a escravidão negra no piauí

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Escravidão Negra no Piauí e Temas Conexos

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escravidão

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  • Escravido Negra no Piaue Temas Conexos

  • Reitor UFPIProf. Dr.Vice-ReitoraProf. Dr.

    Conselho Editorial EDUFPIProf. Dr. Ricardo Alaggio Ribeiro (presidente)

    Prof Dr. Teresinha de Jesus Mesquita QueirozDes. Tomaz Gomes CampeloProf. Ms. Antonio Fonseca dos Santos NetoProf. Francisca Maria Soares MendesProf. Dr. Solimar de Oliveira LimaProf. Dr. Jos Machado Moita Neto

  • Organizador

    Joo Kennedy Eugnio

    Escravido Negra no Piaue Temas Conexos

    Teresina 2014

  • FICHA CATALOGRFICA SOLANGE HILLER HERTHZ SANTOS CRB-1058

    Escravido Negra no Piau e temas conexos/Organizador, Joo Kennedy Eugnio. Teresina : EDUFPI, 2014. 396p.

    ISBN 978-85-7463-770-9

    1. Piau Escravido Histria. 2. Negro Piau Condi-es Sociais. 3. Negros Piaui Religiosidade. 4. Negras Piau Sexualidade.I. Eugnio, Joo Kennedy.

    CDD 981.220 4

  • Sumrio

    1. Silncio, Marginalizao, Superao e Restaurao.O Cativo Negro na Historiografia Brasileira

    Mario Maestri 7

    2. Combatendo a Rebeldia: Escravizados, ProcessosCrimes e Decises Judiciais no Piau

    Dbora Laianny Cardoso Soares 53

    3. Escravido e Liberdade: A Colnia Agrcola deSo Pedro de Alcntara, a Lei do Ventre Livre e o Trabalho eEducao dos Libertos das Fazendas Nacionais do Piau

    Francisca Raquel da Costa 69

    4. Bandidos, Bbados e Desordeiros: Trabalhadores Livresno Piau Rural Escravista (1850-1888)

    Ivana Campelo Cabral 87

    5. Um Panorama da Afro-Religiosidade PiauienseRobson Cruz 111

    6. A Demanda pela (Des) Ordem: A Justia e a Lei noPiau Oitocentista

    Francisco Gleison da Costa Monteiro 125

    7. Para Alm dos Engenhos: A Escravido na Colonizao do PiauTanya Brando 151

    8. O Perfil dos Trabalhadores Escravizados de Teresina:Uma Anlise do Censo de 1872

    Genimar M. R. de Carvalho 171

    9. A Participao de Escravos e Libertos do Piau naGuerra do Paraguai 1866-1870

    Johny Santana de Arajo 191

    10. Cativos Urbanos na Vila de Peripery, 1844-1888Francisco Helton de Araujo Oliveira Filho 211

  • 11. Histria e Memria da Populao Negra: Os Escravos nosAnncios de Jornais Teresinenses no Sculo XIX

    Talyta Marjorie Lira Sousa 237

    12. Gorender: Um Historiador em Processo ouUm Historiador que a Luta Real Forjou

    Antonio Fonseca dos Santos Neto 259

    13. Negros na Capitania de So Jos do Piau, 1720-1800Mairton Celestino da Silva 269

    14. O Contexto da Chegada dos Portugueses na Costa OcidentalAfricana e a Conjuntura da Escravido Atlntica

    Artemisa Odila Cand Monteiro 289

    15. Termos rabes e Arabismos Africanos na ReligiosidadeAfro-Indgena da Grande Joo Pessoa (PB)

    Samantha de Moura Maranho 307

    16. Marcao e Demarcao de Identidades e Territrios deQuilombolas

    ureo Joo de Souza 325

    17. Literatura Afrodescendente: da Gnese dos Relatos deExperincias Escrito pelos Prprios Escravos do Brasil, Cuba eEstados Unidos Tradio da Narrativa AutobiogrficaContempornea da Dispora e no Peridico Cadernos Negros

    Elio Ferreira 357

    18. Fontes para a Histria da Escravido Negra no Piau,Sculo XIX

    Alcebades Costa Filho 379

    19. Negras e Mulatas na Vida Sexual da Famlia Piauienseno Sculo XIX

    Paulo Roberto de Carvalho Dantas 385

  • Silncio, Marginalizao, Superao e Restaurao.O Cativo Negro na Historiografia Brasileira

    Mario Maestri

    [...] a historiografia brasileira um espelho de sua prpria histria.Jos Honrio Rodrigues.

    Teoria da histria do Brasil. So Paulo: CEM, 1978. P. 32.

    1. Brasil: A Dominncia Escravista

    O Brasil foi parido, aleitado e criado pela escravido. NasAmricas, foi a nao mais acabadamente escravista. Foi um dosprimeiros territrios a introduzir a escravido e o ltimo a aboli-la.Importou o maior nmero de cativos. No teve regio que desco-nhecesse a escravido. As colnias lusitanas que se instalaram nascostas americanas vingaram apoiadas na dura explorao do tra-balhador escravizado, primeiro nativo, a seguir africano. No hou-ve esfera da sociedade que no fosse determinada pela escravido.

    No foi a lngua, a religio, a administrao centralizadaou personagens providenciais que cimentaram o unitarismo bra-sileiro. Iguais fenmenos existiam na Amrica hispnica que ex-plodiu em constelao de Estados independentes sob a pressodas mesmas foras centrfugas existentes no Brasil. Em 1822, ocentralismo e autoritarismo bragantino corresponderam s ne-cessidades da manuteno da ordem e do trfico escravistas. OEstado monrquico interpretou por 66 anos o escravismo. O Se-gundo Reinado [1840-1889] consolidou sua estabilidade atravsda defesa da escravido e ruiu quando ela desmoronou.

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    Professor titular do programa de ps-graduao em Histria da Universidade dePasso Fundo.

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    Dos 513 anos de histria do Brasil, 356 deram-se sob aordem negreira.1 A Abolio foi a nica revoluo social vitorio-sa no Brasil, ao ensejar a extino do modo de produo escravistacolonial e a transio para ordem assentada no trabalho livre.2

    Apesar da oposio escravizado versus escravizador constituir acontradio central da antiga formao social brasileira, na Co-lnia, no Imprio, na Repblica Velha, mesmo quando referido,ignorou-se o cativo como categoria explicativa do passado. O ne-gro ocupou na hierarquia terica o mesmo lugar subordinadoque ocupara na hierarquia social objetiva.3

    2. Colnia: O Protagonista Ausente

    O consenso ideolgico-cultual colonial sobre a escravi-do deveu-se plena submisso do cativo e relao umbilicalcom a explorao escravista dos primeiros idelogos das colniasluso-brasileiras em poca em que a concepo de trabalho livreencontrava-se ainda em gestao. Praticamente sem excluso,os escribas profanos coloniais eram proprietrios de trabalhado-res escravizados e altos quadros da administrao.4 O pensamen-to clerical expressou em forma apenas menos imediata s neces-sidades da escravido. nicos intelectuais profissionais da poca,relativamente independentes do escravismo, construram-se ima-gem/discurso que aparentemente os alava por cima das classes

    1 Cf. FREITAS, Dcio. O escravismo brasileiro. Porto Alegre: EST: Vozes, 1980. pp. 10-2;GORENDER, Jacob. A escravido reabilitada. So Paulo: tica, 1990. pp. 120, 138-138-40; MAESTRI, Mrio. Servido negra. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. pp. 33-4.2 Cf. MAESTRI, Mrio. A escravido e a gnese do Estado nacional brasileiro. In:ANDRADE, Manuel Correia de. [Org.] Alm do apenas moderno: Brasil sculos XIXe XX. Pernambuco: Fundao Joaquim Nabuco; Massangana, 2001. pp. 49-77; COS-TA, Emlia Viotti Da. A abolio. 8 ed. So Paulo: Ed UNESP, 2008.3 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 5 ed. So Paulo: Perseu Abramo, 2011. p. 49.4 Cf., sobretudo: BRANDO, Ambrsio Fernandes. Dilogos das grandezas do Brasil.So Paulo: Melhoramentos, 1977; GNDAVO, Pero de Magalhes de. Tratado daProvncia do Brasil. Rio de Janeiro: INL/ Ministrio da Educao e Cultura, 1965;_____. Tratado da Terra do Brasil; Histria da Provncia Santa Cruz. Belo Horizonte,Itatiaia; So Paulo: EdUSP, 1980; SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo doBrasil. 4 ed. So Paulo: CEN, 1971.

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    sociais, permitindo que interpretassem as necessidades gerais doEstado do qual dependiam. Clero e ordens eram comumente gran-des proprietrios de cativos.5

    Nos sculos 16 e parte do seguinte, os primeiros discursoslaicos sobre as colnias preocuparam-se com a descrio-apropria-o do espao; com o arrolamento dos nativos, fauna e flora; com adefesa das possesses das metrpoles europeias; com o elogio do cli-ma e a fertilidade das terras. Praticamente nada disseram sobre aescravido.6 A expanso martima e a descoberta das Amricas conso-lidaram a escravido, praticada havia sculos em Portugal.7 A vidasocial e produtiva nas colnias luso-americanas assentava-se plena-mente no trabalhador escravizado. Nesse quadro, quanto muito, aintelligentsia colonial apreendeu a instituio como fato social natural.

    No contexto da dominncia geral do Estado feudal lusita-no, assentado na diferena natural dos sujeitos, a excluso tnica,cultural, lingustica, jurdica, etc. plena do cativo da sociedadecivil facilitava a produo do monolitismo das vises escravistasde mundo que o reduziam juridicamente mera mercadoria ani-mada. O discurso religioso impugnava a escravizao de homense de comunidades singulares, jamais a instituio.

    Conscincia Possvel & Conscincia Real

    Em Ideologia e escravido: os letrados e a sociedade es-cravista no Brasil colonial, Ronaldo Vainfas lembra:

    [...] as letras coloniais, em seus incios, pouco trataram daescravido. Ausente enquanto tema, pois no foi objeto exclusi-

    5 Cf. sobretudo: ANCHIETA, Jos. Cartas. Correspondncia ativa e passiva. So Pau-lo: Loyola, 1984; CARDIM, Ferno. Tratados da terra e gente do Brasil 3 ed. So Paulo:CEN; Braslia: INL, 1978; NAVARRO, Azpilcueta et al. Cartas avulsas. 1550 1568. BeloHorizonte: Itatiaia; So Paulo: EdUSP, 1988; NBREGA, Manuel. Dilogo da conver-so do gentio. Rio de Janeiro: Ediouro, sd.; SALVADOR, Frei Vicente do. Histria doBrasil. 7 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: EdUSP, 1982.6 Cf. MAESTRI, Mrio. Storia del Brasile. Milano: Xenia, 1990. pp.34-5.7 Cf. entre outros: TINHORO, Jos Ramos. O negro em Portugal: uma presenasilenciosa. Lisboa: Caminho, 1988; LOPES, Edmundo Correia. A escravatura: subsdi-os para a sua histria. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1944.

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    vo de qualquer tratado, a escravido nem mesmo constituiuseo, parte ou captulo de algum escrito produzido na poca.8

    Ento, sequer houve interpretaes oblquas de mundoinfluenciadas pela tica do trabalhador escravizado. As vozes dis-sonantes e as contradies internas e externas narrativa con-sensual eram silenciadas por discurso monocrdio afinado pelasolidez da ordem escravista colonial. Reprimidas sistematicamen-te, as vises antiescravistas necessariamente alienadas de mundodos cativos e dos quilombolas exprimiam-se atravs de meios pre-crios de transmisso e jamais foram objeto de estudo sistemti-co. Elas encontram-se registradas na msica, em ditados, na litera-tura oral, em prticas religiosas, em documentos oficiais, sobretudodo aparato judicirio, etc.9

    Em meados do sculo 17, evoluiu o discurso sobre a escra-vido, no contexto do fortalecimento da economia colonial; dadominncia da escravido africana e da resistncia do trabalha-dor escravizado. Intelectuais clericais consolidaram as justificati-vas da instituio e discutiram as melhores condies para a pro-duo e reproduo das relaes escravistas sob a menor tensosocial possvel. As contradies postas pela objetivao da huma-nidade do cativo no ato produtivo e na resistncia e pelo princ-pio cristo da monognese da humanidade foram solucionadaspela explicao da escravido como decorrncia do pecado origi-nal e de diferenas naturais. A escravido foi apresentada comomeio de salvao de homens imperfeitos.

    Escravido Colonial: Trabalho e Resistncia

    O padre Antnio Vieira [1608-1697] identificou as con-dies de vida no engenho paixo de Cristo e apontou a sub-misso dos cativos como via de redeno:

    8 VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravido: os letrados e a sociedade escravista noBrasil colonial. Petrpolis: Vozes, 1986. p. 68.9 Cf. por exemplo: MOURA, Clvis. Rebelies da senzala: quilombos, insurreies,guerrilhas. So Paulo: Zumbi, 1959. pp. 74, 94, 107; MAESTRI, Mrio. Depoimentos deescravos brasileiros. So Paulo: cone, 1988; ASSUNO, Mathias Rhrig. A guerra dosbem-te-vis: a balaiada na memria oral. So Lus: SIDGG, 1988.

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    Em um engenho sois imitadores de Cristo Crucificado [...].Os ferros, as prises, os aoites [...] de tudo isto se compevossa imitao, que se for acompanhada de pacincia, tam-bm ter merecimento de martrio [...].10

    Ao pregar pretensamente para os cativos, Vieira tranqui-lizava sobretudo os escravistas. Propunha a submisso temporalcomo meio de redeno dos trabalhadores escravizados e justifi-cava a lgica interna do escravismo mercantil como estratgiadivina para a salvao de seres apresentados como reduzidos pelaprpria origem.

    Os padres jesutas italianos Andr Joo Antonil Cultura eopulncia do Brasil e Jorge Benci Economia crist dos senhores nogoverno dos escravos registraram o novo olhar sobre a escravidoao discutirem as melhores condies para que os cativos produzis-sem mais, sob a menor tenso social.11 A receita proposta foi a dosecerta de roupa, de comida, de castigo e de trabalho incessante. Ascontradies internas da nova narrativa, expressas na discussoda extenso e do ritmo do trabalho, registravam as contradiesobjetivas entre as exigncias da lgica mercantil-escravista e adefesa do trabalhador feitorizado de sua sobrevida [resistncia].

    Em O etope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, ins-trudo e libertado, o padre Manuel Ribeiro da Rocha registrou ecompreendeu, como preguia, a oposio permanente do cativo aotrabalho escravizado:

    Estes pretos, em todas as operaes que envolvem algumtrabalho so naturalmente frios e somente obram com fer-vor nas convenincias e interesses prprios, de sorte quequando comem suam e quando trabalham esto frescos[...].12

    10 Apud. VAINFAS, R. Ideologia e escravido. Ob. cit. p. 101.11 ANTONIL, Andr Joo. Cultura e opulncia do Brasil. 2 ed. So Paulo: Melhoramen-tos; Braslia INL, 1976; BENCI, Jorge. Economia crist dos senhores no governo dosescravos: livro brasileiro de 1700. So Paulo: Grijalbo, 1977.12 Apud. VAINFAS, R. Ob.cit. p. 122. ROCHA, M. R. Etope resgatado: empenhado,sustentado, corrigido, instrudo e libertado. Discurso teolgico jurdico. Sobre a liber-tao dos escravos no Brasil de 1758. Petrpolis: Vozes; So Paulo, CEHILA, 1992.

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    Sculo 18 O Acidente Palmarino

    Em incios do sculo 18, aps a guerra palmarina, a re-sistncia dos trabalhadores escravizados foi abordada pioneiramentepela ensastica colonial. Ela registrou a capacidade do cativo deproduzir histria, Estados e a necessidade da destruio de Palmarespara a sobrevivncia do mundo e da civilizao colonial. RochaPita elogiou o fim to til como glorioso da guerra contraPalmares.13 At meados do sculo 20, a historiografia dividiu-seentre o silncio e a descrio sumria da guerra contra Palmares,associada proposta da sua necessria destruio para a sade dacivilizao ocidental nessa regio da Amrica.14 Exorcizava assimo pesadelo da revoluo social registrado por Antnio Vieira:

    [...] seria a total destruio do Brasil, porque conhecendo osdemais negros que por este meio tinham conseguido ficarlivres, cada cidade, cada vila, cada lugar, cada engenho seri-am logo outros tantos palmares [...].15

    Onze anos aps a destruio de Palmares, reuniu-se onico snodo da Igreja colonial, do qual resultaram as Constitui-es primeiras do Arcebispado da Bahia. Elas proibiam o trabalhoescravo nos domingos e feriados e regulamentaram minuciosa-mente a catequese de africanos, incluindo severas restries stransgresses morais.16 O talvez nico Code Noir luso-brasileirojamais foi aplicado plenamente.17

    13 Cf. PITA, Rocha. Histria da Amrica portuguesa. So Paulo: EdUSP; Belo Horizonte,Itatiaia, 1976.14 Cf., entre outros: BARLEU, Gaspar. Histria dos feitos recentes praticados durante oitoanos no Brasil. So Paulo: EdUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1974; ENNES, E. Asguerras nos Palmares: subsdios para a sua histria. 1. vol.: Domingos Jorge Velho e aTria Negra. 1687-1709. So Paulo: Brasiliana, 1938; FREITAS, M.M. Reino negrode Palmares. 2 ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1988; HANDELMANN, H.Histria do Brasil. So Paulo: Melhoramentos, 1978; PITA, R. Histria da Amricaportuguesa. So Paulo: EdUSP; Belo Horizonte, Itatiaia, 1976; RODRIGUES, Nina. Osafricanos no Brasil. 5 ed. So Paulo: CEN, 1977; VARNHAGEN, Francisco A. de.Histria geral do Brasil: Antes de sua separao e independncia de Portugal. 9 ed. SoPaulo: Melhoramentos, 1978.15 VAINFAS, R. Ideologia e escravido. ob. cit. p. 124.16 Id.ib. p. 153.17 Cf. SALA-MOLINS, Louis. Le code noir ou le calvaire de Canaan. Frana: PUF, 1987.

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    No sculo 18, os intelectuais coloniais dedicaram-se defesa do trfico, da ordem e do consenso escravistas questiona-dos pela crtica iluminista e liberal-capitalista. Sequer a Revolu-o Francesa, em 1789, e a fundao do Haiti, em 1803, nicoEstado americano parido pela luta dos trabalhadores escraviza-dos, provocaram fraturas no discurso escravista.18 A proposta defim do trfico, da escravido e da discriminao quando da revol-ta baiana de 1798 foi rapidamente sufocada, no deixando traossignificativos no mundo das ideias e na historiografia. Ela noalcanou a espraiar-se minimamente entre a massa escravizadadas colnias luso-brasileiras. A subalternizao historiogrfica daRevoluo dos Alfaiates, que se mantm at hoje, deve-se sobretu-do ao seu radicalismo social.19

    A obra de Lus dos Santos Vilhena, A Bahia no sculoXVIII, escrita no contexto da Inconfidncia Baiana, registrou aincapacidade da ilustrao colonial de apreender a essncia dascontradies sociais da poca.20 A coeso do escravismo e a ne-cessidade de submisso plena dos trabalhadores escravizados ini-biam a consolidao de vises sociais alternativas, mesmo nomundo das ideias. Na sua Vigsima-quarta carta, sem ufanis-mo, Lus dos Santos Vilhena constatou que a capacidade produti-va no aproveita das capitanias luso-brasileiras. Na sua crtica,apresentou corretamente como base da riqueza do Estado a agri-

    18 Cf. GISLER, Antoine. Lesclavage aux Antilles franaises. Paris: Karthala, 1981;JAMES, C.L.R. I giacobini neri: la prima rivolta contro luomo bianco. Milano: Feltrinelli,1968. [1a. ed. 1938]; SHOELCHER, Victor. Toussaint Louverture. Paris: Karthala,1982. [1a. ed. 1889.]19 Cf. A Inconfidncia da Bahia em 1798: Devassas e seqestros. ANAIS DA BIBLIO-TECA NACIONAL, Rio de Janeiro, vol. 43-45, pp. 83-255; 3-421; Autos de devassado levantamento e sedio intentados na Bahia em 1798. ANAIS DO ARQUIVO P-BLICO DA BAHIA, Salvador, Imprensa Oficial, vol. 35-36, janeiro/junho; julho/de-zembro de 1959, pp.1-280; 281-634; JANCS, I. Na Bahia, contra o Imprio: histria doensaio de sedio de 1798. So Paulo: HUCITEC; Salvador, EdUFba, 1996; MATTOS,F. A comunicao social na revoluo dos Alfaiates. 2 ed. Salvador: Assemblia Legislativado Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 1998; RUY, Affonso. Primeira revo-luo social brasileira: 1798. 2 ed. So Paulo: CEN; Braslia, INL, 1978. [1 ed. 1942];TAVARES, Lus Henrique Dias. Histria da sedio intentada na Bahia em 1798: aconspirao dos alfaiates. So Paulo: Pioneira; Braslia, INL, 1975.20 Cf. VILHENA, Lus dos Santos. A Bahia no sculo XVIII. Bahia: Itapu, 1969. 3 vol.

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    cultura e estabeleceu a sua relao direta com a mo de obra es-cravizada empregada. Faltou-lhe apenas um passo para compre-ender que a riqueza nascia apenas do trabalhador escravizado.Acusando acertadamente a fragilidade demogrfica do Brasil comoconsequncia da pobreza de sua populao a maior parte [doscolonos] pobres, muitos deles esfaimados prope nada menosque uma Lei Agrria que dividisse o latifndio.21

    Apesar de assinalar a influncia desorganizadora da es-cravido sobre o trabalho livre, jamais questionou o trabalho es-cravizado e props manter negros e mulatos livres fora da distri-buio de terra, como jornaleiros rurais forados, ou seja, subme-tidos a relaes semi-servis. No podia compreender o homemvivendo de seu trabalho. Mesmo descrevendo em detalhes os hor-rores do trfico, definiu, como qualquer escravista, o africano comonaturalmente preguioso:

    Por natureza so os pretos de um temperamento frouxo, cos-tumados ao cio que nasceram, para o que concorre muito amaior parte das terras donde so tirados por serem mais pr-digas de produes naturais, do que geralmente se supe.

    No podia compreender que no se esforassem em pro-veito de seus exploradores!22

    3. Imprio: de Pea Necessria Inimigo Interno

    Em incios do sculo 19, dom Jos Joaquim da Cunha deAzeredo Coutinho defendeu a escravido em Anlise sobre a justi-a do comrcio do resgate dos escravos da Costa da frica.23 Na pr-Independncia, o lusitano, charqueador e escravista Antnio Gon-alves Chaves registrou, no Rio Grande do Sul, momento singu-lar da crtica liberal-iluminista ao propor a superioridade da pro-

    21 Id.ib., V 3, p. 914.22 Id.ib. p. 921.23 Cf. COUTINHO, dom Jos Joaquim da Cunha de Azeredo. Anlise sobre a justia docomrcio do resgate dos escravos da Costa da frica. Lisboa: Joo Rodrigues Neves, 1808;_____. Roteiro do Brasil: obras econmicas. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.

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    duo livre e explicar a depresso da humanidade do cativo comoresultado da escravido.24 Aps a Independncia do Brasil [1822]e, sobretudo, nos anos posteriores Abdicao de dom Pedro I[1831], a historiografia do novo imprio apresentou a escravi-do como fenmeno anacrnico destinado a ser superado em umfuturo distante, mas imprescindvel no presente ao desenvolvi-mento da nova nao da qual os cativos eram excludos constitu-cionalmente dos direitos cidados.

    Em uma traduo escravista do liberalismo, abandonou-se a justificativa bblica e natural da escravido pela defesa damesma devido ao respeito necessria propriedade legalmenteadquirida. A nova posio foi mantida alm mesmo da Abolio,com a reivindicao da indenizao dos proprietrios alienado peloEstado de propriedade reconhecida pela lei. Aps a Abolio, em1888, em nome dos escravizadores esbulhados, Souza Carneiroapresentou representao ao Parlamento:

    [...] o escravo era uma propriedade legtima, mandada desa-propriar pela Lei de 13 de Maio, que declarou extinta a escra-vido, segue-se que sem grave injustia, no pode deixar de servotada a indenizao correspondente ao valor dessa mesmapropriedade. Sem isso a mais bela, a mais humanitria lei dequantas tm sido promulgadas no Brasil, ficaria com uma desuas faces vedada pela mancha de uma espoliao injusta [...].25

    Na segunda metade do sculo 19, quando a crescente ten-so nascida da abolio do trfico transatlntico de trabalhadoresescravizados, em 1850, e da longa crise do escravismo tornou a ins-tituio a principal questo poltica e social nacional, o cativo e ocativeiro continuaram a ser vistos como percalos necessrios a se-rem superados sem rupturas sociais e econmicas, num futuro dis-tante. Na primeira metade do Oitocentos, os caminhos trilhados

    24 Cf. CHAVES, Antnio Jos Gonalves. Memrias ecnomico-polticas sobre a adminis-trao pblica do Brasil. Porto Alegre: ERUS, 1978; ASSUMPO, Euzbio. Pelotas:Escravido e charqueadas [1780 1888]. Porto Alegre: FCM Editora, 2013.25 Cf. QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Aspectos ideolgicos da escravido. ESTU-DOS ECONMICOS, So Paulo, IPE-USP, 13 (1), 1983; Apud MOURA, Clvis.Rebelies da senzala: quilombos, insurreies, guerrilhas. Ob.cit. p. 40.

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    pela historiografia foram o desconhecimento do trabalhador escra-vizado, sua subalternizao e a justificao da escravido como ne-cessidade econmica-social.

    Consenso e dissenso sobre o escravismo

    Redigida em 1810-9, a Histria do Brasil do ingls RobertSouthey [1774-1883] que jamais esteve no pas registrouapenas a existncia da escravido.26 Nos primeiros anos da Inde-pendncia, Jos da Silva Lisboa [1756-1835] desconheceu a escra-vido em sua Histria dos principais sucessos polticos do Imprio doBrasil.27 Francisco Adolfo de Varnhagen [1816-78], visconde dePorto Seguro, exemplo paradigmtico da nova leitura do cati-veiro construda quando da consolidao do Imprio. Escrita nostensos anos da abolio do trfico, em 1850, sua Histria Geral doBrasil aborda o nativo e o africano escravizados como seres inferio-res e justifica o extermnio de um e a escravizao de outro comonecessrios construo da civilizao brasileira.28 Apesar de con-siderar pioneiramente a oposio senhor versus escravo como aessncia da formao social brasileira, Jos Incio de Abreu eLima [1794-1869] justificou a expropriao-subalternizao dotrabalho escravizado.29 O mesmo fez o comerciante ingls JohnArmitage [1807-1856] que associou em sua Histria do Brasil,de 1836, autonomia unitria e manuteno da escravido.30

    Na segunda metade do Oitocentos, desde a Europa, o ale-mo Heinrich Gottffried Handelmann [1827-1891] redigiu Hist-ria do Brasil [1860] inovadora devido a sua abordagem categorial e

    26 Cf. SOUTHEY, Robert. Histria do Brasil. 4 ed. So Paulo: Melhoramentos; Braslia,INL, 1977. 3 vol.27 Cf. LISBOA, Jos da Silva. Histria dos principais sucessos polticos do Imprio do Brasil.Rio de Janeiro: Tip. Imperial e Nacional, 1825-6. 4 vol.28 Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Histria geral do Brasil: antes de suaseparao e independncia de Portugal. 9 ed. So Paulo: Melhoramentos, 1978. 3 vol.29 Cf. LOPES, L. Carlos. O espelho e a imagem: o escravo na historiografia brasileira[1808-1920]. Rio de Janeiro: Achiam, 1987. p. 41; LIMA, Jos Incio de Abreu e.Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. Niteri: Niteri de Rego, 1835; _____.Bosquejo histrico, poltico e literrio do Brasil. SL: Laemmert, 1843. 2 vol.30 Cf. ARMITAGE, John. Histria do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: EdUSP, 1981.

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    no apenas factual. O fato de viver quando do exrdio do capitalis-mo, de ter escrito livros sobre o Haiti e os USA e de propor a supera-o do escravismo atravs da introduo de camponeses proprietri-os permitiu-lhe ocupar-se amplamente da escravido, sem transfor-mar o cativo em polo interpretativo de sua leitura.31 As contradiesde Handelmann expressam-se nas concluses sobre Palmares:

    Deveramos lamentar-lhe [sua] triste sorte, porm a suadestruio foi uma necessidade. Uma completa africanizaode Alagoas, uma colnia africana de permeio aos Estadoseuropeus escravocratas, era coisa que no podia de todo sertolerada, sem fazer perigar seriamente a existncia da colo-nizao branca brasileira; o dever da prpria conservaoobrigava a extermin-la [...].32

    Em 1866-8, com o acirramento da questo servil, o ad-vogado Agostinho Marques Perdigo Malheiro [1824-1881],prximo ao Imperador, escreveu o primeiro tratado sistemticoda escravido brasileira. Em A escravido no Brasil: ensaio histri-co, jurdico, social [1866], registrou o Brasil como pas de escra-vos e senhor de escravos; a plena excluso do cativo da cidada-nia; a oposio estrutural do cativo ao cativeiro. Tais avanos noresultaram em reconhecimento social e terico do trabalhadorescravizado. Perdigo Malheiro jamais se juntou ao abolicionista,preocupando-se sobretudo com a transio gradualista e a reor-ganizao da fora de trabalho no pas.33

    A expresso cultural mais acabada da resistncia servil eda ruptura de setores livres com a escravido, interpretando asnecessidades subjetivas da populao escravizada, deu-se na poe-sia, com a defesa radical de Antnio Francisco de Castro Alves[1847-1871] do fim do cativeiro, se possvel atravs da ao dostrabalhadores escravizados. A atuao do jovem poeta deu-se jplenamente inserida no movimento pela abolio da escravatura.34

    31 Cf. HANDELMANN, H. Histria do Brasil. So Paulo: Melhoramentos, 1978. 2 tomos.32 Id.ib. vol. 1, pp. 308-13.33 Cf. LOPES, L. Carlos. O espelho e a imagem. Ob.cit. p. 7134 Cf. MAESTRI, Mrio. A segunda morte de Castro Alves: genealogia crtica de umrevisionismo. 2 ed. Revista e ampliada. Passo Fundo: EdiUPF, 2011.

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    A literatura ficcional em prosa expressou igualmente leituras nemque fosse indiretamente influenciadas pelo mundo do trabalho deento, comumente j partes do movimento antiescravista, em ge-ral incompreendidas pelos analistas contemporneos.35

    4. Repblica Velha: de Escravo Negro

    Quando da crise final da escravido, Joaquim Nabuco[1849-1910] foi o intrprete excelente do abolicionismo mode-rado.36 Apesar de reconhecer em O abolicionismo [1883] o traba-lhador escravizado como construtor do Brasil, apresentou pro-posta que marginalizasse o cativo do processo da superao daordem escravista. conhecida sua afirmao de que a propa-ganda abolicionista no devia se dirigir aos escravos, em sen-tido inverso da pregao de Castro Alves.37

    Em maio de 1888, a concluso vitoriosa da revoluo abo-licionista propiciou transformao revolucionria na formao so-cial brasileira.38 O modo de produo escravista colonial e as rela-es escravistas de produo dominantes foram extintas e supe-radas por modos e formas dspares apoiadas no trabalho juridica-mente livre. A escravido foi ultrapassada como questo socialobjetiva e o discurso sobre o cativo se metamorfoseou em narrati-va etnolgica, antropolgica e naturalista sobre o negro, em ge-ral de cunho racista.

    As novas representaes sobre o passado escravista en-cobriram a essncia da antiga formao social escravista e a meta-

    36 Cf. MOURA, Clvis. Rebelies da senzala: quilombos, insurreies, guerrilhas. SoPaulo: Zumbi, 1959. pp. 36-8.37 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. 4 ed. Petrpolis: Vozes; Braslia, INL, 1977. P. 25.38 Cf. FREITAS, Dcio. O escravismo brasileiro. Porto Alegre: EST: Vozes, 1980;GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1981; _____. Aescravido reabilitada. So Paulo: tica, 1990. Captulo 9. A Revoluo Abolicionista;COSTA, Emlia Viotti Da. A abolio. Ob.cit; MAESTRI, Mrio. 1888: A RevoluoAbolicionista no Brasil. Revista (In)visvel, v. 1, p. 41-48, 2012. http://revistain-visivel.com/wp-content/uploads/2012/10/artigo-mario-maestri-invisivel-um.pdf

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    morfose que as relaes de produo e de propriedade viveramquando de sua extino, para melhor justificarem as novas for-mas de dominao.

    Apoiado no racismo antinegro parido por mais de trssculos de escravido, o racismo cientfico interpretou as neces-sidades da gesto republicana dos segmentos sociais negros e mes-tios subalternizados pelas classes dominantes brancas, ou que sepropunham brancas.

    Em sua Histria da literatura brasileira, de 1888, SlvioVasconcelos da Silveira Ramos Romero [1851-1814] registroue criticou a despreocupao com o estudo das culturas-lnguasafricanas e do papel do negro na civilizao nacional; reconhe-ceu a construo do Brasil pelo trabalho do cativo; explicou aescravido devido adaptabilidade do africano ao trabalho nosTrpicos tese a seguir abraada por Gilberto Freyre; defendeua inferioridade racial do negro e, consequentemente, do povobrasileiro, devido a sua ampla mestiagem.39

    Entre a Monarquia e a Repblica, igualmente influenci-ado pelas ideologias imperialistas europeias do determinismo ge-ogrfico e do racismo cientfico, o historiador cearense JooCapistrano Honrio de Abreu [1853-1827] pouco se preocu-pou com o trabalhador escravizado nas suas principais obras Caminhos antigos e Povoamento do Brasil. Tambm para ele a es-cravido nascera do aproveitamento da resistncia fsica do ne-gro ao trabalho duro.40

    O Negro, o Cativo e a Escola Baiana

    Dezesseis anos aps a Repblica, o mdico mulato ma-ranhense Raimundo Nina Rodrigues [1862-1906] publicou es-tudo sobre os fatos palmarinos: A Tria negra: erros e lacunasda histria de Palmares. Radicado em Salvador e consagrado

    39 Cf. LOPES, L. Carlos. O espelho e a imagem. Ob.cit. Rio de Janeiro: Achiam, 1987. p. 92.40 CAPISTRANO DE ABREU, Joo. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Rio deJaneiro: Briguiet, 1930; _____. Captulos da histria colonial. [1500-1800]. 6 ed. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira; Braslia: INL, 1976.

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    como cientista social por seus trabalhos sobre a histria e a cul-tura afro-brasileira41, fundou a Escola Baiana integrada por in-telectuais excelentes como o mdico Arthur Ramos de ArajoPereira (1903- 1949)42, o mdico Jlio Afrnio Peixoto [1876-1947] e Edison de Souza Carneiro (1912- 1972).43 A obra e o su-cesso de Nina Rodrigues so exemplos da determinao classistadas leituras do passado escravista. Apesar de interpretar com sen-sibilidade a formao social pr-Abolio, ele abraou os princpi-os eugenistas e social-darwinistas.44

    A negao do carter econmico-social central do tra-balho escravizado e a justificao da escravido davam-se agora apartir dos axiomas do racismo cientfico, expresses ento emvoga das cincias sociais imperialistas. Nina Rodrigues foi claro:A raa negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seusincontestveis servios nossa civilizao, por mais justificadasque sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da es-cravido, por maiores que se revelem os generosos exageros dosseus turiferrios, h de constituir sempre um dos fatores da nossainferioridade como povo.45Ao escrever pginas iluminadas sobrePalmares, justificou sua destruio:

    A todos os respeitos menos discutvel o servio relevanteprestados pelas armas portuguesas e coloniais, destruindo deuma vez a maior das ameaas civilizao do futuro povobrasileiro, nesse novo Haiti, refratrio ao progresso e inacess-vel civilizao, que Palmares vitorioso teria plantado nocorao do Brasil.

    41 Cf. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 5 ed. Reviso e prefcio de HomeroPires. So Paulo: Companhia Nacional, 1977. [Brasiliana, 9].42 RAMOS, Arthur. O negro brasileiro: ethnographia religiosa e psychanalyse. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira., 1934; _____. Loucura e crime. Porto Alegre: Livraria doGlobo, 1937; _____. O negro na civilizao brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudan-te do Brasil, 1956.43 Cf. CARNEIRO, dison. O Quilombo de Palmares. 3 ed. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1966; _____. Ladinos e crioulos: estudos sobre o negro no Brasil. Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, 1964.44 Cf. MAESTRI, Mrio. Benjamin Pret: um olhar heterodoxo sobre Palmares.MARGES, CRILAUP, Presses Universitaires de Perpignan, 18, Perpignan, 1997, pp.159-88.45 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. 5 ed. So Paulo: CEN, 1977. p. 7.

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    Na virada do sculo, em seu clssico Os sertes, EuclidesRodrigues da Cunha (1866-1909) retomou de Nina Rodrigues aspropostas racistas e biologistas e a caracterizao de Antnio Con-selheiro. Republicano extremado, via a escravido, os mestios eos negros como fatos pertencentes a um mundo superado pormodernidade que nascia da crescente introduo no pas da tec-nologia moderna e, sobretudo, de imigrantes de raas superiores.Portanto, descartava transformaes sociais efetivas.46 Na intro-duo de Os sertes, prognosticou a rpida substituio das raasmestias inferiores por grupos arianos excelentes:

    Intentamos esboar, palidamente embora, ante o olhar defuturos historiadores, os traos atuais mais expressivos dassub-raas sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a suainstabilidade de complexus de fatores mltiplos e diversamentecombinados, aliada s vicissitudes histricas e deplorvelsituao mental em que jazem, as tornam talvez efmeras,destinadas prximo desaparecimento ante s exignciascrescentes da civilizao e concorrncia material intensivadas correntes migratrias que comeam a invadir profun-damente a nossa terra.47

    Representaes dos Oprimidos Rupturas Silenciadas

    Nas primeiras dcadas da Repblica, enquanto o racismocientfico era elevado ao status de cincia oficiosa, se no oficial,silenciavam-se os raros autores que divergiam das avaliaes ge-rais do papel do cativo no passado, interpretando, no mundo dasrepresentaes do passado, tambm as classes trabalhadoras livresque ento lutavam duramente contra a submisso em que erammantidas. Em O Brasil na Amrica: caracterizao da formao bra-sileira, o mdico Manuel Jos do Bomfim [1868-1932] realizouradical leitura da escravido. Criticou as teorias raciais como so-fisma abjeto do egosmo humano. Apontou a capacidade e apti-do para o progresso social dos negros escravizados expressas em

    46 Cf. MAESTRI. Castro Alves. Ob.cit.47 CUNHA, E. da. Os sertes: campanha de canudos. 4 ed. corrigida. Rio de Janeiro:Francisco Alves; Paris: Aillaud, Alves, 1911.

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    Palmares.48 Ao estudar a sociedade americana a partir do parasi-tismo das metrpoles, Manuel Bomfim definiu a escravido dosafricanos como a forma de parasitismo social mais completa e otrabalhador escravizado como a vtima do parasitismo.49

    Descendente de cativos, rfo, professor, jornalista, fun-cionrio pblico, pintor de paredes, etc., Manuel RaimundoQuerino [1851-1923] valorizou a contribuio do cativo e doafro-brasileiro civilizao nacional.50 Em O colono preto comofator de civilizao brasileira,51 definiu o trabalhador escravizadocomo heri do trabalho e assinalou pioneiramente o suicdio,fugas, quilombos e justiamentos como resistncia social. Esten-deu sua crtica prpria linguagem descritiva das relaes sociaisna antiga formao social escravista brasileira. Manuel Querinofoi uma espcie de intelectual orgnico dos subalternizados quedesenvolveu sua produo intelectual margem da vida intelec-tual dos intelectuais das classes dominantes. Ao igual que Manu-el Bomfim, o radicalismo de sua leitura levou a que ela no tivesseseguimento imediato nas cincias sociais brasileiras.52

    5. Subordinao e Populismo: de Gilberto Freyre a dison Carneiro

    Em 1922, a fundao do PCB ensejou que as classes traba-lhadoras do Brasil se propusessem, por primeira vez, subjetivamente,como alternativa poltica global no Brasil, sem igual correspondnciano mundo social e poltico objetivo. A partir dos anos 1930, os traba-lhadores estrearam em forma explcita no cenrio nacional em cons-truo, devido superao da ordem federalista e ao salto da inds-tria nacional, centrada inicialmente sobretudo no Rio de Janeiro, So

    48 Cf. BOMFIM, Manoel. [1868-1932]. O Brasil na Amrica: caracterizao da forma-o brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.49 Cf. LOPES, L. Carlos. O espelho e a imagem. Ob.cit. p. 107.50 Cf. QUERINO, Manuel Raimundo. As artes na Bahia. Bahia: Artes e Ofcios, 1906;A Raa Africana e os seus costumes. Salvador: Progresso, 1955.51 Cf. QUERINO, Manuel Raimundo. O colono preto como factor de civilizao brasileira.Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1918.52 Cf. LOPES, L. Carlos. O espelho e a imagem. Ob.cit. P. 110.

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    Paulo e Rio Grande do Sul, sem conquistarem espao poltico e ideo-lgico autnomo. As contradies sociais postas pela nova realidadegeraram o reconhecimento de uma maior importncia do trabalha-dor escravizado no passado, compreendido entretanto como cate-goria complementar e subordinada de explicaes mais complexas dasociedade nacional. Em 1933, da tica das classes dominantes, prin-cipalmente nordestinas, Gilberto Freyre registrou marginalmentea nova viso em Casa Grande & senzala.

    Em obra de sucesso internacional, Gilberto de MelloFreyre (1900-1987) descreveu o mundo que atravs de mestiagemde sangue e cultura aclimatou os valores ocidentais cristos aostrpicos. A mestiagem no fora, portanto, empecilho, mas condi-o para a civilizao do mundo americano, ainda que imperfeita,devido incapacidade do europeu, segundo ele, de trabalhar fisi-camente nos trpicos. Para ele, o patriarcalismo luso-cristo pariraordem escravista tendencialmente benigna, no passado, e sociedademultirracial, no presente. A contribuio hierarquizada das raasfundadoras da nacionalidade portuguesa, americanas e africana justificava o governo das classes dominantes brancas e punha fim hipoteca lanada sobre a nao pelo racismo cientfico.53

    A partir de 1937, por quase dez anos, a ditadura varguistamanteve em camisa-de-fora o movimento social e deprimiu astentativas de express-lo no mundo das ideias. Nesses anos, aleitura de Gilberto Freyre e de seus epgonos transformou-se emideologia oficial, sobretudo quando a derrota do nazi-fascismoimpugnou as interpretaes racistas, defendidas por intelectuaisde destaque brasileiros ainda nos anos do ps-guerra.54

    Nos anos imediatos redemocratizao do Brasil [1945],manteve-se a hegemonia das posies colaboracionista no mun-

    53 Cf. FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formao da famlia brasileira sob oregime de economia patriarcal. 14 ed. Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 1969. 2 v; MAESTRI,Mrio. Gilberto Freyre: da Casa-Grande ao Sobrado: gnese e dissoluo do patriarcalismoescravista no Brasil. CADERNOS IHU, ano 2, n. 6, 2004, Instituto Humanitas Unisinos,So Leopoldo. 31 pp., http://www.ihu.unisinos.br/cadernos-ihu?start=3054 Cf. VIANA, Oliveira. Raa e assimilao. Rio de Janeiro: Jos Olmpio, 1959;GORENDER, Jacob. A escravido reabilitada. So Paulo: tica, 1990. p. 13.

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    do do trabalho, impulsionadas pelo PCB, sob o grilho stalinista.Elas haviam se articulado em torno do apoio ao desenvolvimen-tismo burgus, antes do incio da Guerra Mundial, e do apoio aosAliados, aps a invaso da URSS. Quando explicitou a importn-cia da economia escravista, o novo revisionismo historiogrficopecebista jamais colocou o trabalhador escravizado como centrode suas interpretaes.

    Edison Carneiro Um passo importante

    Em 1946, o advogado baiano dison Carneiro publicouo livro Guerras de los Palmares, concludo em 1944, na editoramexicana Fondo de Cultura Econmico. O trabalho constitui gui-nada na historiografia palmarina e tomada de posio poltica.Reconhecido pesquisador da cultura afro-brasileira, o autor mili-tava no PCB e participara da oposio intelectual ao Estado Novo[1937-1845]. Em 1947, aps a redemocratizao, a Editora Bra-siliense, do historiador marxista Caio Prado Jnior, publicou Oquilombo dos Palmares (1630-1695), com amplo sucesso.55 A edi-o brasileira foi dedicada a Astrojildo Pereira e a Manuel DieguesJnior. Fundador do PCB e seu principal lder de 1925 a 1930,Astrogildo Pereira fora o primeiro intelectual brasileiro a reco-nhecer o carter classista da luta palmarina, em 1 de maio de1929, no jornal A Classe Operria, porta voz daquele partido.56

    dison Carneiro no revolucionou as definies da natu-reza dos quilombos, que via como reao negativa de fuga e dedefesa, ou da formao palmarina, que, como Varnhagen e NinaRodrigues, qualificou de Estado negro semelhana dos muitosque existiram na frica, no sculo XVII.57 Como Handelmann,dison Carneiro descreveu os horrores do cativeiro. Como Ro-

    55 OLIVEIRA, Waldir Freitas. Apresentao. CARNEIRO, dison. O quilombo dosPalmares. 4 ed. fac-similar. So Paulo: CEN, 1988. p. vi.; sobre quilombos, ver:FIABANI, Adelmir. Mato, palhoa e pilo: o quilombo, da escravido s comunidadesremanescentes (1530-2004). 2 ed. So Paulo: Expresso Popular, 2009; GOMES, Fl-vio. Mocambos de palmares: histrias e fontes, sc. XVI-XIX. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010.56 OLIVEIRA. Apresentao. Ob.cit. pp. v-xv.57 CARNEIRO, dison. O quilombo dos Palmares. 4 ed. Ob.cit. p. 32.

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    cha Pita e Nina Rodrigues, lembrou a valentia palmarina. Masafastou-se desses autores ao no elogiar a destruio de Palmares.Ao referir-se a Domingos Jorge Velho, negou ao chefe bandei-rante a glria se alguma houve de haver reduzido o Maca-co. Por primeira vez, questionava-se o carter positivo e pro-gressivo da destruio da confederao, ainda que obliquamente.

    Carneiro no aprofundou a definio de Astrojildo Pereirade Palmares como autntica luta de classes. No viu o confrontocomo episdio da contradio essencial antiga formao socialbrasileira, que jamais definiu como uma formao social escravista.

    O Passado Escravista e a Esquerda populista

    O quilombo de Palmares era eivado de referncias ao m-todo, sociologia e ao jargo marxista sntese dialtica, ati-vidades produtivas materiais, tomada do poder, insurreioarmada, batalha da produo, etc. Possua tambm categorias,temas e periodizaes prprios leitura nacional e popular dopassado brasileiro. Carneiro apresentava a insurreio anti-ho-landesa; os movimentos nativistas; a pobreza dos moradores,etc. com simpatia. Certamente no podia compreender como avitria palmarina um pedao da frica transplantado para oNordeste avanaria a histria do Brasil. Na poca, tal dificul-dade era impasse metodolgico das prprias cincias sociais bra-sileiras de orientao marxista, no apenas pecebistas.

    Em 1946, dison Carneiro fazia parte da pequena e ati-va franja de intelectuais de inspirao marxista que compartilha-va a leitura nacional-populista da realidade nacional. Essa leituraapoiava as propostas frente-populistas, anti-fascistas e de unionacional que o PCB desenvolvera desde 1937 e continuou a de-fender no imediato ps-guerra, como apenas assinalado.

    Nos anos 1940 e 1950, as concepes historiogrficasnacional-populistas, fortalecidas pelo desenvolvimentismo bur-gus, assumiriam carter quase hegemnico na esquerda brasi-leira com contribuies de pensadores brilhantes como NlsonWerneck Sodr [1911- 1999], Alberto Passos Guimares [1908-

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    1993], Caio Prado Jnior [1907-1993], entre outros, todos mi-litantes do PCB.

    Essa gerao via a formao social brasileira como reali-dade quase teleolgica, constituda essencialmente desde a Des-coberta. A antiga formao social brasileira era apontada comoformao sui-generis, na qual relaes semifeudais apoiavam-setambm no trabalho escravizado. Assim sendo, no sculo 20, adestruio daqueles resqucios sociais arcaicos e a plena hegemoniada ordem capitalista assumiriam sentido progressista. Ainda em1963, em clssico dessa vertente analtica, Alberto Passos Gui-mares propunha:

    A despeito do importante papel desempenhado pelo capitalcomercial na colonizao de nosso pas, ele no pode desfru-tar aqui a mesma posio influente, ou mesmo dominante,que havia assumido na metrpole; no conseguiu impor sociedade colonial as caractersticas fundamentais da eco-nomia mercantil e teve de submeter-se e amoldar-se estru-tura tipicamente nobiliria e ao poder feudal institudos naAmrica Portuguesa.58

    A contradio escravizadores versus escravizados era des-conhecida em prol da oposio grandes proprietrios versus ho-mens livres pobres. Dessa constatao histrica, propunha-se aaliana das classes trabalhadoras burguesia progressista em proldo fim das supervivncias semifeudais do pas, como assinalado.Era a poltica conformando as cincias sociais, em vez desta lti-ma orientar a primeira. Poltica que levaria, mais tarde, derrotahistrica dos trabalhadores, sem resistncia, de 1964.

    6. Fraturas sem Continuidade: de Benjamin Pret a Clvis Moura

    Nos anos 1950, a situao poltica internacional foi aba-lada pela morte de Josef Stalin [1879-1953]; pela luta an-

    58 GUIMARES, Alberto Passos. Quatro sculos de latifndio. 3 ed. Rio de Janeiro: Paze Terra, sd. P.22.

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    ticolonial Arglia, Vietn, dentre outros acontecimentos; pelavitria da Revoluo Cubana [1959]. Tambm no Brasil, o for-te avano das lutas sociais e nacionais refletiu-se no mundo dasideias. Um intelectual no-brasileiro permitiu ruptura de senti-do ontolgico nas leituras da antiga formao social, que noteve, porm, consequncias imediatas nas cincias sociais bra-sileiras. Em 1956, Benjamin Pret [1899-59] publicou o ensaioQue foi o quilombo de Palmares? baseado no livro de Carneiro,revolucionado a leitura da escravido no Brasil.59

    Benjamin Pret nascera na Frana, em 1899, no seio defamlia modesta. Jovem rebelde, em 1917, foi arrolado pela meno Exrcito. Nesses anos, escreveu seus primeiros poemas. Em1920-25, ligou-se vanguarda potica surrealista francesa LouisAragon, Andr Breton, etc. que mobilizou-se contra a interven-o francesa no Marrocos e aderiu ao Partido Comunista Fran-cs em 1926-7. Em 1927, casou com Elsie Houston, cantora lri-ca brasileira, cunhada do jovem comunista Mrio Pedrosa. Em1928, com a burocratizao da URSS, os surrealistas afastaram-se do PCF, sem romper com o comunismo. Em 1929, Pret apro-ximou-se da Oposio Internacional de Esquerda, impulsionadapor Len Trotsky, e viajou com a esposa ao Brasil, onde estudouas artes populares e primitivas, relacionou-se com o movimentomodernista e com a Liga Comunista do Brasil, associada Opo-sio Internacional de Esquerda [trotskista].

    O Livro Perdido da Revolta da Chibata

    No Brasil, Pert publicou treze artigos sobre as religiesafro-brasileiras; redigiu prefcio para livro sobre o EncouraadoPotemkin; escreveu livro sobre a Revolta da Chibata [1910]. Emnovembro de 1931, aps o nascimento de seu filho, a polcia getulistaprendeu-o, deportou-o e destruiu a edio e os originais do seulivro Almirante negro, do qual no teria sobrevivido exemplar. Devolta Frana, militou na seo francesa da OIE e, em 1936, lutou,

    59 PRET, Benjamin. Que foi o quilombo de Palmares?. Revista Anhembi, So Paulo,abril e maio, 1956.

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    na Espanha, nas milcias antifascistas do POUM e, a seguir, nasbrigadas anarquistas. Retornou Frana em meados de 1937 e foimobilizado em 1939, sendo preso por agitao no Exrcito.

    Com a vitria alem, fugiu para Marselha e, dali, para oMxico, onde viveu oito anos militando e estudando a culturapr-colombiana. Em 1946, com a viva de Trotsky, rompeu coma IV Internacional, mantendo a adeso ao trotskismo. Em 1948-54, na Frana, doente e com problemas econmicos, trabalhoucomo revisor. Chegou ao Brasil em junho de 1955, a convite deGeyser Pret, seu filho brasileiro, propondo ou sendo convidadoimediatamente a escrever pequeno livro sobre uma espcie derepblica negra de escravos fugidos no sculo XVII. Concluiu otexto em incios de setembro. No norte do Brasil, recolheu mate-riais sobre as comunidades indgenas e populares. Em incios de1959, voltou Frana, falecendo no mesmo ano.60

    Lamentando a Derrota de Palmares

    No texto sobre Palmares, Pret definiu a luta pela li-berdade como motor da histria e analisou duas grandes ques-tes: a caracterizao e o sentido da luta de Palmares. Basean-do-se no mtodo marxista, procurou definir o carter da confe-derao palmarina a partir do princpio da necessria determi-nao da forma de governo pela base material. Corrigiu a defi-nio de Carneiro da fuga como ato negativo; criticou a pro-posta de origem africana do Estado palmarino; props perio-dizao da evoluo, da gnese, da maturao e da crise dePalmares durante os [seus] dois teros de sculo, a partir dereflexes lgicas e metodolgicas.

    Mesmo os historiadores cativados pelo herosmo palma-rino festejaram sua destruio como necessria sobrevida doEstado luso-brasileiro. Pioneiramente, Pret apresentou Palmares

    60 Cf. PONGE, Robert. Benjamin Pret: do surrealismo a Palmares. Cf. PRET, Ben-jamin. O Quilombo dos Palmares. Organizao, ensaios e estudos complementares: MrioMaestri e Robert Ponge. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002.

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    como saga popular e foi muito alm da no celebrao de seu fim.Negou possibilidade de construo e desenvolvimento das comu-nidades palmarinas no seio da formao social escravista, em ve-lada crtica proposta stalinista da construo do socialismo empases isolados. Na histria no haveria possibilidade de contem-porizao entre oprimidos e opressores. A sade de Palmares en-contraria-se na destruio da escravido, salto qualitativo no pro-cesso de civilizao nacional. Ensaiava espcie de revoluocopernicana ao ver o passado do Brasil como produto da oposi-o irreconcilivel de escravizadores e escravizados e exigir a des-truio da ordem escravista.

    Revoluo Abolicionista para Avanar a Histria

    Para Pret, Palmares teria sobrevivido e se metamorfo-seado apenas se tivesse arrastado todos os negros a um combatepela abolio da escravatura. Ao ressaltar a necessidade histri-ca da destruio do cativeiro, discutiu as razes de os palmarinosno proporem conscientemente a luta antiescravista, abordandotambm pioneiramente a questo da conscincia possvel dos tra-balhadores escravizados, determinada necessariamente pela basematerial da produo escravista. Pret assinalou a desigualdadeda oposio entre Palmares e as formaes europeias inseridas nadiviso internacional do trabalho. Acreditava que sequer umaimprovvel insurreio geral em Pernambuco e Alagoas garanti-ria a vitria dos palmarinos. Porm assinalou que mesmo derro-tada aceleraria a emancipao dos escravos, apressando gran-demente a abolio da escravatura.

    Seu ensaio esboava compreenso singular dos fenme-nos histricos para a poca, ao propor que a contradio essenci-al da antiga formao social brasileira fosse a oposio inconcili-vel entre escravizadores e escravizados. Que a destruio da or-dem negreira fosse necessria ao progresso da formao socialluso-brasileira. Entretanto, a reviso radical de Pret da antigaformao social luso-brasileira no era correspondida por corre-lao de foras no mundo social que permitisse entranhar razesnas cincias sociais do Brasil de ento, ensejando novas leituras

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    que a aprofundassem e a superassem. Apesar de conhecido, o en-saio permaneceu por dcadas semi-ignorado e sem consequnciasefetivas. Conheceu reedio quase meio sculo aps sua publicao.61

    Clvis Moura Luta de Classes e Escravido

    Que a redao, publicao e divulgao de leituras hete-rodoxas sobre a formao social brasileira, inspiradas pelas ne-cessidades do mundo do trabalho, tenham conhecido toda sortede empecilhos comprova-nos a disposio do jovem Clvis Steigerde Assis Moura (1925- 2003) de empreender, em 1948, pesquisasobre a luta dos trabalhadores escravizados. Apesar de ter con-cludo seu hoje clebre trabalho, em 1952, e de ter acesso direto principal editora de esquerda de ento, seu livro foi lanado ape-nas em 1959 por editora alternativa de breve existncia.62

    Em maro de 1949, ao consultar o conhecido historia-dor comunista Caio Prado Jnior, proprietrio da poderosa Edi-tora Brasiliense, sobre seu projeto de abordar em livro as revol-tas de escravos no Brasil, Clvis Moura foi vivamente dissuadi-do por Prado Jnior de prosseguir na sua proposta, devido a even-tuais dificuldades logsticas e pouca relevncia do projeto. Emcarta, Caio Prado, mesmo afirmando no pretender desanim-lo, aconselhou-o a procurar a sua volta assuntos de maior inte-resse, como a vida no serto, a populao e as tradies lo-cais. Recomendara-lhe, se fosse realmente comunista, queempregasse seu esforo de escritor [...] para resolver os gran-des problemas humanos da misria e da explorao, comeandocom os problemas, as misrias e a explorao que encontrariaa sua volta, em Juazeiro.63

    Trs anos mais tarde, em 1952, Caio Prado devolvia comatraso os originais do livro, em carta que elogiava o trabalho

    61 Cf. PRET, Benjamin. O Quilombo dos Palmares. Organizao, ensaios e estudoscomplementares: Mrio Maestri e Robert Ponge. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002.62 MOURA, Clvis. Rebelies na senzala: quilombos, insurreies, guerrilhas. SoPaulo: Zumbi, 1959.63 Carta de Caio Prado Jnior a Clvis Moura, So Paulo, 8 de maro de 1949. [exem-plar xerocopiado fornecido por Clvis Moura.]

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    como grande contribuio para assunto que anda esparso emnossa literatura histria e por abordar aspectos de conjunto daluta dos escravos que ainda no foram tratados de maneira siste-matizada.64 Porm, aps lamentar a ausncia de maior desenvol-vimento do item sobre os ensinamentos para o nosso povo ea no abordagem do movimento abolicionista no sul do pas,Caio Prado Jnior comunicava que a Brasiliense no podia assu-mir previso de publicao, j que, por questo comercial e finan-ceira, estava envolvido com as obras programadas e com as edi-es de Monteiro Lobato, diga-se de passagem, adepto das teo-rias do racismo cientfico.65

    Devido negativa de publicao, o livro seria lanado,apenas sete anos mais tarde, em 1959, sob o ttulo Rebelies dasenzala: quilombos, insurreies, guerrilhas, pelas Edies Zum-bi, pequena casa editorial fundada pela militante comunistaAntonieta Dias de Moraes, para publicar livros rejeitados pelaEditora Vitria, do PCB. O comunista e artista plstico OtvioArajo assinava a capa do livro. Nesse ento, Clvis Moura traba-lhava como jornalista do dirio comunista baiano O Momento.66

    No trabalho, ainda em parte dependente da viso cultu-ralista da escravido negra como produto da inadaptabilidade donativo ao cativeiro e agricultura, Clvis Moura assinalou que oestabelecimento da escravido veio subverter em suas bases o re-gime de trabalho at ento dominante e que essa transforma-o se expressara em todas as formas de manifestao da vidasocial. No mesmo sentido de Pret, propunha a dominncia socialda escravido, assinalando que, do ponto-de-vista sociolgico, ainstituio cindira a sociedade colonial em duas classes fundamen-tais e antagnicas: uma constituda pelos senhores de escravos, li-gados economicamente [...] Metrpole; outra constituda pelamassa escrava, inteiramente despojada de bens materiais, que for-

    64 Carta de Caio Prado Jnior a Clvis Moura, So Paulo, 21 DE JULHO DE 1952.[exemplar xerocopiado fornecido por Clvis Moura.]65 Cf. MAESTRI, Mrio. O presidente negro pintou-se de branco e alisou o cabelo.http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5601:submanchete170311&catid=29:cultura&Itemid=6166 Depoimento oral de Clvis Mouras em So Paulo, em sua residncia, em 30.09.2001.

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    mava a maioria da populao do Brasil-Colnia e era quem produ-zia toda [sic] a riqueza social que circulava nos seus poros.67

    Escravismo Brasileiro

    Clvis Moura rompia com as leituras da historiografia tra-dicional e com as vises defendidas por intelectuais de destaque doPCB ao propor que a imensa massa escrava impulsionara a eco-nomia colonial e esmagara quase inteiramente o trabalho livreque existira antes do seu aparecimento. Nesse sentido, lembravaque economia brasileira assentava suas bases na grande agricul-tura monocultora, no trabalho escravo produzindo para os senhoresde terras e engenhos, sob o monoplio comercial da Metrpole.68

    Em forma unvoca, ressaltava o carter escravista da anti-ga formao social brasileira. Ao analisar a produo mercantil daBahia em incios do sculo 19, lembrava que era toda baseada notrabalho escravo e que as relaes escravistas determinavam todoo conjunto da sociedade baiana da poca. Assinalava que os es-cravos, os pequenos lavradores, sitiantes, pecuaristas, intelectuais eartesos viviam asfixiados pelos senhores de engenhos e escravosque usufruam vantagens desse sistema de economia colonial.69

    Clvis Moura superava as vises tradicionais para defi-nir o carter escravista e colonial da antiga formao social bra-sileira, destacando as contradies essenciais do passado pr-1888e a importncia fulcral da Abolio, que apresentou, em ltimainstncia, como decorrncia da extino do trfico transatlnti-co, em fina percepo: A extino do trfico garroteou as forasescravocratas, cortando-lhes as razes econmicas, deixando-assem possibilidade de prolongar por muitas geraes a escravi-do.70 Esta tese seria desenvolvida sistematicamente, anos maistarde, pela tambm historiadora marxista Emlia Viotti da Cos-ta, em seu memorvel Da senzala colnia.71

    67 MOURA, Clvis. Rebelies na senzala. Ob.cit. p. 20.68 Id.ib. P. 22.69 Id.ib. Pp. 133-4.70 Id.Ib. p. 36.71 COSTA, Emlia Viotti da. Da senzala colnia. 2 ed. So Paulo: Cincias Humanas, 1982.

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    Em outra leitura original, Clvis Moura assinalou a cisodo abolicionismo em tendncias com extremos em ala modera-da, chefiada por Nabuco, e outra radical Silva Jardim, LuizGama, Antnio Bento, etc. que dirigia suas vistas e atividadescotidianas mais para os prprios escravos, organizando-os para quelutassem com suas prprias foras contra o cativeiro.72 Em apre-sentao sinttica da Abolio, destacou a participao da peque-na classe operria da poca e, sobretudo, do cativo, referindo-se evoluo de sua conscincia quando da crise da instituio:

    [...] o trabalho escravo em decomposio era uma forma detrabalho j inteiramente desgastada historicamente; os es-cravos j estavam psicologicamente convencidos de sua si-tuao de explorados e em maior ou menor grau, desobede-ciam as ordens dos seus senhores.

    Revoluo Abolicionista

    Ressalta que essa arguta viso da Abolio encontra aindahoje profundas resistncias na historiografia brasileira e, princi-palmente, entre a quase totalidade dos intelectuais do MovimentoNegro que, em forma geral, desvalorizam incorretamente a im-portncia histrica e o sentido revolucionrio da superao da or-dem escravista em maio de 1888, baseados em explicao mecni-ca e anti-histrica da avaliao real da situao atual de grandeparte da populao brasileira com forte afro-ascendncia.

    A partir da correta definio das contradies de base daantiga formao social brasileira, Clvis Moura inquiriu sumaria-mente a participao do cativo nos principais movimentos polti-cos do passado Inconfidncia Mineira, Revoluo dos Alfaiates,Revoluo de 1917, etc. , destacando que eles eram aliciados eengrossavam movimentos das classes dominantes. Assinalou ocarter singular da conspirao de 1798, devido ao seu programa e participao de segmentos subalternos e escravizados.73

    72 Id.Ib. p.38.73 Id.ib. P. 67

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    Minimizou a resistncia individual e orgnica dos cati-vos escravido fuga, justiamento, etc. , enfatizando a anli-se das revoltas coletivas nas quais o cativo teria lutado por ob-jetivos prprios quilombos, guerrilhas e insurreies. Lembrouque os quilombos podiam assumir forma defensiva ouinsurrecional, com o objetivo de esmagar seus senhores. Com-preendeu o fenmeno quilombo como geral e constante eno como ocorrncia fortuita e local, expresso do inconformis-mo do negro com a escravido. Destacou sua capacidade de arti-cular-se com outros setores sociais ndios, livres pobres e traba-lhadores escravizados, sobretudo e a determinao do fenme-no segundo a regio e o momento histrico.74

    Abordou ocorrncias quilombolas em Alagoas, Bahia, Cea-r, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, So Paulo e Sergipe.No relativo ao Maranho, destacou a importncia, autonomia e pre-cedncia do quilombo do preto Cosme Balaiada, registrando queaquele mocambo ainda no tivera seu historiador e a desqualificaodo lder quilombola como um megalmano ou paranoico.75

    Grosseira Direo

    Destaca que, em Evoluo poltica do Brasil, de 1933, CaioPrado Jnior referira-se resistncia quilombola maranhense e adom Cosme em forma incorreta e depreciativa:

    Chegaram os escravos revoltados a formar um quilombo nasproximidades do litoral [...]. No ultrapassaram, contudo,nunca o nmero de trs mil, e l se mantiveram inativos, soba direo grosseira de um antigo escravo de nome Cosme, quese arvorando em imperador, tutor e defensor de todo o Brasil,vendia a seus companheiros ttulos e honrarias.76

    Em captulo sobre o Quilombo dos Palmares, ClvisMoura definiu os sucessos como a maior tentativa de autogo-verno dos negros fora do Continente Africano, perfilhando a

    74 Id.ib, Pp. 90, 79, 69.75 Id.ib.p.93.76 PRADO JNIOR, Caio Prado. Evoluo poltica do Brasil. 9 ed. So Paulo: Brasiliense,1975. P. 72.

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    caracterizao de dison Carneiro e Nina Rodrigues da confede-rao e aceitando a existncia de escravido nos redutos: EraPalmares, como j foi acentuado por Nina Rodrigues e disonCarneiro, uma imitao dos muitos reinos existentes na fricaonde o chefe escolhido entre os mais capazes na guerra e demaior prestgio entre eles.77 Nessa poca, era quase total o desco-nhecimento no Brasil sobre as formaes africanas pr-coloniais.

    Nos captulos conclusivos, apresenta sntese das insur-reies escravas, com nfase nas baianas de 1807, 1809, 1813,1822, 1823, 1827, 1827, 1830, 1835 e 1844. Sobre a revolta de1835, assinala tratar-se de revolta planejada nos seus detalhes edestaca seu projeto poltico necessariamente limitado matartodos os brancos, pardos e crioulos. O autor interessou-se so-bretudo pela organizao interna da revolta grupos envolvi-dos; ligaes com o Recncavo; fundo de despesa; etc. e descre-veu a insurreio, precipitada por denncia.

    Em captulo conclusivo, Clvis Moura ensaiou rpida an-lise das lutas diretas dos cativos, lembrando que, comumente, nose tratavam de revoltas dominadas por simples paixes momen-tneas, mas movimentos planejados detalhadamente. Nesse apa-nhado geral, destacou as debilidades objetivas do movimento.

    Salto Epistemolgico

    Na redao do seu estudo, alm da documentao editada,Clvis Moura utilizou intensamente a bibliografia esparsa sobre aescravido: A de Taunay, Arthur Ramos, Astolfo Serra, A. A. MelloFranco, Afonso Ruy, Astrogildo Pereira, Caio Prado Jnior, EdgarMorel, dison Carneiro, Ernesto Ennes, Gilberto Freyre, JooDornas Filho, Joaquim Nabuco, Lus Viana Filho, Manuel Vinhasde Queiroz, Maurcio Goulart, Nina Rodrigues, Perdigo Malheiro,Srgio Buarque de Holanda, Tarqunio de Souza, entre outros.Investigao original no Arquivo Pblico da Bahia permitiu enri-quecer e ampliar o conhecimento factual das revoltas baianas.

    77 MOURA, Clvis. Rebelies [...]. ob.cit. Pp. 110-128

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    Em 1951, Clvis Moura recebera resposta de carta envia-da a dison Carneiro, que assinalava o carter extremamenteimportante da pesquisa e enfatizava vivamente a necessidade deno subestimar a importncia do motivo religioso nos levan-tes servil. Na carta, Carneiro propunha que a religio fosse ovnculo nacional entre os escravos e que o substantivo quilombosignificasse ajuntamento religioso. Clvis Moura no seguiriaem Rebelies da senzala a recomendao do conhecido pesquisa-dor, tambm militante do PCB.78

    Publicado em 1959, Rebelies da senzala: quilombos, in-surreio, guerrilhas significou verdadeiro salto epistemolgicona leitura do passado brasileiro, ao destacar inequivocamente ocarter escravista da antiga formao social brasileira e sua do-minncia pela contradio trabalhador escravizado versus es-cravizador. Essa correta compreenso permitiu ao autor apre-sentar, baseado em informaes esparsas conhecidas, o cartersistmico da resistncia do escravizado no Brasil pr-1888.

    Como no caso de Benjamin Pret, a leitura de ClvisMoura no foi trabalho intelectual diletante. Ao contrrio do mar-xista francs, o autor brasileiro teve que violentar os pressupos-tos determinados por seus vnculos poltico-ideolgicos de entopara superar impasses metodolgicos das cincias sociais da po-ca que motivavam diversas leituras do passado em que trabalha-dor escravizado era subalternizado como categoria explicativa.

    Como no caso de Pret, a interpretao germinal de Cl-vis Moura no teve desdobramentos fecundos. Nos anos seguin-tes, como veremos a seguir, prosperaram interpretaes que re-conheceriam a importncia e violncia da escravido e assinalari-am o carter no escravista da antiga formao social brasileira ea infecundidade do cativo na sua determinao. Esses trabalhosdesconheceram ou desconsideraram as propostas do carter es-sencial da luta de classes na escravido.

    78 Carta de dison Carneiro a Clvis Moura, So Paulo, 21 DE JULHO DE 1952.[exemplar xerocopiado fornecido por Clvis Moura.]

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    Dcadas mais tarde, quando a luta de classes servil con-quistou, transitoriamente, importante status acadmico, a visode Clvis Moura foi desqualificada pelo amplo movimento de rea-bilitao da escravido como viso romntica de cativo eterna-mente rebelado. Mais de meio sculo aps sua redao, mantm-se a desqualificao e o silncio sobre Rebelies da senzala pelo res-tauracionismo historiogrfico neo-patriarcalista. Tal comporta-mento registra a expresso germinal e pioneira da leitura do au-tor de determinaes essncias da formao escravista brasileira.

    7. Escravido e Industrialismo: A Escola Paulista

    Desde meados dos anos 1950, um grupo de brilhantes aca-dmicos desenvolveu um amplo projeto de investigao sobre aescravido e as relaes raciais no Brasil. Os mais expressivos mem-bros da chamada Escola Paulista de Sociologia foram FlorestanFernandes [1920-1995], Fernando Henrique Cardoso e OctvioIanni [1926-2004].79 O francs Roger Bastide [1898-1974] tam-bm contribuiu ativamente no movimento revisionista.80

    Esses autores produziram trabalhos que abalaram forte-mente as interpretaes sobre a escravido patriarcal e a demo-cracia racial, consagradas por Freyre, comprovando o carterdesptico do escravismo e suas sequelas na ps-Abolio. Viran-do as costas s propostas de Manuel Bomfim, de Manuel Querino,de Benjamin Pret e de Clvis Moura de ler a antiga formaosocial pr-1888 a partir da ao do cativo, apresentaram o traba-lhador escravizado como uma espcie figurante mudo, incapaz

    79 Cf. FERNANDES, Florestan. Mudanas sociais no Brasil. So Paulo: Difel, 1960;_____. A integrao do negro na sociedade de classes. 3 ed. So Paulo: tica, 1978;IANNI, Octvio. As metamorfoses do escravo. So Paulo: Difel, 1962; CARDOSO,Fernando Henrique. Capitalismo e escravido no Brasil Meridional: o negro na sociedadeescravocrata do Rio Grande do Sul. So Paulo: Difel, 1962.80 Cf. BASTIDE, Roger. [1898-1974]. As Amricas negras: as civilizaes africanas noNovo Mundo. Trad. E.O.Oliveira. So Paulo: Difel. EdUS, 1974; ____.Estudos afro-brasileiros. So Paulo: Perspectiva, 1973.

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    de interferir no processo no qual eram objetos. Ao mesmo tempoque desdenhavam o trabalhador escravizado como eixo interpre-tativo, apresentavam os cafeicultores do Oeste paulista tidoscomo ancestrais do moderno empresariado como vetores damodernizao que levaria superao do escravismo.81 Esses au-tores, sobretudo no caso de Florestan Fernandes e Fernando Hen-rique Cardoso, influenciados pelas vises funcionalistas e webe-rianas, defendiam essncia capitalista incompleta da antiga for-mao social, deduzida do carter mercantil e empresarial do es-cravismo americano.

    Em Capitalismo e escravido no Brasil Meridional, Fer-nando Henrique Cardoso foi explcito na apresentao do cativocomo personagem incapaz de determinar a histria:

    A liberdade desejada e impossvel apresentava-se, pois, comomera necessidade subjetiva de afirmao, que no encontra-va condies para realizar-se concretamente. [...] houve fu-gas, manumisses e reaes. Umas e outras variando de in-tensidade conforme as circunstncias histrico-sociais exte-riores [...]. A liberdade assim conseguida ou outorgada noimplicava em nenhum momento, porm, modificaes naestrutura bsica que definia as relaes entre senhores e es-cravos: no abalava a propriedade servil e os mecanismosde sua manuteno.82

    Marxista de esquerda, o socilogo Octvio Ianni foi da mes-ma opinio. Em Escravido e racismo, props em forma peremptria:

    Note-se, pois, que no a casta dos escravos que destri otrabalho escravizado; e muito menos vence a casta dos senho-res. Acontece que a condio econmica, jurdico-poltica escio-cultural do escravo no lhe abria qualquer possibili-dade de elaborar, como coletividade, uma compreenso arti-culada e crtica da prpria situao. Na medida em que erasocializado como escravo, isto , como propriedade do senhor,ao escravo no se abriam quaisquer possibilidade de entendi-mento independente, autntico, ou crtico de sua condio.

    81 Cf. GORENDER, Jacob. A escravido reabilitada. So Paulo: tica, 1990. p. 144.82 Cf. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravido no Brasil Meridional.Ob. cit. p.142.

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    Avanando ainda mais, definiu a Abolio como verdadeironegcio de branco, viso, como vimos, amplamente retomada pe-las direes do movimento organizado, a partir de fins dos anos 1980.83

    Empresrio Escravista

    Tambm a nova historiografia econmica represen-tada por Caio Prado Jnior,84 Celso Furtado [1920-2004],85

    Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948),86 etc. no centrousua anlise no cativo mas nas mercadorias por ele produzidas. Emum cenrio econmico determinado desde o exterior, pela orien-tao exportadora e mercantil, as relaes de produo torna-ram-se questo secundria e subordinada aos ciclos dos produtosexportados pau-brasil, acar, caf, cacau, etc.

    Jacob Gorender lembra que nessa viso, o

    patriarcalismo desce a um modesto segundo plano e na fi-gura do plantador emerge o empresrio. A escravido aforma em que o empresrio colonial lida com o fator traba-lho. Mas, uma vez que essa forma tida por contingente,devia ficar margem a preocupao com o estudo daespecificidade das relaes de produo escravista.

    Chega-se assim a uma sociedade colonial capitalista.87

    Nesse contexto geral, a diviso dicotmica dos modelosinterpretativos do passado brasileiro origens feudais e capitalis-tas , sintetizada na oposio Caio Prado Jnior88 e NlsonWerneck Sodr89, constitua um verdadeiro ferrolho bloqueando

    83 Cf. IANNI, Octvio. Escravido e racismo. So Paulo: Hucitec, 1978. P. 34.84 CF. PRADO JNIOR, Caio. Formao do Brasil contemporneo Colnia. 4 ed. SoPaulo; Brasiliense, 1953.85 Cf. FURTADO, Celso. Formao Econmica do Brasil. Braslia: Universidade deBraslia, 1963.86 Cf., SIMONSEN, Roberto C. [1889 1948]. Histria econmica do Brasil. (15001820). 7 ed. So Paulo: CEN; Braslia: INL, 1977.87 GORENDER, J. O escravismo colonial. Ob.cit. p. 2-4.88 Cf. PRADO JNIOR, Caio. Histria econmica do Brasil. 20 ed. So Paulo: Brasiliense,1977.89 Cf. SODR, Nlson Werneck. As razes da Independncia. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1969.

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    o reconhecimento da centralidade da contradio escravizados eescravizadores no passado brasileiro, e a determinao plena deseu devir pela luta de classes.

    No se tratava de um mero impasse terico. Tais elabo-raes registravam tambm a incapacidade do mundo do traba-lho de abrir-se um espao autnomo no mundo social objetivo,construindo as condies para que se rompesse, tambm no mundodas ideias, com real efetividade nas cincias sociais nacionais, asubjuno intelectual s categorias, interpretaes e vises demundo originadas no mundo das classes dominantes.

    Entretanto, a profunda crise econmica e social da domi-nao capitalista vivida nos anos 1960 e 1970 contribuiu pode-rosamente para que interpretaes do passado brasileiro se cen-trassem mais e mais na dominncia da produo escravista e naao dos trabalhadores feitorizados, trincando os consensos atento construdos em torno da excluso dos explorados da inter-pretao do Brasil colonial e imperial.

    Ditadura do Capital

    A genial obra de Emlia Viotti da Costa, Da senzala colnia90, exemplifica a nova reavaliao. Lus Carlos Lopes, em Oespelho e a imagem lembrava:

    [...] Viotti no foi a primeira a ressaltar a dicotomia senhorversus escravo. Porm, inegvel que ela percebeu que, paraanalisar a histria do Brasil, era imprescindvel recuperar aimagem do escravo. Nesta historiadora, o homem escravizadotransforma-se de ectoplasma em ser real de uma histria real.

    Entretanto, o golpe imposto em 1964 pelo capital nacio-nal e internacional repetiu, em forma talvez ainda mais ampla,por duas dcadas, a emasculao social e intelectual do mundo dotrabalho assegurada em 1937-45, pela ditadura getulista. A voltada ditadura plena do capital sobre o pas aprofundou o amorda-

    90 COSTA, Emlia Viotti. Da senzala colnia. Ob.cit.

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    amento terico que nas dcadas anteriores dera-se atravs deformas mais sutis e complexas.

    Se anteriormente os pensadores que procuravam nave-gar em gua profundas, afastando-se das margens seguras e re-confortante do cnone unissonante, tiveram suas vozes abafa-das, sobretudo atravs da marginalizao e subalternizao cul-tural permitida pelo controle das universidades, das editoras, dosgrandes jornais, etc., agora, eles eram silenciados atravs do ex-purgo, da perseguio, do exlio, da priso.

    Ao contrrio, as obras que contriburam para manter adensa opacidade sobre a determinao da antiga formao socialbrasileira pelo mundo do trabalho foram literalmente legitimadas,em forma permanente ou transitria. Seus autores foram reco-nhecidos e enaltecidos. Como proposto at agora, o desconheci-mento do status histrico do cativo no nascia de simples cacoeteracista que levaria as classes dominantes brancas a escamotearemas pginas negras do passado para melhor perpetuar sua dominaono presente. Tratava-se de operao mais profunda e essencial.

    Silenciava-se e silencia-se a explorao e a luta do traba-lhador escravizado como eixo conformador do passado para si-lenciar os mesmos fenmenos quanto ao trabalhador livre no pre-sente. Sufocava-se e sufoca-se as genealogias que iluminam asorigens das diferenas abismais que regem a sociedade brasileira.Sobretudo, calava-se a prosaica verdade de que independentemen-te da origem tnica, todo brasileiro descende de escravizados oude escravizadores, segundo encontra-se no campo do capital oudo trabalho, objetiva e subjetivamente.

    8. Autonomia e Luta: O Escravismo Colonial

    A ordem capitalista mundial foi profundamente abaladanos anos 1960 e 1970 Revoluo Cubana [1961], Maio Francs[1968]; Unidade Popular chilena [1971]; ocupao italiana de f-bricas [1979]; vitria vietnamita [1974], Revoluo dos Cravos[1975]; descolonizao africana. Em meados da dcada de 1970, a

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    produo capitalista ingressou em sua terceira crise cclica geral.Ao contrrio das falsas percepes, as ideias migram do mundosocial objetivo para o do pensamento, como migram das ruas paraos livros. O ativismo social internacional ensejou ampla renova-o das cincias sociais marxistas que dissolveu os impasses pos-tos pelas antigas interpretaes mecanicistas do marxismo.

    Um amplo movimento de reelaborao terico-histo-riogrfica apoiou-se na redescoberta das investigaes marxianassobre as formaes asiticas,91 renovando as concepes sobre amultiplicidade dos modos de produo e das transies intermo-dais conhecidos pela histria da Humanidade.92 Debilitava-se acamisa de fora imposta ao pensamento marxista pelo stalinismoe a social-democracia.

    Apesar das dificuldades nascidas do regime militar no Bra-sil [1964-1985], esse processo influenciou pensadores brasileirosque, comumente no exterior e, at mesmo, na priso, radicalizaramo processo de crtica da essncia do passado brasileiro, em geralcomo resultado de um processo de reflexo nascido de esforoterico direta ou indiretamente ligado prxis social.

    Em fins dos anos 1970, o Brasil foi estremecido pelorenascimento do ativismo social que, ao contrrio de 1945, emer-giu animado por fortes tendncias classistas que permitiram que,durante diversos anos, por primeira vez na histria do Brasil, aclasse operria organizada se transformasse em importante refe-rncia poltico-social geral. Inicialmente, esse impulso expres-sou-se nas grandes greves do ABC e, a seguir, no contexto dadissoluo da ordem ditatorial, na formao do MST, da CUT e

    91 Cf. entre outros, SOFRI, Gianni. O modo de produo asitico: histria de umacontrovrsia marxista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; .WITTFOGEL, Karl. Ildispotismo orientale. Firenze: Cultura libera, 1968. [1 ed. 1957]; SORIANO, WaltdemarE. [Org.] Los modos de produccin en le Imperio de los Incas. Lima: Amaru, 1981.92 Cf. GENOVESE, Eugene A economia poltica da escravido. Rio de Janeiro: Pallas,1976; MEILLASSOUX, Claude. Lesclavage en Afrique prcoloniale. 1975; MIERS,Suzanne & KOPYTOTT, Igor. Slavery in Africa :historical and anthropologicalperspectives. Wisconsin: University of Wisconsin, 1977; ASSADOURIAN, C.S. et al.Modos de produccin en Amrica Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 1971; Manuel More-no Fraginals; Eric Foner.

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    do PT, do Movimento Negro Unificado [1978], etc. Naqueleento, todos esses movimento apresentavam forte orientao an-ticapitalista, classista e socialista.

    Escravismo Colonial

    Por primeira vez, transformaes no mundo social objeti-vo criavam condies para que processos de rupturas, nas repre-sentaes dominantes do passado, influenciadas pelos trabalha-dores, frutificassem no mundo das ideias. Tal processo permitiaque se rompesse a marginalizao vivida tradicionalmente pelasleituras que se afastavam tendencialmente dos cnones historio-grficos hegemnicos, impulsionados pela classe dominante. Acomplexa genealogia dessa superao qualitativa no foi aindadelineada. A soluo do impasse metodolgico nas cincias soci-ais brasileiras deveu-se conjuno do revisionismo internacio-nal sobre as formas de produo conhecidas pela humanidade as-sociado a leituras sobre a dominncia e centralidade do trabalhoescravizado na antiga formao social brasileira.93 Na dcada de1970, antes da crise final da ditadura militar, viveu-se salto onto-lgico com a definio da dominncia na pr-Abolio de modode produo escravista colonial, definido como historicamentenovo em relao ao escravismo patriarcal e pequeno-mercantilda Antiguidade.94 Definio realizada sinteticamente, em 1971,por Ciro Flamarin Cardoso [1942-2013] e, em 1978, em formacategorial-sistemtica, por Jacob Gorender.95

    O impacto da tese O escravismo colonial expressou-se noesgotamento da primeira edio da obra no ano de sua publica-o. Em sua tese, Gorender superava a tradicional apresentao

    93 Cf. GOULART, Jos Alipio. (1915-1971). Da palmatria ao patbulo: castigos deescravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista; INL, 1971; _____. Da fuga ao suicdio:aspectos de rebeldia dos escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista/ IHL, 1972;LUNA, Luiz. O negro na luta contra a escravido. Rio de Janeiro: Leitura, 1968.94 Cf. MAESTRI, Breve histria da escravido. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.95 Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. ASSADOURIAN, C.S. et al. Modos de produccin enAmrica Latina. Buenos Aires: Siglo XXI, 1971; GORENDER, Jacob. O escravismocolonial. 2 ed. So Paulo: tica, 1978.

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    cronolgica de cunho historicista do passado do Brasil para defi-nir em forma categorial-sistemtica sua estrutura escravista co-lonial. Aplicando criativamente o mtodo marxista, empreendiaestudo estrutural daquela realidade social singular, para pene-trar as aparncias fenomenais e revelar sua estrutura essenci-al, ou seja, os elementos e conexes internos e o movimento desuas contradies objetivas.96 Pioneiramente, empreendia-se sis-tematicamente a interpretao do passado pr-Abolio desde aoposio entre escravizador e escravizado, considerado comoagente subjetivo do processo de trabalho e no como mqui-nas ou outro bem de capital.97

    Gorender empreendeu crtica categorial-sistemtica daproduo escravista americana considerada como modo de produ-o historicamente novo, devido ao seu carter dominantementemercantil, que extremou qualitativamente determinaes secun-drias ou pouco desenvolvidas da produo patriarcal e pequeno-mercantil do escravismo greco-romano.98 Criticou a literaturaterica e historiogrfica sobre o Brasil escravista, associando osnveis histrico, lgico e metodolgico de anlise. Apresentou ascategorias fundamentais da escravido colonial e definiu suasleis tendenciais pluri e monomodais: renda monetria; inversoinicial da aquisio do trabalhador escravizado; rigidez da mo deobra escravizada; correlao entre economia mercantil e econo-mia natural na plantagem escravista e populao escravizada.99

    O Geral e o Particular

    Discutiu o regime territorial e renda da terra; as for-mas particulares de escravido; a circulao e reproduo no

    96 GORENDER, Jacob. O conceito de modo de produo e a pesquisa histrica. LAPA,Jos Roberto do Amaral [Org.] Modos de produo e realidade brasileira. Petrpolis:Vozes, 1980. p. 45.97 Cf. GORENDER, Jacob. Questionamentos sobre a teoria econmica do escravismocolonial. ESTUDOS ECONMICOS, Instituto de Pesquisas Econmicas, IPE, SoPaulo, 13[1], jan.-abril 1983, p. 16.98 Cf. MAESTRI, Mrio. Breve histria da escravido. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.99 Cf. Id.ib. pp. 45-370.

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    escravismo moderno e as fazendas escravistas do oeste de SoPaulo. Destacou a coexistncia estrutural na plantagem de cor-relao dialtica entre esfera de produo, natural e subordinada,e outra, mercantil e dominante. Lembrou deverem-se s tendn-cias patriarcais, consideradas por Freyre como a essncia doescravismo, primeira esfera, secundria e dependente. Ressal-tou a necessidade da anlise dos fenmenos sociais no contextoda totalidade das estruturas e formaes sociais, desvelando seusnexos e determinaes gerais e essenciais e no generalizando oparticular ou particularizando o geral.

    A inquirio scio-histrica de Jacob Gorender de traba-lho terico influenciado pela correlao objetiva de foras entreo mundo do trabalho e o mundo do capital, na perspectiva deinterpretar o mundo social e, assim, ajudar a transform-lo,ao permitir que melhor agisse no sentido das foras tendenciaislibertadoras.100 Com O escravismo colonial, contribua para a cons-truo de economia poltica dos modos de produo pr-capita-listas, capitalistas e ps-capitalistas, ao lado de obras como a Novaeconomia, do economista sovitico trotskista E. Preobrazhensy,de Mulheres, celeiros & capitais, de Claude Meillassaux.101 Sua re-flexo sobre o modo de produo escravista colonial, base daacumulao originria de capitais no Brasil, apoiou dois ensaiosfundamentais, desenvolvidos sinteticamente, Gnese e desenvol-vimento do capitalismo no campo brasileiro e A Burguesia brasileira,produzidos na perspectiva de construo de crtica geral da for-mao social brasileira e de sua revoluo.102

    A compreenso da dominncia da antiga formao socialbrasileira pelo modo de produo escravista colonial colocava a

    100 MERKER, Nicolao. [Org.] MARX & ENGELS. E2 ed. La concezione materialisticadella storia. Roma: Riuniti, 1998. p. 52.101 Cf. PREOBRAZHENSKY, E. [1926]. La nuova economia. Mxico: Era, 1971;MEILLASSOUX, Claude. Mulheres, celeiros & capitais. Porto: Afrontamento, 1977;DALLA VECCHIA, Agostinho Mrio. As noites e os dias: elementos para uma economiapoltica da forma de produo semi-servil filhos de criao. Pelotas: EdiUFPEL, 2001.102 Cf. GORENDER. Gnese e desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. PortoAlegre: Mercado Aberto, 1987; GORENDER. A burguesia brasileira. So Paulo:Brasiliense, 1986.

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    necessidade de amplo projeto de investigao metodolgica ehistoriogrfica sobre as classes exploradas trabalhadores escra-vizados, ndios, caboclos, etc. ; sobre a especificidade da luta declasses; sobre os modos de produo subordinados; sobre aspec-tos pouco desenvolvidos da investigao; sobre a gnese, desen-volvimento e superao da sociedade colonial escravista.

    A leitura dicotmica feudalismo & capitalismo do passa-do construra paisagens nas quais a luta social praticamenteinexistia. Arranhava-se o fundo do caldeiro histrico sem encon-trar-se sedimentos de confronto substancial entre as classes domi-nantes e os homens livres pobres, categoria social profundamen-te subordinada naquele universo. Interpretaes sobre a passivi-dade, a vilania, a transigncia, etc. das classes sociais subalter-nizadas foram deduzidas dessas pretensas ausncias, devida dis-toro dos enfoques analticos.

    Cada uma a seu modo, ambas interpretaes do passado pr-1888, a feudal e a capitalista, escamoteavam o papel do cativo comoagente hegemnico do mundo do trabalho. A partir da definio dacentralidade do trabalho escravizado, pela primeira vez, a definioda essncia escravista do passado brasileiro desvelou e explicitou ocontedo da singular, violenta e ininterrupta luta de classes entre asclasses antagnicas desde a origem da sociedade colonial, comosugerida no passado por autores isolados. Por alguns anos, o vu quecobria o passado levantou-se revelando segredos seculares. Mas essaconjuntura positiva muito logo se dissolveria.

    9. A Vitria da Contra-Revoluo Neo-Liberal

    No momento em que o processo de releitura do passadoalcanava seu znite no Brasil, a avassaladora mar contra-revo-lucionria neo-liberal fazia as foras do trabalho regredirem atra-vs do mundo, em todos os nveis, motivando derrota histricajamais conhecida pela Humanidade, at hoje no revertida. A der-rota da Revoluo Chilena, em 1973, da Revoluo Portuguesa,em 1975, da Revoluo Afeg, em 1988, etc. assinalaram o mo-

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    mento de perda do influxo social iniciado vinte anos antes. Emfins de 1970, a mar revolucionria esmorecera e, na dcada se-guinte, retrocedeu para ser batida, em fins dos anos 1980. O sal-to de qualidade nesse movimento foi assinalado pela dissoluoda URSS e dos Estados operrios, debilitados pelas direes bu-rocrticas e corrodos pela ao do grande capital internacional.Nesse contexto, definiu-se como axioma primordial a morte darevoluo, da histria, do socialismo e do trabalho.103

    No relativo historiografia, props-se como verdadeiroaxioma o fim da histria como cincia, reduzindo-a a uma espciede literatura do j vivido. Afirmou-se simplesmente a impossibili-dade das compreenses das razes tendenciais e causais do devirsocial. Luta de classe, modo-de-produo, formao social, a inves-tigao sobre a essncia dos processos histricos, o prprio princ-pio de conhecer para transformar o mundo transformaram-se empropostas abominadas e substitudas por investigaes sobre te-mas gentis e incuos: o mundo simblico; a histria das mentali-dades; a histria da vida quotidiana; a histrica cultural, etc.104

    No mundo da historiografia, mulheres, cativos, trabalha-dores, camponeses, etc. foram substit