dele um traste infeliz. O negro Floripes inventava coisas. Laurentino falava por toda parte. Era um homem perdido, sem filha, sem mulher, só no mundo como se fosse um condenado. Lobisomem. Homem do demônio. Aquela canalha queria reduzi-lo a nada. E ele não tinha coragem, não tinha forças para sair de casa (...) ”30

30 REGO, José Lins. Fogo Morto. p.315.

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A dor não mais engrandece o homem, ela só o reafirma

em sua condição de sujeito precário, vítima da não

consciência de sua multiplicidade. Aqui, a linguagem

textual também se colocará como superior às artes visuais.

Algumas pinturas e esculturas da era moderna tentarão

representar a angústia psicológica do homem, mas esta não

será tão bem refletida como fizeram os autores da

subjetividade. Aqui, a dor e a angústia devem ser passadas

de maneira genuína, não somente pela visualização do

momento do personagem, mas na impressão que a obra causa no

interior dos seus espectadores.

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5 - A estrutura de Fogo Morto

Fogo Morto é constituído de três capítulos que, mesmo

podendo apresentar caráter individual, complementam-se,

tecendo uma malha de intrigas que dão vida ao texto.

O romance não possui personagem principal, ou melhor,

divide seu foco em três personagens nucleares. Cada

capítulo narra a trajetória de um desses sujeitos,

intercalando, conseqüentemente, os dois outros como

coadjuvantes. Essa intercalação mostra três tipos

diferentes que possuem um ponto vital em comum: a dor. A

vida de cada um percorre rumos diferentes, tanto no nível

social, econômico e psicológico, mas uma característica

parece estar sempre em suas vidas, como força motriz que as

movimentam. A dor se mostra em suas diferentes formas e

sintomas, intrínseca nas personagens principais, nas

pessoas de sua convivência, no próprio meio em que vivem.

José Lins do Rego se preocupou em retratar a história

de vida das pessoas do engenho da cana, levando em

consideração suas condições de seres humanos envoltos em

angústias e dores geradas pela atmosfera que os cerca. Mas,

para além disso tudo, o autor nos mostrou formas de

convivência com essa dor que assola e atormenta. Veremos

aqui as sublimações que seus personagens encontraram como a

única saída para suas existências.

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5.1 - Os anti-heróis

Os personagens de Fogo Morto são tipos, na medida em

que representam uma determinada estrutura sócio-econômica.

Embora os personagens se cruzem para formar o todo da obra,

podemos afirmar que o enredo se arma em torno de três

principais que se completam no decorrer da narrativa. As

personagens que sofrem mudança substancial possuem mais

densidade psicológica, sendo por isso, chamadas de

esféricas. As três principais do romance se constituem

dessa forma, pois toda a trama decorre das transformações

de seu estado psicossocial. Quanto mais ambígua a

personagem, mais rico o seu significado. Elas se

caracterizam como anti-heróis.

Enquanto protagonista da história narrada ou encenada,

o anti-herói reveste-se de qualidades opostas ao cânone

axiológico positivo. Por vezes não se encaixa no

estereótipo da beleza, da força física e espiritual, da

destreza, do dinamismo e da capacidade de intervenção, da

liderança social e das virtudes morais. A avaliação do

herói assume sempre aspectos subjetivos, uma vez que, a

vida e os acontecimentos apresentam uma constante

ambigüidade de pontos de vista, que se inscrevem no caráter

dialético da condição humana. Qualquer reação do

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protagonista é sempre suscetível de interpretações

antagônicas. Por outro lado, a ideologia do leitor

condiciona sempre a leitura do comportamento dos heróis

épicos. É, todavia, com a paródia que a figura do anti-

herói se afirma, rompendo com o retrato exemplar da

tradição da epopéia. O romance realista e naturalista

acentua, no século XIX, o distanciamento do escritor em

relação à sociedade romântica e pós-romântica, com os seus

paradigmas e clichês. No século XX, personagens grotescas e

conflituosas configuram uma visão deformada do mundo

contemporâneo, contestada pelo herói.

Os personagens de José Lins do Rego, em Fogo Morto,

demonstram essa oposição ao estilo tradicional. Os heróis

contemporâneos ou anti-heróis, como apresenta o autor em

seu romance, são dotados de uma aura humana, ou seja,

representam toda a condição do indivíduo imerso em seus

conflitos e dores. Diferentemente dos heróis tradicionais,

os da modernidade se aproximam de nós, se mostram na mesma

condição precária de seres humanos.

Nesse momento, nos preocuparemos em analisar mais

profundamente o romance, tratando cada um de seus

capítulos, primeiramente, de forma individual e,

conseqüentemente, do ponto de vista do conjunto da obra.

Lançaremos mão de todos os conceitos expostos até aqui, com

a preocupação de entrelaçar nossas hipóteses às teorias

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estudadas. Focar-nos-emos na análise dos personagens

principais e de seus reflexos nos indivíduos de sua

convivência e no seu meio, perpassando as teorias da ética,

da estética, da dor e da sublimação. Levaremos a diante a

descoberta de um regionalismo ímpar, a arte de José Lins do

Rego em desenhar uma região pelo reflexo do interior de

seus viventes.

5.2 - Primeira parte – O mestre José Amaro

A primeira parte do romance centra-se na casa do

Mestre José Amaro, à beira da estrada no engenho Santa Fé.

Seleiro orgulhoso e machista, que se recusa a ser dominado

por qualquer um. José Amaro vive na zona da mata, onde as

pessoas são, praticamente, posses de outras, onde o

escravismo deixou seus vincos na atmosfera dos costumes. O

Mestre vive de fazer artefatos de couro e pequenos

consertos. Isso se torna seu direito à liberdade,

especialmente de afirmar-se livre, de contestar pelo

discurso a ordem opressiva, instituída pelos hábitos

patriarcais. José Amaro tem uma alta consciência de seu

valor humano.

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“Ele queria mandar em tudo como mandava no couro que trabalhava, quer bater em tudo, como batia naquela sola.”31

Contudo, não lhe falta o lado íntimo da desgraça. Sua

filha se torna louca, vive chorando pelos cantos da casa;

sua mulher não o compreende e por fim o abandona. O seleiro

está sozinho em sua revolta. Essa solidão — ainda que em

meio a pessoas que o visitam e convocam — é o que o faz se

voltar para o cangaceiro Antônio Silvino, perseguido pela

volante estadual. Descrente de sua importância como ser

humano, Zé Amaro precisa mostrar a si mesmo que pode

reconstruir-se como sujeito ativo de uma vida relevante. O

Mestre torna-se um colaborador secreto do famoso

cangaceiro, e seu fim estará ligado a esse pacto.

Grande parte deste trecho da obra constrói-se através

dos diálogos travados por José Amaro com os passantes.

Entre estes está o compadre Vitorino Carneiro da Cunha, seu

amigo e um dos personagens de maior importância do romance.

O Mestre cria desavença com o Coronel Lula de Holanda,

dono das terras em que mora, e que sempre vê cruzando a

estrada em seu cabriolé, sem jamais parar para cumprimentá-

lo. Vai adiando, portanto, atender ao chamado do Coronel

para encontrá-lo na casa grande. Seu caráter fechado e

ranzinza lhe vale a fama de se transformar em lobisomem, o

que causa medo às pessoas. Aqui, é o começo da

31 REGO, José Lins do. Fogo Morto. p. 55-56

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externalização de seu “monstro”, de sua condição interna.

Esta se torna tão insuportável e incômoda, que Zé Amaro

passa a refletir seu interior mais decadente.

Por fim, tem que mandar a filha para o hospício em

Recife, sua primeira perda, e acaba por atender ao chamado

do coronel Lula, que lhe ordena que se retire de suas

terras, sua segunda perda. Sua imagem derrotada se

reafirma, é o velho seleiro frustrado, que mora com a

mulher e filha nas terras de engenho de Santa Fé, cujo dono

é o Coronel Lula de Holanda. É um desiludido com a

profissão, com a vida familiar, com sua filha solteira

sempre chorando pelos cantos e sua mulher a resmungar.

Símbolo da decadência do artesanato rural, do respeito ao

cangaço, enquanto proteção aos pobres e castigo aos maus.

Mestre José Amaro apresenta-se como um dos (anti-)

heróis do romance. Seu personagem é descrito como um

indivíduo feio por dentro e por fora, de uma vida arruinada

e sem futuro. Ainda assim, sua figura desperta certo

carisma. Talvez por sua condição de pena ou por algum

vestígio de pureza em sua descrição. Mesmo quando Zé Amaro

se junta ao cangaceiro Antonio Silvino, ele não adquire

nenhuma característica de vilania, sua aliança é uma forma

de tentar modificar sua condição de vida.

Sua dor se desenvolve a partir de sua pobreza e de

algumas complicações que essa condição traz a sua vida. Zé

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Amaro tinha tudo para viver bem, em sua vida simples, com a

família. Mas a revolta nascida diante desta condição o faz

degradar-se enquanto sujeito, levando-o a amargura. O gosto

acre de sua alma o faz externar suas angústias e dores mais

intensas, o que pode ser observado também na sua

fisionomia, que se transforma ao longo da narrativa. Esposa

e filha afastam-se cada vez mais de sua dor. A filha Marta

entrega-se a loucura como a única forma de fuga àquela

condição de infelicidade. Isso aumenta ainda mais a dor de

Sinhá, que vê o marido maltratar a filha, por não encontrar

outro jeito para a cura. Sinhá tenta ajudar o marido, mas a

cada dia que passa consegue menos reconhecê-lo atrás do

ódio que o mestre cultiva. Por vezes diz até que vê o diabo

em sua face.

“Então a velha Sinhá viu o que nunca vira em sua vida: Zeca num pranto de menino apanhado. O soluço rouco do marido era um partir de coração. Parada, ficou olhando para aquilo, enternecida. Ele não podia falar. Só tinha os olhos para exprimirem a dor profunda. Por fim, num esforço medonho: - Sinhá, ela está doida. Não pode chegar-se para perto do marido. (...) Um nojo terrível tomou conta dela. Era como se estivesse pegada a um defunto fedendo.”32

Ainda, ao longo do romance, presenciamos as crises de

consciência de Zé Amaro. Tudo em sua vida começa a

complicar-se quando recebe a notícia que o coronel Lula de

Holanda quer vê-lo. Sem saber ao certo o que o coronel

32 Ibdem, p. 170-171.

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deseja, mas já prevendo que será algo ruim, Zé Amaro

desenvolve sua narrativa.

Ao descobrir que terá que deixar sua casa, a história

de Zé Amaro entra no seu clímax. A casa representa para ele

a lembrança de seu pai, a única coisa que lhe restou de sua

história, que ainda o constitui como sujeito. Ao perder

tudo: esposa, filha, casa, não lhe resta mais nenhum traço

de identidade. Perdido em sua história, em sua vida, a

única forma de sublimação para sua dor foi a morte, a única

maneira de ainda preservar um resquício de sua identidade,

na memória.

“O mestre ia calado, pisando no chão como se estivesse com o corpo quebrado. (...) O mestre parou por debaixo do pé de pitomba. E ali ficou por uma porção de tempo. Tudo estava vazio, o poleiro, o chiqueiro de porcos. Empurrou a porta, e veio lá de dentro um bafo de coisa podre. (...) O mestre não dava uma palavra. (...) Quando foi mais tarde ouviu uma coisa como de choro. Não quis se levantar, mas acertou bem os ouvidos. Era o Mestre José Amaro chorando. Deu-lhe um nó na garganta e também chorou. De madrugada saiu para tomar a fresca da aurora. Andou pela beira do rio e lá para as seis horas voltou para ver o mestre. Entrou de sala adentro e viu a coisa mais triste desse mundo. O mestre estava caído, perto da tenda, com a faca de cortar sola enterrada no peito.”33

Em certos momentos da narrativa, o narrador nos mostra

através da descrição dos lugares e das situações, as

características de José Amaro. Nesse momento da morte do

mestre, podemos observar que seu ambiente familiar

degradava-se junto com ele. A casa cheirava a podre, o

33 Ibdem, p.401-402.

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seleiro estava calado, não tinha mais voz, nem identidade.

Morreu com o instrumento que também lhe deu direito à vida,

a faca que usava para trabalhar. Trabalho que, por um lado,

concedeu-lhe sua identidade, e que, por outro, não satisfez

suas ambições.

5.3 - Segunda parte – O engenho de Seu Lula

No início da segunda parte do romance, temos uma

regressão temporal. O narrador retorna a 1850 para contar a

fundação do engenho Santa Fé, pelo Capitão Tomás Cabral de

Melo. Mudando-se para a região antes de 1848, o capitão

compra as terras e funda o engenho que acaba por fazer

prosperar. Casa sua filha Amélia com Lula de Holanda, seu

primo, que pouco interesse ou aptidão tem para dirigir o

engenho. Adoentado, deixa sua mulher, D. Mariquinha,

dirigir seus negócios. Após sua morte, Lula entra em

disputa com a sogra e acaba por tomar-lhe as terras e o

poder. Castigando os escravos com requintes de crueldade,

andando com seu cabriolé por todos os lados, Seu Lula vai

se afastando cada vez mais do povo do Pilar e seu engenho

entra em total decadência quando vem a Abolição e seus

escravos debandam. Autoritário, impede os homens de se

aproximarem da filha. Epilético, tem um ataque dentro da

igreja e passa a se dedicar com fervor à religião.

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Empobrecido, gasta até as últimas moedas de ouro que lhe

deixou o sogro. Sente uma inveja enorme de seu vizinho José

Paulino e de seu engenho Santa Rosa.

Coronel Lula de Holanda é representante da

aristocracia arruinada dos engenhos. Não perdeu o orgulho

feudal e despótico, mas o poder econômico. Incapaz, arruína

o Santa Fé, que se torna “fogo-morto”, expressão com que se

denominam os engenhos paralisados. Não aceitando tais

condições, refugia-se em Deus, no amor ao passado, não

abandonando suas ambições e vaidades. Humilhado diante da

decadência e sofrendo as pressões do cangaço, acaba se

confinando em total isolamento. Simboliza a recusa ao

progresso. Sublima seu orgulho em um misticismo

supersticioso.

“A figura de Seu Lula continuava, para a crendice do povo, como de homem, marcado pelo demônio. Viam a piedade, a cara de tristeza, a cabeça baixa do senhor de engenho, quando se levantava para a mesa da comunhão, tudo não passava de artimanha. De solércia, de hipocrisia. Lá dentro de seu coração estava à peçonha venenosa, o ódio contra todos os homens.”34

Lula de Holanda e José Amaro compartilham um ponto em

comum: os dois se degradam, individual e socialmente.

Desde o início de sua história, o coronel não

apresenta nenhuma característica heróica. Por vezes

demonstra aspectos de vilania, mas logo mostra que seu

34 Ibdem, p.

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personagem é fraco, que nunca poderia ser um vilão real. As

atitudes mais brutas e desaprováveis de Lula de Holanda vem

acompanhadas, ao longo do texto, com sua descrição de

fracasso e epilepsia.

“Não era um senhor de engenho. O carro parou na porta, e a lua iluminava os números do portão: 1850. Era a força do Capitão Thomas. 1850. Tempo de fartura, de força. Entraram, e o cheiro de mofo da sala de visitas era como um bafo de morte. O piano, os tapetes, os quadros na parede, o retrato de olhar triste de seu pai. O capitão Lula de Holanda pegou no braço da cadeira, e a sua vista escureceu, um frio de morte varou-lhe o coração. Caiu no chão, estrebuchando. A mulher e a filha pararam estarrecidas perto dele, que batia com uma fúria terrível. Era o ataque.”35

Na ficção, o vilão tem como principal característica o

mal que ele exerce sobre os heróis. Ele cumpre seu papel de

antagonista às forças do bem. Geralmente apresenta-se como

uma figura ardilosa, que utiliza suas habilidades com o

intuito de prejudicar o outro ou conseguir algo que deseja

de forma escusa. Muitas vezes utiliza-se de planos, que são

aplicados ao longo da trama, a fim de prejudicar o

protagonista. Percebemos que, mesmo que o coronel tente de

alguma forma prejudicar as pessoas - principalmente José

Amaro, que se constitui como um dos personagens principais

– ele se mostra fraco e desarticulado, o que não o enquadra

nas características vilanescas. O Coronel Lula de Holanda é

mais um coitado que um vilão.

35 Ibdem, p.266.

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Vimos anteriormente que Fogo Morto, como um romance

modernista, não apresenta heróis épicos. Sua formação

comporta anti-heróis, que refletem a mais pura condição

humana. Em vista disto, não encontramos vilões ao longo do

texto. Dentre os três personagens principais, o coronel

Lula de Holanda é o que mais se aproxima dos caracteres da

vilania, contudo suas maldades não são o bastante pra

classificá-lo dessa forma. Esta não é formada somente de

ações perversas e desaprováveis, ainda assim o personagem

deve ser imbuído de uma força – que por vezes desperta até

o carisma entre os leitores – para ser consagrado com o

titulo de vilão. O coronel é vazio dessa força. Não pode

ser herói pela sua conduta desaprovável e também não se

encaixa na roupa de vilão por falta de força interior. Lula

de Holanda poderia ser classificado como anti-vilão, em

oposição aos anti-heróis José Amaro e Vitorino. Aqui a dor

apresenta-se na angústia do vazio de Lula. O homem não

conseguiu ser nem senhor de engenho, nem bom marido, nem

bom pai e nem um homem ameaçador, a não ser pelo seu

fracasso.

O conceito do belo é completamente destruído ao longo

da descrição de Lula de Holanda. No início do capítulo ele

é visto pelo capitão Tomás Cabral de Melo como um homem

bonito e requintado, completamente capaz de fazer sua filha

Amélia feliz.

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“Não queria para Amélia um marido assim como Tomás, homem que só tinha corpo e alma para o trabalho. Homem devia ser mais alguma coisa para melhor do que era Tomás.” (...) “Era um rapaz cerimonioso, de boa aparência, trato fino. Chamou-o logo de Lula, e quis que fosse tratado em sua casa como filho. (...) O primo Lula tinha aquela barba negra de estampa, de olhos azuis, o ar tristonho, e fala mansa.”36

Após o casamento de Lula e Amélia, o capitão começa a

desconstruir a imagem que antes tinha do genro. Lula de

Holanda não parece ter a força e a vontade que deveria para

gerir o engenho do Santa Fé.

“- Olha, Tomás, este teu genro sabe onde tem as ventas. O diabo era ele não tomar gosto pelo engenho. O que seria do Santa Fé sem ele, sem o tino do velho Tomás que lhe conhecia as entranhas da terra, que lhe dera nome, que o criara do nada? E começou o capitão a sofrer pelo futuro do Santa Fé. Ele sabia o que era uma propriedade sem senhor de fibra, tomando conta de tudo.”37

Com a morte de Tomás de Melo, Lula demonstra sua real

problemática, quando entra em conflito com a sogra e começa

a maltratar os escravos. Sua aparência bela é degradada

pelas suas atitudes. O rompimento com os preceitos éticos

desconstrói a estética atribuída ao personagem.

“A morte do capitão deu briga séria do genro com a sogra. Seu Lula fez exigências no inventário. Reclamou o dinheiro do ouro, quis botar advogado para obrigar a sogra a dizer ao juiz o que tinha guardado o capitão, em moedas antigas. A mulher enfureceu-se com o marido. Ali não devia haver divergências de espécie alguma. Seu Lula, porém, terminou dominando-

36 Ibdem, pg. 215, 218, 219. 37 Ibdem, pg. 229.

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a. (...) Nos dias de domingo o cabriolé saía com seu Lula e a mulher para a missa do Pilar. Olhava-se para ele como para um ambicioso. Viera para se casar com o dinheiro do capitão, queria roubar a viúva. Era um infeliz.”38

Lula de Holanda não se transformou em um homem mau,

simplesmente fez transparecer sua real essência. Não era

maldade o que fazia com a sogra e a esposa, Lula queria de

alguma forma transformar-se no verdadeiro capitão que um

dia almejou ser.

Sua consciência o atormentava, a dor da impotência o

rasgava a alma, o que o fazia ter atitudes imprudentes e

desmedidas com as pessoas e o engenho.

“Seu Lula parecia humilhado. (...) Veio-lhe então a lembrança do pai, noites e dias no meio das matas de Jacuípe, vivendo como um animal, assassinado, por fim, como um bandido perigoso. Morrera, pelo chefe Nunes Machado. Então seu Lula, naquele ermo sertão, por debaixo do umbuzeiro, com os negros e o sogro deitados na mesma terra, viu que não era nada, que força nenhuma tinha para ser como fora o pai, Antonio Chacon. O que ele fora até ali?”39

Para fugir de sua dor, o capitão preocupava-se em

aparentar o que não era, e agarrava-se a uma rotina que lhe

parecia confortadora. Todos os domingos, ele passava na

companhia da esposa e filha, com seu cabriolé – objeto de

luxo para a cidade – pelo Pilar em direção a igreja, onde

se mostrava um homem religioso, rico e de família

estruturada.

38 Ibdem, pg. 243. 39 Ibdem, pg. 235.

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Sua filha, Neném, era sua maior riqueza, e a única que

ainda o admirava. Temeroso da solidão total, Lula se

apoderou do amor da filha e a fez prisioneira de seus

caprichos. Logo, castrando todos os desejos de Neném, a fez

minguar, como o engenho do Santa Fé e todos que ali

moravam.

Com a morte da sogra e a Abolição, os escravos foram

embora, e as terras do engenho produziam cada vez menos.

Sua falsa imagem não se promoveu como sublimação à dor

insuportável que sentia. Sua vida definhava como a produção

da cana. A epilepsia que o atacou, fez o capitão se afastar

da sociedade e Lula se apegou ainda mais a sua casa e a

religião.

Todos da casa isolaram-se de si mesmo e do mundo, a

única que encarava a verdade era D. Amélia. Sua irmã Olívia

enlouquecera, antes mesmo da decadência; sua filha e marido

criaram mundos pra si próprios como uma forma de apagar a

verdade.

“Felizmente que aqueles dias de Lula furioso dentro da casa, aos gritos, como tigre, haviam passado. A paz que reinava ali dentro de casa era uma tristeza, mas, muito melhor assim que com os sobressaltos dos outros tempos, com a peitica do marido, atormentando a filha, descobrindo namorados, inventando fugidas. Tudo havia passado. Tudo era agora aquela mansidão, a pobreza de uma casa-grande que se escondia das vistas dos outros. Sim, todos ali viviam a se esconder dos ricos e dos pobres. E ela mesma é quem mais força fazia para que vivessem longe de tudo. Lula era como se não soubesse das dificuldades por que passavam. Só ela tinha os olhos para ver o Santa Fé como estava, na petição de miséria em que vivia. Lula, naquela devoção, no seu rezar, era como um homem de outro

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mundo, fora de tudo que fosse da terra, indiferente ao seu tempo. (...) Mas ela via tudo, sentia tudo. Todos os pedaços de miséria que a família sofria, era ela quem mais sofria. Todos em sua casa pareciam de um mundo que não era o seu.”40

A personagem Amélia, que fazia papel de coadjuvante no

início do capítulo, toma agora dimensões importantes e

torna-se (anti-) herói em oposição a Lula, fracassado em

sua condição de herói e vilão, fadado ao vazio de sua dor

existencial. D. Amélia não encontra formas de sublimar sua

dor, mas a vive e a ameniza na função de única capaz de

cuidar da família.

Como sua própria estrutura, dividida em partes, Fogo

Morto está o tempo todo intercalando a função e a

importância de seus personagens.

5.4 - Terceira parte – O capitão Vitorino

Com Capitão Vitorino da Cunha, personagem central da

terceira parte do romance, fecha-se o ciclo dos engenhos,

que vai da fartura ao fogo morto. A história de Vitorino

contrapõe-se à individualidade angustiada de José Amaro e

ao despotismo do senhor de engenho Lula de Holanda. É de

sua boca ferina e consciente, aliás, que sai a pergunta

emblemática que mede o grau de transformação pela qual

passaram na época as regiões, cuja economia dependia dos

40 Ibdem, pg. 287.

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engenhos de cana de açúcar. “– E o Santa Fé quando bota,

Passarinho? – Capitão, não bota mais, está de fogo

morto”41. Este é o retrato que Vitorino nos mostra, do

tempo implacável que deteriora tudo e todos.

Nesta terceira e última parte do romance predomina a

ação. O capitão Antônio Silvino invade a cidade do Pilar,

saqueia as casas e lojas. Invade o engenho Santa Fé, ameaça

os moradores em busca do ouro escondido. Tentando defender

o engenho, Vitorino é agredido e só a intervenção de José

Paulino faz com que os cangaceiros desistam. Vitorino

apanha também da polícia, José Amaro e seus companheiros

são presos e agredidos. No final, após serem libertados,

Vitorino e o mestre José Amaro seguem rumos diferentes. O

primeiro pensa em influir politicamente na região. O

segundo, abandonado pela mulher, com a filha louca e

expulso de sua casa, acaba por cometer o suicídio.

Considerado por muitos uma espécie de Quixote

sertanejo, aprisionado em um mundo de ilusões, o capitão

Vitorino da Cunha vai muito além deste contorno simplista.

Sua luta em favor dos humilhados e ofendidos, ainda que

insensata, está longe de ser um sonho, um simples devaneio,

consiste-se, sobretudo, como resultado da realidade brutal

que o rodeia e uma necessidade premente, da qual ele se

ocupa sem vergonha.

41 Ibdem, p.403.

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No lombo de sua burra, o Capitão sai pelos engenhos de

açúcar a insurgir-se contra a prepotência dos senhores

rurais, a ousadia da polícia e a crueldade dos cangaceiros.

À sua volta, porém, depara-se com a ignorância, a penúria,

a incompreensão e a zombaria. Seu método firma-se numa

ironia estóica e na oportuna consciência de que na vida, e

em especial nas regiões inóspitas como o sertão nordestino,

tudo se transforma para um fim irremediável. Antes de mais

nada, para Vitorino importa conquistar a liberdade de agir

e falar, conforme o que é justo e melhor para o homem.

Mesmo que não se alcance nenhum efeito decisivo, houve,

contudo, um ganho em grandeza humana.

A figura de Vitorino da Cunha representa o herói

pícaro, aquele dotado de humor e lirismo. Idealista e

sonhador, ele lembra os cavaleiros andantes da Idade Média,

em sua errância pelos sertões, sem uma ocupação definida,

em luta quixotesca contra as injustiças sociais. É o eterno

oposicionista, simplório, que aceita todas as lutas, sempre

ao lado dos mais fracos. Sua personalidade é composta por

um misto de plebeu e aristocrata. Seu parentesco distante

com o Coronel José Paulino autorizou a que se outorgasse o

título de Capitão. Poderíamos considerá-lo como um

representante das camadas médias que começam a surgir.

Montado em seu cavalo velho, vestido de terno surrado

e com aparência sisuda e louca, Vitorino não aceita as

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perseguições e amo1ações dos moleques, que o apelidam de

“Papa-rabo”.

“Vitorino falou para o homem num tom agressivo: — Tenente, por aqui é que o senhor não encontra o bandido. Era por aqui que andava o major Jesuíno, atrás dos cangaceiros, e nunca disparou um tiro. — Não estou pedindo sua opinião, velho. — Sou o Capitão Vitorino Carneiro da Cunha. - Não estou perguntando o seu nome. - Mas eu lhe digo. - Então passe de largo e siga o seu caminho. - Não me faz favor, tenente. - Cala a boca, velho besta. — Só quando a terra comer, tenente. Vitorino Carneiro da Cunha diz o que sente. — Pois não diz agora. — Quem me empata? O Senhor? Ainda não nasceu este.”42

O Capitão Vitorino, cujas ações se pautam pelo desejo

de justiça, irmana-se a José Amaro, mas é radicalmente

contra a alternativa oferecida pelo cangaço. É também

contra o governo, mas não admite a subversão da lei. Em

rigor, é um aventureiro do sonho. Estabelece o elo entre

ricos e pobres, fracos e fortes. Para ele, o homem mais

valente do mundo é ele mesmo. Não obstante, emprega a

valentia apenas no auxílio do próximo. Trata-se de uma

paródia muito convincente de Dom Quixote. Por isso, sua

figura resulta numa mescla de momentos sublimes com

momentos ridículos. Apesar dos percalços, surras e prisões,

é a única personagem gloriosa no romance.

“Vitorino fechou os olhos, mas estava muito bem acordado com os pensamentos voltados para a vida dos

42 Ibdem, p. 323-324

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outros. Ele muito tinha que fazer ainda. Ele tinha o Pilar para tomar conta, ele tinha o seu eleitorado, os seus adversários. Tudo isso precisava de seus cuidados, da força do seu braço, de seu tino. Lá se fora o seu compadre José Amaro, o negro Passarinho, o cego Torquato. Todos necessitavam de Vitorino Carneiro da Cunha. Fora à barra do tribunal para arrasta-los da cadeia. (...) Ele era homem que não se entregava aos grandes. (...) As feridas que lhe abriam no corpo nada queriam dizer. Não havia força que pudesse com ele. Os parentes se riam de seus rompantes, de suas franquezas. Eram todos uns pobres ignorantes, verdadeiros bichos que não sabiam onde tinham as ventas.”43

Vitorino Carneiro da Cunha traz no sangue a

característica dos anti-heróis de Cervantes. Nele há um

irresistível pendor à bravata, ao contrário de seu

compadre, tenso e sóbrio, embora eloqüente. Vitorino é

radical na ação momentânea - é espalhafatosa, embora bem

intencionada -, mas moderado no pensamento político. O

capitão ainda acredita numa virada política para ares

liberais, ainda crê que o problema central da política é de

ordem puramente moral, e põe enorme fé nos poderes da

justiça. Neste terceiro capítulo, é mandado para a prisão

com seu compadre José Amaro. Os maus tratos sofridos

constituem o fundo trágico em que se modulam os perfis

definitivos de Zé Amaro e Vitorino Carneiro da Cunha.

“Os soldados, sentados por debaixo do tamarineiro, abriram na gargalhada. - O homem é brabo mesmo – disse um . – É verdade, o tenente já foi com ele aos tabefes, mas viu que é um aluado. Os gritos que vinham agora do fundo da cadeia eram um gemido rouco. - Eles matam o velho.

43 Ibdem, p.395-396.

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- Quem manda ele estar dando guarida a cangaceiro? A agitação de Vitorino não o fazia parar. E quando o juiz saiu para casa, acompanhou-o. Tinha que tomar uma providência. Ele, Vitorino Carneiro da Cunha, não podia se calar. - Doutor, faça para mim o negócio da petição. Preciso tomar uma providência. E na sala do juiz, com a sua letra trêmula, devagar, parando de vez em quando, como se estivesse numa caminhada de léguas, escrevia o capitão Vitorino as palavras que pediam liberdade para os pobres, para o compadre, para o cego, para o negro.”44

Em relação a esta estrutura, não se pode negar que é a

presença de Vitorino que lhe assegura a unidade e evita que

a narrativa se enfraqueça, que por assim dizer, recomeça

três vezes, e articula a mesma em três seções. Fogo Morto,

então, se desenvolve em três tempos, sendo José Amaro, o

Coronel Lula de Holanda e Vitorino Carneiro da Cunha a

tônica de cada uma. A estrutura episódica do romance

centra-se nos três protagonistas que se inter-relacionam

entre si e com os demais personagens, juntando-se no

desfecho. Os personagens principais e secundários são

apresentados na exposição do enredo para se desenharem com

mais perfeição no decorrer da trama.

5.5 – As mulheres do romance

Embora Fogo Morto seja formado por três personagens

principais, ao longo do romance, podemos observar que as

mulheres também vestem o papel de protagonistas. As filhas

44 Ibdem, p.378-379.

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de Tomás Cabral de Mello e José Amaro apresentam uma

interessante simetria. Olívia e Marta se entregam à

loucura, como única forma de sublimação de sua dor, dor

essa advinda do convívio com a degradação da vida em sua

volta. A loucura as dá o direito de agir como querem e de

falar o que querem.

“A casa-grande estremeceu com a fúria do coronel Lula de Holanda. Quis falar com a filha e ela estava chorando no quarto. D. Olívia falava como se estivesse respondendo ao capitão Tomás. Aos gritos do seu Lula, ela gritava: - Cala a boca, meu pai. Eu estou costurando a tua mortalha, velho. (...) D. Olívia cantava soturna: ‘Serra, serra, serrador, serra a madeira do Nosso Senhor.’ - Manda esta infeliz se calar, Amélia. - Cala a boca, meu pai. Estou costurando a tua mortalha.”45

A mulher surge como quem sofre as ações desencadeadas

desses homens, degradados e que fazem questão de mostrar

sua suposta superioridade. As filhas demonstram maior

fraqueza e são as que mais sofrem. Neném, filha de Lula de

Holanda, não enlouquece, mas permanece fadada a cuidar do

pai, pois este a aprisiona, castrando seu desejo de formar

uma família. Nada pode prosperar ao lado desses sujeitos

infelizes.

As mulheres, companheiras desses personagens

principais, constituem-se nas verdadeiras heroínas do

romance. D. Mariquinha, D. Amélia, Sinhá e Adriana são

45 Ibdem, p.271-272.

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personagens conscientes de todos os problemas, de toda a

degradação. Elas não temem os acontecimentos e tomam suas

atitudes baseadas no que acreditam como certo e não por uma

convenção. D. Mariquinha briga com o genro, Lula de

Holanda, por seus direitos na fazenda; Sinhá abandona o

marido, Zé Amaro, por não conseguir mais reconhecê-lo como

um homem; enquanto que D. Amélia e Adriana defendem e

apóiam seus maridos sempre quando necessário.

A força dessas mulheres e sua representação na vida

dos homens centrais do romance as concedem um patamar maior

do que uma simples coadjuvante. Elas são as responsáveis

pelos finais destinados a eles. Um exemplo disso é a morte

de Zé Amaro, o único abandonado pela mulher.

5.6 - A ética e a estética em Fogo Morto

A teoria estética defendida por Lessing muda de foco

quando transposta para a literatura. Lessing pauta suas

hipóteses na representação de Laocoonte esculpida em

mármore, ou seja, na escultura como forma de arte. No campo

da literatura os valores da representação mudam. A dor que

podíamos ver claramente no rosto e corpo da escultura, como

mímeses da realidade, nos é oferecida de formas diferentes.

Os valores estéticos, tanto discutidos por Lessing, como o

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belo, permanecem os mesmos, mas agora representados de

outra forma.

Os valores do belo estão aqui ligados às formas de

concepção da ética, antes discutidas por nós. De acordo com

o ideal aristotélico, o herói literário aproxima-se muito

ao dos textos medievais ou ao da primeira fase romântica

brasileira. O homem deveria ser virtuoso, isento de

conflitos internos, pois era sua força e inteligência o que

o tornava belo. Com a aparição do Realismo e das correntes

literárias que vieram após, principalmente o Modernismo, os

autores começaram a pensar o homem como ser complexo, o que

não alimentava mais o ideal de Aristóteles. Na arte moderna

o belo não perde seu lugar de importância, mas sua

definição abrange outras acepções.

Lessing fala do feio como algo que pode ser feito na

arte, simplesmente com o intuito da mímeses, mas que deve

ser evitado, pois causa desprazer. O conceito de belo para

Lessing abrange tudo que nos causa prazer e deleite,

dispensando assim a aparência do “mal”. Contudo, a teoria

kantiana defende a subjetividade de nossos juízos

estéticos. A visão da complexidade humana nos leva a

diferentes critérios de beleza e prazer. Com isso, a

tradição filosófica de Kant é a que melhor define o (anti-)

herói da modernidade, mergulhado em todos seus conflitos

pessoais.

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O retrato do (anti-) herói moderno nos apresenta

imagens de deformações psicológicas. Ao mesmo tempo em que

a tristeza e a dor nos causam, em um primeiro momento,

desconforto, elas são o estopim que precisamos para uma

reflexão mais profunda de nossa existência. O que

caracteriza esse sujeito como belo para a modernidade é a

sua aproximação com a realidade subjetiva, a clareza de sua

complexidade.

Nesse momento a ética se entrelaça com a estética,

quando a primeira se preocupa com as ações dos indivíduos,

e a segunda trata, de acordo com essas ações, do que é

aceitável como beleza ou não na manifestação artística e de

como é transcrita para a literatura.

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6 - Conclusão

O conceito de estética e a importância do belo para a

arte é algo ainda hoje revisitado e discutido por seus

realizadores e receptores. A representação estética sempre

esteve interligada, de alguma forma, com a idéia de ética,

no que concerne ao comportamento humano.

O belo e a virtude caminharam de forma paralela – às

vezes entrecruzando-se – ao longo de muitos séculos,

pautados na visão grega de perfeição. Como teoriza Lessing,

até mesmo a dor deve ser representada pela arte de forma

agradável. Aprazível será ela, quando aliada à virtude do

indivíduo representado.

Embora a história tenha narrado a dor de Laocoonte

como algo insuportável, ela jamais se tornou monstruosa aos

olhos de seus receptores, simplesmente pela sua causa.

Laocoonte, que tentava interceptar a entrada do cavalo de

madeira na cidade de Tróia, é castigado por Minerva,

ficando cego e tendo seus filhos mortos. Castigo esse

sofrido por aconselhar a população, devido a algum

pressentimento de perigo. Sendo assim, por sua coragem e

lealdade, Laocoonte se enche de virtude, o que torna sua

dor grandiosa e bela. A representação, pois, no mármore,

deveria apresentar os traços do sofrimento de maneira

sutil. Nenhuma expressão deveria ser exagerada, o

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equilíbrio e a sutileza, juntamente com a virtude,

previamente conhecida, trariam conforto aos receptores da

obra.

Essa idéia do ser virtuoso que engrandecia a arte e

moldava os heróis perpetuou-se por séculos e foi motivo de

discussão e estudo de diversos filósofos. O conceito de

virtude foi evoluindo, desde a Grécia Clássica, com a

contribuição pioneira de Aristóteles, até as formas

assumidas nos dias de hoje. A preocupação com a educação do

caráter, central na teoria ética da virtude, desenvolveu-se

no Ocidente. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, definiu,

com precisão, o conceito de virtude, como a disposição

voluntária que visa a excelência, a perfeição. Esta, por

sua vez, é ainda associada ao justo meio, ou seja, à

exigência do caráter para que o indivíduo encontre o

equilíbrio certo entre dois extremos: o excesso e a

deficiência. Sendo assim, nada que não encaixasse nos

parâmetros do belo não poderia ser considerado arte.

No entanto, com a evolução das culturas, ocorreram

mudanças no entendimento de beleza e arte, advindo

principalmente da aceitação no seu domínio de outras

manifestações, que fizeram diminuir as altas fronteiras

entre o domínio intelectual e a massa. A mímeses, que

prescreve a obra como imitação, de maneira a apreender a

verdade, excluía inúmeras expressões artísticas que não

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partiam dessa máxima. Contudo, a busca de novas formas de

entendimento levou a uma dessacralização da arte.

Acolhemos, então, a teoria de Kant e um novo conceito

de ética, no qual nossos juízos estéticos apresentam um

fundamento subjetivo, impossibilitando conceitos

determinados. Agora, o critério de beleza é intrínseco ao

do prazer. A ética kantiana pauta-se sobre a noção de

dever, o “agir de forma boa”. A busca e o alcance da

felicidade passam pelo reconhecimento do outro, em meio à

sociedade.

Aliados a isso, observamos também uma evolução do

estudo da psicanálise, que inaugurou uma nova forma de ver

o homem e seu meio. O sujeito passou a ser visto não mais

como uma unidade, mas como um mosaico de personas. Esse

“encontro” com a essência humana abalou o conceito da

virtude. O Homem, então, não poderia mais ser

essencialmente virtuoso ao passo que possui várias faces.

Se mais nenhum indivíduo é capaz de ser classificado como o

herói dotado somente de virtudes, o conceito de belo

deveria mudar. O conflito humano tornou impossível a

descrição do equilíbrio e da harmonia.

Em meio à isso, a literatura acolheu o conceito de

anti-herói, que caracteriza os personagens das obras

modernas, mergulhados em conflitos. Dessa forma, a arte

passou a ficar mais próxima de nós. Não tínhamos mais

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Deuses nem cavaleiros medievais, que só nos inspiravam

orgulho. Agora, os homens eram nossa real imagem, sofriam

de doenças, de dúvidas, eram feios, deformados e tinham seu

lado mau. Se o belo deve ser considerado como a verdade da

natureza, a modernidade e sua nova forma de ver o homem

trazem ao domínio da beleza outros conceitos repugnados

pelos clássicos de antes, como por exemplo, a dor, em sua

pior forma.

O Homem passa pelo sentimento da dor todo o tempo. Sua

impossibilidade de se reconhecer múltiplo o leva a uma

eterna busca ignorante e incansada pela convivência

pacífica na sociedade, ou ao isolamento. Nenhuma de suas

escolhas o leva a real felicidade, e o fracasso causa dor,

apresentada de inúmeras formas e intensidade.

Relacionado a isso, Sartre, movido pela influência da

angústia e do vazio espiritual do seu tempo, funda o

existencialismo, construído em parte sob os ecos das duas

grandes guerras mundiais. Em O Existencialismo é um

humanismo, o filósofo descreve o homem como responsável

pelas suas ações. Primeiramente tem-se a existência do

indivíduo, depois a essência: o homem nasce e só depois se

constitui como indivíduo, baseado em seus atos. No entanto,

a escolha do sujeito passa pelo reconhecimento do outro.

Ele só pode se desenvolver em direção à felicidade se

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reconhecer que faz parte de uma sociedade e que todos seus

atos influenciam as pessoas em sua volta.

Em contraponto, a responsabilidade pelos outros priva

a liberdade do indivíduo, o que causa angústia e dor. Em

Mal-estar na Civilização, Freud mostra o processo

civilizatório do Homem como algo castrador das pulsões e

desejos. Sendo sujeito múltiplo, o tolhimento de uma de

suas partes faz com que o sujeito sofra. Se segue às normas

sociais sofre pelo castramento, pela não satisfação de seus

desejos, por desejar o que imagina não dever e por não

saber como sublimar essa dor. Quebra-se uma norma, padece

por não ser o que deveria, por se individualizar ou por

culpar-se pela dor do outro. Assim, o Homem será fadado a

um sofrimento dilacerante e eterno. Sua única saída é

encontrar formas de sublimá-lo, buscar seu totem.

Segundo Freud, o homem encontra ao longo de sua vida

várias formas de sublimar sua dor. A mais confortável para

muitos, ao longo de milênios, é a religião. A divindade é

garantia e fundamento de sentido do universo e da

existência humana. Deus é o apoio eterno da imutabilidade

das leis físicas, do funcionamento perene da maquinaria

universal. Se Deus garante a permanência das leis naturais

e funda a estabilidade do universo, ele também dota a

existência humana de sentido. As leis morais, as direções a

serem tomadas na vida, derivam do simples fato de que Deus

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existe. Daí vem a máxima de Dostoiévski que afirma que se

Deus não existisse, tudo seria permitido, pois na sua

ausência o sentido da existência e da ética tornar-se-iam

questões exclusivas do âmbito humano. E dessa forma, a vida

seria certamente mais difícil e dolorida.

Para Sartre estamos solitários e entregues à própria

sorte, e devemos extrair, por esforço próprio, um sentido

para essa existência. Assim surgem outras formas de

sublimação. Fora das explicações da existência divina, a

maior parte delas pode ser considerada trágica pelos olhos

da sociedade, como por exemplo, a morte e a loucura.

Em meio a essa indefinição conflituosa do sujeito, de

novos valores éticos e do comportamento do Homem perante

eles, a beleza na era moderna toma formas diferenciadas. O

belo não nos causa prazer, como antes. Agora, tudo o que

possa ser representado em arte como a face da verdade da

natureza é considerado belo. O prazer é conceitual, ele não

vem necessariamente na forma do agradável, mas como algo

que nos cause algum tipo de epifania, de inquietação

crítica.

Não foi a condição humana que mudou. Desde os

primórdios da humanidade o sujeito se comporta como tal. O

que ocorreu foi a constante transformação em direção à uma

nova visão, um novo conceito estipulado, uma nova aceitação

do caráter humano.

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Em vista disso, na literatura temos um elenco de

textos intimistas e subjetivos (como os de Dostoiévski,

Proust, Joyce, dentre outros) que apresentam a polifonia de

seus (anti-) heróis, cada vez mais conflituosos. A

subjetividade é a escolha que o escritor faz em sua obra de

mostrar e explorar a perspectiva da personagem.

Freqüentemente a narrativa dá-se em primeira pessoa,

mostrando a voz da consciência do sujeito. O que vemos

nessa literatura é o desdobramento de uma voz em muitas

outras. O que caracteriza a intersubjetividade é a certeza

de que há um múltiplo de caracteres opostos e

complementares dentro da consciência de um único indivíduo.

E uma das tarefas da literatura subjetiva é a de mostrar

como ocorre a coexistência dessas personalidades dentro do

sujeito.

No Brasil, inauguramos esse gênero com Machado de

Assis e suas teorias sobre o sujeito. O autor caracteriza-

se por estar à frente da literatura do seu tempo. Seu jeito

peculiar de testemunhar o humano o fez um predecessor na

literatura brasileira. Seu legado deu frutos no Modernismo.

A partir desse período, nascem inúmeros escritores e obras

que fazem do retrato da consciência de seus personagens a

arte e a beleza da literatura universalista.

Assim, José Lins do Rego, em seu romance Fogo Morto,

nos dá a dimensão de um texto intimista e da nova forma de

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representação da ética e da estética na arte. Seus três

personagens principais mostram, cada um, diferentes formas

dilacerantes da dor, que convergem naquele engenho e vida

falidos. Todos, ao longo do texto, procuram por uma forma

de sublimação desse sofrimento e é essa que os distingue ao

fim do romance.

De acordo com as definições de ética que estudamos,

podemos delinear os motivos das angústias dos anti-heróis

de Fogo Morto. Os personagens de José Lins do Rego

apresentam muitas diferenças do homem virtuoso, pregado por

Aristóteles. Zé Amaro e Lula de Holanda não podem se

realizar como indivíduos, pois não apresentam força nem

vigor, o que os fada à infelicidade, à ruína de suas metas.

Já Vitorino da Cunha apresenta um impulsionamento diferente

dos dois primeiros. Ele é corajoso e forte, mas seus traços

quixotescos e sua loucura não o permitem encaixar-se no

ideal aristotélico.

Sob a luz de Kant, a condição de sensibilidade, em

oposição à racionalidade, insere os personagens em uma

determinada conduta ética. Suas angústias e dores nascerão

justamente desse conflito entre o racional e o sensível. O

“agir bom” os coage, levando-os à castração de seus

desejos, o que os faz buscar, a todo momento, um estado de

sublimação.

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Todo desejo é sofrimento. E os personagens de Fogo

Morto estão sempre ansiando por algo que não têm, seja

riqueza, reconhecimento ou até mesmo paz. Com Zé Amaro

podemos observar a efemeridade da satisfação do desejo. O

personagem recebeu de herança de seu pai o ofício e a casa,

casou-se com uma boa mulher e teve uma filha. Ele poderia

viver satisfatoriamente com sua condição, mas o vazio do

querer infinito esvaziou de sentido suas conquistas e o fez

almejar mais. Da vontade de uma vida simples, surgiram

outras e, com essas, o tédio da condição presente. A

vontade incessante e impossível de realização plena de José

Amaro, como dos outros do romance, causa dor. Alguma forma

de fuga se mostra necessária para essa tortura anunciada.

Ao dar-se conta de sua responsabilidade com o próximo,

José Amaro sofre ainda mais com a loucura de sua filha e a

insatisfação de sua mulher. Igualmente, Lula de Holanda

preocupa-se em como dar conta desse dever. Enquanto o

primeiro não sabe o que fazer, o segundo castra os desejos

de suas mulheres (esposa e filha), como forma de castigo e

solução para seus recalques. Essa é a imagem que podemos

fazer dos estudos de Freud e Birman sobre a fragilidade do

sujeito e do desamparo como conseqüência. O Homem entre o

desejo e a culpa, eternamente castrado e pressionado por

seus instintos, que surgem e se manifestam de diversas

maneiras.

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Como em Dostoiésvki, os homens de Lins do Rego

apresentam-se como inacabados, polifônicos, formados de

diversos caracteres. Seu inferno se constitui na não

aceitação dessa condição plural. A única salvação é

atravessar esse infinito inquietante.

Com isso podemos compreender que as serpentes de

Laocoonte também sufocam os anti-heróis de Fogo Morto. Aqui

a dor psicológica transpassa também à física. Ela

apresenta-se dilacerante e intensa. Zé Amaro transforma

suas feições e passa a ser visto como lobisomem, enquanto

que Lula de Holanda sucumbe em convulsões. Vitorino da

Cunha parece ser o único a não se sentir degradado. Embora

sua aparência seja maltratada, ele mostra viver muito bem

com sua loucura. Esta surge em Vitorino como a única forma

de sublimação que logrou sucesso, no romance. Seu caráter

audaz o faz viver diante de toda a miséria, sem abalar-se e

sempre rumo às conquistas, contra as opressões. É o único

que mostra querer lutar.

O conhecimento é a mola que impulsiona a dor, o

desconforto. O saber de sua condição precária assombra a

vida dos anti-heróis de Fogo Morto. No Caso de Vitorino da

Cunha, certa ignorância da fatalidade dessa precariedade o

faz diferente. Sua loucura ou a esperança imortal de uma

dignidade não o faz enxergar a realidade como Zé Amaro e

Lula de Holanda. O meio torna-se o reflexo do sujeito. Ele

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está ou não disposto a ver o que o cerca, ou melhor, ele

fornece o sentido que o compraz a esse meio.

***

A estética de Fogo Morto, assim como a da modernidade,

encaminha-nos a nova concepção de beleza. O belo toma seu

caráter de epifania, e tudo que nos suscitar reflexão faz

parte da experiência estética. O que vale agora é a real

imagem do ser humano, mergulhado em sua natural

precariedade.

O receptor tem como função digerir toda dor, angústia

e sentimento presentes na obra, e transformar em produto de

sua individualidade, como experiência estética. Devemos

deglutir o estranho e transformá-lo em produto nosso, como

prescreve Oswald de Andrade em seu manifesto antropófago.

Talvez o auto-conhecimento, a sublimação individual, passe

pelo cuidado em filtrar o novo. Reconhecer esse processo é

também dar-se conta que somos feitos de “plural”, e que

esse “diverso” é envolto e costurado pela nossa essência.

O conhecimento da ética funciona como o primeiro passo

para o delineamento dos personagens e da arte, de sua

condição subjetiva. As concepções de estética vêem dar o

aval para a representação do indivíduo co-movido pela

ética. A dor é somente a conseqüência desses diversos

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conceitos postulados pela sociedade, e sublimação, a

certeza de que somos múltiplos e, portanto, incapazes de

viver sozinhos.

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