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A ESCRITA LITERÁRIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – SABERES QUE
NAVEGAM NA TERCEIRA MARGEM DO SENTIDO.
Autora: Sarah Maria Forte Diogo
Universidade Estadual do Ceará – UECE
RESUMO
A escrita literária de João Guimarães Rosa apresenta o diálogo entre culturas, o que
contribui para uma leitura ativa. As vozes das narrativas de Rosa encenam modos de
reconhecer e construir o heterogêneo mundo do século XX, o Brasil sertanejo e a
América Latina em constante tensão entre o arcaico e o moderno. O objetivo desta
investigação é identificar a escrita literária de Rosa como campo interdisciplinar,
complexo e multicultural. A metodologia consiste no estudo de diversas narrativas de
Rosa e a reflexão sobre os saberes sedimentados nessas produções. Estabeleceremos
relações com o pensamento do filósofo Edgar Morin acerca dos saberes e a educação.
Os resultados apontam a necessidade de pesquisas que desmistifiquem os textos
rosianos e possam levá-los ao público leitor, para que este conheça um autor que
construiu sua poética na crença de que a diversidade não é fator de segregação, mas de
integração da identidade humana.
Palavras-Chave: Arte, Escrita, João Guimarães Rosa.
Saber V – Enfrentar as incertezas (5. Criatividade, intuição e aprendizagem. O papel e a
importância da arte no desenvolvimento humano. Experiências.)
Esta investigação nasceu das reflexões sobre a obra do escritor mineiro João
Guimarães Rosa. Essa leitura enveredou tanto pela prosa em si – textos literários do
escritor – quanto por sua fortuna crítica. Aqueles que conhecem a poética de Rosa
sabem que sua fortuna crítica é extensa e, por isso mesmo, desafiadora para quem
pretende aventurar-se na pesquisa. As leituras não foram finalizadas, estão sempre no
limiar da travessia, pois a cada fio tecido, a cada desenho teórico concluído, há que se
juntar outro fio, construindo assim um pensamento que semelha a um mosaico em
espiral.
Um dos pontos que instiga a atenção de qualquer leitor corajoso, e também
curioso, é que nas narrativas de Guimarães Rosa não teremos personagens que se
curvam às dificuldades que lhes são impostas. Eles escavam no fundo de si mesmos
estratégias capazes de demovê-los da inércia estagnante. Logo, serão observados
personagens ativos, dotados de presença e discursos que ultrapassam o lugar social a
eles historicamente determinados. Acerca desse caráter das personagens, afirma
Guimarães Rosa:
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Este [o indivíduo, o personagem] não tem decadência, não tem entrega,
possui a técnica dos que sofrem de malária, eles reagem... Não é a literatura
de José Lins do Rêgo, dos que se entregam, dos que são vencidos na
literatura regional. Não, não são nunca vencidos.[...] o indivíduo reage, ele
supera os obstáculos, afirma-se (In: CAMACHO, 1978, p.45).
O homem talhado pela poética do mineiro Rosa – entenda-se aqui o termo
poética como a energeia textual, o objeto texto como atividade – é, como diria Antonio
Candido no ensaio “O homem dos avessos” (2006), um ser transitório, em constante
mudança, mas, sobretudo, em intenso diálogo com forças para além de si mesmo. Veja-
se o exemplo de Riobaldo, o narrador/jagunço/ex-professor de Grande Sertão: Veredas
(1956)1. Nesta obra, Riobaldo, a fim de tornar-se mais forte, assume a possibilidade de
travar um pacto com o diabo, atribuindo a este o status de detentor de forças mágicas,
capazes de transmutá-lo de simples jagunço a chefe guerreiro e vencedor.
Esse “homem transitório” é o homem moderno e pós-moderno simultaneamente.
A ele é legada a visão de um universo onde tudo está em seu devido lugar,
compartimentado, mas a ele é também concedido o livre arbítrio, o poder de enxergar
que nem tudo está num lugar prescrito, uma vez que não deveria estar e que, talvez, esta
ausência de lugar fixo seja por si só a condição sine qua non da pós-modernidade, ou
seja, o indivíduo está livre, mas preso ao seu livre arbítrio. Em entrevista concedida ao
seu tradutor alemão, Günter Lorenz, Rosa afirma que: “No sertão, cada homem pode se
encontrar ou se perder. As duas coisas são possíveis. Como critério, ele tem apenas sua
inteligência e sua capacidade de adivinhar. Nada mais” (In: COUTINHO, 1991, p.92-
94).
Os saberes na escrita literária de Rosa estão misturados, formando uma teia em
que cada elemento não pode prescindir do outro. Um exemplo importante é a
personagem Soropita, da novela “Dão-Lalalão (Lão-Dalalão)”, de Noites do sertão
(2001). Soropita muda-se com a esposa Doralda para o povoado do Ão. Nesta
localidade, ele tenta esquecer seu passado criminoso e apagar a origem de sua mulher,
uma ex-prostituta conhecida. Porém, a personagem encontra-se acossada por sua própria
consciência. Soropita não consegue se libertar do estigma de valentão, e a violência
sempre irrompe quando ele se julga ameaçado, por isso, quando surge na narrativa a
1 Esta obra não será referenciada na bibliografia, pois foi utilizada como exemplo. Ao lado, consta ano de
publicação. Para a citação de “A terceira margem do rio”, de Primeiras estórias (1962), o procedimento
foi o mesmo.
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personagem Iládio, adjetivado como preto, simiesco e rombudo, Soropita liberta seu
ódio e impõe-se pela coação violenta. Quais saberes integram este texto? Históricos,
psicológicos, biológicos, em suma, não é importante quantificá-los, nem diferenciá-lo,
visto que eles estão amalgamados.
Soropita pode ser enquadrado numa época de antes dos meados do século XX,
em que os valentões – figura de homem que se impunha pela violência corporal contra
os demais para angariar respeito – estavam em aposentadoria, ou seja, ser valentão já
não era tão lícito, isso porque os pequenos povoados já não viviam à mercê da falta de
leis regulamentadoras. A condição social de Soropita fornece material para o
encaminhamento à história do Brasil. Além do saber histórico sedimentado, há alusão
constante a vocábulos regionais, o que já começa pelo próprio nome da personagem:
Soropita, originado possivelmente do vocábulo mineiro interiorano sopitar, que
significa perder a cabeça, enlouquecer. O preconceito contra Iládio direciona o leitor
para o embate negativo entre diferenças, e o final desta novela, em que Iládio é
humilhado, denuncia a vitória do homem branco violento, o que já conduz o olhar para
a incursão pela ética da convivência humana.
Edgar Morin, no artigo “Os sete saberes necessários à educação no futuro”2,
reflete sobre sete saberes que nascem da observação das lacunas existentes nos
programas educativos. O estudioso não aponta fórmulas, mas constrói pensamentos que
procuram contemplar o que ele designa por “buracos negros da educação”, tanto é que
os saberes não são intitulados como axiomas ou conceitos fechados, mas como
categorias a serem problematizadas. Desses saberes, aquele que escolho para comentar é
a identidade humana, uma vez que se relaciona com o assunto deste artigo. Morin
destaca que a identidade humana é ignorada pela escolarização formal, ou seja, não é
discutido de modo sistemático, com o rigor de um conteúdo.
Para Morin, a diversidade e a singularidade estão na base do corpo social.
Trabalhá-las em espaço escolar, discuti-las, significa muito mais que tecer
considerações superficiais sobre o assunto, mas implica a aceitação da natureza humana:
singular e diversa ao mesmo tempo. A identidade humana é assunto de todas as ciências
e também da literatura. No entanto, nas escolas o conhecimento literário é relegado a
planos inferiores e considerado acessório por não responder a demandas pragmáticas. A
2 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EdgarMorin.pdf. Acesso em: 12 jul.2010.
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literatura faz pensar. E pensar é cansativo, requer esforço. A respeito dessa
inferiorização, Morin manifesta-se:
A literatura é para os adolescentes uma escola de vida e um meio para se
adquirir conhecimentos. As ciências sociais vêem categorias e não indivíduos
sujeitos a emoções, paixões e desejos. A literatura, ao contrário, como nos
grandes romances de Tolstoi, aborda o meio social, o familiar, o histórico e o
concreto das relações humanas com uma força extraordinária (p.6).
A força extraordinária aludida na citação pode ser observada na escrita literária
de Guimarães Rosa, pois o escritor produz sua linguagem, não a concebendo como
mero veículo de informação. O trecho a seguir descreve uma fantasia da personagem
Soropita, envolvendo sua esposa, Doralda, e o amigo Dalberto:
E estavam eles três, ali vestidos, corretos, na sala, o lampião trabalhando sua
luz quente, eles três calados, espaço de um momento, eram como não eram,
só o ar de cada um, e os olhos, os olhos como grandes pingos de chorume
amarelo sobrenadando, sobressaindo, trementes como uma geléia, que
espelhava a vinda da muda fala de fundas abelheiras de mil abelhinhas e
milhões, lavourando, seus zunidos se respondendo, à beira de escuros poços,
com reflexos de flores vermelhas se remexendo no sensivo de morna espuma
gomosa de mel e sal, percorrida por frios peixes cegos, doidos (ROSA, 2001,
p.92).
Nesta cena há força imagética dos elementos e presença dos contrários: o claro
e o escuro que se instauram na sala, o silêncio inundado de tensão e ambigüidade que
visita as fantasias de Soropita, um peixe cego, sempre em contato com a água, seus
sentimentos, mas sem dela aperceber-se. Mel e sal – elementos orgânicos, simbólicos da
vida; flores vermelhas – sangue, paixão, desperdício da vida? E somente os olhos a
tremularem na profunda escuridão que envolve a tríade: Soropita, Doralda e Dalberto.
Eis uma imagem construída pela e na linguagem.
A identidade humana e as problemáticas a ela associada, como questões do estar
no mundo, estabelecer relações e produzir discursos, existem na escrita do autor
mineiro, que não as trabalha de forma didatizante, mas de modo natural, o que conduz o
leitor ao pensamento. Morin aponta que:
Podemos, então, compreender a complexidade humana através da literatura.
A poesia nos ensina a qualidade poética da vida, essa qualidade que nós
sentimos diante de fatos da realidade. Como, por exemplo, os espetáculos da
natureza: o céu de Brasília que é tão bonito. A vida não deve ser uma prosa
que se faça por obrigação. A vida é viver poeticamente na paixão, no
entusiasmo (p.7).
É possível concluir este ensaio afirmando que a complexidade humana habita
toda literatura que se comprometa com a linguagem e com os problemas a ela
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intrínsecos. Não me refiro aqui à literatura fast food, que procura apresentar a identidade
humana encapsulada em tipos de rápida digestão, que agradam ao paladar, mas corroem
o organismo. Refiro-me à literatura substancial, que coloca os saberes em movimento e
apresenta incorporados à prosa e à poesia programas educacionais que não visam à
mediocrização do homem, mas ao seu desenvolvimento intelectual nas lacunas
apontadas por Morin. Literatura de resistência, não no sentido panfletário do termo, sim
no sentido de engajamento com o próprio ser humano e suas particularidades. E,
sobretudo, literatura de consistência, que possibilite ao leitor a restituição da palavra
enquanto elemento de instauração de mundos e, por extensão, de transformação social.
O título que adotei faz referência ao conto “A terceira margem do rio”, de Primeiras
estórias (1962). Nesse conto, um homem abandona a família para morar numa canoa,
sem maiores explicações. Seu filho é o único que fica a sua espera a vida inteira. Onde
estaria seu pai? O título da narrativa sugere que a personagem paterna entrou numa
terceira margem, a margem do processo, do devir, e é nesse local onde situamos os
saberes da escrita literária de João Guimarães Rosa.
REFERÊNCIAS
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação no futuro. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/EdgarMorin.pdf. Acesso em: 12 jul.2010.
CAMACHO, Fernando. “Entrevista com Guimarães Rosa”. Humboldt, Berna, n. 37, p.
42-53, 1978.
CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. Tese e Antítese. 5.ed. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul, 2006.
COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa e o processo de revitalização da
linguagem. In: Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1991
(Coleção Fortuna Crítica 6).
ROSA, João Guimarães. Noites do sertão. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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A ESCRITA LITERÁRIA DE JOÃO GUIMARÃES ROSA – SABERES QUE
NAVEGAM NA TERCEIRA MARGEM DO SENTIDO.
Sarah Maria Forte Diogo (UECE)
A escrita literária de João Guimarães Rosa apresenta o diálogo entre culturas, o
que contribui para uma leitura ativa. As vozes das narrativas de Rosa encenam modos
de reconhecer e construir o heterogêneo mundo do século XX, o Brasil sertanejo e a
América Latina em constante tensão entre o arcaico e o moderno. A escrita literária de
Rosa é interdisciplinar, complexa e multicultural. É possível observamos na economia
da obra rosiana diversos saberes sedimentados, como o histórico, o sociológico e o
filosófico, que perdem seu status de conteúdos diversos para integrarem-se numa
totalidade.
O filósofo Edgar Morin aponta, em artigo sobre os sete saberes necessários à
educação, a necessidade de se teorizar sobre a identidade humana. Esse saber,
relacionado à identidade, não é escolarizado, pois a instituição escolar desconsidera que
o conhecimento identitário seja fundamental, à maneira, por exemplo, da matemática ou
das ciências. Atualmente, vivemos uma época que mescla radicalismos e alienação, a
identidade encontra-se esgarçada, fragmentada, mas, paradoxalmente, os fragmentos
formam a unidade. A literatura, de acordo com o estudioso, é um dos saberes que
apresenta uma força extraordinária para que as pessoas possam conhecer a si mesmas.
A prosa do autor de Grande Sertão: Veredas muitas vezes figura na educação
escolar como símbolo da geração de 45, e seus textos são lidos como manifestação
puramente regionalista. Realizando uma aproximação entre a poética de Rosa e as
colocações de Edgar Morin, é possível advogar a necessidade de fomentar uma
educação literária mais consistente, que reduza o número de obras estudadas, a fim de se
adotar uma abordagem qualitativa dos textos. No caso de Guimarães Rosa, a leitura
deve recair sobre a construção textual a que o autor procede: manejo da língua
portuguesa, estilo, temas, força imagética que as palavras criam.
As obras ficcionais de Guimarães Rosa podem ser abordadas quanto à forma e
quanto ao conteúdo, pois em todos os seus textos literários é possível discernir a mistura
entre saberes, o que proporciona aos leitores o incremento de seu repertório cultural
aliado à construção de um pensamento crítico e reflexivo, pois o sertão de Rosa
apresenta conflitos e problemáticas da modernidade brasileira, bem como o choque
entre arcaico e moderno, ou seja, o fenômeno literário não é a realidade, mas constitui-
se enquanto uma reorganização artística desta, importando ser estudada deste modo,
enquanto construção que problematiza a identidade humana e que pode ser trabalhada
na instituição escolar.