a escrita sem limites de lÚcio cardoso -...

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1 A ESCRITA SEM LIMITES DE LÚCIO CARDOSO Beatriz dos Santos Damasceno Este artigo reflete sobre a relação do escritor Lúcio Cardoso com a escrita, a partir da análise da dedicação dele ao gênero diário. Observa, ainda, a sua escrita interminável, que foi capaz de romper os limites do corpo e registrar as marcas e as reflexões como testemunha de uma vida inteira. Lúcio Cardoso escrita diário - corpo This article reflects about the connection of the writer Lúcio Cardoso with writing, based on his dedication to the genre of diary. It also highlights his endless writing which is able to break the body´s limits and to print the registers and reflections as witness of a lifetime. Lúcio Cardoso writting diary - body O Seminário “Lúcio Cardoso: tempo de lembrar e tempo de entender”, dedicado à comemoração do centenário de nascimento do escritor mineiro, foi um encontro raro e emocionante. Primeiro, trouxe à tona vida e obra de um artista múltiplo, polêmico e marcante ao observar sua trajetória como romancista, diarista, tradutor, poeta, além de suas incursões pela pintura, cinema e teatro. Depois, procurou construir sua influência no meio literário, apresentando suas posturas críticas ante o cenário cultural da época. De minha parte, coube refletir sobre a vida e a escrita sem limites do escritor. Lúcio Cardoso caminhou no limiar de experimentações densas e intensas em que sua escrita foi testemunha, por isso ressalto aqui o artista que se escreve e se distribui, o artista que se dá às folhas de papel construindo diários, buscando, como ele mesmo afirmava, uma composição de si com um furor cego e desatinado, e que, mesmo após um acidente vascular cerebral, continua se entregando à escrita, à maneira própria do corpo. Sem deixar de

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A ESCRITA SEM LIMITES DE LÚCIO CARDOSO

Beatriz dos Santos Damasceno

Este artigo reflete sobre a relação do escritor Lúcio Cardoso com a

escrita, a partir da análise da dedicação dele ao gênero diário.

Observa, ainda, a sua escrita interminável, que foi capaz de romper

os limites do corpo e registrar as marcas e as reflexões como

testemunha de uma vida inteira.

Lúcio Cardoso – escrita – diário - corpo

This article reflects about the connection of the writer Lúcio

Cardoso with writing, based on his dedication to the genre of diary.

It also highlights his endless writing which is able to break the

body´s limits and to print the registers and reflections as witness of

a lifetime.

Lúcio Cardoso – writting – diary - body

O Seminário “Lúcio Cardoso: tempo de lembrar e tempo de entender”,

dedicado à comemoração do centenário de nascimento do escritor mineiro, foi

um encontro raro e emocionante. Primeiro, trouxe à tona vida e obra de um

artista múltiplo, polêmico e marcante ao observar sua trajetória como

romancista, diarista, tradutor, poeta, além de suas incursões pela pintura,

cinema e teatro. Depois, procurou construir sua influência no meio literário,

apresentando suas posturas críticas ante o cenário cultural da época.

De minha parte, coube refletir sobre a vida e a escrita sem limites do

escritor. Lúcio Cardoso caminhou no limiar de experimentações densas e

intensas em que sua escrita foi testemunha, por isso ressalto aqui o artista que

se escreve e se distribui, o artista que se dá às folhas de papel construindo

diários, buscando, como ele mesmo afirmava, uma composição de si com um

furor cego e desatinado, e que, mesmo após um acidente vascular cerebral,

continua se entregando à escrita, à maneira própria do corpo. Sem deixar de

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fazer daquele momento mais uma oportunidade de mergulhar em seu universo

rico e passional.

Lúcio Cardoso era um homem de paixões, e a paixão é algo que inflama

e atormenta. Inquieto e provocativo, sua própria vida era uma denúncia à

mediocridade, desafiando valores morais e ao mesmo tempo sofrendo por eles.

O escritor era extremamente sensível e seu corpo caminhou nesse limiar da

paixão, da dor e da angústia, estimulado ao máximo, até onde não foi mais

suporte possível para viver dentro de uma “saúde” estabelecida. Corpo

pulsante, que sempre sinalizou resistência, viveu desenquadrado, na

perseguição constante de um além-limite, esboçando um questionamento

sobre até aonde agüentaria ir. Já nas últimas páginas do Diário, escreve sobre

a violência de viver: “Olho minha silhueta na sombra, gordo, disforme, um

homem de idade – mas o que ferve dentro de mim, essa curiosidade, esse

frêmito de viver. Acalmo-me à força, à custa de remédios, arrastando o dia

como uma data que não me pertencesse.” (CARDOSO, 1970, p.297).

O escritor buscava frear, inutilmente, seu instinto avassalador de

liberdade, que impunha a ele uma vida peculiar, diferente dos modelos sociais.

Para dar conta desse espírito livre e criador, Lúcio extravasava-se em bares,

bebia em excesso, dormia mal, enfim, não mantinha qualquer disciplina, e essa

irreverência sacrificava o corpo.

David Lapoujade, em seu ensaio “O corpo que não agüenta mais”

(LAPOUJADE, Apud. LINS, 2002), reflete sobre a reação do corpo ante as

exigências sociais e afirma que qualquer corpo sempre não agüenta mais

aquilo a que é submetido do exterior, ou seja, ao adestramento e à disciplina,

promovidos pela sociedade, ele afirma:

As páginas essenciais de Nietzsche, em A genealogia da moral, ou as

descrições de Foucault, em Vigiar e punir, são decisivas a esse respeito:

trata-se de formar corpos e de engendrar um agente que submeta o

corpo a uma autodisciplina. Em Nietzsche, é um corpo animal (que é

preciso adestrar) e, em Foucault, um corpo anômalo (que é preciso

disciplinar). E, através das páginas esplêndidas de Nietzsche e Foucault,

é todo um sistema de crueldade que se impõe aos corpos. (p. 84).

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Mas onde estava a disciplina em Lúcio? A indisciplina fazia parte de seu

método, a irregularidade era a sua forma de estar no mundo, portanto ao não

se anestesiar diante das imposições, debatia-se incompreendido e, muitas

vezes, culpado:

Nesta solidão, verifico as deficiências enormes que me compõem:

trabalho de um modo fácil mas sem ritmo prolongado, não sei ler, leio

mal , sem segmento, e penso ainda pior, sem um raciocínio lógico,

impondo meu pensamento por clarões, fatos ou intuições, nunca por

meio de uma idéia seguida e trabalhada. Mas serei culpado? Esta é a

natureza que Deus me deu – e esta solidão que de longe tanto proclamo

e reclamo, é sempre dura e pesada de suportar. Um terror do mundo,

antigo e sempre sufocado, aflora-me à consciência. (CARDOSO, 1970,

p. 296).

Ainda segundo Lapoujade, o corpo também não agüenta mais, aquilo a

que se submete de dentro, todos os instintos que não se liberam porque não

são próprios, convenientes. E, assim, cria-se uma coleção de órgãos, juízos,

“um corpo para uma alma”. Esse corpo, subordinado por um organismo que

entrava a potência, sente-se muito mal, torna-se sacrificado pela submissão.

Lúcio Cardoso experimentou esse embate a vida inteira e, como não limitava a

sua potência, debatia-se contra a exigência de sujeição promovida pelo poder

da culpa, herança da formação católica, mineira, tradicional. Deleuze e

Guattari mostram a expectativa social da criação de um corpo para uma alma

baseados na análise da vida de Artaud, e sublinham que o agente constrói no

corpo um organismo que pode subordiná-lo, submetê-lo:

O juízo de Deus, o sistema do juízo de Deus, o sistema teológico, é

precisamente a operação daquele que faz um organismo, uma coleção

de órgãos que se chama organismo (...). Você será organizado, você

será um organismo, articulará seu corpo – senão você será um

depravado (...). Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de

enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado – senão você será

apenas um vagabundo. (DELEUZE & GUATTARI, 1996, p.21-22).

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Nesse sentido, pode-se dizer que Lúcio Cardoso tornou-se um

vagabundo, um nômade em relação aos padrões sociais: não obedeceu a uma

regularidade nos estudos, não teve constância nos trabalhos, dispersou

esforços abraçando uma série de projetos em diferentes áreas, sofrendo,

muitas vezes, desgostos e fracassos. Tornou-se também um depravado porque

desvirtuava comportamentos e leis morais, principalmente no que diz respeito a

sua homossexualidade, às noites em delírio nos bares e em casas de amigos.

E, na tentativa de dar conta de sua inconstância e vontade de extrapolar

limites, seu corpo sofria uma crueldade absurda. Certa vez, registrou no Diário:

Não estou nada satisfeito com o passado, ainda espero alguma coisa do

futuro. Deste modo, pensando assim, é que construo o meu presente.

Ou melhor, que luto, que luto incansavelmente contra essas forças que

sempre existiram dentro de mim, e que sempre foram mais fortes do que

eu. (p. 298).

Lendo as páginas do Diário de Lúcio Cardoso, lendo seus textos de

ficção, lendo sua vida, é notável a presença do corpo sempre em desafio, e a

sua escrita vem como ferramenta útil na desintoxicação dos efeitos dessa

crueldade.

Lúcio tinha a sede da escrita e por meio de diários concebeu um

universo de imagens, pensamentos, correspondentes a fatos, acontecimentos

e experiências à maneira fragmentada e descontínua de sua natureza peculiar

em constante movimento. Num mundo que discute e lamenta a supremacia

dos fatos em detrimento à experiência, o escritor sempre procurou, com

propriedade, rever sua escrita, sacrificar os fatos vividos para falar dos efeitos

perceptivo-afetivos que a experiência lhe trazia, certa vez registrou no Diário a

indagação de um jovem a respeito dessa opção:

Por que você nunca cita fatos, nem se refere ao que realmente lhe

acontece? Quem me faz essa pergunta tem dezessete anos, e só a

mocidade, evidentemente, justifica a pergunta. Pois o que narro aqui

acontece, mas com uma diferença – só acontece a mim mesmo. (...)

Uns são fatos apenas, os outros são experiências de fatos. Fatos são

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fatos, e experiências são as almas desses fatos. (CARDOSO, 1970,

271)

Quem lê o diário de Lúcio Cardoso observa sua descontinuidade, a

soma de reflexões, lembranças que não apresentam uma composição

estruturada. O seu diário vai se compondo numa desconstrução do

autoconhecimento convencional, subvertendo o conceito de confissão e

criando a tensão necessária à produção de uma interioridade desejante. “Não

sei se é novo o que eu digo que me importa, mas não só a filosofia, como toda

a arte que se conta como tal, não deve permitir ao homem nenhum sentimento

de tranqüilidade. Tudo o que é belo, só deve ser útil para fazer crescer nossa

impressão de intranqüilidade.” (p.27)

E o escritor tinha total consciência da experimentação que é esse

gênero, pois o diário não se dá como acabado, é a escrita a quente, em

constante movimento, nele, colecionam-se os dias ao sabor do tempo, com o

olhar sobre os sentimentos e as sensações. Lúcio parecia entendê-lo como

uma verdadeira oficina, em que há recortes, colagens, articulação de

fragmentos que se compõem e atingem uma dimensão inimaginável porque

apresentam uma linguagem de prontidão que não está prestes a concluir nada.

O gênero híbrido do diário proporciona liberdade de um pensamento

construtor latente, por isso, escrever era necessário para conhecer-se. E Lúcio

nunca poupou reflexões sobre o que, para ele, representava a escrita. No

diário, observamos a inquietude de um homem que provava intensamente a

vida. Meses antes do AVC, Lúcio transgrediu o mais que pôde, bebendo e

usando anfetaminas, a despeito das recomendações médicas e apelos da

família. E esse sentimento de desconforto está expresso nos últimos registros

do segundo volume Diário: “Quanto a mim, por exemplo, vou cantando e

pisando em brasas, que este é o preço do que não tem preço” (CARDOSO,

1970, p. 300). Lúcio caminhou para o extremo, o que resultou numa resposta

violenta: a hemiplegia (paralisia de um dos lados do corpo).

Seu corpo inquieto e sempre agredido pelas imposições do interior e

exterior é obrigado a um novo desafio: conviver com a paralisia. Aquele corpo

sempre cindido e sacrificado mostrava-se visivelmente afetado aos olhares dos

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outros. Para Lúcio Cardoso, o golpe da doença veio como uma resposta a sua

procura interminável. Para quem observa a maneira com que o escritor lidava

com a escrita, é impossível não questionar como ele deu conta de não poder

registrar tal experiência, como deixar de registrar o extraordinário. Segundo

Blanchot, “o diário que parece tão livre na forma, tão preso à insignificância,

apresenta uma armadilha, a de que ele deve respeitar o calendário. Esse é o

pacto que o diário assina. O calendário é o seu demônio.” (BLANCHOT, 2005,

p.270) Como Lúcio deixaria de contar o extraordinário? Como não registrar a

experiência daquele de experimentação da morte? O escritor gostava de

desafiar o limite, certa vez, em conversas com amigos, afirmou: “eu quero tocar

a cauda da morte.” (PELLEGRINO, 1968)

E se a escrita era construção e reconstrução da imagem e se por ela

também se procura dar conta da própria existência, como conviver com uma

experiência tão marcante sem sua cumplicidade? Como a escrita, que antes já

se reconhecia como testemunha da experiência, não reclamaria a sua

permanência? Em várias citações do Diário, Lúcio observa como sentia no

corpo a potência da escrita. Em um momento de intervalo de filmagens de A

mulher de longe, filme que produzia, registra: “nas longas horas de expectativa

deitado na grama ou no terreno nu, sinto uma palpitação que não me é

desconhecida, qualquer coisa que me desce à ponta dos meus dedos e que se

chama necessidade de escrever.” (p. 16)

Nessa curiosidade e indagações, encontrei no arquivo do escritor, na

Fundação Casa de Rui Barbosa - RJ, uma pasta com blocos, cadernos,

cadernetas e folhas avulsas catalogada como “exercícios de foniatria”. E

nesses papéis estão as novas experimentações no campo escritural feitas pelo

artista – os detritos de escrita em blocos e cadernetas compõem uma jornada

no coração da experiência, não exploram a linguagem em suas riquezas, mas

em seus limites, nos seus pontos de fuga, forçando-a a alcançar o que está

além de suas possibilidades, na outra margem, no limiar. A escrita vai

proliferando na velocidade do devir, a não mais poder, em legitimidade com

experiência.

Corpo e escrita em Lúcio constantemente se fundiram; ele que sempre

registrou o devir de novos corpos e novas experiências, sabia que, na doença,

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tornava-se mais do que necessário o registro do cotidiano que sempre escapa.

“Extraordinário cotidiano” que o acompanharia por um tempo que não sabia

quanto ia durar e precisava ser revelado. As falhas e as lacunas, as fendas e a

falta precisavam ir para o papel, garantindo a sua presença em corpo e signo

como sempre fora. Escrita-corpo presente, companhia e suporte, que expressa

desejos, conflitos, indagações. Como no Diário, folhas avulsas que

materializam dúvidas e reflexões que precisavam ser testemunhadas, divididas,

lembradas. Trata-se da escrita das marcas, dos “estados inéditos que se

produzem em nosso corpo a partir das composições que vamos vivendo.

Aberturas de um novo corpo, concluindo-se que as marcas são sempre gênese

de um devir”. (ROLNIK, 1993, p.242). A escrita em detrito, o diário em

decomposição, sentimentos em prontidão que corroboram a continuidade do

trabalho de diarista. Além disso, o corpo faz exigências, reclama

potencialidade. E, nas oscilações de comportamento, no período em que

esteve doente, a irmã Maria Helena observa assustada a aparente nitidez com

que lida com a limitação e parece experimentá-la. Assim relata o diálogo com

ele, no livro de memórias que escreveu após a morte do irmão:

-Você é muito teimoso, por isso lhe tem acontecido tanta coisa. Tá

lembrado de quando teve a primeira crise da doença, apenas um

espasmo? Apesar dos meus rogos, teimou e continuou a beber e a tomar

bolinhas. Deu certo sua teimosia?

Mais irritado ficou e para surpresa minha falou:

-Deu certo, eu morri.

(...) Quando me disse aquelas palavras, bem pronunciadas, apenas o “i”

de morri, um pouco “e”, parecia até contente. É terrível, há momentos em

que dá a impressão de ser perfeitamente feliz como está: anda a casa

toda, ri e brinca com as pessoas como se estivesse satisfeito da vida.

Nessas horas fico a pensar se a sua situação de agora não teria sido

provocada para fugir a alguma coisa que desconheço. Mas nem sempre

se porta assim. Quando se lembra de que não pode mais escrever seus

romances, tudo que tem dentro da cabeça, desespera-se e tem crises de

melancolia. (MH.CARDOSO, p. 159).

Nesse sentido, é importante refletir acerca do significado dos detritos de

escrita que ao leitor suscita indagações e inquietação. Neles estão as marcas

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características do movimento do corpo que reúnem mutilação e expressão. A

distribuição dos escritos nas páginas, a aparente mistura aleatória de

referências e o fluxo de suas reflexões são manifestações ou, como já afirmara

o escritor em seu Diário “pensamentos por clarões”, e mostram que Lúcio

ocupava seu lugar, seu território e não deixa de lançar mão de sua marca.

Podemos chamar de arte esse devir? O território seria o efeito da arte? Quando

estabelece o seu domínio e sua assinatura nem o próprio autor tem o alcance

do solo que marca. (DELEUZE&GUATTARI, p.121)

Os fragmentos de escrita, as anotações de idéias para obras, as

observações circunstanciais que devem substituir a fala, as anotações para

lembrança futura correspondem às anotações do diário. Esses textos,

entretanto, truncados do ponto de vista da correção gramatical e ortográfica

apresentariam um modo radical de inscrever percepções, movimentos,

afecções do corpo na composição da escrita. Dessa forma, o diário de Lúcio

não teria sido interrompido, mas teve continuidade com um singular estatuto: o

da experiência-limite inscrita na atividade escritural.

Folha avulsa de bloco. Arquivo Casa de Rui Barbosa-RJ

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Folha avulsa de bloco. Arquivo Casa de Rui Barbosa-RJ

Lúcio desejou e tocou a cauda da morte e caminhou sempre nesse

limiar, deixando inscritas inúmeras sensações e provando a possibilidade de

vida na experimentação da morte. Isso corrobora com suas próprias reflexões,

já na página 23, do Diário: “Indago em vão e sei apenas, com uma triste

lucidez, que os desastres não me limitam” (CARDOSO, 1970, p. 23).

Além disso, o artista precisava dar conta de estar em seu meio, o meio

intelectual e artístico que o alimentava, por isso, a pintura, antes uma atividade

sem compromissos para presentear parentes e amigos, tornou-se a nova

expressão artística. Lúcio começou a pintar muitos quadros e deu-se ao

trabalho de pintura de maneira similar à que se tinha dedicado a sua escrita

literária. Pintava como escrevia, não só na revelação subjetiva do mundo, mas

também no método. Por isso, analisando a sua forma de pintar percebe-se,

com clareza, a voracidade de sua escrita. Tintas e palavras lançadas na tela e

no papel. Sua expressão é sem limite, densa, transbordante. Essa mesma

característica se desloca para as imagens visuais que se tornam também táteis

em suas telas. Em qualquer tipo de escrita do autor, a dimensão corpórea está

evidente.

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E a sua maneira corporal de lançar-se à pintura, cujo modo de

construção é mais claro, assustava os que o acompanhavam de perto pela

intensidade com que era produzida. Em Vida-Vida, livro de memórias, sua irmã,

Maria Helena Cardoso, descreve a forma como pintava:

...observo Nonô no atelier, as mãos mergulhadas na tinta, misturadas

várias cores sobre um pedaço de vidro grosso, funcionando como

palheta, um pouco de mistura colorida que vinha de fazer, escorrendo

por sobre a mesa. A tela que começava a pintar naquele momento já

deixa entrever alguns contornos daquilo que mais tarde seria um jardim

tropical na sua maior exuberância. Elsa, que também o acompanha de

longe, levanta-se, vai até sua mesa de trabalho e volta dizendo:

- Meu Deus, não sei como Lúcio consegue tirar alguma coisa de belo

daquela lambuzação toda. Ele, a mesa, o papel, tudo sujo, a tela mais

parece um borrão. Fico horrorizada, sem poder crer que de tal sujeira

possa sair alguma coisa que preste. É inacreditável, quem como eu vê

como ele parte para suas criações, não poderia nunca imaginar que

houvesse outro fim a não ser borrões. Olha, tem tinta até nos cabelos

(p.322).

Assim revelava-se seu espírito criativo, todo pintura, como fora todo

escrita. Maria Helena comentava a respeito dessa dinâmica desvairada, mas o

escritor rebatia, com a autoridade do artista que sabe compor sua obra.

Deixava, assim, a tinta derramar-se na tela em tons fortes, traços soltos e

firmes - pintando a não mais poder, extravasando os limites. A irmã deixa

registrado:

Obrigado a trabalhar com a mão esquerda somente, vira o quadro em

todos os sentidos, para baixo, para cima, os dedos imundos (porque

nunca usa pincel, mas os dedos), não admitindo nenhuma disciplina na

sua maneira de criar. Pinta ao sabor da sua fantasia, quando e como

lhe dá na veneta. Se o aconselho a mudar de método, a fazer como os

outros, sacode os ombros, irrita-se e muitas vezes escreve no caderno:

“Sempre fui assim. Vai ser o mesmo com a pintura. Você não entende”

(MHCARDOSO, 322).

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Óleo s/ tela - Sem título – Coleção Família Adauto Lúcio Cardoso

A exposição das suas cores revelou o artista da palavra e Lúcio fez

exposições nas principais capitais do país. O público absorveu seus novos

traços como uma infindável capacidade de escrita. Escreve Nair Lacerda, em

1966: “Seus quadros são luminosos, de pura Poesia. Ainda é o poeta que

inspira o pintor. E a comunicação continua a fazer-se, o ritmo continua a existir”

(LACERDA, 1966). Lúcio Cardoso expressa a resistência do artista, forçando a

palavra a margens desconhecidas e passeando pelas artes em seus

movimentos peculiares, sendo poeta enquanto romancista, pintor enquanto

poeta, escritor enquanto pintor...

E nessa necessidade de provar a vida e a escrita, provou a iminência da

morte, encarando sua possibilidade, indagando seus mistérios. A

impessoalidade, o fato de nunca se saber totalmente é, ao mesmo tempo, o

que mais instiga e atormenta o ser humano e a morte é a última instância que

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lhe oferece uma suposta esperança de conhecimento pleno de si. Como afirma

no Diário: “A morte que nos espera, é a mesma que nos acompanha como a

sombra estrangeira que divisamos na limpidez dos muros” (CARDOSO, 1970,

p.15).

Ao mesmo tempo, apresentar-se à morte, em definitivo, seria apagar o

mistério que impulsiona o espírito criador. O escritor parecia equilibrar-se nesta

corda bamba, impulsionado pelo desejo de morte, vivendo a busca pela

impossibilidade de morrer. Nessa convivência conflituosa, construiu sua

história artística estampando nos seus textos e telas esse jogo de forças

interior. Como ele mesmo afirmava: o Mistério é a única realidade deste

mundo. E, se dele temos grande necessidade, é para não morrer do

conhecimento de nossos próprios limites (CARDOSO, 1969, p.269).

A sua proposta de estar em movimento, sondando esses mistérios,

procurando descobrir outros eus dentro de si, é, de qualquer forma, rondar a

possibilidade da morte que oferece a revelação daquilo que é impenetrável.

Ele registra no Diário: E que é a morte senão a essência de todos nós?

Perdemos tudo, transfiguramo-nos, e bons ou maus somos sempre outros, a

fim de podermos atingir em verdade a morte que nos vive. (p.51)

A sua escrita a todo tempo testemunhou esse jogo. Por ser tão violenta

e vigorosa experimentou a aproximação com a morte. Em sua escrita-corpo, a

morte foi desenhando os contornos de sua permanência, porque ela só existe

para quem ainda pode morrer. A escrita caminhava na velocidade desse devir,

desse querer morrer. Nesse jogo, Lúcio desmontou a linguagem convencional

num eterno refazer-se outro, à procura de. Segundo Blanchot, “O escritor é

então aquele que escreve para morrer e é aquele que recebe o seu poder de

escrever de uma relação antecipada com a morte” (BLANCHOT, 1987, p. 90).

Mas depois de seis anos de luta contra a impossibilidade física e a

possibilidade de morrer, estampando-a na sua escrita em detritos e

tensionando as telas com seu jogo de cores, o homem que sempre viveu à

margem, como afirmou Cornélio Pena, parte para outro tempo. E, nesse

movimento, talvez tenha se dado conta de que escreveu para não morrer.

Como já afirmara Blanchot: “Escrever para não morrer, confiar-se à

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sobrevivência das obras, aí está o que ligaria o artista à sua tarefa”, escrever

“para sustentar, amoldar o nosso não-ser, eis a tarefa: Devemos ser os artífices

e os poetas da nossa morte.” (BLANCHOT, 1987 p.91).

Pela escrita se experimenta a morte e é por ela também que não se

morre, porque ficará sempre o leitor buscando respostas, e, pela falta delas,

continuará procurando, investigando, descobrindo o que não tem limite de

descoberta e entendimento, porque, o gênio, agora, por fim, tomo as palavras

do poeta Lúcio, “o gênio é uma morte a cavalo/ Que praias explora/ que praias

ascendem ao curso do seu domínio? O gênio cavalga fora das raias.”

Referências bibliográficas

Arquivo de Lúcio Cardoso – inventário. I. Rangel, Rosângela Florido, org. II.

Leitão, Eliane Vasconcellos, org. III. Título. IV. Série.

BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário: trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:

Rocco, 1987.

_________________. Conversa infinita: a experiência-limite. São Paulo:

Editora Escuta, 2007.

_________________. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,

1970.

_______________. Três histórias da cidade. Rio de Janeiro: Edições Bloch,

1969.

CARDOSO, Maria Helena. Vida-Vida. Rio de Janeiro: Editora José Olympio;

Brasília, INL, 1973.

14

DAMASCENO, Beatriz. Lúcio Cardoso em corpo e escrita. Rio de Janeiro:

EdUERJ, 2012.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. PELBART, Peter Pál. São Paulo:

Editora 34, 1997.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo – uma impressão freudiana. Trad: Cláudia

de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

Artigos sobre o escritor

LACERDA, Nair. “Lúcio”. A Tribuna, Santos, 26 jun. 1966.

PELLEGRINO, Hélio. “Um indomável coração de poeta”. Correio da Manhã,

Rio de Janeiro, 6 out. 1968.