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© A efígie suspeita, Floriano Martins, 2009, 2010, 2013 © Fotografias, Floriano Martins, 2012 © ARC Edições, 2013 Abraxas | Biblioteca Virtual Floriano Martins, XVIII Caixa Postal 52817 - Ag. Aldeota | Fortaleza CE 60150-970 BRASIL [email protected] | [email protected] | [email protected]

A EFÍGIE SUSPEITA

2009-2010

A QUEM SOUBESSE O NOME DELA Ocupa-me com teus seios e sua álgebra frenética, com a brevidade do abismo que cultivas no olhar. Do quarto piso do aterro das almas cansadas, uma janela deságua a inquietude de nosso pacto. Não me digas o teu nome, cidade, papiro ou mar. Jamais saberia como reaver-te em meio a tudo que perco no transporte de enigmas luminosos. Redijo um atropelo de caos, quando me reanimas: as cidades não caem fora de si. Erram no que são e se repetem, até que o erro desista delas e se vá. Cobiçarias no outro o que se oculta em teu ser? Caçôo de mim enquanto as imagens se estreitam. Teus mamilos desamparam meu desejo, uma sobra de gozos antes que tudo se repita e seja nada.

LÍGIA Danças e teu vestido alarga a noite. Costuras tua leveza em meu espírito, sem que haja ressalva para o episódio de teus lábios, córrego furtivo, relva anunciada enquanto colas com tua saliva um jogo de nuvens em meu peito. Exaltas o que sou em disfarçado provérbio, carícia que prolonga a noite, reflexo de corpos caindo dentro de um poço onde acumulas o carvão da dança. Teu vestido alegremente exalta o vento e o recolhe na sombra reservada ao sol. Lábios que se abrem como um penhasco, quase me reconheço em teu saguão visível.

BRANCA

Pequenas sombras se espalham pela casa. Insultam a vidência da luz e a vigília do olhar. Mascas o fungo de tua nudez envolta em visões. Já não sabes ao certo quando estou aqui. Despertas um deserto submerso no encaixe de cenas roubadas, clarões da memória, rostos mergulhados em máscaras. Tu me fizeste inacessível. Releio tuas cartas, a tinta atormentada do que buscavas, e não me reconheço ali, sequer uma miragem. As sombras que crepitam em teus anseios são as mesmas, sempre roubadas, sempre. Rasgas a pedra escrita na colina que se move. Como um lacre rompido, um dia aprendo a ser tua.

SANDRA Deixo o espelho aceso na palidez da tarde, para que nos diga onde a ilusão recomeça. Engatinhas por entre os móveis do abismo, e te ris quando não encontras mais nada. Meus seios cravam em ti outra miragem: despimos o improvável, mascamos seus vícios. Rumores recolhem os naipes do silêncio. O espelho soletra um mecanismo de convulsões: labirinto enlouquecido sem saber sair de si. Enquanto nos devoramos a cidade se dissolve. Roubo teus pequenos proveitos, ruínas desfiguradas, usinas de sêmen-fátuo, uivos entalhados na noite como um saque, com a semelhança desfeita em cada beijo.

BERENICE

Em tua casa descoberta na tormenta todos os corpos serão possíveis: sombras instaladas como lâmpadas nos confins de um gozo emboscado entre dois mundos. Cada corpo uma chave, com seus dentes mascando um segredo antes da perda. Vagará por entre os cômodos um abismo sem que reconheça a ossada de seus danos. Tua nudez imune freqüenta todos eles, os corpos alojados sob a tinta em soluços, paradeiro aflito de uma fuga de quimeras. Com seus lábios despistando espelhos, cada corpo se orgulha de abrigar outros tantos, sem saber ao certo onde plantou sua morada.

REGINA

As ruas se repetem como se temessem perder a identidade. Canais de ilusão são abertos em cada esquina como um estojo de vícios. Os lugares em teu corpo onde pousei o afago, janelas entreabertas com luz ainda em seu bojo, tudo insiste em ser igual a um mito aprisionado no espelho, fábula imprecisa ou rio sem leito. Todo êxtase nos impulsiona a uma nova fricção. Hoje percorro as ruas de teu corpo e espanta-me como as cidades em que estivemos são a mesma. Não devias estar aí novamente, nos subúrbios do gozo ou na esfera gasta de cheiros e engodos. Não devias te repetir em parte alguma de meu ser. Eu não te amo mais até que te ame novamente.

DIANA

Eu cubro o teu nome com os cílios da noite. Teu desamparo mal distingue em meus dedos as tintas com que trafego por sua vegetação. Estás sempre nua como uma metafísica insone. Eu misturo as sílabas flutuantes do desejo e rabisco em tua pele uma senha esponjosa. Teus suspiros badalam em ardilosa catedral, com sua areia-gulosa e as jóias do abismo. Não concluis uma frase sem a reticência luminosa de teus seios boiando no tempo, tear de safiras da luxúria, paiol de miragens, partes minúsculas do perigo que se põe a rir sempre que o vemos como um cofre, um fim. O sol configura suas telas com o traje mecânico do esquecimento, penhasco de vícios: não dar por conta de um único anseio no dia seguinte. O mundo se despedaça rindo. Acumulo suas vítimas na ribeira. Pernas trêmulas da melancolia. Manjar contaminado da esperança. E ainda assim ali estás, baile sem rosto e infindo, tua nudez entrevista em seu duplo sentido. Eu abro o teu nome para decifrar seus vidros.

SUSANA Tu me despias por um fio de mansidão, ameaça de luz ao tremor do mínimo gesto. A mobília encantada com tua habilidade em decompor estrelas, bosques, pântano no intimismo de meus relevos, nos vincos de minhas nuvens, arena de fogo e odes ateadas ao emboléu de relvas e suores. Enquanto me desfazias de panos descritos meus olhos fechados tateavam cada cena: paisagem ramificada nas gavetas da cômoda, sombras petrificadas no espinhaço do espelho. Tudo ali cabia na evidência do menor truque: chegavas a inventar tecidos onde não havia, a desfolhar meu espírito no enredo da tarde.

HENRIQUETA Escuto teus passos inacessíveis em mim, testemunho de ânsias e afagos fluentes, formas espantosas que abrigam teu rosto. Rastejas com uma evidência de pálpebras, simulas um duplo e sua sombra refletida. Estás diante de mim e jogas com teu olhar: pequenas pedras pousadas no leito do rio, peixe vibrante que é também o caule sagrado da selva de encaixes que vislumbras em mim. Água e fogo reescrevendo teu nome, o guia de fontes insuspeitas por todo meu ventre. Caminhamos como um feitiço em cujos lábios a febre despe seus fungos, alternando as rochas: onde fixo teu gozo, fitas meu riso.

IRENE

Eu o chamei – como se fosse meu – com suas raízes que fingiam confundir sussurros e silêncio. Ramos que pareciam regressar do abismo, silhuetas que se desfaziam ao som do hálito. Eu o chamei para que me tocasse vivíssimo, e que me pusesse a persistir junto ao mar, indo e vindo dentro de mim, em úmido açoite, meu fôlego crescendo ávido em cada sílaba. Por onde mais viesse, sua extensão me refaria de tudo o que não soube ser antes de tê-lo a evocar-me no centro de minhas aflições. Ele é todo feito de trevas e palavras inumadas. Fetiche extraviado que recolho nos destroços dos amantes que eu nunca soube comover.

REBECA

Uma árvore tremeluz refugiada em sombras. Corpo suando um mistério aplicado às veias que se deslocam: vultos cujo eco de sílabas invade a véspera de teus rumores, a sábia precaução dos sentidos, edificando teu nome. Para aqui viríamos, para o auge dessa pedra com que ilustras as páginas de um sonho. Jamais saberei quantas fui, fúria ou repouso, de um eixo a outro de teu abismo encoberto. Modelaste em mim uma estranha melodia com portas rompidas, de onde não posso sair. Voragem de névoas a conservar em risco a noite de úmidos espelhos de tua carne: tumulto singelo, o beijo com que me acolhes.

ESTELA Fotografas a tempestade restada nos vincos dos corpos delirantes que devotamos ao tempo. Em cada um deles se adivinha o elemento que comporá o seguinte. Eu te amo aqui mesmo. Tu nunca sabes onde me amas. Nem me matas, nem me curas. O amor escala desertos suspensos no laborioso desejo com que desenho teu inferno. Sabes a dor de meu nome, porém não sentes dor. Já não sei como te amar ou te fazer sofrer. No entanto, invades meu ser a qualquer hora, rebentas meu corpo nos rochedos do orgasmo e, quando na minha a tua boca derrama seu vinho, transcreves uma cartografia que não aprendo nunca. Cegas minha alma: o mundo ficou sem resposta.

ISABEL Dores caídas em mim com suas noites inquietas, luzes mordendo-me os lábios, o mar arriscando-se a tocar por dentro as contas do farol. Dá-me tua mão. Ouço-a cantar por todo meu corpo, relva de abismos, deslizamento de angústias, tua ânsia sempre recolhe mais que meus beijos. Deita teu corpo sobre o meu. Acentuas meu destino como uma cadeia rochosa que percorres com o peixe-águia de tuas carícias. Tuas dores naufragam antes que saibam meu nome. Toco a face de tua inundação. Para sempre eu fui o quadrante inabalável do que mais temias, e agora te estendes, como um fantasma obediente, sobre o sigilo dessas águas, trevas líquidas, teu fulgor, morrendo aqui em meu peito, como tanto sonhei.

HELOÍSA Eu fui te buscar do outro lado do espanto, do rio, da cabeceira fulgurante do desejo. Eu fui, pelas escarpas de teus trópicos, cursando o desastre de sombras deslizadas, seus despojos de artérias ainda refulgentes. Onde estavas não estavas e estavas e estou, na vastidão de teu corpo desemboco os reflexos devoradores de tudo quanto, soluços, fulgores, risos, os sóis que se desprendem, onde respiras, tua flor de ossos, labirinto, escarpas. Já não sabes por onde me despertar, anotas sonhos na carne, meu nome cruza teus limites aturdidos, suplicantes, marcas meu corpo como se fôssemos aves nostálgicas em busca de um solstício perdido, alguma ilha, alguém. Eu fui te buscar na outra margem do delírio, e ressoava o cansaço o veneno de sua lírica. Eu fui, por curvas ferozes e lábios escritos, infringir a lei do visível, violar-te sem nada, reescrever a ausência, espectro carcomido do tangível, dizer-te em secreto aposento que não estou sem que estejas e estamos. Requebro de vozes dentro de mim, o rio, metáfora sinuosa planejada por teus pés. O anúncio queimante da metade da ilha, eu te amo, eu te amo, a noite se repete até que sorvas o enigma, o leite do nome, o diamante do pacto, e encontres em ti outra metafísica que a dor simplesmente. Eu fui te buscar do outro lado da busca, do rio, e já não tinhas substância ou rito. Tuas luzes me esgotaram os pássaros, vôo de sílabas, letras como árvores oblíquas, reescrever-te, sempre, sem descanso algum. O teu silêncio extremo onde está estaremos, sem um fósforo que o garanta, zelo ou ironia, apenas ali, quem não se sabe e sabe, onde nunca ou nada, até que o mar se cale. Eu fui te buscar e estou do outro lado do rio.

AMÉLIA Em versos que sabem repetir-se, lentamente desperta a tua noite acumulada em meu peito: folhagem abrigada à beira do abismo, e então me sentes, de bruços, flagrante de peixes escavando nuvens na acústica do mar: bulício rastejante do infinito, o canto que entoas com teu cardume de carícias. Dorso apegado ao entusiasmo, com suas encostas folheando estrofes do fogo aceso no excesso de risos. Ali onde a tua eternidade me acalma, espreito os passos furtivos do desejo, e como me moldas tua ilusão mais fiel. Roubas o limiar de rumores e suas dissonâncias. Olho enfim como passas por meu corpo, como repartes o abismo e estremeço: não te escondes jamais atrás de um segredo.

BEATRIZ

Como pequenos desastres migrando de árvores ou desertos fingindo a infância que não tiveram, expandimos a catástrofe de teus gemidos. Em tuas axilas um displicente alfabeto de algas, rumores de pássaros despedaçados com o canto preservado no penhasco com que me escutas. Vértebras da loucura, silêncios ventríloquos, nos alimentamos do capinzal que cresce entre um vislumbre e outro, pincel de nuvens. Já ninguém se atreve a indagar o próprio nome. Se a chave está perdida, desfeito o poema, que nome dar ao ramo de lágrimas que visita de porta em porta o vilarejo de teu abandono? Parte do que somos somente nos recorda se um acidente lhe importa: entrada redecorada por cupins ou sátira do acaso a reinscrever o homem em seu trajeto. Parte do que somos somente o desgaste reaviva: proeza concreta de carcomidos ciclos da humanidade encravada em nós. Nós da memória, rasgos, erosões da alma: longa jornada da decomposição, até que reescreva seu nome destinado a apodrecer.

PENÉLOPE As cidades se fecham em mapas descartáveis, jazigos turísticos, onde sempre negas meu beijo. Tudo em vão, se a dor desconhece seu nome. Agendas do acaso, retóricas de um futuro gasto. Uma noite deixamos o abismo dormir conosco, estranho vulto cuja vida o cotidiano rejeita, embora não deixe de saltar de um ponto a outro de nossos trapos alegóricos, sua renda alquímica. As cidades, no entanto, recusam a ideia do beijo como uma túnica refeita de mitos que não retornam. Beijo-te e as ruas não vão a parte alguma. Soletram percursos recordados em teu íntimo. Amigam-se da memória ardilosa e suas proezas, como deusas decorando um mantra sacrificial.

ALICE

Teus beijos ensaiam uma alegoria em meu dorso. Eu os sinto como árvores dançando, flamejantes pétalas, constelação de corpos em plena colheita a sussurrar: todo homem é uma recriação. Apontas uma cidade longe em minha vertigem. Vendaval de migalhas, ilhas cegas, velhos mapas que não contavam com teu desamparo. O amor gira sempre em torno de si mesmo. Passa por aqui a galope o teu sexo emocionado, tua piedade de Deus bicada de remorsos. Um castelo agitado repleto de males menores e o vestido de baile de tua primeira ilusão. Passam máscaras como um pranto de roedores e luzes afogadas em poços da mais meiga solidão. Um único personagem em ti se atreve a falar e me acusa de jamais haver saído do poema. Aqui estou eu desfeito em verso, mal recriado, e sem saber como evitar voltar a ser o que sou.

OLÍVIA Eu roubo os declives crispados da luz na cavidade de teu abraço, audácia de suores com que interrogas certos pontos encobertos na brenha de vícios que renascem em teu corpo. Não há melhor saída para o indício que queres instigar em minhas águas. Embaralho tuas quedas incompletas, suas hipóteses rompidas entre beijos. Erras de um extremo a outro da pena, revelando tuas máscaras insuspeitas nos tecidos dissipados da escrita. Refaço tuas dores enquanto pensas que o fogo não me queima dentro de ti.

LUCRÉCIA Antes que a luz desperte rabisco em tua perna um cravo, sem que saibas qual sentido lhe dar. Antes que a palavra procure por si, borro um pouco a sua marca, talvez apenas para criar um mistério. Já estaremos distantes do que fomos no momento em que percebas o rascunho na pele e sua intenção. Jamais fomos a parte alguma – decidirás buscando apagar a mancha, enquanto o enigma se disfarça. A cada esforço por dissipá-lo, diabólico se revela novo signo que a leva a preferir recordar-me. Não irei, no entanto, a lugar algum antes que entendas que jamais estive fora de mim quando o delírio era teu. Abocanhas a parte do diabo em tudo o que imaginas eu ali esteja, sem mais zelo que livrar-te de ti. A mancha em tua carne não era senão uma lesão do gozo, atordoada pelo vazio que lhe seguia. Eu nunca soube o teu nome ou senha para reter a fraude que consome o tempo, o jeito com que vamos de um a outro.

Não era mais simples decifrar a obsessão do rascunho em tua coxa e um café? Tão jeitosa sempre a vida, qualquer uma. Nada no mundo importa pelo fato em si, porém pela marca do cotidiano, visível ou não, pela maneira como o suportamos. Não há verdade alguma a ser defendida. O mundo com seu urro dentro de cada um, não passa de um oco que jamais abrigamos.

ALINE

Teu incêndio forma uma cadeia de labirintos, despojos aflitos com seus rios queimados. Um corpo remando contra os delitos prolongados numa margem e outra, ritos carregados de súplicas e negras portas. Alfabeto de pedras a recolher seus espectros. como uma vida de dores em armários suspensos, tudo ali parece queimar em modos distintos: furor de salmos com passos descontrolados, cinzas maltratadas sem saber onde cair. Teu incêndio funda uma reserva de tumultos. Um corpo imerso em lágrimas vulcânicas, violando os nomes que dedico a seus rostos, cada um abrindo as covas de seu testemunho.

ZENAIDE

A tua caligrafia vibra em meu corpo, suspende as distâncias, recria portas, a desgastar-me de tanto entusiasmo. A meiguice de tua escrita me esvazia. Eu me lavo com tuas palavras, e navego a insensatez de suas virtudes: falam através de mim em impetuoso idioma. Por onde viajo há mil anos me eleges, sempre o mesmo homem relendo sombras, como se em transe a pele fizesse aflorar uma outra agonia, vômito de vertigens, um novo hóspede de teu fogo, anjo tremente com seu manuscrito arrebatado e sutil. De um súbito naufrágio em teu ser renasço.

LEONOR

Eu te persigo como uma lua envelhecida refazendo as nódoas do vento em sua memória, ou ruas abandonadas que se recusam a aceitar não serem mais a rota do fogo ou da seda. Eu te persigo em busca da ruína de meu corpo, que foi lavrada na argila manhosa de teu vulto. Não me virás uma vez mais com teus moinhos de beijos, efeitos alquímicos, sopros de vida, arqueios escritos ao contrário, flor de enigmas. Eu te persigo como uma tonelada de peixes mortos denuncia a falta de mar em mim. Não penso em deixar de morrer. Fecho os olhos e persigo, alheia às linhas de minha mão, o teu fim como se fosse meu último orgasmo.

TEREZA

Eu bebo a soma de teus rios, quando abres o escândalo rascunhado pelo próprio punho e um corpo banhado em murmúrios se agita escondido do destino numa velha escrivaninha. Ali dentro compartes idiomas esquecidos, ruínas disfarçadas, rótulas místicas, um remorso retirado de cena antes mesmo que compreendesse o papel que lhe cabia. Eu me embriago com teus vapores sem pausa, sombras de onde se avista a maré alucinada de tuas ânsias. Dali também vejo o rastro de vultos perseguidos pela angústia, a tua árvore decaída em susto e mistério, a minha vida subitamente enterrada em sábio alvoroço.

MERCEDES Entras em mim pela noite devastada com todos os teus vultos indecifráveis, ao acender a lâmpada da tempestade. Reconheço o ardil de raízes queimando, o elemento flutuante posto em cada sílaba com que me tornas tua árvore mítica. Eu respiro teu fogo e masco a mobília cravada na coxa terrestre de teu enigma. Escuta meu coração rasgando-lhe as veias. Antes que atires todas as janelas fora, dá-me um acesso à multidão de teu nome. Deixa-me gritar por ti antes que arruínes todos os argumentos do destino, antes, bem antes que me deixes sem perguntas.

EUNICE

Tua ausência me enfeitiça e renasces como uma fraude por repetidas noites. Pressinto a espreita dos gemidos pegajosos: teus lábios sempre no limite. Nada em mim jamais esteve a salvo de tua voragem. Quando me encontraste eu estava louco. Recolhia pequenos pássaros congelados e mascava seus vôos em rituais de pranto. Tu me deste a efígie negra de teu ser, como um último recurso e livre rota celeste por entre deuses, desertos, misérias, nomes. Moí o vazio à procura de como empregá-la, a imagem lutuosa de teu afastamento. Percorri os círculos brancos da memória, com suas bestas cochichando ardilezas, até que não houvesse mais noites em mim sem a tua nudez invisível: falso terror com que me golpeias o vôo cristalizado dentro dos pássaros que se foram comigo.

DALILA

O teu abismo me veste, improviso perverso de convulsões e ruídos: jarra de sombras com que corrigimos a sede de nossos corpos. Espreitamos as variações de um deserto adormecido nas escadarias: grafismo exausto, sonho refeito pelo avesso, uma dor intrigante a perturbar a virtude da trégua. A tua crônica se apressa em negar um último enlevo: reanima figuras devotas do fogo, gemidos tateados pela sala, a escultura de gestos úmidos com que me alucinaste. Repercutes em mim as exigências do bosque que impuseste como limite de nosso refrão. Sintaxe faminta, o milagre com que me vestes.

CAROLINA

Tuas mãos renascem singrando meus declives. Verbo exaltado, oscilando em curiosas esquinas: fomos seremos deveríamos – frestas audaciosas, a pele roubada de um instante a outro: enquanto me beijas um mundo inteiro se refaz. Orla abismada do acaso, os dados em tuas mãos. Jogamos com os nervos do resplendor, frescor de músculos extasiados e uma liturgia de suores: árvore arrebatada pelo canto, pássaro fisgado pelo vôo projetado no olho do peixe-lince, luzes como estrelas incompletas. Rotas elétricas, a fruteira de sonhos, teus beijos sem razão alguma. Uma morada de lobos devoradores de sombras. Não dormes nunca. O corpo extenuando a linguagem.

VIRGÍNIA O teu sorriso fala comigo pelo corpo inteiro. Lábios os teus lábios vastos de noite em sigilo trançada em pelos de lâmpada, fiação de algas exaurindo as margens do mundo que me pões pelo avesso em suas negras estrofes confessadas. Beijo a palma de teus sonhos, o instrumento anunciado no extravio de páginas com que esvoaças as ancas em um ardil de ânsias. O teu sorriso ancorado em um bosque suspenso, estrondo de penumbras e letras desfeitas, tudo revirado dentro da casa que interrompes com a tua sombra ateada em grutas e desertos. Mascas um salmo enquanto me percorres, com toda a franqueza do êxtase em teu sorriso.

VALQUÍRIA Corpo idêntico a repetir noites e refúgio. Astúcia cintilante repousada entre afagos. Rio cruzando a mesma sede sob a carne, demônios espelhando a umidade, o sonho adentrando iguais cavidades tuas, o tempo inteiro reescritas, galerias que se retorcem com os rudimentos de um mesmo gozo. A realidade é um velho mecanismo viciado em árvores tombadas e céus manchados de dor. Eu venho aqui todo dia moldar nossos lábios em um beijo análogo, talvez exatamente igual. Perseguimos, na salivante repetição do gesto, um vulto sem memória, que possa guiar-nos através de um súbito abrigo, vagando pela casa.

GLÓRIA Rascunho o teu vulto por dentro da noite. Vozes cavadas no fundo de um bosque, ramos de fogo desatados enquanto esperas que árvores ressurjam da memória vazia. Queimo tuas sombras sem que me toquem. Há fulgores desencontrados que confundem os abismos de teu ser, resumo de quedas, pele rasgada, fragmentos de fuga esquecidos em meio às roupas em desuso no armário. Já não me escutas no horror de teu silêncio. Traduzes como minhas as cinzas de outro sonho. Eu ainda te quero em minhas ruínas incertas, porém me escapas como uma treva muda. Não sei por onde começo a esquecer teu nome.

LÚCIA Não faço ideia se é noite, vertigem ou silêncio. Sopra um vazio contínuo, sem que o identifique. Persiste a catástrofe da memória, a recordar coisas que nunca vivi. A desossar-me. Urro selvático do extravio. Perdemos tudo. Tão sós que sequer percebemos o abandono. A flor-obsessão se foi desmembrando, gerando novos conflitos: pequenos e grandes pomares. Eu te amei até onde pude estar apenas contigo.

JÚLIA Agora é que começas a escapar de mim, saltando de uma paisagem a outra, riso elétrico no rumor do nome refletido. Eis por onde o mistério se atreve a mudar de ramo ou semelhança: as lâmpadas desviam a água de suas visões e recolhem rostos soterrados por um entulho de sombras. Voz impressa na confusão do silêncio, com uma lua ofegante debaixo da cama. Ainda me afogo em tuas mãos, no ardor movediço de tuas luzes, fogo contra fogo. Agora é que começas a lacrar os truques, a mobiliar a vertigem em plena queda.

RAQUEL Desfiamos as margens em nossos corpos, rios pele adentro, comboio sinuoso de carícias, cada vez que me olhas são outros os lábios, seixos, amuletos, destroços, outras as ruas por onde respiras, outro o compasso da areia. Contamos nuvens em tua mão, deserto furtado à noite recostada um segundo, mapas do acaso, fulgor de árvores imitando dedos, anjos travessos. Por entre um bosque de vultos tu me conduzes, enquanto decifro o espelho que me apontas. Saboreamos os estreitos virtuosos de tua mão, mares fixados em pálpebras e uma lua vítrea adernada entre seios. Suas linhas percorrem o destino que em outro tempo julgamos nosso.

DENISE Há uma voragem imediata que nos enlaça, lâmpadas criadas no mesmo olho do desejo. Uma euforia da semelhança despindo-se enquanto me beijas: revoada de espelhos, letra revelando-se em pequenos caprichos. Apanho a confissão de tuas sombras, a carícia do céu esquecido na mesa da sala, um rosto visível e outro extinto no encaixe de gozos. Tu me beijas o pássaro, a pedra, o abandono. Um frenesi sem fim palpita em teus braços. Pernas se multiplicam em comovidas formas. O dia reluta em guardar segredo: teus suores: nenhum perigo será mais grave: refúgio algum terá sossego: nada mais nos escapa ou retorna:

MARIA

Acompanho a vigência da chama ondulando a paisagem de teu corpo. Para cada ângulo de meu olhar tens um extravio pronto, um alvo a insinuar-se lento enquanto me lês por trás de arbustos e restos de luz. De onde me vês mil símbolos buliçosos se agitam despindo abismos e órbitas: formas que soluçam correnteza abaixo, letras úmidas do barro em que modelas teu arcanjo rebelado em meu espírito. Desata-me na medida de teus dons. A todo instante erramos as páginas, braços e pedras, dessa casa invisível.

NÁDIA Vens do fogo: a casa nua, o corpo vazio. Um pé no imprevisto, afagas uma tensão constante – piedade a quem te chama. Rompido o esmalte das visões, sombras emergidas de semblantes esgotados. Comoção de letras ao pé de cada espelho, refúgio a deslocar-se de uma pedra a outra, da nuca ao joelho, do calcanhar ao queixo. Nunca te vi tão linda como a espreguiçar-se excitando a combustão, um vulto lendário em sua marca de olho de peixe e o transe de formas ensopadas em súbito ofertório. Incêndio nos ombros e improviso de lábios. Deus algum jamais decifraria tal riso.

CECÍLIA Simulas tua queda dentro de mim, com seu orgasmo de tintas e livros gastos, escombros de vértebras e chaves cegas. Preparas um último verso em meu desmaio. Há muito não sonho com teus fantasmas azuis e, no entanto, em palavras mesquinhas teu enxame de cadáveres se apropria da miséria de meus dias. Já não sei como lidar com a eloqüência de teus espelhos. Até onde esgotar o sangue dissimulado com que regas teus campos. Descarrilas em tuas pernas todo o ritmo de quimeras que rege a existência. Moscas regurgitam o útero aceso de tuas máquinas. Ciclos vorazes da soberba. Lábios metálicos consumindo frascos de metáforas anômalas. O mundo aos teus pés, as pás do silêncio, o pó das surpresas. Há muito não há mais cura ou motivo para estar aqui. Teimamos porque a noite não se vai, porque persiste um labirinto profundo e delicioso ou simplesmente porque não sabemos como apagar esta lâmpada aflita do desespero. O mundo não obedece a mais ordem alguma e quando um de nós toca seu fundo já não há mais princípio ou fim, nada que reconheça o mito da ressurreição. Tuas lágrimas são fulgores vãos. A indignação uma paisagem transtornada e exposta a um reflexo risível de sua comiseração. Antes que fôssemos estas ruínas azuis eu tanto sonhei contigo ao ponto de me confundir com tuas sobras. Caminhamos pelas cidades, rimos de tudo, nos sentimos alheios à indigência humana. Nada é conosco e até nos orgulhamos de nossa descendência suicida. Por que ainda insistes nisto? Eu nunca estive aqui.

SALOMÉ Os olhos com que te vejo já começam a exigir de mim outra morada. Sinto que suspeitam das coordenadas atuais. Tocam-me como se uma pele de cinzas revestisse o espírito de tudo o que vivemos. Em silêncio embaralham nossas visões, os recortes sensíveis de uma vida em comum. Desalojam velhos segredos, despedem-se de imagens descoradas, riem da memória quando esta se desfaz de gastos vislumbres. Os olhos com que te vejo, no entanto sequer confabulam seus truques em minha retina. Será como sempre [dizem]: abrir-se ao incerto, até que novas formas se fixem e multipliquem.

ÂNGELA Deteve-se diante das três faces do labirinto. A noite chorosa a qualquer hora do percurso. Velhos tecidos manchados e lúgubres impondo um limite a cada cena com sua névoa de perversões. Um vulto gravava em sua retina a planta do lugar, por mais improváveis que fossem regresso ou saída. Os véus se entreabriam com sua flor de cultos, sítio de ritos que dilaceram a alma, torpezas do espírito, agonias do ser em seu último recurso. O labirinto é uma trapaça com suas três faces. Pouco adianta reconhecer o dilema que o define. O tempo contamina o espaço com suas evasivas. Anônimos expõem seus vícios em cada cela. Enumerá-los é como abrigar insuspeitável culpa. O labirinto é a soma do quanto nos desconhecemos. As três faces do sonho não se engabelam tão fácil. Pouco importa que a vigília associe erro e naufrágio e os simplifique como um deslize repentino. Em um dos quartos entre véus se via prostrada a moribunda figura que era um rio e um fio de prumo. Esquálida senhora interrogada por sua resistência, ali estava à espera de alguém a quem passar um infortúnio, um novelo de signos, uma graça. A quem importa reconhecer-se em tal labirinto? O vulto vislumbrava a si mesmo naquela mulher, um golpe, um martírio, uma escapadela, revezes de um conflito onde se confundiam seus planos. O cenário se transmudava sempre com o assalto insuspeito de fugidios personagens de seu passado. O modo como os parentes foram mortos, sinais de intrigas, fezes familiares, abortos, disfarces entre orações e contribuições comunitárias. Não havia pesagem suficiente para tantas almas. A velha decrépita converteu-se em um enigma que apontava na direção de uma dor fugidia. O vulto não sabia por onde recomeçar a sonhar.

A vida não nos leva em consideração jamais. O labirinto se furta de si a cada face reconhecida.

HELENA

As línguas viajam pelo céu da boca, sempre aladas, como anjos caídos. Ao dizer-te que meu nome era Ilusão, meu sermão não levaste em conta. E passaste a me chamar como antes, como sempre me soube tua imaginação. As línguas nos levam de uma parte a outra, sempre em trânsito, guiadas pela gravidade. Jamais te vi tão nua quanto no dia em que me puseste sal na língua a entoar um não te vás silencioso e veraz como a lua. A língua nova era tua e sonhei com ela toda uma vida, sem saber onde pousar. Agora que o sei, o céu muda de lugar.