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A estética da seca: a transcriação cinematográfica de Vidas Secas
Rodrigo Inácio Freitas1
(Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR)
Resumo: Vidas secas, obra de Graciliano Ramos, publicada em 1938, retratando a condição
de uma família de retirantes em caminhada pelo sertão nordestino com o intuito de fugir da
seca e da condição indigna que a mesma propiciava a seus habitantes, foi transcriada em
linguagem audiovisual, em um filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos, lançado em 1963.
O presente estudo não se orienta unicamente pela busca em estabelecer as diferenças e/ou
semelhanças, as permanências e/ou rupturas entre ambas as linguagens (literária e
cinematográfica), mas se pauta na estilização de uma condição brasileira de povo e de espaço
geográfico elaborada pelo Cinema Novo, e que fez uso de sua linguagem e de seu domínio
técnico para incorporá-la como elemento narrativo e estético, potencializando a fome, a seca,
o desolamento e a submissão contínua do nordestino à condição determinista do espaço
geográfico, aos moldes de Capistrano de Abreu e de Euclides da Cunha, apresentando o
sertanejo “numa relação inextricável com a terra” (Sadlier, 2012, p. 47), que o domina, o
submete, ao mesmo tempo que o oprime por não à dominá-la.
Palavras-chave: Cinema e Literatura; Interartes; Intermidialidade; Cinema Novo.
O contexto e a obra literária
Vidas secas, livro publicado em 1938 e redigido por Graciliano Ramos, escritor
alagoano nascido em 1892, fundamental para o desenvolvimento da literatura nacional no
século XX, retrata a vida do sertanejo não somente em busca de melhores condições de vida,
mas, sobretudo, em fuga contínua das circunstâncias que o meio social, com suas nuances
personalistas, e a conjuntura política historicamente sedimentada, impunham à consecução de
sua vida na práxis, como o descaso governamental, a exploração socioeconômica de
latifundiários e de uma pequena burguesia rural sobre o trabalhador do campo, assim como o
abismo que separa o indivíduo do aparelho estatal, em uma realidade na qual a lei é feita aos
moldes oligárquicos e o estado não alcança tal indivíduo, senão através de meios repressivos,
como quando, na mesma história, o personagem intitulado Soldado amarelo aprisiona Fabiano
por desavenças de ordem estritamente pessoais.
Tal conjuntura aponta para uma realidade historicamente construída no Brasil através
da sucessão de acontecimentos e permanências de opressão desde os primórdios do
1 Mestrando em Estudos em Linguagens, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná. E-Mail:
descobrimento, com a dominação lusitana de terras já habitadas por tribos indígenas, sua
demarcação e gestão como capitanias hereditárias, a administração colonial com o avanço das
bandeiras e da catequização jesuítica, a posterior Lei de Terras, de 1850, e a República Velha
com sua política de forte prevalência do coronelismo, em uma demonstração quase arquetípica
de um modelo de sociedade demarcada pela lei do mais forte, na ausência plena de estado
(como benfeitor ou instituição garantidora de condições mínimas de desenvolvimento social)
e constante dominação dos grandes proprietários de terras sobre a população que possuía, como
única forma de sobrevivência, a sua força do trabalho.
Este foi um panorama que seguramente influenciou a realidade do nordeste brasileiro
retratado não só na obra Vidas secas, de Graciliano Ramos, como em sua transescritura
cinematográfica homônima dirigida por Nelson Pereira dos Santos, e nos diversos intertextos
surgidos posteriormente nessa linguagem, como Deus e o Diabo na terra do Sol, Abril
despedaçado, Mutum ou Cinema, Aspirinas e urubus. A história conta o drama de uma família
de retirantes no sertão nordestino em busca de alimento, moradia e emprego, como forma de
subsistência e realização de seus sonhos (como a cama de Seu Tomás da Bolandeira tão
desejada por Sinhá Vitória). Fabiano, o protagonista e chefe da família, é o responsável por
conduzir sua esposa Sinhá Vitória e seus filhos (sem referência a nomes, intitulados apenas
como O menino mais novo e O menino mais velho) nessa peregrinação pela estiagem absurda
que atingira a região. Em meio a esta caminhada, temos relatos do drama familiar que
transcende épocas e delimitações geográficas, pois trata de questões inerentes à condição
humana, aqui, retratadas em um microcosmo regional com características narrativas e
descritivas voltadas ao registro documental de uma realidade "ficcionalizada" natural em áreas
pobres do país, como a morte do papagaio da família para que esta se nutra, a prisão de Fabiano
e seu conflito com o Soldado amarelo "que o desafiava, [com] a cara enferrujada, uma ruga na
testa" (RAMOS, 1989, p. 15) e a exploração do patrão em um regime no qual se trabalhava
"como negro [...] e [sem] carta de alforria" (RAMOS, 1989, p. 51).
Embora o drama literário tenha sido publicado em 1938 e voltado a compor um
panorama sobre a década de 1930, no Brasil, sobretudo, os anos Vargas, tivemos no período
uma permanência das estruturas econômica e social do período pós-abolicionista com a
ascensão de latifundiários (os coronéis) e uma "forte preponderância da agricultura em
comparação com a indústria" (BUESCU, 1990, p. 42), condição esta que provinha das décadas
anteriores e se mantinha ativa, ainda que, em discurso, a Revolução de 30 se propusesse
expoente da renovação.
A oficialidade discursiva da Era Vargas, e sua manutenção pela historiografia posterior,
apregoou a existência de uma fase renovadora, responsável por terminar com a estrutura agrária
da velha política do "café com leite" e por modernizar o país através de um processo de
industrialização e fomento aos centros urbanos, sobretudo aqueles centros sediados na região
centro-sul. No entanto, conforme nos aponta o historiador Boris Fausto, as relações de
produção não sofreram modificações, e o país manteve-se majoritariamente agrário, condição
característica da Velha República, mas pragmaticamente mantida na fase Vargas, tanto em seu
período democrático (1930 a 1936), como na ditadura do Estado Novo (1937 a 1945), sendo
esta última, uma fase de forte repressão sob a qual Graciliano Ramos compôs Vidas Secas e
sob a qual foi feito prisioneiro político, acusado de ser comunista.
Ao se caracterizar a Revolução de 1930 é preciso considerar que as suas linhas
mais significativas são dadas pelo fato de não importar em alteração das
relações de produção na instância econômica, nem na substituição imediata
de uma classe ou fração de classe na instância política. As relações de
produção, com base na grande propriedade agrária, não são tocadas; o colapso
da hegemonia da burguesia do café não conduz ao poder político outra classe
ou fração de classe com exclusividade. (FAUSTO, 1997, p. 116).
Embora na Era Vargas o Brasil tenha obtido certa industrialização e vivenciado o
surgimento de sua siderurgia nacional, a estrutura econômica reinante no país mantinha-se
atrelada a relações semifeudais, das quais o nordeste de Graciliano era um grande exemplo,
pois, ainda conforme Fausto (1997, p. 116-117), "as regiões onde predomina o atraso [...] são
em geral áreas que ganharam impulso e foram posteriormente marginalizadas, em função das
necessidades das metrópoles; suas relações [...] não são de oposição, mas de
complementariedade", ou seja, os problemas desta área não eram exclusivamente devido aos
fatores morfoclimáticos, mas, somados a eles, estava o uso, por parte, sobretudo, de uma
burguesia industrial urbana mais ao sul do país, deste contingente populacional como mão-de-
obra barata e excedente.
Desta forma, temos a composição de um panorama sob o qual foi composta a obra Vidas
secas, esfera social na qual cresceu Graciliano Ramos, e que, como literato, bem descreveu
nesta e em outras de suas obras. Compreender o contexto sócio-político no qual foi escrito o
livro é parte fundamental para compreender a postura política de Graciliano frente ao governo
Vargas. Conforme o próprio autor nos mostrou em Memórias do cárcere (1953), onde retrata
o período em que esteve preso sem qualquer acusação formal entre março de 1936 e janeiro de
1937, passou por várias instituições prisionais, como o Quartel Militar de Pernambuco, o porão
do Navio Manaus, uma prisão no Rio de Janeiro e a Colônia Correcional, na Ilha Grande.
Graciliano trabalhava como diretor da Instrução Pública e foi destituído de seu cargo,
perseguido e preso, pelo fato de fomentar críticas políticas ao governo, e, através de suas obras,
expor a dura realidade do brasileiro interiorano.
Esta conjuntura era, senão a mesma, muito similar, entre os anos da República Velha
(estruturalmente mantidos), os anos de 1930 (retratados diegeticamente), o Estado Novo (época
de edição da obra) e os anos de 1960 (nos quais o filme foi produzido). Tal "flexibilidade"
cronológica (ou atualidade da fábula) fez com que não somente o texto ganhasse vigor a cada
década, tomando ressignificações várias, como exercesse novas relações intertextuais e
intermidiáticas, produzindo novas formas de syuzhet. Graciliano retratou a fome e a seca em
um Brasil regido por um governo anti-democrático que fomentava o discurso de modernização,
mas virava as costas para o interior do país, lançado ao abandono, ao passo que a transcriação
fílmica da obra, lançada no ano de 1963, também fala deste mesmo Brasil, que, embora
separado por um interstício de 25 anos, carregava muitas das mesmas mazelas.
Na literatura brasileira a região nordeste do país já era consumada um habitat de
desenvolvimento de narrativas dramáticas, ao passo que, no cinema nacional, embora o ápice
atingido foi com o movimento cinemanovista na década de 1960, tanto em crítica internacional
quanto em fecundidade e relevância na história do cinema mundial, Sylvie Debs, em Cinema
e literatura no Brasil, aponta ocorrências prévias a estes experimentos vanguardistas.
No domínio cinematográfico, a representação do Nordeste conheceu seu
apogeu com a produção do Cinema Novo, mas ele já vinha sendo
representado desde a eclosão dos primeiros ciclos regionais em 1912, depois
com a criação da produtora Aurora Filme, em 1923 no Recife, que marcou o
início do ciclo regional de Pernambuco, paralelamente ao ciclo da Paraíba. O
sertão será igualmente um dos componentes dos filmes de ficção onde fará
um contraponto ao meio urbano. Em 1953, o cangaceiro, herói da saga do
sertanejo, foi representado na tela por Lima Barreto com uma repercussão
internacional. Em 1960, Aruanda, de Linduarte Noronha (relato da vida
miserável dos descendentes dos habitantes do quilombo), produzido na
Paraíba, que coloca em cena a miséria e denuncia a injustiça social, constitui
um ponto de partida para a reflexão estética do Cinema Novo. (DEBS, 2010,
p. 27).
Portanto, embora o Cinema Novo tenha sido fundamental na história do cinema mundial
por buscar traçar uma nova trajetória audiovisual brasileira, com obras fundamentadas em
elementos estéticos autóctones - ainda que mesclados com o teatro de Brecht e a montagem ora
eisensteiniana ora rosseliniana - o Nordeste já tinha sido retratado em uma filmografia prévia,
assim como a literatura já registrava sua geografia, clima e povo, antes de Graciliano. O
movimento cinemanovista, personificado em um primeiro momento em Nelson Pereira dos
Santos, Ruy Guerra e Glauber Rocha, compõe "suas estéticas a partir da literatura e da cultura
sertanejas, aí pulsando o que o Brasil possuía a seus olhos de mais característico e autêntico
[...], e de mais representativo, quer dizer simbólico da situação sóciopolítica do Brasil nos anos
de 1960 [...]. (DEBS, 2010, p. 27). Assim, além de rejeitar a mera ilustração da realidade e a
importação de perfis psicológicos ou cenários sem correlação com o cotidiano brasileiro, o
cinema que se propunha renovador não se guiava por obras antecedentes feitas no país - exceto
por Humberto Mauro, sempre referenciado por Glauber - mas pelo panorama literário local, o
que, por si só, já aponta uma significativa intermidialidade.
O olhar horizontalizado do Cinema Novo frente à condição do Nordeste ressoa a
descrição de Jorge Amado, quando descreve a região, pois como onde "o drama atinge o cerne
da tragédia de forma mais evidente", e onde ocorrem "as grandes secas, os retirantes [...] fogem
expulsos pela fome, [há] os grandes movimentos camponeses, os bandos de fora da lei do
cangaço [e] uma forma de revolta sem ideologia." (AMADO Apud DEBS, p. 74)
Este Nordeste assolado pela seca, pelos conflitos e pela opressão dos homens contra
seus próximos, onde a busca de sobrevivência é uma constante em meio ao ríspido ambiente,
foi o mesmo que surpreendeu Euclides da Cunha ao se defrontar com um povo resistente frente
ao governo republicano que só se fez presente através da repressão, portando-se comumente
de forma ausente. O Cangaço, Canudos e a seca são temas recorrentes no Cinema Novo,
nascente em 1957, com Rio, Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, mas "migrado" do meio
urbano e periférico para o árido, nos primeiros anos da década de 1960, especificamente com
a obra em questão, Vidas secas, a maior propulsão intermidiática.
O mundo coberto de penas
Graciliano Ramos, que já ficara reconhecido pela sua obra São Bernardo, antes de
escrever Vidas secas, possuía um estilo árido, escasso de adjetivações, uma crítica não só ao
sistema capitalista e sua lógica excludente que deixava marcas incicatrizáveis naquela
sociedade nordestina, mas à linguagem e à exclusão dos desprovidos desse código de apreensão
da realidade e de comunicabilidade. Em diversos momentos da obra Vidas secas nota-se o
desconforto de Fabiano, o protagonista (ainda que a seca e a penúria sejam as reais personagens
onipresentes da narrativa), com aquele mundo da cidade, aquele ao qual ele não pertence, o
universo da sociabilidade e da comunicação. Tampouco compreende o universo da abstração
das leis, do estado, do poder, dos impostos, e de todos os adjuntos do aparelho político-
institucional de um governo ausente, ainda que, este se faça personificado naqueles que
possuem propriedades, como na situação em que o Coronel e o Prefeito vão à delegacia e
pedem a libertação de Fabiano, alienado de sua própria condição, desprovido de forças, de
consciência e de linguagem apropriada para a sobrevivência no mundo. Linguagem que falta
quando o mesmo tenta se livrar do Soldado amarelo, que o convida para a jogatina e o oprime,
o responsabilizando indiretamente pela perda no jogo. "As pessoas que me lerem terão, pois, a
bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde"
(RAMOS, 2012, p. 13), dizia Paulo Honório, em São Bernardo.
A crueza do texto de Graciliano, como forma metalinguística de representar a seca e a
alienação da família de retirantes, transparece na ausência de nomes próprios para os dois filhos
de Fabiano e Sinhá Vitória, os quais são nomeados pelo autor simplesmente como "O menino
mais velho" e "O menino mais novo", de forma descritiva e por uma terceira pessoa, não sendo
em momento algum, dentro da diegese, chamados por qualquer tipo de nomes, como se nem
mesmo pessoas fossem. "Você é um bicho, Fabiano", falava para si em uma espécie de
monólogo interior quando oscilava entre momentos de devaneio e de realismo, de esperança e
de conformismo à situação que a vida lhe impôs. "Nascera com esse destino, ninguém tinha
culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe
dissessem que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. [...] Era sina." (RAMOS, 1989,
p. 96), narrava o autor sobre Fabiano ao ser surrado e detido injustamente. Ainda sobre a
linguagem rudimentar que Fabiano possuía, a qual era apenas um indício da exclusão social
sob a qual vivia, mas abarcava o desentendimento pleno da lógica abstrata do estado:
às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que dirigia
aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava
as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir
algumas em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
(RAMOS, 1989, p. 20).
No capítulo intitulado Sinhá Vitória, no qual tem ênfase o estado psicológico desta
personagem, através da narração, podemos adentra-lo e acessar uma descrição dos filhos tidos
como "brutos, como o pai [e que] quando crescessem, guardariam as reses de um patrão
invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo", ou seja, a
condição sob a qual estavam expostos só teria fim com a fuga, a mudança em definitivo para
um outro local, pois a força que este meio exercera sobre a família consistia em algo
inquebrantável. Uma tradição a qual Fabiano "não se arriscaria a prejudicar", ainda que sua
vítima. (RAMOS, 1988, p. 76).
Fato este notado no decorrer de toda a história, que, em meio a sucessivas ações
dramatúrgicas, faz perpetuar a seca e a opressão dos homens sobre a família de Fabiano, assim
como, mantém ativa sua alienação, inclusive frente ao próprio destino, e sua ausência de posses
em uma aventura da qual os personagens não conseguem sair e traçar seu livre-arbítrio, estando
sempre sujeitos à vontade alheia, seja da natureza ou dos homens, um ambiente determinante
sobre a vida do marginalizado.
O Menino Mais Velho aparece na história como alguém que se espelha no pai e
mimetiza suas ações, como quando simula ser também vaqueiro e monta em uma cabra. A
repetição da prática paterna pelo filho mais velho que o concebe como uma projeção imediata
do destino futuro, e a condição de constante incerteza que paira nos pensamentos de Fabiano,
o levando em um momento à revolta, e em outro, logo em seguida, ao conformismo, apontam
a constante dominação que o meio (não só climático, mas social) composto sobre a secura do
solo e do trato desumanizado dos indivíduos uns com os outros, inclusive dentre os próprios
familiares, exerce sobre todos os seres vivos pertencentes a esta espaço diegético, tanto homens
quanto animais, que também têm seus destinos traçados pela lógica predatória do darwinismo
social, como o papagaio que por "não servir pra nada" tornou-se refeição da família, ou ainda
o gado, inserido unicamente no filme, retratado esmorecendo e, em um plano posterior, morto
já em estado putrefato.
Esse meio social registrado na obra, tanto no filme quanto no livro, tem como principal
característica reificar as pessoas como produto de um capitalismo tardio mesclado a condições
sociais ainda muito coloniais e rudimentares, de usurpação do poder, de confusão do direito
privado e público, somados a elementos de uma sociedade pós-escravocrata que vê no
empregado a extensão do regime abolido, gerando relações extremamente verticalizadas e
opressivas no âmbito empregatício e perpetuando sua dominação e hegemonia sobre os
desprovidos. Tolentino (2001, p.168) situa a seca como "a forma pela qual os conflitos
máximos da existência concreta dessas pessoas se explicitam."
Assim, a literatura canônica servia como forma de falar abertamente aos expectadores
dos anos de 1960 sobre problemas ainda reais, numa postura brechtiniana (sobretudo em
Glauber) através da qual a realidade projetada na tela faria seu público questionar a realidade
na qual estava imerso, ressignificando as relações existentes. Este papel político contestador
que o Cinema Novo veio a assumir ressoava da literatura regionalista da segunda geração do
modernismo brasileiro, voltada sobretudo ao mundo agrário, pois, conforme Glauber expôs:
Eu chamo o movimento de 22 de estética liberal do café ... é uma
manifestação exemplar do liberalismo burguês, pois em 22 além da Arte
Moderna, há o tenentismo e o surgimento do PC [Partido Comunista], sem
haver entre estes fatos nenhuma integração. Quando a Coluna Prestes estava
passando, os artistas, as pessoas cultas de São Paulo estavam tratando da
reforma do verso. (GERBER, 1991, p. 12 apud TOLENTINO, 2001, p. 139).
Ou seja, Glauber em nome do Cinema Novo (e neste momento havia um maior afluxo
dos autores em suas opiniões estéticas e políticas) salienta o formalismo da geração de 22 que
se ateve à "reforma do verso", enquanto a realidade política e social do país eclodia em
manifestações diversas, circunstâncias nas quais a literatura não embarcou, ao contrário da
geração posterior, que teve como foco central o retrato da realidade brasileira, voltando-se a
outros sujeitos históricos.
Nelson Pereira dos Santos em entrevista a Salem (1987) citou a profundidade
psicológica dos personagens de Graciliano Ramos e sua solidez dramática, pois, segundo ele,
tais personagens "não eram títeres, criaturas inventadas, simples sombras saídas da imaginação
de um ficcionista. Eram, ao contrário, seres vivos, de carne e osso, sangue e nervos, com
reações lógicas e atos que obedeciam, sempre, a motivações profundas." (SALEM, 1987, p.
173-174 apud SADLIER, 2012, p. 41-42.). Personagens que em Graciliano tomavam maior
profundidade psicológica, ainda que submetidos à força do meio social, espaço de mazelas e
de conflitos socialmente gerados.
A Intermidialidade: da literatura para o cinema
Vidas secas seria produzido em 1960, na Bahia, no entanto, o tempo repentinamente
chuvoso modificou a paisagem e impossibilitou a feitura do filme. Em meio ao contratempo, a
equipe rodou outro longa-metragem chamado Mandacaru vermelho, um drama sobre uma
moça prometida a um homem que vem a se apaixonar por outro. Uma série de adiamentos fez
com que Vidas secas fosse produzido somente em 1962, em Alagoas, estado natal de Graciliano
Ramos, local onde Nelson Pereira encontrou a cadela Baleia e o ator Jofre Soares, aqui em sua
primeira aparição. Cabe ressaltar que a inspiração cinematográfica provinha não só da literatura
da segunda geração modernista e dos filmes de Humberto Mauro, mas do neo-realismo italiano,
movimento cinematográfico do pós-guerra com obras feitas sobre os escombros da devastação,
com tramas sobre a vida do proletariado e a árdua condição para a sobrevivência em um país
empobrecido, o uso de atores não-profissionais e a extensão dos planos fílmicos em latentes
planos-sequencia com a intenção de evitar aquilo que eles acreditavam ser a intervenção do
cineasta sobre a realidade registrada, o corte.
Glauber disse em entrevista a Raquel Gerber, em fevereiro de 1973, em Roma, "nossa
originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é
compreendida." (apud AVELLAR, 1995, p. 77). Portanto, há claramente uma confluência entre
as fábulas realistas da segunda geração modernista, sobretudo Graciliano, e a proposta
conceitual e estética do Cinema Novo, que via na arte uma forma de denúncia e contestação da
realidade. Para analisarmos a apropriação das obras literárias e sua correlata no cinema, e
tratando-se do binômio literatura-cinema nacional foram vários os títulos (Vidas secas,
Memórias do Cárcere, S. Bernardo, Macunaíma, O menino de engenho,...), temos que teorizar
a transposição do texto literário para o texto audiovisual, suas pecularidades, possíveis e/ou
necessárias adulterações, assim como aquilo que Gaudreault e Marion (2012, p. 107) chamaram
de configuração intrínseca da nova mídia. Por tal conceito os autores entendem a resistência
que determinado meio (as folhas e as dobras do livro impresso, a visualidade do e-book, o
suporte fotoquímico do filme ou a imagem tecnicamente rudimentar do vídeo sobre a fita
magnética) exerce sobre a (trans)criação de uma obra (fábula) já existente para uma nova
linguagem/meio, ou seja, as limitações tecno-composicionais culturalmente construídas e
tecnologicamente normatizadas dentro de pré-esquemas funcionais determinados pela indústria
que fabricou esse meio, e pelo consenso padronizador de seus usos, que acabam por
(im)possibilitar a criatividade e funcionalidade da obra.
Embora todo meio exerça sobre a ideia "pura" uma força delineadora de (re)definições
estéticas, estabelecendo limites (ainda que maleáveis e vanguardistas) e adequações à
linguagem, em casos de transcriação temos como referência imediata o texto pregresso, como
no caso em estudo, a literatura de Vidas Secas, já conhecida nacionalmente ao ganhar
transemiotização. Sadlier (2012) relata uma história sobre a comunicação de Nelson Pereira
com Graciliano no começo dos anos 50 com o intuito de rodar uma adaptação de S. Bernardo.
Ao ser inquirido sobre a possibilidade de modificar o final da fábula - ao invés do suicídio da
mulher oprimida, Nelson sugerira que ela abandonasse o marido - Graciliano foi incisivo em
dizer que isso "seria historicamente inconsistente com a sociedade e o período sobre os quais
escrevera [...] [e] enfatizou a importância de manter a estrutura da história [...] [e] a essência
de sua obra". (SADLIER, 2012, p. 42). Vidas secas foi lançado após o falecimento de
Graciliano e não sabemos sobre possíveis indicações do autor alagoano para o cineasta quanto
ao seu rigor e necessária fixação na narrativa inicial, mas nota-se, ao analisarmos as duas obras
(a literária e a cinematográfica) grande "fidelidade" ao texto original, com algumas alternâncias
dos capítulos (fragmentários no livro e passíveis de serem lidos em ordem diversa sem
adulteração significativa do sentido da fábula) e com a criação de diálogos inexistentes no livro.
Nelson Pereira não muda substancialmente a fábula, mas a utiliza em outra mídia e em
outro contexto, como mensagem a uma sociedade em meio ao recrudescimento moral e político
que viria, poucos anos após, a culminar no golpe militar de 1964. Uma adaptação creditada ao
próprio diretor com modificações na estrutura do enredo, na narração e na linguagem,
condições sine qua non da transcriação intermídia, quando não só se recria uma obra (e a
reinventa através de uma leitura subjetiva de um texto pré-existente) como a adequa às
limitações inerentes ao novo suporte/mídia adotado, repleto de pré-configurações, usos,
restrições técnicas ou orçamentárias. Todos potencializadores da criatividade que tem como
lógica final, a elaboração de uma nova syuzhet. Conforme Gaudreault e Marion (2012):
Toda adaptação respeitável precisa organizar a violência impetrada contra a
fabula e a syuzhet do texto-fonte, pois, de certa forma, a nova syuzheticização
envolve não apenas uma mise-en-sujet, ou seja, a formatação da história, mas
também, e principalmente, a mise-en-sujétion ou "sujeição" a uma mídia
específica. (GAUDREAULT, A.; MARION, P., 2012, p. 126).
Assim, mantem-se a fábula, há a permanência de algo contido na história já existente,
ainda que aquela possa ser recontada na nova mídia de maneira diversificada e traga novas
relações e percepções. A transparência e a opacidade das obras ajudam a compor sua tessitura,
sua verossimilhança e sua aceitabilidade dentre o gosto público já formado. Entendemos por
transparência a condição na qual o mecanismo se oculta, se camufla de forma a não ser notado,
remanescendo unicamente o que este mecanismo tenta transmitir. Um exemplo recorrente disso
é o telejornalismo ou os filmes naturalistas que tentam contar histórias de forma a afastar do
espectador a reflexão e o olhar meta-linguistico sobre o aparelho que "conta histórias",
diferentemente de seu antagonismo, a opacidade, que torna-se mais utilizada em obras
cinematográficas (e não só) menos comerciais e mais autorais, quando vemos o desvelamento
do meio juntamente com a fábula, o que nos faz, enquanto espectadores, não só assimilar o
discurso como a forma desmistificada de elaboração desse discurso.
Enquanto na literatura tivemos a ausência de discurso verbal dos personagens como
aspecto narrativo, retratando através de uma linguagem "seca" o ambiente similar no qual
viviam aquelas personagens desprovidas de compreensão e do uso pleno da linguagem, algo
pertencente a outro mundo (o da cidade, do governo e do patrão), e que, segundo Fabiano em
diálogo com Sinhá Vitória, de nada serviu ao Seu Tomás, no filme tivemos a presença contínua
da solidão expressa através dos silêncios, do constante ruído de carro de boi e da pobreza
comunicativa dos personagens.
No capítulo "Inverno" do texto literário há a descrição de uma conversa entre Sinhá
Vitória e Fabiano, que passa da seguinte forma: "Não era propriamente conversa, eram frases
soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. [...] Na verdade, nenhum deles prestava
atenção às palavras do outro." (RAMOS, 1989, p. 63). Tal cena foi retratada no filme de forma
a apresentar em plano e contraplano Sinhá Vitória e Fabiano, mas para apresentar a
incongruência comunicativa do casal, cada indivíduo fala coisas tematicamente díspares e o
áudio se sobrepõe, ao passo que ambas as falas soam em simultâneo e poluem o ambiente,
amplificando a existência de dois monólogos exteriorizados, cada qual pertencente a um mundo
específico, o que retrata a segregação de corpos e almas. Um mundo desumanizado por
completo a ponto de atingir até mesmo a linguagem, vista como pertencente, muitas vezes, ao
mundo de Seu Tomás, um mundo externo aquele.
Outro excerto do filme importante para a análise intersemiótica em comparação com o
livro, é a transposição do capítulo intitulado "O Menino Mais Velho". Neste temos o momento
no qual o filho inquire os pais sobre a palavra "inferno" e busca compreender como é este
espaço definido pela mãe como de "espetos quentes" e "fogueiras". No livro a fábula é
apresentada da forma abaixo:
Deu-se aquilo porque sinha Vitória não conversou um instante com o menino
mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a
linguagem de sinha Terta, pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu
vagamente a certo lugar ruim demais [...]
- Como é?
Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. O
menino sai indignado com a injustiça [...]. Como não sabia falar direito, o
menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os
berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na
catinga, roçando-se. Agora tinha a idéia de aprender uma palavra, com certeza
importante porque figurava na conversa de sinha Terta. Ia decorá-la e
transmiti-la ao irmão e à cachorra. [...]
- Inferno, inferno.
Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim.
(RAMOS, 1989, p. 54).
Esta cena é descrita com poucos diálogos, basicamente em terceira pessoa de forma a
narrar a fixação do Menino mais velho com a palavra "inferno". No filme, através da fotografia
no estilo neo-realista vemos uma superexposição do material fílmico através da abertura do
diafragma da câmera de modo mais exagerado, cometendo um "erro" técnico, mas
propositalmente uma escolha estética a fim de dar ao espectador essa sensação desagradável
da seca, da luminosidade exacerbada e da temperatura escaldante do sertão nordestino,
transpondo inclusive para a experiência sensorial daquele que assiste o filme um pouco do
ambiente. Assim como Graciliano opta por descrever a secura daquele espaço através de uma
linguagem com poucos diálogos, Nelson Pereira opta por registrar a seca de forma a
potencializá-la imageticamente com a explosão de luz sobre a emulsão do filme, com planos
mais longos e uso de não-atores, conforme se estabeleceu o cinema de Rosselini, Visconti e
DeSica.
A mesma cena de o capítulo "O Menino Mais Velho" comentada acima foi
extensivamente transcriada no cinema conforme podemos ver nos frames apresentados abaixo.
FIGURA 1 FIGURA 2 FIGURA 3
Na FIGURA 1 podemos ver o momento no qual a curandeira da região (Sinhá Terta?),
"costura" com linha e agulha as feridas de Fabiano provenientes da surra dada pelos soldados
na prisão. Ao canto direito da imagem o Menino Mais Velho observa as palavras proferidas,
dentre elas "inferno". Minutos após, passados os momentos de questionamento sobre o
significado dessa palavra, o menino sai da casa, recosta-se ao tronco de uma árvore e
observando o local faz associações primárias entre suas referências visuais interiorizadas e a
abstrata descrição de inferno.
Neste momento o domínio da linguagem cinematográfica foi fundamental para a
criação dessa associação por parte do espectador, pois há o uso de uma câmera subjetiva (ponto
de vista do personagem) apontando para onde convergem os olhos do menino, somado ao uso
de audio off (narração fora de quadro mas pertencente a um personagem dentro da diegese)
intercalado com audio in (quando vemos o personagem proferir tais sons) insistentemente
repetidos a ponto de ressaltar a constante perturbação do menino com o significado dessa
palavra por ele incógnita, mas sonoramente atraente. Esta, na qual o Menino Mais Velho
profere "lugar ruim", "espeto quente", "inferno, inferno, inferno", ao passo que observa o monte
próximo à casa, a residência precária onde vive com a família, a seca, o gado subnutrido e os
galhos ressecados da vegetação, está resumidamente apresentada nos frames das FIGURAS 2,
3, 4, 5 e 6, sequencialmente.
FIGURA 4 FIGURA 5 FIGURA 6
Outra cena de destaque que ganhou propulsão com a adaptação ao cinema foi a morte
da cadela Baleia. Tal acontecimento no livro está presente no capítulo que recebeu o nome da
cachorra, sendo o nono capítulo de treze existentes, enquanto no filme foi movido para o final
a ponto de formar o clímax narrativo da obra, pouco antes da nova peregrinação iniciada pela
família. No texto temos a descrição da morte de Baleia ocasionada pela mesma ação (o tiro
deflagrado por Fabiano a fim de sacrificar a cadela doente) existente no filme, no entanto, no
primeiro caso é narrada da seguinte forma:
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito
sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte
posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve
medo da roda.
[...]
Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam
cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as
pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e
desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam
diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.
[...]
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava
e aproximava-se. Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas
o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o
morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar
lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam
e corriam em liberdade. Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar.
Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O
olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.
[...]
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol
desaparecera.
[...]
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia
as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela,
rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria
todo cheio de preás, gordos, enormes. (RAMOS, 1989, p. 88-91).
No texto citado podemos visualizar o momento em que Baleia sentiu-se ferida,
estranhou a sensação, esmoreceu, começou a perder a visão ("o nevoeiro engrossava"), sentiu
o cheiro dos preás que se aproximavam, e, logo em seguida, sentiu seu olfato enfraquecer.
Adentrou uma espécie de sonho, após abrir os olhos e ver uma enorme escuridão, passou a
entender os animais soltos como a não-realização de seu dever e compôs a projeção de um
mundo melhor após este momento turbulento. Textualmente temos a passagem de um estado
externo à cadela, no qual vemos a narração de sua agonia, e passamos a um estado psicológico
de Baleia, descrito pelo mesmo narrador em terceira pessoa, mas capaz de conhecer e, portanto,
adentrar e descrever, o que se passava no interior de sua mente.
Na obra fílmica a correlação com esta cena foi feita de modo a intercalar planos a fim
de construir uma nova syuzhet, a exemplo dos construtivistas. Kulechov, cineasta russo do
início do século XX, desenvolveu um estudo até hoje intitulado Efeito Kulechov, no qual
teorizou o efeito provocado no espectador após a intercalação de planos subsequentes,
chegando a constatação de que o sentido original da imagem não está no próprio plano, mas na
relação que mantém com outros planos contíguos. Nelson Pereira, portanto, utiliza planos da
cadela e intercala com as imagens de preás correndo obtidas com a câmera (subjetiva)
posicionada sob o carro de boi onde havíamos visto, poucos segundos antes, Baleia deitada
aguardando a morte. Vemos os preás correndo e voltamos a ver a cadela imóvel, fechando os
olhos e não esboçando reação, o que constrói o sentido de que a cadela não tem mais forças
para persegui-los.
FIGURA 7 FIGURA 8 FIGURA 9
A cena é sintetizada nos frames acima nos quais vemos Baleia deitar sob o carro de bois
(Figura 7), o plano seguinte com a mudança de ponto de vista transformando-se em uma câmera
subjetiva que exprime o olhar da própria cadela ao visualizar a casa da família (Figura 8) e em
zoom out (a câmera se distancia do objeto retratado sem cortes e sem movimentação do
equipamento, apenas através do recuo óptico) o seu olhar sôfrego (Figura 9). Nas imagens
abaixo vemos a alternância de planos entre câmera subjetiva (ponto de vista de Baleia) e uma
câmera externa (na qual vemos a cadela), o que constrói o sentido de que pari passu ao seu
desfalecimento, os animais correm a sua frente sem perigo.
FIGURA 12 FIGURA 13 FIGURA 14
FIGURA 15 FIGURA 16 FIGURA 17
Conclusão
Apontamos com o presente artigo, embora limitado em dimensões, estrutura e
profundidade analítica, breves considerações sobre a transcriação da obra Vidas secas, de
Graciliano Ramos, no cinema, por Nelson Pereira do Santos. Em ambas as obras e contextos
nas quais surgiram, o Nordeste passou a representar o país real, defasado e miserável. O descaso
das autoridades com o país somado à incerteza política fizeram com que esta obra tivesse sua
releitura em um momento no qual as mesmas questões ainda pairavam inconclusas e sem
respostas.
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