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A Era dos Extremos: o breve século XX . Hobsbawm, Eric. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 598p. resenhado por Frâncio Me ndonça Talvez o maior mérito do livro A era dos ext remos de Hobsbawm seja transmitir uma forte impressão do tamanho da catástrofe humana que foi o século XX. Catástrofe em relação às mortandades gigantescas, sem equiparação possível com qualquer período histórico anterior. Catástrofe em relação à desvalorização do indivíduo, ao qual, durante longos momentos do século, foram negados todos o s direitos humanos e civis, que haviam sido arduamente conquistados durante o ‘longo século’ precedente: 1789 -1914. Aliás, a impressão de catást rofe é forte justamente porque o período histórico anterior se marcara em todas as mentes como o século que colocara a idéia do progresso como inevitabilidade, não só em termos materiais, mas t ambém em relação ao avanço das liberdades, apesar das monarquias e das forças conservadoras, que resistiam tenazmente desde a Revolução Francesa. Hobsbawm inci ta à colocação de uma pergunta, que seu livro não consegue responder: como foi possível chegar a isso? Como foi possível descer t anto na escala da civilização, apesar de uma vitória tão gigantesca para as forças progressistas como a Revolução Russa de 1917? Hobsbawm não pretendia mesmo responder a tudo. Mas incitar o leitor a se fazer perguntas dolorosas já é um mérito inest imável . As deficiências do livro estão mais no enfoque adotado na abordagem de alguns temas importantes. O ano de 1917, explica Hobsbawm, pretendia ser o início da revolução mundi al. E, desse modo, foi visto por milh ões de pessoas, mesmo em países longínqu os. Apesar disso, Hobsbawm acha que o mundo não estava maduro para uma revolução proletária naquele momento. É possível que seja uma suposição válida; e não é fácil provar o contrário. Mas cabe perguntar: será que algum dia haverá uma revolução que atinja imediatamente os principais países do mun do? Talvez o problema a reso lver não seja por que a Revolução de 1917 não se espalhou imediatamente pelo mundo, mas antes por que a chama da revolução proletária pôde ser t ão rapidamente submergida por uma vaga

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A Era dos Extremos: 

o breve século XX .Hobsbawm, Eric.

São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 598p. 

resenhado por Frâncio Mendonça 

Talvez o maior mérito do livro A era dos extremos de Hobsbawm seja transmitir uma

forte impressão do tamanho da catástrofe humana que foi o século XX. Catástrofe em

relação às mortandades gigantescas, sem equiparação possível com qualquer período

histórico anterior. Catástrofe em relação à desvalorização do indivíduo, ao qual, durante

longos momentos do século, foram negados todos os direitos humanos e civis, que

haviam sido arduamente conquistados durante o ‘longo século’ precedente: 1789-1914.

Aliás, a impressão de catástrofe é forte justamente porque o período histórico anterior se

marcara em todas as mentes como o século que colocara a idéia do progresso como

inevitabilidade, não só em termos materiais, mas também em relação ao avanço das

liberdades, apesar das monarquias e das forças conservadoras, que resistiam tenazmente

desde a Revolução Francesa.

Hobsbawm incita à colocação de uma pergunta, que seu livro não consegue responder:

como foi possível chegar a isso? Como foi possível descer tanto na escala da

civilização, apesar de uma vitória tão gigantesca para as forças progressistas como a

Revolução Russa de 1917? Hobsbawm não pretendia mesmo responder a tudo. Mas

incitar o leitor a se fazer perguntas dolorosas já é um mérito inestimável. As

deficiências do livro estão mais no enfoque adotado na abordagem de alguns temas

importantes.

O ano de 1917, explica Hobsbawm, pretendia ser o início da revolução mundial. E,

desse modo, foi visto por milhões de pessoas, mesmo em países longínquos. Apesar

disso, Hobsbawm acha que o mundo não estava maduro para uma revolução proletária

naquele momento. É possível que seja uma suposição válida; e não é fácil provar o

contrário. Mas cabe perguntar: será que algum dia haverá uma revolução que atinja

imediatamente os principais países do mundo? Talvez o problema a resolver não seja

por que a Revolução de 1917 não se espalhou imediatamente pelo mundo, mas antes porque a chama da revolução proletária pôde ser tão rapidamente submergida por uma vaga

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reacionária mundial. Vaga que Hobsbawm mostra detalhadamente ser mais ampla que

os movimentos baseados explicitamente no modelo italiano ou alemão de fascismo.

Em todo o caso, verificou-se concretamente que os bolcheviques ficaram isolados e

encurralados numa revolução nacional, cuja preocupação passou a ser logo a simples

sobrevivência. Fato consumado. Mas o problema aqui é que Hobsbawm faz uma ligação

direta entre a sobrevivência da Revolução Russa e a sobrevivência de uma unidade

política abrangendo todo o antigo Império Russo. Essa ligação só teria sentido na

perspectiva de uma "revolução socialista num só país", caso em que o tamanho do país é

uma questão vital. Hobsbawm, porém, parece não acreditar na viabilidade da revolução

socialista só na Rússia. Então seria o caso de fazer a distinção necessária: revolução

mundial e sobrevivência da unidade do Império ex-czarista eram coisas diferentes emesmo contrárias. Aliás, o governo bolchevique, em sua primeira fase, não pretendia

impor-se sobre todo o ex-Império. Nessa fase é que foram concedidas, sem conflito, as

independências da Finlândia, da Polônia e dos Estados Bálticos, todos anteriormente

províncias do Império Russo. Nenhum desses novos países declarou-se socialista. Nem

por isso, o governo bolchevique se achou na obrigação de impedir sua independência.

Não perceber a contradição entre revolução e império faz Hobsbwam valorizar a

disciplina bolchevique de modo acrítico, misturando disciplina consciente e

arregimentação cega, além de atribuir aos bolcheviques, objetivos que estes não se

davam antes de 1921. Manter o Império havia sido objetivo central do czar e da

impotente burguesia russa (impotente em parte porque se submetia ao czar e por amor

ao Império), não era objetivo dos revolucionários .

Sem perceber isso, não dá para entender como foi possível que, após uma revolução da

importância da de 1917, que despertou na humanidade as imensas esperanças descritaspor Hobsbawm no capítulo doze, tenha sido imediatamente seguida do mais profundo

retrocesso político do século. Apenas a não-extensão da Revolução Russa não é

suficiente para explicar isso. A Revolução Francesa terminou militarmente derrotada.

Nem por isso deixou de exercer influências libertárias que as próprias monarquias

contra-revolucionárias tiveram que levar em conta para sobreviver. Já no caso da

Revolução de 1917, ocorre o contrário. Cerca de dez anos depois desce a mais negra

noite de todos os tempos: é "meia-noite do século", disse Victor Serge, sem que opartido que dirigira a Revolução Russa tivesse perdido o poder. Alguma coisa de muito

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essencial deve ter deixado de funcionar, sob a máscara de uma falsa continuidade

política. E deve ter sido uma reviravolta muito mais grave e profunda que o Thermidor  

da Revolução Francesa.

As conseqüências disso se fizeram sentir antes, durante e no fim da Segunda Guerra

Mundial. Hobsbawn descreve os sofrimentos causados pela Guerra como mero

resultado das próprias operações militares. Mas nem tudo foi resultado inevitável do

simples uso do poder destrutivo disponível na época. Na Primeira Guerra Mundial não

se havia visto ato tão sanguinário como o massacre de quatro mil prisioneiros

poloneses, por ordem de Stalin, em 1940. A Paz de 1945 repetiu as barbaridades da Paz

de Versalhes com aumento, apesar da participação da potência ‘socialista’ entre os

vencedores de 1945. A maior parte dos deslocamentos de povos no fim da última guerrafoi puro revanchismo, com caráter explícito de limpeza étnica. Por incrível que pareça,

no fim da Primeira Guerra Mundial foi possível ver um presidente burguês: Woodrow

Wilson, dos EUA — ridicularizado por Lenin — , pregar uma paz sem anexações. No

fim da Segunda Guerra Mundial, não houve voz contra o revanchismo. Treze milhões

de alemães foram expulsos da Europa oriental e central, com o único objetivo de

aumentar o lebensraum eslavo. Foram expulsos simplesmente pelo fato de serem

alemães. É de Stalin a frase: "Um alemão só é bom, morto". Não disse um nazista.Assim, o que W. Wilson não havia conseguido em 1919 — ser levado a sério como

campeão da democracia da autodeterminação dos povos — foi conseguido por

Roosevelt e Truman sem muito esforço. Porque estes tinham em frente, como termo de

comparação, a URSS, não mais a Rússia revolucionária dos tempos de Wilson.

Hobsbawm dá uma grande importância à depressão dos anos 30 como determinante dos

rumos políticos da época. A depressão teria tido um papel decisivo em fazer da

democracia "uma planta frágil", em muitos países. Isso até tem um fundo de verdade.

Mas não é possível entender completamente a fragilidade da democracia no

entreguerras sem lembrar o progressivo afastamento entre luta por liberdades

democráticas e luta pelo socialismo, praticado pela III Internacional desde o começo.

Essa prática — depois teorizada para justificar o despotismo stalinista — fez que o

segmento importante do movimento operário deixasse de ser um baluarte contra os

movimentos restauracionistas da ordem social, gerados pelo capitalismo em crise. Antes

de 1914, ‘todo’ o movimento socialista fora também um movimento libertário. Além

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disso, para Hobsbawm, o impacto da depressão teria sido a grande força renovadora das

idéias econômicas da época, porque a depressão teria desacreditado o pensamento

econômico clássico, abrindo espaço para as políticas de regulação do capitalismo

posteriores. Especialmente em razão desse descrédito da ortodoxia econômica, no

segundo pós-guerra, os "formuladores de decisões", como diz Hobsbawm, passaram a

ter preocupações centrais: obter uma distribuição de renda mais igualitária do que a

normalmente ensejada pelo capitalismo ‘puro’ e evitar grandes níveis de desemprego. 

Hobsbawm se deixa levar muito facilmente pela crença na racionalidade dos

"formuladores de decisões" capitalistas. Ele chega a ponto de chamar de reforma do

capitalismo" a adoção das políticas de pleno emprego e bem-estar social no segundo

pós-guerra. Tal ‘reforma’ é definida por ele como "essencialmente uma espécie decasamento entre liberalismo econômico e democracia social". Um pouco de resguardo

seria melhor.

Em situações de grande perigo social, os "formuladores de decisões" instalados no

poder tendem fortemente a dividir-se entre dois tipos básicos de saída, conforme suas

inclinações pessoais: partir para o enfrentamento com os movimentos reivindicatórios

ou partir para concessões. Ora, no fim da Segunda Guerra Mundial, o perigo para o

capitalismo era uma realidade assustadora. Diferentemente do que ocorrera na vez

anterior, nenhum país em guerra da Europa ocidental, exceto a Grã-Bretanha,

conseguira manter de pé o aparelho de Estado capitalista. Todos os demais países

beligerantes emergiram da Guerra com aparelhos de Estado improvisados, em que se

misturavam instituições criadas pela resistência antifascista e instituições de emergência

criadas pelos exércitos de ocupação. Em várias regiões, houve ‘zonas liberadas’ por 

 partisans antes da chegada dos exércitos regulares. Tentar impor soluções capitalistas

ortodoxas naquela parte da Europa, naquela época, seria realmente demência suicidária.

Razão pela qual todos os economistas com a tarefa de se dirigir ao grande público

viraram subitamente humanistas sensíveis. Para explicar suas mudanças de opinião,

economistas antes conhecidos como empedernidos mastigadores de ‘fatores de

 produção’, passaram a falar nas tristes recordações da Grande Depressão. Mas as tristes

recordações não explicavam tudo.

Hobsbawn observa, pertinentemente, que os resultados da Segunda Guerra Mundialretiraram a extrema-direita do cenário político por um bom tempo. No fim da Guerra, só

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os "formuladores de decisões" dispostos a fazer concessões tinham voz e audiência. É

isso que mais explica por que foi tão fácil fabricar um pacto aceitável para trabalhadores

e patrões, então alçados à categoria nova de ‘parceiros sociais’. Chamar essas

concessões de "reformas do capitalismo" exagera seu alcance e objetivos. As políticas

de bem-estar social e pleno emprego do segundo pós-guerra foram uma resposta

adequada a uma situação política em que o sistema capitalista se encontrava

extremamente fragilizado na Europa ocidental, ao passo que a oriental estava ocupada

pela URSS. Mas mesmo nos EUA, cujo governo do Partido Democrata terminara a

Guerra prestigiado, não havia condições de ignorar as esperanças da enorme massa

mobilizada para a Guerra e que retornava buscando o ‘mundo melhor’ que a propaganda

oficial prometera durante todo o conflito. Por outro lado, em termos econômicos, na

Europa, partia-se de infra-estruturas destruídas, com os trabalhadores e toda a classe

média, baixa e alta, reduzidos às rações alimentares distribuídas pelo Exército dos EUA.

Quer dizer: as possibilidades de investimento eram aparentemente infinitas, com grande

espaço para uma distribuição mais igualitária de rendimentos, sem renúncia a lucros.

Hoje se pode ver que aquilo não era exatamente uma reforma do capitalismo porque

assim que aquelas condições anormais deixaram de existir, o estado de bem-estar

começou a ser atacado. E já nos anos 80, todos os economistas com clientes importantesvoltaram aos mesmos cacoetes clássicos dos anos 20 e 30. Eles simplesmente voltaram

a seu estado normal. Porque os Estados capitalistas estão agora firmes; e os

"formuladores de decisões", no momento, não estão conseguindo enxergar a menor

nuvem negra no horizonte à esquerda.

Talvez o pecado mais grave do livro seja a falta de conclusões convincentes sobre o

"socialismo real" e o colapso da URSS. Sem dúvida, é bastante boa a comparação que

Hobsbawm faz entre a URSS e China, assim como sua percepção de que o Estado

burocrático chinês se mantém porque lançou suas reformas sobre uma população

majoritariamente camponesa. Mesmo assim, não é o caso de deixar passar sem retoque

a opinião da mídia, impressionada com a aparente estabilidade do regime chinês. E

quanto às reformas de Gorbachev, a conclusão de que: "A URSS sob Gorbachev caiu

nesse poço em expansão entre a glasnost e a perestroika" , é muito pouco para explicar

um colapso fragoroso que, por incrível que pareça, apenas cinco anos antes estava fora

de qualquer previsão, mesmo por parte de seus mais ferrenhos adversários.

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Não há como fugir a impressão de que, a respeito da URSS, viveu-se um equívoco

universal durante decênios. Seria preciso pelo menos tentar uma explicação que

começasse a abordar esse equívoco, partilhado pela direita e pela esquerda, quanto ao

caráter e, sobretudo, à viabilidade do "socialismo real".

Em certo ponto do livro, Hobsbawm parece reconhecer que o regime soviético era

inviável:

 A tentativa de construir o socialismo produziu conquistas notáveis — não menos a

capacidade de derrotar a Alemanha na Segunda Guerra Mundial  —  , mas a um custo

enorme e inteiramente intolerável, e daquilo que acabou se revelando uma economia

sem saída. 

As "conquistas notáveis", no caso, estão todas ligadas à industrialização da URSS, que

chegou a alçar-se à condição de segunda potência industrial do mundo, partindo

praticamente do zero no fim da Guerra Civil, em 1920. Entretanto, o fato de que essa

industrialização terminou num beco sem saída recoloca o problema do valor do método

escolhido ou de algum equívoco fundamental que deve ter havido em suas origens; ou

surgido em algum ponto de sua edificação.

Para tentar uma primeira resposta, poder-se-ia inquirir se uma industrialização obtida a

chicote pode ter vida longa. O senso comum já é suficiente para suspeitar que o chicote

não é bom instrumento para desenvolver a criatividade. O chicote pôde fazer a URSS

alcançar momentaneamente o Ocidente, mas não ultrapassá-lo. A coerção desmesurada

 já continha os germens da estagnação tecnológica que levaria a URSS ao impasse mais

tarde. Isso pode ser afirmado, mesmo que se queira aceitar o chicote como "motor"

válido para a construção de algum "socialismo" monástico de baixo consumo. Dequalquer maneira, no caso da URSS real, interessa ressaltar que o resultado alcançado

foi provisório. Sua industrialização avançava inexoravelmente para um beco sem saída.

No entanto, apesar de reconhecer que o resultado final da industrialização stalinista foi a

"economia sem saída", Hobsbawm mantém-se apegado à idéia de que a URSS não teria

outro caminho a seguir nos anos 20-30:

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Qualquer política rápida de modernização da URSS, nas circunstâncias da época, tinha

que ser implacável e, porque imposta contra o grosso do povo, impondo-lhe sérios

sacrifícios, coercitiva em certa medida. 

A própria frase — "política (...) coercitiva em certa medida" — deixa no ar uma questão:

em que medida? Aquela medida de coerção foi correta? Mais lógico, à luz do que

Hobsbawm sabe hoje, seria dizer que talvez alguma coerção fosse inevitável "nas

circunstâncias da época", porém a coerção stalinista provou ser incompatível com uma

industrialização inovadora e sustentável a longo prazo. Ou, até mesmo, poderia

continuar achando que, em 1929, não houvesse um caminho muito diferente à

disposição de Stalin, mas para ser coerente com sua própria conclusão final sobre a

economia soviética, Hobsbawm deveria também lembrar que o governo da URSS tinhaque encontrar um meio de dispensar a coerção "contra o grosso do povo", o mais cedo

possível, se quisesse manter a economia viável .

Sobra a impressão de que, a respeito da URSS, o arrazoado de Hobsbawm é, em parte,

emotivo. Isso transparece mais fortemente na convalidação implícita das palavras de

Oskar Lange em seu leito de morte:

 Havia uma alternativa para a corrida indiscriminada, brutal, basicamente não

 planejada, ao primeiro plano qüinqüenal?. Gostaria de dizer que havia, mas não posso. 

Hobsbawm parece não se dar conta que Oskar Lange, um defensor da economia

planificada, morreu em 1965, ou seja, morreu a tempo de levar consigo suas convicções

intactas. Os que morreram ou vieram a morrer depois de 1991 não têm mais esse

privilégio, a não ser que, de 1989 em diante, tenham passado a circular de olhos

vendados.

Além do mais, já antes do desabamento da URSS, surgiram novas informações sobre os

anos 30, que O. Lange não chegou a conhecer. Informações que Hobsbawm mostra ter,

ao sugerir veladamente que, somente para o Segundo Plano Qüinqüenal (1933-1937),

poder-se-ia fazer uma estimativa de 16,7 milhões de mortos, vítimas da fome e da

repressão. Isso é inferido da constatação do decréscimo da população da URSS no

período do plano; informação classificada como secreta em 1938. Quer dizer: Stalin

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proibiu a divulgação das estatísticas demográficas do Segundo Plano Qüinqüenal

porque estas depunham contra sua "vitória econômica".

As informações que se têm hoje sobre os anos 30 são arrasadoras. Mesmo continuando

a aceitar que a URSS não poderia dispensar a imposição de sacrifícios ao povo naquela

época, sobra base mais que suficiente para afirmar, em 1990, que aquela coerção foi de

eficácia imediata altamente duvidosa, além de comprovadamente nefasta para o

desenvolvimento futuro da URSS. Nessa questão da suposta necessidade histórica do

stalinismo, talvez melhor seja deixar falar Moshe Lewin que, já em 1965, escreveu um

artigo para a revista Soviet Studies, na qualonde, após descrever detalhadamente a

enorme perda de energia humana e de meios materiais gerada pelos zigue-zagues

desastrosos de Stalin durante a coletivização da agricultura, conclui:

Se é certo que a industrialização devia acarretar mudanças profundas no campo, é 

 falso, a nosso ver, imaginar que tais mudanças só poderiam ser feitas através daquela

coletivização que a Rússia experimentou. Por que fazer do kolkhoz a única forma de

exploração coletiva, quando as estruturas aldeãs sugeriam outras soluções? (...)

Pretender que a liquidação da esquerda, adepta entusiasta da coletivização e da

 política antikulak fosse uma pré-condição capital da industrialização futura e que essa

liquidação devesse ser feita por um Stalin que, nessa época (1928-1929), sequer 

refletira sobre o que seria uma política futura, significa sustentar uma teoria bem

estranha. Só é possível subscrevê-la aceitando outra teoria igualmente bizarra, que

consiste em apresentar Stalin como um "deus ex-machina", como o único homem no

Partido capaz de transformar a Rússia em país industrial.  

Paralelamente a sua apreciação sobre a economia da URSS, Hobsbawm vai passando

uma idéia, igualmente afetada por seus sentimentos pessoais, sobre a legitimidade dosEstados erguidos em nome do "socialismo real". Os acontecimentos espetaculares do

fim dos anos 80 e início dos 90 na Europa oriental e na URSS dão larga margem a um

questionamento da própria legitimidade dos regimes instaurados nessa parte do mundo.

A respeito da Europa oriental, Hobsbawm nota que as burocracias desses países

procuraram retirar-se do poder discretamente (exceto na Romênia) "porque tinham

visivelmente perdido a justificativa que mantivera seus quadros comunistas no

passado". A justificativa, no caso, era o "socialismo real", que só funcionava sob a

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tutela da URSS. Quando esta acabou, deu uma epidemia de amnésia na Europa oriental.

De repente, seus governantes não se lembravam mais de como tinham ido parar ali.

Para a URSS, a opinião de Hobsbawm é diferente:

 Ao contrário de muitos estrangeiros, todos os russos sabiam bastante bem quanto

sofrimento lhes coubera e ainda lhes cabia (em 1953). Contudo, em certo sentido, pelo

simples fato de ser um governante forte e legítimo das terras russas e delas um

modernizador, ele (Stalin) representava alguma coisa deles próprios.  

Depois de confundir sobrevivência da revolução com sobrevivência do Império Russo,

Hobsbawm só podia confundir conformismo do povo com legitimidade de Estado

stalinista.

A legitimidade do Estado soviético nasceu e ficou ligada até o fim a seus laços com a

Revolução de Outubro. Esses laços deixaram de ter realidade efetiva já nos anos 20,

porém todos os burocratas que liquidaram as esperanças de Outubro tinham consciência

de que a legitimidade de sua dominação dependia daqueles laços. Por isso, mantiveram

a farsa do "socialismo" enquanto puderam. Quando não puderam mais, foi um salve-se

quem puder. Diante de todos os acontecimentos dos anos 80 e 90, pode-se afirmar que abrutalidade aparentemente absurda de Stalin decorria, em parte, de sua legitimidade

precária. Só partindo dessa premissa se pode começar uma discussão séria sobre as

hecatombes de Stalin, superando a mera lamentação humanitária, assim como o

conformismo com a suposta inevitabilidade de um regime "implacável" naquela época e

lugar.

Somente um regime de legitimidade precária pode desabar da noite para o dia sem que

se manifestem forças sociais significativas em sua defesa. O grande argumento histórico

pró-Stalin (lembrado por Hobsbawm) foi sua vitória sobre Hitler. De fato, foi a vitória

sobre os nazistas que deu à burocracia do Kremlin a autoridade que lhe permitiu

prolongar seu regime até o fim dos anos 80. Entretanto, uma olhada mais detalhada nos

grandes fatos históricos é indispensável, para quem não quer se contentar com

panegíricos.

A agressão hitleriana mostrou, desde seu primeiro momento, uma face brutalmenteracista e antieslava (não só anticomunista), que tornou impossível qualquer movimento

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de simpatia em relação aos invasores por parte dos povos da Europa soviética, exceto de

alguns, não-eslavos, da área do Cáucaso. É inegável que o extremo reacionarismo do

comando nazista foi um fator favorável a Stalin; do mesmo modo que o extremo

reacionarismo dos "brancos" na época da Guerra Civil (1918-1920) fora um fator

favorável aos bolcheviques. O racismo antieslavo do comando nazista facilitou a

aglutinação dos russos, ucranianos e bielo-russos em torno do único Estado que parecia

capaz de salvá-los da aniquilação completa. Stalin mobilizou o povo fazendo apelo

basicamente ao patriotismo. Os operários escreviam sobre os tanques, antes de remetê-

los ao front : za rodinu (pela pátria). Se Stalin tivesse tentado mobilizar o povo pelo

"socialismo" dos Planos Qüinqüenais, certamente ter-se-a desastrado. Não por acaso, o

nome oficial da Segunda Guerra Mundial na URSS era ‘Grande Guerra Patriótica’. E

assim a Guerra foi entendida pelo povo. Isso permite qualificar a legitimidade ganha

pelo regime com a vitória sobre a agressão nazista. O regime legitimou-se como defesa

eficaz dos povos eslavos contra agressores externos. Quer dizer: obteve um novo tipo de

legitimidade, mais restrito. Nem antes, nem durante, nem depois da Guerra, o

"socialismo" de Stalin foi sentido como aceitável e legítimo pelos povos da URSS,

eslavos ou não.

O próprio Hobsbawm ressalta o apoliticismo extremo do povo nos países do"socialismo real". Ora, o apoliticismo na URSS tinha um significado especial. Era o

único país do mundo que não podia ter um povo apolítico. Porque era o único que tinha

como meta oficial ‘elevar o nível de consciência política da população’, para isso

restringindo a propaganda religiosa e instituindo um certo ‘marxismo’ como matéria

obrigatória em todos os níveis de ensino. Sob tal ordenamento da vida cultural, o

profundo apoliticismo do povo soviético valia como uma rejeição maciça do regime.

Então, as conclusões devem ser tiradas: o Estado soviético conseguiu legitimar-se? Sim.

Porém, em primeiro lugar, conseguiu-o somente depois da Segunda Guerra Mundial e

não para todos os povos da URSS; em segundo lugar, essa legitimidade parcial e

diferente da pretendida originalmente não dizia respeito ao "socialismo real".

Diga-se de passagem, mesmo pretendendo que o apoliticismo do povo soviético não

seria evidência suficiente da legitimidade precária de seu Estado, as reações

nacionalistas que se seguiram ao desmoronamento do regime não deixariam margem adúvidas: ao primeiro abalo da capacidade repressiva do Estado soviético (em particular

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a desarticulação da KGB, vitimada pela glasnost ), a ‘União’ entrou em rápida

dissolução, inclusive a união ‘interna’ da Rússia. 

No final do livro, Hobsbawm descreve a crise da própria economia capitalista. Ao lado

de muita informação importante, Hobsbawm tira algumas conclusões temerárias. Como,

por exemplo: "O triunfalismo neoliberal não sobreviveu aos reveses do início dos anos

90". É muito otimismo de Hosbsbawm achar que o neoliberalismo se encontre abalado

em virtude dos sofrimentos que esteja causando à humanidade a partir dos anos 80.

Infelizmente, a história não é um sistema de reflexos sociais perseguindo o caminho do

menor sofrimento. Se fosse assim, não se teria conseguido descer aos abismos de

repressão sanguinária atingidos durante o ‘breve século XX’. 

Sem dúvida, é absolutamente verdadeira a exposição do que Hobsbawm considera uma

depressão econômica comparável à dos anos 30, hoje se estendendo em graus diversos

no mundo inteiro. Entretanto, Hobsbawm subestima a capacidade de cinismo dos

economistas com acesso ao poder e à grande mídia. Para eles, o que está ocorrendo é

apenas um processo "inevitável" de adaptação à "globalização econômica". O

sofrimento dos seres humanos não é parâmetro de avaliação dos resultados das políticas

decididas pelos clientes desses economistas. E vai continuar sendo assim, enquanto

reações sociais de grande envergadura não obriguem os "formuladores de decisões" a

reverem seus parâmetros.

Comentários:

Seguimos com o primeiro capítulo do livro Era dos Extremos – O breve século XX(1914-1991), de Eric Hobsbawm (Companhia das Letras, 1996). Desta vez, trazemos o resumodas páginas 36 a 43. O capítulo inicial da obra é batizado de  A Era da Guerra Total e inaugura aprimeira das três partes da obra: A Era da Catástrofe. Boa leitura! 

A única arma tecnológica que teve um efeito importante na 1ª G.M. foi o submarino.Como todos os suprimentos da Grã-Bretanha eram transportados por mar, parecia factívelestrangular as ilhas britânicas mediante uma guerra submarina cada vez mais implacável contraos navios. A campanha chegou perto do êxito em 1917, antes que se descobrissem meiosefetivos de contê-la, porém fez mais do que qualquer outra coisa para arrastar os EUA à guerra.

Os britânicos, por sua vez, fizeram o melhor possível para bloquear os suprimentos da

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Alemanha, ou seja, matar de fome a economia e a população alemãs. Foram mais eficazes doque deveriam.

A mera superioridade do exército alemão enquanto força militar poderia ter-semostrado decisiva se, a partir de 1917, os aliados não tivessem podido valer-se dos recursospraticamente ilimitados dos EUA. Na verdade, a Alemanha, mesmo entravada pela aliança coma Áustria, assegurou a vitória total no Leste, expulsando a Rússia da guerra para a revolução e

para fora de grande parte de seus territórios europeus em 1917-18. Pouco depois de impor a pazpunitiva de Brest-Litowsk (março de 1918), o exército alemão, agora livre para concentrar-se noOcidente, na verdade rompeu a Frente Ocidental e avançou de novo sobre Paris. Graças àinundação de reforços e equipamentos americanos, os aliados se recuperaram. Era o últimolance de uma Alemanha exausta, que se sabia perto da derrota. Assim que os aliadoscomeçaram a avançar, no verão de 1918, o fim era apenas uma questão de semanas. AsPotências Centrais não só admitiram a derrota, mas desmoronaram. A revolução varreu oSudeste e o Centro da Europa no outono de 1918, como varrera a Rússia em 1917. Nenhumgoverno ficou de pé entre as fronteiras da França e o mar do Japão. Mesmo os beligerantes dolado vitorioso ficaram abalados. Certamente, nenhum dos países derrotados escapou darevolução. 

A maioria das guerras não revolucionárias e não ideológicas do passado não se travarasob a forma de lutas de morte ou que prosseguissem até a exaustão total. Certamente, não era aideologia que dividia os beligerantes em 1914, exceto no fato de que, em ambos os lados, aguerra tinha de ser travada mediante a mobilização da opinião pública, isto é, alegando algumprofundo desafio a valores nacionais aceitos, como o barbarismo russo contra a cultura alemã.A 1ª G. M. foi travada como um tudo ou nada. Ao contrário das anteriores, tipicamentetravadas em torno de objetivos específicos e limitados, a disputa se dava por metas ilimitadas.Na Era dos Impérios, a política e a economia haviam se fundido. A rivalidade políticainternacional se modelava no crescimento e competição econômicos. O traço característico dissoera, precisamente, não ter limites.

Para os dois principais oponentes, o céu tinha de ser o limite, pois a Alemanha queriauma política e posição marítima globais, como as que então ocupavam os britânicos, com oconseqüente relegamento de uma já declinante Grã-Bretanha a um status inferior. Era umaquestão de ou uma ou outra. Para a França, então e depois, os objetivos em jogo eram menosglobais, mas igualmente urgentes: compensar sua crescente e aparentemente inevitávelinferioridade demográfica e econômica frente à Alemanha. Também aqui a questão era o futuroda França como grande potência. No papel, sem dúvida, era possível o acordo neste ou naqueleponto dos quase megalomaníacos “objetivos de guerra” que os dois lados formularam assimque o conflito estourou. Na prática, porém, só um objetivo contava: a vitória total, aquilo que,na Segunda Guerra Mundial, viria a chamar-se “rendição incondicional”. 

Era um objetivo absurdo, que trazia em si a derrota e que arruinou vencedores evencidos; que empurrou os derrotados para a revolução e os vencedores para a bancarrota e aexaustão física. Em 1940, a França foi atropelada com ridícula facilidade e rapidez por forçasalemãs inferiores e aceitou sem hesitação a subordinação a Hitler porque o país havia sangradoaté quase a morte em 1914-18. A Grã-Bretanha jamais voltou a ser a mesma após 1918, porque opaís arruinara sua economia travando uma guerra que ia muito além de seus recursos. Alémdisso, a vitória total, ratificada por uma paz punitiva, imposta, arruinou as escassaspossibilidades existentes de restaurar alguma coisa que guardasse mesmo fraca semelhançacom uma Europa estável, liberal e burguesa. 

O acordo de paz imposto pelas grandes potências vitoriosas sobreviventes (EUA, Grã-Bretanha, França, Itália) era dominado por cinco considerações. A mais imediata era o colapsode tantos regimes na Europa e o surgimento na Rússia de um regime bolcheviquerevolucionário alternativo, dedicado à subversão universal, um ímã para forças revolucionáriasde todas as partes. Segundo, havia a necessidade de controlar a Alemanha. Esse era o maiorinteresse da França. Terceiro, o mapa da Europa tinha de ser redividido e retraçado, tanto paraenfraquecer a Alemanha quanto para preencher os grandes espaços vazios deixados na Europae no Oriente Médio pela derrota e colapso simultâneos dos impérios russo, habsburgo eotomano. Os muitos pretendentes à sucessão, pelo menos na Europa, eram vários movimentosnacionalistas que os vitoriosos tendiam a estimular, contanto que fossem antibolcheviques. O

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princípio básico de reordenação do mapa era criar Estados-nação étnico-linguísticos, segundo acrença, defendida pelo presidente Wilson, dos EUA, de que as nações tinham o “direito deautodeterminação”. A tentativa foi um desastre. O remapeamento do Oriente Médio se deu aolongo de linhas imperialistas (divisão entre Grã-Bretanha, França e EUA), com exceção daPalestina, onde o governo britânico, ansioso por apoio internacional judeu durante a guerra,tinha, de maneira incauta e ambígua, prometido estabelecer “um lar nacional” para os judeus.

Essa seria outra relíquia problemática da 1ª Guerra Mundial. O quarto conjunto de considerações eram as políticas internas dentro dos países

vitoriosos e o atrito entre eles. A conseqüência mais importante dessa politicagem interna foique o Congresso americano se recusou a assinar um acordo de paz escrito, em grande parte, porou para seu presidente. Em conseqüência, os EUA se retiraram dele. Por fim, as potênciasvitoriosas buscaram desesperadamente o tipo de paz que tornasse impossível outra guerracomo a que acabara de devastar o mundo. Fracassaram de forma espetacular. 

Tornar o mundo seguro contra o bolchevismo e remapear a Europa eram metas que sesobrepunham, pois a maneira mais imediata de tratar com a Rússia revolucionária era isolá-laatrás de um “cinturão de quarentena” (cordon sanitaire) de Estados anticomunistas. Como osterritórios desses Estados haviam sido, em grande parte ou inteiramente, secionados de ex-terras russas, sua hostilidade para com Moscou podia ser dada como certa. Eram eles: aFinlândia, uma região autônoma que Lênin deixara separar-se; a Polônia, devolvida à condiçãode Estado após 120 anos; uma Romênia com o tamanho duplicado por cessões das parteshúngara e austríaca do império habsburgo e da ex-russa Berassábia; e Estônia, Letônia eLituânia, três novas repúblicas bálticas. A tentativa de ir adiante com esse cinturão deisolamento no Cáucaso fracassou porque, em 1921, a Rússia revolucionária chegou a um acordocom a Turquia, que não tinha simpatia pelos imperialistas franceses e britânicos. Em suma, noLeste, os aliados aceitaram as fronteiras impostas pela Alemanha à Rússia revolucionária, namedida em que não eram tornadas inoperantes por forças que eles não pudessem controlar. 

A Áustria e a Hungria foram reduzidas a retaguardas alemã e magiar. A Sérvia foiexpandida para uma grande e nova Iugoslávia, pela fusão com a (ex-austríaca) Eslovênia, a (ex-húngara) Croácia e o antes independente Montenegro, pequeno reino tribal de pastores eassaltantes. Também foi formada uma nova Tchecoslováquia, juntando-se o miolo industrial doimpério habsburgo (as terras tchecas) às áreas de camponeses eslovacos e rutênios antespertencentes à Hungria. A Romênia foi ampliada para um conglomerado multinacional,enquanto a Polônia e a Itália também se beneficiavam. Não havia precedente histórico ou lógicanas combinações iugoslavas e tchecoslovacas, meras construções de uma ideologia nacionalistaque acreditava na força da etnicidade e na indesejabilidade de Estados-nação pequenos demais.Como era de se esperar, esses casamentos sob mira de espingarda não se mostraram muitofirmes. 

Impôs-se a Alemanha uma paz punitiva, justificada pelo argumento de que o Estadoera o único responsável pela guerra e todas as suas conseqüências (a cláusula da “culpa deguerra”), para mantê-la permanentemente enfraquecida. Isso foi conseguido não tanto porperdas territoriais, embora a Alsácia-Lorena voltasse à França e uma substancial região no Lesteà Polônia (o “Corredor Polonês); na realidade, essa paz punitiva foi assegurada privando-se aAlemanha de uma marinha e uma força aérea efetivas; limitando-se seu exército a 100 milhomens; impondo-se “reparações” teoricamente infinitas; adotando-se a ocupação militar departe da Alemanha Ocidental; e, não menos, privando-se a Alemanha de todas as suas antigascolônias no ultramar. Elas foram distribuídas entre os britânicos, franceses e japoneses.Contudo, em deferência á crescente impopularidade do imperialismo, não mais foramchamadas de colônias, e sim de “mandatos” para assegurar o progresso de povos atrasados,  entregues humanitariamente às potências imperiais, que nem sonhariam em explorá-los paranenhum outro propósito. Com exceção das cláusulas territoriais, nada restava do Tratado deVersalhes em meados da década de 1930. 

Quanto ao mecanismo para impedir outra guerra mundial, a alternativa, exortada aobstinados politiqueiros europeus pelo presidente Wilson, era estabelecer uma “Liga dasNações”, que solucionasse pacífica e democraticamente os problemas antes que se

descontrolassem, de preferência em negociação pública, pois a guerra também tornarasuspeitos, como “diplomacia secreta”, os habituais e insensíveis processos de negociação

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internacional. Foi em grande parte uma reação contra os tratados secretos acertados entre osaliados durante a guerra, nos quais dividiram a Europa do pós-guerra e o Oriente Médio comuma surpreendente falta de atenção pelos desejos, ou mesmo interesses, dos habitantesdaquelas regiões. Os bolcheviques, descobrindo esses documentos sensíveis nos arquivosczaristas, haviam-nos prontamente publicado para o mundo ler, e, portanto, exigia-se umexercício de redução de danos. A Liga das Nações foi, de fato, estabelecida como parte do

acordo de paz e revelou-se um quase total fracasso, a não ser como uma instituição para coletade estatísticas. A recusa dos EUA a juntar-se à Liga das Nações privou-a de qualquersignificado real. 

O acordo de Versalhes estava condenado desde o início; não podia ser a base de umapaz estável. Para começar, os EUA se retiraram quase imediatamente. Em um mundo não maiseurocentrado e eurodeterminado, nenhum acordo não endossado pelo que era agora umapotência mundial podia se sustentar. Além disso, duas grandes potências européias e mundiaisestavam temporariamente eliminadas do jogo internacional: a Alemanha e a Rússia soviética.Assim que uma ou as duas reentrassem em cena, um acordo de paz baseado apenas na Grã-Bretanha e na França (a Itália também continuava insatisfeita), não poderia durar. Qualquerpequena chance que tivesse a paz foi torpedeada pela recusa das potências vitoriosas areintegrar as vencidas. 

Talvez a guerra seguinte pudesse ter sido evitada ou, pelo menos, adiada, casohouvesse ocorrido a restauração da economia como um sistema global de prósperoscrescimento e expansão. Em meados da década de 20, no entanto, a economia mundialmergulhou na maior e mais dramática crise que conhecera desde a Revolução Industrial. E issolevou ao poder, na Alemanha e no Japão, as forças políticas do militarismo e da extrema direita,empenhadas num rompimento deliberado com o status quo. Daí em diante, uma nova guerramundial era rotineiramente prevista. 

Novembro 24, 2007

A Era da Guerra Total I 

Posted by gustavodepaula under Era dos Extremos | Tags: guerra mundial, história, hobsbawn, século XX |

Leave a Comment Eu decidi abrir o blog com o livro Era dos Extremos – O breve

século XX (1914-1991), de Eric Hobsbawm (Companhia das Letras,1996). Abaixo, segue o resumo das sete primeiras páginas do capítuloinicial (da 29 a 35), batizado de A Era da Guerra Total. Este capítuloinaugura a primeira das três partes da obra: A Era da Catástrofe. Vamosao que interessa:

Em 1914, não havia grande guerra fazia um século. Houveraapenas uma guerra em que mais de duas grandes potências haviamcombatido, a Guerra da Criméia (1854-1856), entre a Rússia, de um lado,e a Grã-Bretanha e a França, do outro. Entre 1815 e 1914, nenhumagrande potência combateu outra fora de sua região imediata, emboraexpedições agressivas de potências imperiais ou candidatas a imperiais

contra inimigos mais fracos de ultramar fossem, claro, comuns. A maioria dessas expediçõesresultava em lutas espetacularmente unilaterais, como as guerras dos EUA contra o México(1846-1848) e a Espanha (1898) e as várias campanhas para ampliar os impérios coloniaisbritânico e francês, embora de vez em quando a escória reagisse: os franceses tiveram de seretirar do México na década de 1860 e os italianos da Etiópia,em 1896. 

Entre 1871 e 1914, não houvera na Europa guerraalguma em que exércitos de grandes potências cruzassem

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alguma fronteira hostil, embora no Extremo Oriente o Japão tivesse combatido, e vencido, aRússia (1904-1905), apressando com isso a Revolução Russa.Os grandes participantes do jogointernacional da época eram os EUA, o Japão e as seis “grandes potências” européias: a Grã -Bretanha, a França, a Rússia, a Áustria-Hungria, a Prússia (após 1871, ampliada para Alemanha)e, depois de unificada, a Itália. A 1ª Guerra Mundial envolveu todos os Estados europeus, comexceção da Espanha, dos Países Baixos, dos três países da Escandinávia e da Suíça. Quanto à 2ª

Guerra Mundial, esta envolveu praticamente todos os Estados independentes do mundo,embora as repúblicas da América Latina só tenham participado de forma mais nominal. Comexceção da futura República da Irlanda e de Suécia, Suíça, Portugal, Turquia e Espanha, na

Europa, e talvez do Afeganistão, fora do continente europeu,todo o globo foi beligerante ou ocupado, ou as duas coisas juntas. 

Das 74 guerras internacionais travadas entre 1816 e1965, classificadas por especialistas americanos pelo númerode vítimas, as quatro primeiras ocorreram no século XX: asduas guerras mundiais, a guerra do Japão contra a China(1937-1939), e a Guerra da Coréia. Cada uma delas matoumais de um milhão de pessoas em combate. A maior guerrainternacional documentada do século XIX pós-napoleônico,

entre Prússia-Alemanha e França, em 1870-71, matou talvez 150 mil pessoas, uma ordem demagnitude mais ou menos comparável às mortes naGuerra do Chaco, de 1932 a 1935, entre Bolívia eParaguai. Em suma, o ano de 1914 inaugurou a erado massacre. 

Na 1ª G.M., o plano alemão era liquidarrapidamente a França no Ocidente e depois partircom igual rapidez para liquidar a Rússia no Oriente.A Alemanha planejava uma campanha-relâmpago, oque seria, na 2ª G.M, chamado de blitzkrieg. O planoquase deu certo. O exército alemão avançou sobre aFrança, atravessando a Bélgica, neutra, e só foi detida algumas dezenas de quilômetros a Lestede Paris, junto ao rio Marne, cinco ou seis semanas depois de declarada a guerra (em 1940, oplano viria a dar certo). Em seguida, recuou um pouco, e os dois lados improvisaram linhasparalelas de trincheiras e fortificações defensivas, que pouco depois se estendiam, seminterrupção, da costa do Canal, em Flandres, até a fronteira da Suíça. Nos três anos e meio que

se seguiram não houve mudança significativa deposição. 

Essa era a “Frente Ocidental”, que se tornouuma máquina de massacre sem precedentes nahistória da guerra. A tentativa alemã de romper abarreira em Verdun, em 1916 (fevereiro-julho), foiuma batalha de 2 milhões de homens, com 1 milhãode baixas. Fracassou. A ofensiva britânica no Somme,destinada a forçar os alemães a suspender a ofensiva

de Verdun, custou a Grã-Bretanha 420 mil mortos, 60 mil no 1º dia de ataque. Os francesesperderam 20% de seus homens em idade militar. Os britânicos perderam uma geração: meiomilhão de homens com menos de 30 anos. Os EUA, por sua vez, perderam entre 2,5 e 3 vezesmais homens na 2ª G.M do que na 1ª G.M., onde atuaram um ano e meio e só na FrenteOcidental. Os horrores da guerra na Frente Ocidental dariam origem a uma classe de ex-soldados responsável pela formação das primeiras fileiras da ultradireita do pós-guerra. AdolfHitler era apenas um desses homens para quem ter sido um  frontsoldat era a experiênciaformativa da vida. 

A primeira batalha naval da 1ª G. M. foi travada em 1914,ao largo das ilhas Falkland, e as campanhas decisivas, entresubmarinos alemães e comboios aliados, deram-se sobre e sob osmares do Atlântico Norte e Médio. A guerra naval foi global.

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Ambos os lados usaram os novos e ainda frágeis aeroplanos na 1ª G. M. A guerra aérea atingiriaa maioridade na 2ª G.M., notadamente como um meio de aterrorizar civis. Não se pode deixarde citar também o pioneirismo britânico no uso dos veículos blindados de esteira. De fato, osdois lados tentaram vencer pela tecnologia. Os alemães levaram o gás venenoso ao campo debatalha, ocasionando o único caso autêntico de repulsa humanitária governamental a um meiode fazer a guerra, a Convenção de Genebra de 1925, pelo qual o mundo se comprometia a não

usar guerra química. De fato, ela não foi usada por nenhum dos lados na 2ª G. M., embora ossentimentos humanitários não impedissem que os italianos lançassem gás sobre os povoscoloniais. O acentuado declínio dos valores da civilização após a 2ª G. M. acabou trazendo de

volta o gás venenoso durante a Guerra Irã-Iraque, nos anos 80. Após a guerra, tornou-se bastante evidente para os políticos que

os banhos de sangue de 1914-1918 não seriam mais tolerados peloseleitores. A estratégia pós-1918 da Grã-Bretanha e da França, tal como aestratégia dos EUA no pós-Vietnã, baseava-se nessa crença. A curto prazo,isso ajudou os alemães a ganhar a 2ª G.M. no Ocidenteem 1940. A longo prazo, os governos democráticos nãoresistiram à tentação de salvar as vidas de seuscidadãos, tratando as dos países inimigos comototalmente descartáveis. O lançamento da bombaatômica sobre Hiroxima e Nagasaki, em 1945, não foi

 justificado como indispensável para a vitória, então absolutamente certa,mas como um meio de salvar vidas de soldados americanos. É possível que aidéia de que isso viesse a impedir a URSS de reivindicar uma participaçãopreponderante na derrota do Japão tampouco estivesse ausente dopensamento do governo americano. 

Enquanto a Frente Ocidental permanecia num impasse sangrento (e romper esteimpasse era crucial para os dois lados, ainda mais que a guerra naval também estavaempatada), a Frente Oriental continuava em movimento. Os alemães pulverizaram umacanhestra força de invasão russa na batalha de Tannenberg, no primeiro mês da guerra, edepois, com a ajuda por vezes efetiva dos austríacos, empurraram a Rússia para fora daPolônia. Apesar de ocasionais contra-ofensivas russas, ficou claro que as Potências Centraistinham o domínio e que a Rússia travava uma ação defensiva de retaguarda contra o avançoalemão. Nos Bálcãs, apesar do desempenho militar irregular do pétreo império habsburgo, ocontrole era das Potências Centrais. Os beligerantes locais, Sérvia e Romênia, sofreram de longeas maiores perdas militares. Os aliados, apesar de ocuparem a Grécia, não fizeram progresso até

o colapso das Potências Centrais, após o verão de 1918. O planoda Itália de abrir outra frente contra a Áustria-Hungria nosAlpes falhou. Enquanto a França, a Grã-Bretanha e a Alemanhasangravam até a morte na Frente Ocidental, a Rússia se via cadavez mais desestabilizada pela guerra que estava perdendo aolhos vistos e o império austro-húngaro cambaleava para odesmoronamento.