a estética da seca: a transcriação cinematográfica de vidas secas · expulsos pela fome, [há]...

17
A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas Rodrigo Inácio Freitas 1 (Universidade Tecnológica Federal do Paraná UTFPR) Resumo: Vidas secas, obra de Graciliano Ramos, publicada em 1938, retratando a condição de uma família de retirantes em caminhada pelo sertão nordestino com o intuito de fugir da seca e da condição indigna que a mesma propiciava a seus habitantes, foi transcriada em linguagem audiovisual, em um filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1963. O presente estudo não se orienta unicamente pela busca em estabelecer as diferenças e/ou semelhanças, as permanências e/ou rupturas entre ambas as linguagens (literária e cinematográfica), mas se pauta na estilização de uma condição brasileira de povo e de espaço geográfico elaborada pelo Cinema Novo, e que fez uso de sua linguagem e de seu domínio técnico para incorporá-la como elemento narrativo e estético, potencializando a fome, a seca, o desolamento e a submissão contínua do nordestino à condição determinista do espaço geográfico, aos moldes de Capistrano de Abreu e de Euclides da Cunha, apresentando o sertanejo “numa relação inextricável com a terra” (Sadlier, 2012, p. 47), que o domina, o submete, ao mesmo tempo que o oprime por não à dominá-la. Palavras-chave: Cinema e Literatura; Interartes; Intermidialidade; Cinema Novo. O contexto e a obra literária Vidas secas, livro publicado em 1938 e redigido por Graciliano Ramos, escritor alagoano nascido em 1892, fundamental para o desenvolvimento da literatura nacional no século XX, retrata a vida do sertanejo não somente em busca de melhores condições de vida, mas, sobretudo, em fuga contínua das circunstâncias que o meio social, com suas nuances personalistas, e a conjuntura política historicamente sedimentada, impunham à consecução de sua vida na práxis, como o descaso governamental, a exploração socioeconômica de latifundiários e de uma pequena burguesia rural sobre o trabalhador do campo, assim como o abismo que separa o indivíduo do aparelho estatal, em uma realidade na qual a lei é feita aos moldes oligárquicos e o estado não alcança tal indivíduo, senão através de meios repressivos, como quando, na mesma história, o personagem intitulado Soldado amarelo aprisiona Fabiano por desavenças de ordem estritamente pessoais. Tal conjuntura aponta para uma realidade historicamente construída no Brasil através da sucessão de acontecimentos e permanências de opressão desde os primórdios do 1 Mestrando em Estudos em Linguagens, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. E-Mail: [email protected]

Upload: dangnguyet

Post on 25-Nov-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas

Rodrigo Inácio Freitas1

(Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)

Resumo: Vidas secas, obra de Graciliano Ramos, publicada em 1938, retratando a condição

de uma família de retirantes em caminhada pelo sertão nordestino com o intuito de fugir da

seca e da condição indigna que a mesma propiciava a seus habitantes, foi transcriada em

linguagem audiovisual, em um filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1963.

O presente estudo não se orienta unicamente pela busca em estabelecer as diferenças e/ou

semelhanças, as permanências e/ou rupturas entre ambas as linguagens (literária e

cinematográfica), mas se pauta na estilização de uma condição brasileira de povo e de espaço

geográfico elaborada pelo Cinema Novo, e que fez uso de sua linguagem e de seu domínio

técnico para incorporá-la como elemento narrativo e estético, potencializando a fome, a seca,

o desolamento e a submissão contínua do nordestino à condição determinista do espaço

geográfico, aos moldes de Capistrano de Abreu e de Euclides da Cunha, apresentando o

sertanejo “numa relação inextricável com a terra” (Sadlier, 2012, p. 47), que o domina, o

submete, ao mesmo tempo que o oprime por não à dominá-la.

Palavras-chave: Cinema e Literatura; Interartes; Intermidialidade; Cinema Novo.

O contexto e a obra literária

Vidas secas, livro publicado em 1938 e redigido por Graciliano Ramos, escritor

alagoano nascido em 1892, fundamental para o desenvolvimento da literatura nacional no

século XX, retrata a vida do sertanejo não somente em busca de melhores condições de vida,

mas, sobretudo, em fuga contínua das circunstâncias que o meio social, com suas nuances

personalistas, e a conjuntura política historicamente sedimentada, impunham à consecução de

sua vida na práxis, como o descaso governamental, a exploração socioeconômica de

latifundiários e de uma pequena burguesia rural sobre o trabalhador do campo, assim como o

abismo que separa o indivíduo do aparelho estatal, em uma realidade na qual a lei é feita aos

moldes oligárquicos e o estado não alcança tal indivíduo, senão através de meios repressivos,

como quando, na mesma história, o personagem intitulado Soldado amarelo aprisiona Fabiano

por desavenças de ordem estritamente pessoais.

Tal conjuntura aponta para uma realidade historicamente construída no Brasil através

da sucessão de acontecimentos e permanências de opressão desde os primórdios do

1 Mestrando em Estudos em Linguagens, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. E-Mail:

[email protected]

Page 2: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

descobrimento, com a dominação lusitana de terras já habitadas por tribos indígenas, sua

demarcação e gestão como capitanias hereditárias, a administração colonial com o avanço das

bandeiras e da catequização jesuítica, a posterior Lei de Terras, de 1850, e a República Velha

com sua política de forte prevalência do coronelismo, em uma demonstração quase arquetípica

de um modelo de sociedade demarcada pela lei do mais forte, na ausência plena de estado

(como benfeitor ou instituição garantidora de condições mínimas de desenvolvimento social)

e constante dominação dos grandes proprietários de terras sobre a população que possuía, como

única forma de sobrevivência, a sua força do trabalho.

Este foi um panorama que seguramente influenciou a realidade do nordeste brasileiro

retratado não só na obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, como em sua transescritura

cinematográfica homônima dirigida por Nelson Pereira dos Santos, e nos diversos intertextos

surgidos posteriormente nessa linguagem, como Deus e o Diabo na terra do Sol, Abril

despedaçado, Mutum ou Cinema, Aspirinas e urubus. A história conta o drama de uma família

de retirantes no sertão nordestino em busca de alimento, moradia e emprego, como forma de

subsistência e realização de seus sonhos (como a cama de Seu Tomás da Bolandeira tão

desejada por Sinhá Vitória). Fabiano, o protagonista e chefe da família, é o responsável por

conduzir sua esposa Sinhá Vitória e seus filhos (sem referência a nomes, intitulados apenas

como O menino mais novo e O menino mais velho) nessa peregrinação pela estiagem absurda

que atingira a região. Em meio a esta caminhada, temos relatos do drama familiar que

transcende épocas e delimitações geográficas, pois trata de questões inerentes à condição

humana, aqui, retratadas em um microcosmo regional com características narrativas e

descritivas voltadas ao registro documental de uma realidade "ficcionalizada" natural em áreas

pobres do país, como a morte do papagaio da família para que esta se nutra, a prisão de Fabiano

e seu conflito com o Soldado amarelo "que o desafiava, [com] a cara enferrujada, uma ruga na

testa" (RAMOS, 1989, p. 15) e a exploração do patrão em um regime no qual se trabalhava

"como negro [...] e [sem] carta de alforria" (RAMOS, 1989, p. 51).

Embora o drama literário tenha sido publicado em 1938 e voltado a compor um

panorama sobre a década de 1930, no Brasil, sobretudo, os anos Vargas, tivemos no período

uma permanência das estruturas econômica e social do período pós-abolicionista com a

ascensão de latifundiários (os coronéis) e uma "forte preponderância da agricultura em

comparação com a indústria" (BUESCU, 1990, p. 42), condição esta que provinha das décadas

Page 3: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

anteriores e se mantinha ativa, ainda que, em discurso, a Revolução de 30 se propusesse

expoente da renovação.

A oficialidade discursiva da Era Vargas, e sua manutenção pela historiografia posterior,

apregoou a existência de uma fase renovadora, responsável por terminar com a estrutura agrária

da velha política do "café com leite" e por modernizar o país através de um processo de

industrialização e fomento aos centros urbanos, sobretudo aqueles centros sediados na região

centro-sul. No entanto, conforme nos aponta o historiador Boris Fausto, as relações de

produção não sofreram modificações, e o país manteve-se majoritariamente agrário, condição

característica da Velha República, mas pragmaticamente mantida na fase Vargas, tanto em seu

período democrático (1930 a 1936), como na ditadura do Estado Novo (1937 a 1945), sendo

esta última, uma fase de forte repressão sob a qual Graciliano Ramos compôs Vidas Secas e

sob a qual foi feito prisioneiro político, acusado de ser comunista.

Ao se caracterizar a Revolução de 1930 é preciso considerar que as suas linhas

mais significativas são dadas pelo fato de não importar em alteração das

relações de produção na instância econômica, nem na substituição imediata

de uma classe ou fração de classe na instância política. As relações de

produção, com base na grande propriedade agrária, não são tocadas; o colapso

da hegemonia da burguesia do café não conduz ao poder político outra classe

ou fração de classe com exclusividade. (FAUSTO, 1997, p. 116).

Embora na Era Vargas o Brasil tenha obtido certa industrialização e vivenciado o

surgimento de sua siderurgia nacional, a estrutura econômica reinante no país mantinha-se

atrelada a relações semifeudais, das quais o nordeste de Graciliano era um grande exemplo,

pois, ainda conforme Fausto (1997, p. 116-117), "as regiões onde predomina o atraso [...] são

em geral áreas que ganharam impulso e foram posteriormente marginalizadas, em função das

necessidades das metrópoles; suas relações [...] não são de oposição, mas de

complementariedade", ou seja, os problemas desta área não eram exclusivamente devido aos

fatores morfoclimáticos, mas, somados a eles, estava o uso, por parte, sobretudo, de uma

burguesia industrial urbana mais ao sul do país, deste contingente populacional como mão-de-

obra barata e excedente.

Desta forma, temos a composição de um panorama sob o qual foi composta a obra Vidas

secas, esfera social na qual cresceu Graciliano Ramos, e que, como literato, bem descreveu

nesta e em outras de suas obras. Compreender o contexto sócio-político no qual foi escrito o

livro é parte fundamental para compreender a postura política de Graciliano frente ao governo

Page 4: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

Vargas. Conforme o próprio autor nos mostrou em Memórias do cárcere (1953), onde retrata

o período em que esteve preso sem qualquer acusação formal entre março de 1936 e janeiro de

1937, passou por várias instituições prisionais, como o Quartel Militar de Pernambuco, o porão

do Navio Manaus, uma prisão no Rio de Janeiro e a Colônia Correcional, na Ilha Grande.

Graciliano trabalhava como diretor da Instrução Pública e foi destituído de seu cargo,

perseguido e preso, pelo fato de fomentar críticas políticas ao governo, e, através de suas obras,

expor a dura realidade do brasileiro interiorano.

Esta conjuntura era, senão a mesma, muito similar, entre os anos da República Velha

(estruturalmente mantidos), os anos de 1930 (retratados diegeticamente), o Estado Novo (época

de edição da obra) e os anos de 1960 (nos quais o filme foi produzido). Tal "flexibilidade"

cronológica (ou atualidade da fábula) fez com que não somente o texto ganhasse vigor a cada

década, tomando ressignificações várias, como exercesse novas relações intertextuais e

intermidiáticas, produzindo novas formas de syuzhet. Graciliano retratou a fome e a seca em

um Brasil regido por um governo anti-democrático que fomentava o discurso de modernização,

mas virava as costas para o interior do país, lançado ao abandono, ao passo que a transcriação

fílmica da obra, lançada no ano de 1963, também fala deste mesmo Brasil, que, embora

separado por um interstício de 25 anos, carregava muitas das mesmas mazelas.

Na literatura brasileira a região nordeste do país já era consumada um habitat de

desenvolvimento de narrativas dramáticas, ao passo que, no cinema nacional, embora o ápice

atingido foi com o movimento cinemanovista na década de 1960, tanto em crítica internacional

quanto em fecundidade e relevância na história do cinema mundial, Sylvie Debs, em Cinema

e literatura no Brasil, aponta ocorrências prévias a estes experimentos vanguardistas.

No domínio cinematográfico, a representação do Nordeste conheceu seu

apogeu com a produção do Cinema Novo, mas ele já vinha sendo

representado desde a eclosão dos primeiros ciclos regionais em 1912, depois

com a criação da produtora Aurora Filme, em 1923 no Recife, que marcou o

início do ciclo regional de Pernambuco, paralelamente ao ciclo da Paraíba. O

sertão será igualmente um dos componentes dos filmes de ficção onde fará

um contraponto ao meio urbano. Em 1953, o cangaceiro, herói da saga do

sertanejo, foi representado na tela por Lima Barreto com uma repercussão

internacional. Em 1960, Aruanda, de Linduarte Noronha (relato da vida

miserável dos descendentes dos habitantes do quilombo), produzido na

Paraíba, que coloca em cena a miséria e denuncia a injustiça social, constitui

um ponto de partida para a reflexão estética do Cinema Novo. (DEBS, 2010,

p. 27).

Page 5: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

Portanto, embora o Cinema Novo tenha sido fundamental na história do cinema mundial

por buscar traçar uma nova trajetória audiovisual brasileira, com obras fundamentadas em

elementos estéticos autóctones - ainda que mesclados com o teatro de Brecht e a montagem ora

eisensteiniana ora rosseliniana - o Nordeste já tinha sido retratado em uma filmografia prévia,

assim como a literatura já registrava sua geografia, clima e povo, antes de Graciliano. O

movimento cinemanovista, personificado em um primeiro momento em Nelson Pereira dos

Santos, Ruy Guerra e Glauber Rocha, compõe "suas estéticas a partir da literatura e da cultura

sertanejas, aí pulsando o que o Brasil possuía a seus olhos de mais característico e autêntico

[...], e de mais representativo, quer dizer simbólico da situação sóciopolítica do Brasil nos anos

de 1960 [...]. (DEBS, 2010, p. 27). Assim, além de rejeitar a mera ilustração da realidade e a

importação de perfis psicológicos ou cenários sem correlação com o cotidiano brasileiro, o

cinema que se propunha renovador não se guiava por obras antecedentes feitas no país - exceto

por Humberto Mauro, sempre referenciado por Glauber - mas pelo panorama literário local, o

que, por si só, já aponta uma significativa intermidialidade.

O olhar horizontalizado do Cinema Novo frente à condição do Nordeste ressoa a

descrição de Jorge Amado, quando descreve a região, pois como onde "o drama atinge o cerne

da tragédia de forma mais evidente", e onde ocorrem "as grandes secas, os retirantes [...] fogem

expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do

cangaço [e] uma forma de revolta sem ideologia." (AMADO Apud DEBS, p. 74)

Este Nordeste assolado pela seca, pelos conflitos e pela opressão dos homens contra

seus próximos, onde a busca de sobrevivência é uma constante em meio ao ríspido ambiente,

foi o mesmo que surpreendeu Euclides da Cunha ao se defrontar com um povo resistente frente

ao governo republicano que só se fez presente através da repressão, portando-se comumente

de forma ausente. O Cangaço, Canudos e a seca são temas recorrentes no Cinema Novo,

nascente em 1957, com Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, mas "migrado" do meio

urbano e periférico para o árido, nos primeiros anos da década de 1960, especificamente com

a obra em questão, Vidas secas, a maior propulsão intermidiática.

O mundo coberto de penas

Graciliano Ramos, que já ficara reconhecido pela sua obra São Bernardo, antes de

escrever Vidas secas, possuía um estilo árido, escasso de adjetivações, uma crítica não só ao

Page 6: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

sistema capitalista e sua lógica excludente que deixava marcas incicatrizáveis naquela

sociedade nordestina, mas à linguagem e à exclusão dos desprovidos desse código de apreensão

da realidade e de comunicabilidade. Em diversos momentos da obra Vidas secas nota-se o

desconforto de Fabiano, o protagonista (ainda que a seca e a penúria sejam as reais personagens

onipresentes da narrativa), com aquele mundo da cidade, aquele ao qual ele não pertence, o

universo da sociabilidade e da comunicação. Tampouco compreende o universo da abstração

das leis, do estado, do poder, dos impostos, e de todos os adjuntos do aparelho político-

institucional de um governo ausente, ainda que, este se faça personificado naqueles que

possuem propriedades, como na situação em que o Coronel e o Prefeito vão à delegacia e

pedem a libertação de Fabiano, alienado de sua própria condição, desprovido de forças, de

consciência e de linguagem apropriada para a sobrevivência no mundo. Linguagem que falta

quando o mesmo tenta se livrar do Soldado amarelo, que o convida para a jogatina e o oprime,

o responsabilizando indiretamente pela perda no jogo. "As pessoas que me lerem terão, pois, a

bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde"

(RAMOS, 2012, p. 13), dizia Paulo Honório, em São Bernardo.

A crueza do texto de Graciliano, como forma metalinguística de representar a seca e a

alienação da família de retirantes, transparece na ausência de nomes próprios para os dois filhos

de Fabiano e Sinhá Vitória, os quais são nomeados pelo autor simplesmente como "O menino

mais velho" e "O menino mais novo", de forma descritiva e por uma terceira pessoa, não sendo

em momento algum, dentro da diegese, chamados por qualquer tipo de nomes, como se nem

mesmo pessoas fossem. "Você é um bicho, Fabiano", falava para si em uma espécie de

monólogo interior quando oscilava entre momentos de devaneio e de realismo, de esperança e

de conformismo à situação que a vida lhe impôs. "Nascera com esse destino, ninguém tinha

culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe

dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. [...] Era sina." (RAMOS, 1989,

p. 96), narrava o autor sobre Fabiano ao ser surrado e detido injustamente. Ainda sobre a

linguagem rudimentar que Fabiano possuía, a qual era apenas um indício da exclusão social

sob a qual vivia, mas abarcava o desentendimento pleno da lógica abstrata do estado:

às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que dirigia

aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava

as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir

algumas em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.

(RAMOS, 1989, p. 20).

Page 7: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

No capítulo intitulado Sinhá Vitória, no qual tem ênfase o estado psicológico desta

personagem, através da narração, podemos adentra-lo e acessar uma descrição dos filhos tidos

como "brutos, como o pai [e que] quando crescessem, guardariam as reses de um patrão

invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo", ou seja, a

condição sob a qual estavam expostos só teria fim com a fuga, a mudança em definitivo para

um outro local, pois a força que este meio exercera sobre a família consistia em algo

inquebrantável. Uma tradição a qual Fabiano "não se arriscaria a prejudicar", ainda que sua

vítima. (RAMOS, 1988, p. 76).

Fato este notado no decorrer de toda a história, que, em meio a sucessivas ações

dramatúrgicas, faz perpetuar a seca e a opressão dos homens sobre a família de Fabiano, assim

como, mantém ativa sua alienação, inclusive frente ao próprio destino, e sua ausência de posses

em uma aventura da qual os personagens não conseguem sair e traçar seu livre-arbítrio, estando

sempre sujeitos à vontade alheia, seja da natureza ou dos homens, um ambiente determinante

sobre a vida do marginalizado.

O Menino Mais Velho aparece na história como alguém que se espelha no pai e

mimetiza suas ações, como quando simula ser também vaqueiro e monta em uma cabra. A

repetição da prática paterna pelo filho mais velho que o concebe como uma projeção imediata

do destino futuro, e a condição de constante incerteza que paira nos pensamentos de Fabiano,

o levando em um momento à revolta, e em outro, logo em seguida, ao conformismo, apontam

a constante dominação que o meio (não só climático, mas social) composto sobre a secura do

solo e do trato desumanizado dos indivíduos uns com os outros, inclusive dentre os próprios

familiares, exerce sobre todos os seres vivos pertencentes a esta espaço diegético, tanto homens

quanto animais, que também têm seus destinos traçados pela lógica predatória do darwinismo

social, como o papagaio que por "não servir pra nada" tornou-se refeição da família, ou ainda

o gado, inserido unicamente no filme, retratado esmorecendo e, em um plano posterior, morto

já em estado putrefato.

Esse meio social registrado na obra, tanto no filme quanto no livro, tem como principal

característica reificar as pessoas como produto de um capitalismo tardio mesclado a condições

sociais ainda muito coloniais e rudimentares, de usurpação do poder, de confusão do direito

privado e público, somados a elementos de uma sociedade pós-escravocrata que vê no

empregado a extensão do regime abolido, gerando relações extremamente verticalizadas e

opressivas no âmbito empregatício e perpetuando sua dominação e hegemonia sobre os

Page 8: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

desprovidos. Tolentino (2001, p.168) situa a seca como "a forma pela qual os conflitos

máximos da existência concreta dessas pessoas se explicitam."

Assim, a literatura canônica servia como forma de falar abertamente aos expectadores

dos anos de 1960 sobre problemas ainda reais, numa postura brechtiniana (sobretudo em

Glauber) através da qual a realidade projetada na tela faria seu público questionar a realidade

na qual estava imerso, ressignificando as relações existentes. Este papel político contestador

que o Cinema Novo veio a assumir ressoava da literatura regionalista da segunda geração do

modernismo brasileiro, voltada sobretudo ao mundo agrário, pois, conforme Glauber expôs:

Eu chamo o movimento de 22 de estética liberal do café ... é uma

manifestação exemplar do liberalismo burguês, pois em 22 além da Arte

Moderna, há o tenentismo e o surgimento do PC [Partido Comunista], sem

haver entre estes fatos nenhuma integração. Quando a Coluna Prestes estava

passando, os artistas, as pessoas cultas de São Paulo estavam tratando da

reforma do verso. (GERBER, 1991, p. 12 apud TOLENTINO, 2001, p. 139).

Ou seja, Glauber em nome do Cinema Novo (e neste momento havia um maior afluxo

dos autores em suas opiniões estéticas e políticas) salienta o formalismo da geração de 22 que

se ateve à "reforma do verso", enquanto a realidade política e social do país eclodia em

manifestações diversas, circunstâncias nas quais a literatura não embarcou, ao contrário da

geração posterior, que teve como foco central o retrato da realidade brasileira, voltando-se a

outros sujeitos históricos.

Nelson Pereira dos Santos em entrevista a Salem (1987) citou a profundidade

psicológica dos personagens de Graciliano Ramos e sua solidez dramática, pois, segundo ele,

tais personagens "não eram títeres, criaturas inventadas, simples sombras saídas da imaginação

de um ficcionista. Eram, ao contrário, seres vivos, de carne e osso, sangue e nervos, com

reações lógicas e atos que obedeciam, sempre, a motivações profundas." (SALEM, 1987, p.

173-174 apud SADLIER, 2012, p. 41-42.). Personagens que em Graciliano tomavam maior

profundidade psicológica, ainda que submetidos à força do meio social, espaço de mazelas e

de conflitos socialmente gerados.

A Intermidialidade: da literatura para o cinema

Vidas secas seria produzido em 1960, na Bahia, no entanto, o tempo repentinamente

Page 9: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

chuvoso modificou a paisagem e impossibilitou a feitura do filme. Em meio ao contratempo, a

equipe rodou outro longa-metragem chamado Mandacaru vermelho, um drama sobre uma

moça prometida a um homem que vem a se apaixonar por outro. Uma série de adiamentos fez

com que Vidas secas fosse produzido somente em 1962, em Alagoas, estado natal de Graciliano

Ramos, local onde Nelson Pereira encontrou a cadela Baleia e o ator Jofre Soares, aqui em sua

primeira aparição. Cabe ressaltar que a inspiração cinematográfica provinha não só da literatura

da segunda geração modernista e dos filmes de Humberto Mauro, mas do neo-realismo italiano,

movimento cinematográfico do pós-guerra com obras feitas sobre os escombros da devastação,

com tramas sobre a vida do proletariado e a árdua condição para a sobrevivência em um país

empobrecido, o uso de atores não-profissionais e a extensão dos planos fílmicos em latentes

planos-sequencia com a intenção de evitar aquilo que eles acreditavam ser a intervenção do

cineasta sobre a realidade registrada, o corte.

Glauber disse em entrevista a Raquel Gerber, em fevereiro de 1973, em Roma, "nossa

originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é

compreendida." (apud AVELLAR, 1995, p. 77). Portanto, há claramente uma confluência entre

as fábulas realistas da segunda geração modernista, sobretudo Graciliano, e a proposta

conceitual e estética do Cinema Novo, que via na arte uma forma de denúncia e contestação da

realidade. Para analisarmos a apropriação das obras literárias e sua correlata no cinema, e

tratando-se do binômio literatura-cinema nacional foram vários os títulos (Vidas secas,

Memórias do Cárcere, S. Bernardo, Macunaíma, O menino de engenho,...), temos que teorizar

a transposição do texto literário para o texto audiovisual, suas pecularidades, possíveis e/ou

necessárias adulterações, assim como aquilo que Gaudreault e Marion (2012, p. 107) chamaram

de configuração intrínseca da nova mídia. Por tal conceito os autores entendem a resistência

que determinado meio (as folhas e as dobras do livro impresso, a visualidade do e-book, o

suporte fotoquímico do filme ou a imagem tecnicamente rudimentar do vídeo sobre a fita

magnética) exerce sobre a (trans)criação de uma obra (fábula) já existente para uma nova

linguagem/meio, ou seja, as limitações tecno-composicionais culturalmente construídas e

tecnologicamente normatizadas dentro de pré-esquemas funcionais determinados pela indústria

que fabricou esse meio, e pelo consenso padronizador de seus usos, que acabam por

(im)possibilitar a criatividade e funcionalidade da obra.

Embora todo meio exerça sobre a ideia "pura" uma força delineadora de (re)definições

estéticas, estabelecendo limites (ainda que maleáveis e vanguardistas) e adequações à

Page 10: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

linguagem, em casos de transcriação temos como referência imediata o texto pregresso, como

no caso em estudo, a literatura de Vidas Secas, já conhecida nacionalmente ao ganhar

transemiotização. Sadlier (2012) relata uma história sobre a comunicação de Nelson Pereira

com Graciliano no começo dos anos 50 com o intuito de rodar uma adaptação de S. Bernardo.

Ao ser inquirido sobre a possibilidade de modificar o final da fábula - ao invés do suicídio da

mulher oprimida, Nelson sugerira que ela abandonasse o marido - Graciliano foi incisivo em

dizer que isso "seria historicamente inconsistente com a sociedade e o período sobre os quais

escrevera [...] [e] enfatizou a importância de manter a estrutura da história [...] [e] a essência

de sua obra". (SADLIER, 2012, p. 42). Vidas secas foi lançado após o falecimento de

Graciliano e não sabemos sobre possíveis indicações do autor alagoano para o cineasta quanto

ao seu rigor e necessária fixação na narrativa inicial, mas nota-se, ao analisarmos as duas obras

(a literária e a cinematográfica) grande "fidelidade" ao texto original, com algumas alternâncias

dos capítulos (fragmentários no livro e passíveis de serem lidos em ordem diversa sem

adulteração significativa do sentido da fábula) e com a criação de diálogos inexistentes no livro.

Nelson Pereira não muda substancialmente a fábula, mas a utiliza em outra mídia e em

outro contexto, como mensagem a uma sociedade em meio ao recrudescimento moral e político

que viria, poucos anos após, a culminar no golpe militar de 1964. Uma adaptação creditada ao

próprio diretor com modificações na estrutura do enredo, na narração e na linguagem,

condições sine qua non da transcriação intermídia, quando não só se recria uma obra (e a

reinventa através de uma leitura subjetiva de um texto pré-existente) como a adequa às

limitações inerentes ao novo suporte/mídia adotado, repleto de pré-configurações, usos,

restrições técnicas ou orçamentárias. Todos potencializadores da criatividade que tem como

lógica final, a elaboração de uma nova syuzhet. Conforme Gaudreault e Marion (2012):

Toda adaptação respeitável precisa organizar a violência impetrada contra a

fabula e a syuzhet do texto-fonte, pois, de certa forma, a nova syuzheticização

envolve não apenas uma mise-en-sujet, ou seja, a formatação da história, mas

também, e principalmente, a mise-en-sujétion ou "sujeição" a uma mídia

específica. (GAUDREAULT, A.; MARION, P., 2012, p. 126).

Assim, mantem-se a fábula, há a permanência de algo contido na história já existente,

ainda que aquela possa ser recontada na nova mídia de maneira diversificada e traga novas

relações e percepções. A transparência e a opacidade das obras ajudam a compor sua tessitura,

sua verossimilhança e sua aceitabilidade dentre o gosto público já formado. Entendemos por

Page 11: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

transparência a condição na qual o mecanismo se oculta, se camufla de forma a não ser notado,

remanescendo unicamente o que este mecanismo tenta transmitir. Um exemplo recorrente disso

é o telejornalismo ou os filmes naturalistas que tentam contar histórias de forma a afastar do

espectador a reflexão e o olhar meta-linguistico sobre o aparelho que "conta histórias",

diferentemente de seu antagonismo, a opacidade, que torna-se mais utilizada em obras

cinematográficas (e não só) menos comerciais e mais autorais, quando vemos o desvelamento

do meio juntamente com a fábula, o que nos faz, enquanto espectadores, não só assimilar o

discurso como a forma desmistificada de elaboração desse discurso.

Enquanto na literatura tivemos a ausência de discurso verbal dos personagens como

aspecto narrativo, retratando através de uma linguagem "seca" o ambiente similar no qual

viviam aquelas personagens desprovidas de compreensão e do uso pleno da linguagem, algo

pertencente a outro mundo (o da cidade, do governo e do patrão), e que, segundo Fabiano em

diálogo com Sinhá Vitória, de nada serviu ao Seu Tomás, no filme tivemos a presença contínua

da solidão expressa através dos silêncios, do constante ruído de carro de boi e da pobreza

comunicativa dos personagens.

No capítulo "Inverno" do texto literário há a descrição de uma conversa entre Sinhá

Vitória e Fabiano, que passa da seguinte forma: "Não era propriamente conversa, eram frases

soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. [...] Na verdade, nenhum deles prestava

atenção às palavras do outro." (RAMOS, 1989, p. 63). Tal cena foi retratada no filme de forma

a apresentar em plano e contraplano Sinhá Vitória e Fabiano, mas para apresentar a

incongruência comunicativa do casal, cada indivíduo fala coisas tematicamente díspares e o

áudio se sobrepõe, ao passo que ambas as falas soam em simultâneo e poluem o ambiente,

amplificando a existência de dois monólogos exteriorizados, cada qual pertencente a um mundo

específico, o que retrata a segregação de corpos e almas. Um mundo desumanizado por

completo a ponto de atingir até mesmo a linguagem, vista como pertencente, muitas vezes, ao

mundo de Seu Tomás, um mundo externo aquele.

Outro excerto do filme importante para a análise intersemiótica em comparação com o

livro, é a transposição do capítulo intitulado "O Menino Mais Velho". Neste temos o momento

no qual o filho inquire os pais sobre a palavra "inferno" e busca compreender como é este

espaço definido pela mãe como de "espetos quentes" e "fogueiras". No livro a fábula é

apresentada da forma abaixo:

Page 12: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

Deu-se aquilo porque sinha Vitória não conversou um instante com o menino

mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a

linguagem de sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu

vagamente a certo lugar ruim demais [...]

- Como é?

Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.

- A senhora viu?

Aí sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. O

menino sai indignado com a injustiça [...]. Como não sabia falar direito, o

menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os

berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na

catinga, roçando-se. Agora tinha a idéia de aprender uma palavra, com certeza

importante porque figurava na conversa de sinha Terta. Ia decorá-la e

transmiti-la ao irmão e à cachorra. [...]

- Inferno, inferno.

Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.

(RAMOS, 1989, p. 54).

Esta cena é descrita com poucos diálogos, basicamente em terceira pessoa de forma a

narrar a fixação do Menino mais velho com a palavra "inferno". No filme, através da fotografia

no estilo neo-realista vemos uma superexposição do material fílmico através da abertura do

diafragma da câmera de modo mais exagerado, cometendo um "erro" técnico, mas

propositalmente uma escolha estética a fim de dar ao espectador essa sensação desagradável

da seca, da luminosidade exacerbada e da temperatura escaldante do sertão nordestino,

transpondo inclusive para a experiência sensorial daquele que assiste o filme um pouco do

ambiente. Assim como Graciliano opta por descrever a secura daquele espaço através de uma

linguagem com poucos diálogos, Nelson Pereira opta por registrar a seca de forma a

potencializá-la imageticamente com a explosão de luz sobre a emulsão do filme, com planos

mais longos e uso de não-atores, conforme se estabeleceu o cinema de Rosselini, Visconti e

DeSica.

A mesma cena de o capítulo "O Menino Mais Velho" comentada acima foi

extensivamente transcriada no cinema conforme podemos ver nos frames apresentados abaixo.

Page 13: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

FIGURA 1 FIGURA 2 FIGURA 3

Na FIGURA 1 podemos ver o momento no qual a curandeira da região (Sinhá Terta?),

"costura" com linha e agulha as feridas de Fabiano provenientes da surra dada pelos soldados

na prisão. Ao canto direito da imagem o Menino Mais Velho observa as palavras proferidas,

dentre elas "inferno". Minutos após, passados os momentos de questionamento sobre o

significado dessa palavra, o menino sai da casa, recosta-se ao tronco de uma árvore e

observando o local faz associações primárias entre suas referências visuais interiorizadas e a

abstrata descrição de inferno.

Neste momento o domínio da linguagem cinematográfica foi fundamental para a

criação dessa associação por parte do espectador, pois há o uso de uma câmera subjetiva (ponto

de vista do personagem) apontando para onde convergem os olhos do menino, somado ao uso

de audio off (narração fora de quadro mas pertencente a um personagem dentro da diegese)

intercalado com audio in (quando vemos o personagem proferir tais sons) insistentemente

repetidos a ponto de ressaltar a constante perturbação do menino com o significado dessa

palavra por ele incógnita, mas sonoramente atraente. Esta, na qual o Menino Mais Velho

profere "lugar ruim", "espeto quente", "inferno, inferno, inferno", ao passo que observa o monte

próximo à casa, a residência precária onde vive com a família, a seca, o gado subnutrido e os

galhos ressecados da vegetação, está resumidamente apresentada nos frames das FIGURAS 2,

3, 4, 5 e 6, sequencialmente.

FIGURA 4 FIGURA 5 FIGURA 6

Outra cena de destaque que ganhou propulsão com a adaptação ao cinema foi a morte

da cadela Baleia. Tal acontecimento no livro está presente no capítulo que recebeu o nome da

cachorra, sendo o nono capítulo de treze existentes, enquanto no filme foi movido para o final

a ponto de formar o clímax narrativo da obra, pouco antes da nova peregrinação iniciada pela

Page 14: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

família. No texto temos a descrição da morte de Baleia ocasionada pela mesma ação (o tiro

deflagrado por Fabiano a fim de sacrificar a cadela doente) existente no filme, no entanto, no

primeiro caso é narrada da seguinte forma:

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito

sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte

posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve

medo da roda.

[...]

Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam

cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as

pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e

desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam

diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.

[...]

Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava

e aproximava-se. Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas

o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o

morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar

lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam

e corriam em liberdade. Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar.

Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O

olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.

[...]

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol

desaparecera.

[...]

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia

as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela,

rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria

todo cheio de preás, gordos, enormes. (RAMOS, 1989, p. 88-91).

No texto citado podemos visualizar o momento em que Baleia sentiu-se ferida,

estranhou a sensação, esmoreceu, começou a perder a visão ("o nevoeiro engrossava"), sentiu

o cheiro dos preás que se aproximavam, e, logo em seguida, sentiu seu olfato enfraquecer.

Adentrou uma espécie de sonho, após abrir os olhos e ver uma enorme escuridão, passou a

entender os animais soltos como a não-realização de seu dever e compôs a projeção de um

mundo melhor após este momento turbulento. Textualmente temos a passagem de um estado

externo à cadela, no qual vemos a narração de sua agonia, e passamos a um estado psicológico

de Baleia, descrito pelo mesmo narrador em terceira pessoa, mas capaz de conhecer e, portanto,

adentrar e descrever, o que se passava no interior de sua mente.

Na obra fílmica a correlação com esta cena foi feita de modo a intercalar planos a fim

de construir uma nova syuzhet, a exemplo dos construtivistas. Kulechov, cineasta russo do

Page 15: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

início do século XX, desenvolveu um estudo até hoje intitulado Efeito Kulechov, no qual

teorizou o efeito provocado no espectador após a intercalação de planos subsequentes,

chegando a constatação de que o sentido original da imagem não está no próprio plano, mas na

relação que mantém com outros planos contíguos. Nelson Pereira, portanto, utiliza planos da

cadela e intercala com as imagens de preás correndo obtidas com a câmera (subjetiva)

posicionada sob o carro de boi onde havíamos visto, poucos segundos antes, Baleia deitada

aguardando a morte. Vemos os preás correndo e voltamos a ver a cadela imóvel, fechando os

olhos e não esboçando reação, o que constrói o sentido de que a cadela não tem mais forças

para persegui-los.

FIGURA 7 FIGURA 8 FIGURA 9

A cena é sintetizada nos frames acima nos quais vemos Baleia deitar sob o carro de bois

(Figura 7), o plano seguinte com a mudança de ponto de vista transformando-se em uma câmera

subjetiva que exprime o olhar da própria cadela ao visualizar a casa da família (Figura 8) e em

zoom out (a câmera se distancia do objeto retratado sem cortes e sem movimentação do

equipamento, apenas através do recuo óptico) o seu olhar sôfrego (Figura 9). Nas imagens

abaixo vemos a alternância de planos entre câmera subjetiva (ponto de vista de Baleia) e uma

câmera externa (na qual vemos a cadela), o que constrói o sentido de que pari passu ao seu

desfalecimento, os animais correm a sua frente sem perigo.

Page 16: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

FIGURA 12 FIGURA 13 FIGURA 14

FIGURA 15 FIGURA 16 FIGURA 17

Conclusão

Apontamos com o presente artigo, embora limitado em dimensões, estrutura e

profundidade analítica, breves considerações sobre a transcriação da obra Vidas secas, de

Graciliano Ramos, no cinema, por Nelson Pereira do Santos. Em ambas as obras e contextos

nas quais surgiram, o Nordeste passou a representar o país real, defasado e miserável. O descaso

das autoridades com o país somado à incerteza política fizeram com que esta obra tivesse sua

releitura em um momento no qual as mesmas questões ainda pairavam inconclusas e sem

respostas.

Referências

AVELLAR, J. C. A ponte clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa,

Sanjinés, Alea - Teorias de cinema na América Latina. Rio de Janeiro, São Paulo: Ed. 34,

Edusp, 1995.

DEBS, Sylvie. Cinema e literatura no Brasil: os mitos do sertão: emergência de uma

identidade nacional. 2. ed. Belo Horizonte: C/Arte, 2010.

Page 17: A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas · expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do cangaço [e] uma forma

FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das

Letras, 1997.

GARCIA, Simone. Canudos: História e literatura: Curitiba: HD Livros Editora, 2002.

GAUDREAULT, A.; MARION, P. Transescritura e midiática narrativa. In: DINIZ, T. F. N.

(Org.). Intermidialidade e estudos interartes: desafios da arte contemporânea. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 107-128.

]RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012.

__________. Vidas Secas. 59. ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1989.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

SADLIER, D. J. Nelson Pereira dos Santos. Campinas, SP: Papirus, 2012.

SIRINO, S. P. M. A materialização do real nas obras literárias e fílmicas S. Bernardo,

Vidas secas e Memórias do cárcere. Cascavel, 2014. 172 f. Tese (Doutorado) - Universidade

Estadual do Oeste do Paraná.

TOLENTINO, C. A. F. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

XAVIER, Ismail. Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify,

2007.