a Ética do discurso

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A ética do Discurso: K.-O. Apel e J. Habermas 1 l. A situação epocal (o paradoxo da situação atual). A problemática da ética, ou da ciência do ético, situa-se hoje, inevitavelmente, na relação ciência e ética, em decorrência do tipo de civilização que constitui nossa epocalidade 2 . A ética do discurso entende-se como tentativa de repensar a racionalidade do ético numa civilização profundamente marcada pela racionalidade própria às ciências modernas, ou seja, ela se compreende como a ética que se tomou possível a partir da cientificação da vida humana. Numa palavra, o lugar hermenêutico a partir de onde se pensa a ciência do ético hoje é o mundo profundamente marcado pela intervenção da ciência moderna e as conseqüências daí surgidas para a vida humana 3 . [10] Uma primeira decorrência dessa situação para a ciência do ético é que, numa sociedade como a nossa, ela tem de abandonar qualquer resquício do particularismo de uma ética pensada para tornar possível a convivência de pequenos grupos e se situar clara e decididamente na perspectiva aberta por Kant, isto é, na perspectiva do universalismo. Hoje tomamos consciência, com a universalização da civilização técnico-científica por toda a Terra, das consequências das ações humanas no espaço dos interesses comuns da humanidade como um todo 4 . Isso se manifesta sobretudo nos perigos que atualmente ameaçam a existência da humanidade em geral; por exemplo: mais do que nunca, cresce em nossos dias a consciência da ameaça para toda a humanidade do 1 OLIVEIRA, Manfredo A. de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993. In: “A ética do discurso: K.-O. Apel e J. Habermas, p. 9-39. 2 K.-O. Apel considera específica dessa situação a consciência da necessidade de organização da responsabilidade da humanidade enquanto tal, em relação às consequências de sua ação em perspectiva planetária. O novo é a necessidade de uma “macroética”. K.-O. Apel, “Die Situation des Menschen als ethisches Problem” in: Diskurs und Verantwortung. Das Problem des Übergans zur postkonventionellen Moral . Frankfurt am Main, 1988, p. 42-68. 3 A respeito dos desafios que esta problemática levanta hoje à humanidade, veja D. Henrich, Ethik zum nuklearen Frieden. Frankfurt am Main, 1990. 4 P. Ricoeur, “Civilisation universelle et cultures nationales”. In. Histoire et vérité, 3 a ed., Paris, p. 286-300. Ricoeur analisa as características fundamentais da primeira forma de civilização universal, a civilização que radica no espírito técnico-cientítico, mostrando quanto ela significa de progresso para a vida humana. No entanto, ela tem uma dimensão problemática, pois provoca uma espécie de destruição sutil não só das culturas tradicionais, mas do que ele denomina o “núcleo criador” das grandes civilizações, das grandes culturas, a partir do qual interpretamos nossa vida, ou seja, o núcleo ético e místico da humanidade. Este constitui, para Ricoeur, o conflito de fundo da nova civilização. Ver sobretudo p. 292s.

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Etica del Discurso

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A tica do Discurso: K.-O. Apel e J. Habermas

l. A situao epocal (o paradoxo da situao atual).A problemtica da tica, ou da cincia do tico, situa-se hoje, inevitavelmente, na relao cincia e tica, em decorrncia do tipo de civilizao que constitui nossa epocalidade. A tica do discurso entende-se como tentativa de repensar a racionalidade do tico numa civilizao profundamente marcada pela racionalidade prpria s cincias modernas, ou seja, ela se compreende como a tica que se tomou possvel a partir da cientificao da vida humana. Numa palavra, o lugar hermenutico a partir de onde se pensa a cincia do tico hoje o mundo profundamente marcado pela interveno da cincia moderna e as conseqncias da surgidas para a vida humana.

[10] Uma primeira decorrncia dessa situao para a cincia do tico que, numa sociedade como a nossa, ela tem de abandonar qualquer resqucio do particularismo de uma tica pensada para tornar possvel a convivncia de pequenos grupos e se situar clara e decididamente na perspectiva aberta por Kant, isto , na perspectiva do universalismo. Hoje tomamos conscincia, com a universalizao da civilizao tcnico-cientfica por toda a Terra, das consequncias das aes humanas no espao dos interesses comuns da humanidade como um todo. Isso se manifesta sobretudo nos perigos que atualmente ameaam a existncia da humanidade em geral; por exemplo: mais do que nunca, cresce em nossos dias a conscincia da ameaa para toda a humanidade do projeto moderno de domnio da natureza. Manifestam-se mais claramente as consequncias da interveno tecnolgica do homem sobre a biosfera e a ecosfera, provocando superpopulao, escassez de fontes energticas, destruio do meio ambiente, fome e misria em muitos pases, possibilidade da destruio nuclear da humanidade. Parece evidente que a grande aspirao do homem moderno, de tomar-se senhor e possuidor da natureza, tem pelo menos um limite absoluto na sobrecarga termal do meio ambiente, em dependncia do consumo de energia. daqui que emerge a assim chamada crise ecolgica, trazida conscincia, com veemncia, pelo relatrio do Clube de Roma. Revela-se aqui que a expanso do controle sobre a natureza externa choca-se necessariamente com os limites da capacidade biolgica do meio ambiente. Tanto a crise ecolgica como o perigo da destruio nuclear, da dizimao de populaes inteiras pela fome, ameaam a humanidade como um todo. Pela primeira vez na histria mundial, torna-se claro, em decorrncia dos perigos que dizem respeito humanidade global, que os homens so interpelados pelo perigo comum a assumir, juntos, a res [11] responsabilidade moral: a civilizao tcnico-cientffica confronta todos os povos da Terra, independentemente de suas tradies morais especficas, com uma problemtica tica comum: a responsabilidade solidria em escala planetria.

Trata-se de organizar a responsabilidade da humanidade para as conseqncias das aes coletivas em nvel mundial. A prpria situao do homem hoje constitui um problema tico especfico, que aponta para a necessidade de uma macrotica. A situao crtica da humanidade instaura, em nossos s, a instncia de surgimento das interrogaes ticas em nossa epocalidade. No entanto, e eis o paradoxo de nossa lao, agora que, como nunca na histria da humanidade, s revelou com tanta fora a necessidade de uma macrotica, jamais pareceu to difcil legitimar a cincia do tico, em virtude da prpria concepo de saber vigente em nossos contextos societrios atuais; ou seja, a teoria da cincia, hoje, ' marcada pela convico bsica de que a possibilidade de validao intersubjetiva de argumentos, portanto, de um saber responsvel, limita-se ao campo das cincias formais, lgico-matemticas, e ao campo das cincias tatuais, as emprico-analticas, da realidade. Ora, normas morais no se situam nessas esferas, conseqentemente esto fora do campo do saber objetivo, intersubjetivamente vlido. Assim, no lhes resta outra perspectiva, exceto situar-se no espao da subjetividade, na esfera do que, em princpio, universalizveis, isto , no campo das emoes, dos sentimentos, das decises arbitrrias, irracionais. No existe, portanto, possibilidade de legitimar normas ticas: como a racionalidade sempre foi entendida, desde os princpios da civilizao ocidental, como a esfera da legitimao, do dar as razes de nossos conhecimentos, o tico exclui-se da racionalidade. Isso equivale a estabelecer enorme reduo do campo da racionalidade, como ela foi articulada pelos gregos: a racionalidade agora limita-se esfera da razo terica e, mais ainda, tambm razo terica que estuda os fatos observveis.

Tambm a velha ontologia toma-se impossvel, j que no-testvel pela experincia. Se uma tica ainda pensvel na idade das cincias, ela se reduz metatica, mera descrio terico-cientfica da linguagem tica: trata-se de analisar logicamente o discurso tico, o que, alis se faz com qualquer discurso cientfico.4 Qualquer empenho em superar essa

[Nota: 4. Cf. H.-U. Hoche/W. Strube, Analytische Philosophie, Friburgo-Munique, 1985, pp. 101ss.]

[12] anlise lgica da linguagem considerado como tentativa de deduzir normas de fatos, o que desde Hume tido por impossvel. Verdade que o racionalismo crtico, pelo menos aparentemente, atenuou essa posio ao admitir que tambm os enunciados prescritivos so suscetveis de crtica e devem sujeitar-se corroborao. No entanto, aqui tambm no h critrios que legitimem a preferncia por determinadas normas, e, em ltima anlise, tudo vai desembocar num decisionismo irracional. A filosofia hoje, nos pases ocidentais, caracteriza-se por uma ntida diviso de trabalho: de um lado, a filosofia analtica concentra-se no campo do conhecimento cientfico-objetivo, ou seja, na esfera da racio-nalidade; de outro, o existencialismo tematiza a esfera das decises tico-subjetivas. Uma mediao racional entre teoria e prxis aqui impossvel: a objetividade, no sentido da validao intersubjetiva, universal, de conhecimentos, privilgio das cincias neutras. Instala-se, no centro de nossa cultura tcnico-cienttica, o dualismo insupervel' entre o objetivismo neutro das cincias e o subjetivismo existencial dos atos de f e das decises ticas.

Isso significa confinar religio e tica esfera das decises privadas da conscincia e, assim, substituir a fundamentao moral das aes por argumentos pragmticos, na base de regras cientfico-tecnolgicas. A prxis humana torna-se assim prxis objetivvel, fundamentvel a partir dos modelos das cincias tcnico-instrumentais. o que M. Weber descreveu como o processo de racionalizao que caracteriza a modernidade ocidental, que vai desembocar na reduo do problema tico da legitimao dos fins das aes esfera das decises subjetivas irracionais. Nossa situao , pois, a situao da lgica da alternativa entre cincia obje-tiva e tica subjetiva.

Para K-O. Apel, o marxismo contemporneo, em todas as suas verses, constitui o lado positivo, mais ou menos dogmtico, desse antagonismo.B Para Marx, a tarefa fundamental da humanidade superar sua fase pr-histrica, baseada em interesses de grupos particulares e de classes, e estabelecer-se na esfera da transparncia, que radica no autocontrole efetivo da atividade humana. Histria significa

[Nota: 5. K.-O. Apel, Der postkantische Universalismus in der Ethik im Licht seiner aktuellen Missvert&ndnisse, op. cit., p. 154s]

[13] autoconstruo do homem a partir da responsabilidade assumida em ao solidria. Prxis solidria e planejada sinal onanizao da vida humana. Como se legitimam as normas de ao? Segundo Apel, o problema no se pe para j que ele pensa no horizonte da historificao da onto-tradicional como isso se fez em Hegel: trata-se, de antemo, de uma ontologia teleolgica, segundo a qual o ente, Sentido ltimo da palavra, igual ao bem, i., ele racio-I. Mas aqui o que a cincia capta o curso necessrio da rtria. H aqui, de fato, superao dialtica da problemtica especfica da razo prtica, que desemboca num objetivismo terico-histrico, que, segundo Apel, no passa ('variante da aporia hegeliana da mediao total entre ser e dever-ser. A partir daqui, carece de sentido a distino de ^lUBme entre ser e dever-se: a dialtica entende-se precisamente como a supercincia que efetiva a mediao total entre Objetividade e subjetividade. Assim, enquanto socialismo cientfico, a dialtica marxista substitui a fundamentao do engajamento sociopoltico pela referncia ao historicamente necessrio e substitui a responsabilidade por um futurismo tico, na expresso de Popper.6 Os funcionrios do partido, que, a partir de Lenin, consideram-se detentores de uma percepo da necessidade imanente ao processo histrico, devem fhonopolizar a mediao correia entre teoria e prxis.

J. Habermas considera a situao da tica atual7 a partir de sua interpretao do processo de modernizao das sociedades ocidentais, elaborada em confronto com a anlise dos processos de modernizao em M. Weber. A linguagem, para ele, tem imanente a si um potencial de criticidade, de sorte que o processo de racionalizao do mundo vivido vai emergir como desenvolvimento atravs do qual a linguagem explicita sua criticidade imanente. Mas essa racionalizao do mundo vivido, medida que libera a vida humana do peso de tradies culturais no-problematizadas que a regem, vai

[6 Notas: fl. A respeito da crtica de Popper ao futurismo, ver K. Popper, Das Elend des Historiaismus, 2a ed., Tbingen, 1969; Die offene Ge-selischaft und livre Feinde, Bonn, 1958, vol. II, sobretudo cap. 12.

7. J. Habermas, Diskursethik: Notizen zu einen Begrndungspro-gramm, in: Moralbevmsstsein und kommunikatives Handeln, Frank-turt am Main, 1983, pp. 53ss.; Webers Theorie der Rationalisierung, in: Theorie des kommunikativen Handelns, vol. I, Frarikfurt am Main, 1981, p. 225s.; Entkoppelung von System und Lebenswelt, vol. II, pp. 229ss.]

[14] provocar a introduo de novos mecanismos de ao: assim, vo-se destacar dele campos de ao formalmente organizados, isto , regidos por leis positivas, como a economia e a administrao estatal, onde a sociabilidade no se gestar mais a partir de normas tradicionalmente transmitidas e partilhadas. A coordenao das aes dos sujeitos no ocorrer mais atravs dos processos de entendimento, mas de valores instrumentais, como dinheiro e poder. O processo de modernizao das sociedades ocidentais significar ento novo nvel de diferenciao sistmica, posto que os subsistemas economia e Estado se distinguem, atravs do dinheiro e do poder, do sistema institucional, radicado no horizonte do mundo vivido, e fazem, assim, surgir campos de ao formalmente organizados, que no so mais integrados pelo mecanismo do entendimento, portanto, que se distanciam dos contextos do mundo vivido, constituindo um outro tipo de sociabilidade.

Ora, a autonomia das novas organizaes vai ser conquistada precisamente por uma demarcao neutralizante em relao s estruturas simblicas do mundo vivido, fazendo-se indiferentes aos elementos constitutivos do mundo vivido ou seja, cultura, sociedade e personalidade. Essas organizaes funcionam independentes das disposies de ao e dos fins pretendidos por seus membros; abstraem sistematicamente dos contextos particulares de vida de seus membros, que poderiam perturbar o processo sistmico. Exemplo claro disso a empresa capitalista, que funciona abstraindo plenamente dos contextos vitais privados de todos os que nela trabalham. A mesma indiferena se observa em relao cultura e sociedade, pois as organizaes modernas funcionam em independncia de cosmovises legitimadoras, neutralizam toda a tradio cultural e at se imunizam contra o poder exercido pela tradio atravs da neutralidade ideolgica: trata-se, em ltima anlise, de neutralizao diante do pano de fundo normativo dos contextos de ao. outro tipo de integrao que agora assume a primazia no processo de socializao: o mecanismo essencial na integrao social, a compreenso lingustica, de algum modo posto de lado e dispensado pela atuao dos valores instrumentais nos contextos de ao formalmente organizados. No entanto, esses novos mecanismos vinculam-se ao mundo vivido atravs do direito: todo o processo de modernizao vai significar, assim, de certo modo, uma substituio da tica pelo direito, no processo de regulao das aes sociais. Habermas chama esses [15] contextos de ao de formalmente organizados, ate porque eles so gostados pelo direito positivo, tornando possveis as relaes de troca e poder.8As instituies primrias das sociedades tradicionais so ilidas, nas sociedades modernas, por instituies jurdicas. Ocorre que o direito moderno se desatrela de motiva-

[Nota: 8- Habermas, Theorie des kommunikativen Handeins, vol. I, Jp. 332ss. Habermas, partindo das sugestes d& Kohiberg, i1 evoluo moral fundamentalmente em trs nveis. Na fase rencional da conscincia moral, o moralmente relevante so as todas da ao, e no as intenes dos agentes; assim, a para as faltas praticamente nada tem a ver com a intrao dual de uma norma, mas tem a funo de afastar da coletividade irigos que a ameaam como consequncia do crime. Portanto, a e de normas radica imediatamente nas aes rituais da comu-de culto. A pena assim uma espcie de expiao do delito a ordem sagrada. J nas sociedades estatalmente organizadas, o de normas avaliado em relao as intenes de um sujeito age com responsabilidade, e a pena se refere a uma ao culposa rtanto, no mais considerada como compensao para as con-incias desvantajosas das aes. Trata-se, agora, no de refazer minado estado anterior, mas de destruir a injustia cometida. o direito tem a posio de metainstituio: a totalidade da ordem poltica constitui-se como ordem de direito. Enquanto na fase pr-vencional so julgadas as consequncias das aes, na fase convencional a orientao em normas ou sua infrao passa para o centro consideraes. Na fase ps-convencional, as prprias normas so avaliadas luz dos princpios. aqui, ento, na instncia dos princpios, que se vai considerar a problemtica fundamental do tico. Nas sociedades modernas, surge um sistema de ao eticamente neutralizado pela diferenciao da economia, que passa a reger-se pelo mecanismo do dinheiro. Essa esfera imediatamente institucionalizada nas formas do direito civil privado. O direito se desvincula de motivos ticos e se caracteriza pela positividade, pelo legalismo e pelo formalismo. Toda essa reviravolta encaminha-se, segundo Habermas, para o universalismo no direito e na moral, o que, ao mesmo tempo, expresso da racionalizao do mundo vivido. Parsons chama generalizao de valor tendncia observada no processo de evoluo, de que as orientaes valorativas se tomem cada vez mais p (Biversais e formais. A sociedade moderna exige um grau de generalizao mais alto que o de todas as sociedades anteriores, pois medida que a eticidade tradicional se divide entre moralidade e legalidade, exige-se, na esfera privada, a aplicao autnoma de princpios universais, e, na esfera profissional, a obedincia ao direito positivamente estabelecido. A obedincia abstraia ao direito se faz assim a nica vinculao normativa para o agente, num campo de ao formalmente organizado. Ora, para Habermas esse processo de generalizao faz surgir duas tendncias contrapostas: quanto mais progride a generalizao, mais se afasta o agir comunicativo dos padres]

[16] es ticas: ele funciona como mediao de demarcao de campos de arbtrio legtimo para pessoas jurdicas privadas e para o exerccio pblico de cargos. Na perspectiva da nova forma de socializao, as normas jurdicas tomam o lugar da eticidade tradicional: o direito no mais se radica nas estruturas tradicionais da comunicao, mas gera formas de relaes sociais independentes do contexto normativo de comunicao das tradies culturais. A modernizao da sociedade significa ento o processo de marginalizao da ao comunicativa e a constituio de contextos de ao regrados pelo direito positivo. Na medida mesma em que as empresas se transformam em sistemas auto-regulados, passa para o primeiro plano da vida social a organizao jurdica. Isso vai acarretar, por consequncia, um processo de formalizao das relaes interpessoais, que agora so regidas por regulamentaes formais: no que a ao comunicativa desaparea, porm cada vez mais perde poder sua base normativa e transforma-se a situao das aes, j que de agora em diante elas so coordenadas por novos mecanismos. O avano do processo de modernizao implica autonomia crescente para os subsistemas de ao instrumental da perspectiva

[Nota: normativos de comportamento concretos e tradicionais. Isso significa que a integrao social cada vez menos se faz pela mediao da religio e cada vez mais radica no processo linguistico de formao de consenso. Assim, a generalizao de valores emerge como a condio necessria de possibilidade para a liberao do potencial de racionalidade implcito na ao comunicativa. Mas, por outro lado, a liberao do agir comunicativo de orientaes valorativas particulares vai provocar a separao entre ao orientada no sucesso e ao orientada no entendimento. Cada vez mais agora vai emergir uma rede de interaes que no mais se orientam por valores e normas, ou seja, no mais se orientam pelo entendimento, mas se apoiam em mecanismos de descarga, que evitam os riscos da dissidncia e a problemtica de um consenso conquistado pelo debate. Tais mecanismos, assim, substituem a linguagem como meio de coordenao de aes. Isso vai, ao longo da evoluo, abrir espao ao que Habermas denomina colonizao do mundo vivido, que constitui a patologia tpica das sociedades modernas: o principio sistmico de integrao invade o mundo vivido e desintegra-o. Assim, por exemplo, na sociedade capitalista, o sistema econmico toma-se o princpio de organizao de toda a sociedade e pretende submeter tudo a seus imperativos. Nas sociedades do socialismo burocrtico, o sistema administrativo exerce funo semelhante. Nessa tica, portanto, a contradio fundamental das sociedades modernas entre a racionalizao da comunicao cotidiana, radicada no processo de entendimento, portanto, alicerada nas estruturas da intersubjetividade do mundo vivido, e a crescente complexidade e influncia dos subsistemas de ao teleolgica, o que, em ltima anlise, significa atrofia da dimenso tica da vida humana.]

[17] vividos. Isso vai provocar afastamento progres-I'relaes sociais da identidade dos agentes: a esfera comunicativo, cada vez mais, passa periferia da n social sistemicamente integrada. Na sociedade ca-, primeira forma de sociedade moderna, a produ-s centralizada e regrada, no politicamente, mas atra-"mercado". O Estado, que no produz e recolhe, r de tributos, os recursos necessrios para suas tare-ganiza e assegura o relacionamento jurdico entre os Itcipam da concorrncia do mercado, portanto, entre enquanto produtores privados, sustentam o proces-Iroduo. O Estado pe, ento, os pressupostos jurf-do processo de troca: o direito moderno substitui a de tradicional de normas por um consenso racional-conseguido.

Ocorre na modernidade um processo de positivao do : direito o que estabelecido enquanto tal, que vem ado a um processo d legalizao e formalizao. exa-tite a separao tpica da modernidade entre legalidade ralidade que condio de possibilidade da institucionalizao do dinheiro e do poder e, portanto, da organizao onomia e do poder numa perspectiva funcional. O desen-nento da sociedade moderna , assim, a institucionali- das relaes mercantis e do poder poltico atravs do o positivo. Uma vez estabelecida a economia capitalista subsistema de ao instrumental, ela no necessita mais tentao de ordem tica. Literalmente, a tica substituda pelo direito ou seja, os contextos de ao, eticamente neutralizados, podem ser separados legitimamente, por procedimentos formais, do estabelecimento, e da fundamentao de normas.

Mas isso no tudo: a sociedade moderna caracteriza-se no s pelo desengate dos subsistemas de ao instrumental do mundo vivido, mas tambm pela invaso crescente da economia e da administrao no mundo vivido, o que Habermas ama de colonizao do mundo vivido.8 A grande contra-Qo de fundo da sociedade moderna a contradio entre os dois princpios de integrao da sociedade, dado que, segundo Habermas, pode-se interpretar o processo histrico de racionalizao do mundo ocidental como crescente invaso do mundo vivido plos subsistemas de ao instrumental, o

[Nota: 9. J. Habermas, "Marx und die These der inneren Kolonisierung", In: Theone des kommunikativen Handetns, op. cit., vol. II, pp. 489ss.]

[18] que significa que a vida dos homens vai-se reger muito mais por mecanismos funcionais inconscientes do que por normas ticas. Nas sociedades capitalistas, o mercado o eixo organizador, a modernizao revela-se como processo de reitica-o das relaes comunicativas, a lgica sistmica invade a vida privada e pblica do homem, recalcando para a marginalidade sua dimenso tica. As sociedades socialistas-buro-crticas passam por processos anlogos, que se manifestam na pseudopolitizao atravs da coao burocrtica. Aqui tambm economia e administrao estatal seguem uma lgica sistmica. A modernizao significa ento, em ambas as vertentes, a substituio do tico pelo sistmico, no processo de regulao da vida humana.2. Onde se situa o tico na vida humana.A primeira tarefa da reflexo filosfica, nessa esfera, , para Habermas, de ordem teraputica: ela deve apontar para a dimenso do tico na vida humana, no sentido fundamental de explicitar os fenmenos que exigem reflexo tica; por isso ele se vale de um clebre trabalho de P. F. Strawson,10 j que . pela determinao da especificidade do fenmeno tico que se vai estabelecer uma discusso racional sobre o tico, impossibilitada pela mentalidade tcnico-cientfica vigente. Strawson parte das atitudes com as quais reagimos a ofensas, que podem desembocar no ressentimento, que para ele significa uma expresso de juzo moral: trata-se da desaprovao de uma injustia cometida pelo outro. Nesse contexto entra a possibilidade do pedido de desculpa, que precisamente a recuperao de uma relao interativa, rompida por um sujeito capaz de responsabilizar-se por suas aes, Com isso se manifesta a esfera em que emerge o tico na vida humana: a esfera da interao de sujeitos capazes de talar e agir. Mas como se manifesta o propriamente tico nesses sentimentos? Precisamente medida que a reao dirige-se contra a infrao de uma expectativa normativa subjacente, que no diz respeito apenas a duas pessoas envolvidas no ato, mas a todos os membros de um grupo social; mas ainda, no caso de normas morais, no sentido estrito da palavra, trata-se de uma validade em relao a todo e qualquer sujeito capaz de responsabilidade, ou seja, na pessoa do ofendido est sendo infringida uma expectativa impessoal,

[nota: 10. P. F. Strawson, Fredom and Jtesentment, London, 1914.]

[19] que vale para qualquer homem enquanto ser capaz de responder por seus atos.

O emerge na interao de sujeitos, mas aponta para ao de qualquer particularismo: s se pode falar propriamente de norma moral quando se leva em conta a de validade universal. O tico diz respeito a um de possvel reconhecimento recproco entre sujeitos l. dignidade. Mas tal sentimento, que aponta para a ide de normas ticas, s se sustenta se for possvel demonstrar que tais normas tm fundamento. Dever fazer nifica ter fundamento para sua ao. Normas ticas toda a autoridade sem um contedo cognitivo, se se puder mostrar que possuem razo de ser. Portanto, qualquer reflexo sobre o tico implica que levemos em considerao essa rede de sentimentos ticos que perpassa a prxis comunicativa da cotidianidade dos homens. Certamente, diz Habermas, esses sentimentos ticos tm para a legitimao moral de normas de ao papel semelhante ao ('percepo na explicitao terica de fatos. Toulmin esta-ece um paralelo entre percepes e sentimentos: opinies e sentimentos funcionam no cotidiano como mediadores no-problematizados de interaes11. Quando tais proferimentos esbarram em contradies, a pretenso de validade a eles vinculada entra em crise: passa-se ento a uma avaliao crtica da pretenso de validade. Nessa perspectiva, um argu-i9ento tico refere-se rede de sentimentos morais de modo anlogo como um argumento terico relaciona-se com a corrente de percepes. Assim, pode-se falar de verdade tica. Aqui se situa a questo, pois se pode pensar que as sentenas normativas so da mesma natureza que as sentenas descritivas, de tal maneira que ento seria possvel concluir que s sentenas normativas poderiam ser verdadeiras ou falsas, rio mesmo sentido das descritivas.

Toulmin percebeu com lucidez que o sbjetivismo e o objetivismo ticos so duas faces de uma mesma medalha: ambos partem da falsa premissa de que a validade de sentenas descritivas o nico modo como sentenas podem ser fundamentadas. Ambas as posies passam por cima da questo fundamental: o modo especfico de fundamentao das sentenas ticas. Aqui se situa propriamente a questo[Nota: 11- 5t. Toulnn, Are examination of the place of reason in ethics, Cambridge, 1970, p. 121s.]

[20] bsica de uma tica filosfica: que tipo de argumento est em jogo na justificao de normas? Qual o modo prprio de fundamentao das sentenas normativas? Que critrios nos podem levar a aceitar exigncias como obrigaes morais?

3. A especificidade da sentena normativa.A fenomenologia do tico desemboca na questo fundamental de uma tica filosfica: em que sentido e de que modo normas morais podem ser fundamentadas. A tica do discurso marca aqui sua posio diante do emotivismo e do decisionismo: a tica tem a forma de uma argumentao moral. Contudo, para poder diferenciar, em nvel de argumentao, a especificidade do argumento tico, necessrio detectar, no horizonte do mundo vivido, o carter prprio da pretenso de validade das normas morais. Habermas12 empreende essa anlise a partir da esfera das interaes comunicativas, nas quais participantes orientam e coordenam suas aes, base de um consenso que se estabelece na vida comum pela aceitao recproca no-problematizada das pretenses de validade implcita ou explicitamente levantadas na fala. A interao simbolicamente mediada se faz a partir de um horizonte de sentido intersubjetivamente partilhado, que a condio de possibilidade do entendimento entre os diferentes sujeitos a respeito de algo no mundo objetivo dos fatos, no mundo social da regulao das relaes inter-subjetivas e no mundo subjetivo das vivncias.

No caso da pretenso veracidade, o sujeito pode prov-la a partir das consequncias de suas aes. Quanto s duas primeiras pretenses, pode-se passar da simples aceitao tcita a uma avaliao discursiva de sua validade. No entanto, guardada a homologia de base, trata-se de duas pretenses de validade cuja consistncia se pode testar com a apresentao de razes, uma vez que h, j na prxis cotidiana, diferenas essenciais entre ambas as pretenses de validade. Na aparncia, elas manifestam as mesmas propriedades, mas, de fato, h uma diferena profunda na relao entre ao lingustica e normas e ao lingustica e fatos. Assim, por exemplo, uma norma moral levanta a pretenso de sentido

[Nota: 12. J. Habermas, Diskursethik, op. cit., p. 67ss. Cf. tambm S. P. Rouanet, "atia llumtnista e tica discursiva", in: Jrgen Habermas:

60 anos, Tempo Brasileiro, 98 (1989), 23-78.]

[21] e validade, independentemente de ser proclamada. Numa pa-nses de verdade situam-se nica e exclusivamen-s lingusticas, enquanto pretenses de validade pem-se primeiramente em normas e s depois, rivado, em aes lingusticas. Da a diferena fundamental entre a ordem da natureza e a ordem da sociedade. r da natureza constituda sem relao a valores e podemos assumir diante dela uma posio de neu->, objetivante, impossvel no caso da ordem social, co qual nos comportamos em conformidade

Portanto, de antemo, a realidade social situa-se numa relao interna com pretenses normativas de validade. etenses de validade da verdade no esto nas coisas, tcnicamente nos atos de fala constatativos, com os quais telacionamos aos estados de coisa. partir daqui se aperceber a ambiguidade da pretenso normativa de bde. Enquanto existe relao unvoca entre estados de ^existentes e sentenas verdadeiras, o existir, ou seja, a ida social de normas, ainda no decide sobre sua vali-!jfe. Do ponto de vista tico, fundamental, portanto, a ICo entre o fato social do reconhecimento ntersubjetivo ^capacidade de reconhecimento de uma norma: uma nor-^pode, de fato, valer socialmente, sem que se possa legiti-fySem. que seja possvel apresentar razes para sua pr-Bo de validade. Mas tambm possvel que uma norma seja legitimvel sem que, de fato, encontre reconhecimento; em sntese, o simples estabelecimento ou a promulgao de (loba norma no garante, a longo prazo, sua vigncia flica18. [Notas: 13. Para Habermas, isso constitui uma das grandes conquistas prtpdolgicas de M. Weber, que, tendo partido da distino unda-jDantal no neokantismo entre ser e dever-ser (ser e valor), esclarece A distino e a relao entre uma pretenso de validade normativa e s"j validade social de normas de ao, o que, por sua vez, o leva a fM distino fundamental entre a "regularidade fca" de comportamento e a regulao normativa" da ao. Da por que no se podem confundir sentenas descritivas com sentenas normativas, ou seja, juzos de valor com juzos de fato. Fatos, no caso a validade social d normas, podem ser captados pela posio do observador, mas a validade ideal de normas s atingvel pelo terico, numa postura periormativa, na qual, de algum modo, ele toma posio quanto pretenso de validade em tela. Cf. J. Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns, op. cit., vol. I, p. 267s]

[22]

4. A validao intersubjetiva de normas.A validade de qualquer proposio determinada pela argumentao, que busca estabelecer consenso fundado. No caso dos discursos tericos, o princpio de induo que liga as observaes e as hipteses universais. validao de normas necessita de um principio anlogo, que Habermas vai buscar na proposta de Kant, ou seja, na "exigncia de universalizao", repensada luz de uma teoria da ao comunicativa. Para Habermas, o princpio moral, a regra de procedimento correto para a validao de normas, compreendido de tal modo que exclui as normas que, em princpio, no possam ser aceitas por todos os interessados. As normas s valem quando exprimem uma vontade universal, fi precisamente nessa perspectiva que Habermas interpreta o imperativo categrico kantiano, isto , como princpio que exige a capacidade de universalizao das mximas de ao ou dos interesses por elas contemplados. Portanto, normas vlidas devem poder merecer o reconhecimento de todos os implicados: na avaliao dos interesses, cada um obrigado a levar em considerao a perspectiva de todos os outros14. Exatamente aqui se mostra a diferena entre Kant e a tica do discurso: para Kant, validao pensada monologicamente, medida que uma reflexo puramente subjetiva pode decidir a priori se a norma legitima ou no. Para Habermas, princpio de validao das normas regra argumentaes entre participantes diferentes de uma ao interativa. A fundamentao aqui de ordem pragmtico-lingistica: as normas so justificadas num discurso pblico, a posteriori, conduzido de acordo com o princpio de validao normativa, pois a argumentao moral est fundamentalmente a servio da soluo consensual de conflitos na esfera de interaes orientadas em normas que se radicam num consenso normativo rompido. A superao do conflito consiste em assegurar o reconhecimento de uma pretenso de validade. Esse tipo de consenso exprime uma vontade comum: para chegar a ele

[Nota: 14. Isso significa que o objetivo do discurso prtico o acordo, o consenso racionalmente motivado, pela mediao da prxis argu-mentava de pretenses de validade levantadas na prxis comunicativa ordinria e que atingem o estgio de problematizao. Quando tal ocorre, a validade f tica das normas deixa de ser fundamentao suficiente de sua aceitao. Ao contrrio da natureza, na esfera da sociabilidade a existncia de normas (sua validade normativa) depende do reconhecimento mtersubjetivo. que, no caso de problematizao, deve ser reconquistado pela mediao da argumentao.][23] necessrio o esforo cooperativo. S num processo intersubjetivo de compreenso possvel atingir um consenso de natureza reflexiva, em que os participantes possam saber que eles, comunitariamente, se convenceram a respeito de algo. Da a nova formulao do imperativo categrico: a nfase vai deslocar-se do que cada um pode querer, sem contradio com a lei universal, para que todos devem reconhecer de acordo com a norma universal. A argumentao tarefa comunitria e no-solipsista.155. A fundamentao pragmtico-transcendental do princpio de validao de normas.O cognitivismo tico a postura que considera possvel fundamentar as normas ticas e, nesse sentido, contrape-se radicalmente ao irracionalismo, ou seja, s posies que defendem a impossibilidade lgica de qualquer fundamentao na esfera do tico. Aqui o homem estaria condenado ao decisionismo, ao moral sem fundamentos, radicada, em ltima instncia, no arbtrio dos indivduos. A tica do discurso sustenta, portanto, a racionalidade da ao moral e compreende uma sentena normativa como sujeita argumentao discursiva, em que so levantadas pretenses de validade decidiveis atravs da argumentao16.

Habermas compreende a argumentao como processo com diferentes degraus, e ele articula essa via de fundamentao na forma de dilogo entre o ctico e o cognitivista17. O primeiro momento do processo consiste em abrir os olhos do clico para os fenmenos morais, ou seja, para o explicandura em todo esse debate. No segundo momento, mostra--se que, nas sentenas normativas, h pretenses de validade

[Notas: 15. Para Habermas, o esclarecimento atravs da argumentao de pretenses de validade de verdade e de retido nada mais nada menos que a efetivao plena de competncias que so universais na espcie humana. J uma anlise da linguagem ordinria (contexto no-discursivo) mostra que, em toda linguagem, h pretenses de validade, pelo menos implicitamente levantadas, que apontam para a possibilidade de legitimao discursiva. A ideia, portanto, do discurso racional radica nas estruturas bsicas do agir linguistico.

16. Aqui est a especificidade da tica comunicativa em relao a outras posturas cognitivistas: s a tica comunicativa fundamenta a universalidade das normas e a autonomia dos agentes atravs da "avaliao discursiva" das pretenses de validade, que esto embutidas nas normas que emergem nas comunidades histricas.

17. J. Habermas, Diskursethik, op. cit., pp. 88ss.]

[24] das sentenas tericas. Depois disso, o ctico pode apelar para o inevitvel pluralismo tico reinante nas comunidades humanas, o que significa a impossibilidade de atingir o consenso. O cognitivista v-se portanto, diante da tarefa de demonstrar um princpio de ponte possibilitador de consenso. Demonstrado o principio moral, a fase posterior do processo de fundamentao concentra-se na questo do rela-tivismo cultural: o ctico pode argumentar que o princpio moral demonstrado nada mais significa que a universalizao das intuies morais da cultura ocidental, o que leva a tica do discurso a empreender a fundamentao pragmtico-trans-cendental do prprio princpio de validao de normas ticas.

K-O. Apel18 repensa a fundamentao transcendental de Kant a partir da perspectiva da filosofia da linguagem mais recente. Para mostrar a especificidade da fundamentao transcendental, ele se confronta com a escola popperiana, sobretudo com a formulao da tese da impossibilidade de qualquer fundamentao no famoso trilema de Mnchhausen, de H. Albert." Nessa perspectiva, qualquer tentativa de fundamentao ltima lgico-formal de frases a partir de frases desemboca necessariamente no trilema lgico: ou surge um regresso infinito, ou se interrompe arbitrariamente a corrente de dedues, ou emerge um crculo lgico. Assim, qualquer fundamentao racional logicamente impossvel. A primeira coisa por fazer aqui, segundo Apel, explicitar o conceito de fundamentao em jogo: trata-se de "conceito semntico de fundamentao", que se orienta fundamentalmente na relao dedutiva entre sentenas e se apoia com exclusividade no conceito de sequncia lgica. A teoria dos atos de fala da Escola de Oxford persiste em perceber, segundo Apel, que essa concepo de fundamentao radica numa concepo reducionista da linguagem humana, pois

[Notas: 18. K.-O. Apel, "Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft und die Grundiagen der Ethlk", In: Trans/ormafion der Philosophie, vol. II, Frankfurt am Main, 1976, pp. 358-435; "Kann der postkantische Standpunkt der Moralitt noch einmal in substantielle SittUchkeit 'autgehoben' werden? Das geschichtsbezogene Anwendungsproblem der Diskursethik zwischen topie und Regression", in: Disfcurs und Verantwortung, op. dt., pp. llOss. Cf. tambm W. Kuhimann, Reflexivo LetzfbegrUnung, Untersuchungen sur Transaendentaipragmatik, Fri-burgo-Munique, 1985. D. Bnler, Rekonstruktive Pragmatik, Frankurt am Main, 1985.

19. H. Albert, Tratado da razo critica. Rio de Janeiro, 1976, pp. 24ss.]

[25] toda tala tem sempre duas dimenses: a dimenso preposicional, que diz respeito ao contedo, e a dimenso perfomativa, em que se estabelecem relaes comunicativas entre os participantes da fala.

A concepo semntica da argumentao reduz-se dimenso preposicional da linguagem, esquecida de que toda sentena tambm proferimento, est inserida num contexto de aes comunicativas que so suas condies de possibilidade. Assim, tambm toda sentena descritiva pressupe uma dimenso performativa na estrutura profunda, pragmtica, da linguagem. A dimenso pragmtica da linguagem pode ser chamada de transcendental precisamente porque condio de possibilidade da dimenso preposicional. Podemos distinguir, pois, uma fundamentao de ordem semntica, que a questionada por H. Albert e a fundamentao transcendental, por ele desconhecida. O ctico pode con-tra-argumentar que a fundamentao transcendental no est isenta do trilema lgico. Mas, argumentando, ele aceita implicitamente os pressupostos da argumentao, do contrrio incorreria inevitavelmente numa contradio performativa: enquanto argumenta, levanta implicitamente uma pretenso de validade, que nega pelo contedo de seu proferimento. Ora, a argumentao pressupe o princpio tico fundamental: a aceitao recproca de todos os participantes como parceiros de discusso de iguais direitos. E todas as expresses humanas, enquanto so, em princpio, verbalizveis podem ser consideradas argumentos virtuais, ou seja em todas elas est o mesmo pressuposto tico: o reconhecimento mtuo de todos os homens como sujeitos capazes de captar sentido e pautar suas vidas a partir de razes. Dessarte, quem argumenta aceita inevitavelmente a exigncia do reconhecimento mtuo das pessoas como sujeitos da argumentao. Ora, o ctico tico argumenta a partir do trilema lgico e conclui pela impossibilidade de qualquer fundamentao. Com isso, ele se enreda numa contradio performativa, pois, enquanto argumenta, inevitavelmente tem de fazer as pressuposies de qualquer argumentao, que so sujeitas a prova crtica. Mas o contedo dessas proposies contrape-se a sua tese. Portanto, ele no pode contrapor-se tese do cognitivista, exceto argumentando: se o faz, pressupe inevitavelmente o princpio moral, que assim emerge como condio de possibilidade do falar humano.

Portanto, o cerne da argumentao pragmtico-transcendental consiste no seguinte: toda argumentao, em qualquer[26] contexto, radica em pressupostos pragmticos, de cujo contedo preposicional pode-se deduzir o princpio bsico de universalizao, que Habermas denomina o princpio U princpio de validao das normas ticas. Em suma, o princpio deriva simplesmente dos pressupostos necessrios de toda e qualquer forma de argumentao, terica ou prtica. A inevitabilidade desses pressupostos se demonstra precisamente pelo fato de que todo aquele que os rejeita obrigado a utiliz-los em sua argumentao. A contradio performa-tiva significa que o ato lingustico executado alicera-se em pressupostos necessrios, cujo contedo preposicional contradiz a afirmao feita. Assim, ao contrrio de Kant, para quem o imperativo categrico era "fato de razo", a tica discursiva justifica o princpio de universalizao atravs de procedimento pragmtico-transcendental, e para Apel esse o modo prprio a uma justificao filosfica; ela reflexo transcendental a respeito das condies de possibilidade e validade de toda argumentao. Justamente por ter abstrado da dimenso pragmtica da argumentao, a filosofia analtica reduziu o problema da argumentao ao dos pressupostos lgicos da frase e da proposio; reduziu o tratamento da linguagem esfera da sintaxe e da semntica. Nessa perspectiva, no h sujeito da argumentao: sem sujeito, impossvel a reflexo sobre as condies desde sempre pressupostas da argumentao, o que a tarefa de uma reflexo pragmtico-transcendental. Para Apel, fundamental distinguir com clareza dois tipos de operao: a prova emprica de pretenses de validade, como ela empreendida pelas cincias, e a especificidade da filosofia, que consiste no esforo de reconstruir, do modo mais completo possvel, as condies necessrias da argumentao humana Apel encontra, assim, o ctico em seu prprio terreno: ao objetar ou defender-se, ele j entrou num jogo argumentativo e se envolveu com pressupostos que ele nega; por isso sua postura desemboca numa contradio performativa.

6. A controvrsia Apel-Habermas acerca da fundamentao ltima.Para Apel, o especfico da filosofia , atravs da reflexo pragmtico-transcendental, chegar fundamentao ltima do princpio de validao das normas ticas, Hbermas resolve elaborar as objees apresentadas contra esse procedimento e, atravs desse recurso, expe a fundamentao de outra

[27] Forma20. Uma objeo que no se compreende como regras, que na esfera dos discursos so inevitveis, possam levantar pretenses de validade fora de argumentaes. Ou seja, a necessidade dessas normas no se transfere do discurso para a ao. Apel mesmo j se confrontou com essa objeo e sua sada extrair imediatamente normas ticas bsicas dos pressupostos da argumentao. Ora, na realidade, para Habermas, no so normas ticas o objeto de reflexo pragmtico-transcendental, mas as "regras de argumentao", de carter normativo, de que sempre fazemos uso em nossos discursos. Da por que, para ele, a tarefa prpria da reflexo pragmtico-transcendental demonstrar como o princpio de universalizao, que funciona como regra de argumentao, implicado pelos pressupostos da argumentao enquanto tal.

Seguindo a perspectiva aberta por Aristtels, Habermas distingue trs nveis na argumentao: em primeiro lugar, o nvel dos produtos, ou seja, a argumentao destina-se, antes de tudo, a produzir argumentos convincentes. Pressupostos, nesse nvel, so regras lgicas e semnticas, que no possuem contedo tico. No segundo momento, a argumentao pode ser considerada pelo aspecto procedurstico; aqui ela emerge como processo de entendimento regrado, de tal modo que seus participantes podem, hipoteticamente, pr prova pretenses de validade que se tomaram problemticas. Nesse nvel, situam-se os pressupostos pragmticos de uma forma especial de interao, ou seja, tudo o que necessrio busca da verdade cooperativamente organizada como uma espcie de competio, por exemplo, o reconhecimento da imputabilidade e da sinceridade de todos os participantes. Algumas dessas, regras tm contedo tico, por exemplo, as relaes de reconhecimento recproco, que uma pressuposio que b discurso e a ao orientada para o entendimento possuem em comum. Por fim, a argumentao pode ser considerada em seu aspecto processual, e enquanto tal ela um evento comunicativo que, em funo de um consenso motivado racionalmente, deve satisfazer a determinadas condies.

na fala argumentativa que se revelam estruturas de uma situao de fala que, de modo especial, imunizada contra a represso e a desigualdade. Condies universais de simetria entre todos os homens emergem como fator pos-

[Nota: 20. J. Habermas, Disfcurseftifc.op.eit., pp.94ss.]

[28] sibilitador da argumentao. No se trata, porm, de simples convenes, pois as regras do discurso so pressupostos inevitveis, sem os quais a fala no existe. Agora s podemos tematizar esses pressupostos pela mediao da negati-vidade: mostrando que quem os nega se envolve em contradio performativa. Por isso a reflexo transcendental tem necessariamente de apelar para a pr-compreenso intuitiva, com a qual todo sujeito capaz de linguagem e ao entra em processo argumentativo.

Pode-se comparar a argumentao a um jogo de xadrez, mas nele as regras determinam uma prxis flica de jogo, ao passo que as regras do discurso so apenas uma forma de exposio de pressupostos pragmticos j dados e intuitivamente sabidos de uma prxis de fala especfica. A preocupao fundamental de Habermas evitar os mal-entendidos originados da forma como a demonstrao pragmtico-trans-cendental foi feita e conseqentemente o princpio moral que se atingiu atravs dela. Para ele, o nico princpio moral o de universalizao, que vale como regra de argumentao e pertence, assim, lgica do discurso prtico. Por isso, esse princpio deve ser claramente diferenciado tanto de qualquer princpio de contedo ou de normas fundamentais, que precisamente devem constituir o objeto das argumentaes morais, como do contedo normativo das pressuposies da argumentao que podem ser explicitadas na forma de regras. Alm disso, necessrio distinguir esse princpio do que Habermas denomina o princpio D, ou seja, a sentena bsica da tica do discurso: s podem levantar pretenso de validade as normas capazes de encontrar a aprovao dos indivduos enquanto participantes de um discurso prtico. Essa sentena a representao de fundo de uma teoria moral, mas no pertence lgica da argumentao. Reside precisamente aqui, segundo ele, a dificuldade das tentativas at agora apresentadas para fundamentar a tica do discurso: confundem-se regras de argumentao com contedos de argumentao e com pressupostos de argumentao e tudo isso, em ltima anlise, com "princpios morais" como sentenas bsicas de uma tica filosfica.

Ora, o programa de fundamentao apresenta como caminho promissor a fundamentao pragmtico-transcendental de uma regra de argumentao. Como regra de argumentao, ela no decide a priori as regulaes de contedo, e assim, em princpio, todos os contedos, mesmos os que indicam normas fundamentais de ao, devem poder ser [29] postos em dependncia de discursos reais. O terico da moral pode participar da discusso, mas no simplesmente dirigir o discurso. Portanto, a demonstrao pragmtico--transcendental da regra de argumentao dos discursos no decide a priori o resultado dessa argumentao. O princpio U funciona apenas como regra que elimina todas as orientaes concretas da vida que no so contedos universalizveis, e nesse sentido a tica do discurso contrape-se s afirmaes bsicas de ticas materiais que se orientam na pergunta pela felicidade e sempre distinguem ontologicamente um tipo determinado de vida tica. Por essa razo, a tica do discurso diferencia com clareza o campo do moralmente vlido dos contedos culturais valorativos. Portanto, a tica do discurso no fornece orientaes de contedo, mas um "procedimento", pleno de pressupostos, que deve garantir a objetividade do juzo tico. Assim, o discurso prtico no um procedimento para a gestao de normas legitimidas, mas antes para a prova de validade de normas hipoteticamente apresentadas.

Esse carter de procedimento o que distingue a tica do discurso de outras ticas cognitivistas, uriiversalistas e frmalistas. Exatamente p princpio D traz & conscincia que o princpio U apenas exprime o contedo normativo de um procedimento de formao discursiva da vontade e no propriamente contedos normativos. A tica do discurso probe a gestao, em nome da autoridade da filosofia, de contedos morais vlidos para sempre. esse procedimento discursivo que permite uma distino muito clara entre estruturas cognitivas e os contedos de juzos morais. O formalismo da tica do discurso um "formalismo de procedimento", que aponta para uma discusso real sobre normas historicamente gestadas. Desaparece aqui, em princpio, a contradio que Hegel apontava entre formalismo e historicidade no nvel da esfera da normatividade. A grande questo sobre a natureza da fundamentao, apreendida. A pragmtica transcendental, em radical contraposio ao falibilismo da Escola de Popper, levanta a pretenso de apresentar uma fundamentao ltima capaz de fornecer uma base inabalvel a nosso conhecimento. Enquanto participantes de uma argumentao, j sempre reconhecemos com necessidade as sentenas e as regras que a ela pertencem. Para Habermas, a coisa no to simples assim: a demonstrao atravs da contradio performativa s capaz de identificar a regras sem as quais o jogo argumentativo no funciona. O que se demonstra ento

[30] a falta de alternativa dessas regras, no as regras mesmas, pois em princpio permanece aberta a possibilidade de os sujeitos modificarem sua maneira de pensar o mundo. As afirmaes de Apel significam para Habermas, de fato, um retomo filosofia da conscincia, que ele j tinha superado com a mudana de paradigma da filosofia da conscincia para a filosofia da linguagem. Ocorre em sua tese uma identificao tpica da filosofia moderna da conscincia:

a identificao entre a verdade da sentena e a vivncia da certeza. Uma filosofia que leva a srio a mudana de paradigma sabe que trabalha com hipteses, pois sua tarefa nada mais que a reconstruo hipottica que apenas mais ou menos capaz de traduzir as intuies. afirmao de que no h alternativa apenas suposio que deve ser testada plos fatos. Sem dvida, o saber intuitivo no falvel, mas no podemos dizer o mesmo do esforo reconstrutivo desse saber pr-terico. Numa palavra, a certeza com que praticamos nosso saber de regras no se transfere sem mais verdade das propostas de reconstruo empreendidas pela filosofia.

A tentativa de Apel de responder a Habermas o obriga a rearticular todo o sentido da reflexo pragmtico-transcen-dental.a1 Para ele, a possibilidade de fundamentao ltima pragmtico-transcendental provm da percepo da "inevita-bilidade do discurso argumentativo" e, com isso, de suas condies de possibilidade tico-normativas. Quando levantamos seriamente uma questo filosfica, no podemos mais considerar a argumentao e suas condies necessrias um fato contingente. Isso significa que no possvel imaginar que possamos arbitrariamente comear com a argumentao ou interromp-la, ou, com Popper, que podemos decidir a fav"r ou contra a argumentao, ou, mais ainda, imaginar a possibilidade de pensar um tipo de razo completamente diferente, em relao & qual teramos de relativizar nossa razo, ou poderamos testar empiricamente a existncia ou a validade da argumentao. Tais testes so inconciliveis com a ideia de que o poder argumentar condio de possibilidade de todos esses experimentos pensados, acima sugeridos. Onde se situa ento a diferena da forma atual da reflexo transcendental e seu modo originrio em Descartes e

[Nota: 21. Cf. sobretudo: K.-O. Apel, "Kann der postkantische Standpunkt der Moralitat noch elnmal ta substanelle Sittlichkeit 'autgehoben' werden?", op. cit. sobretudo pp. 110ss.]

[31] Kant? No pode estar no sentido de enfraquecer a radicalidade da pergunta transcendental em funo de argumentos meio empricos ou transcendentais, mas de forma atenuada. A diferena que hoje temos conscincia de que ns mesmos, no distanciamento reflexivo radical e questionamento de todos os pressupostos contingentes de nossa existncia, no s devemos retroceder at a conscincia transcendental, mas estamos orientados, com as pretenses apriricas de verdade e de validade de sentido do pensamento, para os pressupostos da linguagem e de uma comunidade, em princpio, ilimitada de comunicao. essa dimenso nova da transcendentali-dade que vai transformar profundamente o ponto de partida e a forma da reflexo transcendental.

Ora, num primeiro momento, a impresso que essa reviravolta implica, de fato, uma atenuao da reflexo transcendental, porque o a priori da linguagem aponta para condies contingentes de realizao convencional de significaes intersubjetivamente vlidas em determinadas lnguas, e os a priori da comunidade, para a pertena a comunidades histricas de tradio, lngua e cultura. Numa palavra, para Apel, os pressupostos contingentes do ser-no-mundo compreensivo s constituem parte da pr-estrutura do ser-no--mundo. Na medida mesma em que o homem comea a refle-tir sobre o a priori existencial da faticidade, ele se pe em relao com "pressupostos no-contingentes", que so, em sentido pragmtico-transcendental, condies inevitveis de possibilidade para o pensamento dos pressupostos contingentes. Ignorar esses pressupostos o que constitui para Apel o "esquecimento do Logos",22 que caracteriza algumas dimenses do pensamento contemporneo. A diferena, ento, em relao forma clssica da filosofia transcendental, mostra-se aqui no fato de que, j no discurso terico, o "ponto mais alto" na deduo transcendental das condies de validade no , como no pensamento solipsista, a sntese transcendental da apercepo (Kant), mas a sntese transcendental dos signos lingusticos. Esse ponto to inevitvel quanto o prprio discurso argumentativo, e a partir daqui se pode mostrar a inevitabilidade das regras tico-normativas do jogo. Com isso desaparecem duas questes problemticas na filosofia de Kant: o fato de razo e os resqucios da metafsica na teoria dos dois reinos26.

[Notas: 22. K-O. Apel, op. cit. p. 114s.

23. Sem dvida, como multo acentuado, a tica comunicativa uma tentativa de reconstruo da tica kantiana, porm com um][32] Que se obtm com essa demonstrao? As normas de uma comunidade ideal de comunicao enquanto regras de argumentao. Claro que no temos aqui normas materiais, exigidas por uma moral situada concretamente na histria, nem mesmo a legitimao moral das normas jurdicas. Mas essas so obrigantes para a fundamentao de um princpio formal-proceduristico da fundamentao de normas materiais. Com essas regras, ganhamos, portanto, o principio tico relevante do procedimento, que nos deve conduzir a uma soluo racional dos conflitos em tomo de pretenses de validades normativas nos contextos histricos especficos. Assim, as condies normativas de possibilidade do discurso argumentativo no s contm a igualdade de direitos de todos os parceiros da comunicao, mas tambm a obrigao de responsabilidade para com a soluo dos problemas moralmente relevantes que emergem no mundo vivido. Sendo assim, a tica do discurso no pode ser interpretada como uma tica especial para os discursos argumentativos, mas como uma tica da responsabilidade solidria dos que podem argumentar sobre todos os problemas do mundo vivido que sejam suscetveis de tratamento discursivo.2