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Universidade Federal de Pernambuco Centro de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Curso de Doutorado Linha de pesquisa em Formação de Professores e Práticas Pedagógicas JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL: DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS RECIFE 2015

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Page 1: A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL: … - com... · Dra. Rosângela Tenório de Carvalho, Ana Paula Abrahamian, Ana Paula Rufino, Ana Cristina Hazin, Camila Oliveira, Natália

Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Curso de Doutorado

Linha de pesquisa em Formação de Professores e Práticas Pedagógicas

JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA

A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:

DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO

DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

RECIFE

2015

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Universidade Federal de Pernambuco

Centro de Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Curso de Doutorado

Linha de pesquisa em Formação de Professores e Práticas Pedagógicas

JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA

A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:

DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO

DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

Tese apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal de

Pernambuco como requisito para

obtenção do título de doutora em

Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Rosângela

Tenório de Carvalho

RECIFE

2015

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JANAYNA SILVA CAVALCANTE DE LIMA

TESE DE DOUTORADO

A EDUCAÇÃO NO HORIZONTE DO PROVÁVEL:

DISPOSITIVOS BIOPOLÍTICOS NA ESCOLARIZAÇÃO

DE PESSOAS JOVENS E ADULTAS

COMISSÃO EXAMINADORA:

_________________________________________

Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho

1ª Examinadora/Presidente

_________________________________________

Profa. Dra. Silke Weber

2ª Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Simão de Freitas

3º Examinador

__________________________________________

Profa. Dra. Karina Mirian da Cruz Valença Alves

4ª Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Rui Gomes de Mattos de Mesquita

5º Examinador

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Aprovada em : 17/07/2015
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À minha avó materna, Maria Odília da Silva, que viveu e morreu sem saber ler e

escrever, mas sabia rir dessa condição, que não a impediu de ser uma das maiores fontes

de sabedoria em minha vida, expressa em provérbios para todas as horas do dia,

palavras que voam e permanecem, contrariando o ditado latino “verba volant scripta

manent”, palavras e saberes que se fazem presentes hoje e por longo tempo.

Ao meu avô materno, Luís Targino da Silva, operário da Fábrica da Macaxeira,

alfabetizado, que dava aulas de ler e escrever no horário de almoço a outros operários

que assim o desejavam.

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AGRADECIMENTOS

Em princípio, manifesto minha gratidão aos seres cujo labor secular e cuidado

antiquíssimo me permitiram estar aqui e fazer o que faço e seguir fazendo. Àqueles e

àquelas cuja caminhada na terra em vários planos energéticos traçou as estradas pelas

quais pude percorrer minha própria andança neste mundo. Gratidão às forças do

universo que me sustentam e me fazem ver o que tem de ser visto, escutar o que tem de

ser escutado, falar o que tem de ser falado. Axé!

À minha orientadora, Profa. Dra. Rosângela Tenório de Carvalho, com quem

naveguei para adentrar no arquipélago das ilhas desconhecidas do pensamento

foucaultiano e dos meandros da escolarização, meu agradecimento profundo pela

parceria intelectual, pelo afeto transbordante, pelas valiosas lições sobre a carreira

acadêmica, pela habilidade de falar e silenciar nos momentos certos, permitindo que o

meu processo de reflexão fosse constituindo-se com a autonomia necessária para o

aprendizado.

À minha família ― Luzinete Targino, Samuel Cavalcante, Tatyana Cavalcante e

Lucia Moura ―, cujo suporte afetivo vem sendo a base sólida para minha

sobrevivência!

A Joana D’Arc Santos, professora da Rede Municipal de Ensino do Recife, meu

reconhecimento pela sua perspicácia e compromisso que, mesmo em contexto altamente

desfavorável, diante de um trabalho por vezes desumanizador à frente da coleta de

dados da educação, não permitiu que a biopolítica limitasse sua visão a ponto de

impedi-la de chegar até a mim ― então gerente da Educação de Jovens e Adultos

daquela Secretaria Municipal ―, entregar um calhamaço de históricos escolares e fazer

a pergunta certa: o que você vai fazer com isso?

Às amigas da Secretaria de Educação do Recife: Vilma Lins, Andréa Lobo,

Fátima Bizarro, Lucia Ferraz, Márcia Cabral, Taciana Durão, pelas tardes e noites de

trabalho, pelos risos, pelo companheirismo, pela dedicação, compromisso e pela

confiança sempre inspiradora. Ao companheiro Inaldo Rocha, exemplo de servidor

público e, sobretudo, amigo no compromisso com a educação. Ao companheiro

Antonio Elba, que compartilhou desses momentos. A todas as diretoras de escolas,

professoras, alfabetizadoras de programas que não poderei citar aqui por falta de espaço,

mas com quem de algum modo pude aprender sobre o funcionamento da escolarização

de EJA, meu agradecimento cheio de esperança!

A Lenira Silveira, pela amizade delicada e doce, e pela incrível habilidade de

transformar cada dificuldade em um aprendizado profundo, duradouro e comprometido

com o povo.

Ao Prof. Dr. Licínio Carlos Viana Silva Lima, da Universidade do Minho, pelas

horas de intensa discussão sobre as políticas de Educação de Adultos, nas quais teoria e

prática se combinavam para uma compreensão mais profunda sobre a realidade; pelos

livros disponibilizados de sua biblioteca particular, inacessíveis de outro modo, pela

generosidade intelectual que pude testemunhar durante o período de estudos no

doutorado sanduíche sob sua orientação, meus agradecimentos sinceros.

Aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação, nas pessoas de

Morgana Marques e Karla Reis Gouveia, cuja competência técnica e capacidade de

escuta foram imprescindíveis para que eu, mesmo distante, pudesse ter minha vida

acadêmica organizada e exequível.

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Às companheiras do Grupo de Estudos Foucaultianos coordenado pela Profa.

Dra. Rosângela Tenório de Carvalho, Ana Paula Abrahamian, Ana Paula Rufino, Ana

Cristina Hazin, Camila Oliveira, Natália Belarmino, Patrícia Ignácio, Talita

Nascimento, pelos momentos de aprendizado mútuo que contribuíram para minha

compreensão melhorada sobre o pensamento de Michel Foucault.

A Jacirema Bernardo, educadora, antropóloga e pensadora olindense, ao lado de

quem pude participar de algumas das mais contundentes experiências de aprendizagem

da alfabetização e da Educação de Adultos, através do enfoque Reflect-Ação, quiçá uma

das pedagogias mais revolucionárias já criadas para o fortalecimento dos povos. Evoé!

A Beatriz de Barros de Melo e Silva, a pessoa que me fez o primeiro convite

para participar de uma atividade de alfabetização de adultos no sertão profundo de

nosso estado. A Graça Melo Vital, cuja delicadeza e generosidade me fizeram aprender

a observar os detalhes da prática pedagógica.

Ao Professor João Francisco de Souza, in memorian, pela vivacidade intelectual

com que produziu em algumas de nós, estudantes dos projetos do NUPEP, a paixão pela

Educação de Adultos e pelos estudos críticos da Educação Popular, no bom lugar onde

estiver, professor João, meu agradecimento póstumo!

A Aline Cavalcanti, com quem o exercício da amizade vem sendo um longo

diálogo, aberto, fluido, intempestivo, criativo e comprometido com a humanidade!

Gratidão, irmã!

Aos colegas do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas:

Jorge Luiz Feitoza Machado, João Caetano Linhares, Márcio Javan Camelo, Clever

Luiz Fernandes e Hawbertt Rocha Costa, do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em

Ciências Naturais, do Campus de Bacabal da Universidade Federal do Maranhão, pelos

momentos de debates rigorosos e animados sobre as perspectivas epistemológicas do

mundo contemporâneo, sobre os problemas da formação de professores e da produção

de ciência a partir dos princípios éticos da vida docente concernentes à nossa condição

de servidores públicos.

Às irmãs de fé e luta Ciani Neves, Janny Rodrigues e Rozário Silva, aos

queridos irmãos Augusto Crisóstomo e Lucas Ryman, com quem pude atravessar com o

coração leve e tranquilo uma tempestade necessária para confirmar que o mundo não é

como estavam querendo nos dizer.

Aos professores do Centro de Educação da Universidade Federal de

Pernambuco, pelo estimulante ambiente intelectual do qual pude desfrutar em diferentes

etapas de minha formação em graduação e pós-graduação. Aos professores Alexandre

Simão de Freitas e Flávio Henrique Brayner, pelos questionamentos, provocações e

pelas leituras estimulantes e profundas dos problemas da educação.

À Prof. Dra. Cíndia Brustolin, pelas conversas de alto nível sobre as

epistemologias da resistência aos processos de dominação, pela atenção cuidadosa que

nunca poupou uma palavra coerente de incentivo e motivação, pela amizade sempre

presente nos momentos mais difíceis de nossas vidas de imigrantes!

A Maria Tereza Trabulsi, Isabell Mendonça, Paloma Sá, Márcio Boás,

educadoras e educador do Jardim Waldorf Guará Mirim, cuja ousadia e prática

pedagógica me trouxeram de volta a esperança com os processos de Formação Humana.

Mas, também por todo o acolhimento e afeto franqueados nessa minha vida tão especial

no Maranhão.

A Márcio Soares e Gabriel Kafure, dois amigos cuja síntese entre inteligência e

sensibilidade foram fundamentais para algumas das reflexões expostas neste estudo.

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A Johnny Martins, detalhista leitor deste texto, cujo apuro e delicadeza

contribuíram com a legibilidade final da tese, minha gratidão!

Ao povo brasileiro que, através de seus impostos, financia estudantes como eu

na realização de seus estudos, com bolsas fornecidas pela Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

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A escritura metódica me distrai da presente condição dos homens.

A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos assombra.

Eu conheço distritos onde os jovens se prostram diante dos livros e

beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma só letra.

As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que

inevitavelmente degeneram em banditismos dizimaram a população. Creio

ter mencionado os suicídios, a cada ano mais frequentes. Quiçá me

enganam a velhice e o medo, mas suspeito que a espécie humana – a única

– está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária,

infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil,

incorruptível, secreta.

J.L. Borges, A biblioteca de Babilônia, 1941.

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RESUMO

A tese intitulada “A Educação no horizonte do provável: dispositivos biopolíticos na

escolarização de pessoas jovens e adultas” tem como objeto as relações de poder que

sustentam os dispositivos de governamentalidade desenvolvidos para a administração

social das populações adultas no âmbito da escolarização. Tomando a Educação de

Adultos como um discurso biopolítico, o estudo objetiva explicitar e discutir as linhas

de visibilidade e enunciabilidade pelas quais esta modalidade educacional se produz

enquanto fenômeno biopolítico no âmbito da educação escolar. Para proceder a este

intento, analisa as estratégias enunciativas que se desdobram sobre os territórios

discursivos dessa modalidade educacional, configurando os mecanismos que a fazem

agir sobre sujeitos e populações. A partir das conceituações de biopolítica e

governamentalidade em Foucault, o estudo enfoca os procedimentos do poder no

processo de criação da população não alfabetizada como alvo das tecnologias do

constrangimento e do abandono. Com o aporte das discussões de Giorgio Agamben

sobre subjetivação e dessubjetivação, vida nua e estado de exceção é desenvolvida a

análise sobre as posições de sujeitos presentes nos enunciados da metanoia e da

vergonha como operadores do constrangimento, e da precariedade como operadora do

abandono. O posicionamento metodológico da tese realiza-se numa síntese das

abordagens genealógicas, dos estudos foucaultianos sobre o discurso e de suas análises

biopolíticas, priorizando os processos de compreensão sobre a atualidade das relações

de poder nos dispositivos analisados. São focalizados enunciados advindos do discurso

parlamentar, do audiovisual e das campanhas de alfabetização, além do campo reflexivo

da pedagogia, os quais participam da produção de diferentes modos de veridição da

relação do sujeito com o projeto social da escolarização. Também são enfocados os

enunciados presentes em históricos escolares, pelos quais são discutidas as

temporalidades divergentes e os deslocamentos produzidos pela população não

alfabetizada presente ao espaço complexo da escola e inserida no processo ambíguo da

escolarização. A análise problematiza categorias estáveis a respeito dos benefícios da

Educação Escolar para populações adultas, o valor da escrita na vida dessas populações,

além das formulações subjetivantes encarregadas pela interpelação dos sujeitos a

inserirem-se na ordem do discurso escolar.

Palavras-chave: Alfabetização de Adultos. Educação de Adultos. Escolarização.

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ABSTRACT

The thesis entitled "Education in the horizon probable: education of young people and

adults as bio-political device" has as its object the power relations that make up the

governmentality devices developed for the social management of adult populations

within the school. Taking Adult Education as a bio-political discourse, the study aims to

explain and discuss the lines of visibility and enunciabilidade why this educational

modality is produced as bio-political phenomenon in the field of school education. To

carry out this purpose, it analyzes the declared strategies that unfold on the discursive

territories this educational modality, setting up mechanisms that make it act on

individuals and populations. From conceptualizations of biopolitics and

governmentality in Foucault, the study focuses on the power of the procedures in the

creation of the population illiterate targeting technologies embarrassment and

abandonment. With the contribution of Giorgio Agamben discussions of subjectivity

and desubjectivation, bare life and state of emergency is developed analysis of the

subject positions present in the statements of metanoia and shame, and embarrassment

operators, and precarious as operator of abandonment. The methodological positioning

of the thesis carried out a synthesis of the genealogical approaches of Foucault's studies

of the speech and its biopolitical analysis, prioritizing the understanding of processes on

the current power relations in the analyzed devices. Are focused statements arising from

the parliamentary speech, audiovisual and literacy campaigns, in addition to the

reflective field of pedagogy, which participate in the production of different modes of

veridição the subject's relationship with the social project of schooling. Also they

focused on the statements present in transcripts for which discusses the different time

frames and displacements produced by the population illiterate by the school complex

space and ambiguous schooling process. It is considered as a result of analyzing the

performance of denaturalization of the categories for which it is thought the Adult

Education generated by the debate over the power lines that say what is visible and what

can be said in the regime of truth of Adult Education educated in their version.

Keywords: Adult Literacy. Adult Education. Schooling.

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RESUMÉ

La thèse intitulée «L'éducation à l'horizon probable: l'éducation des jeunes et des adultes

en tant que dispositif de bio-politique» a pour objet les relations de pouvoir qui

constituent les dispositifs de gouvernementalité développés pour la gestion sociale des

populations adultes dans l'école. Prenant l'éducation des adultes comme un discours de

bio-politique, l'étude vise à expliquer et discuter les lignes de visibilité et

enunciabilidade pourquoi cette modalité éducative est produit comme phénomène de

bio-politique dans le domaine de l'enseignement scolaire. Pour réaliser ce but, il analyse

les stratégies déclarées qui se déroulent sur les territoires discursifs cette modalité

d'enseignement, la mise en place des mécanismes qui rendent agir sur les individus et

les populations. De conceptualisations de la biopolitique et la gouvernementalité à

Foucault, l'étude met l'accent sur la puissance des procédures dans la création de la

technologies de ciblage des populations analphabètes embarras et l'abandon. Avec la

contribution de discussions Giorgio Agamben de la subjectivité et de désubjectivation,

la vie nue et l'état d'urgence est mis au point l'analyse des positions de sujet présents

dans les états de la metanoia et la honte, et les opérateurs de l'embarras, et précaire en

tant qu'opérateur de l'abandon. Le positionnement méthodologique du travail de thèse

réalisé une synthèse des approches généalogiques des études de Foucault du discours et

son analyse biopolitique, la priorité à la compréhension des processus sur les relations

de pouvoir actuelles dans les dispositifs analysés. Sont des déclarations ciblées

découlant des campagnes parole, de l'audiovisuel et de l'alphabétisation parlementaires,

en plus du champ de réflexion de la pédagogie, qui participent à la production des

différents modes de veridição la relation du sujet avec le projet social de la scolarité. En

outre, ils ont porté sur les comptes présentent dans les transcriptions pour lequel aborde

les différentes échelles de temps et les déplacements produits par la population

analphabète par l'espace complexe scolaire et processus de scolarisation ambiguë. Il est

considéré comme un résultat de l'analyse de la performance de dénaturalisation des

catégories pour lesquelles il est considéré l'éducation des adultes générée par le débat

sur les lignes électriques qui disent ce qui est visible et ce qui peut être dit dans le

régime de vérité de l'éducation des adultes instruits dans leur version.

Mots-clés: L’alphabetisation des adultes. L'éducation des adultes. Scolarité.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

PARTE I: HORIZONTES TEÓRICOS

Capítulo 1: A população como objeto da razão: a arte de conduzir as multidões........................ 33

1.1. Trajeto teórico-metodológico ........................................................................................................ 35

1.2. A genealogia como procedimento epistêmico .............................................................................. 39

1.3. O biopoder e regulação das populações ....................................................................................... 42

1.4. O jogo estratégico das forças: a noção de dispositivo.................................................................... 47

1.5. Uma análise biopolítica: seus desdobramentos ............................................................................. 58

1.6. Exceção e vida nua como alegorias do analfabetismo................................................................... 63

Capítulo 2: A escolarização das populações adultas: um problema biopolítico 72

2.1. A emergência da população de adultos analfabetos e baixo-escolarizados................................... 78

2.2. Neoliberalismo: a razão política na administração do precário...................................................... 91

2.3. A Educação de Adultos nos diversos arranjos da estatalidade....................................................... 94

2.4. Poder dizer sobre Educação de Adultos: elementos do debate epistemológico............................. 103

PARTE II: TECNOLOGIAS BIOPOLÍTICAS DA ESCOLARIZAÇÃO DE ADULTOS

Introdução: secularização e normalização da escrita........................................................................... 123

Capítulo 3: A vergonha e a conversão: a enunciação do constrangimento ................................... 132

3.1. A vergonha nacional nos discursos parlamentares sobre alfabetização de adultos........................ 138

3.2. O circuito da conversão: uma linha de força na Tecnologia do Constrangimento . ...................... 148

3.2.1. O discurso da metanoia em Álvaro Vieira Pinto e Paulo Freire ................................................. 150

3.2.2. Vida Maria: “perder tempo desenhando nome”.................................................................. ........ 162

Capítulo 4: O precário como estratégia: a visibilidade do Abandono............................................ 172

4.1. A campanha como dispositivo biopolítico .................................................................................. .. 180

4.2. Urgência, parcimônia e improviso: regularidades discursivas nas campanhas de alfabetização

brasileiras 1947-2003..............................................................................................................................

186

Capítulo 5: Tempos e Deslocamentos Divergentes no Espaço Biopolítico da

Escolarização........................................................................................................................................

196

5.1. Racionalidade estatística e biopoder na gestão da população não alfabetizada............................. 200

5.2. A documentação “Histórico Escolar” e as operações sobre o arquivo .......................................... 205

5.3. Deslocamentos divergentes problematizando os parâmetros da escolarização.............................. 219

5.3.1 A EJA de longa permanência: os ciclos dos adultos longevos..................................................... 220

5.3.2. Os excessos de ausência e os regimes de persistências de estudantes adultos............................ 228

5.3.3. 9,6 anos de estudos e nenhum diploma: o ciclo de escolarização das pessoas negras................ 231

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ .... 237

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 243

ANEXOS

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INTRODUÇÃO

O título desta tese faz referência a um texto de Haroldo de Campos de 1969,

intitulado “A arte no horizonte do provável”, no qual o poeta e teórico da literatura

discorre sobre a incorporação do acaso na produção estética, com especial ênfase na

música e na poesia. Poeta concretista, integrante de um movimento que propulsou a

poesia brasileira ao status de vanguarda de um tempo que começava a se autodenominar

como “contemporâneo”, Campos informa que a incorporação do acaso na arte dialoga

com o reconhecimento do princípio da incerteza tal como discutido na física quântica,

mas busca também questionar os automatismos ― então em franco desenvolvimento ―

que pareciam anunciar a supressão da liberdade e do acaso por uma sociedade do

controle e da previsão.

Controle e previsão são dois dos principais termos relacionados à dimensão

política do contemporâneo, na qual, para nosso assombro, torna-se mais forte o jogo de

garantir que o movimento das populações, cada deslocamento dos sujeitos, seja

devidamente registrado, fotografado, anotado. A produção contínua desse espaço social

controlado produz documentações, técnicas e tecnologias cada vez mais diminutas,

rarefeitas, dispersas, mas articuladas por linhas de força que condicionam práticas e

lugares sociais, destinos, narrativas sobre o sujeito e caminhos que ele pode ou deve

percorrer. Cria-se o espaço biopolítico, em que as regras do que pode ser dito e do que é

visível são administradas, assimiladas às médias, e assim colocadas sob a providência

da lei e da ordem através de seus dispositivos.

Para Haroldo de Campos, além de serem procedimentos incorporados pela arte

como “contra tecnologias”, o acaso e a incerteza são assumidos em seu viés de

possibilidades interpretativas, colocados, assim, no lugar da hermenêutica possível do

presente, que se resguarda do passado como herança e o desmonta numa nova tradição

da qual resta apenas uma proveniência. A genealogia dos dispositivos que se movem

nessa proveniência assimila, desse modo, aquilo que o russo Boucourechliev (apud

CAMPOS, 1977, p.20), discutindo a estética musical de Pierre Boulez, descreve como

“duas redes de trajetórias que devem ser executadas alternativamente (são assinaladas

com tintas de cores diferentes) propõem ao intérprete conjuntos de estruturas dentre os

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quais ele escolherá seu percurso guiado pela própria notação. O antes e o depois perdem

aí seu sentido tradicional; a leitura não é linear, mas diagonal, vertical, em giro...”.

Com esse espírito interpretativo, necessário ao desdobramento de uma

compreensão aprofundada sobre os mecanismos pelos quais dispositivos educacionais

colaboram com o governo das populações, nosso trabalho mobiliza as teorizações de

Michel Foucault e Giorgio Agamben sobre poder e sujeito ― relação instável,

contingente, incerta e perigosa ― para dar conta das questões que a convivência com o

campo teórico-prático da Educação de Adultos fez vir à tona.

O caminho tomado priorizou o estudo de algumas ancoragens que consideramos

significativas na constituição do fenômeno da Educação de Adultos como prática

biopolítica. Elencamos os pontos onde essa modalidade educacional sustenta um

discurso da salvação do sujeito, no qual produz um lugar de vergonha a partir do qual

ele deve se mover em direção à salvação pela alfabetização. Esses pontos de ancoragem

constituem o regime do enunciável, da ordem das coisas ditas, denominado neste estudo

por Tecnologia do Constrangimento. Além daqueles, elencamos os pontos em que o

espaço institucional da escola funciona enquanto política que torna essa população

visível e administrável. Sujeitos e objetos nessa dimensão recebem a marca do precário,

sendo, por conseguinte, produzidos pelo regime de visibilidade que atua na população

quando interpelada e colocada sob a lei e a ordem do aparato escolar. Essas ancoragens,

da ordem das coisas visíveis, constituem a Tecnologia do Abandono.

É importante salientar que a face biopolítica da Educação de Adultos é uma das

tantas possibilidades de sua realização. Esta pesquisa não se dedicou a análises de

práticas singulares, mas de arranjos de práticas, que respondem por algumas

regularidades de tal modo que constituem uma racionalidade posta em funcionamento

quando acionamos a discursividade dessa forma da escolarização. A Educação de

Adultos, portanto, não é apenas biopolítica, mas é biopolítica também. Compreender de

que modo opera essa biopolítica é o objetivo central deste trabalho.

Há diversas racionalidades presentes na Educação de Adultos, desde aquelas que

dizem respeito às suas formas não estatais, nas quais a prática dos movimentos

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emancipatórios encontra, no domínio do conhecimento poderoso1 e prestigiado da

escrita, uma das ferramentas de sua luta, até aquelas que reconhecem no Estado um ente

executor fundamental na garantia da ideia de universalidade a ser produzida pelas

políticas públicas de educação. Há, também, as formas locais da razão que se

apresentam ali onde o saber do método se dirige ao sujeito propondo sua instrução, onde

professores se dirigem a alunos, onde escolas como instituições recebem, nos seus

modos típicos, a população não alfabetizada. Nosso estudo se dirige à racionalidade

biopolítica, aquele uso específico da razão que confere inteligibilidade à questão da

escolarização de pessoas adultas no horizonte da modernidade, no recorte específico em

que o Estado governamentalizado interpela as populações demarcadas pela “falta

universal” da escrita.

Genealogia empírica da pesquisa

O tema do nosso estudo nasce de uma série de observações, vivências e leituras

em torno à questão dos modelos de atendimento à demanda social por escola para

adultos e “combate” ao analfabetismo. No Brasil, já se fala sobre campanhas de

alfabetização de adultos há pelo menos 70 anos. A nossa pergunta inicial de pesquisa,

ainda ingênua, porque composta no lugar da pesquisa informal, na dinâmica da

operação de um sistema de alfabetização numa rede pública de educação, questionava:

por que há tantos limites para que se realize a ação alfabetizatória?

A observação contínua dos mecanismos de operação dos programas de

alfabetização e sistemas formais de ensino deixava a cada dia mais e mais perguntas no

ar, tais como: por que o perfil de professor leigo não foi superado ainda? Por que os

valores investidos continuam sendo tão pequenos? Por que o tempo de aprendizagem

continua sendo o tempo do sistema e não o do sujeito? Por que há tantas brechas para a

reinserção dos mesmos sujeitos nos mesmos programas? Por que a lógica quantitativa

continua superando qualquer outro argumento na operação de uma ação educacional?

Por que não conseguimos modelos diferenciados para atender mulheres com filhos,

trabalhadores noturnos, moradores de rua? Por que não conseguimos que o

1 Conhecimento poderoso refere-se aos saberes que representam condição de acesso a um acervo de

saberes/poderes estratégicos para a obtenção de direitos, fortalecimento de lutas e empoderamento diante

das opressões.

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financiamento público da educação cubra as matrículas dos estudantes da EJA, oriundos

dos programas de alfabetização, no mesmo ano calendário2? Por que não podemos

matricular os estudantes diretamente na rede pública, no ensino fundamental, sem a

passagem pelo programa de alfabetização? Por que precisamos submeter pessoas jovens

e adultas a 200 dias letivos de aula, dezenas de horas anuais de frequência escolar,

avaliações balizadas por critérios de frequência e rendimento? Por que as turmas de EJA

precisam ter número mínimo de alunos para funcionar, e por que elas são fechadas

quando possuem menos de 10 alunos com frequência regular? Por que o cálculo de

frequência individual dos estudantes de turmas de EJA é feito com base numa lógica

linear e formalista, desprezando a sabedoria das professoras, que contabilizam a

presença e não a ausência, considerando já uma vitória a pessoa adulta conseguir chegar

até a escola, num contexto essencialmente desfavorável a essa prática?

O argumento de que uma racionalidade orçamentária, liberal, estatal, presidiria

as decisões no campo das políticas públicas não parecia suficiente, uma vez que ela

também era e permanece sendo parte de alguma outra coisa, da qual é semelhante e com

a qual é articulada. O fato de estarmos diante de políticas neoliberais parecia ser um

horizonte de explicações, mas esse horizonte continuava não sendo suficiente, e

precisávamos compreender de forma mais refinada essa influência.

Diante desse cenário, não era um fato surpreendente que os principais problemas

das turmas de programas de alfabetização fossem justamente a dificuldade crescente em

conseguir formar/mobilizar grupos de 15 pessoas não alfabetizadas para legitimar (ou

ativar, na linguagem do sistema) uma turma, bem como a dificuldade em manter estas

turmas em funcionamento durante o tempo de execução do programa. Ao lado dessa

questão, o principal problema das turmas regulares de EJA, as turmas do ensino

fundamental, era também relativo às matrículas, bem como à evasão e ao abandono

escolar, assuntos já clássicos do campo da Educação de Adultos.

Os principais argumentos em circulação na explicação desses fenômenos

remetem ao fato, aparentemente inegável, de que ocorre anualmente uma diminuição do

público de EJA, pois a sociedade está sendo escolarizada mais cedo. Mas esse é um

argumento sofismático. Ele não se sustenta diante de alguns contornos do próprio real:

2

No ano de 2012, foi criada a Resolução FNDE nº 48, de 02 de outubro de 2012, garantindo o

financiamento per capta dos estudantes de EJA oriundos do Programa Brasil Alfabetizado, para sua

inserção no mesmo ano calendário em escolas públicas dos anos iniciais do ensino fundamental.

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pensando a EJA para além da alfabetização, como sustentar o argumento de uma

sociedade mais alfabetizada diante de frequentes súmulas estatísticas que dão conta,

pelo menos a cada dois anos, de uma diminuição dos índices de analfabetismo na

população total, por um lado, e de uma ampliação do analfabetismo funcional, de outro,

bem como da regularidade da taxa absoluta de analfabetos no total da população3?

Aumentando as evidências sobre as incertezas desse cenário, nosso olhar para o

cotidiano das práticas de execução dos programas de alfabetização percebia

constantemente os vazamentos do sistema: as dezenas de pessoas que passavam várias

vezes pelos programas e pelas turmas de EJA, reincidindo numa relação com a escola e

com o programa; a dificuldade da ação alfabetizatória se concretizar diante de tantos

pequenos entraves que se acumulavam (materiais que nunca chegam aos estudantes,

merenda inadequada em quantidade e qualidade, um tempo de atendimento diário

precarizado pelas condições materiais dos alfabetizadores e alfabetizandos); a

permanência longa de sujeitos nas ações, tanto na função de alfabetizadores, quanto na

função de alfabetizandos (em contraponto com a lógica da urgência instalada nos

discursos sobre alfabetização); pessoas que se inscrevem em turmas de alfabetização

apenas para “ajudar” o alfabetizador a obter uma ajuda de custo, dentre outros

infinitesimais elementos invisíveis que permeiam essas ações. A percepção de que o que

menos ocorria nessas ações era o acesso à língua escrita, seu pretexto maior de

existência, levou-me a sentir que participava de uma luta sisífica.

Ao mesmo tempo em que os processos de alfabetização e escolarização se

apresentavam com tais instabilidades, elementos da cultural social em torno à pessoa

não alfabetizada e ao analfabetismo pareciam articular um discurso da separação, da

teratologia do analfabeto, da segregação econômica, produzindo um aparato

subalternizante aparentemente invisível, mas, simultaneamente articulado a uma

normatividade e, portanto, a uma forma específica de visibilidade da pessoa não

alfabetizada, em línguas escritas de matriz colonial.

O estudo do pensamento foucaultiano trouxe às perguntas iniciais um grau de

abstração sobre o tipo de relação que se estabelece entre tantos diferentes objetos,

distribuídos no tempo e no espaço sem uma correlação de causalidade evidente, mas

3 No período em que se desenvolvia esta pesquisa, o IBGE, através do PNAD, identificou que o índice de

pessoas não alfabetizadas deixou de cair pela primeira vez desde os anos 1970 no total da população.

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articulados por um movimento similar no que tange à natureza das relações de poder ali

ser configuradas4.

Aprendemos que Foucault (1988, p. 103) entende o poder como uma relação,

como uma prática estratégica, articulatória e produtiva. Desde a problematização

biopolítica, o poder é aquilo que, agindo sobre a vida, eleva ao máximo a eficácia das

tecnologias mínimas no exercício de governo das populações (FOUCAULT, 1988,

p.152). As perguntas impertinentes da fase ingênua inauguram a perspectiva

genealógica da pesquisa no processo mesmo em que denotam um campo de lutas

intrínsecas à efetivação da escola de adultos, mas lutas mantidas em silenciosa marcha

no cotidiano das práticas.

A partir das observações empíricas que antecederam o presente estudo

acadêmico do tema, e do aporte teórico do pensamento foucaultiano, auxiliado pelo

pensamento agambeniano, observamos como o abandono e o constrangimento

apareciam como linhas de força na caracterização da Educação de Adultos.

Observávamos como aqueles problemas focalizados nas perguntas iniciais da pesquisa

encontravam-se relacionados com os enunciados sobre precariedade, postergação,

vergonha e salvação em livre circulação no território discursivo da Educação de

Adultos.

Observamos como esses enunciados estão fortemente associados ao público da

Educação de Jovens e Adultos, emergindo em diversos contextos discursivos que

denotam os tipos de relações desses sujeitos com a instituição escolar, evidenciando a

presença de um modo de racionalidade que governa tais relações. Esses enunciados

surgem naturalizados em discursos, práticas e comportamentos e possuem uma

produtividade.

Ao nos debruçarmos mais atentamente sobre esse fato, percebemos que os

diversos elementos do que hoje chamamos de dispositivo da campanha e dispositivo da

4

A fase experiencial desta pesquisa é o momento em que as perguntas iniciais nasceram, ainda antes

da entrada no curso de doutoramento, na qual atuei como gestora de EJA na Rede Municipal de

Ensino do Recife, momento no qual a realidade nos desafiou com sua incongruência e despertou o

interesse por uma compreensão mais refinada do que atualmente chamamos de “dispositivo da

campanha”. Ao longo dos últimos quinze anos, minha convivência com programas de alfabetização e

escolas de Educação de Adultos, em diversas funções, levou-me à mesma problemática enunciada

acima. Passamos a considerar esse momento anterior como parte do estudo por compreender a

pesquisa social dotada de uma dimensão auto-reflexiva, na perspectiva de uma conexão observador-

no-campo (MELUCCI, 2005).

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escolarização concorrem para a criação de um espaço em que o direito a aprender e o

direito à educação escolar se apresentam mais como falta do que presença, mais

negação do que vivência, mais interdição do que fluência. Observamos que a

alfabetização e o analfabetismo não são problemas em si, mas eventos de certo modo

essencializados em enunciados como “erradicação do analfabetismo” e “Brasil

alfabetizado”, funcionando como índices de um modo específico da relação do sujeito

adulto não alfabetizado com as práticas de educação.

A ferramenta conceitual que utilizamos para desenhar o diagrama dessa rede de

relações é o dispositivo, oriundo da teorização biopolítica baseada em Foucault, com

auxílio das leituras de Deleuze e Agamben. Nossa hipótese afirma que os dispositivos

acionados para o governo das populações não alfabetizadas atuam através de duas

tecnologias discursivas, configuradas em torno das noções de constrangimento e

abandono, produzindo ininterruptamente um campo de veridição da relação do sujeito

com a instituição escolar.

O dispositivo é um conjunto de elementos que se estende sobre a escolarização

de EJA com a marca da precariedade tipificada na imagem símbolo da campanha. As

campanhas foram construídas pela discursividade dos grupos que interpelam a

governamentalidade como a expressão de uma precariedade a ser superada por

“políticas públicas de Estado”, nas quais as escolas funcionam como a marca da

plenitude do direito.

A escola, entretanto, e não apenas neste estudo, aparece como uma instituição

ambígua, composta por muitas possibilidades, mas organizada de modo a dar sua

contribuição ao processo mais geral de governo das populações. No âmbito dessa

instituição, o governo da população analfabeta produz visibilidades severas, como a

demarcação de um mesmo sujeito como retido, reprovado ou marcado pelo abandono

num histórico escolar; produz, ainda, enunciações constrangedoras, aquelas usadas para

convocar os adultos não alfabetizados através da vergonha e da salvação.

A condição produzida para as pessoas interpeladas por tal ordem discursiva é

similar à que Agamben discute com o conceito de vida nua a partir da figura jurídica

arcaica do homo sacer. Analisamos essa condição de modo a compreender como se

produz a relação do sujeito adulto na escolarização com a sua inclusão num regime de

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exceção, que produz uma enunciação constrangedora e uma visibilidade abandonada à

força da lei.

Com Agamben, tocamos em pontos dolorosos da experiência social da

escolarização de adultos, como os processos de dessubjetivação que percorrem os

enunciados da vergonha nas políticas de enunciação em jogo na referência à população.

Por outro lado, ao lançarmos o olhar para as políticas de visibilidade da população

analfabeta, o conceito de abandono emerge como operador das tecnologias do precário

no espaço escolar.

A dessencialização de alguns termos desse debate, através da presente pesquisa,

visa a contribuir com a reflexão sobre a produção da experiência escolar para adultos,

superando o aparato biopolítico que produz o analfabeto e sua circunscrição em relações

sociais subordinadas. Nossa pesquisa alia-se a estudos no campo da alfabetização de

adultos que problematizam a validade da alfabetização universal, bem como os

pressupostos liberais a respeito do valor intrínseco das alfabetizações em línguas

escritas de matriz colonial (Cf. FACHEH, 2007; GRAFF, 1994; PARAJULI, 1990;

FREIRE, 1978).

O analfabetismo, assim como a fome e a seca do nordeste, é um problema

político e, como tal, aciona um conjunto de saberes, práticas e relações correspondentes

ao fato de que a alfabetização e o analfabetismo de pessoas adultas não são problemas

da ordem da biologia ou da cognição, mas da luta pelo poder. A dualidade entre

analfabetismo e alfabetização interpela nossas reflexões sobre o poder quanto ao reforço

de certas condições destinadas a determinados grupos populacionais, construídas

sutilmente pelos aparatos jurídicos, institucionais, subjetivos e pedagógicos acionados

no governo dessas populações. A análise que suporta esse tipo de questão é de natureza

genealógica, ao investigar os focos de luta entre os saberes produzidos no interior do

dispositivo, as formas do poder nas relações constituídas e os efeitos sobre

subjetividades.

Um dos efeitos centrais do dispositivo investigado não seria tanto uma

reprodução das condições de vida, não tanto uma subjugação, mas o convencimento a

ocupar um lugar social, através do apelo ininterrupto à mudança de condição pelo

sujeito. Esse processo ocorre, no entanto, através de práticas que não se consolidam, não

se afirmam, e constantemente parecem deter a mudança de condição. As lutas políticas

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em torno à alfabetização, a luta pela escola pública, a luta de classes como “pano de

fundo” da luta contra o analfabetismo, a disputa interna pela hegemonia entre as classes

proprietárias, e, sobretudo, o conflito racial estruturante das relações sociais brasileiras,

todos esses cenários corroboram a hipótese central de que os dispositivos de

alfabetização e escolarização estão a serviço do controle de populações específicas.

O conjunto que temos diante dos olhos na atualidade fala de uma estabilidade,

com mais de 90% de alfabetização no total da população adulta do país e uma estrutura

ampla e disseminada de equipamentos escolares voltados ao atendimento educacional

desse grupo. Mas a maioria das pessoas adultas passa pelo sistema e não atinge a

conclusão da educação básica. O estremecimento vem de dentro. Ao analisar suas

disfunções, encontramos sua produtividade. As palavras de Agamben (2010, p. 118)

são, a respeito disso, provocativas:

É como se, a partir de um certo ponto, todo evento político decisivo

tivesse sempre uma dupla face: os espaços, as liberdades e os direitos

que os indivíduos adquirem no seu conflito com os poderes centrais

simultaneamente preparam, a cada vez, uma tácita porém crescente

inscrição de suas vidas na ordem estatal, oferecendo assim uma nova e

mais temível instância ao poder soberano do qual desejam libertar-se.

Trata-se de uma dispersão de enunciados que alimentam práticas e imaginários

sociais sobre a modalidade e seus sujeitos, e reforçam subjetivações em torno a

significados que subordinam. Dizermos que tal produtividade está relacionada à

produção da subescolarização não significa colocá-la numa relação de causalidade

linear, torná-la evidência de um insucesso, ou motor único de um conjunto de relações.

Significa, conforme Foucault, aprofundar nossa leitura em torno das nossas próprias

demandas e ainda reconhecer a força dessa discursividade na criação das relações que

elas interpelam, compreender, através do jogo poderoso das palavras, a implicação

dessa racionalidade com os efeitos produzidos pela escola e, ainda, poder questionar

essa escola e o tipo de oferta de escolarização que estamos a fazer aos sujeitos da

Educação de Adultos. Nesse sentido, o estudo se insere no conjunto de pesquisas que se

dedica a

Fazer uma análise ascendente do poder, ou seja, partir de mecanismos

infinitesimais, os quais têm sua própria história, seu próprio trajeto,

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sua própria técnica e tática, e depois ver como esses mecanismos de

poder, que têm, pois, sua solidez e, de certo modo, sua tecnologia

própria, foram e ainda são investidos, colonizados, utilizados,

inflectidos, transformados, deslocados, estendidos, etc., por

mecanismos cada vez mais gerais e por formas de dominação global.

(FOUCAULT, 2005, p. 36).

A história da escolarização de adultos no Brasil atravessou todo o século XX

para se configurar já no século XXI como um aparato aparentemente estável de garantia

do direito à educação para pessoas jovens e adultas. Dos modos de afirmação da

educação como instrução básica aos modos de afirmação da ideia de “qualidade social”,

a forma de incidência das práticas de poder sobre as populações não alfabetizadas vem

sendo caracterizada ou como “necessidade” ou “urgência” ou “reparação”. No Brasil, a

ideia de qualificação é introduzida a partir do parecer nº 11/2000, de Carlos Roberto

Jamil Cury, um dos raros documentos jurídicos que dedica atenção substantiva à

escolarização de adultos, a partir do ano 2000.

Nesse parecer, o jurista discorre sobre três funções básicas para a escolarização

de jovens e adultos ― sejam elas: a supletiva, de caráter compensatório; a reparadora,

também de caráter compensatório; e a função equalizadora, que propõe a equalização

das desigualdades ―, assim formulada: “Esta tarefa de propiciar a todos a atualização

de conhecimentos por toda a vida é a função permanente da EJA que pode se chamar

de qualificadora. Mais do que uma função, ela é o próprio sentido da EJA.” (BRASIL,

2000, p. 11, grifos no original). Compreendemos, neste estudo, que as diferentes

funções apresentadas pelo Parecer nº 11/2000 extrapolam uma função descritiva sobre o

funcionamento da escolarização de adultos, e correspondem a diferentes racionalidades

que demarcam as práticas da EJA, sejam elas discursivas ou extradiscursivas.

A função qualificadora se coaduna com a concepção de Educação Permanente,

propugnada pela UNESCO, a partir do relatório Aprender a Ser, redigido por Edgar

Faure em 1972. Esse conceito, segundo Lima (2007), é fonte de diferentes

posicionamentos consignados nas perspectivas da educação ao longo da vida e

aprendizagem ao longo da vida. Fazendo a crítica das posições reducionistas da

Educação de Adultos, que a subordinam a lógicas funcionais e adaptativas, Licínio

Lima (2007, p.44) reflete que,

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As perspectivas mais pragmatistas e tecnocráticas de formação e

aprendizagem ao longo da vida vem, de fato, subordinando a vida a

uma longa sucessão de aprendizagens úteis e eficazes,

instrumentalizando-a e amputando-a das suas dimensões menos

mercadorizáveis, esquecendo, ou recusando, a substantividade da vida

ao longo das aprendizagens. Esquecendo, ainda, que a principal força

da educação reside, paradoxalmente, na sua aparente fragilidade, nos

seus ritmos próprios e geralmente lentos, nos ensaios de tentativa-erro,

na incerteza e na falta de resultados imediatos e espetaculares, nos

seus continuados processos de diálogo e convivialidade, os quais

partem do princípio de que ninguém educa, forma ou muda alguém

rapidamente e à força, seja através de instrumentos legislativos, seja

por meio de programas vocacionalistas, de reeducação,

ressocialização ou reconversão. Simplesmente porque a educação

exige sempre a participação ativa dos sujeitos, ou educandos, no

processo educativo.

A ideia de uma Educação de Adultos é, portanto, segundo Lima, irredutível a

algumas de suas formas e formulações do campo teórico e político em que se dá a luta

pela sua definição. Tomada como algo mais que uma simples estratégia de treinamento

para a inserção subordinada na esfera laboral ou mesmo de algumas porções da cultura,

a Educação de Adultos seria responsável por uma tarefa emancipatória e civilizatória

mais ampla. Na formulação de João Francisco de Souza (2007, p. 166), Educação de

Adultos é fenômeno mais amplo, portanto, que alfabetização, escolarização e

treinamento laboral:

Trata-se, portanto, de processos e experiências de intercomunicação e

interação que possam garantir a recuperação, a valorização, a

produção e a apropriação de valores e conhecimentos: recognição e

reinvenção. Ressocialização. Essa constituir-se-á como um exercício

emancipatório e intercultural do poder-conhecer-ter-emocionar/se

(SER). Por meio do desenvolvimento da competência linguística,

argumentativa, decisória, ética, estética, técnica, política. Essa

perspectiva situa-nos no seio da cultura em construção na história.

Depreende-se, pelas formulações apresentadas, que o debate de resistência do

campo da Educação de Adultos produz concepções mais amplas para essa prática,

atentas à multidimensionalidade dos processos humanos e à contingência das relações.

Logo, nesta tese, quando nos referimos à Educação de Adultos, estamos fazendo

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menção a esse processo mais amplo de formação humana defendido pelo pensamento de

resistência às práticas reducionistas da Educação.

A distinção entre os processos de Educação de Adultos e escolarização de

pessoas adultas é fundamental na leitura deste trabalho. A Educação escolar de Jovens e

Adultos é o processo mais geral mediado pelo Estado, seja na forma da lei, seja na

forma de práticas efetivas realizadas pelas escolas públicas ou privadas regidas pelo

ordenamento legal em vigor. A Educação de Jovens e Adultos, portanto, representa uma

singularização daquele processo mais amplo de formação humana, sendo uma das

formas pela qual o Estado se envolve na rede de atendimento à educação de pessoas

adultas, concernente, de modo específico, à Educação Básica.

O que chamamos de EJA – Educação de Jovens e Adultos ― nesta pesquisa, é o

conjunto de práticas de escolarização de pessoas adultas, executadas através de uma

modalidade da educação básica, em conformidade com o que define o Parecer

CNE/CEB nº 11/2000 (embora uma noção abrangente de EJA estenda sua vigência até

o Ensino Superior e inclua outras práticas além da escolarização) através da qual grupos

sociais de pessoas acima de 15 anos são interpelados pelas ações de governo a se

(re)inserirem na ordem do discurso escolar.

A EJA contempla tanto ações de alfabetização, através de programas, quanto

ações de escolarização através de estabelecimentos regulares de ensino, podendo

assumir a feição do que o Parecer supra citado chama de “cursos de Educação de Jovens

e Adultos”. Para Cury, ainda no mesmo documento, a “EJA é uma categoria

organizacional constante da estrutura da educação nacional, com finalidades e funções

específicas.” (2000, p.5). A EJA é uma prática específica do campo mais abrangente da

Educação de Pessoas Adultas, ou Educação de Adultos, da qual participam ainda as

práticas não escolares de educação.

Enquanto problema da ordem das relações de poder, a escolarização de adultos

no Brasil atravessa um diagrama difícil e complexo que articula diferentes questões. As

relações que envolvem o sujeito não escolarizado e o projeto de escolarização da

modernidade, em sua versão brasileira, estão marcadas pelo estabelecimento de uma

modernização tardia, configurada pela situação colonial que rege o conjunto das

relações sociais e é demarcada pela inserção subordinada do País nas relações

econômicas mundiais. A condição colonial e pós-colonial é circunscrita a um projeto

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social racista, configurado pelo procedimento de separação entre sujeitos legítimos e

não legítimos para ascender à esfera do social através da escola e da escrita.

O cenário que configura a legitimidade da educação na modernidade

(POPKEWITZ, 2005) está relacionado à naturalização do valor intrínseco do

conhecimento como prática emancipatória, herança iluminista que subsidia a instalação

progressiva de técnicas de controle e regulação da distribuição social do saber, através

de mecanismos dualistas que definem que tipo de conhecimento para qual tipo de

sujeitos. É dessa forma que a escola, da maneira como foi formulada entre os séculos

XVI e XIX no continente europeu (VARELA 1991; VEIGA-NETO, 2010; SOUZA,

2004), atende a classes sociais de modo diferenciado e diferenciador, e sempre atento ao

papel do acesso controlado ao saber como ferramenta de regulação dos movimentos das

diferentes populações.

O saber regente dessa formação histórica é a escrita, valorizada na luta entre as

classes sociais em disputa no processo de constituição da modernidade, bem como entre

as forças religiosas que lhe atribuem diferentes papéis no processo de formação e

controle das almas. A hipertrofia da valorização do conhecimento escrito acompanha o

processo de institucionalização da Educação Escolar, sendo o principal elemento

legitimador desta instituição e servindo de parâmetro para o processo de separação

acionado pelo racismo de Estado.

É nesse lugar em que os mecanismos de separação, seleção e diferenciação

social se inscrevem que a Educação de Adultos constitui sua existência enquanto prática

biopolítica. Referindo-se a um dos modos de compreender o poder como “condução de

condutas”, a biopolítica é uma prática que se dirige à condução da vida de uma

multidão, construída como uma população a ser conduzida através de uma série de

mecanismos que visam a mantê-la sob os “cuidados” adequados para que se

movimentem no ambiente social de forma conveniente.

Os vários mecanismos têm funções e incidências diversas e a educação escolar

se configura como um mecanismo que denominamos, no interior dessa teorização,

como dispositivo da escolarização. O dispositivo da escolarização para a população

adulta foi formulado pela produção discursiva do sujeito não alfabetizado, pela sua

localização numa subalternidade política, produtiva e social amplamente reafirmada, e

pelo movimento temporal caracterizado pelo “adiamento” reincidente de seu acesso

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pleno às práticas escolarizadas no horizonte em que elas são compreendidas como

direito.

A produção do sujeito não alfabetizado é um processo que se observa na

primeira metade do século XX, até aproximadamente os anos 1940 (CARLOS, 2008)

através do surgimento de uma discursividade que se dedica a localizar, afirmar e

produzir o analfabetismo como chaga social e vergonha nacional.

A subalternidade social do analfabeto é alvo de uma difusão de discursos que

vão do religioso ao legislativo, a exemplo das narrativas sobre o voto do analfabeto, que

se faz presente também nas afirmações sobre a vida triste e pobre das pessoas sem

acesso à escrita, discursividade reforçada até os dias de hoje, inclusive com a inscrição

desses enunciados nos registros mais típicos de nosso tempo, tal como as peças

audiovisuais, a exemplo da animação “Vida Maria”, analisada no Capítulo 3 desta tese.

A mesma racionalidade se expressa nas peças publicitárias que apresentam com

notas tristes a vida dos escolares da Educação de Jovens e Adultos e o quanto suas vidas

se transformaram com a escola, peças que, em geral, se concluem com um sorriso alegre

em câmera fechada no rosto do sujeito, ou imagens de suas mãos calejadas pelo trabalho

escrevendo o nome num caderno. O processo de restrição reincidente tem como

exemplo mais expressivo a série temporal que começa com as primeiras discussões

sobre o acesso de homens negros adultos a cursos noturnos de primeiras letras, ainda no

império, em classes especiais, e encontra sua atualidade na questão do financiamento

progressivo da modalidade EJA pelo Fundo Nacional de Financiamento da Educação

Básica, no qual essa modalidade de educação escolar só teve pleno repasse de recursos a

partir do ano de 2011.

O projeto de escolarização da sociedade brasileira escolheu suas prioridades e

definiu os sujeitos que deveriam viver a experiência da escolarização. A retórica da

alfabetização cumpriu ao longo de todo o século XX uma função sustentadora do

mecanismo de controle dessa população, primeiro esvaziando o mundo simbólico das

populações a que se dirigia, centralmente operado pelo processo em que esse mundo

simbólico não foi assimilado pela escola. Segundo, porque acionou uma série de

dispositivos não discursivos que atuaram sobre a população. Esses dispositivos

discursivos e não discursivos sustentados pela retórica da alfabetização são chamados

neste estudo de “dispositivo da campanha”, que é um dispositivo especializado no

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interior do dispositivo mais amplo da escolarização. Não é coincidência que a campanha

seja uma forma de organização militar e que os dispositivos de segurança dos estados

tenham utilizado tal estratégia para enfrentar os perigos a que estavam expostas as

sociedades modernas recém-constituídas (FOUCAULT, 2008a).

O analfabetismo é um problema da segurança do Estado brasileiro e o analfabeto

é constituído como alguém que representa risco. Por isso, não podia votar e, por isso, o

enfrentamento a uma questão da ordem da cultura foi alinhavada pelo uso de um

dispositivo de ampla utilização no campo das problemáticas biológicas. A campanha é

mais do que uma forma de organização de salas de aula baratas e rápidas para superação

de uma problemática social. É o signo de uma racionalidade que se naturaliza na

sociedade brasileira e carrega, entre outros elementos, o fato de que uma parte da

população nunca esteve integrada ao projeto de nação defendido pelas classes

governantes.

Retornamos, pois, ao problema do racismo estrutural da sociedade brasileira, e

retomamos a informação de que levamos mais de 100 anos apenas para afirmar de

forma constitucional o direito à educação “independente da idade” de seu demandatário.

Dessa forma, além da precariedade explicitada no modo de funcionamento da

campanha, ela também representou ― vem representando ainda ― o fato de que nunca

escolhemos, como nação, priorizar o acesso aos saberes legitimados e poderosos da

cultura escrita escolarizada pelos sujeitos adultos, pobres, em sua maioria negros e

nordestinos ― e, essencialmente a nós, mulheres negras.

A produtividade biopolítica da escolarização de adultos participa da produção do

lugar subalterno atribuído na sociedade às pessoas não alfabetizadas ou não

escolarizadas. As emancipações presumidas pelos discursos iluministas e seus

desdobramentos na modernidade, inclusive na pós-modernidade, não se confirmam, e a

escolarização cumpre seu papel político no governo das populações interpeladas pela

sua retórica.

Nessa contextualidade, o papel de uma teorização biopolítica é colocar no debate

sobre escolarização a relação entre educação e poder a partir de uma teorização pós-

metafísica sobre esse fenômeno, o que gera alguns deslocamentos no âmbito da teoria

educacional. A colocação em xeque das noções de sujeito, razão e verdade supõe a

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desnaturalização daquilo que constituiu a ideia moderna de escola em suas principais

bases.

A própria ideia de escola como um bem maior parece poder ser problematizada,

assim como as suas realizações específicas, no âmbito de situações concretas que

podem ser analisadas e “desmontadas”. No caso da reflexão sobre o papel da escola

para adultos numa sociedade de classes, de todo o leque de explicações teóricas, o

argumento mais largamente utilizado tem sido o da reprodução. A análise biopolítica

não se ocupa da reprodução, mas da produção contínua não da mesma sociedade

entendida como um ente, mas da adequação permanente das relações de poder através

das novas estratégias exigidas para sua manutenção.

O poder, entendido como uma relação, um campo de forças que se organiza de

maneira estratégica e atua sobre a conduta dos indivíduos, tem menos a tarefa de

garantir que as pessoas estejam no mesmo lugar de classe e mais a função de assegurar

que estejam submetidas a uma relação de controle eficiente e econômica, de modo que o

controle seja produzido através das diferentes técnicas disponíveis, sejam elas

disciplinares, biopolíticas ou éticas.

Ao provocar novos movimentos na população interpelada, o biopoder

apresenta-se através de muitas facetas, algumas sutis, como um projeto de atuação sobre

a vida. Lembrando que a vida pressupõe a morte, em certas circunstâncias é do caráter

do biopoder propiciar o desaparecimento ou “entregar à própria sorte” partes “não

necessárias” do Estado Nação. No limiar em que o biopoder se encontra com esta

possibilidade, o que está posto é a estratégia do genocídio.

Por outro lado, antes de atingir esse limiar, o biopoder tem a capacidade de gerar

uma série de posições desfavoráveis, constrangedoras, de hipertrofia de uma

visibilidade pejorativa, tal como no caso dos analfabetos. A trajetória social do

analfabeto, sua construção como sujeito “anormal”, sua teratologia são focalizados neste

estudo através do conceito agambeniano de vida nua. A vida nua, antes de ser uma

excepcionalidade, é uma regularidade quando acionada para determinados grupos

sociais, inseridos numa rede difícil de ser desatada.

A condição em que o sujeito convive numa sociedade que torna a escrita uma

condição vital de existência, que tem assegurada a legitimidade de seu acesso a esse

conhecimento, mas não dispõe do aparato concreto que lhe garanta atingir esse objetivo

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de forma pertinente ― adiando-o através de vários mecanismos, inclusive fechando as

salas de aula disponíveis ―, pode ser concebida como uma experiência de vida nua, ou

de homo sacer, se preferirmos utilizar a terminologia do Direito Romano indicada por

Agamben.

Homo sacer não é uma etiqueta teórica para descrição de uma condição objetiva,

é uma alegoria da posição estratégica assumida pelo sujeito no dispositivo da

escolarização em sua interpelação às pessoas adultas pobres, negras, nordestinas e do

gênero feminino, e recentemente às idosas, sobre sua participação no projeto de

escolarização da sociedade brasileira. Tal alegoria nos permite a visualização de todo o

diagrama que descreve o modo peculiar com que o biopoder atua sobre essas vidas em

específico.

O acionamento destas condições para a vida de um sujeito exposto ao biopoder

produz imagens nas multidões atingidas pela escolarização que implicam a produção

não apenas discursiva de posições subalternas nas relações sociais. A emancipação

prometida é regulada por um acesso tendente a zero ao Ensino Superior pelos estudantes

da EJA, pela “reincidência” na condição do analfabetismo, pela dificuldade de obter a

certificação nas etapas da educação básica.

Em virtude de uma inserção precária nos códigos regentes da vida sociopolítica,

o efeito central é a subalternidade como norma, sugerindo que a população adulta

analfabeta interpelada pela escola não altera muito de sua condição a partir dessa

inserção. Porém, o poder se interessa por essa população, produz um lugar e uma

documentação sobre ela, demarca sua posição, de modo que o efeito central da

escolarização não recai em benefícios para o sujeito, mas é amplamente eficaz na

estratégia de poder, que assim obtém informações contínuas sobre essa multidão, torna-

a visível e a administra através das forças traçadas nos enunciados, como o

constrangimento e o abandono. A esse efeito, Souza (2004, p.26) chamou de “inclusão

perversa”, do mesmo modo que Agamben fala de uma “exceção” que é produzida não

pela dissolução dos contratos anteriores ao vínculo biopolítico, como na relação

soberana, mas ― e, sobretudo ― pela estratégia do abandono do sujeito, de sua zoé e de

sua bios, aos poderes que, ao incluir, excluem.

A EJA se torna problema político desde sua emergência ainda sob a

discursividade do analfabetismo: foi a questão do voto que inaugurou a preocupação

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com a existência de amplos contingentes populacionais analfabetos. O contexto eleitoral

influenciou de maneira fundamental o processo histórico que faz as “condições de

possibilidade” para a emergência das práticas alfabetizatórias e de escolarização de

adultos com caráter massivo. A educação dos adultos como problema político passou

por várias enunciações: erradicar o analfabetismo, proibir ou liberar o voto do

analfabeto, alfabetizar para o desenvolvimento, direito à educação e, mais recentemente,

política de Estado.

“EJA como política de Estado” significa uma articulação estratégica em torno da

qual os movimentos e grupos interessados em disputar o modelo de atendimento de

Educação de Adultos põem em jogo a garantia do papel do Estado na consecução das

políticas de atendimento para esse setor. Esse é atualmente o discurso predominante dos

movimentos sociais da Educação de Jovens e Adultos, representados pelo Fórum

Nacional de Educação de Jovens e Adultos, organismo da sociedade civil que, em

íntima relação com os governos instituídos no poder executivo, vem construindo o

debate público da EJA, entendida nesse contexto prioritariamente enquanto educação

básica.

Neste estudo, defendemos que a EJA sempre foi assunto de governos, tendo sido

criada como problema educacional da ordem das relações de poder na sociedade

brasileira.

A Educação de Adultos, especificamente da educação básica de pessoas adultas,

configurada nas etapas do Ensino Fundamental e Médio, sempre foi uma política em

que o poder investiu atenção, esforços, recursos. Obviamente que o fez conforme suas

próprias demandas internas: necessidade de ampliação do número de eleitores,

necessidade de obtenção de índices em indicadores internacionais de desenvolvimento,

formação de mão de obra. E o fez nem sempre com a mesma intensidade, com a mesma

frequência, nem com a eficiência e a eficácia investidas na construção de outras

tecnologias, como a base energética brasileira, por exemplo, ou das tecnologias

aeronáuticas ou de exploração de petróleo. Numa perspectiva biopolítica, a EJA sempre

foi uma política de Estado.

A análise biopolítica nos permite compreender a produtividade da EJA não

como um problema de reprodução social, ou de exclusão social, mas como um

problema da ordem da regulação, em que está em jogo a permanência no sistema

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escolar, não como índice de uma continuidade em relação ao sistema social, nem como

a colocação do sujeito numa exterioridade do social, mas a regulação de seus

movimentos no interior desse sistema, como uma manifestação do controle sobre uma

população.

A escola obrigatória nasce da solução a dois problemas de governo conjugados.

De um lado, as iniciativas que coibiam de forma permanente e estável a participação

dos clérigos na direção cultural das populações e, de outro, a contenção do movimento

de trabalhadores, com sua crescente organização e os perigos que ela envolvia, na

perspectiva do poder das classes proprietárias (VARELA, 1991, p.179). Uma

administração política e outra moral estavam, pois, no cerne da invenção da escola da

modernidade. É realmente digno de nota que a educação oferecida a pessoas adultas no

início do século XXI seja realizada nos mesmos moldes do modelo que nasce com tais

tarefas. É essa matriz que sugere que a Educação de Jovens e Adultos no Brasil não seja

apenas uma modalidade de inclusão educacional ou de reparação de direitos, mas,

sobretudo, uma manifestação do biopoder.

Visando a elaborar argumentos para dar conta desse debate, esta tese está

organizada em cinco capítulos, através dos quais apresentamos as discussões que

suportam a problemática apresentada. O texto está dividido em duas partes, sendo a

Parte I composta por dois capítulos: no primeiro, são discutidos os conceitos que

constituem nossa grade analítica e explicitados os caminhos metodológicos das

reflexões expostas ao longo do trabalho; no segundo, apresentamos os debates teóricos

que constituem nosso objeto no campo reflexivo da educação e procuramos evidenciar

pensamentos com os quais construímos “amizades” no estudo da questão da

alfabetização.

A segunda parte do trabalho é composta por dois capítulos, nos quais cruzamos

nossa grade analítica com a análise das séries de enunciados que evidenciam o diagrama

dos dispositivos biopolíticos estudados. O primeiro capítulo dedica-se à tecnologia do

constrangimento, em que são analisadas a vergonha e a conversão como enunciados

genealógicos da escolarização de adultos; o segundo capítulo é dedicado à tecnologia do

abandono, no qual o próprio enunciado do abandono à lei e da oferta do precário são

analisados. Esses dois capítulos são precedidos por uma breve introdução.

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O quinto capítulo da tese não compõe nem a primeira parte nem a segunda de

forma exclusiva: relaciona-se com ambas, mas se projeta como um deslocamento na

ordem geral do estudo. Nesse capítulo, dedicamo-nos a compreender o funcionamento

dos movimentos da população no interior do dispositivo escolar, registrados nos

históricos escolares de estudantes adultos. Dessa análise, emergem as linhas de fratura

dos dispositivos e a identificação de tempos outros e de um espaço outro produzido

pelos sujeitos. Em respeito a essa característica estranha dos mecanismos ali tratados,

esse capítulo aparece também localizado de forma diferenciada no conjunto da tese. O

trabalho é encerrado por nossas considerações finais.

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PARTE I

HORIZONTES TEÓRICOS

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CAPÍTULO 1: A POPULAÇÃO COMO OBJETO DA RAZÃO: A ARTE

DE CONDUZIR AS MULTIDÕES

Tenet arepo sator opera rotas5

As Ciências Humanas são um discurso que inventou o homem como objeto do

pensamento, e as teorias não passam de discursos de veridição com diferentes grades

analíticas que correspondem a diferentes vontades de verdade. As teorizações

participam do jogo de poder no campo da ciência. Foucault participou desse território de

poder a partir da divergência, da diferença, da descontinuidade, da abolição da

pretensão de certeza ou da conclusão, irmãs siamesas da vontade de verdade. Seu modo

de trabalhar priorizou a compreensão de campos de saber, de poder e da subjetividade

num debate sobre as formas das nossas diversas relações com a verdade. Nos seus

modos de trabalhar, confrontou as Ciências Humanas com seus próprios modos de

operar, identificou racionalidades comuns entre diferentes apresentações do pensamento

científico da modernidade, instalou o discurso numa zona de distinção em relação ao

real, à verdade e à vontade, gerando uma diferenciação fundamental para a compreensão

do funcionamento dos nossos modos de pensar e agir no real. Produziu uma

Arqueologia, cavando vagarosamente nossos próprios documentos que, de forma

descontínua, mas articulada, traziam à evidência quem somos e para quais deuses

realmente rezamos. Produziu um gráfico, uma forma imagética para se referir a relações

que não se esgotam em duas dimensões e, com isso, nos ajudou a compreender o poder

como uma teia de relações entre sujeitos, instituições e lugares arranjados em

dispositivos que operam sobre o próprio sujeito e sobre as populações. Através de uma

Genealogia, mostrou-nos a proveniência de relações que definem quem somos para nós

mesmos, que nos localizam, nos limitam, mas centralmente nos movem pelo espaço

esquadrinhado dos territórios sociais, em conformidade com vontades outras e desejos

nossos. Ao desdobrar sua pesquisa sobre as formas pelas quais a própria ideia de sujeito

foi-se constituindo no ocidente, mostrou-nos o quão longínquas são as bases de nossas

políticas de si atuais, arraigadas numa longa série de instituições e práticas formativas.

5 “O lavrador sustém cuidadosamente o arado sobre a terra” na versão de Osman Lins ou, numa tradução

mais teológica “O Criador mantém a roda do mundo em sua órbita”, mas, em minha livre versão,

interpreto como: “A linguagem governa os trabalhos sobre o real”.

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Entre os inumeráveis aspectos da pesquisa foucaultiana, que se desdobram em

temáticas amplas e variadas, sustentadas pela erudição rara e profunda do autor,

aproximamo-nos mais das pesquisas sobre o poder. Entretanto, as pesquisas sobre o

poder são pesquisas simultaneamente sobre o saber e o sujeito. Não há uma separação,

pois, como o próprio Foucault gostava de recordar, seu trabalho foi toda uma

investigação sobre o sujeito, que estava o tempo todo no centro de suas buscas. Sua

forma de compreender o poder, eminentemente pragmática e não sistêmica, abre a

linguagem que usamos, permitindo referirmo-nos ao poder como um tipo de relação da

qual ninguém está ausente. Poder sempre está ali, fazendo-se presente, poder não é

apenas a submissão, é também a parte de cada um no acordo sobre como se portar

diante das possibilidades de atuação postas no diagrama das relações apresentadas.

Portanto, ao aproximarmo-nos do poder como relação de forças entre sujeitos,

como relações estratégicas entre diferentes verdades num espaço de disputas, como

práticas de dominação, resistência e subjetivação, estamos abrindo mão de um programa

de pesquisas instituído e tranquilo, em que já temos a carta náutica dos portos onde é

seguro atracar, onde já sabemos as ilhas cujos nativos são amigáveis e falam nossa

língua, onde há comida e água para reabastecer nossos navios. Aceitamos que adotamos

um programa fundamentado num pesquisador cuja produção de mais de 30 anos de

pesquisas ainda está vindo a lume, mais de trinta anos após seu desaparecimento. Dessa

forma, nossa aventura parte em busca da ilha desconhecida, dos caminhos novos, dos

riscos dessa navegação sem carta náutica, com mapas misteriosos, onde a língua dos

povos encontrados pela frente é um mistério insondável e sedutor.

Ao navegar por esses mares, temos de aceitar que a certeza, como uma figura da

verdade, é uma terra que ficou para trás e sumiu no horizonte. Também precisamos

reconhecer que nossas ferramentas não são as mesmas que usávamos nos navios em que

aprendemos a navegar. É preciso agora abrir olhos e ouvidos para fazer a leitura do céu

e daí traçar as rotas imaginárias sobre as águas revoltas. Embora numa rota rumo ao

desconhecido, a navegação, contudo, exige precisão, rigor, disciplina. E, para tanto,

foram tomados alguns cuidados, pois, ainda que soubéssemos aonde iríamos chegar,

não sabíamos o que nos aguardava no percurso, mas tínhamos a determinação de que ao

aportar deveríamos estar bem e com nossa carga intacta.

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O mapa que segue é a nossa sistematização da aventura, nosso diário de bordo

da descoberta da ilha desconhecida da biopolítica da educação de pessoas adultas.

Através dessa cartografia da navegação, mostramos a rota, mas também as razões da

rota. Mostramos as ferramentas, mas as justificativas das ferramentas; mostramos os

portos por onde embarcamos, as ilhas conhecidas das quais desviamos e aquelas onde

foi preciso fazer uma parada e estabelecer algumas trocas.

1.1. Trajeto teórico metodológico

O marco teórico aqui assumido refere-se a um posicionamento conceitual e

político inspirado no paradigma pós-estruturalista. O pós-estruturalismo é uma escola de

pensamento que planta raízes na filosofia pós-metafísica ou não fundacionista (VEIGA-

NETO, 2010, p.148), apresentando maior ênfase no pensamento filosófico sobre a vida

política. Em outra chave, o pós-estruturalismo é também uma reflexão sobre os limites

da análise no campo literário, assim como apresenta desdobramentos para o estudo da

sociedade com base, originalmente, no modelo da linguística estrutural desenvolvida a

partir do formalismo russo trazido ao ocidente por Roman Jakobson. O pós-

estruturalismo se beneficiou das reflexões de Heidegger, a partir de sua crítica radical ao

humanismo, e de Wittgenstein, em sua teoria dos jogos de linguagem.

O conjunto disperso e disforme que recebe o nome de pensamento pós-

estruturalista tem na linguagem uma questão central. O modo de olhar para a relação

entre o real e o signo é pautado numa crítica à versão tradicional da representação do

mundo pelo signo linguístico (EAGLETON, 1997). Para os pensadores pós-

estruturalistas, de modo geral, a relação entre mundo e significado não é uma relação

representacional no sentido de uma realidade existente “além” do mundo dos signos que

estes “representam”. Tudo a que chamamos de realidade é parte de uma construção

humana “significada” e historicizada, construída enquanto linguagem. O mundo real

não é apenas a dimensão da materialidade pura e simples, mas a elaboração de sentidos,

que constitui a realidade mesma e as noções que a acompanham. Tal concepção do

papel da linguagem reconhece a noção saussuriana a respeito da arbitrariedade do signo

e vai apresentar desdobramentos em vários campos do saber, explicitamente nas

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análises políticas, nas quais entram em suspeita noções operacionais importantes como

verdade e poder.

A condição central que ocupa a linguagem torna imprescindível compreender a

elaboração humana sobre o mundo como uma produção de significados, razão pela qual

a cultura assume status relevante nas análises dos pensadores situados nesse campo,

sendo compreendida como um “sistema de significações” (WILLIAMS, 1992, p.207).

No trânsito entre as reflexões filosóficas e aquelas de teor sociológico, a cultura é uma

categoria imprescindível para compreender os debates no campo pós-estruturalista. É

também por essa mesma categoria teórica que a pedagogia, como campo reflexivo da

educação, coloca-se no cenário das análises realizadas desde esse horizonte teórico.

No interior desse pensamento, o processo analítico é marcado pela concepção

não essencialista do sujeito, a partir de uma lógica de historicidade cujo modelo foi o

exercício genealógico nietzschiano (FOUCAULT, 2013a, p. 328). Uma perspectiva de

desnaturalização do sentido, do sujeito e da linguagem acarreta a posição de que o poder

e as práticas correlatas são também históricas e contingencialmente construídas. A

arbitrariedade do signo como pressuposto das concepções sobre o funcionamento da

linguagem interpõe um relativismo crítico sobre os construtos normativos e os

binarismos modernos, cujos desdobramentos em termos políticos acarretam uma

problematização das camadas de dominação e subordinação nas relações sociais

(EAGLETON, 1997; FOUCAULT, 2013a).

Foucault (2013a, p. 332) fala de uma “história contingente da racionalidade” ao

fazer referência à possibilidade de uma crítica racional da razão. Ele refere-se ao fato de

que toda a nossa tradição pós-iluminista é, de certa forma, uma história crítica das várias

racionalidades erguidas ao patamar de uma Razão universal. A inteligibilidade de um

fenômeno qualquer, investigado sob a suspeição genealógica, passa pela possibilidade

de conceber uma racionalidade pensando/agindo sobre outra racionalidade sem, no

entanto, buscar reerguer uma verdade que estivesse adormecida num fundo qualquer de

realidade. A verdade é parte dos jogos de linguagem que constituem o real.

Entre o sujeito e o poder se instalam práticas. Essas práticas são modos

específicos com que a razão se apresenta. Logo, para Foucault, a razão não constitui um

princípio universal e de validade irrestrita, mas uma série de práticas de verdade que

relacionam sujeito e poder. Portanto, ao falarmos sobre racionalidades nesta tese,

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estamos nos referindo às diferentes instaurações possíveis da razão pelas quais sujeito,

verdade e poder estão conectados em arranjos específicos.

O sujeito, por sua vez, não é mais a instância que confere unidade à dispersão do

mundo através de sua consciência, ele passa a ser uma instância de refração sobre a qual

as diferentes narrativas sociais vão intervir, sendo constituído, assim, com uma imagem

mais fragmentada, mais múltipla, mais contingencial. Para a produção de tal concepção

do sujeito, foi fundamental a releitura do pensamento de Nietzsche pelos filósofos

franceses dos anos de 1960 (PETERS, 2000) e a crítica de Heidegger ao humanismo

clássico apresentada na sua Carta sobre o humanismo, de 1945.

A "ontologia do presente" em Michel Foucault reafirma a atualidade como um

conceito central justamente pela impossibilidade de reerguer os monumentos soterrados

da razão e pela imperiosa tarefa de discutir as práticas que constituem o nosso presente.

O abandono de perspectivas teleológicas refere-se principalmente ao reconhecimento da

falibilidade das leis e regras de funcionamento dos processos humanos,

impossibilitando-nos de utilizá-las para a descrição de tendências. A partir de Nietzsche,

desejo e poder são as forças que parecem constituir de forma mais consistente os

diferentes movimentos do sujeito e da história.

Tal compromisso implica em considerar, no exercício racional de investigar

racionalidades locais para compreendê-las como acontecimento, que “não tenha havido

uma espécie de ato fundador pelo qual a razão em sua essência tenha sido descoberta ou

instaurada.” (FOUCAULT, 2013a, p.333).

Ao analisar as “formas de racionalidade” da ação biopolítica da Educação de

Adultos, identificamos como ocorre a convivência entre enunciados do acesso e do

direito e enunciados do constrangimento e do abandono, denotando que a congruência

entre estes aspectos se constrói por um exame dessas racionalidades, e sua

inteligibilidade pode ser percebida ao nível dos efeitos de poder que acarreta. Ao lado

do acontecimento da “emergência da questão do analfabetismo”, convive o enunciado

da “retenção por infrequência”; ao lado da “questão nacional” está colocado o fato de

que a escolarização para adultos é um “sucesso” para bem poucas pessoas dessa mesma

nação. Nessa rede intrincada, nossas opções teóricas funcionam como uma “caixa de

ferramentas”, buscando compreender o funcionamento dessas relações de poder e

aceitando, conforme propõe Foucault (2003, p. 251), “que essa pesquisa só pode se

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fazer aos poucos, a partir de uma reflexão (necessariamente histórica em algumas de

suas dimensões) sobre situações dadas.”

Ao tratar-se da condição de “produção de mundos”, essa apresentação específica

do fenômeno humano da linguagem é tratada como Discurso. Discurso é a condição de

uso da linguagem no processo permanente de constituir mundos possíveis e, sendo esse

um processo agônico e permeado por disputas entre diferentes concepções de mundo, é

“aquilo pelo que se luta”, o próprio espaço do poder. Tecnicamente, discurso, para

Foucault (1972, 135), dentre muitas outras possibilidades, é um “conjunto dos

enunciados de um mesmo sistema de formação; é assim que poderei falar do discurso

clínico, do discurso econômico, do discurso da história natural, do discurso

psiquiátrico” e, em nosso caso, do discurso da Educação de Adultos.

As categorias linguagem, cultura, história, sujeito, poder e discurso são, ao lado

da premissa analítica da dessencialização dos fenômenos humanos, categorias próprias

ao campo da reflexão educacional. Ainda que Foucault não se permitisse

enquadramentos, observamos, juntamente com Eagleton (1997), que sua obra é uma das

teorizações (VEIGA-NETO, 2006, p.15) fundamentais para a constituição do campo

pós-estruturalista, bem como de outros desdobramentos da virada linguística ocorrida a

partir da década de 1960. Isso se dá pelo questionamento à razão, pela obstinação em

pesquisar o contemporâneo, pela forma como aborda a linguagem, pela luta que

estabelece com as noções transcendentes da verdade e pelas consequências

fundamentais de sua pesquisa para a compreensão das relações de poder

contemporâneas.

Essa abordagem nos ajuda a realizar a problematização das categorias sobre as

quais a educação, o ensino e a escolarização estiveram fundadas por dois séculos de sua

hipertrofia sem precedentes. Graças ao exercício de desnaturalização das formas de

realização dos fenômenos do ensino e da escola, pode-se hoje construir uma crítica mais

refinada dos mecanismos de dominação neles inscritos, atuantes através deles,

evidenciados pela produtividade do campo de reflexão sobre a diferença, num momento

contemporâneo em que o aumento dos dispositivos pedagógicos contra-hegemônicos no

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campo da raça, do gênero e da etnia6 contrasta com o avanço sem precedentes do

conservadorismo político e do reacionarismo moralista de cunho religioso.

Ao aplicar essa grade de análise ao problema da Educação de Adultos, emerge a

possibilidade de verificarmos um pouco mais de perto os deslizamentos provocados

pelas defesas irrestritas da educação escolar e os contornos específicos que essa prática

assume quando dirigida à população de pessoas adultas. Nesse sentido, nossos

procedimentos de pesquisa, municiados pela investigação dos documentos, e ocupados

pelas noções acima discutidas, tomam forma a partir da adoção da perspectiva

genealógica foucaultiana.

1.2. A genealogia como procedimento epistêmico

A genealogia é a fase do pensamento de Foucault em que o autor aprofundou

suas análises sobre as práticas de poder. É também o procedimento investigativo

voltado à construção de uma história a partir da irrupção do acontecimento, da raridade

dos objetos e das relações entre as forças que configuram as práticas de poder. A

genealogia em nossa pesquisa é um modo de ação epistêmica operada através da análise

de dispositivos de governamento das populações não alfabetizadas, visando pôr em

debate as práticas de poder na formação da escolarização da pessoa jovem e adulta.

No debate sobre as genealogias, Foucault (2013a, p.278) analisando Nietzsche

explicita que este trabalhou com as palavras alemãs correspondentes a: proveniência,

origem, formação e herança7. Esses termos, utilizados ao longo da obra nietzschiana,

são relativos aos procedimentos de análise genealógica e remetem ao questionamento de

pesquisas de origens fundadas em pressupostos metafísicos e essencialistas que buscam

a “identidade cuidadosamente guardada em si mesma” (FOUCAULT, 2013a, p. 275)

dos fatos e eventos analisados. Foucault ensina que a pesquisa das origens em

Nietzsche, e também em sua própria obra, polemiza com a busca das essências e assume

6 Refiro-me, por exemplo, à Lei 10.639/2003, que institui o ensino obrigatório de História da África e dos

povos africanos no Brasil; às dezenas de práticas pedagógicas sobre gênero e orientação sexual, saúde

reprodutiva e temas correlatos que entraram no campo das lutas da educação escolar nos últimos 15 anos;

a institucionalização de um modelo de Educação Escolar Indígena, proposto pela Resolução nº 3/99, do

CEB/CNE. 7 Respectivamente, Herkunft; Ursprung; Entstehung; Erbschaft;

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o conflito como “começo histórico das coisas” (2013a, p.276). O começo das coisas está

ligado, nessa perspectiva, não à nobreza ou à pureza das narrativas de origem, mas aos

movimentos irrisórios da vida humana.

Essa inversão realça a importância de eventos e objetos destituídos da “nobreza

da procedência”. Destitui, sobretudo, a noção de verdade de seu lugar transcendente. É

através dos conceitos de proveniência e herança que o filósofo francês faz, a nosso ver,

uma aproximação entre os procedimentos genealógicos e arqueológicos8. A

proveniência fala de procedimentos de inclusão de diferentes objetos em uma mesma

classificação, visando a constituir um espaço de identidade. Porém, Foucault vislumbra

aí a constituição de uma dispersão. Em Arqueologia do saber, texto de 1969, o autor

refere-se a “sistemas de dispersão” como um arranjo de objetos que torna possível

evidenciar uma regularidade ou, evitando palavras “demasiado carregadas”, uma

formação discursiva.

O termo Entstenhung, que no alemão significa também “formação”, é

apresentado pela tradução brasileira do texto de Foucault (2013a, p.281) como

designativo de “emergência”. Notamos como Michel Foucault tece, paulatinamente, sua

concepção de genealogia como procedimento analítico das relações de poder.

Utilizando-se de uma linguagem muito próxima da utilizada na Arqueologia do saber, e

trazendo dessa obra alguns conceitos determinantes, o autor descreve a emergência não

como um nascimento, mas como um “estado de forças” que faz aparecerem, na

instância das relações, os objetos; logo, é da luta, do confronto das forças, e não de

condições substantivas e transcendentes que emerge o poder, visível a partir de seus

efeitos (FOUCAULT, 2013a, p.281). A genealogia trata, portanto, de um “poder de

constituir domínios de objetos”. Nesse sentido, as relações de poder, desnaturalizadas,

desmistificadas da sacralidade, representam uma arquitetura do que pode ser visível,

discutível e desmontável.

A noção de emergência é descrita como um espaço intersticial através do qual

irrompe o acontecimento. O acontecimento é o próprio objeto da análise genealógica na

concepção de história pós-fundacionista foucaultiana. Através do acontecimento, o

genealogista pretende investigar as relações de forças sem recorrer ao absoluto ou às

8 Observamos que a entrevista “Nietzsche, a genealogia e a história” discutida neste trecho, data de 1971

e a Arqueologia do saber de 1969, ou seja, há uma relação de proximidade também cronológica entre os

dois textos.

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constâncias como fatores de legitimação (FOUCAULT, 2013a, p.284). Está em jogo

uma prática de pesquisa que exige o desvencilhar-se de uma concepção essencialista de

sujeito, da história e da linguagem e atuar no campo das descontinuidades, regularidades

e séries. Conforme Albuquerque Junior (2006, p.3):

As inovações no campo da historiografia devem nascer não apenas das

novas perguntas que somos capazes de fazer aos documentos, da

ampliação do questionário, como diria Veyne, mas das novas

conexões que consigamos estabelecer entre as séries de eventos

documentos que conhecemos.

Essas novas perguntas, prossegue Albuquerque Junior, referem-se à compreensão da

trama que envolve o acontecimento, como evento raro que se desdobra sobre um campo

de uniformidades.

É buscando esse tipo de objetos que o projeto genealógico libera a história para

podermos contar “uma” história sem buscar a precisão da “verdade histórica” e articula

a possibilidade de constituir os objetos a partir do próprio exercício em que os discursos

e as práticas são liberados daquelas categorias já constituídas e estabilizadas, como

tradição e identidade, por exemplo. Para o filósofo, “apenas os conteúdos históricos

podem permitir descobrir a clivagem dos enfrentamentos e das lutas que as ordenações

funcionais ou as sistemáticas tiveram como objetivo, justamente, mascarar.”

(FOUCAULT, 2005, p.11). É exatamente nesse lugar onde o olhar cristalizado vê

apenas o que lhe interessa que implantamos nossas grades de análise sobre práticas,

saberes, enunciados e buscamos compreender a dimensão estratégica que joga as

diferentes racionalidades nas relações de poder e, especificamente, na produção da

escolarização de pessoas adultas. Para Veiga-Neto (2004, p.4):

A genealogia examina como se pensava, o que se pensava, o que se

fazia, o que se dizia em determinada época, quais os poderes que

então estavam em jogo, de modo que tenha sido possível - e até

mesmo necessário, naquele momento histórico - pensar, dizer e fazer

coisas novas, coisas diferentes. Isso equivale a dizer que a genealogia

examina as condições de possibilidade no interior das quais se deu o

surgimento de algo novo.

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A genealogia se ocupa das relações entre o discurso e o poder, e do discurso que

se apresenta na luta pelo poder, no seu questionamento, numa localização em que mais

do que ferramenta, o discursivo é o próprio campo de luta, onde se confrontam, através

de diferentes saberes, de interlocuções intempestivas, de tomadas e retomadas

temáticas, de novas narratividades, as forças em disputa pela verdade.

Nessa ambiência conceitual, a racionalidade que sustenta a oferta de

escolarização de adultos no Brasil é perpassada por vários enunciados contundentes,

como “ensinar a ler é salvar vidas”. Mais do que um fundo messiânico, enunciados

como esse acionam, no interior das práticas, determinados comportamentos,

sentimentos, posturas. Um dos efeitos de frases como essas é o reforço de atitudes de

dependência ou subordinação por parte de estudantes adultos cujas vidas precisam ser

“salvas”. Esse tipo de enunciado não é um reflexo de uma natureza, ou de uma verdade

trans-histórica, mas o resultado de opções realizadas no plano histórico das práticas

humanas. E ele está no âmago das políticas do constrangimento e do abandono que

permeiam as práticas da Educação de Pessoas Jovens e Adultas, cuja discussão

realizamos de forma mais detalhada nos capítulos 3, 4 e 5 desta tese.

1.3. O biopoder na regulação das populações

O poder sempre atuou sobre a vida, dirigindo-a, eliminando-a, protegendo-a ou

tornando-a útil. A introdução da vida no cálculo político é um fenômeno da história das

sociedades ocidentais e da sua formulação enquanto forma de hegemonia político-

cultural sobre os povos do mundo, com maior ênfase a partir do século XV. A noção de

biopolítica instrui um campo de análises que se dedica a investigar as práticas de poder,

desde sua proveniência, atuando sobre as multidões e na interpelação dos indivíduos. A

racionalidade biopolítica é primordialmente dirigida à administração das forças vitais

das multidões que são constituídas, a partir do saber médico e do saber estatístico, como

populações. A incorporação da vitalidade humana como ativo dos processos de

produção é uma condição fundamental para a instalação das sociedades capitalistas, e se

desdobra em diversos mecanismos de controle que perpassam não apenas a certeza de

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que a vida pode ser politicamente incorporada, mas que seu limite, a eliminação,

também é um horizonte possível das práticas de governo.

A biopolítica é o termo consagrado por Foucault para designar a forma assumida

pelo poder em meados do século XVIII, momento no qual há uma alteração profunda na

forma como o poder de Estado passou a ser praticado. Segundo Castro (2011), foi o

geógrafo sueco Rudolf Kjellén quem primeiramente cunhou o termo com conotação

política, referindo-se ao “estilo de vida” e às formas de lutas que representam uma

ameaça à sociedade. Para Foucault, a biopolítica nasce da crise do modelo de poder

soberano e de sua metamorfose lenta em “nova arte de governar”, na qual as práticas de

Estado, sob a influência da economia política, se transformam em razão governamental

(FOUCAULT, 1988; 2005; 2008a; 2008b).

A biopolítica como campo de estudos investiga as práticas inventadas para atuar

na administração lucrativa da vida humana. Uma dessas práticas é a ideia de

escolarização obrigatória e a instituição da escola como espaço dedicado à

administração da infância e à sua produção como corpo social (VARELA, 1991). As

práticas de biopoder representam uma especialização sutil e complexa dos mecanismos

de controle das populações porque envolvem a lei, a norma e a subjetividade.

O biopoder e seus desdobramentos são analisados por Foucault num conjunto de

cursos do ciclo que se dedica a compreender as práticas de governamentalização das

sociedades a partir do século XVIII9. Mas cumpre recordar que a problemática

biopolítica é anunciada já no primeiro volume da História da sexualidade I: a vontade

de saber, e aparece também na palestra proferida pelo filósofo em 1974 no Rio de

Janeiro, intitulada “O nascimento da medicina social” (1994). Conforme esse conjunto

de estudos, depreende-se que o biopoder corresponde a uma tecnificação das formas de

lidar com a vida. É a incorporação dos processos vitais de uma população visando à

manutenção desses processos e à sustentação e ampliação da estratégia geral do poder

(FOUCAULT, 2008a, p.4; 2005, p.285).

A investigação sobre os diferentes mecanismos de condução da vida humana, na

esfera das relações de poder estudadas por Foucault em sua “história do sujeito”,

identificou três tecnologias que tiveram seus aparecimentos em distintos momentos da

9 São eles: Em defesa da Sociedade, de 1976, Segurança, território e população, curso de 1978 e

Nascimento da Biopolítica, de 1979;

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história. Esses mecanismos partem de realidades distintas e têm efeitos diversos. A

soberania dirige-se ao território, sendo a imagem força do exercício do poder do

soberano, poder de fazer morrer ou deixar viver, explicitado por Foucault na obra Em

defesa da sociedade; a disciplina dirige-se ao corpo e estabelece um sistema de

vigilância do indivíduo baseada no binarismo permitido/proibido; o autor apresenta na

obra Vigiar e punir uma detalhada descrição desses mecanismos a partir das instituições

que promovem o disciplinamento dos corpos; por último, Foucault analisa o dispositivo

de segurança como manifestação do poder sobre uma população, explicitando nos

cursos de 1978 e 197910

(os detalhes desse mecanismo já foram anunciados em História

da Sexualidade I: a vontade de saber, e no curso de 1976, intitulado Em defesa da

sociedade). Destacamos desse percurso o alerta dado pelo autor a respeito da

imbricação entre essas diferentes tecnologias de poder, que não se excluem numa lógica

evolutiva, mas convivem e adaptam-se umas às outras.

A análise desses mecanismos reconhece que o poder se manifesta também como

técnica de uso geral, dedicado à regulação de populações inteiras, que surgiam no

cenário da urbanização dos séculos XVIII e XIX como fenômeno sócio-histórico

associado ao desenvolvimento do capitalismo, na fase posterior à organização dos

estados-nação, à reordenação das relações entre Igreja e Estados do período pós-

medieval e à deflagração da oposição entre classes proprietárias e classes obreiras como

forças e questões políticas nos territórios nacionais. A atualidade da análise biopolítica

reside no fato de que esses elementos continuam sendo pontos de singularização das

linhas de forças que constituem as relações sociais e aparecem em dispositivos

intrinsecamente relacionados com a arte de governar presente em nossos dias através da

escolarização.

Comentando o pensamento foucaultiano, Deleuze (2005) afirma que as relações

sociais são constituídas sobre relações de poder e, por sua vez, toda forma do poder

produz um campo de saber que lhe constitui “pelo lado de fora”. Os saberes entram no

campo das lutas, constituem e consolidam as forças em disputa e desse modo reforçam

as práticas de poder. Sendo poder e saber constitutivos entre si, a história das práticas de

dominação é também uma história dos diversos saberes em luta e dos modos de sua

10

Respectivamente: Segurança, território e população e Nascimento da Biopolítica.

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constituição, dos seus desaparecimentos e de suas emergências. Foucault (2005, p.16),

discutindo essa relação a partir da sua peculiar linguagem filosófica, expõe:

A arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades

locais, e a genealogia a tática que faz intervir, a partir dessas

discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que

daí se desprendem.

Portanto, uma das finalidades de uma analítica de poder é destravar os saberes

soterrados e fazê-los funcionar no interior de uma estratégia mais ampla de

questionamento das relações de poder. Os saberes soterrados, quando emergem, trazem

à visibilidade o campo de lutas, as forças em combate, tornam possível falar das

oposições e resistências, bem como dos processos de dominação.

A incorporação da vida pelo poder tem início em técnicas dispersas que se

iniciam pelo indivíduo, através do disciplinamento do corpo. As técnicas disciplinares

são incorporadas pelas técnicas biopolíticas, que não se referem mais ao indivíduo

apenas, mas ao corpo social:

Depois de uma ánatomo-política do corpo humano, instaurada no

decorrer do século XVII, vemos aparecer, no fim do mesmo século,

algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu

chamaria de uma “biopolítica” da espécie humana. (FOUCAULT,

2005, p.289).

É sobre a ideia de população que se inscrevem as contingências biológicas que o

poder tenta controlar a partir de então. Nascimento, morbidade e adoecimento passam a

ser alvo de novos saberes médicos e estatísticos que contribuem para o controle do que

se passa nas populações, através da criação de técnicas que visam à manutenção de suas

forças, à otimização de sua vitalidade e ao controle de sua movimentação pelos

territórios. Ao lidar com a população, na primeira versão do biopoder, o que passa a

importar é o “agir de tal modo que se obtenham estados globais de equilíbrio, de

regularidade (...) assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação”

(FOUCAULT, 2005, p.294).

A ideia de biopolítica surge no pensamento foucaultiano nas pesquisas

apresentadas nos cursos da década de 1970, sendo apresentada como nova arte de

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governar que se desenvolve a partir dos séculos XVIII e XIX, onde o fenômeno da vida

biológica assume importância decisiva para a organização das práticas de poder. Trata-

se de um deslocamento e um adensamento nas práticas de conduta das populações,

objetos que começam a ser pesquisados por Foucault a partir dos seus estudos sobre a

medicalização.

Inicialmente, a questão é levantada a partir da hipótese de Nietzsche, em que a

guerra é considerada um conceito heurístico fundamental para compreensão das

relações políticas. São examinados os enfrentamentos que o saber histórico das lutas

realiza e esse tipo de análise leva o autor a indicar o racismo de Estado como uma

apresentação fundamental do poder biopolítico, ao estabelecer o direito de morte como

uma das premissas de um Estado que se dedica à manutenção da vida, dando finalidade

ao que aparentemente é uma contradição.

Em seguida, é investigada a proveniência dessa forma específica das relações de

poder chamada governamentalidade. Foucault encontra no cristianismo da Antiguidade

a forma pastoral, demonstrando as relações entre o papel político do pastor e a ideia de

governo ― agora, já um atuando como um deslocamento da forma do poder soberano

―, porque dedicado à conduta das populações (assim como o pastor conduz ovelhas,

velando por todas e por cada uma). Dedicar-se à população significa que o problema

central inscrito entre a arte de governar do liberalismo e a governamentalidade

neoliberal consiste na incorporação da população não como fenômeno natural, mas a

partir de sua naturalidade. Então a população surge como o objeto a ser conduzido, em

sua naturalidade, através da governamentalidade estatal (FOUCAULT, 2008a, p.474).

Isso quer dizer que população não é um dado natural, mas um campo onde as questões

da vida biológica representam um problema para as práticas políticas. A condução da

população na perspectiva da governamentalidade neoliberal se faz através mais da

incitação e menos da regulação. A regulação é um fenômeno da forma de Estado de

polícia, baseado na ideia de Razão de Estado. À nova governamentalidade caberá

“manipular, vai ser preciso suscitar, vai ser preciso facilitar, vai ser preciso deixar fazer,

vai ser preciso, em outras palavras, gerir e não mais regulamentar.” (FOUCAULT,

2008a, p. 474). Os mecanismos de segurança foram desenvolvidos pela nova razão de

Estado, orientada pelos princípios da economia política, como formas de evitar certos

movimentos e propiciar outros no âmbito das populações.

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A liberdade aparece como preceito fundamental, pois, ao invés de reprimir ou

regular a circulação, a questão passa a ser liberar a circulação das pessoas e dos capitais.

Para Foucault, a liberdade se constitui um problema do liberalismo que “se propõe a

fabricá-la a cada instante, suscitá-la e produzi-la” (2008b, p. 88). Uma das formas de se

produzir e incitar um certo tipo de liberdade é aquela veiculada através da legitimação

dos saberes característicos à educação escolar. Outra forma de produzir essa incitação é

a produção de uma cultura da alfabetização plena, sustentada por aparatos estatais,

atendendo a critérios quantitativos de metas de atendimento e avaliações em larga

escala, constituída sobre a legitimidade (que retorna sobre si mesma) das línguas

escritas de matriz colonial, aquelas levadas ao mundo através dos processos de invasão

e catequese desenvolvidos pelos países metropolitanos.

A compreensão mais refinada do poder e de seus mecanismos exige também a

produção de ferramentas epistemológicas diferenciadas, capazes de capturar os

mecanismos na grade analítica. Esse desafio traz à tona, no pensamento foucaultiano, o

conceito de dispositivo, cuja utilização permite dialogar com a dimensão estratégica das

relações de poder.

1.4. O jogo estratégico das forças: a noção de dispositivo

A fase genealógica da pesquisa foucaultiana refere-se ao momento em que as

relações entre o sujeito e o poder passam ao primeiro plano das análises. Com a obra

Vigiar e punir, o estudo das relações de poder é focalizado nas práticas disciplinares,

nos processos de conhecimento construídos para garantir a fabricação de corpos dóceis

no momento em que o poder aprende que talvez seja melhor educar do que eliminar. É

nessa obra que o conceito de dispositivo desponta como operador importante na análise

das práticas de poder (2009, p.134). Contudo, é em História da Sexualidade I: a

vontade de saber, que o autor define de forma mais detalhada a abordagem que preside

esse tipo de análise, focalizando o modo de atuar, ao tomar como objeto o dispositivo da

sexualidade.

Dessa forma, observamos, assim como fizeram Stassun e Assman (2010), bem

como Carvalho (2004), que o dispositivo implica uma configuração arqueogenealógica

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do processo epistêmico, considerando tanto a relação com o saber, e as relações entre as

pessoas, quanto os aspectos éticos da relação de si para si. Os dispositivos acionam

então, numa mesma racionalidade, as configurações de saber, poder e subjetividade.

Para Foucault, o dispositivo é uma rede de relações que se estabelece entre diversos

objetos do real, discursivos e não discursivos, articulados de maneira estratégica:

... ce que je voudrais repérer dans le dispositif, c'est justement la

nature du lien qui peut exister entre ces éléments hétérogènes. Ainsi,

tel discours peut apparaître tantôt comme programme d'une institution,

tantôt au contraire comme un élément qui permet de justifier et de

masquer une pratique qui, elle, reste muette, ou fonctionner comme

réinterprétation seconde de cette pratique, lui donner accès à un

champ nouveau de rationalité. Bref, entre ces éléments, discursifs ou

non, il y a comme un jeu, des changements de position, des

modifications de fonctions, qui peuvent, eux aussi, être très

différents.11

(FOUCAULT, 1977).

Agamben (2009, p.39), perscrutando a genealogia do conceito de dispositivo, a

ele se refere salientando tanto sua perspectiva estratégica, pragmática, quanto sua

natureza múltipla relacionada à ideia de governo das pessoas:

A referência a uma oikonomia, isto é, a um conjunto de práxis, de

saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar,

governar, controlar e orientar, em um sentido em que se supõe útil, os

comportamentos, os gestos e os pensamentos dos homens.

Trata-se de um conceito complexo, amplo e, de certo modo, de difícil definição.

Deleuze (1999), como leitor privilegiado de Foucault, afirma que os dispositivos são um

“conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente”. Os dispositivos são

feixes de relações que correlacionam saber-poder a partir de linhas de visibilidade e

linhas de enunciação. Enquanto ferramenta teórica, permite-nos lidar com variados

objetos, configurados em nossa pesquisa como estratégias, súmulas estatísticas,

documentos de vida escolar, registros de matrículas, relatórios de supervisão

11

Tradução nossa: "... O que eu gostaria de identificar no dispositivo é precisamente a natureza da relação

que pode existir entre esses elementos heterogêneos. Assim, tal discurso pode parecer às vezes como

programa de uma instituição, outras vezes como um elemento que permite justificar e ocultar uma prática

que em si é silenciosa, ou funcionar como segunda reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um

novo campo de racionalidade. Em suma, entre esses elementos, discursivas ou não, não há algo como um

jogo, mudanças de posição, mudanças nas funções, que podem, também, ser muito diferentes."

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educacional, disciplinas teóricas do campo da didática. O exercício genealógico atua

desarmando esses documentos de seus arcabouços de origem para buscar compreendê-

los diante de uma argumentação que põe em xeque sua eficácia ou sua legitimidade, ou

ambas, sem necessariamente reinscrevê-los numa lógica englobante. Com a noção de

dispositivo, pretendia Foucault efetivar uma análise dos diagramas do poder

(DELEUZE, 2005, p.80).

Deleuze (2005, p. 78) esclarece que para Foucault o poder não é uma forma, mas

uma força. É da relação entre as forças que nasce o espaço relacional identificado como

poder. Para Foucault (1988, p.103), “o poder não é uma instituição e nem uma estrutura,

não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação

estratégica complexa numa sociedade determinada”.

Dessa forma, capturar o fenômeno do poder a partir das suas substancialidades

torna-se uma tarefa inócua. Devemos persegui-lo através de suas visibilidades, nas

práticas, nos diversos pontos que são definidos pelas relações de poder e conectados

pelas linhas de força do dispositivo. O que estabelece um regime diferenciado de luz

sobre as relações no âmbito do dispositivo são aquelas perguntas que fazemos aos

documentos, inquirindo-os sobre os acontecimentos, sobre a irrupção da diferença que

os constitui por dentro.

As relações de poder são imanentes ao conjunto das relações sociais, são

constitutivas, não exteriores. Nessa perspectiva, o poder é produtivo, pois ele incita,

pro-move coisas no real, porque as forças são dotadas da possibilidade de afetar outras

forças. De tal configuração, depreende-se que a análise biopolítica trata não de fazer

uma teoria, mas uma analítica do poder (FOUCAULT, 1988, p. 92).

No caso da escolarização de adultos, por exemplo, verbos de ação, como

“mobilizar” (alfabetizandos), “ativar” (turmas de alfabetização), “fechar” ou “manter”

(turmas de EJA) remetem à proposição de que o poder é visível a partir de seus efeitos.

No caso da EJA, os efeitos imediatos acionam as vidas de determinados grupos de

indivíduos, bem como o enunciado do seu direito à educação, numa ordem em que as

forças interpeladas entram num processo muito refinado de subjetivação, pelo qual as

linhas de fratura do dispositivo pouco são visíveis. Uma vez que esses enunciados

referem-se a populações e estão inscritos numa racionalidade de regulação da vida como

objeto político, o seu efeito central atende pela função biopolítica do dispositivo.

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As forças que atuam no interior do dispositivo agem entre pontos que demarcam

a aplicação dessas forças, ou seja, a relação entre as forças constrói os pontos em que

podemos perceber a singularidade das relações de poder ali inscritas, em que se torna

perceptível sua ancoragem como, por exemplo, nos enunciados sobre a vergonha que

incitam os sujeitos a tomarem parte da cultura escolarizada. Para Foucault (1988, p.

104), as correlações de forças “servem de suporte a amplos efeitos de clivagens que

atravessam o conjunto do corpo social”. Essas clivagens, como a criação de uma

população de analfabetos pelo saber estatístico, demarcam sujeitos e supõem narrativas

e trajetórias.

As linhas de força são essas formações que capturam os pontos singulares, e

procedem à elaboração de uma economia de lugares, conexões, diálogos. A analítica do

poder é “uma estratégia imanente às correlações de força” (FOUCAULT, 1988, p. 107)

e, por isso, analisar as ancoragens do dispositivo nos permite conhecer os caminhos para

desarmar alguns objetos mais explosivos, mais perigosos, mais ameaçadores. Percebe-

se que o poder é uma estratégia, no sentido de que sua ação se faz sentir a partir de uma

certa ordenação de recursos variados tendo em vista a obtenção de um objetivo

(RAFFESTIN, 1993, p.42).

Deleuze informa que as relações de poder são estabilizadas (ainda que de modo

sempre precário, contingente e vazado) por processos de integração. Por processos de

integração podemos compreender um tipo de operação que visa concatenar as

singularidades. As singularidades são estados de poder afetados sempre de modo local e

instável. O processo de integração por sua vez, constitui uma linha de força entre as

singularidades. São as práticas que efetivam os processos de integração, fazendo

funcionar as linhas de força entre os pontos do dispositivo. Portanto, uma parte

importante da pesquisa sobre o poder é a possibilidade de ver e fazer ver essas linhas de

força e suas atuações. A outra questão reside no para que desse tipo de análise, sua

finalidade enquanto prática social, uma questão da qual Foucault não se furtou, embora

não se demorasse muito em explicações a respeito. Segundo o autor,

Falo da verdade, procuro ver como se atam, em torno dos discursos

considerados como verdadeiros, os efeitos de poder específicos, mas

meu verdadeiro problema, no fundo, é o de inventar instrumentos de

análise, de ação política e de intervenção política sobre a realidade que

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nos é contemporânea e sobre nós mesmos. (FOUCAULT, 2003, p.

240)

O processo de integração é identificado com as instituições, tais como Estado,

família e escola, que compõem o quadro das práticas, criando um “sistema de

diferenciação formal” composto por duas características dos dispositivos: as curvas de

visibilidade, que relatam o saber, as formações, os aparelhos e o regime de luz que age

sobre os objetos e as curvas de enunciação, que definem as regras, as relações

diferenciais de forças, e o regime de legibilidade (DELEUZE, 2005, p.87). O que pode

ser visto e o que pode ser falado. A luz e a palavra: duas imagens também fortemente

associadas ao analfabetismo e às formas de seu “enfrentamento”.

O que define a regra dos jogos de poder são as regularidades, pois, atuando no

interior dos sistemas de diferenciação, traçam uma linha de força geral entre as

singularidades (os pontos de atuação das forças, os afetos) afetando as relações postas e

tornando-as enunciáveis e visíveis sob determinadas condições.

Dessa forma, a desnaturalização dos enunciados sobre escolarização de pessoas

adultas representa uma fratura num campo de forças destinado a legitimar a ausência

como dado normal na enunciação dessa modalidade educacional. Ora é o sujeito que

carrega a ausência da escrita, ora é o sujeito que produz uma ausência da escola. O

enunciado sobre sucesso típico da escola de crianças e adolescentes fica cerceado em

sua abrangência, pois os afetos que singularizam esses enunciados como legítimos

parecem menos seguros e, portanto, menos confiáveis.

Desse modo, temos exposta uma intrínseca oposição entre duas “verdades” sobre

a escolarização de EJA, ambas criando uma tensão com a racionalidade escolar em

relação à articulação entre presença e tempo. Do ponto de vista das práticas, os preceitos

sobre aprovação por frequência e frequência por presença física do sujeito ao ambiente

escolar são desestabilizados e, desse modo, podem ser contestados.

Por conseguinte, podemos afirmar que a noção de dispositivo permite operar

com objetos que não pertencem à mesma classe, nem são necessariamente

contemporâneos, nem se expressam numa lógica causal linear. Construir o dispositivo é

“construir um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas” (DELEUZE, 1999). A

trama formada pelas relações entre diferentes objetos é o que produz efetivamente o

dispositivo, fazendo funcionar as relações entre os elementos discursivos e não

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discursivos, quando dispostos na rede. Dessa forma, podemos afirmar que os

dispositivos são funcionais e estratégicos. As estratégias são tanto locais, definidas por

relações táticas, quanto globais, uma vez que o poder “se exerceria do mesmo modo em

todos os níveis” (DELEUZE, 1999, p. 95). A tal movimento das estratégias, Foucault

nomeia como “duplo condicionamento”.

Os efeitos de práticas são dotados de contemporaneidade, sendo desnecessário

que os elementos do dispositivo desfrutem dessa mesma condição para continuar

produzindo as relações. O dispositivo é o índice de uma racionalidade, e de uma

racionalidade que prescinde da coerência como um fator de ordem. Para Foucault (2005,

p. 10), analisar uma racionalidade é investigar um uso local da razão, perscrutando sua

operacionalidade como prática diante de um conjunto de relações.

O saber é irredutível ao poder, mas entre ambos existe uma relação de imanência

pelo “lado de fora”. Trata-se de uma relação diferencial constitutiva dos discursos. O

saber é composto de relações formadas, estratificadas. O poder por matérias não

formadas e funções não formalizadas (DELEUZE, 2005). A principal característica que

define essa relação diferencial matricial é o “lado de fora”, condição diferente da

externalidade, mas que define regimes: a visibilidade está para o visível assim como a

enunciação para o dizível. Poder e saber podem se produzir porque não coincidem

(DELEUZE, 2005, p. 85). Há uma diferença de natureza entre ambos. O poder

disciplinar que atua produzindo corpos dóceis é acompanhado por todos os novos

saberes a respeito da criança. Os saberes sobre o sexo acompanham a “história do que

foi dito” (FOUCAULT, 1988, p.18) e o que foi dito em grande parte compõe a vontade

de saber sobre as coisas, tal como o dispositivo da sexualidade analisado por Foucault.

O que atualiza cada uma dessas “potências” é a dimensão estratégica das forças,

constituindo as relações de poder. Por exemplo, a insistência de governos em “fechar

turmas de EJA” em um contexto de amplos contingentes populacionais não

alfabetizados parece ser menos a simples execução de ações administrativas com

aplicação de normas de funcionamento e mais a possibilidade de continuar

“erradicando” o analfabetismo, seja por uma via, seja por outra. É o jogo de presenças

furtivas entre a ação de um princípio de soberania ― a aplicação da lei ― e a ação de

um princípio de segurança ― a economicidade, resultando numa condição de

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disciplinamento e numa prática biopolítica ―, localização dos corpos, neste caso,

dentro e fora da escola.

Em nossa tradição epistemológica, somos demasiado acostumados a buscar a

coerência como fator da racionalidade, mas Foucault nos mostra em suas reflexões ao

longo da obra que tal edifício de longas cadeias de coerências é mais uma “pretensão da

razão” que sua própria matéria. Agamben chama de mitologemas a ideias tais como a

associação da razão à lógica, relações causais e coerências lineares. O exercício

arqueogenealógico, nesse sentido, nos mostra a possibilidade de verificar os

funcionamentos do pensar e do agir ao longo da história sem reinvestir em tais

mitologemas, sem buscar reinaugurar a razão como um fundo coeso e harmônico de

coerências e relacionamentos causais entre eventos (FOUCAULT, 2013a).

O conceito de dispositivo apresenta produtividade devido a essa sua vinculação

aos procedimentos genealógicos e à compreensão de poder como força que constitui

relações. A proposição de que as racionalidades dispostas nos eventos e objetos dos

dispositivos não possuem um fundo causal nem um fundamento imanente que as

caracterize, legitime e as autorize a funcionar salienta o fator relevante de que, mesmo

assim, essas racionalidades seguem atuando no espaço da legitimidade, da autoridade e

da funcionalidade.

Todo esse debate, no entanto, não se abstém de uma noção de responsabilidade

que nos questiona a todos a respeito de nossa participação nos dispositivos biopolíticos.

Não se trata, a nosso ver, de uma diluição do campo de responsabilização sobre

condições sociais e públicas que envolvem a vida dos sujeitos. Antes, pelo contrário, o

que está posto é o reconhecimento da dispersão que nos implica a todos no

funcionamento da maquinaria.

A própria conceituação de poder, aberta, fluida e permissiva, do autor francês

em análise, remete ao fato de que os pontos de resistência não são exteriores às relações

de poder, lhes são constitutivos, são imanentes ao poder. Não há poder sem resistência e

não há resistência ao poder, mas enquanto poder. É como relação irredutível que o

poder é também uma possibilidade, uma abertura. As relações de escolarização para

adultos representam mais um capítulo da história geral da escolarização. Por dentro da

escola depois que o portão é fechado e os estudantes e professores iniciam os rituais

desse processo geral, ocorrem as pequenas rupturas, as táticas locais, que criam linhas

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de fratura, enfrentamentos com a norma, outras disposições. Nas palavras de Foucault

(2003, p. 231),

Se é verdade que essas pequenas relações de poder são com

frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de

Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer

que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura

de Estado só podem funcionar se há, na base, essas pequenas relações

de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por

exemplo, o serviço militar, se não houvesse, em torno de cada

indivíduo, todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a

seu patrão, a seu professor - àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na

cabeça tal ou tal ideia? A estrutura de Estado, no que ela tem de geral,

de abstrato, mesmo de violento, não chegaria a manter assim, contínua

e cautelosamente, como uma espécie de grande estratégia, todos os

indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie

de grande estratégia, todas as pequenas táticas locais e individuais que

encerram cada um entre nós.

O procedimento de anotar como presente um aluno ausente, num documento

oficial, prática arriscada, uma desobediência civil de professoras de Educação de

Adultos (estejam elas nas escolas, estejam elas nos programas-campanhas) estabelecem

outra gramática da presença e da ausência. Conferem valor a pequenos fatos jamais

observados pela norma e seus fiscais, como um aluno ausente que retorna depois de

várias semanas ao ambiente escolar num mesmo ano letivo. Não parece que se trate

apenas de um desvio à norma. Com decisões dessa ordem, professoras garantem que a

turma continue existindo, que não seja fechada por “falta de alunos”, que aqueles

poucos estudantes que ali estão continuem ocupando o espaço que apenas espera pela

sua saída. Trata-se de um enfrentamento local altamente complexo, em que jogam

diversos interesses e no qual as linhas de força do dispositivo vão costurando as abas

soltas da escolarização de adultos.

O conceito de dispositivo é um recurso analítico que permite a abordagem de

objetos discursivos e não discursivos articulados por uma racionalidade específica. O

estudo dessas racionalidades relaciona-se ora com o poder disciplinar, ora com o

regulador e, para Foucault, por fim, trata-se de uma discussão sobre as formas da

verdade, os modos como construímos as verdades sobre nós mesmos e executamos

práticas de poder com estas verdades. O tema da verdade, que relaciona não apenas os

sujeitos com o Estado, mas consigo e com os outros, acompanha o estudo do

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dispositivo. Nessa perspectiva, trabalhamos com a seguinte afirmação de Foucault

(2003, p. 233) sobre a verdade:

Entendo por verdade o conjunto de procedimentos que permitem a

cada instante e a cada um pronunciar enunciados que serão

considerados verdadeiros. Não há absolutamente instância suprema.

Há regiões onde esses efeitos de verdade são perfeitamente

codificados, onde o procedimento pelos quais se pode chegar a

enunciar as verdades são conhecidos previamente, regulados.

Em nosso trabalho, trazemos essas considerações para pensar o olhar

“pessimista” e “negativo” da escolarização a partir do qual uma análise dos dispositivos

parece se construir. Retomemos o tema da produtividade do poder. Despido de uma

roupagem transcendente, o poder pode ser visto como algo produtivo, não apenas de um

“mal”, mas de acontecimentos, saberes e subjetividades, conforme a racionalidade local

instalada pelas condições sempre precárias, instáveis e contingentes de produção da

verdade. Por seu turno, o compromisso com o presente, defendido pelo autor, no sentido

da busca de uma compreensão profunda a respeito de como viemos a ser o que somos,

participa dessa perspectiva em que o pessimismo não é imobilizante, mas antes uma

forma de realismo crítico. Reconhecer e deflagrar a emergência dos problemas

vivenciados como nossa atualidade, compreender as forças envolvidas com a sua

constituição são fundamentais para estabelecer novos parâmetros de ação e entrar na

instância das lutas de forma mais contundente e ativa.

Nosso estudo trata do conjunto de eventos, discursos, práticas que permeiam um

processo de produção de posições de sujeito numa relação de tensionamento no campo

da educação escolar. Defendemos que um dispositivo específico entra em atuação no

campo da educação escolar visando o engajamento de pessoas adultas no projeto da

escolarização.

A exigência de ampla erudição e estudos de áreas conexas como filosofia,

história, teoria política, sociologia e da própria teorização pedagógica para fazer frente à

profundidade do pensamento foucaultiano, de modo a operar adequadamente com seus

termos, também justifica nossa escolha por uma abordagem especificamente nos termos

da pesquisa mantida no âmbito da epistemologia foucaultiana. Em que pesem as

considerações acima, a produtividade para construir, analisar e compreender os

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fenômenos que compõem nosso objeto usando as ferramentas da análise biopolítica

foucaultiana é ainda o maior fator da escolha.

A característica central dessa opção teórica baseia-se no fato de que os conceitos

de ordem metodológica não se desprendem do processo analítico-interpretativo, ou seja,

a estratégia descritiva é carregada de força reflexiva diante dos objetos descritos. É o

caso, por exemplo, do conceito de dispositivo utilizado como categoria do estudo. Ao

tempo em que é um potente conceito de ordem descritiva, contribuindo para tornar

visível a articulação de diferentes objetos que fazem atuar uma racionalidade, é também

um conceito que se refere ao modo como o poder se articula de maneira estratégica para

exercer a conduta dos sujeitos num determinado campo de referência. Estaremos ao

longo do estudo articulando essas duas dimensões indissociáveis, mas que possuem

diferentes funcionalidades no processo reflexivo sobre os fenômenos escolares.

Lembramos, juntamente com Larrosa (1994), que a educação é uma prática

dotada de especificidade formativa, nem sempre visível ou explícita como espaço de

produção de subjetividades. Segundo o autor catalão,

O sentido comum pedagógico e/ou terapêutico produz um

esvaziamento das práticas mesmas como lugares de constituição das

subjetividades. Não deixa de ser paradoxal que o primeiro efeito da

elaboração pedagógica e/ou terapêutica da autoconsciência e da

autodeterminação consista em um ocultamento da pedagogia ou da

terapia. Ambas aparecem como espaços de desenvolvimento ou de

mediação, às vezes de conflito, mas nunca como espaços de

produção.” (LARROSA, 1994, p.44).

Desse modo, as relações que se dão no interior de dispositivos pedagógicos, tais

como o dispositivo da campanha, possuem uma especificidade entre as várias formas de

relações sociais. A produção de subjetividades numa ordem de subordinação social é

um problema característico da Educação de Adultos, pela destinação social das políticas

discursivas dessa modalidade educacional, configuradas em mecanismos que, em

conformidade com os dados de nossa pesquisa, são construídos para assegurar essa

subordinação. Quando falamos e perscrutamos o conjunto de fenômenos que

denominamos políticas discursivas, buscamos compreender como esse processo ocorre,

o que está implicado, quais enunciados colaboram para sua constituição, quais práticas

produzem as escolarizações do campo da EJA contemporânea.

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Foucault considera que o discurso possui materialidade, que se expressa em

produções verbais, mas não parte de uma distinção entre o discurso e a língua como se o

primeiro fora o local da enunciação da verdade e o segundo o significante que a

expressa. Foucault considera que o jogo dos discursos é constitutivo da própria verdade,

como processos de veridição, em que a ideia de verdadeiro prevalece como marcação

do campo de disputa. Os esforços dos vários discursos para se constituírem em

domínios do verdadeiro é o que constitui a única dose de verdade a ser capturada pela

análise.

O dispositivo é composto por objetos (as unidades de elementos que o compõem

numa realidade material, discursiva e extradiscursiva) dispersos em tempos, contextos

enunciativos e condições institucionais que remetem a um conjunto de relações. Essas

relações compõem uma estratégia que opera, no campo de forças analisado neste estudo,

através das Tecnologias do Constrangimento e do Abandono, com efeitos de

subjetivação e de regulação marcados pela incidência de tais políticas discursivas sobre

a população de pessoas adultas não alfabetizadas.

Os dispositivos que atuam na escolarização de adultos desenham um diagrama

composto por campos de luz alinhavando visibilidades que chamamos de

constrangedoras. O regime de luz lançado sobre os sujeitos da EJA no processo de

escolarização é investigado a partir das imagens projetadas nos históricos escolares

como formas do abandono à lei no interior do espaço escolar. É também graças à

visibilidade dos movimentos da população registrados nesses documentos que pudemos

vislumbrar as heterocronias e as heterotopias dos sujeitos no interior do espaço escolar.

Com o inventário desses objetos, dedicamo-nos à analítica do biopoder na escolarização

de adultos.

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1.5. Uma análise biopolítica: seus desdobramentos

A pesquisa social, da qual participa a pesquisa educacional, em virtude de suas

articulações epistemológicas e vínculos teóricos, é uma das formas de narrativa

legitimada da ciência sobre o cotidiano (MELUCCI, 2005, p.33). Nessa perspectiva, a

análise dos discursos é uma narrativa sobre narrativas, que busca o sentido na forma da

apresentação dos discursos ― sua emergência ― considerados como acontecimento,

em que sua objetividade é um desafio. A pesquisa como prática que participa da

construção do real é “uma forma de tradução do sentido produzido no interior de um

certo sistema de relações” (MELUCCI, 2005, p. 34).

O discurso é uma prática que “forma sistematicamente os objetos de que fala”

(FOUCAULT, 1972, p.64) e nessa perspectiva o trabalho com os discursos da

escolarização de pessoas adultas solicita uma análise de sua Herkunft (proveniência),

compreendendo que a genealogia é uma prática que busca, sobretudo, “manter o que se

passou na dispersão que lhe é própria” (FOUCAULT, 2013a, p.279).

Vimos argumentando, ao longo da exposição do marco teórico-metodológico da

presente investigação, diversos caminhos e tarefas do processo analítico que sustenta

nossas discussões a respeito da biopolítica da escolarização de adultos. Retomamos

agora o caminho e as tarefas, de modo a tornar mais claro o trabalho a que nos

propusemos.

Partimos do pressuposto de que há necessidade de se interrogar as práticas de

escolarização de adultos, no tocante à superfície de inscrição biopolítica da

escolarização, por se tratarem de mecanismos em pleno vigor na atualidade, cuja função

específica na ordem das relações de poder produz interdições, silenciamentos e

constrangimentos. Perscrutar os sentidos da escolarização a partir dos documentos da

instituição sobre os sujeitos remete aos enunciados que indicam arestas, vazamentos e

abandonos no desenrolar das práticas dessa instituição, constituindo um campo de

visibilidades sobre o sujeito, um regime de luz que produz a exposição reminiscente

desse sujeito numa posição de homo sacer, instaurando uma politicidade polêmica que

fala da relação do Estado com esse sujeito como uma relação de exceção.

Em intrínseca articulação com esse regime de luz, afirmamos que o sujeito é

constituído como alvo das ações de governo na Escolarização a partir de uma

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discursividade que atuou aplicando mais um binarismo da modernidade: a separação

entre alfabetizados e analfabetos, numa enunciação que no tempo em que produz uma

visibilidade, produz um problema e cria um campo de poder em torno desse problema:

uma população sobre a qual atua um dispositivo.

Para dar conta dessas tarefas, analisamos a imbricação de diferentes enunciados

que se apresentam numa dispersão mais ampla na cultura, contemplando aspectos não

discursivos, numa investigação a respeito das relações de força que constituem o poder

saber sobre a população interpelada pela escolarização. A materialidade de algumas das

práticas da instituição sobre a vida escolar dos sujeitos adultos não alfabetizados é uma

coleção de “históricos escolares” que descrevem as caminhadas intermitentes, as longas

paradas, as retomadas e as marcações do caminho: retido, reprovado, aprovado,

abandono. Essas marcas trazem à tona aquilo que acontece aos sujeitos depois que o

acesso já foi garantido, depois que o direito já foi contemplado. É quando entra em cena

a efetividade das práticas e o modelo de escola entra em jogo, com todos os seus

artifícios, para, entre outras coisas, assegurar o lugar social da “ignorância”. As

campanhas foram historicamente a afirmação dessa lógica e sua dispersão a todos os

rincões: “alfabetize-se para deixar de ser a vergonha nacional”.

A análise arqueológica debruça-se sobre os diferentes saberes que produziram o

sujeito das Ciências Humanas, analisando as discursividades locais, no exercício de

compreender o funcionamento desses saberes. Já a genealogia dedica-se a investigar a

proveniência das formas de poder-saber que produzem o exercício do governo, criando

padrões de normalização que atuam no processo de conduta dos corpos, mentes e

desejos.

Em suas pesquisas, o autor mantém uma postura bastante cuidadosa em relação a

prescrições metodológicas. A cada curso que apresenta anualmente no Collège de

France, o início é dedicado, via de regra, à apresentação do percurso metodológico

seguido, das razões para a tomada de determinados caminhos analíticos, a constante

ressalva com o uso de categorias consagradas como razão, método, generalização,

evidência, entre outros. Para Foucault (2008a, p. 160), “É verdade que nenhum deve ser,

em si, uma meta. Um método deve ser feito para nos livrarmos dele”. Em sua forma de

abordar o problema da construção do conhecimento, Foucault considera o método um

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“ponto de vista, um acomodamento do olhar, uma maneira de fazer o suporte das coisas

girar pelo deslocamento de quem as observa”.

No início do curso de 1976, por exemplo, Foucault destaca alguns

procedimentos da genealogia como uma análise implicada com a compreensão do poder

enquanto prática e “relação de força”. Para escapar dos determinismos, frequentemente

o autor refere-se às suas técnicas de pesquisa como perguntas, espécies de “questões

procedimentais” que fornecem o mapa metodológico dessa forma de investigação.

Numa dimensão genealógica, o autor inquire: “se o poder se exerce, como é esse

exercício? Em que consiste? Qual a sua mecânica?” (2005, p.21). Portanto, perguntas

procedimentais sobre os procedimentos do poder. Da mesma forma, no início do curso

de 1979, visando investigar a arte de governar, ele pretende “partir dessa prática tal

como ela se apresenta” (2008b, p.5).

O fundo de referência para a emergência da análise sobre as formas do poder é o

palco das lutas históricas, das lutas que foram apagadas, silenciadas, dos conflitos

escondidos sob o verniz de explicações racionais. Ao deflagrar a compreensão desses

“saberes sujeitados”, a análise genealógica valoriza os “conteúdos históricos das lutas”

como aqueles que podem “descobrir as clivagens dos enfrentamentos e das lutas que as

ordenações funcionais ou organizações sistemáticas tiveram como objetivo, justamente,

mascarar.” (2005, p. 11). A irrupção dos saberes históricos das lutas é a tática de

Foucault para questionar o modo tradicional de fazer ciência, problematizando como

premissa o próprio poder do discurso científico no seu papel de produtor de um discurso

verdadeiro, unitário, hierárquico e ordenado.

Nesse horizonte, a genealogia seria “a tática que faz intervir a partir dessas

discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem”

(2005, p.16). No Curso de 1978, dedicado à governamentalidade, as perguntas

procedimentais de Foucault buscam compreender não o que é o poder, questão que ele

ressalta como menor em várias passagens da obra, mas como funciona: “onde se passa,

como se passa, entre quem e quem, entre que ponto e que ponto, segundo quais

procedimentos e com quais efeitos” (FOUCAULT, 2008a, p.4).

No curso de 1979, Nascimento da Biopolítica, quando fala de métodos, Foucault

(2008b, p. 4) explicita que o estudo do biopoder é compreender a “racionalização da

prática governamental no exercício da soberania política”, remetendo novamente o

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olhar para as práticas e menos para as definições e conceituações. Como procedimento

central, o filósofo pede que as categorias abstratas sejam passadas através da grade das

práticas.

Contar a história da proveniência das coisas, seu percurso de emergência como

acontecimentos, vislumbrar seu aparecimento, é uma das ferramentas fundamentais na

compreensão do que somos, ou de como se produziu nosso presente. No entanto, esse

procedimento genealógico, que expõe, por exemplo, a história das lutas e demarca o

campo sobre o qual os mecanismos de poder exercem seu jogo, exige-nos atenção para

uma dimensão fundamental da analítica foucaultiana: o fato de que algumas de suas

análises extrapolam esse intuito de "contar uma história" e atravessam a ponte na

direção de uma ampla descrição das práticas estratégicas que dão forma ao poder. O

arquivista de que fala Deleuze (2005), recém-chegado à cidade, é heterodoxo em suas

práticas como investigador. E cremos que a ideia de uma “análise biopolítica” em

alguns momentos se desdobra do ambiente analítico genealógico e assume um lugar

mais específico.

Os delineamentos apontados pelo autor deslocam-se desses dois conjuntos

procedimentais para guiar-se pelas questões nas quais percebemos que Foucault faz um

recorte na própria análise genealógica e, de certo modo, adentra no que estamos

chamando, nos limites deste texto, de “análise biopolítica”.

É certo que a orientação original sobre a genealogia exige a compreensão das

“proveniências”, ou seja, pede que as práticas de poder sejam analisadas a partir de seus

processos de emergência, investigando as formas como surgiram e se desenvolveram.

Entretanto, cremos que alguma coisa extrapola o exercício genealógico quando Foucault

nos pede para analisar como as práticas se dão em sua contemporaneidade e para

analisarmos o poder a partir de seus efeitos. A visibilidade das relações de poder que

pode ser vislumbrada ao fazermos os exercícios de recorte, remontagem, análise das

proveniências dos conceitos e modos específicos com que cada época construiu

determinados conceitos, remete ao processo arqueogenealógico, mas a análise dos

efeitos parece se localizar num outro quadrante de abordagem do problema do poder.

Ao investigar os efeitos do poder, sua produtividade, Foucault parece estar

voltado mais para o momento específico em que as formas genealogicamente descritas

assumem sua contemporaneidade e sua validade, produzindo de modo mais premente

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sua presença nas relações sociais permeadas por esta forma de poder. Os efeitos da

biopolítica são explicados por suas condições de emergência, mas são compreendidos a

partir de sua interpelação ao campo do real sobre o qual a biopolítica está atuando, quais

os objetos que ela toca, como produz seus efeitos. Nesse âmbito da análise, o poder é

compreendido como uma articulação estratégica de objetos, que noções como

dispositivo, estratégia e tecnologia descrevem a partir de sua objetividade. Conforme

explicita Foucault (2008b, p. 05, grifo nosso):

Os mecanismos de poder são parte intrínseca de todas essas relações,

são circularmente o efeito e a causa delas, mesmo que, é claro, entre

os diferentes mecanismos de poder que podemos encontrar nas

relações de produção, nas relações familiares, nas relações sexuais,

seja possível encontrar coordenações laterais, subordinações

hierárquicas, isomorfismos, identidades ou analogias técnicas, efeitos

encadeados que permitem percorrer de uma maneira ao mesmo tempo

lógica, coerente e válida o conjunto dos mecanismos de poder e

apreendê-los no que podem ter de específico num momento dado,

durante um período dado, num campo dado.

Seguindo esse raciocínio, a biopolítica da escolarização explica como chegamos

até o ponto em que estamos através de mecanismos que interpelam o sujeito não

escolarizado para inserir-se na escola, e a análise biopolítica nos permite compreender

os impactos disso que chegou ao nosso cotidiano, bem como as relações produzidas por

essa forma específica de poder, que possui uma atualidade, uma contemporaneidade a

partir do momento em que nos deparamos com a magnitude dos seus efeitos.

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1.6. Exceção e vida nua como alegorias do analfabetismo

Neste trecho do estudo, enfocamos as categorias trazidas à tona pela reflexão de

Giorgio Agamben, cujas interlocuções com os objetos analisados em nossa pesquisa

fornecem um horizonte através do qual podemos pensar as várias formas da ausência

que se apresentam como fruto da ordenação estratégica das relações de poder

apresentadas na escolarização de adultos.

O desafio ético-político configurado pela percepção de que a extinção da vida

por morte “natural” tem sido mais eficaz, na redução dos índices de analfabetismo

(critério estatal do sucesso da escolarização), que nossas práticas de Educação de

Adultos, defronta-nos com o desafio teórico de produzir ferramentas com as quais seja

possível trazer à visibilidade o problema que se encontra para além da estatística, ou que

esta apenas sugere.

Toda a noção de biopolítica é implicada por uma noção de tanatopolítica, ou

seja, uma política da pulsão de morte. Conquanto a vida biológica esteja envolvida, o

limite da existência, a manutenção desse suporte biológico compõe a paisagem a partir

de uma possibilidade concreta que é a eliminação. No tocante ao conceito de racismo de

Estado, Foucault elabora a eliminação, não apenas a separação, como produto de uma

ação de governo. Porém, Foucault não elabora um conceito de campo, como reflete

Agamben, e de certo modo isso se constitui numa ausência sobre a questão do

genocídio. O genocídio é um meio de controle da população visando limitá-la, mas

também representa um meio de controle da diferença no interior do território,

implicando a eliminação étnica de uma parcela da população. Segundo Raffestin (1993,

p. 79): “É a violência elevada à categoria de meio político”.

No tocante à eliminação de um grupo social, o desaparecimento de seus códigos

simbólicos é uma das ferramentas desse genocídio, ou uma de suas etapas. Na relação

da pessoa não alfabetizada interpelada pelo discurso da escolarização, ao que parece a

proposta é suprir uma falta ― os saberes da escrita ― ao tempo em que se “civilizam”

as populações. Não se trata aqui de reafirmar a falsa oposição, já derrubada inclusive

pela própria ciência linguística, entre o oral e o escrito, ou entre a tradição e a

modernidade. Não poderíamos afirmar que as populações não alfabetizadas detêm a

oralidade como principal manifestação de sua presença no mundo. Isso as colocaria

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numa regularidade perigosa, porque encobre a diversidade de suas práticas de inscrições

sobre o mundo.

Trata-se de reconhecer aquela condição de seres de cultura afirmada pelo melhor

da obra freiriana, e refletir que sua corporalidade não foi assumida pela escola, sua

religiosidade não foi assumida pela escola, suas formas de interação visual e auditiva

não foram assimiladas pela escola, cuja pretensão biopolítica era reafirmar esse sujeito

no lugar de um Outro e ali mantê-lo de forma econômica e eficaz, administrando sua

diferença.

Portanto, o genocídio precisa exterminar também o que o sujeito é capaz de

reconhecer enquanto seu mundo simbólico, e nessa perspectiva a cultura escrita

desempenha uma função estratégica na modernidade. Não qualquer escrita

genericamente colocada, mas a forma como esta técnica foi escolarizada na relação com

os sujeitos adultos não alfabetizados, presentes a um mundo diverso em suas

temporalidades e plural nas formas de participação nos destinos da vida social; tem sido

a ferramenta responsável por realizar, com precisão cirúrgica, a inserção de um outro

mundo naquele já existente dos adultos. Esse mecanismo é parte do fenômeno genocida

que envolve a biopolítica numa articulação estratégica com o racismo no campo da

escolarização de adultos.

A questão da vida e da morte remete ao debate sobre a vida nua em Agamben.

Para esse autor, a vida nua é um processo de segregação e ao mesmo tempo de inclusão.

É a partir da inclusão da vida nua, a zoé, no espectro da vida política, a bios, que se

desenha o que, para o autor, é a chave da política na modernidade. A vida nua é um

termo que se refere à existência biológica do humano, sua inscrição na natureza, numa

espécie, no suporte de um corpo biológico. É essa dimensão que passa a ser alvejada

pelas ações de Estado entre os séculos XVII e XVIII, segundo Foucault. É justamente

pela sua inclusão entre as preocupações do governo, quando a zoé passa a ser

compreendida como um fenômeno de população, para ser então administrada pela razão

governamental, que se constitui para Foucault o momento da viragem do poder

soberano para o biopoder.

Para Agamben (2010, p.16), no entanto, bios e zoé ocupam uma “zona de

irredutível indistinção”. Foucault, segundo ele, teria marcado a incorporação da zoé pela

bios como irrupção, acontecimento, mas Agamben afirma a antiguidade dessa

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incorporação, dessa presença e sua indistinção muito primitiva no campo do político. A

negação da zoé se dá no mesmo passo de sua assunção enquanto problema político. Ela

é objeto de ação de governo porque a vida nua é problemática.

Um dos traços do discurso do analfabetismo, uma das formas pelas quais uma

forma de vida foi transformada em problema social e “falta universal” (no jogo das

cadeias de sentido sobre a sociedade ocidental, ser analfabeto pode ser considerada uma

falta universal), é a associação da situação de analfabeto a condições próximas da

natureza. Expressões como “papagaio velho não aprende a ler”, a associação do

analfabetismo à cegueira, e a associação semântica que vincula o analfabeto ao

significante “burro” e ao significado “ignorante” demonstram, além da característica

violenta dos enunciados, que a luta pela “erradicação” do analfabetismo refere-se a um

fundo muito complexo de significados que a sociedade construiu em torno da pessoa

que transita por códigos culturais diversos da escrita das línguas ocidentais modernas.

Portanto, esse é um problema de ordem colonial, e é um problema da ordem do racismo

brasileiro em suas nuances e disfarces.

Um elemento fundamental do conceito de vida nua nos diz que ele é

originalmente jurídico, oriundo do direito romano, considerado uma figura arcaica desse

código (AGAMBEN, 2010, p.16). A vida nua é a situação do homo sacer, um sujeito

cuja condição é de ser “matável, mas não sacrificável”, portanto, sua vida não poderá

ser eliminada em um ofício sagrado, ao mesmo tempo em que sua morte está autorizada

pelo poder leigo. Jogando com a ambivalência dos termos latinos, pois sacer,

separadamente significa “o sagrado”, e homo sacer “o condenado”, Agamben recupera

a trajetória desses significados, a sua potência descritiva para situações do nosso tempo.

Ser um sujeito de uma relação de homo sacer, ter a vida exposta, e ao mesmo tempo

abandonada pela lei de deus e pela lei dos homens, é uma condição que sustenta sobre si

um paradoxo de difícil compreensão para o nosso tempo.

A pertinência dessa antiga formulação para o entendimento de situações do

contemporâneo reside por sua vez no fato inegável de que muitas das situações que

vivemos são trespassadas por paradoxos semelhantes. O fato de que a escola de

Educação de Adultos reprova mais do que aprova, de que insere os sujeitos na

escolarização para em seguida provocar situações que o expulsam, a invisibilidade

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dessas questões, torna bastante compreensível a necessidade de paradoxos para auxiliar

a leitura dessa realidade.

A condição do sujeito não alfabetizado na sociedade atual parece coincidir com

a do homo sacer. Do analfabeto conduzido da zoé do iletrismo à bios da cidadania,

vemos o próprio espaço do político se constituindo enquanto ato educacional.

Na trajetória da Educação de Adultos, o primeiro argumento utilizado para as

práticas de alfabetização era da ordem da política representativa e relacionava-se à

questão do voto do analfabeto. Alfabetizar-se era o processo que autorizava o sujeito ao

exercício central da política numa democracia representativa. Antes da alfabetização,

ele se equiparava à criança ou ao animal. Depois disso, ele se equiparava ao eleitor.

Mais do que isso, se toda educação é ato político, a biopoliticidade das práticas

escolares para adultos, em toda a sua paradoxal profusão de enunciados que ressaltam

tanto o direito a estudar quanto a inferioridade social do analfabeto, aparece aqui como

questão estratégica da gestão social de populações marcadas para viver de alguma

forma, ou para morrer de algum modo.

Agamben defende ainda que o biopoder é uma manifestação paroxística da

soberania e que a zoé nunca esteve fora da vida política e sempre foi de alguma forma

presumida pelo poder, de modo que o princípio de deixar viver e fazer morrer parece

nunca ter sido abandonado. Para Foucault (2008b, p.424), as formas da

governamentalidade variam no tempo, mas, de algum modo, articulam-se em arranjos

estratégicos no presente: “é isso que vocês veem no mundo moderno, o mundo que nós

conhecemos desde o século XIX, toda uma série de racionalidades governamentais que

se acavalam, se apoiam, se contestam, se combatem reciprocamente.”

A vida do sujeito é o alvo das estratégias que configuram o dispositivo mais

geral da escolarização de adultos (LARROSA, 1994; CARVALHO, 2012;

TRAVERSINI, 2003) e, nesse sentido, a EJA é um caso bastante peculiar de biopolítica.

Agamben (2010, p. 84) esclarece que: “Aquilo que define a condição de homo sacer,

então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente,

quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da

violência a qual se encontra exposto.”

A dupla exclusão refere-se à condição prescrita no direito romano, em que o

homo sacer não está nem na condição de objeto da lei divina, nem de objeto do direito

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humano. É ao abandono em que é deixado esse sujeito “matável, mas não sacrificável”,

que Agamben afirma nascer o espaço do político, no momento em que o sujeito é uma

nudez abandonada pela lei e submetido completamente a ela. Se a escrita é um soberano

ou, sem forçar o conceito, é um instrumento da soberania, ou do poder, numa sociedade

que a institui como norma de existência, é necessário que o sujeito se alfabetize para

que o soberano possa exercer sobre ele seu direito de vida e morte. O analfabeto precisa

estar dentro da lei. Quiçá (e agora forçando a imaginação sociológica), sabendo dessa

possibilidade, as pessoas produzam o abandono da EJA, como resposta a esse espaço

que as práticas de poder lhes reservaram. As aproximações entre a condição do

analfabeto e a de homo sacer podem ser refletidas à luz desta “ameaça” do político:

A déliaison não deve ser entendida como a dissolução de um vínculo

preexistente (que poderia ter a forma de um pacto ou de um contrato);

sobretudo o vínculo tem ele mesmo originariamente a forma de uma

dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado é, ao mesmo

tempo, excluído, e a vida humana se politiza somente através do

abandono a um poder incondicionado de morte. (AGAMBEN, 2010,

p.91).

Ora, a criação de uma população a quem é postergada sua inserção em plenitude

na esfera social, o tempo do adiamento produzido pelas opções políticas que sempre

deixaram a Educação de Adultos para depois, a ausência como alegoria da

Escolarização de Adultos remete à exceção explicitada por Agamben (2004, p.13),

embora não se caracterize como uma técnica de governo que seja essencialmente rara

em sua aplicação.

O lugar da exceção é um lugar de abandono (AGAMBEN, 2004, p.12) em duas

formas: estar abandonado à lei, ou seja, sob a lei, e estar esquecido pela lei ou fora dela,

um espaço de indeterminação, uma deriva do horizonte normativo que, no contexto da

redemocratização brasileira, contrariamente deveria conter um ingrediente fundamental

de “garantia de direitos”.

Ao articular Foucault e Agamben neste estudo, relacionamos a biopolítica

foucaultiana, como uma análise das práticas de poder e dos jogos de veridição, com os

conceitos de Estado de exceção e de vida nua.

Dois esquemas emergem dessa articulação: primeiro, a análise foucaultiana vai

tomar como objeto as ações de Estado, sua ordenação estratégica, e investigar por quais

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meios os enunciados da escolarização se pronunciam sobre as pessoas adultas; o

segundo vai usar a linguagem biopolítica de Agamben, o conceito de vida nua, para

discutir o caso dos indivíduos interpelados pela escolarização, permitindo-nos falar, dar

nome às condições em que são inscritos indivíduos dos quais o sistema não necessita,

mas que deve atender de alguma forma, incluindo-o em sua oikonomia. Diante da

irracionalidade que nos parece ser a forma de atendimento ao direito de pessoas jovens e

adultas poderem aceder a um processo social constitutivo como a Educação Escolar, é

preciso forçar os limites da linguagem usual e não temer algumas categorias que tornam

explícitos os limiares das relações investigadas.

O que de fato nos permite afirmar que a escolarização de adultos se constitui

como exceção e, ainda, como um Estado de Exceção? Ao longo deste estudo

apontaremos os vários elementos dessa trama, a começar pela definição do processo de

constituição do dispositivo da escolarização de adultos em sua emergência como

problema da nação e de Estado; em seguida, discutiremos a biopolítica em seus dois

dispositivos centrais, a retórica da alfabetização e o dispositivo tardio da escolarização,

e suas duas tecnologias específicas, o abandono e o constrangimento; mais além,

discutimos, a partir da documentação dos históricos escolares de estudantes adultos,

alguns exemplos do que ocorre com essa população quando inserida num aparato

escolar clássico.

Ao longo de todas essas análises será possível verificar o estado de

excepcionalidade em que são colocadas as práticas de Educação de Adultos. Agamben

(2004, p.12) nos fornece o conceito de exceção para referirmo-nos ao fato de que “a

criação voluntária de um estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente,

não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados

contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos.” A discursividade da

campanha, os enunciados do medo e da escuridão associados ao analfabetismo, a

produção de um perigo ou ameaça à nação na enunciação do analfabetismo como

problema nacional ao longo do século XX reforçam que uma população analfabeta

representa um perigo. A excepcionalidade atua como regra da administração dessa

população ao verificarmos a intermitência dessas práticas, sua curta duração, enfim, a

postergação como forma típica de realização.

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O estado de exceção refere-se ao modo com que uma anomia é incorporada pela

norma jurídica, é o momento em que a lei precisa aceitar sua própria ausência. Quando

o sujeito é interpelado pela retórica da alfabetização a escolarizar-se, observamos que o

movimento de inclusão a que é instado produz uma série de ausências, estados de

excepcionalidade em que sua inclusão é proscrita do espaço legal escolar. Essa inclusão

pela ausência é visível na discursividade sobre a EJA que remete, virtualmente, para o

problema da evasão. A este respeito, recordamos a seguinte passagem de Agamben

(2004, p.93):

O conflito parece incidir sobre o espaço vazio: anomia, vacum

jurídico de um lado e, de outro, ser puro, vazio de toda determinação e

de todo predicado real. Para o direito, esse espaço vazio é o estado de

exceção como dimensão constitutiva. A relação entre norma e

realidade implica a suspensão da norma, assim como, na ontologia, a

relação entre linguagem e mundo implica a suspensão da denotação

sob a forma de uma langue. Mas o que é igualmente essencial para a

ordem jurídica é que essa zona – onde se situa uma ação humana sem

relação com a norma – coincide com uma figura extrema e espectral

do direito, em que ele se divide em uma pura vigência sem aplicação

(a forma da lei) e em uma aplicação sem vigência: a força de lei.

Numa leitura alegórica12

da conceituação acima, a respeito do processo de

escolarização de pessoas adultas, ousamos pensar que o governamento neoliberal

agencia a relação presença/ausência do sujeito na escolarização, através de dispositivos

e tecnologias específicos, suspendendo assim a valência do direito anunciado.

O direito está ali, no espaço escolar, mas se o sujeito não está presente, isso

parece supor a suspensão da própria norma ou, em termos melhores, a aplicação de uma

lei mais geral, que, não estando escrita nas normas escolares, regula a existência dessa

população e assegura sua localização no espaço que ela deve ocupar para proceder à

oikonomia do campo social.

E esse espaço é fora do poder conferido pela técnica da escrita. Portanto, são os

vazamentos do sistema escolar que aparecem, é a EJA como escola da evasão, da

repetência, da retenção dos estudantes por anos a fio. É o desdobramento do

12

Para Quintiliano “a alegoria é composta por uma metáfora contínua”. Etimologicamente, alegoria

significa “discurso acerca de uma coisa para fazer compreender outra” (MOISÉS, 2004). Com leitura

alegórica, referimo-nos à leitura dos conceitos propostos pelo autor como imagens-força na hermenêutica

dos problemas em análise. Trata-se de utilizar um discurso para fazer referência a outro que se encontra

ocultado nas imagens.

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analfabetismo funcional em quase um quarto da população do território nacional. É a

não universalização do ensino médio. É o fechamento de escolas e turmas de Educação

de Jovens e Adultos. É o fato de que as matrículas da Educação de Jovens e Adultos

decaem ano a ano, embora o quantitativo de adultos aprovados nos programas de

alfabetização se avolume.

Em síntese, nesta tese trabalhamos com uma problemática, ou seja, com um

“mecanismo que consiste em determinar, antes de qualquer análise, o estatuto de

inteligibilidade capaz de justificar um sistema” (RAFFESTIN, 1993, p. 31), que se

dedica a investigar a face biopolítica da escolarização de adultos, investigando as

políticas discursivas presentes na discursividade geral dessa modalidade educacional.

Ao debater o funcionamento dessas políticas discursivas, propomos o

deslocamento dos lugares pacificados nos quais os enunciados se apresentam, tais como

a premissa e confiança cegas na condição emancipatória da escrita fornecida pela escola

ou a crença de que a educação é uma forma de conversão do sujeito. Ao sobrepor a

grade analítica que pensa a relação da lei e da norma com o sujeito sobre alguns

dispositivos, levantamos questões sobre a relação do Estado com o sujeito no território

específico da Educação de Jovens e Adultos – doravante EJA, prática escolarizada do

fenômeno mais abrangente da Educação de pessoas adultas.

Os dispositivos analisados são compreendidos como parte de uma estratégia

abrangente de controle das condutas da população não alfabetizada, o que passa pela sua

construção enquanto problema nacional, sua teratologia13

através dos discursos da

vergonha e pela sua inserção no aparato espacial de visibilidade conhecido como escola.

A partir da análise de cronologias escolares, podemos sugerir uma aproximação entre o

conceito de homo sacer e os lugares de sujeito produzidos naquela instituição. As

relações que aí se dão assumem o caráter de relações de exceção, o que nos permite

dizer que há uma captura da vida nua pela biopolítica da escolarização e seus

dispositivos específicos.

Porém, como todo poder possui uma relação intrínseca e imanente com a

resistência, os tempos levantados na análise dos históricos escolares são compreendidos

a partir de sua estranheza em relação aos tempos formais esperados dos estudantes pela

escola e sociedade que ela representa. Os tempos divergentes abrem a escolarização

13

Na medicina, teratologia é o estudo das monstruosidades, das anomalias.

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como uma espécie de distopia dos enunciados modernos, cuja estabilidade se encontra

então ameaçada.

No capítulo seguinte, fazemos uma discussão específica sobre a questão da

alfabetização de adultos, os estudos que a configuram como campo temático no setor

educacional. Ampliamos o debate para as compreensões sobre escolarização de adultos,

trazendo alguns de seus significados e autores com quem dialogamos para o

entendimento do campo.

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CAPÍTULO 2.

O PROJETO SOCIAL DA ESCOLARIZAÇÃO DAS POPULAÇÕES

ADULTAS: UM PROBLEMA BIOPOLÍTICO

O homem ocidental aprendeu

durante milênios o que nenhum grego

jamais teria aceitado admitir, aprendeu

durante milênios a se considerar uma

ovelha entre as ovelhas.14

A emergência das biopolíticas é um marco que delimita também o nascimento

da escolarização básica naquele horizonte em que o poder se redefine, e às suas técnicas

e procedimentos. Concordando com Varela (1991), Larrosa (1994), Veiga-Neto (2010),

a escolarização de massas é uma das práticas sociais mais articuladas com essa nova

forma do poder que emerge entre os séculos XVII e XIX.

Nessa contextualidade, o projeto social de escolarização trabalha no espaço do

governamento dos perigos à segurança social das classes proprietárias, o que significa

que tal projeto é uma estratégia de subordinação voltada contra as classes do trabalho. A

escola configura-se como uma tecnologia de poder que se tornou eficaz ao ponto de ser

quase transparente.

A pedagogia é um saber-poder (VEIGA-NETO, 2010) que traz a possibilidade

de lidar com o indivíduo, sobre o qual faz funcionar a disciplina, mas sem perder de

vista a regulação da população. De modo ainda mais contundente, a escolarização

permite que a relação de si para si seja construída no espaço de formação do sujeito,

constituindo assim um circuito em que a internalização da norma, o controle sobre o

corpo e a regulação das massas funcionem de forma articulada e inseridas numa lógica

estratégica, cuja imagem arcaica é a concepção de economia como prática de “boa

condução das condutas” para manutenção da vida.

As práticas pedagógicas, dentre outras funções, permitem que “se elabore ou

reelabore alguma forma da relação reflexiva do educando consigo mesmo”

(LARROSA, 1994, p.36), propiciando o instrumental necessário à produção de

populações educadas para viver de maneira adequada nos territórios citadinos, conviver

nos espaços da vida privada e atuar eficientemente nos campos do trabalho do mundo

14

Foucault, 2008a, 174.

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capitalista. De preferência, sem revoltas e cuidando de evitar doenças e comportamentos

anômalos.

O biopoder se configura como uma tecnologia que busca a segurança da cidade

através da regulação da vitalidade e encontra no processo de eliminação dos perigos à

vida seu ponto polar de intervenção. O processo de eliminação é direcionado não aos

adversários políticos, mas aos que de algum modo representam um perigo, por isso, “a

raça, ou o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade da

normalização (...) o racismo no exercício de um poder assim: é uma condição para que o

Estado possa exercer o direito de matar” (FOUCAULT, 2005, p.06).

O interesse da questão do racismo para o debate sobre a Escolarização de

Adultos reside no detalhe explicitado por Foucault a respeito das formas de eliminação,

quando ele afirma que “é claro, por tirar a vida não entendo simplesmente o assassínio

direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de

multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a

expulsão, a rejeição” (2005, p.306, grifo nosso). Destacamos que as formas de

eliminação dos perigos não são exatamente aquelas em que os corpos são despojados da

vida biológica, mas também aquelas em que as condições de vida consideradas

essenciais são negadas, ou proteladas, ou retidas pelos processos de

governamentalidade.

Retornaremos a esse ponto, mas é pertinente salientar por agora que o tratamento

da Escolarização de adultos como biopolítica reside nesse quadrante em que os saberes

tidos como poderosos para a existência considerada plena numa sociedade neoliberal

sejam regulados com parcimônia para alguns grupos sociais e que isso se faz através da

escolarização.

A questão do governo liga-se ao papel do Estado. Olhando para o problema que

nos ocupa nesta pesquisa, a escolarização de adultos se constituiu como um dever do

Estado de forma mais consistente a partir de 1988, após vários séculos de sua inscrição

titubeante na condição de obrigatoriedade. Os fatores que constituem essa

obrigatoriedade são o avanço da lógica do Direito à Educação ao longo de todo o século

XX; a ideia de reparação, que significa, entre outras coisas, o equacionamento dos

efeitos tardios do processo colonizador através de processos distributivos mais

abrangentes no tocante à raça, gênero e classe; a implicação entre trabalho e educação

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escolar, que fornece um fundo de legitimidade para a implantação desse dispositivo

legal da obrigatoriedade da oferta escolar para jovens e adultos e se conecta,

obviamente, com as necessidades de mão de obra em processos desenvolvimentistas nos

quais o país sempre está envolto.

Observamos que o Estado brasileiro, em sua intervenção junto às populações

não alfabetizadas, não foi sempre um Estado biopolítico, embora o dispositivo racista

estivesse sempre presente a partir da discriminação racial contra a pessoa negra. Houve

momentos em que o Estado se manifestou a partir dos mecanismos jurídicos, referindo-

se à população adulta não alfabetizada através do binarismo proibição/permissão

relativamente ao acesso à escola. Ao longo de vários séculos, o Estado, colonial,

imperial ou republicano, acionou o regime de soberania, através da lei e dos

regulamentos, para determinar quem poderia acessar o conhecimento escolar, onde,

quando e por quanto tempo.

Nessa perspectiva, seguindo a leitura de Castro (2014), o que temos não é uma

governamentalidade ainda, em seu desenvolvimento mais visível, mas uma estatalidade,

considerando que o processo de governamentalização do Estado ainda não se

encontrava em condições mais desenvolvidas. Isso significa que podemos falar de

Estado governamentalizado em Educação de Adultos no quadrante em que a questão da

alfabetização e escolarização das massas passa a ser um problema de população e isso

só ocorre de forma mais pertinente no século XX a partir das injunções do campo

internacional sobre a Educação de Adultos e do desenvolvimento de uma razão de

Estado modernizante no âmbito da sociedade brasileira, aproximadamente na década de

40 daquele século. Dessa forma, podemos observar os mecanismos de escolarização de

adultos como parte de uma estratégia mais ampla de poder, e não como uma função do

sistema social (FOUCAULT, 2008b).

A governamentalidade é o termo utilizado por Foucault para designar a

passagem a um modelo de práticas de poder, não necessariamente focalizadas no

Estado, e que se configura através de “instituições, procedimentos, análises e reflexões,

os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito

complexa, de poder que tem por alvo a população, por principal forma de saber a

economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança”

(2008a, p. 143). Governar significa conduzir as condutas (FOUCAULT, 2008a, p.258),

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e nesse sentindo um Estado governamentalizado não é aquele responsável pela

segurança do território, mas pela segurança da população. Embora essas tarefas não se

excluam, a governamentalização está ligada ao momento em que os movimentos das

multidões passam a ser alvo da ação de governo. Não a escola simplesmente, nem a

educação (ainda que multidimensionalmente entendida) cumprem esse papel; quem o

cumpre é a Escolarização, o processo mais geral em que os dispositivos disciplinares e

os dispositivos de segurança se encontram para efetivar uma forma eficaz e permanente

de conduta das populações e de cada um dos indivíduos que a compõem, através da

ação de um Estado governamentalizado.

O Estado brasileiro que, até certo momento, proibia o acesso de alguns grupos

sociais à Educação escolarizada15

, sobretudo negros e negras, ao governamentalizar suas

práticas relativamente à Educação de Adultos, modifica sua discursividade e passa a

oferecer um serviço de atendimento a um direito, para o qual os sujeitos “livremente”

poderiam aceder. Quando passamos da oposição permitido/proibido para a articulação

estratégica do poder em torno do tema da liberdade, ou seja, das práticas disciplinares

para as práticas biopolíticas, a condição do acesso muda de tonalidade e o que antes era

denominado por “atraso” passa a ser uma “oportunidade” ou uma “reparação” ou ainda

uma “dívida social”16

. Esse contexto se desenvolve ao longo do século XX e seu apogeu

coincide historicamente com a implementação de políticas de caráter neoliberal durante

a década de 1990.

A análise deste processo não ocorre apenas em formulações internas sobre a

natureza das práticas de Estado, seus modelos, ou sobre a fisiologia das políticas

públicas, com análises sobre efetividade de sua implementação. A sustentação dessas

práticas encontra sua ressonância em campos tão diversos quanto o jurídico (que

regula), o pedagógico (que formula), o legislativo (que representa), a sociedade civil

(que problematiza). Nesse caso, as práticas de governo ― entre elas os objetos que

15

Segundo a Lei nº1/1837, Artigo 3º: “São prohibidos de frequentar as Escolas Publicas: 1º Todas as

pessoas que padecerem molestias contagiosas. 2º Os escravos, e os pretos Africanos, ainda que sejão (sic)

livres ou libertos.”. Também o edito de Pedro Correa Manoel de Aboim, de 1765, estabelece severo

controle sobre a abertura de escolas de ler e escrever em Portugal “Ordena o Senado, que de hoje em

diante não seja pessoa alguma tão ousada, que abra escola de ler, escrever e contar, sem licença do

mesmo tribunal”. Cf. no anexo 1 reprodução do edito. 16 Como anuncia o Parecer CNE/CEB nº 11/2000, p. 5: “Nesta ordem de raciocínio, a Educação de

Jovens e Adultos (EJA) representa uma dívida social não reparada para com os que não tiveram acesso a

e nem domínio da escrita e leitura como bens sociais, na escola ou fora dela, e tenham sido a força de

trabalho empregada na constituição de riquezas e na elevação de obras públicas”.

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costumamos chamar de políticas públicas ― representam um dos nós em que a rede

estratégica do biopoder se expressa.

O Estado é entendido como uma realidade específica e descontínua, como uma

certa maneira de governar, mas principalmente, o Estado é um espaço que faz funcionar

a racionalidade biopolítica que submete a razão de Estado à demarcação de um regime

específico de verdadeiro e falso, não mais ao legítimo e ao ilegítimo, como vigorava

numa ordem jurídico-soberana, nem ao modo moral do bom ou mal juízo (2008a, p.26).

Como campo de veridição, o Estado passa a ser o detentor da verdade sobre a

população.

Logo, na imbricação entre Estado e escolarização, a verdade produzida sobre os

sujeitos dessa escolarização é, em grande medida, decorrência das práticas de Estado. A

ação de Estado se constitui como um conjunto de práticas que produz regimes de

visibilidade e de invisibilidade, pelos quais se define “o que se deve fazer e o que

convém não fazer” (2008b, p.16).

Nesse sentido, trata-se de investigar a rede que constitui a escolarização de

pessoas adultas no Brasil como um objeto possível das ações de governo, não apenas

como norma jurídica, mas, sobretudo, como aparato de atendimento escolar concreto,

inserido no cotidiano das práticas gerais de escolarização. Refletimos sobre o que se

passa nesse interstício entre o “dever fazer” e o que “convém ser feito”, espaço de

indeterminação onde propriamente existe a biopolítica da escolarização de adultos,

analisada aqui a partir das marcas do abandono e do constrangimento.

A passagem do liberalismo para o neoliberalismo como razão de Estado, como

racionalidade predominante nas análises econômicas que passam a dirigir a produção

das políticas nos Estados ocidentais pós-industriais reflete a mudança de ênfase da

lógica de controle sobre a economia. Se numa primeira versão liberal tratava-se de um

modelo intervencionista amplo sobre o mercado, regulando-o, no modelo neoliberal,

trata-se de uma intervenção que se amplifica em direção a toda a sociedade, tendo no

mercado o princípio básico de organização e na empresa o modelo de funcionamento

das demais relações sociais.

Com a reformulação do pensamento liberal para a versão neoliberal, a empresa

passa a ser o modelo das práticas sociais. O mercado assume então o lugar a partir do

qual o governo se faz “senhor” de uma verdade. É nesse contexto que as políticas

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internacionais sobre escolarização de adultos são desenhadas, ora articulando uma

racionalidade keynesiana, ora articulando uma forma mais próxima de um Estado

mínimo neoliberal. A Educação de Adultos, enquanto versão escolarizada de acesso à

educação pelas populações não alfabetizadas, uma modalidade, sobretudo presente nos

países de economia periférica, no entanto, não parece ser objeto prioritário nem da

versão mais Wellfare State (que nem chega a se concretizar no Brasil), nem de uma

versão mais neoliberal de ação do Estado.

O discurso da mobilidade social que acompanha historicamente a oferta de

escolarização incide sobre a população adulta com especial ênfase. A ligação entre

Educação de Adultos e profissionalização ou formação para o trabalho, quase sempre se

deixa resumir a uma intervenção rápida de instrução em torno de técnicas de atuação em

algum campo específico da economia, com destaque para as ocupações menos

prestigiadas das cadeias produtivas, e muito frequentemente inseridas no aspecto

manual da divisão social do trabalho.

Tardiamente, as populações adultas não escolarizadas, frequentemente não

alfabetizadas, habitantes das periferias do capitalismo, entram no circuito social da

escolarização como parte de um projeto que não necessita de sua força de trabalho.

Desse modo, a produção de capital humano numa perspectiva de sociedade empresarial,

no âmbito de uma racionalidade neoliberal (FOUCAULT, 2008a, p. 311), não parece

ser uma razão suficiente para promoção de sua escolaridade.

A localização desse debate no âmbito da teorização foucaultiana da

governamentalidade neoliberal é necessária, a esta altura, como forma de salientar a

inscrição biopolítica da escolarização de adultos enquanto um problema da ordem da

regulação de uma população através da escola, mas também a partir da inscrição dessa

população no conjunto das relações econômicas, sociais e culturais dos quais participa e

sobre as quais o governo exerce sua força.

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2.1. A emergência da população de adultos analfabetos e baixo-escolarizados

Esta população espera os milagres a que o mundo

lhe parece dar direito; sente correr sangue purpúreo

nas veias e lança um longo olhar carregado de tristeza

à luz do sol e às sombras dos grandes parques.

Baudelaire17

Ao longo deste item, analisamos a escolarização de adultos como

acontecimento, observando sua emergência na discursividade da Educação no período

que vai da década de 1940 a 2012. Ao realizar esta análise, entendemos que ela é

subsidiária do debate mais amplo da tese, sobre a orientação biopolítica desta

modalidade educacional, descortinando o horizonte de onde se instituíram os modelos

disponíveis para esta escolarização na atualidade.

Considerando a ideia de que tanto a pedagogia como a escola são também

acontecimentos, logo, desprovidas da sua condição de narrativas de origem e flagradas

em sua emergência ao lado das coisas baixas, pequenas, derrisórias, irônicas, estudos

desse tipo evidenciam a natureza impura da educação escolar (FOUCAULT, 2013,

p.276). A formulação desse tipo de olhar mantém uma dívida com os conceitos

foucaultianos de subjetivação e governamentalidade, a partir do questionamento às

práticas pedagógicas, mas, centralmente, o debate biopolítico repõe a relação entre

educação e poder numa chave que não é mais a da ideologia, nem da reprodução, mas

da governamentalização, da regulação ao nível da população. Numa análise, esses

posicionamentos significam que “a genealogia restabelece os diversos sistemas de

submissão: não absolutamente a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual

das dominações” (FOUCAULT, 2013, p.281).

Ao buscar compreender como se constituiu o discurso por educação escolar para

pessoas adultas, temos por objetivo desta parte do trabalho mostrar que uma série de

enfrentamentos produziu o tipo de atendimento escolar para adultos consolidado

historicamente, cujos contornos são questionados nesta tese como um problema da

ordem da governamentalização das populações adultas.

Por enfrentamentos compreendemos o campo de tensões produzidas na ordem

discursiva e não discursiva, envolvendo as disputas pela verdade da relação do sujeito

17

Baudelaire, 2001.

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adulto com a escola. Essas lutas locais desenvolveram-se em torno de alguns pontos de

ancoragem que serão detalhados nos capítulos subsequentes do estudo: a questão da

metanoia, ou conversão, pela qual os discursos sobre Educação de Adultos reafirmam

ou problematizam, ou abandonam, o preceito iluminista da transformação do sujeito em

outro através do conhecimento; a concepção de escolarização, quando surge, como

surge e sua vinculação com a ideia de instrução básica e de alfabetização; concepção do

sujeito educando e de sua cultura.

Com essas três séries, podemos discutir de que forma a Educação de Adultos

chega ao século XXI com os contornos biopolíticos que apresenta. Isso porque a face

biopolítica da Educação de Adultos pode se sustentar com especial relevo nesses três

pontos. Em primeiro lugar, a ideia de conversão é um argumento central à convocação

dos sujeitos para participarem da escolarização, subsidiando não apenas a mobilização

para a escola, mas também a inscrição do Outro e de sua cultura numa posição de

subalternidade que justificaria não apenas sua ida à escola, como a superação de

condições de vida degradantes.

Segundo, a concepção de escolarização foi, no caso da Educação de Adultos, por

muito tempo, e apesar de todos os discursos laudatórios sobre os benefícios da educação

para o desenvolvimento da sociedade e do indivíduo, um projeto permeado por uma

lógica do precário e marcado pela postergação como modo de relação com o tempo.

Terceiro, a concepção de sujeito sustenta as práticas a partir de noções

materializadas nos enunciados da ignorância, da simplicidade de pensamento, da

dependência, do pensamento sincrético, em resumo, uma lógica da minoridade.

Portanto, o sujeito em relação à verdade do conhecimento, à verdade da escolarização e

à verdade de si.

Como essas verdades se sustentam e constituem linhas de força a produzir um

dispositivo de governamento que se atualiza constantemente em relação à Educação de

Adultos? Esses enunciados possuem uma densidade, que seria a forma como se

intensificam em diversos cenários discursivos algumas versões desses discursos

verdadeiros, como se apresentam em textos legais, acadêmicos e políticos. Além disso,

são dotados de longevidade, pois esses enunciados vêm se atualizando, encontrando

novos pontos de apoio, novos modos de se apresentar, caminhando através do tempo,

mas mantendo algumas regularidades, como o reconhecimento de que certa

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racionalidade, a que chamaremos aqui de “colonial”, mantém-se e se metamorfoseia em

novas ancoragens, mas que muda para permanecer a mesma.

Por que isso constitui um debate, um campo de enfrentamentos? O elemento que

causa tensões nesse campo é constituído por um silencioso movimento de negação da

escola pelo sujeito–alvo da biopolítica, que ora não procura o espaço escolar, não

demanda a escolarização como direito, ora o abandona, pode-se dizer que com uma

enorme frequência, informando-nos que algo de instável atravessa nossas crenças, e

aquelas verdades, a respeito da escolarização.

O enfrentamento está bem aqui neste espaço em que um dispositivo sustenta a

escolarização como projeto emancipatório ou desenvolvimentista, mas não consegue

estabelecer de maneira eficaz a governamentalização dessa população, pelo fato até

simples de que ela se nega a participar de tal projeto. Portanto, temos um

enfrentamento, ainda que silencioso, pouco delineado, velado, mas vívido e atuante,

entre a concepção da finalidade da educação escolar para adultos, a concepção de escola

e de sujeito que ela sustenta e o movimento resistente da população de pessoas não

alfabetizadas que se recusa a ser subalternizada pelo dispositivo escolar.

A racionalidade que sustenta a face biopolítica da Educação de Adultos se

espraia em diversos territórios discursivos. Surgem estes enfrentamentos no debate

internacional sobre escolarização de adultos, que só supera a invisibilidade de sua

enunciação no palco das conferências da Unesco no ano de 1997, com a Reunião de

Hamburgo, após quase 50 anos de estabelecimento desse cenário, uma vez que até então

o tema central eram os dispositivos de alfabetização. Surgem também na lenta

incorporação das demandas por especificidade nas práticas pedagógicas realizadas nas

escolas para adultos.

Discursos sobre alfabetização acionam poderosamente os indivíduos, mas não

quaisquer grupos de indivíduos, e sim aqueles já inscritos num contexto de “exclusão

social”, como negros, mulheres, idosos, jovens de periferias urbanas, nordestinos,

moradores do campo e pobres. O analfabetismo representa, para muitos indivíduos no

interior dessas categorias, apenas mais um dentre os problemas de suas vidas, nem

sempre o mais importante, nem sempre o mais urgente. Para outros, não é um problema.

Ao lado do combate à mortalidade infantil e à miséria, a questão da

alfabetização incorpora um conjunto de ações do governo endereçadas a tais

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populações. Renda, Educação e Saúde compõem o escopo do Índice de

Desenvolvimento Humano (IDH), usado pelo Programa das Nações Unidas para o

Desenvolvimento (PNUD), para medir o grau de acesso das populações a condições de

vida consideradas adequadas. No quadro dos modelos de desenvolvimento, o combate,

ou a superação, ou, como se disse durante muito tempo, a erradicação do analfabetismo

entre adultos representa um dos problemas mais expressivos do setor educacional no

Brasil e no mundo. Desafiando o País a obter índices considerados como padrão de

desenvolvimento humano, um aparato legal e institucional foi desenvolvido e aplicado

para produzir a “alfabetização plena” da sociedade brasileira.

A articulação da alfabetização com a escolarização é a clivagem principal do

campo discursivo da Educação de Adultos, não apenas no Brasil, mas também no nível

internacional. Ao longo do século XX, especificamente a partir de sua segunda metade,

observamos uma paulatina ampliação dessa articulação, buscando a superação da

dualidade que caracterizava a alfabetização como um campo de práticas aparentemente

diversas à escolarização. Argumentamos, nesta pesquisa, que o discurso da

alfabetização se organizou enquanto uma retórica que buscou o convencimento das

populações não alfabetizadas a se inserirem na ordem do discurso escolar. Dessa forma,

a alfabetização não só é constitutiva do processo de escolarização, como é constituída,

em grande medida, por processos pedagógicos de caráter escolarizado e escolarizante.

O atendimento educacional para jovens e adultos tem sua emergência histórica

marcada pelo discurso da alfabetização das sociedades. O problema do analfabetismo é

da ordem da cultura, do simbólico, não da ordem do biológico, mas a vinculação do

tema a uma ordem biológica sempre esteve presente nas suas diversas formulações.

Campanhas de vacinação, conteúdos de higiene, práticas de “combate”, o uso frequente

e socialmente difundido da palavra “erradicação” estão presentes nos textos históricos

das campanhas de combate ao analfabetismo e remetem à ordem médica e à ordem

biológica, envolvendo assim a questão do analfabetismo num campo difuso e complexo

das relações de poder regulador na ordem da construção do Brasil como sociedade

normalizadora.

A alfabetização é um marco na relação do sujeito com a cultura. Ela estabelece

uma inclusão e uma exterioridade a partir do poder da escrita. Por outro lado, o

analfabetismo é um fenômeno que emerge exatamente como um problema de

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população. Foucault (2005, p.293) nos alerta que a biopolítica lida com a população

“como um problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e

como problema de poder”. As técnicas biopolíticas foram acionadas na história do

analfabetismo desde a sua formulação, a exemplo do argumento estatístico, usado para

construí-lo como problema de governo e do desenvolvimento, já depois da Segunda

Guerra18 e através dos organismos internacionais, como a UNESCO.

A questão do analfabetismo emerge então como um problema biopolítico. A

biopolítica pode ser compreendida como o poder que “se situa e se exerce ao nível da

vida, da espécie, da raça e da população” (FOUCAULT, 1988, p. 151). Defendemos que

o governo da população através do controle do seu acesso ao discurso, à força da

palavra, atuou como um adensamento, no caso da Educação de Adultos, do poder

meramente disciplinar para o poder regulador, visível em seus efeitos diretos na

invenção do corpo social dos analfabetos. No Brasil, a população de analfabetos

brasileiros irrompe como problema de Estado no contexto da década de 1940 (PAIVA,

2003; CARLOS, 2008), momento em que o debate sobre a escolarização da sociedade

brasileira acompanhava o acelerado processo de industrialização e a rápida urbanização.

A obra clássica sobre o tema, de Paiva (2003, p.187), nos informa que o censo

populacional de 1940 indicava a existência de uma taxa de 54% de analfabetos na

população acima de 18 anos.

No processo de invenção do analfabetismo como problema, o Brasil inventou

também o analfabeto como a imagem social da ignorância, num processo poderoso a tal

ponto, que a palavra tem uma valência semântica mais ampla do que o seu uso

localizado referente às pessoas que não sabem ler e escrever na língua portuguesa.

Termos difundidos em provérbios populares, do tipo “escreveu, não leu, o pau comeu”

remetem à natureza violenta da formação discursiva em análise e à sua inscrição no

campo das lutas, evidenciando tanto a dimensão estratégica dos enunciados do discurso

da alfabetização, quanto o aspecto conflituoso que o permeia desde sua emergência.

Aquilo que a cultura cristaliza e, através de vários mecanismos, dispersa, possui

forte poder de formação de subjetividades, de constituição de traços de sentido sobre si

que demarcam a experiência de indivíduos nas diversas práticas sociais de que tomam

18

A primeira Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFITEA), data, especificamente,

de 1949, tendo sido realizada na cidade de Elsinor, Noruega.

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parte. É desse modo que o problema da alfabetização é também um problema cultural,

não apenas porque ele significaria um limite de participação na esfera da cultura

(alguma porção da cultura, é certo) por parte daqueles que não leem e não escrevem nos

sistemas legitimados daquela cultura, mas, sobretudo, porque ele representa uma forma

de subjetivação no conjunto das práticas sociais. A subjetivação na condição de

analfabeto, articulada com a associação perversa entre analfabetismo e ignorância, fruto

de nossa matriz colonial e catequizadora, certamente é um dos principais problemas

culturais da escolarização brasileira.

Mantendo-nos na teorização foucaultiana, podemos dizer que a distribuição

social do analfabetismo na atualidade mantém-se como uma face do “racismo de

estado”. A sutileza do racismo à moda brasileira retoma sua eficácia no tocante ao

analfabetismo, pois realiza mais uma aproximação à “eliminação dos perigos à vida”

(FOUCAULT, 2008b), representados pelas parcelas da população sobre as quais o

“direito de deixar morrer” do Estado brasileiro vem se efetivando. Ocorre que no caso

do acesso à escrita, da luta pela alfabetização e contra o analfabetismo, o que está em

jogo, além da vida como fator biológico, é a luta cultural, a vida simbólica, o governo

dos discursos e a tentativa de suprimir do outro a força da sua palavra.

Nessa ambiência discursiva, o campo educacional frequentemente afirma que o

projeto social da modernidade nunca foi atingido, que houve falhas, que a escola é a

principal instituição responsável pela socialização, mas que ela também falhou em sua

tarefa. Argumentamos, juntamente com Souza (2004), que a escola é um sucesso para

alguns grupos sociais, as classes médias urbanas, do ponto de vista da garantia de sua

participação efetiva no campo dos direitos. Mas uma visada biopolítica nos alerta que a

escolarização tem sido tanto mais eficiente para estes grupos quanto para os que

também atingem o insucesso (de participação social, de acesso ao conhecimento, de

mobilidade social) com sua participação nos processos escolares. A esse respeito,

Veiga-Neto (2000, p.03) alerta:

O declarado projeto iluminista de escolarização única/igualitária,

universal e obrigatória, está se revelando uma impossibilidade

histórica na medida em que ele se insere na lógica da própria

Modernidade, uma lógica ambígua que está implicada, per se, tanto

com a domesticação da diferença quanto com o diferencialismo e a

desigualdade e, por consequência, com a exclusão.

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A respeito das populações adultas não alfabetizadas (atualmente cerca de 13

milhões de brasileiros, segundo o IBGE), cremos poder afirmar que a fórmula do

constrangimento tem funcionado de maneira excepcional no processo histórico que,

através da escolarização, interdita o acesso ao conhecimento prometido. A fórmula do

constrangimento é uma denominação para o conjunto de situações que colocam o adulto

não alfabetizado numa condição de minoridade. Como exemplo, observamos que já foi

possível melhorar em algumas coleções de livros didáticos de EJA as marcas do

discurso da infantilização do adulto; os materiais didáticos, por força das interpelações

dos educadores do campo da EJA, já assumiram sua especificidade de um texto que fala

para adultos.

Não é apenas dessa minoridade traduzida na ordem didática que estamos

falando. Referimo-nos à política permanente de localizar o adulto não alfabetizado em

práticas de dependência, em espaços físicos originalmente criados para corpos infantis,

de servir aos trabalhadores merendas idênticas às de crianças, de fazê-los fardar-se,

cantar hinos, rezar orações cristãs, ter caderno, lápis, borracha e bolsa escolar, sentar em

filas. Estas práticas são ainda bastante frequentes mesmo no século XXI. Ao lado delas,

as múltiplas experiências de si que vêm acompanhadas da lição e dos rituais da

escolarização (CARVALHO, 2012), as formas de dependência emocional com

professoras e alfabetizadoras de programas-campanhas, o fato contínuo de que se

produz ainda hoje uma Educação de Adultos sem a audição necessária do sujeito

educando, numa prática de assujeitamento permanente e de longa data.

O cenário biopolítico da Educação de Adultos é também denotado pela

materialidade dessa população, permanentemente citada em notas estatísticas,

frequentemente exibida como sujeitos de superação em matérias jornalísticas a respeito

do sucesso dos governos em oferecer EJA, cujo participante é constantemente anotado

pelos documentos internos da escola como sujeito evadido, retido e de abandono. Não

se trata de uma interdição para entrar na escola, mas de uma série de instrumentos que

garantem a sua “permanência sem sucesso” naquele espaço.

Esse é, portanto, o cenário em que o governo da vida se faz representar na

contemporaneidade de uma Educação de Adultos capturada pelas tecnologias

biopolíticas do constrangimento e do abandono. A vida como ato político remete ao

conjunto das relações do sujeito com o poder e remete à resistência, à crítica, às lutas

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instaladas. Ao silenciamento do sujeito adulto nos diversos enunciados sobre a EJA,

uma prática persistente, contínua, que se faz presente, contrapõe-se uma marcha

também contínua para além da escola.

A administração social do adulto não alfabetizado perpassa investimentos de

diversas ordens, bastante expressivos, que são por sua vez silenciados no fenômeno da

evasão. A evasão escolar na EJA é uma resposta silenciosa que por sua vez provoca um

silenciamento dos sistemas. Em termos quantitativos, é um fenômeno de população. A

média de uma grande capital nordestina varia em torno de 35% a 40% de evadidos ao

ano, em dados oficiais. Quem atua no cotidiano sabe que os índices de evasão e

repetência, se apensos ao real, seriam ainda maiores.

Portanto, se partimos da concepção de que o poder é relação, e a relação como

algo que se estabelece entre pontos de assujeitamento e resistência no jogo permanente

das forças, para compreender a matriz biopolítica de que nos fala a EJA contemporânea

é necessário ouvir essa voz que se expressa repetindo em paralaxe o abandono a que foi

relegada sua existência.

A razão governamental, com um sentido expandido, é ainda o que serve de

justificação para muitas práticas do âmbito das políticas de atendimento educacional

para jovens e adultos. A burocracia em torno do financiamento, as regras para abertura e

existência de turmas de EJA, e as normas que indicam a necessidade de fechamento das

turmas, quando há um “número insuficiente” de alunos matriculados, são baseadas em

argumentos como “necessidade de administrar a rede”; “impossível manter em

funcionamento devido ao repasse per capta”; “10 alunos matriculados não pagam nem o

salário do professor”, entre outros em que tal racionalidade é enunciada. No regime de

verdade que tal racionalidade instala em relação ao que pode e o que não pode continuar

a existir em EJA, fica visível a atuação do biopoder. Como esclarece Foucault (2008b,

p. 27): “o par série de práticas/regimes de verdade forma um dispositivo de saber-poder

que marca efetivamente no real o que não existe e submete-o legitimamente à

demarcação do verdadeiro e do falso”.

Se as disciplinas se dirigem ao indivíduo, são individualizantes, como forma de

impregnar os corpos com a interiorização obediente da norma, o biopoder atua de modo

massificante sobre a população. A Educação de Jovens e Adultos, ademais como uma

prática de escolarização existente no quadrante da modernidade, refere-se aos

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estudantes adultos não alfabetizados tanto na clave disciplinar, quanto na clave

massificante, ora indivíduo, ora população (FOUCAULT, 2005, p.289).

É possível ainda acrescentar, sem temor de uma aplicação demasiada do

pensamento foucaultiano sobre o objeto, que o exercício do poder sobre a vida, no

sistema biopolítico, inclusive contemporâneo, refere-se à Educação de Adultos com a

mesma lógica do racismo de Estado. A polaridade da sociedade entre alfabetizados e

não alfabetizados, com o número dos que carregam essa marca decrescendo

“oficialmente” a cada biênio, ao lado da ineficácia dos sistemas escolares em garantir a

realização de algumas promessas aos não alfabetizados e aos pós-alfabetizados

(mobilidade social entre elas) denota um cenário em que o “corte entre o que deve viver

o que deve morrer”, embora tênue em nossa atualidade, mantém-se e incorpora-se à

experiência de vida de milhares de pessoas.

No interior da ordem biopolítica, o racismo de Estado constituiu legalidades para

estados nacionais atuarem contra populações que representavam perigos e que “era

preciso expulsar por razões de ordem política e biológica ao mesmo tempo” (2005, p.

101). É com base nos traços dessa relação política com a vida que a condição das

pessoas não alfabetizadas se aproxima ao lugar estranho e paradoxal da vida nua, da

captura da vida pelo mecanismo do biopoder, que a circunscreve a homo sacer “sem

maiores constrangimentos”.

É também no alongamento dessa análise sobre o comportamento da lei diante

dos indivíduos acionados pela ordem biopolítica que podemos definir os traços da

exceção que caracteriza as práticas de escolarização de pessoas adultas. Seu caráter de

Estado de Exceção pode parecer uma visão muito pessimista sobre uma prática que em

geral é permeada por enunciados de carinhos, afagos, ajudas, pequenas vitórias e

filantropias outras. Mas, também é real que não avançamos ao considerar apenas os

aspectos “dourados” de uma prática. É por essa razão que precisamos investigar as

estratégias de poder e a partir delas compreender onde estamos enredados e como nos

desenredar dos processos de subordinação.

Contudo, a nosso ver, o problema central não é tanto a demarcação de que o não

alfabetizado está condenado a não viver, ou a viver de forma “menor” (embora esse seja

um problema bastante grave, não é bem o problema, mas um de seus efeitos); o

problema é organizar-se um mundo onde o direito a ser escolarizado é enunciado como

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uma necessidade vital, sendo repetidamente negado esse direito a muitos que seriam

seus demandatários. Com essa reflexão, podemos sugerir que a questão da alfabetização

como problema da hegemonia da escrita nas práticas sociais representa para a sociedade

brasileira uma espécie de genocídio, ao lado dos epistemicídios relacionados à

oralidade, cultura, memória e trajetórias de sujeitos do meio popular. A alfabetização

como norma não deixa margens para outras possibilidades de saberes, mas estas outras

possibilidades continuam existindo, porque é da natureza das relações de poder que haja

a dominação e ao seu lado a resistência e que as relações entre as forças ocorram num ir

e vir constante, evidenciando que o poder não é apenas dominação, mas jogo.

É irreversível esse papel dominante da escrita na vida social? Certamente é uma

prática cultural dotada de imenso poder, sem precedentes na história humana, mas a

força do que está fora do dispositivo da escrita certamente não é desprezível. Para

Facheh (2007, p.132):

Exaltar alfabetização é como enaltecer carros. Mas, quando olhamos

os efeitos dos carros sobre importantes e antigas cidades como Cairo e

Atenas, nos damos conta de que precisamos tomar mais cuidado. Em

outras palavras, precisamos analisar não somente o que a

alfabetização acrescenta na forma como é concebida e implementada,

mas também o que subtrai ou torna invisível.

Para além de um idealismo imobilista, basista19

, ou romântico sobre a felicidade

e a beleza de uma tradição oral, das pessoas que sabem muito sem saber escrever, ou de

qualquer desses argumentos em torno de comunidades imaginadas, a relação

estabelecida com este fator de socialização que é a escrita no mundo atual

necessariamente deveria ser perguntar: de qual alfabetização as pessoas necessitam? Ou

refinando ainda mais, perguntar diretamente às pessoas: Qual alfabetização vocês

necessitam ou desejam?

Como resposta a essa pergunta, certamente as mulheres chefes de família com

filhos, que não podem estudar (mesmo quando o desejam), porque o horário das escolas

não é adequado, porque não há creches noturnas no Brasil, porque precisam trabalhar,

19

“Basista” é termo corrente na linguagem de movimentos sociais e seus interlocutores, referindo-se a

pessoas que consideram tudo que vem das “bases”, ou seja, dos grupos populares, que dão sustentação às

lutas, como verdades dogmáticas.

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etc., essas mulheres teriam uma resposta a respeito de qual alfabetização elas precisam,

para o seu momento e para os seus projetos de vida. O problema é que a instituição

escolar não tem ouvidos para realizar essa escuta, porque está justificada em sua

deficiência por uma racionalidade que define os saberes escolares como uma das

melhores coisas a que pode aceder um sujeito numa sociedade moderna.

Todas as nossas propostas, mesmo as mais avançadas em termos de

compromissos de classe ou com a liberdade (as práticas de alfabetização

emancipatórias, como a freiriana), partiram de um lugar extremamente poderoso, pois

de saída já definiam, e continuam definindo, qual alfabetização era e é melhor para as

pessoas. É desse modo que se constrói o silenciamento do sujeito da EJA, esse fator tão

marcado do dispositivo, e que pode ter plantado suas raízes nesse procedimento que é,

mais do que circunstancialmente, a imposição de uma racionalidade local como uma

razão universal. A ideia de sociedades plenamente alfabetizadas possivelmente nasce do

mesmo mecanismo.

Quando governos passam a se ocupar do fenômeno da vida das populações, e

não apenas do poder de legislar sobre a morte, uma série de eventos relacionados a

grupos específicos são produzidos, alterando paulatinamente o foco das ações de

governo, desde uma lógica repressiva, para uma racionalidade produtora de condições,

separações, lugares e práticas. Os analfabetos foram interpelados pelos discursos

governamentais após a Segunda Guerra Mundial e sua inserção no mundo letrado estava

vinculada ao discurso do desenvolvimento no pós-guerra, o mesmo que fomentou a

formação de organismos supranacionais como a ONU.

Segundo Foucault (2001, p. 69), as racionalidades geradas para dar conta dos

grupos abarcados pela teratologia do poder, os anormais, os desviantes, todos esses

grupos, representam um perigo qualquer à sociedade. Situar a questão dos analfabetos

dessa forma requer atenção para não reincidirmos naquilo que condenamos: justamente

o esvaziamento da experiência vital dos sujeitos não alfabetizados, prática já denunciada

por Paulo Freire em sua obra, com a conceituação do Ser Mais, bem como pelo conceito

de saber feito da experiência e a valorização da cultura popular. Portanto, é pertinente

relembrar aqui que estamos trabalhando com enunciados que se apresentam à análise

através de sua materialidade, mas também de suas conexões e oposições intrínsecas e

extrínsecas (FOUCAULT, 1972).

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Perguntarmo-nos qual o perigo representado pelos analfabetos para a sociedade

brasileira significa ativar uma pergunta biopolítica típica, pois sua resposta indica os

caminhos que justificam a existência de práticas de governo sobre essa população. Não

é preciso ir muito longe para construir essa resposta. Basta observarmos com mais

atenção os textos reitores das primeiras campanhas, modelo de interpelação dos

analfabetos, no tocante aos conteúdos típicos dos cursos de alfabetização. As primeiras

letras eram acompanhadas de princípios de higiene pessoal, de noções sobre os deveres

e de rudimentos de práticas laborais. Vê-se o risco de uma população analfabeta que era

também portadora de doenças, desobediente e preguiçosa, ou inábil. Sem dúvida, um

risco político grande para uma sociedade colonial, patriarcal e racista.

No tocante aos mecanismos de controle do analfabeto, há similaridades com os

procedimentos de controle da peste: territorialização, vigilância, definição de lugares,

definição de presenças, individualização ― Foucault tinha razão ao afirmar que o

mecanismo de “inclusão” do pestífero serviu como modelo de controle para o ocidente

após o século XVIII. A norma da alfabetização é uma imagem de sociedade

desenvolvida, a qual corresponde a teratologia do analfabeto como índice do

subdesenvolvimento, a ser superado no processo de escolarização:

Enfim, vocês estão vendo que não se trata de uma marca, não

definitiva de uma parte da população; trata-se do exame perpétuo de

um campo de regularidade, no interior do qual vai se avaliar sem

cessar cada indivíduo, para saber se está conforme a regra, a norma de

saúde que é definida. (FOUCAULT, 2001, p.37).

No arco que envolve o conjunto das políticas discursivas estudadas nessa

pesquisa, a produtividade do regime de verdade instalado pelo dispositivo da

escolarização nas práticas de alfabetização atravessa momentos de produção de

alfabetização propriamente dita (o ensinar a ler e escrever), momentos de descoberta de

si, de direitos, de despertar de possibilidades para a construção de trajetórias individuais

mais autônomas. Mas, também é perpassado pelos constantes movimentos para dentro e

para fora da escola, as interrupções longas, as desistências, as reprovações, as

intermitências da trajetória. O foco dedicado por esta pesquisa à tensão sobre o poder

saber da alfabetização remete aos efeitos dessa ordem que determina quem lê, quando e

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como o faz, ou seja, a distribuição social do poder saber alfabetizado, através de eventos

que marcam a escolarização dos sujeitos interpelados pelo dispositivo.

A escola também é lugar de rupturas e na EJA elas se dão pela determinação de

educadoras e educandos que “ludibriam” o sistema normalizador do tempo e do espaço,

produzindo outras modalidades de presença, frequência e existência escolar. Sobre esse

aspecto ambivalente da dimensão do agente no interior dos dispositivos, reflete Deleuze

(1999):

Na medida em que se livrem das dimensões do saber e do poder, as

linhas de subjetivação parecem ser particularmente capazes de traçar

caminhos de criação, que não cessam de fracassar, mas que também,

na mesma medida, são retomados, modificados, até a ruptura do

antigo dispositivo.

A governamentalização das populações não alfabetizadas refere-se a um

conjunto amplo de estratégias, dispositivos e técnicas utilizados para o exercício de sua

conduta. Dentre estas estratégias, esta tese ocupa-se de dois conjuntos, configurados

aqui como Tecnologias, no entendimento de que são saberes aplicados que articulam

poder saber num conjunto estratégico. Focalizamos, primeiramente, as Tecnologias do

Constrangimento, que representam o regime de enunciabilidade dos dispositivos da

alfabetização de pessoas adultas, dirigidas por seu turno ao indivíduo e sustentado por

técnicas de si. Em seguida, focalizamos as Tecnologias do Abandono, que são

acionadas pelo regime de visibilidade dos dispositivos de escolarização de adultos, e

voltadas à condução da população não alfabetizada.

Visando a evidenciar a contextualidade que suporta este debate, discutiremos os

elementos sociais, econômicos e culturais sobre os quais se apresenta o tema no âmbito

das sociedades neoliberais; em seguida, discutimos as relações entre modelos de Estado

e políticas de Educação de Adultos; logo após, trazemos uma breve recensão a respeito

da Educação de Adultos no campo de estudos que faz o debate sobre essa modalidade

de escolarização.

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2.2. Neoliberalismo: a razão política na administração do precário

O neoliberalismo é um conjunto de doutrinas aparentemente econômicas

formulado por teóricos dos países do capitalismo central em meados do século XX, mas

originalmente delineada desde o século XVIII. Foucault localiza o neoliberalismo como

uma racionalidade baseada no cálculo, que se desdobra nas ações do Estado autorizando

certa performance das condutas de poder, em nome da segurança e baseadas no mercado

como espaço de veridição. Dizer que o mercado é o espaço de veridição equivale a

afirmar que ele é o espaço de constituição da verdade das práticas de governo, aquilo

que constitui sua legitimação e inteligibilidade.

Essas condições ocorrem a partir do modelo em que o mercado inspira não a

liberdade de ação dos agentes, mas a regulação de seu movimento, de forma discreta,

eficaz e permanente (FOUCAULT, 2008a, p.334), mas também “maciça quando se trata

desse conjunto de dados técnicos, científicos, jurídicos, demográficos, digamos, grosso

modo, sociais, que vão se tornar cada vez mais objeto de intervenção governamental”

(FOUCAULT, 2008a, p.194).

O neoliberalismo toma como modelo de funcionamento da sociedade a empresa

e a lógica concorrencial. As intervenções planificadas do Estado sobre as populações

são orientadas a produzir as melhores condições, através dos mecanismos mais diversos,

visando à produção do melhor ambiente possível para a continuidade e expansão do

próprio capital. Desse modo, a educação e as práticas de escolarização assumem um

papel central na formação não apenas da mão de obra, mas também de sujeitos capazes

de se adaptar aos modos de existência do capitalismo e contribuir para produzi-lo sem

maiores questionamentos. Veiga-Neto (2000, p.6) informa que “o liberalismo foi ― o

neoliberalismo continua sendo ― uma prática, uma maneira de fazer política, orientada

para objetivos e se regulando por uma reflexão contínua”.

Não obstante sua base filosófica, o neoliberalismo caracterizou-se ao longo da

segunda metade do século por um conjunto de procedimentos que foram alterando o

papel do Estado, não apenas em relação à economia, mas, sobretudo, em relação à

sociedade como campo de intervenção. A governamentalização neoliberal produziu seu

conjunto particular de crenças sobre a vida social e obteve um notável consenso nas

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sociedades graças ao controle das grandes linhas de ação política dentro dos Estados

(GENTILI, 1998).

A principal incidência da governamentalização neoliberal repousa na

interpretação dos problemas sociais e de seu equacionamento pelo Estado. Observamos

que de saída uma das primeiras formulações do neoliberalismo, a versão alemã, se

constitui como um pensamento que critica de forma contundente o Estado de Bem

Estar, ou seja, as políticas de base keynesianas que faziam do Estado uma instância

mediadora entre o mercado e a sociedade, que deveria atuar no arrefecimento dos

efeitos sociais e políticos da contradição capital versus trabalho. A formulação

neoliberal sobre as políticas sociais é clara a respeito de que o Estado não deve intervir

no equacionamento das desigualdades produzidas pelo jogo do mercado. Para o

pensamento neoliberal, “uma política social não pode adotar a igualdade como objetivo”

(FOUCAULT, 2008b, p. 196). Esse é um elemento central da discussão sobre os

processos de escolarização, porque o preceito da igualdade constitui uma das maiores

promessas sociais dos Estados modernos quando se referem à educação escolar (LIMA,

2007, p.41).

O neoliberalismo, segundo Foucault, altera o foco das políticas sociais dos

efeitos para as causas dos problemas que podem ser gerados pela autorregulação do

mercado. Uma vez que a lógica das biopolíticas reside na manutenção das condições

vitais das populações, o processo de produção de subjetividades aptas a desenvolver-se

autônoma, mas obedientemente20

, assume um papel sensivelmente mais forte na

formação do homo oeconomicus.

As políticas de Educação são, portanto, nessa contextualidade, um espaço

fundamental de produção das subjetividades necessárias à adequada gestão da sociedade

no ambiente neoliberal. É através das práticas escolarizadas que o projeto neoliberal

procura garantir a produção dos sujeitos flexíveis e competentes para atuar na

economia. No entanto, para o funcionamento de uma economia financeira, digital, de

20

Em algumas cosmovisões políticas, a associação entre autonomia e obediência seria uma contradição,

ou mesmo uma impossibilidade. Na perspectiva anarquista, por exemplo, em que autonomia é o exercício

da autodeterminação da vida livre, constituir-se autônomo é equivalente a não ser obediente a nenhuma

forma de governo. Já na perspectiva neoliberal, autonomia seria equivalente a autogerir sua própria

existência dentro dos limites do capitalismo, conforme a lei, Deus e o patrão, ou seja, sendo simplesmente

obediente.

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fluxos livres e desterritorializados da ideia de Estado-nação, não são necessários tantos

braços como no primeiro momento do capitalismo.

Na relação entre capital, trabalho e educação, a questão da qualificação técnica

da força de trabalho foi central ao capitalismo e o amplo desenvolvimento dos sistemas

nacionais de educação foi uma das alavancas desse processo. Porém, essa qualificação

era quase sempre de nível instrucional e elementar, e para isso a escola básica serviu de

forma bastante eficaz. Nos desenvolvimentos posteriores, a necessidade de alta

qualificação em competências técnicas tornou-se cada vez mais exigente e elevada,

ampliando o escopo do que se exige enquanto formação básica para participação na

esfera produtiva. A educação básica não é mais suficiente. Nessa nova fase, “o pleno

emprego não é um objetivo, pode até ser possível que um quantum de desemprego seja

absolutamente necessário para a economia” (FOUCAULT, 2008b, p. 191).

Ora, a questão que nos importa de forma mais direta é justamente a articulação

de algumas destas questões: primeiro, o pleno emprego não é um objetivo; segundo, a

escola básica já não garante o mínimo suficiente para o sujeito participar da esfera

produtiva; terceiro, o Estado atua de forma maciça sobre as populações como forma de

constituir a governamentalidade que garanta a manutenção das condições adequadas ao

livre fluxo do capital em circulação. Essas três condições empurram as populações não

alfabetizadas, num contexto de amplo desenvolvimento da tecnociência, de volta a um

lugar do qual apenas haviam se deslocado alguns poucos metros ao longo dos anos de

políticas de bem-estar social, quando essas populações puderam acionar a instrução

básica de maneira universalizada naqueles países de capitalismo avançado.

Poderíamos estar descrevendo aqui as condições conjunturais que teriam

produzido a eliminação das políticas educacionais voltadas para as populações não

alfabetizadas, mas a relação entre os três fatores em deriva nos informa que, diante do

desaparecimento do pleno emprego como objetivo e da ineficácia da escola básica na

garantia da construção de competências laborais ou pré-laborais pertinentes, apenas o

terceiro fator parece justificar a existência dessas políticas: era preciso governar essas

populações, e governá-las através de mecanismos de baixo custo, ampla incidência e

forte apelo subjetivo.

Cremos poder entender as políticas de Educação de Adultos em contexto

neoliberal a partir dessa correlação entre os fatores expostos, embora consideremos

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necessário salientar que esse é apenas um dos aspectos possíveis de seu

desenvolvimento, não exclusivo e não exaustivo, dada a diversidade quase inalcançável

de atividades nesse campo em todo o mundo.

Políticas de Educação de Adultos são, portanto, voltadas para populações que se

encontram no limiar da exclusão pelo fato de não serem numericamente necessárias ao

processo de reestruturação produtiva pelo qual passou o mundo do trabalho nas últimas

décadas. Não obstante essa premissa, o discurso sobre o emprego e inserção produtiva

consegue ser, ainda nos dias atuais, um dos argumentos mais utilizados pela retórica de

Estado para incentivar as populações não alfabetizadas e de baixa escolaridade a se

(re)inserirem na escola. Para o pesquisador português Licínio Lima (2012, p.31), essa

forma de oferecer aprendizagens está “longe de poder, ou sequer de ter a intenção de

incluir toda a gente. Em muitos casos é limitada a processos de gestão da crise,

amortecendo as taxas de desemprego, através de bolsas de formação, na busca de efeitos

paliativos.”.

Numa perspectiva biopolítica, acionar a função do processo de escolarização a

partir de seu efeito regulador sobre uma população constitui uma das tarefas centrais

dos dispositivos de governamentalização e observamos que a finalidade reguladora da

escolarização de adultos tem aparições tanto nos projetos de discursividade

emancipatória quanto nos projetos neoliberais. Ela continua presente porque suas bases

são as mesmas: uma forte crença no papel da escrita e outros saberes legitimados pela

escola na produção do sujeito civilizado que, numa versão ou na outra, é sempre o

convencimento a tomar parte numa conversão, uma metanóia em direção ao mundo

iluminado dos saberes escolarizados do desenvolvimento, da inclusão e da cidadania.

2.3. A Educação de Adultos nas diversas manifestações da estatalidade

O debate sobre a Educação de Adultos atravessa campos temáticos específicos,

como das questões sobre o lugar social da alfabetização e sobre as abordagens ao

fenômeno da linguagem. Ao lado desses, encontramos os estudos sobre as instituições

envolvidas na oferta educacional de alfabetização para pessoas adultas. Ao longo do

século XX, pode-se registrar avanços na institucionalização a partir do processo que

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vinculou alfabetização e escolarização, o que provoca uma demanda por compreensão

sobre o funcionamento dessas maquinarias estatais. Esse aumento no grau de

institucionalidade refere-se primordialmente aos diferentes graus de responsabilização

do Estado diante das políticas de escolarização das massas. O argumento central nesse

processo é a questão do direito, que estabelece a população como demandatária de um

objeto e o Estado como cumpridor das condições de acesso ao objeto, no caso, a

Educação Escolar. Os diferentes arranjos encontrados na relação entre população e

Estado para a garantia desse direito vão proporcionar a produção de políticas públicas

de diversos modelos, que encontrarão correspondência com os modos hegemônicos de

concretização da ação estatal.

A relação entre Estado e população é transversalizada pela maquinaria estatal,

assim como pelos modelos de escola, pelas concepções de sujeito e saber, as

concepções sobre língua e poder no campo discursivo da Educação de Adultos. Nos

modelos de oferta de educação escolarizada podemos observar a inscrição de

parâmetros mais amplamente difundidos na sociedade, visíveis em enunciados bastante

demarcados, a respeito de qual alfabetização e qual educação escolar devem ter acesso

os sujeitos interpelados por essas políticas.

Portanto, a adoção de medidas de Estado para promover o alfabetismo, (ou

combater o analfabetismo) se manifesta na concretude das políticas públicas. Isso se

torna evidente, por exemplo, na aplicação de campanhas e mais campanhas em

condições precárias de atendimento, nas quais a regra é o “pouco” ou o “menos”, ou na

produção social de uma escola que muitas vezes não é mais do que a continuidade da

experiência do precário das campanhas; ou, ainda, nas quais a concepção sobre as

necessidades de aprendizagem das pessoas adultas está condicionada por um olhar

direcionado ao indivíduo desvinculado de sua própria história e das experiências que o

constituem; o tipo de correlação entre tempo e recursos financeiros aparece governado

pelo interesse estatístico e menos, bem menos, condicionado ao ritmo ou desejo das

pessoas pela aquisição dos saberes escolarizados.

Desse modo, a análise do processo de escolarização de adultos exige um olhar

sobre essas formas específicas de apresentação do Estado e suas manifestações nas

políticas educacionais para pessoas adultas. Uma tipologia do Estado é um dos objetos

possíveis de análise na compreensão do fenômeno mais amplo da governamentalidade,

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que abarca não apenas o Estado, mas também outras instituições que singularizam as

linhas de força dos dispositivos de poder. Nessa perspectiva, os níveis micropolíticos de

análise encontram-se articulados com a compreensão desses modelos, uma vez que

enunciados desse campo possuem força de verdade na hora da produção de políticas

públicas e, consequentemente, de seus objetivos, metas, parâmetros e desenhos.

O modelo analítico de Lima e Guimarães (2011) divide os paradigmas de ação

do Estado nas políticas de Educação de Adultos em três versões. O Modelo

Democrático Emancipatório, o Modelo da Modernização e Centralidade do Estado e o

Modelo de Gestão de Recursos Humanos.

Tomando como referência os paradigmas de Estado de bem-estar, ou social

democrata, e do Estado neoliberal, esses três modelos evidenciam arranjos de políticas

de Educação de Adultos que vão se consolidando em diferentes estratégias, como

programas nacionais, modalidades de financiamento, lógicas de constituição dos

sistemas educacionais, ora mais próximos, ora mais distantes do ideário de um Estado

que “garante direitos”. Salientamos que o Estado brasileiro não pode ser apresentado

como encaixado nesses modelos, principalmente porque são construtos teóricos que

permitem uma aproximação ao modo como as políticas de Educação de Adultos se

apresentam.

Desse modo, o Modelo Democrático Emancipatório (LIMA; GUIMARÃES,

2011) descreve um tipo de Estado interessado em construir uma sociedade baseada nos

ideais de solidariedade, justiça social e bem comum. Como manifestação desses

princípios, as práticas são descentralizadas e os agentes locais possuem alto nível de

autonomia. Esse modelo propõe que a Educação é um direito social fundamental na

constituição de uma sociedade democrática. Muitos dos nossos argumentos em defesa

da Educação Pública, Gratuita, Universal e de Qualidade, no Brasil, rementem a esse

ideário, sobretudo pela importância desses valores para as sociedades pós-coloniais da

América Latina. O modelo abarca em geral programas que fazem a distinção entre ações

de educação e de instrução, além de valorização das tradições culturais locais em seu

valor educativo e integrador. No Brasil, as experiências fundamentadas no paradigma da

Educação Popular representam situações em que o Estado atuou com esse tipo de

arranjo. É fundamental destacar ainda que, nessa abordagem, o Estado tem um papel

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planificador e interventor, diante dos desafios postos à ampliação da esfera democrática

e dos riscos sempre presentes nas lógicas burocráticas de gestão.

O Modelo da Modernização e Centralidade do Estado pode ser caracterizado

como uma versão mais intervencionista da ação estatal, baseada na lógica de que a

Educação deve fortalecer o processo mais amplo de acumulação e legitimação do

sistema econômico (LIMA; GUIMARÃES, 2011, p.48). É a atuação do Estado

condizente com o agenciamento da relação capital e trabalho desenvolvido na lógica da

social democracia. Associado ao ideário liberal humanista, entende que: “As education

is an essential pillar of social policies in the construction of a democratic capitalist state,

it involves a set of processes that are directed at ensuring equal opportunities for

everyone, especially for those who are less able to get education and training.”21

(LIMA; GUIMARÃES, 2011, p.48).

Trata-se do modelo de Estado fortemente interventor, produtor de políticas

universalistas e dirigidas para finalidades amplas em torno da elevação da escolaridade

obrigatória e da inserção rápida de adultos nos sistemas produtivos. Segundo Lima e

Guimarães (2011, p.49), nessa versão, as políticas de Educação de Adultos estão

focadas em sistemas educacionais encarregados de certificação, e raramente conferem

prioridade às ações de educação não formal. A Educação de Adultos é definida pelo

mínimo que pode oferecer aos indivíduos, atendendo a uma lógica que poderíamos

identificar no paradigma da suplência pelo qual a Educação de Adultos foi, durante

muito tempo, compreendida no Brasil. Completando o quadro, ao lado de intervenções

pontuais e compensatórias, esse modelo de Estado também promoveu maior ênfase nas

práticas de formação para o trabalho.

O modelo de Gestão de Recursos Humanos agencia a relação da educação com o

trabalho de um modo diferente do modelo citado anteriormente. Enquanto no modelo

social democrata, ou de centralidade do Estado, essa relação é mediada pelo Estado e

associada à noção humanista de direitos sociais, nesta versão o Estado passa a perceber

a educação de forma mais visivelmente instrumentalizada, e mais submetida aos

princípios do crescimento econômico e competitividade (2011, p. 57).

21

Tradução nossa: Uma vez que a Educação é um pilar essencial das políticas sociais na construção de

um Estado de democracia capitalista, ela envolve um conjunto de processos que são dirigidos a garantir

iguais oportunidades para todos, especialmente para aqueles que são menos capazes de ter educação e

treinamento.

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Correspondendo ao ideário neoliberal e atuando na conjuntura da reestruturação

produtiva pela qual passou o capitalismo em meados do século XX, essa perspectiva

privilegia a lógica individual e compreende que o Estado deve deixar de prover os

serviços básicos e envolver-se com a regulação dos processos de oferta e demanda

desses serviços pelo mercado, que passam a ser entendidos como regras de distribuição

social do acesso aos direitos, como qualquer outra mercadoria. Segundo os autores,

“Public policies influenced by this model embrace priorities in which an essential aspect

is the promotion of 'employability, competitiveness, and economic modernisation'.”22

(LIMA; GUIMARÃES, 2011, p. 56).

Uma característica da Educação de Adultos sob esse modelo é o fato de que uma

grande parte do seu público encontra-se em condições muito desvantajosas para

participar de um mundo competitivo, de alta tecnologia, de mudanças contínuas nos

modos de produção. No entanto, esses sujeitos e suas necessidades educacionais estão

inseridos numa lógica que anuncia a “aprendizagem ao longo da vida” como uma

responsabilidade do próprio indivíduo. Como afirmam Lima e Guimarães (2011, p. 28):

“In the face of ‘crisis’ and the emergence of the neo-liberal state, the public provision of

adult education has been progressively conceived as lifelong learning, as an individual

matter, and as experience and moments of learning occuring in non-formal or informal

contexts.”23

No marco das políticas neoliberais, foi produzida uma clivagem central ao

campo da Educação de Adultos ao longo do século XX. A primeira identifica-se com a

lógica da Educação ao longo da Vida e com uma discursividade e compromissos

emancipatórios ou liberais humanistas. A segunda utiliza a expressão "aprendizagem ao

longo da vida" e se caracteriza pela subordinação à lógica neoliberal. Essa clivagem

exibe um momento de mudança conceitual importante pelo qual o campo passou, ao

testemunhar a mudança do termo educação para o termo aprendizagem. Essa mudança

se dá no âmbito da discursividade internacional, configurada pelos relatórios, súmulas,

convenções e outros documentos emitidos pelas grandes agências de desenvolvimento,

22

Tradução nossa: "Políticas públicas influenciadas por esse modelo adotam prioridades nas quais um

aspecto essencial é a promoção de 'empregabilidade, competitividade e modernização econômica'." 23

Tradução nossa: "Diante de 'crise' e da emergência do Estado neoliberal, a oferta pública de educação

de adultos foi progressivamente concebida como aprendizado ao longo da vida, como uma questão

individual e como experiência e momentos de aprendizado que ocorrem em contextos não formais ou

informais."

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como OCDE, UNESCO e OIT24

, e tem ocasião durante a década de 1990. Essa é uma

das lutas do campo dos saberes sobre a Educação de Adultos, uma luta de resistências

críticas ao paradigma social neoliberal.

Os sujeitos altamente autorizados que falam deste lugar internacional são as

instâncias mega ou supranacionais (LIMA, 2012) que constroem diagnósticos de amplo

recorte sobre a Educação de Adultos pelo menos desde os anos 1950, a partir de

informação privilegiada e acesso a uma reverberação potente de suas análises. Seu foco

de incidência política são os governos nacionais que, através de organismos locais como

ministérios de educação, recebem injunções sobre suas políticas a partir das finalidades

definidas alhures.

Essa passagem expressa uma alteração da relação educação/sujeito/poder numa

nova equação, com a incorporação da ideia mais ampla de Educação pela ideia mais

específica de aprendizagem. A educação aparece subordinada à aprendizagem, o sujeito

individual torna-se o foco e principal gestor de sua aprendizagem, o Estado se desobriga

de uma oferta educacional massiva, uma vez que “toda a sociedade e todas as

experiências sociais contribuem para a aprendizagem e desenvolvimento do sujeito” e

novos sujeitos institucionais ganham destaque na cena da provisão de serviços.

O trabalho por uma escolarização de adultos que contemple a noção de direito de

forma substancial e pertinente ― ou seja, que garanta o acesso à educação básica em

condições de igualdade e isonomia ― sofre uma alteração nesse cenário, pois a lógica

universalista que preside esse tipo de serviço se desfaz e novos modos de oferta

educacional são desenhados. No contexto internacional, isso significou a alteração do

modelo de atuação dos Estados, ocasionando um novo tipo de oferta de Educação de

Adultos, segundo a qual: “The neo-liberal state denotes a change in the state’s role in

AE as it shifted from being a service provider to being a service coordinator for

customers of decentralised and fragmented education and training systems."25

(LIMA,

2011, p.26).

24

Respectivamente, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, Organização das

Nações Unidas para Educação e Cultura e Organização Internacional do Trabalho. 25

Tradução nossa: "O Estado neoliberal denota uma mudança no papel do estado na Educação de Adultos

ao converter-se de um provedor de serviço para ser um coordenador de serviço para clientes de uma

educação e sistemas de capacitação descentralizados e fragmentados."

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No Brasil da década de 1990, observamos que o Programa Alfabetização

Solidária configurou-se como um exemplar típico desse modelo. Segundo Traversini

(2003, p.200),

A diluição da responsabilidade do Estado fez com que se inventassem

outros arranjos para resolver os problemas do analfabetismo no país.

As práticas solidárias da adoção de analfabetos/as e da instituição de

parcerias, a multiplicação de sujeitos solidários e o empresariamento

da erradicação do analfabetismo são exemplos desses novos arranjos

inventados para governar.

A inscrição neoliberal se confirma inclusive pela valorização das iniciativas

locais, baseadas em background cultural e expertise de mobilização das redes

comunitárias.

As ações de alfabetização no Brasil desde a década de 1990 passaram de um

modelo de natureza gerencialista, no marco das políticas neoliberais então em vigor em

toda América Latina (BARREYRO, 2010), tendo como expoente o Programa

Alfabetização Solidária, para um modelo mais centralizado, com a implementação do

Programa Brasil Alfabetizado, a partir de 2003. Embora haja muitas semelhanças entre

os dois programas, cada um equaciona a relação entre Estado, Sociedade e Mercado de

forma específica, denotando não apenas um modelo de políticas públicas, mas uma

forma de exercício de poder.

No tocante à relação entre Estado e organizações da sociedade civil, é

importante reconhecer que elas tiveram no Brasil um papel estratégico na luta pelo

direito à educação de pessoas adultas, e mesmo na oferta dessa educação. A

legitimidade da escolarização na oferta de alfabetização e de escolarização é

problematizada pela presença dessas organizações. Desse modo, no Programa

Alfabetização Solidária, a presença das ONGs era parte de uma estratégia que se

aproxima do modelo de Gestão de Recursos Humanos, posto que a própria gestão da

política de alfabetização, ao nível macro foi transferida para uma organização com esse

cariz. Predominavam então as lógicas de autonomia, criatividade, esforço local, com

repasse de recursos pelo Estado e angariação de uma lógica de filantropia em torno da

provisão de educação.

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Já o Programa Brasil Alfabetizado parecia em seu início representar uma ruptura

com o modelo anterior. Construído para ser a resposta de um governo de esquerda para

o problema do analfabetismo, esse programa passou a uma estrutura organizacional em

que o Estado reassume uma função diretiva clara sobre o enfrentamento à questão do

analfabetismo. Os parceiros prioritários passam a ser os municípios e estados, reduzindo

substancialmente o papel das ONGs na execução do programa. Segundo Henriques

(2006, p.30),

O Programa Brasil Alfabetizado recolocou a alfabetização de jovens e

adultos como prioridade na agenda educacional do País. Ao tomar esta

iniciativa, o Governo Federal, por intermédio do Ministério da

Educação, chamou para si a responsabilidade política e constitucional

de induzir, sustentar e coordenar um esforço nacional de

alfabetização, adotando uma nova concepção de política pública que

reconhece e reafirma o dever do Estado de garantir a educação como

direito de todos.

Nesse formato, uma lógica de Estado forte e intervencionista evidencia uma

conexão com o modelo de Centralidade e Modernização do Estado, ainda que os

documentos oficiais afirmem o contrário:

No que se refere à forma de implementação, a ação foi desenhada

descentralizada, com participação direta de Estados, Distrito Federal e

municípios, permitindo o aproveitamento da experiência dos diversos

parceiros e o respeito à diversidade das realidades locais. Além disso,

garantiu-se a pluralidade de métodos pedagógicos. O MEC passa a

definir parâmetros gerais de qualidade, via resolução publicada no

Diário Oficial, sem direcionamento a qualquer metodologia

específica. (HENRIQUES, 2006, p.31).

Nessa versão de campanha de alfabetização, os municípios realizam uma

“adesão” e de certo modo “contratam” do Governo Federal a execução da política

pública de alfabetização, num modelo que tem uma série de justificativas do ponto de

vista das relações burocráticas de controle dos recursos do Estado, mas que, no fundo,

parecem corresponder ao ideário de um Estado regulador tipicamente neoliberal. Na

“troca”, os entes executores possuem muitas responsabilidades e uma pequena margem

de adaptação da execução ao seu contexto, prioritariamente delimitada às opções

“pedagógicas”. Nesse modelo, os municípios são deslocados para uma função quase

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“terceirizada”, uma vez que se encontram inseridos numa lógica que controla o tempo

de atuação e, portanto, as práticas.

O arranjo prevê uma flexibilidade pedagógica ao lado de um compromisso

estruturado em torno do atingimento de metas quantitativas (HENRIQUES, 2006, p.31;

ULYSSEA, 2006, p.151). Esses dois elementos, flexibilidade e controle de outputs

quantitativos, inscrevem esse programa numa racionalidade que não é mais a das

políticas de Centralidade e Modernização do Estado, mas de Gerenciamento de

Recursos Humanos, demonstrando a complexidade das práticas, tal como alerta Lima

(2011).

No entanto, essa racionalidade é desestabilizada por um fator preponderante: as

populações atendidas pelos programas de alfabetização não estão socialmente

localizadas no campo da empregabilidade como pressupõe a lógica neoliberal dos

modelos de Gestão de Recursos Humanos. Os adultos não alfabetizados compõem a

economia, colaboram para ela, mas pelas suas margens. Não fazem parte do sistema

central das relações de consumo, participam delas através das diversas economias que

vão se constituindo na informalidade, na contracorrente da sobrevivência em meio à

reformulação estrutural do campo do trabalho (ANTUNES, 2008).

Os adultos estão inseridos nas arestas desse sistema econômico e por isso o

acesso à alfabetização como acesso à mobilidade social ou à empregabilidade parece

não funcionar como argumento suficiente de tais políticas. Restariam então os

argumentos clássicos da emancipação política e o argumento da inserção cidadã. Há, no

entanto, um quarto elemento que chamamos de argumento biopolítico e está relacionado

ao controle, ou seja, tais políticas estariam inseridas numa lógica de regulação que se

institui através do dispositivo da alfabetização e do dispositivo da escolarização.

Ao longo do desenvolvimento histórico desses modelos de apresentação da

estatalidade, o lugar instrumental dessas políticas é acompanhado pelas discursividades

que ininterruptamente acompanham as práticas de execução da Educação de Adultos.

As políticas discursivas do constrangimento e do abandono conseguem metamorfosear-

se ao longo do século XX, ganhando os contornos necessários para manterem-se no

horizonte da Educação de Adultos e acionando inclusive esses diferentes modos de

operação para que atuem a partir dessa oikonomia geral do poder que relaciona sujeito e

Estado no campo da Educação de Adultos.

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2.4. Poder dizer sobre Educação de Adultos: elementos do debate

epistemológico

O homem é uma corda estendida

entre o animal e o Super homem:

uma corda sobre um abismo;

perigosa travessia, perigoso caminhar;

perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.

(Zaratustra)

O tema geral da Educação de Adultos pode ser sistematizado em duas linhas

mestras: de um lado um paradigma de cariz emancipatório, pelo qual o projeto

iluminista se apresenta a partir do compromisso entre conhecimento e emancipação

(BRAYNER, 1995); de outro, um paradigma da ordem e da integração, oriundo da

subordinação do conhecimento à instrumentalidade econômica. O que esteve em jogo

nesse debate foi a direção do processo de educação por uma via libertadora, ou por uma

via conservadora, ou direita ou esquerda, ou progressista ou tradicional, ou bancária ou

crítica. Na atualidade, ou educação ao longo da vida ou aprendizagem ao longo da vida.

A Educação de Adultos é acompanhada no contexto latino-americano pelo

paradigma da Educação Popular, que lhe confere um marco normativo de práticas, um

sujeito a quem se dirige, um programa de ação e um horizonte político que estabelece

uma peculiar articulação entre sujeito e escolarização. Educação popular também

representa a “educação pobre para pobre” nas versões estatais liberais. E vem sendo,

entretanto, um ambiente crítico desde onde se olha para as práticas educacionais

visando à sua problematização.

Esse debate ganha muitos contornos porque a realidade não é pura e límpida,

mas convulsionada e, conforme a perspectiva de Souza (2004), os modelos escolares

são produzidos pelas lutas políticas, emergem como acontecimentos do embate cultural

a respeito da melhor forma de direcionar as mentes, almas e corpos através da educação.

Os paradigmas emancipatórios e conservadores de Educação de Adultos envolvem

outros tipos de polarização que não se resolvem por exclusão mútua, mas por

correlações que dão forma às práticas, pois, segundo Souza (2000, p.13),

A reflexão política pode ser feita sem se falar da aquisição dos

códigos alfabéticos; a conscientização se dá em processos de

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transformação cultural. A politização se faz através da ação

organizada e não das letras. Mas parece poderem as letras contribuir

para a compreensão da política e da economia, ainda que a capacidade

política e econômica do domínio da leitura e da escrita do código

alfabético não seja evidente. No entanto, no contexto atual, torna-se

uma questão de sobrevivência.

O embate entre esses paradigmas parece encontrar um desafio considerável

quando nos referimos ao processo em que pessoas adultas, dotadas de experiência e

saberes, histórias e desejos desenhados numa trajetória de diálogo com a vida,

participam das práticas que chamamos de Educação Escolar.

Nem sempre houve escolarização de adultos. Mas sempre houve Educação de

Adultos, sendo ela um lugar de direção de consciências, corpos e almas. O que eram as

academias gregas? E o que eram os monastérios medievais e os templos japoneses do

Budismo Zen ou do Budismo Tibetano senão espaços formativos para pessoas adultas?

Quando Nietzsche diz, pela boca de Zaratustra, que o homem é uma corda

estendida sobre um abismo, ele nos recorda o aspecto perigoso do viver e o aspecto

perigoso, ainda mais para o Estado, de seres viventes que se constituem como sujeitos

através da reflexão de suas experiências de alegrias e dores. O poder precisa intervir

nessas experiências, orientá-las, dar forma a elas, conceder-lhes uma linguagem,

alimentá-las com conceitos da certeza e do erro, do bem e do mal, da lei e da ordem. Ou

da consciência e alienação, da emancipação e opressão, da crítica ou da obediência, da

servidão ou da revolução. A educação é uma forma de afastar os perigos, esses e mais

alguns outros.

A educação de crianças foi pensada para evitar que os sujeitos criassem

demasiadas compreensões sobre a vida aquém dessas orientações e esclarecimentos

fornecidos pela luz do conhecimento. E a Escolarização de Adultos foi desenvolvida

também como uma forma de evitar os perigos inerentes à vida vivida de tantas pessoas.

Deixar que as pessoas escolham seus caminhos não é necessariamente uma finalidade.

Reconhecer que são capazes de bem viver sem os conhecimentos escolares não é uma

hipótese viável. O que se tornou viável foi a necessidade de inserir a todos na norma da

cultura escrita, no modo de vida ocidentalizado e na condição política da cidadania.

Referimo-nos ao fato de que o Brasil produziu uma escolarização de adultos, um

certo modo de Educação de Adultos, no qual, a despeito da tradição da Educação

Popular, da participação ampla de setores progressistas na definição de políticas, do

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forte apelo por especificidade, o que se consolidou foi o modelo de uma escola

tradicional, conservadora, diretiva. Que cruzamentos são esses entre tantas linhas de

força, que o diagrama final redunda na produção de tempos escolares reduzidos, em que

menos de 20% das pessoas obtém a certificação prometida e esperada, em que as

promessas de melhoria de vida e ampliação das expectativas nunca parecem se realizar

ou realizam-se de forma episódica?

Vamos olhar mais de perto algumas das contribuições teóricas ao campo da

Alfabetização de Adultos, visando a apreender de que forma os paradigmas se

imbricaram, na luta interna pela definição desse modelo, bem como de que modo essas

propostas foram acomodadas no interior de um projeto de governamento neoliberal das

populações não alfabetizadas. Salientamos que o enfoque dado à questão da

alfabetização vincula-se com o seu lugar estratégico no processo de constituição da

escolarização de adultos. Se há uma escolarização como tema hoje, é porque houve uma

disciplinarização do campo de estudos sobre alfabetização de adultos que mobilizou a

emergência da escolarização.

A escolarização de pessoas adultas constitui-se como um campo de práticas e

um campo do saber consolidado pelo volume e constância das produções teóricas. Esse

campo é multidisciplinar a partir da interlocução com ambientes teóricos afins à

pedagogia, como a sociologia e a filosofia, que fornecem material crítico reflexivo para

pensarmos conceitos centrais à educação, como sujeito, saber, razão, cultura e poder.

Para Canário (2013, p.18), a Educação de Adultos é um campo, na medida em que

possui “uma realidade social de práticas educativas com características próprias,

susceptíveis de uma delimitação temporal, geográfica e institucional, de uma descrição

compreensiva e não arbitrária”.

O debate filosófico sobre a Educação de Adultos trabalha com questões como

concepções de sujeito e saber, saber e poder, bem como as justificativas e finalidades

das práticas de Educação. Investigando as peripécias das concepções, a filosofia nos

desnuda o substrato de formas tomadas como evidentes e nos anuncia os problemas

sobre a relação do sujeito com a escrita, com o tempo e com a razão. Já a reflexão

sociológica sobre a alfabetização de adultos, por sua vez, vem se dedicando a investigar

os caminhos de integração e exclusão social, as concepções de Estado e suas

implicações para as práticas de escolarização, o papel da escola nos processos de

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mobilidade social ascendente, produção de capital cultural e de subjetividades. Os

estudos de teoria do ensino avançaram em compreensões sensíveis e focalizadas nas

especificidades da aquisição da escrita pelo sujeito adulto, dedicaram-se ao mapeamento

e sistematização de práticas e vem dando contribuição à superação do infantilismo que

permeou por décadas as práticas de ensino com adultos.

Os estudos sobre escolarização de adultos preocupam-se com a escola como

instituição; com as políticas públicas de educação para pessoas adultas; os indicadores

dessa escolarização; sua participação nos processos de inclusão e exclusão social; o

tema do desenvolvimento, o papel de atores nacionais e internacionais na promoção

dessa educação, o papel do currículo e da escola como espaços de poder; a incidência da

escolarização para populações específicas. Ocupando-se também do tema da cultura, o

campo sociológico produziu farta documentação sobre essa modalidade educacional.

Neste item, faremos uma breve passagem por esse campo com a finalidade de

delinear algumas interlocuções do nosso trabalho com outros estudos da área. Sem a

pretensão de uma recensão exaustiva, selecionamos alguns estudiosos cujas questões

nos interessam, seja pela sua inscrição em uma tradição de estudos sobre o tema, seja

pela aproximação de abordagens ou argumentos.

Os dois temas prioritários dos estudos de Educação de Adultos, durante os anos

1960 e 1970, foram a articulação entre os temas da alfabetização e da escolarização com

a questão do desenvolvimento. Se alfabetização já foi considerada como passagem do

estado de barbárie para o estado de civilização, com a mudança discursiva e conceitual

que se inaugura nessas décadas, passa a ser entendida como passagem de uma condição

subdesenvolvida para o desenvolvimento. No centro desse debate, as populações

acionadas pelo dispositivo da campanha. Como principais interlocutores desse campo, a

ONU e os Estados nacionais em meio a um contexto de pós-guerra (mais pertinente aos

países do Hemisfério Norte), e o avanço das ditaduras no contexto da América Latina.

No campo econômico, o avanço do consenso internacional do capital em torno das

políticas neoliberais. Na geopolítica mundial, a clivagem da Guerra Fria.

Neste estudo, partimos da concepção de que alfabetização é uma prática

escolarizada e escolarizante que se encontra vinculada ao direito à Educação como parte

de uma estratégia que envolve conquista de espaços e formas de governamentalidade. A

alfabetização, numa sociedade que tem a escrita como norma, é condição de acesso a

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um acervo de saberes/poderes estratégicos para a obtenção de direitos, fortalecimento de

lutas e empoderamento diante das opressões. Logo, a alfabetização se justifica enquanto

etapa de acesso à escolarização como o processo que tem por meta prover os saberes

poderosos para a produção de relações mais horizontais dentro do jogo democrático. No

marco das análises biopolíticas que aqui realizamos, sustentamos que a alfabetização

plena das sociedades se constitui como uma retórica a sustentar um dispositivo de

governamento que aciona populações em torno do projeto de escolarização da

modernidade, que não corresponde necessariamente à alfabetização que as populações

poderiam solicitar para sua “emancipação” política.

No entanto, não é consensual a inscrição da alfabetização como parte da

escolarização para pessoas adultas, isso em decorrência do fato de que o próprio campo

da Educação de Adultos é composto por imensa diversidade de práticas e muitas delas

inscritas no âmbito não escolar da Educação. Canário (2013) faz referência ao fato de

que a Educação de Adultos é um campo de práticas dentre as quais a alfabetização é um

dos seus exemplares. Para o autor, a alfabetização e a escolarização não se sobrepõem

(2013, p. 47). No entanto, no contexto latino-americano e especificamente brasileiro, a

conjugação das práticas de alfabetização com as práticas de escolarização representa

uma estratégia política de inserção das populações que demandam a Educação como

direito.

A dicotomização da alfabetização em relação à escolarização contribuiu com a

predominância das campanhas como dispositivo central de oferta educacional para as

populações consideradas não alfabetizadas ao longo de todo o século XX. O

reducionismo da alfabetização a um exercício de aquisição de regras para o

deciframento de um código produziu uma forma de verdade circulante entre

governantes e governados a partir da qual iniciativas intempestivas, de baixo custo,

realizadas por voluntários sem formação específica e em tempos reduzidos garantiria a

passagem das populações ao estado de civilização e do País ao estado de

desenvolvimento. Como informa Beisiegel (2004, p. 76), a respeito da emergência da

Educação de Adultos no Brasil, ainda no período do Império, “Os cursos de adultos

poderiam ser instituídos com um pequeno acréscimo de despesa, funcionando nos

prédios escolares existentes, sob a responsabilidade de professores das mesmas escolas,

mediante ‘razoável’ gratificação”.

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O mesmo autor salienta que a Educação de Adultos passa a ser assumida como

problema nacional a partir da década de 1940, e a partir daí o ambiente para a instalação

de dispositivos biopolíticos se faz mais adequado. Primeiro, porque há um substancial

aumento das populações urbanas; segundo, porque o Estado se organiza cada vez mais a

partir de lógicas liberais; terceiro, porque o processo desenvolvimentista do período

exigia a ampliação quantitativa da instrução básica da população. Nesse momento,

“todos os brasileiros analfabetos, nas cidades ou nos campos, conscientes ou não dessa

necessidade, deverão ser alcançados pela escola” (BEISIEGEL, 2004, p.78).

Logo, o problema da alfabetização não pertence inicialmente aos sujeitos não

alfabetizados, é antes um problema de Estado desde seu aparecimento enquanto prática

discursiva na sociedade brasileira. Essa é a versão de educação popular como “uma

educação concebida pelas ‘elites’ com vistas à preparação do ‘povo’ para a realização

de certos fins” (BEISIEGEL, 2004, p.42). A integração dessas populações ao projeto de

desenvolvimento do país passou por uma estratégia de normalização sob o signo da

pessoa alfabetizada, ao lado de opções operacionais que garantiram a realização precária

dessa integração e, portanto, uma localização subordinada nesse projeto.

A racionalidade do precário na Educação de Adultos é sustentada pela crença na

necessidade de baixos investimentos, na opção por instrução elementar, na urgência em

atingir as massas, na subjetivação do analfabeto como ignorante, na postergação do

acesso a outras etapas de ensino, na opção pelo educador leigo. Beisiegel (2004, p.113),

embora com outro quadro conceitual, identifica a disposição biopolítica do processo de

alfabetização desenvolvido no Brasil representado pela Campanha Alfabetização de

Adolescentes e Adultos, de 1947: “A elevação do nível educacional das localidades e,

em particular, o maior domínio das técnicas básicas de comunicação criariam novas

condições de organização da vida coletiva e tornariam as populações mais permeáveis

às pressões modernizadoras”. É com tal racionalidade, fundada no precário, no urgente,

e orientada pela finalidade de integração ao processo de desenvolvimento econômico

que o campo da Educação de Adultos vem se debatendo, e defendemos que a dicotomia

entre alfabetização e escolarização de adultos é um dos elementos que sustenta tal

racionalidade.

O que estava em jogo não era necessariamente a disputa entre diferentes projetos

de desenvolvimento, embora agonismos locais estivessem presentes nas disputas entre

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grupos pela liderança desse processo (o que não quer dizer, exatamente, que havia

vários projetos em disputa). Do ponto de vista das populações que naquele momento

passam a ser chamadas pela alcunha de analfabetas, esse projeto era apenas um e

correspondia à sua inserção subordinada, através da educação, ao horizonte de uma

provável cidadania.

Para Parajuli (1990, p.326),

esas nociones elementales (leer, escribir y hacer operaciones

aritméticas sencillas) son el resultado de uma compleja trama de

tensiones contradictorias entre el saber y el poder, el Estado y la

población marginada por las políticas desarrollistas.

O que esse autor salienta é que a alfabetização, e os dispositivos acionados para

efetivá-la, não se podem realizar de maneira emancipatória se elas atuam exatamente

sobre os efeitos do desenvolvimento e não sobre suas causas. Esse argumento salienta,

sobretudo, a natureza retórica das práticas de alfabetização de adultos configuradas nas

campanhas. A não participação das populações não alfabetizadas nos projetos de

desenvolvimento, como sujeitos de saber e poder desses projetos, é causa e não efeito

do analfabetismo de massas. Essas populações nunca estiveram contempladas nos

projetos de desenvolvimento de outra forma.

Desconstruindo por fora a lógica iluminista da emancipação através do

conhecimento, Parajuli (1990, p.331) reflete que: “Sólo es posible apreciar ese saber

popular renunciando a la concepción estática, según la cual la gente es consciente, y por

tanto revolucionaria, o bien inconsciente y tranquila”. O antropólogo nepalês afirma que

na equação entre saber, poder e desenvolvimento um longo processo de deslegitimação

do saber popular das populações não alfabetizadas é constantemente realizado. Alega

ainda que as pedagogias críticas da alfabetização, as de base freiriana inclusive, se

encontram por demais fundadas sobre os mesmos pressupostos racionalistas que

sustentam os projetos desenvolvimentistas. Isso se observa quanto às definições de

desenvolvimento, progresso e mudança latentes no pensamento do pedagogo

pernambucano e distribuídas por toda a obra, mas formuladas com especial atenção na

Pedagogia do Oprimido (1990, p.332).

A verdade poderosa com que a Pedagogia do Oprimido configura o próprio

sujeito e a necessidade de sua conversão são aspectos que não podem ser abstraídos

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como elementos periféricos, pois, conforme defende ainda Parajuli (1990, p.334), lo que

tiene que hacer la alfabetización en el decenio de 1990 no es cambiar la conciencia de

los llamados analfabetos ni lo que tienen en la cabeza, sino cambiar "el régimen

político, económico e institucional de producción de la verdad", e salientamos: da

verdade sobre o saber e o sujeito escolarizado.

Nesse sentido, a alfabetização é menos do que diálogo entre saberes diferentes,

configurando-se mais como um enfrentamento do qual o saber popular sai muitas vezes

subalternizado. Por outro lado, as formas múltiplas do saber e as verdades perspectivas

que as acompanham, como verdades de mundividências diversas do pensamento

ocidental hegemônico, precisam encontrar as formas de se expor e manifestar, e a

estrutura escolar não tem sempre conseguido ser esse espaço. Mais uma vez, o saber dos

oprimidos não é apenas uma consciência ingênua ou mágica que precisa ser

“melhorada” em consciência crítica, é uma forma de saber que precisa entrar no regime

dos poderes a partir de outras posições estratégicas. Isso significa abandonar

perspectivas colonialistas de conhecimento, como o regime de verdade da ciência

moderna e mesmo a crença na escrita como forma superior de articulação entre

pensamento e mundo.

Logo, temos que a tensão entre os saberes locais das comunidades e pessoas não

alfabetizadas e os saberes dos programas-campanhas de alfabetização e, por extensão,

da escolarização de adultos, reflete uma tensão no plano teórico com o universalismo da

razão moderna, e com a ciência e instituições que lhe são herdeiras.

É importante compreender esse aspecto para podermos pensar que, na passagem

da estratégia da alfabetização para a estratégia da escolarização, no campo da Educação

de Adultos, essas tensões não se resolvem, mas se aprofundam. Ao questionarmos esses

fundamentos e a sua presença entre discursos altamente legitimados, o que se pretende

não é uma crítica local, mas uma desorganização crítica das verdades em torno da

escola. Nesta tese, as cronologias escolares dos estudantes da EJA, discutidas no

capítulo 5, representam outro tipo de argumentação, de natureza empírica, nessa

direção.

Se na década de 1940 os problemas da alfabetização não estavam tão

equacionados ao nível internacional, observamos, na análise dos documentos finais das

Conferências Internacionais de Educação de Adultos, que, ao longo da década de 60 e

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70 daquele século, o olhar sobre a produção social do analfabetismo se aprofunda, bem

como as ferramentas teóricas para propor novas questões.

Quando, em 1976, o iraniano Majid Rahnema (1976, p. 72) propõe a questão

“Literacy for what?”, é bem o zeitgeist dessa década que se faz presente perscrutando os

problemas da alfabetização a partir do desencanto com a racionalidade moderna do pós-

guerra, das críticas ao universalismo, produzidas ao longo da década de 1960, e da

emergência da questão do desenvolvimento, que atuou como mecanismo de

classificação (e, logo, de hierarquização e subordinação) das sociedades a partir do

paradigma econômico.

A vitalidade de tal racionalidade classificatória pode ser compreendida mais

amplamente, e sem dúvida o índice de alfabetização das sociedades manteve esse

quadro funcionando tanto do ponto de vista interno (população alfabetizada e não

alfabetizada) quanto externo aos países (desenvolvidos e subdesenvolvidos). O índice

de alfabetização, no sistema de razão que compõe o cenário discursivo da Educação de

Adultos, constitui um eixo de veridição dos Estados e sujeitos.

Majid Rahnema é crítico da articulação alfabetização e desenvolvimento, assim

como o nepalês Pramod Parajuli e o também iraniano Munir Fasheh; para este último

“Após cinquenta anos transformando a maioria das sociedades em ruínas

socioeconômicas, o desenvolvimento é ainda considerado, principalmente pelos

escolarizados, liberdade e um sonho!” (2004, p.166). Essa crítica só poderia vir das

margens, de pessoas iranianas, nepalesas, brasileiras, mexicanas, argentinas, africanas,

que contribuem para produzir um pensamento desestabilizador das categorias

universalistas que sustentam o projeto de escolarização da modernidade e sua longeva

aplicação entre nós na sustentação da escolarização como um dispositivo de

governamento.

O problema biopolítico da escolarização relaciona-se diretamente com esse tipo

de reflexão, com a ocupação do lugar da razão universal pelas racionalidades locais, e

dessa forma a pergunta que ainda nos ocupa na atualidade parece ser a mesma lançada

por Rahnema: escolarização para quê? O que esses argumentos sobre desenvolvimento

noticiam é a existência das lutas silenciadas sobre esse projeto e o incômodo

fundamental que nos aflige é: por que continuamos insistindo em projetos dessa

natureza?

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O abandono de uma estratégia se dá virtualmente por duas razões: ou as

condições se alteram, ocorrendo uma mudança das regras do jogo de tal modo que seja

preciso acionar outros dispositivos, logo, a estratégia perde sua eficácia, ou as

finalidades que se buscava com aquela estratégia são atingidas e passa-se a outro tipo de

estratégia. Se a escolarização, como defende Graff (1994, p.68) “era útil ao treinamento

eficiente da população para a ordem social”, isso no âmbito do pensamento liberal

clássico, possivelmente a manutenção de investimentos discursivos sobre escolarização

sem uma alteração profunda nas relações de poder sustenta finalidades similares.

Recordo a esta altura que a educação escolar responde virtualmente a três

grandes estratégias de controle, numa perspectiva foucaultiana: o controle disciplinar

dos corpos e dos saberes produzidos sobre o sujeito pela Pedagogia e ciências afins, o

controle governamentalizado dos dispositivos de conduta da população acionados pela

escolarização e a normalização da relação ética do sujeito de si para si. Desse modo,

havendo atualidade no uso destas ferramentas, podemos intuir a atualidade das

finalidades a que correspondem. Mas a biopolítica vai mais adiante do que promover a

coesão social: ela trata de produzir a vitalidade necessária ao regime político em ação e

garantir a gestão adequada do princípio de “deixar morrer”.

Esse espectro das relações de poder com as políticas de escolarização de adultos

(aqui políticas em sentido foucaultiano, como conjunto de táticas locais que se

relacionam com estratégias mais gerais de poder) é acompanhado, segundo Graff

(1994), pelos mitos criados em torno do problema da alfabetização em geral, que no

âmbito sócio histórico são articulados com a superestimação das qualidades da

alfabetização, e escolarização dela decorrente, como mecanismo gerador de democracia,

igualdade e integração econômica dos sujeitos. Exemplificando esses mitos, Graff

reflete que os mecanismos que justificaram a alfabetização das massas, nos séculos XIX

e início do XX, estavam mais ligados a estruturas conservadoras que revolucionárias.

Para o pesquisador estadunidense,

O poder do currículo moralmente guarnecido e moralmente baseado

que forneceu a substância do ensino alfabetizador, a experiência do

próprio treinamento, as estruturas institucionais explícitas e implícitas,

tudo combinado com as inseguranças econômicas e a pobreza dos

trabalhadores e dos pobres – e com os mecanismos de controle muito

mais abertos e óbvios – para evitar explosões revolucionárias.

(GRAFF, 1994, p. 81).

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No conjunto de estudos que se dedicam a analisar o problema da alfabetização,

tornou-se mais presente, a partir dos avanços da sociolinguística nas décadas de 1960 e

70, a inserção de questões da ordem da aprendizagem vinculadas aos usos sociais da

escrita escolar ensinada em campanhas ou em escolas e suas relações com as vidas

cotidianas das pessoas envolvidas na escolarização. Essa abordagem enfatiza “os

processos pelos quais a alfabetização é construída na vida diária, através de

intercâmbios interacionais e da negociação de significados em muitos contextos

diferentes.” (COOK-GUMPERZ,1991, p.12).

Desenvolvendo o argumento de que a relação entre alfabetização e escolarização

não pode ser tomada de forma linear, como causa e efeito, e aprofundando a reflexão de

Graff a respeito dos interesses envolvidos no projeto de alfabetização plena das

sociedades, e ainda, localizando a relação entre tal “ideologia” e os estudos que

demonstraram existir nos países industrializados uma presença da escrita em práticas

sociais não escolarizadas, Cook-Gumperz (1991, p.35) defende que “a introdução da

escolarização deve ter tido, e certamente teve, outras finalidades além da

alfabetização.”.

As pesquisas de natureza sociolinguística realizadas por métodos e abordagens

antropológicos e sociológicos evidenciaram que o argumento cultural também deveria

ser levado em consideração em relação à disseminação das práticas de alfabetização das

sociedades. O argumento cultural refere-se ao fato de que algumas sociedades, que

alfabetizaram suas populações antes mesmo do processo de industrialização massiva do

século XIX, fizeram-no por razões de ordem religiosa, cultural ou motivações de

natureza nacionalista, como afirmação de línguas nacionais ou produção de

pertencimento identitário. Obviamente, essas são questões da ordem do político, no

entanto, não são as configurações do político que estrategicamente localizam na escola

prioritariamente as funções de controle, regulação e normalização social.

Ao lado da postergação dos resultados de aprendizagem e de certificação da

população adulta em processos de escolarização, um dos traços que caracterizam os

dispositivos biopolíticos governantes nesse campo é a restrição, ou seja, um movimento

em que a oferta de conhecimento para essa modalidade educacional é regulada pelo

preceito bastante difundido de que para esse público o currículo tem que ser “resumido”

em relação ao currículo da escola de crianças e adolescentes.

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Esse traço da racionalidade biopolítica é mais antigo, conforme expõe Cook-

Gumperz (1991, p. 38, grifo nosso), citando um trecho de documento sobre educação

para adultos do século XVIII: “Ao serem alfabetizadas, elas [as pessoas da classe

operária] receberiam ensinamentos sobre os hábitos de produtividade e economia

através de um programa muito restrito de pouca escrita e alguma leitura de textos

religiosos”. Esses aspectos são mais do que uma “ideologia”, ou seja, um conjunto de

crenças que se comporta como verdade, mas uma racionalidade, um discurso

performativo, no sentido de que opera situações no real, preside práticas, direciona

ações e localiza sujeitos nas relações de poder, nesse caso, de modo subalterno.

Cook-Gumperz chama a atenção para a escolarização da alfabetização e seus

resultados de controle da “cultura popular” durante o século XIX nos países que

primeiro se industrializaram, refletindo que a incorporação das práticas de alfabetização

pela escola oficial representou uma viragem nos modos de compreender a relação da

escola com o ensino da escrita, incluindo aí a distribuição regulada desse saber com o

controle do que deveria ser lido, como, por quem e quando. Para a autora, “a

alfabetização escolarizada foi, assim, diferenciada dos usos rotineiros da leitura e

escrita. O que era ensinado através da alfabetização escolarizada não mais era parte de

uma cultura local, de modo que as pessoas comuns tinham menos controle sobre os

produtos de sua própria cultura.” (1991, p.43). Nesse sentido, concordamos com Geraldi

(2000, p.105), quando ele afirma que:

A escrita, exigindo aprendizagem formal e transmissão social

marcada, sofreu um processo de apropriação social por certas camadas

da população que nela foram imprimindo seus modos de apreciação

do mundo, seus modos de falar, suas palavras – no sentido de logos –

de modo que qualquer outra escrita que não se conforme ao discurso

proferido pelas camadas que se apropriaram de um artefato

coletivamente construído é considerada não escrita, quando na

verdade o que se está excluindo são os discursos proferidos e seus

sujeitos sociais.

O questionamento das campanhas e práticas escolarizadas de alfabetização de

adultos foi realizado de modo eficaz pelo campo de estudos chamado em língua inglesa

de “new literacy studies”. Segundo Kelder (1996), esses estudos foram desenvolvidos

sob uma abordagem que combina um modelo antropológico com um quadro de

questões de ordem sociolinguística, formando um campo de pesquisas que produziu

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farta documentação a respeito dos processos de aquisição e pós-aquisição da

alfabetização em processos escolares e não escolares.

Tais estudos permitiram não apenas problematizar as frágeis bases das

concepções e expectativas ideológicas em torno da alfabetização das décadas anteriores,

como também propor um sem-número de novas questões que paulatinamente foram

incorporadas pelo campo pedagógico, como, por exemplo, problemas de ordem

epistemológica relacionados aos métodos de observação das interações didáticas,

diferentes técnicas de verificação dos níveis de domínio da língua escrita,

desmistificação da eficácia das formas escolares de uso da escrita e ampliação do

entendimento sobre os processos e usos sociais da escrita em comunidades e na vida dos

indivíduos dentro e fora da escola (COOK-GUMPERZ, 1991; STREET, 2003; GRAFF,

1994).

Segundo Street (2003, p.77), essa abordagem “represents a new tradition in

considering the nature of literacy, focusing not so much on acquisition of skills, as in

dominant approaches, but rather on what it means to think of literacy as a social

practice”26

. Para o autor britânico, foi necessário o reconhecimento dos múltiplos

letramentos como um objeto epistêmico que envolve a reflexão sobre as relações de

poder nas práticas de ensino aprendizagem das línguas escritas, configuradas,

sobretudo, na delimitação dos letramentos dominantes e das formas de relação com a

escrita, constituídas como periféricas ou subalternas.

Street problematizou os modelos de alfabetização a partir de duas posições

epistemológicas a respeito da língua e dos usos da escrita. São eles os conceitos de

alfabetização ideológica e autônoma. O paradigma autônomo refere-se à concepção de

que uma alfabetização universalmente tomada como benéfica, destituída de sua

contextualização nos usos sociais, históricos e culturalmente situados seria meramente a

imposição de padrões ocidentais a outras culturas e povos. O modelo das alfabetizações

ideológicas reconhece a variação e a contextualização cultural como pressuposto do tipo

de alfabetização que se oferta, bem como das relações de poder das quais participa. Por

ideológico o autor compreende um tipo de visão de mundo particular que busca se

universalizar em processos de dominação (2003, p.78). Como consequência dessa

26

Tradução nossa: "[...] representa uma nova tradição ao considerar a natureza do letramento, dando

enfoque não tanto à aquisição de habilidades, como nas abordagens dominantes, mas antes ao que

significa pensar o letramento como uma prática social."

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116

perspectiva, toda alfabetização está fincada em concepções “verdadeiras” de mundo que

buscam se afirmar diante de outras formas.

No Brasil, o acoplamento da alfabetização à escolarização de pessoas adultas se

deu no marco do argumento sobre a universalização do “direito à educação”. Os

enunciados que defendem tal perspectiva remetem à concepção de que a “alfabetização

é a porta de entrada da escolarização”. Isso significa que lutamos para garantir um

direito mais substancial e resistir à política do precário configurada na racionalidade das

campanhas, mas, simultaneamente, estivemos contribuindo para a inserção das

populações adultas não alfabetizadas no regime de normalização do acesso ao saber da

escrita e outros saberes correlatos. Sem conseguir uma mudança estratégica nos modos

de realização da escola de adultos (na estratégia política que a faz funcionar), o que

obtivemos como resultado parece ser a evasão como marca discursiva da EJA, os

índices elevados de analfabetismo funcional, a baixíssima taxa de aprovação e

certificação escolar nas etapas do ensino fundamental em EJA, e o esvaziamento de uma

lógica de rebeldia popular que virtualmente as pedagogias críticas tencionavam

produzir.

Ao longo do século XX, a escolarização assume o patamar de prática

legitimadora da inserção do sujeito na vida social e da sua inscrição na esfera do

trabalho. Com as mudanças proporcionadas pela reestruturação estratégica da relação

capital-trabalho observadas nos últimos 50 anos, as práticas de escolarização ficam à

deriva na oferta de integração social e moral dos indivíduos à ordem social. Com a

assunção do paradigma das sociedades cognitivas e a produção da lógica de produção

do capital social individual configurada no discurso da aprendizagem ao longo da vida,

os argumentos sobre participação na vida social e promoção do desenvolvimento

comunitário também ficam ampla e, estrategicamente, deslocados.

Esse cenário aponta para uma remodelação daquelas finalidades das práticas de

escolarização, agora num cenário biopolítico. Se antes o discurso da moralização de

uma sociedade ou de integração à ordem econômico-social parecia suficiente inclusive

para construir o processo de legitimação da sociedade escolarizada, o que nos resta hoje

é unicamente a face biopolítica da escolarização, quando direcionada a populações em

condições sociais de inscrição subalterna.

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O debate sobre escolarização de adultos se avolumou no Brasil a partir da

promulgação da LDB 9394/96, que finalmente reconheceu de forma substantiva o

acesso das pessoas adultas à escolarização e não apenas aos processos alfabetizatórios.

Quando, em fins da década de 1990, o educador pernambucano João Francisco

de Souza, juntamente com uma extensa equipe de colaboradores, cunhou uma proposta

mais abrangente de educação popular para a escola pública, o processo de escolarização

de pessoas adultas ainda não se encontrava consolidado no País. Embora garantido pela

então recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o projeto de

escolarização oficial de jovens e adultos não se encontrava concretizado em âmbito

nacional.

Nesse momento, a assim chamada Educação de Jovens e Adultos passou a ser o

tema central do Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação de Jovens e

Adultos e Educação Popular (NUPEP), da Universidade Federal de Pernambuco,

dirigido pelo professor João Francisco de Souza. O Nupep, através da participação

direta de professores e professoras da Educação de Adultos, iniciou a elaboração de uma

proposta pedagógica voltada para a escolarização daquele público. As bases dessa

proposta eram as concepções freirianas de diálogo, cultura e inacabamento, articuladas

num arcabouço teórico que assumiu, a partir da síntese própria de Souza, o conceito de

Ressocialização como fundamento.

A Ressocialização, a despeito do que podem pensar as pessoas que atuam hoje

no campo da educação prisional ou da saúde mental, não se refere à reinserção do

sujeito na vida social após um hiato de convivência. É um conceito, refletido também a

partir da leitura detalhada de Freire, que remete à abertura ontológica da pessoa humana

como ser aprendente, em permanente processo de desenvolvimento de suas capacidades

e possibilidades. Mais do que o retorno após uma ruptura, está vinculado à percepção

das contínuas vivências do sujeito que se aprofundam em sua experiência do social e

para as quais a escola poderia dar alguma contribuição, desde sua tarefa central. A tese

de Souza é que a escolarização de adultos poderia contribuir para “os processos de

socialização que vamos experimentar ao longo de nossa existência, depois do processo

vivido na primeira infância” (2000, p.101). O papel da escola, ou dos saberes e práticas

escolares, nesse processo, é propiciar experiências de recognição e de reinvenção, ou

seja, mudanças nas formas de pensar e de agir sobre o mundo. Segundo Souza, se estes

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dois processos foram vivenciados, o sujeito reconstrói sua inserção na vida social e se

ressocializa.

Partindo de um comprometimento com as lutas populares e com a classe

trabalhadora, Souza acompanha a compreensão dos educadores da década de 1980/90

pela qual a escolarização das classes trabalhadoras assume papel estratégico na luta de

classes. O tema gerador dessa fase é justamente a “escola pública de qualidade para

todos”. Já não é mais o analfabetismo a questão, embora ainda seja um problema àquela

altura, mas o direito à educação, que passa a ser compreendido como direito à escola de

qualidade, gratuita e universal. Nessa perspectiva, Souza considera que a educação

escolar pode se configurar numa síntese melhorada do modelo bancário de escola a

partir das contribuições da Educação Popular.

A Educação Popular como pedagogia, práxis e utopia, como narrativa

libertadora, está associada ao ideário emancipatório da modernidade e se vincula à

proposta de conversão a partir de noções em que a ideia de conscientização é

lateralmente localizada e assume maior relevo o tema do diálogo cultural como prática

de humanização. Dessa forma, Souza incorpora em sua problematização as questões da

multi/interculturalidade e propõe à escola ser o espaço mediador onde as questões da

identidade e da diferença devam ser enfrentadas e debatidas. Para o autor, a educação de

pessoas adultas contempla tanto as práticas escolares quanto não escolares, sendo a

Educação de Jovens e Adultos sua “feição escolarizada”:

A EJA, assegurada como direito subjetivo do cidadão e dever do

Estado, pode ser conceituada como processos e experiências de

ressocialização (recognição e reinvenção) de jovens e adultos, através

dos conhecimentos escolares orientados a aumentar e consolidar

capacidades individuais e coletivas dos sujeitos populares mediante a

promoção e recriação de valores, a produção, apropriação e aplicação

de conhecimentos que permitam o desenvolvimento de propostas

mobilizadoras capazes de contribuir para a transformação da realidade

natural e cultural dos seus sujeitos. (2007, p.176).

Discutindo os problemas da implantação da escolarização para adultos como

parte da educação básica na década de 1990, Souza e seus colaboradores tecem uma

proposta que abandona o discurso da conversão pela escola e compreende a Educação

Escolar de forma mais estratégica como uma prática que busca menos transformar o

sujeito em outro, que ampliar as possibilidades dos sujeitos tais e quais. Menos

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messiânica e menos populista, portanto, e mais realista, ao tempo em que convive

tranquilamente com enunciados em que a finalidade última da Educação de Adultos é

compreendida como “contribuir para a construção da humanidade do ser humano em

todas as suas dimensões e âmbitos” (SOUZA, 2007, p.166).

Trata-se de uma proposta de ação mais realista, pois abandona o discurso sobre a

metanoia do sujeito e assume a tarefa da escolarização como “práxis pedagógica escolar

com pessoas jovens e adultas que não tenham conseguido se escolarizar no nível do

Ensino Fundamental e do Ensino Médio ― ou se encontrem subescolarizadas ― para

que consigam ampliar suas capacidades decisórias, técnicas, éticas, estéticas, políticas,

intelectuais; numa palavra, construam sua competência humana.” (SOUZA, 2007,

p.177).

Essa proposta, apesar de ter sido vivenciada como prática concreta em escolas de

diferentes regiões do Estado de Pernambuco ao longo dos últimos 20 anos, de ter sido

concretizada em coleções de materiais didáticos e numa ampla produção científica

relacionada aos seus pressupostos, não chegou a circular no âmbito nacional. Talvez a

inscrição regional do seu coordenador, talvez o seu desaparecimento precoce tenham

contribuído para esse fato. Mas, consideramos que o diagrama de poder em torno da

EJA, tal como vem sendo hegemonicamente vivenciado, não vem permitindo que

experiências como aquela sejam incorporadas pelas práticas de escolarização.

O tema da emancipação acompanha as práticas de educação desde o iluminismo,

estando fincado na própria concepção de saber que sustenta esse momento do

pensamento ocidental: a ideia de que a razão salva ou liberta da escuridão ou da

ignorância. Simultaneamente ao processo de laicização da escrita, que por sua vez

acompanha a construção do espaço social dividido entre público e privado, oferece as

bases para uma economia de mercado liberada do poder irrestrito do soberano, a ideia

de emancipação obtém sua formulação mais divulgada através das proposições de Karl

Marx, nas quais a emancipação se dá através de um sujeito histórico que reúne em si as

condições e motivações da transformação: a classe operária e seu correspondente

partido.

É por essa formulação que o campo conhecido como campo crítico da educação

aciona a ideia de que escola emancipa ou liberta, além de ser sob esses mesmos

fundamentos que o povo se torna esse sujeito que precisa ser emancipado ou libertado.

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O povo é o sujeito histórico atingido pela opressão e pela exploração. Se numa primeira

versão era a instrução básica e posteriormente foi a educação básica como necessidade,

o que se coloca é a produção de um argumento geral de defesa da legitimidade da

educação escolar, ainda que durante toda a segunda metade do século XX a sociologia

da educação tenha se dedicado a mostrar os descaminhos dessa instituição, suas faces

ocultas, suas produtividades constrangedoras, suas exclusões.

Quando retomamos nesta tese o princípio da emancipação pela educação escolar

e a colocamos em suspensão reflexiva, estamos querendo novamente retomar a questão

sobre a efetividade de tal prática, sua abrangente potência junto às sociedades e

considerar, inclusive, seu fracasso histórico na produção dessa emancipação.

Observamos que a ampla legitimidade dessa prática, e do processo de escolarização que

lhe dá forma institucional, impede que outras formas de educação e produção de sujeitos

sejam vivenciadas. É por esta razão que levamos adiante o intento de produzir uma tese

em que a esperada escolarização de adultos, depois de sua conquista jurídica e

institucional, pedagógica e socialmente legitimada, mostra-se mais uma vez como

escola que exclui, que mantém a clivagem social entre os que sabem e os que não

sabem, como escola que subjetiva na direção de uma subalternidade política, social e

econômica.

No interior dessa reflexão repousa o argumento de que a escrita, e as formas de

conhecimento a ela relacionadas, como os saberes escolares, são formas poderosas de

saber, necessárias para a experiência social dos indivíduos. Porém, necessárias para

aqueles que reconhecem nela esse poder e a desejam. É salutar imaginar que há pessoas,

não poucas, para quem a experiência escolar não faça a mínima diferença em suas vidas.

Isso não só é possível, como talvez seja muito mais comum do que parece, haja vista a

quantidade enorme de pessoas que vivencia a escola por alguns anos e depois se

ausenta, e não retorna, seguindo suas vidas, que imaginamos cheias de dificuldades em

virtude dessa escolha.

A não frequência a uma escola pode ser uma escolha, e defendemos que é

escolha para muitos. Excluídas as possibilidades emancipatórias da educação escolar, e

suas possibilidades meramente reprodutivas, no contexto em que vivemos, no qual a

exclusão é uma experiência produzida de forma identitária, bem como econômica, em

que a crise estrutural do capitalismo tem como uma de suas premissas a crise

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fundamental do emprego, em que a participação política é mediada por uma série de

mecanismos que se tornam mais e mais rarefeitos e dispersos, o que resta à escola

oferecer às pessoas jovens e adultas? Sua subjetivação como “desnecessários” numa

ordem social sem teleologia?

A regulação das populações é um aspecto desse cenário, não sua única matriz,

ou sua fórmula geral, mas uma das faces necessárias à governamentalidade diante de

massas de sujeitos a quem o poder precisa oferecer algum tipo de verdade. Uma terceira

opção é a deserção. Desertar é mais do que abandonar e mais do que fugir. Desertar é

assumir um movimento de não integração ao que está posto, é abjurar o vínculo. Quiçá

a evasão escolar da EJA seja uma forma de deserção.

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PARTE II

TECNOLOGIAS BIOPOLÍTICAS DA ESCOLARIZAÇÃO DE ADULTOS

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123

INTRODUÇÃO: secularização e normalização da escrita

Abalar a alma para que o ouvinte aja

em conformidade com a convicção

que lhe foi comunicada.27

Em seu opúsculo Regras para o parque humano, o filósofo alemão Peter

Sloterdijk (2000, p.10) analisa a função da escrita na formação do humanismo ocidental

como elemento central de uma “seita ou clube – o sonho da predestinada solidariedade

dos que foram eleitos para saber ler”. A divisão da sociedade entre dois corpos ―

analfabetos e alfabetizados ― contemporaneamente já foi problematizada pelo avanço

nos estudos sobre oralidade e escrita, bem como pelo aprofundamento do saber a

respeito do cotidiano de sujeitos não alfabetizados. Compreende-se hoje o

analfabetismo e o alfabetismo não como estados absolutos de ignorância e

conhecimento, mas como diferentes posições na aquisição e uso social da tecnologia da

escrita. Tecnicamente, numa sociedade grafocêntrica, todas as pessoas desenvolvem

estratégias de uso da escrita, ainda que não dominem as regras de funcionamento do

sistema de notação alfabética e seus desdobramentos.

Portanto, a separação da sociedade entre alfabetizados e não alfabetizados

constitui um problema da ordem das relações de poder e não de uma ordem estritamente

técnica ou cognitiva. Para Sloterdijk, o modelo filosófico que toma a escrita como

elemento constitutivo das relações de amizade intelectual serviu de base para as nossas

instituições modernas. O autor, ao problematizar o papel político da escrita, está

produzindo uma crítica ao humanismo ocidental, cujo tema latente, segundo ele, é que

“as boas leituras conduzem à domesticação” (2000, p. 17).

O humanismo literário apresenta-se como uma ferramenta de domesticação do

sujeito, de modo que sua vida moral seja contida pelo exemplo, pela disciplina e pela

lei. Além disso, o humanismo se constitui como um convencimento ininterrupto pela

assunção de um modo de vida específico universalizado como norma. Essa atividade

ininterrupta autoriza uma constante produção de lugares para a diferença, que é

incorporada e mantida sob as ordens do civilizatório, do progresso e por fim do

27

Perelman, 1999.

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desenvolvimento. É importante salientar que esse texto de Sloterdijk é um comentário à

clássica Carta sobre o Humanismo (1967), de Heidegger, na qual o humano é definido

como um pastor do ser, habitante da morada do ser que é a linguagem. Para Sloterdijk,

no entanto, essa habitação do homem coincide como seu sedentarismo e com a

domesticação dos animais, fato que esse autor considera um evento biopolítico. A partir

de Nietzsche, ele questiona os vários processos de produção dos humanos, as

antropotécnicas que podem contribuir para inibir ou desinibir, processos para os quais o

discurso do humanismo quase sempre dá sua contribuição domesticadora. Nesse

sentido,

A própria cultura da escrita produziu – até a alfabetização universal

recentemente imposta – fortes efeitos seletivos: ela fraturou

profundamente as sociedades que a hospedavam e cavou entre as

pessoas letradas e iletradas um fosso cuja intransponibilidade alcançou

quase a rigidez de uma diferença de espécie. Se quiséssemos,

contrariamente às advertências de Heidegger, falar mais uma vez em

termos antropológicos, os homens dos tempos históricos poderiam ser

definidos como aqueles animais dos quais alguns sabem ler e escrever

e outros não. (SLOTERDIJK, 2000, p.44).

De modo que essa discussão nos traz de volta ao problema biopolítico do

controle das condutas da população de pessoas não alfabetizadas. Controle que se

exerce por várias técnicas voltadas ao humano, que Sloterdijk chama de antropotécnicas

e Foucault chama de governamentalidades. Dentre elas, a educação escolarizada é

fincada sobre aquela distinção inicial do humanismo, entre os amigos da escrita e seus

párias, diferença que além de distinção produz subalternidades (ou diferenciação

hierárquica), porque existe, segundo ainda Sloterdijk28

(2000, p.50), sob “o ponto cego

de todas as pedagogias e políticas de alta cultura – a presente desigualdade dos seres

humanos quanto ao conhecimento que gera poder"29

.

A história do poder da escrita tem uma longa trajetória, e não pretendemos aqui

retomá-la, mas um vislumbre pelo processo que relaciona a aquisição da escrita com os

problemas da população enquanto uma questão de Estado pode ser útil para a

compreensão das Tecnologias do Constrangimento e do Abandono que acompanham a

administração social das populações não alfabetizadas.

28

Mas, como já vem afirmando toda uma teoria crítica e pós-crítica do currículo. 29

O conhecimento poderoso de que falamos anteriormente.

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A escrita assume um lugar de crescente poder nas sociedades ocidentais desde o

fim do medievo, sendo a alfabetização paulatinamente incorporada ao ideário ocidental,

primeiramente da civilização (entre os séculos XVII, XVIII e XIX), posteriormente do

desenvolvimento (século XX) como um bem de tal modo inquestionável a ponto de a

ideia de alfabetização plena ser considerada quase um dogma e uma condição para o

bem viver dos indivíduos e das sociedades.

A alfabetização das massas tornou-se uma necessidade para ampliação do

sistema econômico inspirado pelos ideais liberais (mais tarde neoliberais) que

acompanhou esse lento caminho de sua dogmatização como bem simbólico,

perpassando processos coloniais de dominação cultural e econômica. De sua

divinização, associada aos textos sagrados das religiões coloniais, à sua inscrição como

mercadoria no contexto das economias neoliberais, a secularização30

da escrita

(ZUMTHOR, 1993) é um fenômeno que se deu lentamente através dos processos que

constituíram o Ocidente como referência universalizada de vida e de organização social,

cultural e política.

Como informa Zumthor, a palavra esteve por toda a Idade Média associada à

autoridade e, a partir desta, à verdade. Pela boca dos clérigos, dos professores ou dos

juristas, a palavra verdadeira fluía oralmente para a audição das populações: “o

pregador contribuirá para difundi-la junto a uma população que lhe é estranha e para

integrar setores inteiros desta nas tradições orais” (1993, p.78). O aspecto mágico e

misterioso da palavra, associada à força criadora, estrategicamente vinculada à imagem

do criador do universo, fonte de toda cosmogonia, é explorado sabiamente como

instrumento de produção da obediência.

Os movimentos desertores desse exercício contínuo da dominação clerical são

justamente, na visão de Zumthor, os nomadismos que irrompem na Europa até mais ou

menos o século XVI. Esses deslocamentos são detidos pela existência das cidades e pela

concentração das populações nesses espaços cada vez mais controlados e planejados. O

momento de produção da razão de Estado, das novas artes de governar, coincide com a

alteração de uma polaridade entre a palavra oral e a escrita, colocando esta última no

patamar de uma tecnologia de fundamental importância para o mundo pós-medieval. O

cenário é conhecido pelos estudiosos da reflexão disciplinar e biopolítica foucaultiana:

30

Secularização refere-se ao processo pelo qual a escrita deixou de ser uma exclusividade dos grupos

clericais e passa a ser objeto de aquisição ampla e desvinculada da religião.

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As cidades são filhas da escrita. Em torno delas se reconstruíram

muralhas ou ergueram-se outras, às vezes concentricamente, como em

Paris, na proporção do crescimento da população. Essas paredes,

porém, recortam o mundo em “dentro” e “fora”, rejeitam os

marginais, excluídos por algum tempo ou por natureza, ou tidos como

perigosos, miseráveis, lascivos, mulheres da vida ou leprosos, e outros

subjugados, mas úteis, mantidos a uma distância salubre, como os

judeus e os “lombardos”. (ZUMTHOR, 1993, p.93).

Compartilhando esse mundo, a técnica da escrita também se comportou como

uma muralha, e o caráter mágico e verdadeiro da palavra proferida é assumido pela

palavra escrita que, além de tudo, carregava consigo o aspecto de um código, de um

mistério a mais consignado pela natureza do seu uso através de uma técnica pouco

acessível: “A palavra francesa grimoire, que designa alguma receita de bruxaria, vem do

latim grammatica; e o termo inglês, de origem dialetal escocesa, glamour (“encanto”,

primitivamente no sentido mais forte) tem a mesma etimologia” (ZUMTHOR, 1993, p.

113). O aspecto mágico da escrita não passou despercebido dos governos e, como toda

forma de poder, também passou a ser alvo do desejo dos governados.

Esses traços, que parecem não ser mais tão relevantes nos dias atuais, falam da

proveniência da racionalidade em torno do acesso à escrita, que governa as práticas de

promoção da escolarização baseadas no argumento da alfabetização plena. É esse lugar

de verdade ocupado pela escrita que autoriza os Estados e outras instituições a serem

mais demandatários da alfabetização que os próprios sujeitos não alfabetizados nas

línguas escritas de matriz colonial.

Do ponto de vista da governamentalização das populações não alfabetizadas, a

cultura da alfabetização plena e consequentemente da escolarização de adultos é ativada

tanto por mecanismos sutis produtores de subjetivação, quanto por mecanismos de

grande porte remetidos às populações. Dentre os primeiros, a crença muito arraigada de

que o acesso ao conhecimento escrito produz uma forma de domesticação do selvagem

potencial alocado em cada um/a de nós. Conforme estudou Foucault (2010, p. 321) a

respeito das práticas de si: “É escrevendo, justamente, que assimilamos a própria coisa

na qual se pensa. Nós a ajudamos a implantar-se na alma, a implantar-se no corpo, a

tornar-se como que uma espécie de hábito ou em todo caso de virtualidade física.”

Logo, primariamente, e no processo de produção das formas pré-modernas de

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subjetivação, atravessando mesmo todo o período da história antiga e medievo, vê-se o

quão arraigada, profunda e antiga é a crença no papel civilizador do exercício da escrita.

O outro aspecto relevante é que a modernidade, e seus desdobramentos ao longo

do século XX, criou uma hipertrofia dos sistemas de dominação, profissionalizando e

ampliando o raio de intervenção desde o nível territorial dos Estados-nação até alcançar

lógicas como as que permitem falar em uma “população mundial”. A amplificação da

ciência estatística, ao lado da melhoria das bases tecnológicas de tratamento de dados,

permitiu a produção de informações detalhadas sobre a “população mundial” de

analfabetos, pelas quais sabemos hoje, por exemplo, que dois terços estão no

Hemisfério Sul ou que dois terços são mulheres e meninas. Os sistemas escolares

criados nesse contexto foram encarregados da gestão dessa população e de sua inserção

num patamar de “desenvolvimento” que inclui a sua alfabetização e escolarização

básica. As escolas ocupam o lugar institucional onde o poder espera operar sobre os

sujeitos através da escrita.

Desse modo, as práticas dirigidas ao sujeito e as práticas dirigidas à população

se ocupam da produção ininterrupta dessa biopolítica em que a vida é interceptada pela

escrita através da escola. No Brasil, essas questões se associam ao racismo estrutural

contra as pessoas negras e ao colonialismo impregnado na forma de pensar da

sociedade, produzindo algumas estratégias peculiares de governamento. Selecionamos

dois modos de funcionamento desses dispositivos para progredir com nossa

argumentação em torno da biopolítica da educação escolar de pessoas adultas. As

políticas discursivas aqui enfocadas representam dois aspectos das estratégias investidas

pelo poder no processo de governamentalização das populações adultas não

alfabetizadas.

As práticas aqui analisadas como tecnologias de poder correspondem a dois

agrupamentos. O primeiro refere-se às estratégias de produção de uma enunciação

social do analfabetismo e da pessoa não alfabetizada, constituindo uma Tecnologia do

Constrangimento dirigida ao sujeito e mediada pelas táticas da metanoia e da vergonha.

A Tecnologia do Constrangimento é uma curva de enunciação que torna possível a

teratologia31

da pessoa não alfabetizada, a sua constituição como anormal em relação à

norma discursiva que legitima a escrita como conhecimento dotado de prestígio nas

31

Teratotogia: o estudo da anomalia.

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sociedades modernas. O segundo conjunto é uma Tecnologia do Abandono, que

interpela a multidão a inserir-se no espaço biopolítico da escolarização. Uma vez

integrada a esse processo social, a multidão passa a ser administrável, condutível,

abandonada à força da lei e, logo, tornada visível enquanto população governada. A

tática local que operacionaliza a Tecnologia do Abandono é a precariedade, e será

evidenciada especificamente em discursos e práticas da escola regular.

Estas tecnologias são operadoras da ação do Estado governamentalizado no

campo da Educação de Adultos. Governamentalidade é o termo utilizado por Foucault

para descrever uma nova forma de poder configurada pela articulação das técnicas de si

com as técnicas de conduta do outro. Esse conjunto resulta naquilo que ele chamou a

“arte de governar”. Segundo Rose (2000, p.19), os estudos de governamentalidade, ou

de análise biopolítica, dedicam-se a compreender as condições de possibilidade e de

inteligibilidade pelas quais se constituem certos modos de atuar sobre a conduta dos

outros mediante certas finalidades. É por esse tipo de cálculo que podemos falar de uma

razão de Estado e de uma racionalidade que não se restringe às ações especificamente

estatais, espraiando-se em diversos enunciados, práticas ou estratégias. Isso se dá, ainda

segundo Rose, porque o Estado não é uma entidade homogênea, mas um discurso

interceptado por outros discursos, sejam eles científicos ou morais, etc.

A análise do poder em Foucault não se ocupa da sua definição nem da

substancialidade do fenômeno, mas das práticas que constituem relações de poder. As

práticas são formas de regularidade constituídas pelas epistemes, que são as práticas

discursivas, e pelos dispositivos, que são as relações de poder (CASTRO, 2009). O

poder compreendido como tática e estratégia constitui uma tecnologia. A função tática é

identificada com os meios, e a estratégica com os fins. As tecnologias são

especificamente um modo de constituir uma verdade em relação ao sujeito, seja ela uma

verdade sobre o corpo, ou seja, uma disciplina; uma verdade sobre a população, uma

biopolítica; e ainda uma verdade sobre o si mesmo, uma ética.

A rede é formada por discursos, práticas, crenças, documentos, compondo um

arquivo extenso sobre o qual realizamos recortes e examinamos detalhadamente alguns

elementos. Entre esses elementos não há uma racionalidade no sentido dialético, em que

se pode configurar uma síntese superadora a partir das contradições encontradas.

Realmente não poderemos chamar de contraditórias as forças que alinham os diversos

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objetos ora analisados, ainda que situações contraditórias sejam encontradas em regimes

discursivos locais no interior dos dispositivos. Chamaremos a essas relações de “linhas

de força”, conforme a terminologia foucaultiana informada por Deleuze (1999).

As linhas de força dividem-se entre linhas de visibilidade e linhas de enunciação.

As linhas de visibilidade representam o regime de luz que atua sobre os objetos e as

linhas de enunciação, sobre o regime do dizer. Aquilo que pode ser visto, dadas as

condições postas entre as relações de poder constituídas no fenômeno em análise, ou

aquilo que pode ser dito, em formações históricas com as quais o dispositivo entra em

contato.

Dessa forma, a possibilidade de se falar da pessoa não alfabetizada na chave da

ignorância é a regularidade que permite que essa ignorância seja a própria matriz do

exercício do poder. A linha de enunciação denota quem pode falar e, nesse caso, quem

pode falar do analfabeto, antes dele próprio, é a população letrada nas línguas de origem

europeia. A regularidade do dizer sobre o analfabetismo é uma linha de força que

articula o Estado e suas instituições, autorizando outros agentes como o INEP32

, que por

sua vez produz informação que legitima, suporta e fortalece o Estado em suas ações de

governo da educação escolarizada.

Os dizeres sobre o analfabetismo sofreram mutações e foram adequando-se a

novas formações históricas, determinando pontos em que as relações de poder se tornam

visivelmente singularizadas, disponíveis diríamos, para uma abordagem. Por exemplo,

as ações alfabetizatórias, por precisarem mover-se em direção aos sujeitos, demovê-los

de outras práticas para trazê-los à escola, têm nas ações de “mobilização” um dos focos

centrais de suas atividades. A palavra “mobilizar” descreve a interpelação por parte das

ações de governo, aos sujeitos não alfabetizados, convocando-os para inserirem-se na

Educação Escolar.

No processo de mobilização, uma diversidade de argumentos é levantada para

justificar, aos olhos dos sujeitos, a necessidade, a positividade, o valor de alfabetizar-se.

Isso ocorre porque o processo de alfabetização está constituído atualmente como

“direito social”, significando que o Estado não pode “obrigar” o sujeito adulto a

alfabetizar-se ou escolarizar-se. Mas, como o Estado precisa dessa alfabetização, ele

32

Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, órgão do Ministério da

Educação responsável pela elaboração de estatísticas sobre a educação.

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130

envida esforços nos processos de mobilização no âmbito das campanhas

contemporâneas. Essas atividades são realizadas pelas alfabetizadoras e alfabetizadores,

educadoras populares encarregadas de arregimentar os batalhões de analfabetos da

nação para o ambiente das práticas de escolarização.

A campanha é, assim, um cenário de argumentações das mais diversas em torno

à alfabetização. Referimo-nos à campanha não apenas para trazer, ao debate desta

pesquisa, o fato de que adultos não alfabetizados demandam pouco a alfabetização

espontaneamente. Sobretudo, a campanha é a materialidade da retórica social em torno à

escolarização de pessoas adultas e sua alfabetização.

A retórica é, segundo Perelman (1997, p.83), “uma lógica dos juízos de valor”,

um gênero argumentativo do discurso, cuja relação com a verdade se estabelece não

mediante provas evidentes desde a aplicação de um método (como na dialética), mas a

partir de argumentos que buscam, sobretudo, a adesão do ouvinte à tese apresentada. A

retórica age por convencimento. A argumentação está baseada no fato de que os sujeitos

compõem, em relação ao orador, uma comunidade, e o discurso retórico atua

sedimentando o campo dos juízos de valor que instituem essa base comum entre

audiência e orador. Ocorre que a retórica, na perspectiva de Perelman, não se ocupa dos

argumentos construídos com valor de verdade, mas com argumentos que ocupam o

lugar do verdadeiro para produzir o convencimento. Nesta perspectiva, também o

discurso baseado na lógica seria composto por juízos de valor e, ao fim, seria uma

prática discursiva como outra qualquer.

Outra característica do discurso epidíctico que caracteriza as práticas discursivas

retóricas, além do fato de serem discursos de “elogio ou censura”, é a exigência de

legitimidade por parte do orador para realizar tal discurso: “para pronunciar o discurso

epidíctico, que pode conferir-lhe essa glória, o orador já deverá ter prestígio prévio,

prestígio devido à sua pessoa ou à sua função” (PERELMAN, 1997, p. 68). Porém,

além do prestígio que confere autoridade ao autor, tal gênero de oratória só se legitima

se tiver outra função, ou seja, um discurso de exortação a algum benefício. Este só

amplia a legitimidade de quem fala porque possui outra finalidade, que é o benefício ao

que vem sendo exortado.

Por um mecanismo similar atua o discurso da alfabetização na biopolítica da

escolarização de adultos. Nesse sentido, referimo-nos à imagem da campanha como

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131

uma alegoria, inscrita numa discursividade retórica33

, para podermos falar do diagrama

de poder que relaciona sujeitos não alfabetizados na ordem do discurso escolar e que

inscreve a vida dessa população em processos de escolarização.

Estamos usando a imagem de um diagrama, proposta por Deleuze em suas

leituras de Foucault, como imagem das relações que estamos a descrever no presente

estudo, em que fazemos a leitura da escolarização de adultos como uma biopolítica.

Nesse sentido, afirmamos que o dispositivo em análise apresenta duas linhas de força

principais que articulam os diversos pontos traçados das relações estratégicas descritas.

Veremos em seguida o que significam as denominações “constrangimento” e

“abandono” para o entendimento de uma racionalidade que tenciona governar uma

população não alfabetizada, inserindo-a na escola.

O estudo das tecnologias de governo trabalha num caminho que foi tecido por

Foucault entre a analítica da governamentalidade e a analítica da subjetivação,

transitando de uma noção em que o poder é estudado como relação de conduta do outro

para as noções em que a conduta de si está implicada com os mecanismos de controle.

As tecnologias do constrangimento e do abandono encontram suas ancoragens

em aparatos institucionais em torno da questão da Educação de Adultos. No primeiro

arquivo, trabalhamos com os enunciados do constrangimento, aqueles que promovem a

vergonha e a salvação como argumentos para o sujeito escolarizar-se. No segundo

arquivo, mostramos os enunciados do abandono que produzem a experiência escolar

através da precariedade, configuradas no dispositivo da campanha.

33

O pesquisador francês Bernard Lahire, que tem uma vasta produção no campo da sociologia da

educação, já havia feito referência à discursividade da alfabetização, no caso específico francês,

utilizando a referência ao comportamento retórico dessa discursividade. No artigo “Rhetorique de

l’illetrisme” (1998), ele analisa a forma como a questão do analfabetismo foi construída como um

problema social e mesmo de “segurança nacional”.

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CAPÍTULO 3.

A VERGONHA E A CONVERSÃO: A ENUNCIAÇÃO DO

CONSTRANGIMENTO

No campo da educação, remetido ao processo de produção do analfabetismo

como um objeto cultural, o constrangimento acumula, sedimenta, refina e aprofunda as

práticas de sustentação do racismo estruturante. O constrangimento é uma das marcas

da experiência da pessoa não alfabetizada na sociedade brasileira. Foi através do

constrangimento que o analfabetismo se instalou na experiência de toda a sociedade

como um “mal a ser erradicado” e como “vergonha nacional”. O constrangimento é a

linha de força do dispositivo da escolarização para fazer com que o próprio sujeito não

alfabetizado buscasse inserir-se na ordem do discurso escolar. É uma tecnologia de

subjetivação refinada, produtora de “verdades” que alinham a noção de analfabeto à

noção de ignorante, "burro" e incapaz. Por isso, neste estudo, o constrangimento é

tratado como uma tecnologia envolvida nos discursos da governamentalidade da EJA.

Etimologicamente a palavra constranger deriva do latim constringere, que

significa “ligar em conjunto apertadamente, amarrar, encadear, conter, reprimir,

aguentar, suspender” (MACHADO, 1959, p.216). Refere-se, portanto, a algo que é

limitado por uma força, uma situação, que leva algo ou alguém a ter suas ações

restringidas em virtude de algum princípio externo. O constrangimento é o substantivo

que remete a essa ação, sendo portador de outros traços de sentido, sendo o seu uso

atual na língua portuguesa referente a uma situação vexatória. “Passar um

constrangimento” significa também “passar uma vergonha”, no uso cotidiano e informal

da língua. Logo, constranger, ao limitar uma ação, implica, para aquele a quem a ação

foi limitada, passar por uma situação vergonhosa.

Vamos acionar a ideia de liberdade ao pensarmos sobre o constrangimento. Ao

se ter um conjunto “bem amarrado” e colocando-se em condição de “vergonha” aquele

que teve sua ação restringida, produz-se um constrangimento. Ser constrangido significa

duplamente ser colocado na condição de objeto de ações alheias, ora por limitação da

ação do sujeito, ora pela repressão simbólica sobre quem é alvo dessa condição. Ser

constrangido também significa, em alguns contextos discursivos, ser “instado” a agir

conforme posições determinadas por outrem. É, portanto, um tipo de atividade dirigida

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contra a liberdade de alguém ou de um grupo por uma força externa a esse grupo ou

indivíduo. Constrangimento é atividade política, na medida em que, apropriando-se de

significados dispersos na cultura, faz uma síntese específica, por sua vez direcionada a

limitar a ação de um grupo ou indivíduo, o que demarca o constrangimento na ordem

das relações de poder.

O constrangimento é uma atitude que se volta sobre o sujeito, não apenas

instando-o a agir conforme a determinação alheia, mas localizando-o numa relação de

submissão que lhe captura pela interioridade. Produz uma localização externa, e uma

subjetivação que colabora com essa localização. É um arranjo eficaz na produção de

subjetividades subalternas, alimentadas pela ideia da vergonha. O constrangimento

produz subordinação através da vergonha. A vergonha é esse tipo de situação em que

um sujeito não pode assumir publicamente uma característica ou condição, porque o

padrão de normalidade o coíbe através do chiste, da negação, ou da inferiorização.

A vergonha é uma condição a qual um sujeito é submetido, na condição de

objeto, à opinião de outrem. Ela funciona através do mecanismo da bifurcação da

experiência de si por parte de um sujeito que “desloca sua atenção de si mesmo para o

outro e para como o outro o vê” (DE LA TAILLE, 1999, p.18). A vergonha é um afeto

(DE LA TAILLE, 1999, p.27) que se manifesta sob duas condições: a inferioridade e a

exposição.

A inferioridade é realizada pela dissociação entre uma imagem de si baseada na

confiança e relaxamento e uma imagem projetada em tensão com a confiança. Isso se dá

porque o sujeito adere a um quadro axiológico que condena sua própria imagem (DE

LA TAILLE, 1999, p.29). Esse processo ocorre através de mecanismos de exposição ao

outro, em cadeias de enunciados que produzem os traços de inferioridade

normativamente constituídos. A exposição é o processo responsável pela localização de

determinados traços em determinados sujeitos, e o poder que gera tanto a exposição,

quanto a inferioridade sustentadora da vergonha é legitimado por práticas das mais

sutis, desde a enunciação do analfabetismo como vergonha nacional, até a oferta de

escolarização em tipos de espaços reduzidos, escuros, fechados, com mobiliário

inadaptado, mediada por pronunciamentos e rituais da educação infantilizadora do

adulto.

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No caso da escolarização de adultos, a enunciação da pessoa não alfabetizada

como portadora de uma condição vexatória é ampliada pelo fato de que o discurso da

vergonha é proferido por sujeitos institucionais legitimados. Como informa De La

Taille (1999, p.31): “É bom ressaltar, alguém somente se sente exposto, se considerar

seu espectador legítimo. O sentimento de exposição, portanto, pressupõe, por parte do

sujeito, o reconhecimento da instância que o olha e o julga como legítima.” Portanto,

senhores de engenhos discursivos como deputados na Câmara Federal, prefeitos e

presidentes, educadores e técnicos governamentais representam esse campo de

promotores altamente legitimados de um discurso da vergonha que se dirige

inicialmente à nação e se estende ao sujeito não alfabetizado.

A vergonha como tecnologia de governamento das populações não alfabetizadas

possui a dupla função de ser causa e efeito dos processos de exortação e de

inferiorização da pessoa denominada analfabeta que, no entanto, transita por outros

códigos além da escrita. Os enunciados da vergonha participaram da construção da

demanda social de alfabetização. Os processos de alfabetização das populações adultas

expõem a pessoa não alfabetizada a uma enunciabilidade constrangedora,

permanentemente reforçada, amplamente divulgada, legitimada pelos mais diversos

discursos autorizados, disseminando a experiência dessa “vergonha sem culpa” que as

populações acionadas pela biopolítica da escolarização de adultos parecem carregar.

Comentando Levinas, Agamben (2008, p.109) informa que, para aquele filósofo,

a vergonha advém de uma impossibilidade de “nosso ser de dessolidarizar-se de si

mesmo, na sua absoluta incapacidade de romper consigo próprio.” Como caminhar

numa sociedade de alfabetizados sendo uma pessoa analfabeta? Estamos falando de

uma condição em que um discurso de condenação social irresponsavelmente repetido

reflete-se na vida de pessoas, milhões delas, como algo de que não pode “afastar-se”.

Obviamente, pode afastar-se mediante sua participação no dispositivo, sua aceitação de

outros códigos de vida (a civilidade, a cidadania, a moralidade ensinada pela leitura),

mas não pode tanto, pois o ensino público para jovens e adultos só foi garantido na letra

da lei de forma substancial apenas em 1988.

Neste ponto temos uma encruzilhada onde as tecnologias do abandono e do

constrangimento se cruzam, e elas se cruzam em diversos pontos do diagrama. A

visibilidade da enunciação do analfabetismo como uma chaga social e um mal a ser

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erradicado, e a precariedade do atendimento que deveria ser a vacina a este mal se unem

para manter as populações no lugar do constrangimento, que é um lugar de abandono

sob a lei escrita pelos que dominam a magia da escrita. A potência subjetivante desse

saber/poder é ampla e sua desconstrução problemática.

Da vergonha advêm as táticas bem conhecidas do disfarce, pelas quais as

pessoas não alfabetizadas criaram diversas formas de lidar com seu analfabetismo,

escondendo-o em mímicas de leitura, em argumentos sobre problemas de visão. O

espaço onde essas táticas são desnudadas, postas à vista, é justamente o lugar da escola,

mas também do trabalho e do cotidiano da cidade. Se vai à escola, o adulto não

alfabetizado precisa superar a vergonha de não saber o que a sociedade diz que ele devia

saber, ainda que não tenha tido essa possibilidade anteriormente. Uma vez na escola, ele

é exposto à sua própria história e o circuito do constrangimento pode ser interrompido,

ou ser novamente reforçado através dos dispositivos pedagógicos ali presentes.

Esse movimento de exposição de si para si é formulado por Agamben (2008, p.

110, grifo nosso) como uma dessubjetivação, situação em que algo do sujeito desaba e

ele se faz consciente desse desabamento: “Na vergonha, o sujeito não tem outro

conteúdo senão a própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunha do próprio

desconcerto, da própria perda de si como sujeito.” O que denuncia a violência desse

processo no caso da educação de pessoas adultas é o fato de que essa enunciação

encontrou uma larga aplicação, por um longo tempo, e sustentada por um amplo

conjunto de instituições sociais.

Com esta tese em processo de finalização, um programa da TV Universitária de

Recife, Opinião Pernambuco do dia 25/02, apresentou o problema como uma “triste ou

trágica realidade”. As vidas das pessoas não são trágicas porque não sabem ler, mas por

uma série de outros mecanismos da ordem da economia, da distribuição das riquezas,

dos modos de viver nas cidades. Perguntamos o porquê da continuidade desse tipo de

formulação e as respostas informam sobre a disseminação ampla dessa racionalidade

iluminista que atribui ao conhecimento escrito e escolarizado um valor absoluto e

inquestionável. Também o sentido de eliminação mantém-se como ameaça constante do

discurso social sobre analfabetismo.

Agamben chega à concepção de que a vergonha é uma condição biopolítica. É

uma condição que se produz “entre uma servidão e uma soberania”, com isso quer dizer

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o filósofo que ao saber-se exposto, e exposto diante de si, o sujeito encontra-se numa

relação em que concomitantemente se subjetiva e se dessubjetiva, ao que ele conceitua

como “uma experiência fundamental de ser sujeito” (2008, p.112). Enquanto uma

relação de servidão e soberania, essa subjetivação se dá como ato permeado pelo poder,

no qual ser submetido ao chicote ou à lei é parte da situação que se apresenta. E

novamente, nessa imagem, a Tecnologia do Abandono encontra a Tecnologia do

Constrangimento, pois a visibilidade da exposição do analfabetismo (o caminho

escolhido para essa visibilidade) é consuetudinária das alternativas propostas para a

“solução” do problema: a precariedade e a postergação com que são formuladas as

diversas ferramentas de Educação de Adultos produzidas pelo Estado.

A dessubjetivação é caracterizada, no limite do não alfabetizado, por um

movimento de exterioridade em relação à escrita. Essa exterioridade atravessa o

fenômeno da linguagem como a poesia atravessa o ser do poeta (Agamben, 2008,

p.118). Enquanto o poeta faz a travessia armado com o domínio da técnica, a pessoa

adulta não alfabetizada faz a travessia com outras ferramentas, línguas outras, estranhas

ao ato, e, portanto, não reconhecidas. As razões pelas quais uma forma de exterioridade

é prestigiada e não a outra se explicam pelos jogos de poder entre culturas, pelo

enfrentamento entre formas e tradições culturais que se encontram a partir de condições

coloniais, em que apenas um é sujeito e ao outro resta ser objeto, ou lutar.

A flecha da dessubjetivação pode ser vivenciada por obra de uma busca pessoal,

estética, a partir de um cuidado de si que é o abandono à espessura da linguagem, da

experiência de linguagem tal como a poesia propicia, mas pode ser uma ferramenta do

poder para produzir um lugar de sujeito, constrangendo-o em virtude da sua

exterioridade em relação à técnica.

Ao reduzir a experiência de linguagem do sujeito adulto ao domínio da técnica, a

relação de exterioridade é ignorada como processo de subjetivação e dessubjetivação, de

constituição de si, e acionada como exclusão pela qual é marcada inclusive pelo nível

significante ― an-alfabetizado. O olhar reduzido é a manifestação de uma ignorância

por parte do poder daqueles que o usam para excluir, ignorância sobre aquilo a que pode

se referir a experiência de ser de linguagem das pessoas adultas não alfabetizadas,

manifesta em diversos outros modos de atuar nesse teatro. Tal ignorância não seria, no

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entanto, inocente, apenas um desconhecer, é antes um “virar de costas”, e ao mesmo

tempo uma medida estratégica dirigida a alguns sujeitos tomados como perigosos.

A experiência de dessubjetivação realizada como visibilidade constrangedora da

pessoa não alfabetizada é uma tática que visa à tomada de suas forças, a redução de sua

palavra, o apagamento da outra margem a que pode levar o circuito inteiro em que

subjetivar-se e dessubjetivar-se aufere uma potência ao sujeito. Na relação que a escola

estabelece com o sujeito não alfabetizado se produz uma relação similar àquela que,

segundo Agamben (2008, p.119), “apresenta, portanto, a aporia de uma absoluta

dessubjetivação e ‘barbarização’ do acontecimento de linguagem, no qual o sujeito

falante cede lugar a outro”.

O estranhamento com a linguagem do outro é um limite não atravessado na

relação da escola com o sujeito não alfabetizado. As estratégias são conhecidas: é a

escuta e depois a ressignificação em imagens geradoras sistematizadas e devolvidas ao

educando, é o acolhimento benevolente da história do outro, e depois a tentativa de

oferecer uma nova versão da história, acompanhada pela submissão ao código escrito e

pela alegria de integrar-se ao mundo letrado; é a promoção de uma cultura da filantropia

pela qual o adulto não alfabetizado é exposto como alguém que sofre e sangra, mas que

encontra alegria ao aprender a escrever (apenas) o próprio nome.

O constrangimento é um efeito dos regimes de verdade, que forçam o sujeito a

certo número de atos de verdade (FOUCAULT, 2014, p.85); logo, a exposição do

sujeito enunciado como analfabeto dá-se por uma exortação a que apareça em meio à

multidão e faça visível sua condição de não portador da escrita. Uma vez instalado

nesse circuito, o sujeito torna-se apto a compor uma série de atos de verdade, realizados

a partir dos rituais da escolarização (CARVALHO, 2012).

Além desses fatores de ordem genealógica, o interesse dessa discussão repousa

na inegável atualidade dos enunciados analisados, evidenciada no uso ainda recorrente

de imagens constrangedoras para referir-se ao problema da alfabetização plena da

sociedade. Chamamos a atenção para o fato de que esse discurso refere-se ao problema

como algo intangível, mas incide de forma concreta sobre o sujeito dessa problemática,

a pessoa que carrega a não alfabetização como característica definidora de sua

existência pública. É no encontro desses elementos que a Tecnologia do

Constrangimento encontra sua eficácia: a atualidade do uso desses enunciados, a

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incidência sobre o indivíduo, e o traço de que essa forma de racionalidade encontra

apoio em práticas no âmbito extradiscursivo, como em políticas públicas e práticas

pedagógicas cuja realização é sempre postergada ou precarizada.

O circuito da vergonha expõe assim uma população ao crivo não apenas de uma

exclusão como fenômeno social, mas também reforça, sobretudo, o fenômeno subjetivo

de ser constituído com portador de uma ausência cujo suprimento é simultaneamente

oferecido e negado. Acompanhando a linha de força da vergonha, o segundo elemento

tático da Tecnologia do Constrangimento é a metanoia. Após uma pausa para observar o

funcionamento dos enunciados da vergonha, passaremos ao seu exame.

3.1. A vergonha nacional nos discursos parlamentares sobre alfabetização de

adultos

Os discursos parlamentares carregam os enunciados do senso comum,

amplificados pelo desejo dos deputados em corresponderem às expectativas de setores

da sociedade, ou de se produzirem como portadores da opinião verdadeira sobre

assuntos de interesse nacional. Durante todo o século XX o país esteve mergulhado nas

questões do nacionalismo, discutindo e aprofundando noções sobre sua concepção de

nação.

Os discursos proferidos nesse espaço legislativo de nível federal relacionam-se

com essa ordem discursiva em que são tratados os “temas nacionais”. Sabemos a força

política da ideia de nação e os jogos que ela preside, desde a emergência dessa temática

nos países europeus, o debate sobre quem está contemplado ou não na ideia de nação, o

tipo de mecanismos de exclusão sustentados por essa lógica, desde os processos que

levaram ao massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial até as recentes

políticas (anti) migratórias dos países europeus. Os limites do território primeiramente

geopolítico se desdobram para os limites internos em que o Estado de segurança define

os lugares a serem ocupados pelas populações. Os discursos parlamentares, portanto,

atuam na produção da discursividade que agencia o campo das legalidades fornecidas

pelo Estado, as quais determinam e gerenciam lugares e movimentos.

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Ao disponibilizar uma parte dos discursos proferidos em plenário nestes últimos

setenta anos, a Câmara Federal permite que possamos acessar essa produção e a

memória que ela aciona. O banco de dados do sítio eletrônico da Câmara Federal

disponibiliza discursos proferidos em plenário desde o ano de 1946, sendo, portanto, um

arquivo que nos permite acompanhar a forma como a classe política confere visibilidade

ao problema do analfabetismo praticamente desde sua emergência como questão

nacional (CARLOS, 2008; PAIVA, 2003).

Selecionamos discursos presentes naquele banco de dados a partir dos termos de

busca "analfabetismo", com 996 ocorrências, "alfabetização de adultos", com 15

documentos e "Educação de Jovens e Adultos", com apenas 1 documento catalogado. O

procedimento constou de leitura dos resumos, seleção das peças que se detinham na

discussão do tema, leitura e demarcação de trechos que pronunciam enunciados

relativos às políticas discursivas investigadas na pesquisa. Em seguida, foram

selecionados trechos que participam do regime de enunciabilidade sobre Educação de

Adultos, ou seja, que traduzem as formas pelas quais se pode falar da questão.

Uma grande parte do arquivo selecionado sob o termo de busca “analfabetismo”

refere-se a citações de casos de sucesso do combate ao analfabetismo em municípios ou

estados, elogios ou ataques à política educacional vigente no momento. São comuns os

discursos que tomam como base matérias jornalísticas sobre o tema, evidenciando o

papel da mídia em fazer o agendamento das questões nos âmbitos políticos. Ao citar

esses casos, os parlamentares também se demoram na citação de outros países que já

“lograram êxito” no tratamento da questão ― sempre aberta ― de por que o Brasil não

consegue “vencer este problema”.

Há toda uma seção do arquivo devotada à apresentação de novos projetos, na

qual os parlamentares buscam dar sua “contribuição à resolução do problema”, além de

discursos de questionamento aos Ministros da Educação sobre ações do Ministério na

área da Alfabetização de Adultos. Outro conjunto refere-se à passagem do Dia Nacional

(14 de novembro) e do Dia Internacional da Alfabetização (8 de setembro), com

manifestações de elogio aos programas governamentais, bem como acusações sobre a

permanência e gravidade do problema “apesar dos esforços empreendidos”.

Os textos selecionados para o arquivo são transcrições dos discursos proferidos

em sessões plenárias e se alongam de 1948 a 2014. Procurando dar visibilidade à

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questão das regras sobre o poder dizer do analfabetismo, selecionamos os discursos que

pronunciavam sobre a vergonha, sobre as dificuldades, e demos uma atenção às

propostas, pois estas se relacionam de forma estratégica com a racionalidade biopolítica,

uma vez que falam para alguém, desde o lugar do poder do Estado, numa tribuna oficial

e, nas opções sobre o como dizer, selecionam os enunciados de forma a obter o

convencimento.

Os discursos sobre analfabetismo estão inseridos no âmbito dos grandes temas

nacionais com o início da década de 1940, e as estratégias que conferiram visibilidade

ao tema existiram no interior da questão mais abrangente que negociava as definições

sobre quem e o que era o Brasil de fato. No tocante às questões do analfabetismo e

Educação de Adultos, os discursos parlamentares amplificam visões circulantes e as

fazem transitar no lugar da autoridade legislativa, onde se produzem leis, onde a

normatização da sociedade se faz procedimento especializado.

O pronunciamento disponível mais antigo a referir-se ao analfabetismo adulto

data de 1948 e apresenta o projeto de lei que cria uma curiosa cobrança de multas para

adultos que não se matricularem nas escolas de Ensino Primário. Esse pronunciamento

nos parece uma peça interessante por conjugar, sob as rédeas da benevolência que em

geral acompanha o debate sobre o analfabetismo, alguns enunciados que compartilham

os regimes de visibilidade e de enunciabilidade da questão da alfabetização de adultos.

A proposta apresentada pelo deputado constituinte Aureliano Leite tem por

escopo a cobrança de multas aos responsáveis por crianças e aos adultos que não se

matriculassem nas escolas de ensino primário disponíveis em sua região. As multas

visam a coibir a baixa frequência dos estudantes. Tendo em vista a escassa rede de

educação escolar até então implantada no país, o próprio autor do discurso já adianta

que essa obrigação se aplica aos lugares “onde houver escolas de ensino primário”.

A justificativa apresentada pelo autor do projeto é bastante clara e fala de uma

regularidade ainda hoje presente nas práticas de Educação de Jovens e Adultos: “O

memorial focaliza o fato de se verificarem, no Brasil, fechamentos de escolas, quer

primárias, quer de alfabetização de adultos, por falta de frequência”, e segue “É

lastimoso, se não fosse paradoxal, que esse fenômeno aconteça em nosso país, terra que,

como todos sabem, bate o record no coeficiente de analfabetismo no mundo” (DIÁRIO

DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1948, p.3.247). Percebe-se, nesse pequeno trecho,

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que a diferença entre os dados de analfabetismo e os dados de matrícula, problema da

década de 1940, permanece dotado de impressionante atualidade. E uma das linhas de

força da discursividade que mantém a face biopolítica da Educação de Adultos é

justamente essa atualidade vigorosa de alguns dos seus problemas mais antigos.

A associação salvacionista não tarda a aparecer no texto, em geral associada à

dualidade bem e mal: “acho, todavia, que poderemos, com as medidas consubstanciadas

na proposição que apresentei, atenuar o mal, suavizando esse estado de coisas de que o

Brasil sofre de longa data.”. A multa para adultos entre 14 e 45 anos que não

frequentarem a escola estava prevista para 50 a 500 cruzeiros34

e para se livrar da multa

a pessoa deveria provar “já saber ler e escrever”, “incapacidade física do analfabeto” ou

“inexistência no lugar de residência do analfabeto de escolas próprias ou que estas já

estejam lotadas”.

A enunciação do problema da alfabetização das pessoas adultas se dá num

ambiente em que a liberdade de escolha do sujeito a respeito de participar ou não das

práticas de alfabetização não parece ser uma razão considerável. A extensão da

obrigatoriedade da frequência à escola aos adultos é entendida por esse projeto de lei

como uma manobra simples para superar os índices de analfabetismo.

Na longa continuidade dos problemas que enunciam a Educação de Adultos,

algumas séries são encontráveis nesse arquivo. O enunciado do fechamento de turmas

se faz presente, seja no projeto de obrigatoriedade do deputado Aureliano Leite, seja no

apelo e protesto apresentado pelo deputado maranhense Pedro Braga, em 1957, relativo

ao fechamento de turmas de alfabetização de adultos naquele estado. Encerrar turmas de

alfabetização de adultos num país com grande quantidade de analfabetos constitui-se

numa posição contraditória no campo da Educação de Adultos. A manifestação dessa

oposição não é apenas uma mera contradição de fatos. Ela se explica pela conformação

necessária de dispositivos específicos atuando em diferentes territórios da biopolítica.

Logo, a eficácia do atendimento ao analfabetismo em algumas regiões do País

desfrutava de clara legalidade, e ampla legitimidade, enquanto que em outras regiões

não se configurava como uma prioridade. É contra isso que o deputado maranhense

protesta em plenário: “Sr. Presidente, eis um paradoxo terrível: enquanto o Sr. Ministro

da Educação diz que abriu um crédito de 800 milhões para extinguir o analfabetismo, a

34

Em valores atuais algo em torno de R$187,50 e R$1.875,00 respectivamente.

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Assembleia do meu estado solicita, em telegrama, dirija eu apelo a S. Exa. para que não

extinga 400 escolas locais”35

.

Fechar turmas da Educação de Adultos é um problema que encontra sua relação

com o contemporâneo através das páginas dos jornais e nos sítios eletrônicos

especializados. Segundo matéria de um sítio eletrônico da área de Educação, “O

processo de nucleação dos cursos de EJA tem ocorrido em outras cidades do país, como

São Paulo. Esse mecanismo consiste na concentração da modalidade de ensino em

escolas polos, reduzindo o número de espaços que oferecem EJA”36

. Há espanto e

protesto, mas o enunciado do fechamento de turmas ainda se faz presente, atravessando

mais de sessenta anos. Logo, a Educação de Adultos, e sua versão escolarizada no

Brasil, a EJA, passa por essa grade de enunciação em que o fechamento de turmas é um

dispositivo possível, frequentemente acionado, e cujas causas se dissolvem num amplo

leque de hipóteses.

O traço que se impõe é que a EJA é um lugar de esvaziamento, de ausência e

clausura. E isso contrasta com os fatos dos números que afirmam haver milhões de

pretendentes a essa modalidade. Em 2013, o deputado Izalci chama a atenção em

plenário para o mesmo objeto: “Eu vi algumas matérias nos jornais de hoje também

tratando da questão do EJA, que é a Educação de Jovens e Adultos. O número de evasão

é muito grande. Aqui em Brasília há turmas em que 80% se evadem, não concluem o

curso do EJA”. O esvaziamento da experiência da EJA, acusado pelo esvaziamento das

escolas, que no ano de 1948 gerou um projeto de obrigatoriedade e multa aos evadidos,

que provoca a necessidade administrativa de fechamento de turmas de EJA, por falta de

alunos, aparece aqui em 2012 já com seu nome mais conhecido de evasão. São três

enunciados que se cruzam: o fechamento, a clausura, e o abandono pelo estudante.

Nesses enunciados, estar sob a lei e tornar-se enunciável passa pela exibição da falta

que caracteriza essa relação do sujeito com o Estado.

35

O Ministro da Educação e Cultura na ocasião era Clóvis Salgado, que ficou no cargo entre 1956 e 1961,

com breve pausa para disputar eleições. Apoiou o Golpe Militar de 1964, tendo sido membro do

Conselho Nacional de Educação entre 1964 e 1968. Fonte: CPDOC/FGV, disponível em

<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/JK/biografias/Clovis_Salgado>. 36

Disponível em:

<http://www.observatoriodaeducacao.org.br/index.php/eja-e-educacao-nas-prisoes/64-eja-e-educacao-

nas-prisoes/1202-fortaleza-reduz-a-metade-numero-de-escolas-com-educacao-de-jovens-e-adultos>

Acesso em: dez. 2014.

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Fechar e proibir de abrir se localizam na mesma região de atos de poder. Quando

referidos à educação, lembram-nos de que essa é uma prática perigosa que precisa ser

regulada. Corresponde ao mesmo exercício de delimitação dos lugares educacionais por

onde pode transitar a população adulta presente uma pequena ordenação do reino,

registrada na legislação de Portugal datada de 1700, bastante clara a respeito dos atos

possíveis no campo educacional daquele período:

Ordena o Senado, que de hoje em diante não seja pessoa alguma tão

ousada que abra Escóla de ler, escrever e contar, sem licença do

mesmo tribunal, que não só a devem pedir as ditas pessoas, que de

novo abrirem as mesmas escolas; mas também todas as que de

presente as tiverem aberto; e a estas se lhes dá o termo prefixo de

quinze dias, que serão contados do dia da data deste; com declaração

que os Mestres que atualmente tem suas Escolas abertas no Termo

desta cidade, se lhes concede hum mez de tempo para tirarem suas

licenças, e os que fizerem o contrário, do que fica declarado no

presente edital, incorrerão na pena de hum mez de prizao, e das mais

que parecem ao sobredito Tribunal. Lisboa, 9 de Julho de 1765 –

Pedro Correa Manuel de Aboim.37

Esse tipo de norma regulando o exercício da profissão docente e a oferta de

educação às populações possui uma longa história de discursos que se remetem uns aos

outros, desafiando tempo, localização geográfica, contextos políticos. Não nos é

estranho que uma prática no âmbito do Estado dito “de direito” seja juridicamente

regulada. O que salta aos olhos é que a violência presente nesses enunciados revela o

grau de perigo associado às iniciativas educacionais, tendo em vista a necessidade de

regulá-las com veemência.

Os enunciados da vergonha também desfrutam de longevidade entre os modos

de dizer autorizados pelo discurso da alfabetização. Em 1961, o deputado Miguel

Bahuri, do Estado do Maranhão, apresenta projeto de lei que previa o envio de recursos

federais para aquele estado, tendo em vista os índices de analfabetismo ali existentes,

em sua participação na plenária, diz o seguinte: “Senhor Presidente, o Maranhão, com

uma população de dois milhões e trezentos mil habitantes, noventa por cento da qual

vivendo em regiões rurais, segundo estatísticas recentes, apresenta um dos mais altos

índices de analfabetismo no mundo. Isto, convenhamos, para um estado cuja capital já

foi considerada a Athena brasileira, constitui uma vergonha, não somente uma vergonha

37

A ortografia original foi respeitada. Fac-símile do edito pode ser visualizado no anexo 1.

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para os maranhenses, mas também para a Nação Brasileira.” (DIÁRIO DA CÂMARA

DOS DEPUTADOS, 1961, p. 5.656).

Em março de 1965, o deputado Carlos Werneck, ao citar o índice de 87% de

analfabetos na população da capital do Ceará, dá seguimento à série genealógica dos

discursos em que o analfabetismo é associado à vergonha, como parte da retórica

pública pela sua superação. Ele afirma: “No momento em que o país se esforça para sair

do subdesenvolvimento e ingressar numa etapa mais avançada, sabemos que na capital

de um dos mais antigos estados brasileiros existe um índice de analfabetismo que atinge

quase a 90 por cento é qualquer coisa que nos humilha, que nos envergonha, que nos

avilta. É desses dados que, divulgados, deixam o País muito mal.” (DIÁRIO DA

CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1965, p.1.306).

No conjunto das estratégias biopolíticas das quais estes discursos fazem parte, a

rede de sustentação alcança pontos de enlace também com discursos da ordem moral e

econômica. São enunciados que se dirigem desde o lugar das autoridades políticas,

constituindo linhas de força que atuam sobre subjetividades, sendo promovido através

de práticas de nomeação dos destinatários da ação do Estado.

A insistência na apresentação da pessoa analfabeta numa imagem social de

esvaziamento, pobreza, rudeza, incapacidade possui uma série longa que se estende

desde a década de 1940 até o ano de 2014. Como afirmou o deputado Florim Coutinho,

em seu pronunciamento de 14 de março de 1974:

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Fonte: Diário da Câmara dos Deputados, 14/03/1974, p. 0523.

São esses enunciados que produzem a experiência do analfabetismo como uma

anomalia, num exercício de constrangimento que atua de forma paradoxal sobre o

sujeito. Por um lado, sente-se o olhar do outro a delinear a nossa falta, a nossa

subalternidade, empurrando-nos para o encontro com a face da biopolítica que vai nos

normalizar e inserir nesse mundo maravilhoso proporcionado pela escrita.

Simultaneamente, esse investimento discursivo na vergonha produz uma

necessidade de tornar-se invisível, de mascarar a condição de falta atribuída com

estratégias de convivência com a escrita sem que se esteja efetivamente dominando a

técnica correlata. Nesse caso, a experiência social da escrita, enquanto tática do sujeito,

assume o lugar de uma técnica cujo domínio é protelado, porque assumir-se nesse lugar

de subjetivação envolve assumir-se publicamente como alvo do constrangimento.

Talvez por esse mecanismo não exista um movimento social de pessoas não

alfabetizadas, os “sem escrita” como há um Movimento dos Sem Terra. Ao mesmo

tempo em que obtém um grau elevado de eficácia na regulação da população, esse

processo gera um plus de controle através da minoração da mobilização por um direito,

tornando a economia dos discursos da alfabetização altamente eficaz do ponto de vista

das relações de poder.

Como falar de si, nos tantos exercícios que a escola propõe, como caminhar

voluntariamente para um espaço social já demarcado pela violência dos discursos do

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constrangimento? Como abandonar o lugar de onde se fala para assumir-se enquanto

falta propagada pelo outro? Participar dessa enunciação se assemelha ao que o Mestre

Pastinha, baiano e mestre da capoeira angola, ensinava aos seus aprendizes: “Se você

quer chamar uma moça pra dançar, vai bater nela?” Portanto, como convidar para tomar

parte de uma versão do mundo através de um posicionamento humilhante para o

convidado? Compartilhar do mundo normalizado da escrita, desde o lugar da vergonha,

é um dos movimentos mais contraditórios que essa discursividade produz. Um

permanente encaixe e desencaixe de perspectivas várias sobre o mesmo horizonte que

remete ao processo de subjetivação e dessubjetivação discutido por Agamben.

Paradoxos que vão se articulando, como a dialética direito versus dever.

Cumpre recordar que os movimentos de alfabetização, não apenas no Brasil, mas

aqui especificamente, são movimentos de pessoas alfabetizadas, educadores e

interessados no tema. Se essa discursividade, graças também a este movimento social

amplo que inclui pessoas pesquisadoras e educadoras, conseguiu transformar

internamente a regra de enunciação para se referir às pessoas não alfabetizadas como

“sujeitos da EJA”, buscando formas menos violentas para referir-se às pessoas que não

frequentaram a escola, já em outros territórios discursivos, a referência à vergonha ainda

se encontra vívida e circulante. Em 2011, no Congresso Nacional, a classe de políticos

profissionais brasileiros continua manifestando vergonha ao referir-se ao analfabetismo:

“Acho que uma nação desenvolvida, uma nação que caminha para ser a quinta

economia do mundo e que hoje é a sétima economia do mundo não pode conviver com

um índice vergonhoso de população analfabeta como o que temos hoje.” (DIÁRIO DA

CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2014).

A análise dos discursos parlamentares resulta na conclusão de que o reforço

contínuo dos enunciados da vergonha, da urgência, da campanha, da erradicação

participa do contexto geral que contribui para o equacionamento insatisfatório da

questão da alfabetização. Há uma tendência forte para a negatividade, para a denúncia e

o assombro, poucas referências ao modo de vida das populações não alfabetizadas,

quase nenhum registro sobre o respeito à sua cultura ou interesses.

O que se repete, da década de 1940 aos anos 2000, é a necessidade de alfabetizar

as pessoas para que o Brasil supere a situação de vergonha em que se encontra devido à

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relação de exterioridade com a escrita, transformada em questão nacional irresoluta até

os dias atuais.

O enquadramento da questão precisa avançar de uma formulação insistente

sobre esses fatores e encontrar um modo de enunciação e uma forma de visibilidade da

questão do acesso à escrita, da escolarização para adultos por outras chaves que não

submetam os sujeitos e populações não alfabetizadas ao suplício de serem os portadores

de uma chaga social ou envolvidos por uma permanente estratégia de adiamento de suas

necessidades e objetivos educacionais. É preciso, sobretudo, deixar de dizer às pessoas

quais devem ser esses objetivos e essas necessidades. Deixar que tracem seus planos de

vida e considerem a alfabetização uma possibilidade ou não de acesso ao mundo escrito

e à educação escolar.

Pensar o direito à educação passa também por refletir em que medida a alguns é

facultado o direito a escolher, enquanto para outros o direito é o disfarce da regulação.

No jogo de máscaras que tenta nos convencer a todo custo de que a salvação dos nossos

problemas é o acesso à escrita e à submissão à salvação que ela carrega, é uma tarefa

dura poder pensar a Educação de Adultos de modo diferente, radicalmente diferente, a

ponto de poder até reconhecer como possibilidade que o fracasso nas práticas de

escolarização e a baixa efetividade dos programas de alfabetização pode significar

apenas que as pessoas não querem aquilo que estamos oferecendo. Mas, elas podem

querer outras coisas que a nossa benevolência não consegue compreender, porque

estamos comprometidos demais com a ideia de salvá-las.

É pela possibilidade de desmontagem desses enunciados, dispositivos, pela

possibilidade de criarmos outras tecnologias, mais amenas e conformes às escolhas das

pessoas, que um trabalho como este pode encontrar um pouco de sua finalidade e o

destino das questões que levanta.

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3.2. O circuito da conversão: uma linha de força na Tecnologia do

Constrangimento

O tema da conversão faz seu aparecimento na discursividade sobre a

escolarização de adultos no Brasil mediado pelos discursos reitores de pensadores que

fundamentam o campo. Encontra-se, ainda, numa rede que envolve discursos

midiáticos, parlamentares, documentos técnicos e científicos. A sua dispersão envolve

também peças audiovisuais referidas à escolarização ou aos seus sujeitos. Sua presença

legitima algumas das regras do que pode ser dito sobre a alfabetização e escolarização

de pessoas adultas, compondo o cenário que torna possível a enunciação do tema.

Ao enunciar a inserção do sujeito no mecanismo geral da escolarização a partir

do argumento geral da transformação de si, a governamentalidade dessas práticas

produz efeitos que constrangem o sujeito a não ser mais o que é e tornar-se outro em

benefício da sociedade (do desenvolvimento, do progresso ou da civilidade). A

problemática central sobre esse aspecto aparentemente inocente das políticas de

Educação de Adultos é a presunção de que as pessoas precisam da escrita para serem

“melhores”, o dogma de que a escrita confere “uma vida de direitos e cidadania”, e a

percepção colonialista de que a vida fora da escritura é “menor”, mais “pobre” e mais

“vulnerável”.

O tema da conversão tem raízes profundas no pensamento ocidental referido ao

sujeito. Segundo Foucault (2011, p.190), a metanoia é o modo específico com que o

tema da conversão aparece no cristianismo, sendo configurada por três elementos: um

acontecimento único histórico e meta-histórico, uma passagem ou mudança de estado

do sujeito, e uma ruptura no interior do próprio sujeito. O sentido geral da noção de

metanoia é a mudança da alma. Metanoia refere-se à conversão de si para a salvação. A

segunda forma de salvação seria a epistrophé platônica, caracterizada pelo ato de

desviar-se das aparências, retornar a si para ocupar-se consigo, fazer a reminiscência e

assim retornar à sua essência (FOUCAULT, 2011, p.188). O terceiro modelo

apresentado por Foucault consiste na versão helênico-romana da conversão,

caracterizada, primeiro, pelo deslocar-se do que não depende de si para o que depende

exclusivamente de si. Trata-se de uma relação completa de si para consigo e o ato de

conhecer constitui-se na ação central do processo de conversão. Em relação à conversão

cristã, o modelo helenístico-românico difere em relação à ruptura, que não se dá no

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sujeito, mas com algo que se situa no entorno; a segunda diferença é que o olhar deve

voltar-se a si; o terceiro é que a meta da conversão é o eu.

Nos modelos apresentados por Foucault, a ideia de uma conversão para ser

Outro, a partir de uma ruptura consigo, aparece na metanoia cristã. Cremos ser por essa

via que a noção de conversão presente nos discursos da alfabetização de adultos se

apresenta no contexto brasileiro.

Em todos os modelos de conversão, uma constante é que por esse mecanismo se

revela um certo modo de relação do sujeito com a verdade. A versão da conversão

acionada pelo discurso da Educação de Adultos tem uma de suas fontes no racionalismo

iluminista e outra na teleologia cristã. Trata-se de um arranjo que vincula a

transformação de si através da renúncia de si, característica da conversão cristã, com o

preceito da Aufklarüng, essencialmente a ideia de emancipação pela razão.

A esta fórmula é adicionado um conteúdo de libertação social, no qual o povo é

constituído como sujeito de libertação. As contribuições do existencialismo, do

marxismo e do cristianismo são os termos que compõem o círculo externo da espiral

dessa fórmula. Entretanto, a configuração final dessa conversão no modo como se

apresenta no discurso da Educação de Adultos tem uma estrutura aparentemente mais

laica, referida menos à transformação como aspecto do cuidado de si e mais fortemente

apropriada pela ideia de governo da vida e transformação de si a partir da aquisição de

uma técnica, o que difere em muitos aspectos das práticas de si helênico-românica e

platônica. Foucault (2010, p. 188) nos informa que a conversão tem uma inegável

matriz religiosa, mas também moral e por fim política, que se trata da mais antiga e

tradicional tecnologia de si.

A incorporação da conversão como tecnologia de si mantém algumas linhas de

relação com o discurso da alfabetização de adultos ainda hoje circulante. As técnicas em

torno do escutar-ler-escrever do século I-II, descreve Foucault na Hermenêutica do

sujeito (p.324-325), serviram como modelos para as práticas de si na pastoral e na

espiritualidade cristãs e estas, por sua vez, influenciaram práticas pedagógicas das

ordens religiosas que se espalharam pelo mundo. Nessas práticas, o filósofo francês

destaca o discurso do mestre, que se baseia na revelação e nas escrituras, e a fala do

“dirigido”, que pressupõe seu dizer verdadeiro sobre si mesmo como requisito da

salvação. Segundo Foucault (2010, p.325),

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Penso ser preciso considerar como um acontecimento de grande

importância, nas relações entre sujeito e verdade, o momento em que

o dizer-verdadeiro sobre si mesmo tornou-se uma condição para a

salvação, um princípio fundamental na relação do sujeito consigo

mesmo e um elemento necessário ao pertencimento do indivíduo à

comunidade.

O dizer-verdadeiro sobre si mesmo da pessoa não alfabetizada pode ser

vislumbrado justamente naquele momento em que ela se desdobra de seu cotidiano e faz

um movimento em direção à escola, que quase sempre é um retorno a algo deixado

muito tempo atrás. Essa mobilização é também a assunção de um lugar de vergonha e

sua superação na busca pelo acesso à escrita e tudo que ela promete trazer. Do ponto de

vista dos sujeitos autorizados sobre a alfabetização (educadores, políticos, etc), a

salvação equipara-se à libertação e daí advêm os argumentos tão comuns no campo da

Educação de Adultos sobre o caráter redentor da alfabetização e da escola.

É na escola que se operam, através de mecanismos controlados e cotidianos, as

práticas muito similares à do dizer-verdadeiro como técnicas de subjetivação, incluindo

“a escuta dos discursos verdadeiros que lhe são propostos” (FOUCAULT, 2011, p.326).

Percebe-se que uma governamentalidade só pode operar adequadamente se o sujeito

estiver exposto a tais práticas, o que deve ocorrer prioritariamente no espaço escolar, no

que tange às populações não alfabetizadas.

O cuidado de si era uma condição para a salvação da cidade na cultura grega das

práticas de si; já na versão do séc. XX presente no discurso da Educação de Adultos, a

salvação da cidade está dissociada do cuidado de si, mas é submetida à inscrição do

sujeito na ordem do poder, através de sua participação na escolarização. A pedagógica

submete a possibilidade de cuidar de si para ser parte da salvação da cidade ao apelo

apenas para contribuir na salvação da cidade, sem exercer o cuidado de si propriamente

voltado a si. Como traços dessa forma de conversão, a ideia de renúncia a si aparece

nessa discursividade a partir do reforço a noções negativas do sujeito, executadas pelo

mecanismo da vergonha. O sujeito da alfabetização é aquele a quem falta uma

“racionalidade científica ou complexa”, cujo pensamento é “ingênuo e sincrético”.

A dimensão biopolítica das tecnologias aqui discutidas não se esgota na questão

do controle das populações e da incorporação da vida como objeto político ao nível do

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múltiplo. Diante da questão da vida biológica das populações, a biopolítica da

escolarização de adultos e seu dispositivo central da alfabetização localiza a escrita

como uma tecnologia refinada dirigida ao sujeito, cuja ênfase específica é que se

constitui como o saber que permitirá à vida do sujeito ser melhor, tornar-se aquilo que

deve ser, com um traço distintivo em relação às formulações do período helenístico:

aqui já não se faz um serviço em torno do sujeito: o cuidado de si é o aspecto menos

enfatizado em detrimento da metanoia que beneficia a cidade.

3.2.1 O discurso da metanoia em Álvaro Vieira Pinto e Paulo Freire

Os enunciados da metanoia encontram em sujeitos e instituições altamente

legitimados no meio social uma parte considerável de sua sustentação. Ao lado desse

mecanismo fundador, em que o autor é antes um “princípio de agrupamento do

discurso” do que propriamente um sujeito empírico, alguns enunciados ouvidos à

distância obtêm certas sínteses que se fazem reconhecer e ecoar por longo tempo. Os

discursos que são ditos e continuarão sendo ditos se fazem presentes nas políticas

discursivas sem que seja necessário o prestígio dos seus enunciadores. Mas, quando o

prestígio entra em cena, são reforçados, encontram ecos mais longos, inscrevem-se de

forma mais permanente, e alongam seus comentários ad infinitum. Os dois casos que

analisamos abaixo constituem um exercício de interpelação de dois enunciados de

prestígio no discurso educacional referido à Educação de Adultos. São dois pensadores

centrais ao campo e inscritos numa discursividade emancipatória, crítica, o que torna

sua análise ainda mais necessária.

Álvaro Vieira Pinto é um representante do grupo de intelectuais brasileiros,

organizados em torno do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), responsáveis

por provocar um momento de intensa reflexão sobre o País, sobre o povo e sobre os

destinos da nação durante a década de 1940. Considerado uma influência sobre o

pensamento de Paulo Freire, era um filósofo interessado nas questões do Brasil, que

proferiu, ainda na década de 1960, as “Sete lições sobre Educação de Adultos”

(SAVIANI, 2010). Nessa obra, expõe sua reflexão de que a educação é “eminentemente

ameaçadora”, porque exige transformação da consciência dos sujeitos. Para Vieira

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Pinto, formação e educação formam uma identidade, ou seja, elas representam dois

aspectos de um mesmo processo. Além de observar a educação como processo, fato

existencial, fato social, ele também ressalta o papel que essa prática tem no

engendramento da “ruptura do equilíbrio presente, de adiantamento e da criação do

novo” (2010, p.33). Como intelectual de pensamento crítico, de matriz histórico-

dialética, compreende o papel do “saber letrado” como um privilégio de alguns grupos

sociais em sociedades industrializadas. Segundo o filósofo, o analfabetismo é uma

realidade sociológica, que deve ser tomada em consequência da realidade humana, do

sujeito que o vivencia.

O tema da metanoia, que acompanha as justificativas liberais, neoliberais e

críticas da educação escolar, aparece aqui no sentido da integração social, bastante

aproximada, portanto, à perspectiva funcionalista: “No sentido geral esse fim é a

conversão do educando em membro útil da comunidade.” (2010, p.35). Esse tipo de

formulação integra-se na rede de enunciados que sustentam a convocação dos sujeitos

para inserirem-se na ordem do discurso escolar, demarcando o lugar e a forma de

participação do sujeito interpelado na comunidade.

As estratégias biopolíticas se apropriam dessa formulação e a aplicam de forma

massiva na convocação dos adultos para a escola, reproduzindo indefinidamente o apelo

à mudança de si, expressa como uma das finalidades mais antigas da instituição escolar

e de sua processualidade chamada “escolarização”.

Vieira Pinto (2010, p. 38, grifo nosso) contrapõe à colocação mais geral sobre a

finalidade da educação uma afirmação mais detalhada sobre o processo de conversão:

“na forma elementar, ingênua, a educação é considerada como o procedimento de

transformação do não-homem em homem. Na forma superior, crítica, a educação se

concebe como um diálogo entre dois homens, na verdade entre dois educadores”,

remetendo, portanto, à noção mais geral da conversão à responsabilidade de concepções

por ele consideradas ingênuas de educação. Tal ideia também se apresenta na concepção

sobre a pessoa não alfabetizada: “O analfabeto não é um ignorante, não é um inculto,

mas apenas o portador de formas pré-letradas de cultura (as quais coexistem às vezes

com uma nascente consciência crítica de seu estado, de seu papel social, de seu

trabalho)” (2010, p.39).

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Seria desnecessário chamar a atenção para a lógica evolucionista, presente nessa

visão “generosa” sobre a pessoa não alfabetizada nas línguas escritas de matriz colonial.

Aqui, o analfabeto é localizado como alguém cuja cultura encontra-se “antes”, e cuja

consciência crítica ainda é nascente. Cremos que formulações dessa ordem encontram-

se aproximadas das lógicas etnocêntricas que presidiram os processos mais amplos da

própria colonização, e se desdobram nos processos que naturalizaram a escola, e a

escrita escolar, como processos essencialmente benfazejos e destituídos de “funções

impuras”.

Ao reforçar os lugares de subalternidade das pessoas não alfabetizadas através

de enunciados como “pré-letradas”, admitem a existência de outros saberes, mas

reafirmam a escrita como norma. Por outro lado, Vieira Pinto afirma que o educando

adulto é sujeito de cultura, homem culto no sentido não idealista, querendo afirmar que

o conhecimento “da experiência feito” é, para ele, válido e legítimo.

Esse mesmo tipo de formulação aparece no pensamento de Paulo Freire, embora

de formas variadas ao longo da obra, e com graus atenuados e cada vez mais críticos em

relação ao lugar social do analfabeto.

O que caracteriza o pensamento crítico é a possibilidade de avançar em termos

dos compromissos que expressa. No caso brasileiro, o que chamamos de pensamento

crítico se constitui como a defesa de uma categoria de alta abstração que é a categoria

povo. Álvaro Vieira Pinto (2010, p.47) traz essa categoria para o debate como um

elemento legitimador das práticas de educação, segundo ele: “O conteúdo da educação é

popular por excelência. Só deixa de sê-lo de fato em condições de alienação cultural.”

O popular é também o fiel que avaliza a legitimidade de uma “educação para

todos”, problematizando, pelos idos da década de 1960, as premissas atuais defendidas

pela UNESCO. O autor faz isso colocando as massas no lugar de sujeitos históricos de

sua própria educação, em termos bem marxistas, datados numa filosofia da consciência,

mas atentos ao fato inegável de que sem o desejo das pessoas a quem a educação é

destinada, as práticas de escolarização se esvaziam em efeitos puramente reguladores:

“a exigência de educação para um maior número (e por fim para todos) só chega a ser

irresistível quando parte da própria massa que começa a recebê-la. Porque de agora em

diante se constitui em fato político. Não é mais o projeto bem intencionado de alguns

pedagogos generosos” (2010, p. 50).

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154

Ainda sobre o popular, Vieira Pinto localiza nessa posição subjetiva a ideia de

atraso. Esse é um dos enunciados mais complexos de serem lidos no pensamento de um

ideólogo do pensamento crítico. Na afirmação de que “o país é atrasado em virtude dos

modos de vida de suas massas (não de suas elites)”, observamos uma das matrizes do

mecanismo sutil que localiza a vida popular não alfabetizada no lugar do que precisa ser

modificado, alterado, evoluído, civilizado. Difícil não recorrer à noção de perigo que o

Estado governamentalizado produz para justificar suas intervenções no corpo social das

populações. Por isso, o tema da metanoia pela escola é uma constante tanto das

propostas emancipatórias quanto das propostas conservadoras, configuradas, por

exemplo, nos períodos de ditaduras pelos quais o Brasil passou no último século.

É interessante ao nosso debate, que problematiza as noções de que o

analfabetismo é um vazio que a escola vem suprir, destacar a interessante leitura que o

professor Vieira Pinto traz sobre o sentido de ignorante, essa palavra tão utilizada para

se referir à condição da pessoa analfabeta, uma vez que o autor, aplicando a lógica

dialética, desdobra o sentido do termo utilizado e evidencia que, em meio à articulação

complexa de diversos enunciados sobre povo e analfabetismo, há uma tática local de

caráter lógico que se mascara como verdade no jogo das formações discursivas. A esse

respeito, analisa Vieira Pinto (2010, p. 65):

Absolutiza-se o conceito de ‘ignorante’ para as classes populares,

enquanto se relativiza esse mesmo conceito para as elites (a fim de

que os representantes dessa elite possam aparecer como não

ignorantes). Vê-se a duplicidade de critérios, que revela o caráter

interessado da noção de ignorância: o homem do povo é ignorante

porque não sabe alguma coisa, enquanto o membro da elite é culto

porque sabe alguma coisa. Um indivíduo não pode ignorar assim

alguma coisa, que é concretamente sabida por outro. Como, porém,

este outro ignora muitas coisas que o primeiro sabe, o caráter da

ignorância é sempre relativo. A consciência ingênua necessita

absolutizar a ignorância, o que só pode fazer convertendo-a em noção

irreal.

É interessante destacar ainda, desse texto, em virtude da posição do seu autor

junto ao pensamento pedagógico crítico do país em meados do século passado, uma das

características da atitude pedagógica que coloca o educando em posição de objeto. A

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155

primeira da lista de quatro38

refere-se ao fato de que esse tipo de posicionamento é “1)

moralmente insultante, pois ignora a própria dignidade do homem pelo simples fato de

ser homem, não importando se é letrado ou não”. Ora, um dos enunciados mais fortes

sobre a conversão da pessoa não alfabetizada é justamente aquele em que a inserção na

cultura letrada é o que vai garantir ao sujeito a dignidade e que simultaneamente associa

a vida não alfabetizada a um vazio, uma não vida. Vemos nesse texto complexo e

interessante, recheado de oposições, uma crítica ancestral a essa discursividade. A

oposição estratégica que esse enunciado expressa em relação ao enunciado da vergonha

na rede discursiva que sustenta a face biopolítica da Educação de Adultos parece ter

encontrado baixo eco na luta pelas definições sociais a respeito da condição de

analfabetismo.

Para Vieira Pinto, a participação das pessoas não alfabetizadas na vida social e

política não é posterior à sua inserção na escolarização; antes, é esse processo que deve

vir como resposta à presença ativa do sujeito na vida social. Essa é uma inversão

completa dos posicionamentos sobre a vida política e o analfabetismo que se

apresentam dispersos nos vários enunciados sobre o direito ao voto, por exemplo. O

autor considera sociologicamente falsa e pedagogicamente errônea a tese de que é mais

pertinente concentrar os esforços da educação das crianças, deixando os adultos na

externalidade do saber alfabetizado. Preocupado com o conteúdo da continuidade dos

estudos de alfabetizandos, Vieira Pinto tece vários comentários às campanhas, fundadas

nessa crítica primeira à concepção de pessoa não alfabetizada presente nas

racionalidades políticas hegemônicas. Segundo o autor, ao invés de campanhas, que

tratam o analfabeto como “inimigo ou infiel”, deveria haver “apenas a ação normal,

constante e intensa do poder público” (2010, p.98). Aqui, mesmo que não use a palavra

escolarização, parece ser sobre esse processo que o autor está falando.

O tema do mal, da anormalidade, do inimigo ou do infiel, enfim, a taratologia do

analfabeto é por ele condenada. Vejamos a atualidade de seus comentários:

Em lugar de reconhecer no analfabetismo um índice natural da etapa

em que se encontra o processo de desenvolvimento nacional,

apresenta-o como uma anormalidade, uma monstruosidade que é

38

O autor aponta, ainda, sobre as características das concepções ingênuas em educação: 2)

antropologicamente errôneo; 3) psicologicamente esterilizante e 4) pedagogicamente nocivo. (Cf. 2010, p.

67).

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preciso “combater”, “erradicar”. Estas expressões, frequentes na

oratória dos promotores de campanhas de alfabetização, demonstram

bem que os pedagogos desta estirpe concebem o analfabetismo como

um “mal”, uma “enfermidade”, uma “endemia”, uma “erva daninha”,

ou seja, que o veem como algo não natural no corpo da sociedade.

Assim, enquanto este for o pensamento dominante não há

possibilidade de que o educador ou o legislador entre pela correta via

de resolução do problema do analfabetismo, que é de fato uma

deficiência culturalmente grave, mas que nada tem de

sociologicamente anormal. (2010, p. 93).

Essa passagem tem elementos que nos interessam. Primeiramente, faz uma

leitura pertinente da questão da anormalidade no discurso da alfabetização de adultos e

relaciona o equacionamento da questão à mudança na racionalidade que preside as

decisões políticas e pedagógicas; segundo, traz à tona a face biopolítica das práticas

alfabetizatórias a partir da construção deste “outro estranho” que seria o analfabeto, uma

anormalidade que seria uma doença, o que nos devolve ao tema da segurança biológica.

Por último, apesar de avançar na crítica à racionalidade sobre a pessoa não alfabetizada,

ao situar o analfabetismo como uma “deficiência culturalmente grave” parece recair no

mesmo discurso que critica, voltando a reforçar a localização subalterna da pessoa não

alfabetizada nas línguas escritas de matriz colonial.

No que toca à definição de analfabetismo, Vieira Pinto novamente apresenta

concepções bastante interessantes. Ele define que o analfabeto “em sua essência, não é

aquele que não sabe ler, sim aquele que, por suas condições concretas de existência, não

necessita ler.” (2010, p. 95). Essa definição não trata o analfabetismo como uma chaga

social, nem como um dado natural da pessoa não alfabetizada, mas situa na ontologia

materialista a explicação sobre essa condição, deslocando o olhar da questão da falta

para a questão da necessidade: “pode-se dizer que é o trabalho que alfabetiza ou

analfabetiza o homem, segundo exija dele o conhecimento das letras, ou seja, de tal

espécie que o dispense de conhecê-las.” (2010, p.96).

Para o filósofo, o tema da necessidade é um crivo para que o indivíduo se

reconheça nas práticas de alfabetização, pois importa que ele sinta como necessário esse

saber em sua vida; no plano coletivo, Vieira Pinto (2010, p.107) alerta que “se faz sentir

a iniciativa do poder público, que promove e comanda o esforço de alfabetização do

povo, é porque a sociedade agora precisa que os atuais analfabetos possam ler”. Um dos

objetivos da leitura mais detalhada desse texto é a presença nele de uma série de

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enunciados que participam da discursividade sobre a Educação de Adultos no Brasil de

forma constante desde a década de 1960.

Observe-se nesse último trecho que um dos traços mais marcantes do campo da

Educação de Adultos no Brasil é o fato de não haver grandes mobilizações de pessoas

adultas demandando essa educação. É um fator incômodo para nossas reflexões do

campo crítico da educação e uma questão ainda não resolvida, podendo indicar um

baixo índice de interesse pela escola. Discutindo o processo das Confinteas, Ireland

(2013, p. 25) alerta que “em nível nacional e internacional, a Educação de Adultos tende

a constituir uma estratégia voltada para a oferta em vez de para a demanda. Os sujeitos

do processo educacional tendem a ter seus direitos passivamente ‘defendidos’, em vez

de ativamente ‘reivindicá-los’.”

Observamos, pois, como Vieira Pinto tratou os temas da conversão à cultura

letrada, da concepção de pessoa não alfabetizada, concepção sobre as tarefas da

Educação de Adultos.

Vejamos agora no pensamento de Paulo Freire como essas questões se

apresentam.

Um dos pontos de partida da reflexão pedagógica de Paulo Freire é o fato de que

a escrita é um poder. Com base nesse reconhecimento, estrutura uma pedagogia

vinculada a um discurso emancipatório que comunga com a perspectiva geral da

modernidade em torno da escrita e do conhecimento como agentes de uma

transformação do sujeito e da vida social. O problema da alfabetização das massas surge

então, nesse pensamento, como uma tarefa histórica fundamental para a emancipação da

sociedade brasileira, algo circunstanciado no discurso do desenvolvimento presente na

obra Educação como prática da liberdade, mas distribuído com parcimônia ao longo de

sua produção que se estende dos anos 1960 até início dos anos 1980. Não resta dúvida,

ao fazer a leitura da obra freiriana, de que a alfabetização era uma tarefa da ordem do

político. Ao fazermos referência a essa dimensão não estamos aqui retomando o

enunciado tantas vezes repetido de que a educação é um ato político.

Pela via foucaultiana, estamos afirmando que a educação, para Paulo Freire, está

inscrita no campo das lutas, dos enfrentamentos, dos confrontos que precisamos realizar

no espaço próprio das relações sociais que é o poder. Dessa forma, nunca foi ingênuo

para Freire que o processo de alfabetização era uma estratégia, dentro de um processo

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mais amplo de lutas, para a consecução de um projeto de sociedade, que ele chamava de

democrática, numa perspectiva de educação identificada por ele como crítica. A

contribuição da educação para o desenvolvimento do país e para a construção de uma

sociedade emancipada passava, necessariamente, pela garantia de que todas as pessoas

tivessem acesso à leitura e à escrita.

A conflitividade dessa perspectiva é algo que Freire acomodava com uma teoria

da conscientização, a qual sobrepunha à realidade essa camada de percepção chamada

consciência, que poderia caminhar da perspectiva ingênua para crítica através do

processo de apropriação da realidade pelo sujeito. Essa transição da consciência é

acionada pelo dispositivo do saber produzido na situação de reflexão sobre o mundo

imediato do sujeito.

A “leitura de mundo” é um conceito fundamental, porque é a partir dele que o

conhecimento se estrutura, seja o conhecimento “da experiência feito” seja o

conhecimento “sistematizado” fornecido pelos processos educacionais. A teoria da

conscientização é um arcabouço das reflexões mais específicas de Freire a respeito dos

modos de interpretar a realidade e de atuar pedagogicamente sobre o mundo. A partir da

aplicação do método dialético de reflexão, Freire compreende que o confronto dos

saberes produz uma clivagem no pensamento do sujeito que sempre vai caminhar para

uma postura diferente em relação ao mundo e, em geral, suas afirmações em torno do

resultado desse processo são otimistas, considerando que a reflexão leva para esse lugar

qualitativamente superior de vinculação com o meio e compromisso com as questões da

emancipação.

É dessa forma que a alfabetização é compreendida, na fase de sua produção

anterior ao exílio, como uma tarefa de democratização da cultura, contendo objetivos

mais amplos que a aquisição das regras e modos de funcionamento do sistema de escrita

alfabética. É um dispositivo de resistência e questionamento da ordem. Para Freire, a

alfabetização não é o motor da emancipação, mas uma parte do mecanismo que provoca

a transformação. Essa concepção estava ancorada, por conseguinte, numa atitude de

respeito pela cultura do educando, mas também numa atitude de que a cultura letrada

permitia uma sistematização e um deslocamento do sujeito de uma atitude passiva e

ingênua para uma atitude que Freire (1967, p.106) descrevia como ativa, consciente e

criativa no processo:

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O que teríamos de fazer, uma sociedade em transição como a

nossa, inserida no processo de democratização fundamental,

com o povo em grande parte emergindo, era tentar uma

educação que fosse capaz de colaborar com ele na indispensável

organização reflexiva de seu pensamento.

O tema da conversão em Paulo Freire (1967, p.108) é da ordem da consciência,

não é um chamado ao sujeito para tornar-se outro, mas, de forma mais sutil, é um

chamado a mudar um aspecto mais íntimo da subjetividade, a consciência, o modo

como o sujeito observa o mundo e o decodifica: “O aprendizado da escrita e da leitura

como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da

comunicação escrita. O homem, afinal, no mundo e com o mundo.” Esse tema da

melhoria da visão de mundo e alteração da consciência como passos da emancipação

são também temas da metanoia moderna da escolarização das populações. Obviamente,

a contribuição de Freire não se resume a essa inscrição, mas ela se faz presente e

compõe parte dos pressupostos colonialistas que as perspectivas emancipatórias

contraditoriamente carregam.

Por outro lado, as compreensões sobre o processo de conversão do sujeito à

cultura escrita, apesar de serem articuladas com a questão colonialista do papel da

escrita nas sociedades modernas, são confrontadas com as reflexões oriundas de sua

prática como assessor de programas educacionais nos países africanos, por exemplo:

“Como estrangeiro, não podia impor minhas propostas sobre a realidade da Guiné-

Bissau e sobre as necessidades como os líderes políticos as percebiam. Por exemplo, a

questão linguística foi um dos limites que não consegui ultrapassar, embora tenha

discutido longa e enfaticamente com os educadores minhas preocupações a respeito de

levar avante uma campanha de alfabetização na língua dos colonialistas.” (2011, p.

116).

Como um pensamento caminhante, a concepção de Freire sobre alfabetização

desse período não abandona a inscrição central de que escrita é poder, mas a reformula à

luz das suas experiências principalmente nos países africanos. Ao reposicionar a questão

da língua numa reflexão pós-colonialista, Freire (2011, p.122) mantém uma linha de

coerência com o que dizia antes e durante os primeiros anos do exílio, sobre o fato de

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que alfabetização não constitui uma espécie de panaceia do social, uma redenção pela

escrita, mas apenas “uma parte do mecanismo deflagrador da transformação”. Segundo

Freire (2011, p. 123)., para gerar uma outra forma de alfabetização era necessário que

uma outra sociedade estivesse em vigência: “A Guiné-Bissau atendia à primeira

condição básica que torna possível o êxito de uma campanha de alfabetização: a

transformação revolucionária da sociedade”.

A contribuição de Paulo Freire extrapola o campo da reflexão teórica e insere-se

na dimensão das práticas. Freire experimentou formas de atuação concreta junto às

populações não alfabetizadas e, mesmo tecendo críticas contundentes aos modos

autoritários de educação, podemos considerar a experiência das 40 horas de Angicos

como um modelo ancestral da campanha de alfabetização. Ali estão presentes todos os

elementos que constituem a campanha como modelo de ação na oferta de alfabetização

para adultos ao longo de todo o século XX: o tempo curto, acelerado; a aprendizagem

instrucional, utilitária; professores leigos e voluntários, baixo custo financeiro e pouca

articulação com a escolarização como processo subsequente.

O que torna problemático esse exemplo ancestral, além das narrativas de tom

mitológico que o sustentam, é a ampla legitimação que o modelo passa a ter em virtude

de ter sido realizado por um importante intelectual e militante do campo crítico; para

Vanilda Paiva (1980, p.20), “a sua pedagogia e a aplicação do seu método devem ser

vistos, nos anos 60, como parte de um processo que inclui a tentativa de rompimento

das amarras do populismo tradicional por parte das classes populares e da busca de

mantê-las sob controle, por parte das lideranças populistas.”

Para além de uma crítica ao pensamento freiriano ou à sua inscrição na rede

política do período, o que importa para nossa pesquisa é delinear que as forças da ação

política não variam, numa perspectiva biopolítica e foucaultiana, de acordo com sua cor

ou inscrição teórica, mas pelo arranjo das relações de poder que essas forças expressam

relativamente aos enfrentamentos que propõem.

Por essa linha de pensamento podemos afirmar que a campanha atuou como

dispositivo biopolítico também em sua inscrição ancestral configurada pelas 40 horas de

Angicos, na qual o que estava em jogo, ao fim e ao cabo, era um processo de

reorganização da governamentalidade, mudando suas ancoragens institucionais, mas

mantendo suas linhas de força regulatórias sobre a população alvo da biopolítica. O

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governo da palavra, sob a insígnia da alfabetização, inseria as populações não

alfabetizadas no marco da regulação pelo Estado, pela via representativa do voto e pela

via da ideologia, entendida aqui como um efeito discursivo específico de um conjunto

de enunciados. Constitui-se, via campanha, o vínculo com o bando, com a condição de

abandono sob a lei que configura a visibilidade necessária à ação do biopoder. Os

cruzamentos das linhas de força do dispositivo são inevitáveis.

O ponto em que a concepção freiriana parece trazer elementos de uma linha de

fuga em relação a esse marco biopolítico é a concepção de educando como sujeito de

cultura, ancorada numa concepção de cultura mais antropológica e, por isso, mais aberta

e fluida em direção à convivência com a diferença cultural numa lógica não

subalternizante. Considerando também o papel do diálogo, Carvalho (2004) analisa que

as concepções de cultura e saber em Freire contribuíram para o estabelecimento de um

discurso intercultural nas práticas pedagógicas da Educação de Adultos no Brasil, a

partir do contexto de mudanças sociais da década de 1940 em diante. Para a autora, a

perspectiva pós-colonialista de Freire permite que a escrita e a escola passem a ser

espaços onde os discursos do outro circulam, onde também podem ser inscritos: “A

escrita passa assim a ter, também, marcas de outras culturas, culturas do povo,

reconhecidas como Cultura Popular” (2004, p.164).

Em termos biopolíticos, a incorporação do discurso do outro no âmbito de uma

instituição destinada à governamentalidade pode parecer, à primeira vista, uma

estratégia de inclusão para garantir a visibilidade necessária ao exercício do biopoder.

Contudo, sendo a escola um campo de lutas, a inserção dos saberes populares traz

consigo histórias de falares outros que ampliam as superfícies de atrito entre as

referências e, em virtude dessa presença conflitiva, e dos processos de resistência e luta

que se podem desencadear, não apenas linhas de força se expressam, mas também

linhas de fuga. O problema empírico reside no fato de que as perspectivas

conservadoras e monoculturalistas acabaram prevalecendo e a prova disso são os

programas atuais de alfabetização que enfatizam o modelo escolarizante sem maiores

constrangimentos, seja através de seus rituais (chamada, anotação de frequência, prova,

formaturas), seja pelas suas estratégias (avaliação por frequência e rendimento,

currículos, financiamento).

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O tema da escolarização aparece no Freire tardio, focalizado no debate sobre a

democratização da escola pública, sua efetividade enquanto espaço de garantia do

acesso ao saber. É importante recordar que na década de 1960 o tema da escolarização

não estava em destaque, pois a preocupação era com a alfabetização das massas. Além

disso, o modelo desenvolvido, o Círculo de Cultura, visava a outra possibilidade de

atuação pedagógica e certamente a garantia do acesso ao saber, mas o debate corria

longe da questão de acesso e garantia da qualidade na forma da escolarização.

3.2.2. Vida Maria: perder tempo desenhando nome

A inserção da animação de curta-metragem "Vida Maria" nos arquivos desta

pesquisa se deu de forma tardia, pois originalmente não havíamos feito a opção pela

análise de material fílmico. No entanto, em virtude do questionamento levantado por

uma colega pesquisadora sobre o filme, a autora desta tese se debruçou sobre a

animação e se defrontou com mais um modo de repartição do discurso da escolarização

de adultos, as redes de significação de que ele participa e os desdobramentos dos seus

enunciados nos mais diversos suportes com interlocução em diversos setores sociais.

Após desconfiarmos da primeira camada de significados que esta peça de animação

oferecia, vimos surgir, ao aplicarmos a grade analítica da governamentalidade da

Educação de Adultos, um interessante debate a respeito da questão da metanoia e do

constrangimento presentes nos enunciados presentes ao filme, que participam, por sua

vez, da rede de sustentação da face biopolítica da escolarização de adultos.

Esse pequeno filme é um “curta de animação”, categoria utilizada pelo meio

cinematográfico para se referir a uma produção audiovisual de pequeno porte, na qual a

característica principal é possuir menos de 30 minutos de duração. Na análise que

realizamos neste estudo, a animação "Vida Maria" é tomada como uma narrativa sobre a

pessoa adulta não alfabetizada e a escrita.

A animação "Vida Maria" tem uma longa trajetória de sucesso no meio

audiovisual, tendo recebido inúmeros prêmios39

e desfrutado de largo reconhecimento,

principalmente nos meios educacionais e, muito frequentemente, nos meios

39

Ver em anexo lista de prêmios recebidos pelo curta metragem.

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educacionais da Educação de Adultos. Não poucas vezes o curta-metragem é exibido

em cursos de formação de professores de EJA, cursos de pós-graduação, aulas de

graduação e mesmo para estudantes da Educação de Adultos. A temática que enfoca e a

beleza estética da peça inspiram debates e promovem a oportunidade de ampla reflexão

sobre a questão da escrita e da escolarização na vida das pessoas. No que nos interessa

neste estudo, enfocamos a relação com a escrita a partir de sua exterioridade e

observamos a forma como o sujeito é narrado a partir de uma ausência cultural.

Primeiramente, é importante delimitar que esta análise trata dos enunciados que

existem nas imagens, e as estratégias estéticas são discutidas na medida mesma em que

informam sobre o funcionamento desses enunciados.

Logo, a animação, no debate teórico que esta tese propõe, insere-se no que

chamamos de curva de enunciabilidade, ou seja, as linhas de força que de algum modo

enfocam a forma como se pode falar do sujeito num campo de regras sobre os objetos

da discursividade geral da escolarização de pessoas adultas. Sabemos, juntamente com

Foucault, que o que se pode ver e dizer sobre um assunto é parte dos regimes de

dominação existentes e garante, na economia específica do poder, a efetividade da

normalização. Essa efetividade é constituída por diversos mecanismos, dentre eles a

própria dispersão dos discursos, mas, sobretudo, pela densidade da presença desses

enunciados em diferentes regiões discursivas. "Vida Maria" participa então de um

circuito cultural no qual a sociedade se ocupa da questão da alfabetização, em que a não

alfabetização aparece associada à imagem da pobreza e do abandono, bem como da

repetição sem rupturas de padrões sociais de classe e gênero. A personagem se vê

enredada por situações que escapam à sua vontade, nas quais forças disseminadas em

seu entorno a levam a sofrer uma série de reveses, o que confere à vida da personagem

um forte traço de tragicidade.

A peça tem 8 minutos de duração, e sua sinopse nos informa o seguinte: “Maria

José, uma menina de 5 anos de idade, é levada a largar os estudos para trabalhar.

Enquanto trabalha, ela cresce, casa, tem filhos, envelhece.40

A página web na qual o

curta está hospedado nos informa ainda que “o curta-metragem mostra personagens e

cenários modelados com texturas e cores pesquisadas e capturadas no Sertão Cearense,

no Nordeste do Brasil, criando uma atmosfera realista e humanizada.”. Realismo e

40

Portal Porta Curtas. Disponível em: <http://portacurtas.org.br/filme/?name=vida_maria> Acesso em:

mar.2015.

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164

humanismo são dois enunciados bastante funcionais para pensarmos a argumentação

que sustenta a animação. A peça busca apresentar a vida Maria da protagonista a partir

do “realismo e do humanismo”, logo, propõe-se a contar alguma coisa tratada a partir de

dois enunciados carregados do desejo de verdade. Sabemos que as estratégias de

produção de uma peça ficcional contemplam processos seletivos dentre os significados

disponíveis sobre um determinado tema que se faz objeto da narrativa. O efeito realista

de uma peça de ficção é uma das tantas possibilidades de diálogo com a realidade no

jogo de sentidos. Portanto, ser mais ou menos realista não confere um grau de maior

“verdade” à obra de arte, da mesma forma que a fantasia ou simbolismo não

representam um afastamento do verdadeiro ou do real.

O outro argumento que apresenta o filme de animação é o “humanismo” que, da

mesma forma que o “realismo”, é um enfoque sobre a realidade, uma possibilidade de

enunciar. Nesse caso, o humanismo parece estar associado ao tom emotivo com que as

imagens são tratadas, bem como pelo foco em situações-limite vividas pela personagem.

O humanismo é também um discurso com função universalizante no Ocidente,

carregado por diversas articulações estratégicas em relação ao colonialismo, à opressão

de gênero e aos processos de imperialismo religioso. Portanto, um discurso perigoso,

recheado de posições movediças, que nos leva para o terreno inseguro de uma vontade

de verdade poderosa em relação às mulheres, aos negros, aos indígenas e aos

camponeses.

"Vida Maria" é um título que remete à singularidade e à universalidade da

experiência. É comum e ao mesmo tempo é específica daquela mulher apresentada

como protagonista. O jogo semântico com o vocábulo "Maria", que ora é nome próprio,

ora é substantivo comum, informa do trivial, do usual, do inespecífico e preenche de

sentidos a narrativa em torno de quem é a personagem. Ser sujeito de uma vida Maria

significa, na estrutura da peça analisada, estar submetida à pobreza, à repetição do

tempo circular, ao lugar de reprodução destinado às mulheres em sociedades patriarcais,

à vida seca em suas várias dimensões. A forma de enunciação do sujeito Maria José,

protagonista da peça fílmica, aponta sua reclusão à vida Maria.

A universalidade da experiência permeada pela pobreza herdada e repetida

parece sobrepor-se a uma singularidade que pudesse, quiçá, abrir-se como interrupção

daquela experiência esmagadora de universalidade. Esse jogo semântico encontra uma

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referência a outros textos que compõem as formações discursivas sobre o Nordeste

brasileiro e seus sujeitos, através de comentários que vão adensando certo modo de

dizer e certo regime de visibilidade.

O comentário é um procedimento que remete à economia interna dos discursos,

são “conjuntos ritualizados de discursos que se narram” (FOUCAULT, 2010a, p.22) e,

nessa perspectiva, o título do filme guarda um comentário, faz um deslocamento e

reafirma uma discursividade que encontra no clássico Vidas secas, de Graciliano

Ramos, uma das mais fortes referências desse modo de dizer sobre a vida das pessoas

pobres do Nordeste. Segundo Albuquerque Jr. (1999, p. 78), a invenção do Nordeste se

deu através de produções discursivas ancoradas num jogo de memórias produzidas

pelos discursos regionalistas que se materializaram na sociologia, na literatura e em

outras áreas.

Dentre outras funções, o discurso regionalista dos romancistas da Geração de 30

cumpre uma função agonística em relação aos processos modernizantes então em pleno

desenvolvimento no Brasil, produzindo uma contenção dessa integração nacional

acachapante, mas estando, simultaneamente, inseridos numa reordenação das estruturas

de poder no interior do que se passa a chamar de Região Nordeste. Isto significa que,

internamente, nas relações de classe locais, esse movimento estético se configura de

forma conservadora ao dar sua contribuição à produção da subjetividade nordestina a

partir da imagem do pobre como aquele ser triste, destituído de linguagem, como

Fabiano de Vidas secas, como Maria José de "Vida Maria". Conforme explica

Albuquerque Jr.,

Esse nordeste é uma máquina imagético-discursiva que combate a

autonomia, a inventividade e apoia a rotina e a submissão, mesmo que

esta rotina não seja o objetivo explícito, consciente de seus autores,

ela é uma maquinaria discursiva que tenta evitar que os homens se

apropriem de sua própria história, que a façam, mas sim que vivam

uma história pronta, já feita pelos outros, pelos antigos; que se ache

natural viver sempre da mesma forma as mesmas injustiças, misérias e

discriminações. (1999, p. 85).

Ao cenário da seca social e cultural em que as personagens são apresentadas,

acrescente-se este outro cenário, da ordem política, do campo dos enfrentamentos entre

diferentes versões da história, do espaço social resistente, cujas marcas de saber-poder-

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ser são silenciadas através de todo um investimento discursivo recorrente. A história das

pessoas não alfabetizadas, sintetizada com esses símbolos da pobreza, do esvaziamento

e da desesperança se constituem como um conjunto de regras do que pode ser dito e do

que pode ser visto em relação ao povo nordestino, às mulheres sertanejas, e às pessoas

que não leem a escrita produzida nas línguas de matriz colonial. Novamente, o

problema consiste também no que não é dito, no que não é visto.

As cenas que carregam os enunciados do constrangimento mostram Maria José

criança exercitando a escrita num caderno, na janela da casa, de joelhos sobre um

banquinho de madeira. Sua mãe a interrompe e exige duramente que a menina arranje

alguma coisa pra fazer ao invés de ficar “perdendo tempo desenhando nome”. A

imagem da inocência e da pureza de Maria José contrasta com a rudeza do ambiente e

das palavras de sua mãe. No entanto, faz par com o exercício da escrita, aqui visível a

partir de sua possibilidade positiva e otimista. A escrita é uma figura importante da

narrativa, posto que sua presença em dois momentos-chave demarca o ponto em que as

pontas do círculo se tocam e partem em nova volta em torno desse mesmo centro. Trata-

se das trajetórias de mãe e filha, retomadas sob as mesmas linhas de força. Vamos

analisar a que se refere esse centro.

Fotograma do trecho 1:03’

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A escrita compõe o cenário ao lado da pouca felicidade, da pureza que

rapidamente é sucumbida pelo realismo agreste da vida dura na caatinga. Um dos traços

característicos da narrativa é que a escrita apresentada é a típica forma escolar, na qual o

caderno, o lápis e a repetição dão o tom da disciplina didática do ensino da língua. Que

a escrita escolar seja (re)conhecida desse modo num texto cujas imagens precisam

comunicar de maneira imediata a informação é sintomático do vínculo inextricável entre

as imagens da escrita e da escolarização presentes em nossa cultura. Portanto, a escrita

aparece iluminada e positivamente associada.

Fotograma do trecho 00:45’

Na sequência à exortação de sua mãe para que “arrume o que fazer” ao invés de

“desenhar nome”, os demais fatos da vida de Maria José são apresentados numa série

longa que começa com um flerte afetivo, desenvolve-se numa sequência de gravidezes,

e culmina no retorno ao centro comum da trajetória, a ausência que nesses dois únicos

momentos se faz presente, figurada na escrita interrompida de mais uma Maria, desta

feita a filha da Maria José que, no mesmo lugar da casa, ajoelhada num banco de

madeira, desenha letras num caderno com o olhar inocente de criança. E a cena se

repete com a mãe intervindo rudemente nesse momento de delicadeza, expulsando a

filha Maria de Lourdes dessa pequena morada a qual ela se abandonava, exigindo que

ela “vá lá pra fora arranjar o que fazer” ao invés de ficar “desenhando nome”.

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É flagrante o embrutecimento vivido pela personagem Maria José, tendo os

traços do rosto cada vez mais contorcidos pela dureza do olhar ao longo da linha

narrativa. A menina vai para o terreiro, a parte externa da casa, tirar água do poço, e a

cena desloca-se para o funeral do marido e pai, para a dor rígida da mãe e daí toda

possibilidade de Lourdes se tornar protagonista se esvai, sendo ela mais um elo na

corrente de pobreza e tristeza que se repete.

Podemos deslindar alguns fios em torno do centro de tensão da narrativa,

focalizado na interrupção do acesso da primeira Maria ao conhecimento escrito, o que

cria uma corrente de repetição da condição social que implica sua descendência. O

primeiro deles é o fato de que a escrita ali pode representar muitas coisas. A escrita

pode representar a tecnologia, ou a vida moderna; pode representar o “conhecimento

melhor” para produzir uma vida menos pobre; pode representar o questionamento ao

fechamento de um mundo em torno dele mesmo e a pobreza que advém dessa clausura.

Nessa narrativa, no entanto, a escrita está associada a duas figuras importantes

para a discussão sobre uma forma da metanoia. A primeira figura é a janela, indicando

que esse acesso é literalmente uma abertura para o mundo externo ao sujeito. A segunda

é a sua localização entre a sombra e a luminosidade. Dentro de casa, e olhando para

fora, nesse espaço limítrofe entre a luz e a sombra, Maria José se localiza numa

passagem que permitiria a ela enxergar certas coisas no mundo. Então a escrita, nesse

pequeno filme, representa uma janela e uma luminosidade que nem é tão intensa a ponto

de cegar, como muitas vezes o sol do sertão faz conosco, nem é tão débil a ponto de

impedir a leitura. No seu mundo, onde pratica os exercícios do “desenhar dos nomes”,

Maria José está de costas para a casa e de frente para a rua, o mundo aparentemente sem

limites do Sertão. Na sequência em que é expulsa de sua morada pacífica, e instada a

fazer algo “mais útil”, Maria José é arremetida de volta ao mundo da reprodução, ao

mundo doméstico, ao mundo da sobrevivência e parece então sucumbir ao mundo da

necessidade.

Portanto, nossa protagonista carrega um encerramento, uma clausura de si nas

imagens que a narrativa nos oferece. Esses aspectos são focalizados como meio para

caracterizar o sujeito na externalidade da escrita. O elemento central da narrativa fica

em torno do não dito sobre o que poderia ser a vida se, ao invés de interromper, a mãe

tivesse incentivado a continuidade do estudo por parte da criança. As imagens da

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salvação aqui se afirmam em torno daquilo que não é dito. Mas, a narrativa toda entra

em funcionamento para mostrar, a partir da intenção realista do autor, “aquilo que

acontece”, ou seja, o que realmente se passa quando o dispositivo da alfabetização não

se faz presente. Contudo, arte é simulacro, invenção de mundos e todas as citações

dirigidas ao mundo real ajudam a construí-lo, a dar-lhe forma, assim como estão sujeitas

às regras do que pode ser dito e visto sobre os sujeitos.

Há vários “não ditos” da narrativa, a começar pelo não dito sobre a personagem.

Maria é retratada num lugar de vítima. Maria é vítima dos padrões normativos de

gênero numa sociedade tradicional do campo brasileiro. Maria não esboça reação, sendo

passiva a todas as injunções. Maria não apenas se submete em silêncio como mais tarde

repete o gesto em relação à sua filha. O que não se diz sobre Maria é se ela possui

outros interesses na vida, se ela possuía conhecimentos tradicionais sobre ervas, se

Maria desenvolvia uma relação de íntima compreensão com a natureza, se ela era

parteira, ou carpideira, se Maria tocava algum instrumento musical. Ora, tudo isso que

não está dito no filme também “não interessa” uma vez que a personagem efetivamente

mostrada, o enunciado concretizado nas imagens, optou por apresentar uma Maria

passiva, vitimizada pela cultura, localizada numa relação de externalidade com a escrita

e “portanto” condenada a uma vida trágica.

O elemento que nos causa desconforto na animação "Vida Maria" repousa

justamente nesse fato de que uma discussão em torno do acesso à escrita repita o mesmo

enunciado sobre o esvaziamento da experiência do sujeito que vem sendo propagado de

forma tão continuada desde o advento da alfabetização de massas e da escolarização na

modernidade. Pelo que é efetivamente mostrado, Maria seria salva pela escrita, ela teria

direito a outra vida, em que não fosse vítima de relações trágicas. Observe-se o papel de

tal modo potente que esta enunciação exerce no circuito da metanoia moderna em torno

da escrita e da escolarização.

Numa produção audiovisual de 2006, o circuito de representação do sujeito a

partir da ausência, da pobreza, da ignorância e do isolamento mantém-se ativo ao ponto

de produzir uma peça cuja circulação é ampla, a exibição é premiada e a narrativa é

recebida de forma altamente legitimada nos mais diversos contextos, inclusive com

destaque no campo educacional, no qual compartilha a rede de conteúdos de um

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currículo cultural atuante na formação inicial de professores, em escolas de pessoas

adultas, em cursos de formação continuada e outros espaços sociais da educação.

A expectativa, por parte de quem observa a cena, é de que o acesso à escrita

poderia "salvar" Maria de sua vida "Maria", porque esse foi o investimento feito até o

presente pelo capitalismo e pelo liberalismo desde que a modernidade foi inaugurada: a

ideia de que a escola e os saberes a ela relacionados são salvadores. O que ocorre é que

a escola capitalista também é aquela dotada de imensa capacidade de produzir outra

vida "Maria", desta feita deslocada de sua experiência vital e jogada num espaço

desidentificado de si mesmo, um espaço de dessubjetivação radical (Agamben, 2010).

Experiências que propõem um espaço de esvaziamento de si, ao invés de cumprir a

promessa de potencialização do sujeito tão propagada pelos enunciados da escolarização

e da alfabetização.

O filme olha para Maria do mesmo modo que a escolarização como projeto

modernizante: pelo que lhe falta. A solidão e o isolamento cultural que o filme mostra

parecem ocorrer apenas para quem não acessou a escrita. Ou seja, na perspectiva que

adotamos nesta análise, o filme articula a mesma relação de verdade entre sujeito e

escrita que o pensamento da modernidade; tratando-se do enunciado da redução ou

aproximação da vida humana à condição de zoo, animal, em virtude de sua relação de

exterioridade com a cultura escrita.

O curta-metragem também participa da rede de enunciação sobre a vida de uma

mulher não alfabetizada ao selecionar um ponto de vista em que a personagem tem sua

trajetória esvaziada a partir da interrupção do acesso à escrita. Desse modo, participa

das regras sobre o que pode ser dito e visto quando a referência é uma mulher pobre e

negra do nordeste brasileiro. Ao produzir uma narrativa focalizada nos aspectos trágicos

de uma vida comum, o filme compartilha a regularidade que vincula escrita e

escolarização com a questão da metanoia. Ao participar dessa rede, o filme contribui

com o reforço constante dessa tecnologia que vem sustentando a escolarização de

pessoas adultas como um espaço de subjetivações constrangedoras, dentre várias

possíveis. O seu circuito de recepção e sua ampla difusão e aprovação em premiações

do campo cinematográfico evidenciam a dispersão destes enunciados e a ampla

legitimidade de que gozam. Frequentemente, a produção de experiências escolares para

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pessoas adultas a partir de um outro referencial cultural tem que se confrontar com esses

enunciados, o que certamente não é uma tarefa simples.

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CAPÍTULO 4.

O PRECÁRIO COMO ESTRATÉGIA: A VISIBILIDADE DO

ABANDONO

Neste capítulo, apresentamos a formulação dada nesta pesquisa à noção de

abandono e de Tecnologia do Abandono no processo de governamentalização da

escolarização de adultos. Também apresentamos a análise de uma série de documentos

que oferecem suporte à distribuição dos enunciados do abandono, através da política do

precário.

Abandonar é um verbo inserido no léxico da língua portuguesa no século XVI,

tomado de empréstimo do francês antigo Abandoner. Na forma anterior, francesa, a

palavra é uma derivação da locução “laisser à bandon”, cujo último vocábulo, segundo

nos informa o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa de Machado (1959),

deriva de uma forma nominal antiga proveniente do frâncico41

relativa a “poder,

jurisdição”, com registros de aparições nos territórios de língua francesa a partir do

século XII, de acordo com o Dictionaire historique de la langue française (1992). O

mesmo dicionário nos informa que a expressão francesa Abandon designa uma ação de

desistir de uma coisa anteriormente colocada sob o poder de alguém.

A expressão “donner à ban” refere-se à “dar proibição”. Então, inicialmente, o

sentido da palavra estaria ligado ao ato de proibir, e a alocação do prefixo –a remeteria

ao oposto da ação de proibir, que não seria, no entanto, libertar, mas “deixar de dar

proibição”. O sentido do termo abandonar remete, então, sua inscrição semântica à fase

em que o vocábulo sofreu uma “estabilização” do seu sentido, a uma relação com o

poder. A palavra remete ao momento em que o poder cessa sua ação. Pode-se fazer aqui

uma aproximação ao princípio soberano do “deixar viver, fazer morrer”. A interrupção

da ação do governante sobre o indivíduo corresponde a um abandono, no sentido de que

se está “entregue à própria sorte”.

O termo abandono no seu uso contemporâneo tem diversos sentidos, indo de

uma semântica do romantismo, na qual a ideia de “abandonar-se” ao amor é uma

constante metáfora da entrega, passando pelo sentido de “deixar, entregar à própria

41

Língua dos Francos, pertencente ao grupo das línguas do alto-alemão, falada atualmente por 350.000

pessoas na França, na Alemanha e também na Bélgica. Fonte:Wikipédia.

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sorte”, com largas possibilidades de significação. Abandonar, na terminologia

pedagógica, representa a ação do estudante que “deixa a escola”, desistindo dela.

A noção de abandono, a partir do que levanta Agamben quando analisa a

soberania, sugere que a ideia de inclusão é necessária à instalação da exceção. A

condição de exceção de alguns objetos aos conjuntos dos quais devem participar é

mediada pela necessária inclusão dos mesmos na forma da lei. A exclusão se estabelece

a partir da vigência da lei. A lei precisa existir para que o processo de exclusão por ela

produzido faça seus efeitos. Entre a exceção e a norma há um vínculo fundamental. Pois

a lei só é necessária porque referida a tudo quanto lhe escapa. Segundo o filósofo

italiano, “A relação da lei com a vida não é a aplicação, mas o Abandono. A potência

insuperável do nómos, a sua originária ‘força de lei’, é que ele mantém a vida em seu

bando abandonando-a.” (2010, p. 35).

É por esse caminho que a política do abandono se configura como um regime de

visibilidade. A lei funciona como um território discursivo, pois, ao tempo em que cria

um espaço de inclusão pelo qual todos são capturados ― o direito à educação ―

carrega como significado que a população se torna visível ao poder, passando, de certo

modo, a existir a partir daí como suscetível à exclusão.

Na visibilidade provocada pela lei, o corpo e a alma estão disponíveis para as

intervenções do espaço e do saber. Ali se aprende a ser alguém da cidade, ser um

cidadão, característica que alguns, muitos, não adquiriram pelo simples nascimento no

interior de um território, ou porque falam a mesma língua (apenas falam, mas não

escrevem...), é preciso tornar-se cidadão através das operações propostas pela

escolarização e sua escritura. É preciso aceitar a conversão e tornar-se outro,

participando do mecanismo que cruza as linhas de enunciação com as linhas de

visibilidade do dispositivo biopolítico da escolarização.

Dessa forma, o estudante adulto precisa estar sob as regras da escola (ainda que

pela sua externalidade) para que aja sobre ele o abandono da lei, ou seja, o momento em

que a lei se produz como ausência em relação ao sujeito, sendo esse o ponto mesmo que

justifica sua existência (2010, p.35), pois a lei se afirma enquanto referida àquilo que

lhe escapa. Nas palavras de Agamben (2010, p. 91), “o vínculo tem ele mesmo

originalmente a forma de uma dissolução ou de uma exceção, na qual o que é capturado

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é, ao mesmo tempo, excluído, e a vida humana se politiza somente através do abandono

a um poder incondicionado de morte”.

Podemos argumentar que a relação de pessoa não alfabetizada com a sociedade

na qual se estabelece a alfabetização como norma é uma relação de exceção na medida

em que ali se estabelece um atrito fundamental de uma população com o social que a

constitui. Há uma captura e uma incorporação pela excepcionalidade que se deseja em

vigor nessa relação. Seja a lei como direito à educação, há a produção de um vínculo

paradoxal entre a vida e o direito, então a lei se apresenta como vigência sem

significado, implicando a permanência no espaço escolar sem a aquisição efetiva dos

efeitos prometidos, ou a aquisição de forma precária e subalterna. Em sua performance

de norma, que reivindica sentidos à subjetividade, a forma da lei é significado sem

vigência, o que constitui o sujeito analfabeto pela dessubjetivação na experiência dessa

população, através da vergonha e do permanente apelo a tornar-se outro. Entretanto, é

pelo caminho da dessubjetivação e ressubjetivação que o sujeito pode construir tempos

outros e espaços outros no espaço de vigência da lei que é a escola, produzindo outros

significados, evitando a lei, esvaziando-a, produzindo ausências que ferem o poder

normativo, que o desgastam e assim produzem, quiçá, o estado de exceção de que nos

fala Agamben (2010, p. 65):

Ler esta relação como vigência sem significado, ou seja, como o ser

abandonado a e por uma lei que não seja nada além de si mesma,

significa permanecer dentro do niilismo, ou seja, não levar ao extremo

a experiência do abandono. Somente onde este se desata de toda ideia

de lei e de destino, (aqui compreendidas a kantiana forma de lei e a

vigência sem significado), o abandono é verdadeiramente

experimentado como tal.

Portanto, é na suspensão da vigência da lei e na ultrapassagem experiencial da

relação de abandono, em manifestação paroxística, que se pode pensar em movimentos

heterotópicos na escola de pessoas adultas.

O direito à escolarização funcionaria, nessa discursividade da Educação de

Adultos, como uma porta aberta, no sentido que Agamben relata de um “já-aberto” no

qual não se entra porque “entrar é ontologicamente impossível no já aberto”

(CACCIARI, apud AGAMBEN, 2010, p. 55). Uma das faces do alargamento do direito

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à educação e sua extensão às populações não prioritárias, como os jovens e adultos não

alfabetizados em sociedades industrializadas, é o fato de que a lei obriga. Manifesta

como direito, ela é uma oferta, mas uma exigência velada acompanha essa oferta e

(representada na norma), por esse motivo, mais do que convidadas a entrar, as pessoas

são instadas a saírem dos seus lugares e procurarem aquela prática de escolarização

protegida sob toda uma discursividade do direito.

A ambiguidade da relação entre direito e obrigação, no caso da Educação de

Adultos, aparece mais explícita ali onde o mecanismo da vergonha aciona o sujeito a

vincular-se a um projeto de escolarização e de socialização em que ele parece se

reconhecer pouco (junte-se a esse fato a proverbial desmobilização dos próprios sujeitos

adultos pela escola). Portanto, o enunciado “analfabetismo como vergonha nacional”

supõe a própria ideia de educação como direito e de escola como o campo, o espaço

destinado a normalizar essas populações identificadas pela alcunha de analfabetas.

Logo, é-se submetido pelo constrangimento e colocado simultaneamente “sob a

lei”, abandonado à lei, submetido à lei, que além de preceito jurídico é também uma

norma, uma vez que regula a normalidade e essa é a condição para estar incluído. A

distinção entre violência e norma não parece aqui tão nítida e seguimos concordando

com Agamben (2010, p.38) quando afirma que “o soberano é o ponto de indiferença

entre violência e direito, o limiar em que a violência trespassa o direito e o direito em

violência”. É essa estrutura que produz um estado de exceção nos processos de

governamento das populações não alfabetizadas, um estado de exceção em que formas

jurídicas e de subjetivação são acionadas para o eficaz processo de regulação.

A Tecnologia do Constrangimento representa em grande parte também uma

tecnologia da visibilidade, remetida ao processo de trazer à luz através de uma

nomeação específica e de formas próprias de delineamento uma população antes

dispersa na forma da multidão. Porém, é no espaço próprio da escola que a visibilidade

dessa população é um objeto sobre o qual se trabalha. Ali, certa noção de vida, a vida

escolar, passa a ser alvo de uma série de mecanismos devotados ao seu controle a partir

do que chamamos de Tecnologia do Abandono.

Por essa razão, defendemos neste estudo que a experiência escolar de pessoas

adultas não alfabetizadas constitui-se numa relação de homo sacer, em que a vida nua é

capturada pelo poder de uma forma paradoxal na qual o direito se assemelha à

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obrigação, em que o sujeito é instado a usufruir do direito como forma de salvar a

comunidade ampla da qual faz parte, mesmo sem fazer parte. No discurso da

alfabetização são usuais enunciados como “estudar para melhorar de vida”, “aprender a

ler para adquirir melhores condições de vida” ou mesmo de “nascer para outra vida”. A

vida é de tal modo focalizada no campo discursivo da Educação de Adultos (inclusive a

valorização dos saberes prévios, que inclui por sua vez a experiência de vida) ― e

muito especialmente no campo discursivo da alfabetização de adultos ―, que podemos

avançar para pensá-la como sagrada. Forçando um pouco o sentido proposto nos

estudos de Agamben (2010, p. 85), usamos o trecho abaixo para fazer uma aproximação

com os paradoxos presentes nessas relações entre o sujeito e a escolarização:

A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder

soberano como um direito humano em todos os sentidos fundamental,

exprime, ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a

um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de

abandono.

No entanto, cumpre salientar que uma Tecnologia do Abandono é operadora da

governamentalidade na superfície de inscrição biopolítica da Educação. Isso significa,

primeiro, que nem tudo o que ocorre nos processos educacionais corresponde ao que

descrevemos; segundo, que essa rede de dispositivos atua numa dispersão que envolve

vários aspectos da cultura em torno da escolarização, escrita e populações interpeladas;

terceiro, as relações dispostas pelas linhas de força do abandono, que são da ordem da

visibilidade, estão em constante processo de atuação, mas não representam uma vontade

poderosa e onipresente a esmagar os sujeitos. São, entretanto, operadas pelos sujeitos

que dela participam, são reconfiguradas, em constante movimento, fazendo-se

disponíveis para a efetivação da ação biopolítica, embora também se encontrem

disponíveis para serem desmanteladas pela ação dos próprios sujeitos.

A Tecnologia do Abandono na biopolítica da Educação de Adultos representa

uma norma de inclusão que opera a produção de subalternidades, uma vez que há

relações assimétricas de poder em jogo. Não se pode afirmar que o abandono é um

leitmotiv da escola, mas defendemos neste estudo que colocar populações não

alfabetizadas sob a lei, de modo que elas se tornem visíveis e, portanto, governáveis,

representa uma das tarefas dessa instituição.

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No entanto, o que caracteriza essa inclusão é a precariedade e a postergação. As

tecnologias do abandono compõem a curva de visibilidade, como um mecanismo pelo

qual um jogo de luz torna algumas coisas visíveis e deixa outras na invisibilidade, num

determinado campo de objetos. O escopo da análise é justamente o exercício de buscar

compreender quais regras presidem o que pode ser visto e o que deve ser ocultado.

Esse debate atravessa o mar de argumentações que constituíram a alfabetização

plena como meta do desenvolvimento social e econômico das sociedades pós-coloniais

do Hemisfério Sul, sobretudo da América Latina. Sabemos que um conjunto de

conhecimentos produzidos nos mais diversos campos conexos, e na própria pedagogia,

avançaram em problematizações sobre esse tema.

As mudanças no modelo de funcionamento do Estado, bem como o avanço da

compreensão sobre o papel da escola na produção das relações de poder (com seus

vários matizes de empoderamento e/ou subalternidade), o acréscimo de melhores

saberes em relação aos processos de ensino e aprendizagem da língua, incluindo as

noções de múltiplos letramentos e diálogos interculturais entre saberes escolares e

saberes dos sujeitos da alfabetização, enfim, todas essas compreensões vêm alimentando

a produção de práticas pedagógicas escolares no sentido de superação da condição

colonialista da escola. No entanto, no âmbito das estratégias, os efeitos das relações de

poder existentes em operação no campo da Educação de Adultos resultam numa

distribuição assimétrica das condições de acesso à tecnologia da escrita.

A visibilidade de populações não alfabetizadas e potencialmente demandatárias

de educação escolar foi constituída pelos mecanismos da estatística, do discurso da

vergonha nacional e pela produção de um aparato institucional para a sua inclusão.

Nesse aparato, as populações passaram a ser vinculadas a normas que determinam como

e quando devem se apresentar, quem é interpelado e sob quais circunstâncias, enfim,

tornam-se visíveis para a governamentalidade.

O precário é constituído pelas estratégias que se identificam sob a famosa

fórmula "educação pobre para gente pobre”, e parte da presunção bastante comum nas

elites brasileiras a respeito do critério de “merecimento” de alguns grupos populacionais

a acessar certos espaços sociais. Trata-se da ideia, muito frequente na educação de

pessoas adultas, de que com pouco se faz muito, que com poucos recursos se atingirá

um resultado satisfatório. Graças a uma racionalidade como essa, as campanhas foram a

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opção prioritária para o atendimento escolar das populações não alfabetizadas, e o

aparato jurídico obtido na década de 1990 com a vinculação constitucional do direito à

escolarização para jovens e adultos, não se fez seguir pela produção e ampliação de um

aparato institucional para o atendimento a esta população, finalizando com a sua

inserção no espaço da educação escolar das crianças e adolescentes, com todo o prejuízo

que esse incômodo encaixe acarretou.

A postergação é a estratégia fortemente relacionada à precariedade e se

manifesta de forma difusa e complexa. Postergar está relacionado ao tempo. Trata-se do

adiamento de uma ação que era esperada em um ponto determinado da nossa relação

com o tempo. Postergar é colocar um pouco mais adiante aquilo que se espera para

agora, ou para ontem. Significa colocar para a frente, sob a guarda do futuro, esse

parceiro incerto e traiçoeiro, os objetivos esperados no presente. Como capturar essa

relação se é preciso colocarmo-nos num ponto qualquer para poder determinar o que

está no seu tempo devido, o que foi adiado, o que está atrasado? Como obter esse ponto

de vista sem nos tornarmos normativos na tentativa de compreender a contingência da

vida humana?

A natureza sorrateira desse mecanismo é o primeiro ponto de sua

funcionalidade. É sobremaneira difícil acessar o regime de verdades sobre a

escolarização para poder dizer que um determinado elemento desse processo está sendo

governado pela postergação. Ora, como dizer que em processos sociais estamos diante

de um atraso, ou uma retenção do tempo de atendimento, ou uma postergação do

direito?

Reconhecer a instabilidade de tal categoria torna necessário recordar que a

análise genealógica não se pretende o estabelecimento das relações sistêmicas,

normativas, dos processos em estudo. Postergar é estudado aqui como o levantamento

de uma topografia do tempo em que os fatos do acesso à Educação pelas populações

adultas indicam que esse acesso foi tratado como algo para “depois”, para “outro

momento”, para “mais tarde”. Já citamos neste estudo o caso do financiamento pelo

Estado dessa modalidade educacional. Porém, nos documentos legais uma outra forma

de adiamento também se observa, quando, por exemplo, a Educação de Adultos só

passa a ser regulada por normas educacionais depois que outras modalidades e etapas da

Educação Básica, consideradas como prioritárias, se afirmam legalmente. Entre a

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proclamação do direito e a regulação do seu exercício, um vão, um vácuo, um espaço de

exceção em que a modalidade está não apenas disponível a ser inventada, como

abandonada sob o regime da mesma lei.

Neste trecho do estudo tomaremos o discurso verdadeiro, mas sob suspeita, de

que a escolarização é uma forma adequada de acesso ao direito à educação para pessoas

adultas, do mesmo modo que a alfabetização seria a porta de acesso a essa

escolarização. O objetivo da análise é trazer à visibilidade os modos enunciativos pelos

quais a escolarização emerge a partir das políticas centrais de oferta educacional a

pessoas adultas. Com a discussão dessa visibilidade focalizamos mais um aspecto da

face biopolítica da escolarização dedicada às populações não alfabetizadas nas línguas

de matriz colonial. Para tanto, o argumento central é de que as políticas que vincularam

alfabetização e escolarização são permeadas por estratégias marcadas pela postergação

do acesso e pela marca da precariedade, configurando que estar sob a lei pode ser um

direito, mas que as modulações desse direito, os modos como ele se apresenta

evidenciam as lutas, as oposições intrínsecas, os agonismos que demarcam as práticas.

Defendemos que esta Tecnologia constitui um polêmico debate com a presunção da

alfabetização como acesso à escolarização, e desta por sua vez como direito à Educação.

Esperamos tornar visíveis essas relações estratégicas a partir das séries que

examinam os dispositivos de subjetivação e os dispositivos de regulação presentes em

diferentes enunciados. Partindo desse ponto de vista, a primeira série para a qual

olhamos são os enunciados sobre o direito e a obrigação de estudar circulantes em

textos reitores das campanhas de alfabetização brasileiras do período de 1947 até 2003,

dentre as quais selecionamos a Campanha de Alfabetização de Adolescentes e Adultos

de 1947, o Programa Brasil Alfabetizado, de 2003, e o Movimento Brasileiro de

Alfabetização (Mobral), de 1967. Também são destacados nessa análise os principais

elementos do precário, como o tempo, a urgência, o professor leigo e os recursos

disponíveis. O cenário do precário é finalmente composto pelos apelos ao improviso,

representando uma linha de sustentação para o dispositivo da campanha, que se

desdobra também na escolarização.

O último objeto de análise dessa tecnologia são as cronologias escolares de

estudantes da Educação de Jovens e Adultos. Com essas cronologias, a ideia de uma

vida escolar é exibida a partir das lógicas produzidas pelas pessoas jovens e adultas

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sobre a própria superfície de inscrição biopolítica das práticas que as interpelam. Em

outras palavras, as cronologias, que são descrições dos movimentos de entrada,

permanência e saída dos estudantes ao longo da escolarização, evidenciam que não

apenas a instituição executa um modo de descrição e visibilidade do sujeito, mas que

este também realiza inscrições próprias sobre a superfície na qual a biopolítica se revela,

nesse caso, os documentos que registram o “histórico escolar”. Ao enunciar tempos

próprios, essas cronologias escapam do normativo e propõem tempos outros, espaços

outros dentro do espaço escolar. Esses tempos e espaços comportam-se como

heterotopias, constituindo linhas de fratura nos dispositivos de regulação presentes. A

discussão mais detida dessas linhas de fratura será desenvolvida no quinto capítulo

desta tese.

4.1. A campanha como dispositivo biopolítico

O dispositivo da campanha está inserido na estratégia geral de poder que

constitui o que vimos estudando como uma biopolítica da Educação de Adultos.

Compondo as estratégias desenvolvidas para realizar a condução das populações não

alfabetizadas, a campanha é um dispositivo por excelência, desde sua proveniência

como forma de enfrentamento ao inimigo, ao perigo, ao elemento ameaçador, seja ele

um povo guerreiro que ameaça o Estado, seja uma fé que ameaça o imperialismo

religioso, seja uma bactéria que ameaça a saúde de uma população. A campanha é parte

dos dispositivos de segurança pelos quais o Estado intervém sobre o corpo, a mente ou a

alma das populações. Campanha é uma forma de intervenção rápida, localizada e

intempestiva sobre um problema.

A crítica histórica às campanhas de alfabetização é um campo de enunciados

sobre o devir da EJA e seus sujeitos, servindo de eixo articulador para várias

enunciações e demarcando posições de sujeito nas relações de poder instituídas nesse

campo. No jogo da historicidade dessas práticas, a educação básica para pessoas jovens

e adultas é uma decorrência do reconhecimento das campanhas como mecanismos de

baixa eficácia para obtenção de conhecimento poderoso para a vida social. O

desenvolvimento da noção de qualidade como um aspecto fundamental do direito pleno

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à educação compõe o quadro de mudanças nas demandas sociais sobre a escola. O

campo da Educação de Adultos incorporou a discursividade da ideia de educação básica

cedo em sua formação, mas a dimensão prática, extra-discursiva, do campo só observou

a efetividade dessa ideia no final do século XX, e ainda de forma pouco contundente.

Isso significa que o dispositivo de atendimento por campanhas se impôs e observou uma

vigência ampla que chega à atualidade.

Na ordem biopolítica da trajetória da Educação de Adultos no Brasil, as

campanhas e a escolarização formal representam os dois modelos produzidos para dar

consecução aos objetivos de Estado direcionados à população não alfabetizada. As

campanhas podem ser consideradas, primariamente, como agentes de escolarização, por

atuarem na direção das práticas escolares, embora numa relação ambígua e contraditória

com a escola. A escolarização formal é discursivamente construída como aparato

estável, permanente, e como “um espaço democrático de conhecimento e de postura

tendente a assinalar um projeto de sociedade menos desigual” (CURY, 2000, p. 8). Ao

constituir-se a escola como o ponto de chegada de uma trajetória de “inclusão” social e

acesso democrático ao conhecimento, parece evidenciada uma pressuposta supremacia

desse modelo em relação ao das campanhas. Mas, trata-se de um espaço de crise, de

posicionamentos em disputa pelos significados desse campo do real, num processo

simultaneamente agônico e produtivo.

A leitura do dispositivo da campanha é o exercício de descrição e compreensão

do funcionamento da racionalidade biopolítica da Educação de Adultos que, ao tempo

em que interpela os sujeitos pelo argumento do direito, da inclusão, e da emergência em

“resolver seu analfabetismo”, resolve-se em processos mediados pela política do

precário. A política do precário responde pela forma do abandono à lei que torna as

pessoas não alfabetizadas visíveis no espaço da institucionalidade do Estado. A partir

das campanhas, essas populações passam a ser “sujeitos de direitos” e podem enfim ser

administradas como convém à governamentalidade.

O que chamamos de dispositivo da campanha assume esse lugar na perspectiva

de uma trajetória histórica que narra o que passou a ser esse conjunto de objetos

envoltos em uma relação de poder que cria inclusões perversas (SOUZA, 2004) e

visibilidades constrangedoras. As campanhas já foram parte das estratégias de nascentes

movimentos sociais de orientação crítica, mais tarde identificados no campo da

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educação popular. O modelo de atuação por campanhas já esteve inscrito numa lógica

emancipatória, tendo sido mesmo fundado sob essa perspectiva. Para Fávero (2005), a

relação entre as campanhas e os movimentos sociais pela Educação de Adultos no

Brasil são intrínsecas. Segundo Weber (1984, p. 234), a educação se apresenta como

uma das principais demandas de um contexto marcado por uma complexa correlação de

forças: “a educação popular teria se transformado pouco a pouco em uma das formas da

disputa por hegemonia que punha em confronto grupos sociais com propostas de

organização social de natureza diversa”.

Essa relação demarca o momento da emergência do dispositivo, no marco de

relações sociais complexas de subordinação e emancipação das classes populares,

mulheres e negros adultos não alfabetizados e do papel que a escolarização passa a

assumir nessa relação. Atravessam o dispositivo as relações de classe, mas, sobretudo,

de raça e gênero.

O contexto do Brasil em meados do século XX é apontado por Souza (2004)

como período favorável à emergência de pedagogias. Para o autor, as pedagogias

emergem da dimensão conflituosa que envolve diferentes grupos sociais em luta.

Foucault (1988, p.103) entende o dispositivo no quadro da analítica do poder, e de um

poder que não se apresenta como instituição nem estrutura, mas como dimensão

estratégica:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a

multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se

exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de

lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os

apoios que tais correlações de força encontram umas nas outras,

formando cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e

contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se

originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo

nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais.

Compreendemos que é justamente no contexto das lutas pela definição dos

rumos da educação que ocorrem as relações que suscitarão o dispositivo da campanha.

Como já explicitou Carlos (2008, p.21), “a assunção da Educação de Adultos se deu,

sobretudo, através de sua vinculação com a problemática da instalação de um regime

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republicano, alicerçado no direito, não no privilégio, na democracia, não na monarquia

ou aristocracia, na nação, não nos interesses particulares”.

A campanha se torna condição de inteligibilidade para a Educação de Adultos

acompanhando o debate sobre o desenvolvimento, que exigia urgência, tal como ficou

configurado no famoso slogan dos "50 anos em 5" do presidente Juscelino Kubitschek.

Entre as urgências, o desenvolvimentismo exigia a superação rápida de problemas

considerados graves ameaças ao projeto, como o analfabetismo. Simultaneamente à

instalação de um regime de aparência mais republicano, era preciso garantir também

uma camada de legitimidade popular, que viesse a ser o lastro da nacionalidade que se

afirmava no novo projeto. Mas, conforme alerta Chaterjee (2004, p.100),

A ideia de soberania popular tem uma influência mais universal que a

ideia de democracia. Mesmo os regimes modernos mais

antidemocráticos têm de reclamar legitimidade não sobre o direito

divino, a sucessão dinástica ou o direito de conquista, mas sobre o

desejo do povo, qualquer que seja a forma pela qual esse desejo se

expresse. Autocracias, ditaduras militares, regimes de partido único –

todos governam, ou afirmam governar, em nome do povo.

Se esse projeto se realizasse de forma a garantir simultaneamente padrões

adequados de controle das condutas, tanto melhor. No campo da educação, o

agenciamento específico dessa problemática relação com as populações não

alfabetizadas, cujo voto era alvo de desejo e de repulsa por parte do poder, cujas

matrizes de organização da vida eram baseadas na experiência ancestral mesclada com a

dureza da vida pós-ato abolicionista, representava um desafio de monta, que não era

ignorado pelos grupos que operavam a frágil hegemonia então vigente.

Observamos que as campanhas nascem de uma série de procedimentos críticos e

de práticas envoltas por contextos conflituosos e vêm à tona a partir de uma

discursividade emancipatória, crítica, que visava a mudanças e mantinha compromissos

de ordem pública com grupos desfavorecidos, subordinados nas relações de poder

vigente.

Voltando à dimensão conflituosa dos contextos que originaram o dispositivo, o

País passava por um momento importante de redefinição das forças políticas na primeira

metade do século XX. Esse contexto demarca a dimensão estratégica das práticas que se

materializam no dispositivo no contexto, na luta entre classes, frações de classes e

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grupos opositores. A construção da hegemonia política passava pela educação, não

apenas no tocante à dimensão de subjetividade apontada por Gramsci como fator

decisivo para a tomada de poder, mas, sobretudo, pela luta objetiva pela quantidade de

eleitores.

A questão da alfabetização de adultos e da educação popular passa por

justificativas tais como as que indicamos acima. O enunciado do sujeito, de sua vida,

seu direito à aprendizagem, a possibilidade de a educação conferir qualidade em sentido

amplo à vida humana se fez presente nos discursos pela educação popular em alguns

contextos específicos e temporalmente marcados, como os documentos reitores das

campanhas originadas em grupos como Movimento de Cultura Popular e o Movimento

de Educação de Base, mas o debate público inicial sobre a necessidade de combate ao

analfabetismo era o argumento mais presente, no contexto de um Brasil do início do

século XX e até meados dos anos 1960. O sujeito adulto não alfabetizado era um ente

externo da educação como direito, menos um endereçamento e mais um fator estatístico

no marco dos discursos do período.

A dimensão quantitativa presente nos discursos de então, chamados por Paiva

(2003, p.37) de “otimismo pedagógico”, é uma das linhas de força que encontramos no

dispositivo da campanha, sendo um dos seus enunciados mais frequentes. Essa linha de

força assume a forma do discurso estatístico e representa um dos principais argumentos

em torno da realização de ações de governo sobre a população analfabeta. No

nascimento do dispositivo, a pessoa não alfabetizada já não era pessoa, mas número:

O 'entusiasmo pela educação', caracterizado por preocupações

eminentemente quantitativas em relação à difusão do ensino, visava à

imediata eliminação do analfabetismo através da expansão dos

sistemas educacionais existentes ou da criação de para-sistemas, de

programas paralelos – de iniciativa oficial ou privada, abstraindo os

problemas relativos à qualidade do ensino ministrado. Seu

aparecimento, coincidindo com a maior firmeza conseguida pelo

industrialismo na década de 10, parece estar ligado ao problema da

ampliação das bases eleitorais, através do aumento do número de

votantes proporcionado pela multiplicação das oportunidades de

instrução elementar para o povo. (PAIVA, 2003, p.37, grifos nossos).

Observamos aqui duas linhas de desenvolvimento de práticas que vieram a

caracterizar o dispositivo da campanha. De um lado, temos o processo de constituição

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de práticas de mobilização de sujeitos não alfabetizados, a conclamação da sociedade à

luta pela escolarização e contra o analfabetismo, e de outro temos a aproximação das

ações das campanhas à cultura escolar, aos seus métodos e, por conseguinte, aos seus

mecanismos de controle e vigilância. De um lado, as ações de mobilização de sujeitos, o

enunciado da mobilização, a nosso ver, reificador da pessoa não alfabetizada. De outro

lado, o dispositivo da escolarização agindo sobre o processo de alfabetização de grupos

populares, disputando o domínio das práticas com as nascentes propostas de ação

pedagógica alternativa.

O estudo de Paiva (2003) além de servir como rica fonte de dados (ainda que

não seja uma fonte primária) é importante no vislumbre da relação entre o dispositivo da

campanha e a educação escolar de adultos. A existência de mais de um caminho para a

EJA, incluindo as práticas de alfabetização de adultos, é flagrante desde o seu

aparecimento. Segundo Paiva (2003, p.187, grifo nosso), alguns “acreditavam ser mais

razoável solucionar o problema do analfabetismo através da maior ampliação das redes

de ensino elementar comum e os que solicitavam medidas de efeitos mais a curto prazo,

enfatizando a necessidade de programas especiais para adultos.”

Trata-se de um processo de institucionalização progressiva das práticas de

alfabetização das populações, em que a presença do Estado vai se fazendo mais forte

paulatinamente. O marco dessa institucionalização é a assunção definitiva dos

programas pelas políticas públicas de educação, no marco dos governos neoliberais do

início da década de 1990 no Brasil. O título dessa regularidade é o “Programa

Alfabetização Solidária”, mais tarde transformado em “Programa Brasil Alfabetizado”.

A escolarização das práticas de campanhas (no contexto contemporâneo chamadas de

"programas" por inserção de uma terminologia tecnocrática) assume seu apogeu através

do campo normativo criado pelos documentos reitores desses dispositivos.

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4.2. Urgência, parcimônia e improviso: regularidades discursivas nas

campanhas de alfabetização brasileiras 1947-2003

O precário foi se impondo como linha de força no dispositivo no cenário das

lutas de concepção, em que escolhas como a de uma solução rápida para o problema

venceu a perspectiva que defendia a ampliação das redes públicas em todo o território

nacional. Quando se optou pela contratação de ações terceirizadas junto à sociedade

civil, pelo professor leigo, por ações de caráter pontual, por práticas de baixa inversão

financeira.

A questão do financiamento público da educação, acompanhado pelo discurso da

educação como direito de todos, redundou em decisões de investimento em EJA, mas

apenas no marco temporal de curto prazo (justificando as campanhas) o que apresenta

inegável vinculação com a opção eleitoreira da maioria dos governantes em relação a

essa modalidade.

A política do precário fez com que apenas em 2011, portanto, já no século XXI,

o financiamento da EJA pelo estado brasileiro atingisse os 100% do repasse per capta

previsto para os estados e municípios. Em outras palavras, no contexto de uma

Constituição cidadã, de uma LDB que institui a Educação de Adultos como política de

Estado, a despeito do princípio da isonomia entre os cidadãos brasileiros, a EJA foi

deixada para “depois”, só atingindo a totalidade do financiamento a que fazia jus depois

que todas as outras populações do setor educacional haviam sido atendidas na sua

“plenitude”.

Desse exemplo deriva a crença de que o dispositivo da campanha é econômico

no sentido monetário, despendendo baixos recursos para solucionar os problemas a que

se refere. A permanência dessa racionalidade, o fato de que essa regularidade se

mantém em contextos históricos e políticos tão diversos em seus arranjos hegemônicos

é um dos fatos que nos mobilizou à realização do presente estudo.

A urgência sob a qual foram colocadas as práticas de Educação de Adultos

remete tanto à lógica do tempo na sociedade ocidental, o tempo do progresso rápido,

dos movimentos acelerados, das imagens imprecisas e dos encontros furtivos, típicos da

modernidade, logo, o tempo do controle, mas também se refere à precariedade desse

tempo para a vida humana e o atendimento de suas necessidades. O problema da

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alfabetização das massas tem seu contraponto exato no tempo que a nação vem levando

para atingir patamares de alfabetização considerados adequados (taxa de analfabetismo

adulto menor que 5%, segundo a UNESCO). Contra o tempo da urgência colocam-se

também os tempos distópicos das cronologias escolares da Educação de Jovens e

Adultos.

Ao inserir-se na discursividade da Educação de Adultos, o dispositivo da

campanha encontrou nos enunciados da metanoia sua contraparte retórica, na

predisposição estatal em ampliar à instrução básica sua base material, no processo de

urbanização desencadeado pelas recentes políticas de industrialização sua justificativa

biopolítica, uma vez que as populações estavam agora configuradas como um problema

de governo sobre o qual era preciso operar.

Como parte de seu horizonte de formulação, as campanhas possuem documentos

geradores de sua prática, manuais de orientação sobre os passos que deveriam ser

seguidos. Nesses documentos estão presentes as finalidades, os procedimentos

metodológicos, a concepção de educação ou de alfabetização, o modelo de pessoa que

se espera formar. Além disso, trazem também as marcas da vontade de poder investida

nesses dispositivos, as formas da subjetivação, a reminiscência dos jogos de verdade

que os atravessam. Selecionamos alguns documentos, relativos a três conjuntos de

enunciados que expressam como o dispositivo da campanha colaborou com a

biopolítica da Educação de Adultos, através de um projeto de governo do corpo, da

alma e da vida política da pessoa não alfabetizada.

O primeiro elemento refere-se aos enunciados que se relacionam com o tipo de

sujeito a ser produzido a partir das populações não alfabetizadas. Essas posições se

tornam mais evidentes quando as campanhas enunciam entre seus propósitos, ou

finalidades de existência, objetivos como, por exemplo, os expressos nos documentos

de trabalho do Projeto Rádio Educativa Nacional (SIRENA), de 1957: “Formação do

caráter: simplicidade, sinceridade, discrição, justiça, cortesia, bondade, solidariedade,

amizade, economia, previdência, respeito às leis”. Como dispositivos operadores de

relações de subjetivação, as campanhas possuíam, aliás, como todo projeto educativo,

um perfil de sujeitos a serem formados. Não é estranho que esse perfil seja traçado

conforme as expectativas dos grupos que operavam as políticas.

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As características apresentadas falam dos lugares de onde se enuncia a produção

de sujeitos cujo caráter fosse simples, sincero, discreto, justo, cortês, bondoso, solidário,

amigo, econômico, previdente e obediente às leis. Além disso, a Campanha Nacional de

Adolescentes e Adultos, como foi denominada essa primeira operação da biopolítica,

planejava instalar nas comunidades centros cívicos, voltado à “propagação de

informações úteis, no sentido da educação da saúde, da educação cívica, da

vulgarização das modernas técnicas de produção agrícola e de pequenas indústrias”.

(MARIANI, 1947, p. 65). O pacote da alfabetização, ao lado do direito de estudar,

carregava tudo aquilo que o Estado brasileiro temia nas populações não alfabetizadas: a

doença, a deserção, a improdutividade no trabalho do campo ou da cidade.

Para o então ministro da Educação, Clemente Mariani, a campanha de 1947 seria

uma “salvação nacional” e uma “nova abolição”. Ao criar esse paralelo, Mariani

demarcava exatamente a destinação social dos processos de alfabetização benevolentes

que então começavam a se desenvolver. Na Campanha Nacional de Educação Rural

(CNER), lançada em 1952, as finalidades anunciadas tornam mais evidente esse

endereçamento, voltado às populações negras de ex-escravos, cujos modos de vida, os

usos do corpo, as práticas de conhecimento fundamentalmente orais eram

responsabilizadas pelo subdesenvolvimento do País:

Menos da necessidade de alfabetizar e mais da necessidade de

aculturar populações infensas à alfabetização, isto é, que ainda não

haviam encontrado no alfabeto o valor instrumental que possuíam

para as populações urbanas e semi-urbanizadas. A educação de base

estava sendo utilizada em outros países para recuperar, em larga

escola, populações de áreas subdesenvolvidas, cujos problemas de

carência, desnutrição, baixos níveis de vida, baixa produtividade,

rotina de trabalho, alta mortalidade infantil constituem peso morto na

organização social e econômica de vastas regiões do globo.

(REVISTA DA CAMPANHA NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE

BASE, p. 17, grifo nosso)

Destacamos o trecho acima como forma de evidenciar a violência intrínseca a

esse projeto. Por trás de um desejo de promoção da sociedade brasileira a outro grau de

desenvolvimento, esconde-se um desejo de eliminação que é diuturnamente endereçado

às populações negras. A alfabetização se tornou um “cavalo de Tróia” dos processos de

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dominação simbólica voltados contra essas populações. Embora o fenômeno do

analfabetismo fosse largamente vigente na sociedade brasileira do início do século XX

― mais de 70% da população do Nordeste ― atingindo brancos e negros, o índice de

analfabetismo entre os negros, segundo o Censo demográfico de 1940, atingia algo em

torno de 81% da população na categoria racial preta, 74% na categoria pardos, e 61%

entre os brancos42

.

As séries históricas sobre analfabetismo e raça evidenciam taxas da população

negras continuamente mais baixas que as da população branca. A essa mesma

constatação chegou Rosemberg (1992, p. 305), levando-a a afirmar: “Enquanto a

discriminação racial persistir, o analfabetismo não irá desaparecer”, o que corrobora

nossa hipótese de que o analfabetismo em si, e toda a biopolítica inventada para

substituí-lo, são mecanismos de conduta com efeitos de dominação endereçados

primordialmente às populações negras. Ao lado da desigualdade de renda, o racismo,

como política de segurança do Estado, como mecanismo de separação que pressupõe a

eliminação, é um dos fatores que intervém na produção da escolarização das populações

adultas como uma biopolítica.

A necessidade e a urgência de transformação dessas populações em massas

administráveis e “úteis” foram recorrentes. O processo de aculturação das populações

não alfabetizadas fala desde um lugar de enunciação externo. São os outros, são

“aqueles”, externos à nação, mas presentes, externos à cultura, que precisam ser trazidos

para dentro. No mesmo documento, a CNER afirma ainda:

Fonte: Revista da Campanha Nacional de Educação Rural, p. 17.

42

Fonte: Rosemberg, 1996.

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A assunção sem constrangimentos de um projeto de “substituição de culturas”

soa estranha aos nossos ouvidos contemporâneos, comprometidos com políticas de

promoção da equidade e convivência com a diferença. Mas, esse projeto não apenas era

legitimado naquela década de 1950, como era assumido como compromisso

governamental. O dispositivo da campanha se prestou, assim, a um bom número de

práticas de governamentalidade, pelas quais foram agenciadas diversas estratégias das

relações de poder que envolviam as populações não alfabetizadas, classes populares

como eram chamadas no momento, e as classes proprietárias, que se consideravam

donas, inclusive da ideia de nação e de uma suposta “civilização brasileira”. O

dispositivo deu corporeidade à biopolítica ao entrar em diálogo direto com as

populações, ao impulsionar uma macroestrutura de acesso aos indivíduos, ao produzir

uma camada de práticas que acionavam corpo, pensamento e alma dos sujeitos numa

direção adequada aos interesses em jogo.

O dispositivo da campanha organizou-se sobre uma expectativa de baixo

investimento financeiro, e mesmo o reconhecimento de uma causa nacional tão

abrangente, com tantas finalidades vinculadas, exigia dos promotores constante apelo à

economia das inversões financeiras nas campanhas. Conforme artigo de Lourenço Filho

publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, em agosto de 1947: “Pode-se

afirmar, desde já, no entanto, que as dotações destinadas a estes dois últimos itens serão

gastas senão em parte reduzida, dadas as normas de rigorosa economia com que os

serviços estão sendo executados”.

Fonte: Plano Piloto de Erradicação do Analfabetismo – 1958, p.7

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Fonte: Carta enviada ao ministro da educação em 1957, sobre o Projeto Rádio

Educativa Nacional, argumentando sobre a validade do método de ensino pelo rádio.

Ao lado dos aspectos materiais das políticas do precário há também os aspectos

relacionados à parcimônia na distribuição dos saberes. As campanhas não são as

escolas, nem universidades. São ações intempestivas voltadas a dar solução rápida de

instrução a amplos contingentes populacionais. No projeto de nação que então se forma,

a integração desses contingentes, como já é sabido, não contemplava uma distribuição

do poder, nem mesmo da riqueza circulante. O que estava previsto, na melhor das

hipóteses, era a integração subordinada da força de trabalho e a criação de um mercado

consumidor interno que de algum modo propiciasse uma rede de consumo à nascente

produção industrial. Nunca é demais recordar que a indústria automobilística se instala

no País a partir desse momento, graças à bem estruturada articulação dos organismos de

cooperação estadunidenses junto às elites brasileiras.

Portanto, as campanhas agenciavam uma estratégia de distribuição parcimoniosa

de conhecimento, como figura em vários dos documentos tanto da década de 1950,

quanto de 1960. Essa que era uma característica das correlações de poder vigentes nesse

momento em que o dispositivo começa a operar, se desmaterializa e se desdobra numa

racionalidade que fornece sentidos, por exemplo, para as práticas curriculares da

Educação de Adultos, frequentemente mediadas pela lógica do tempo menor, pela ideia

de que o adulto tem pressa, que precisa de menor tempo de aprendizagem e que o seu

currículo pode ser menos extenso.

É mais uma vez Lourenço Filho (1947, p.11), discorrendo sobre a Campanha

que coordenava, quem explicita esse enunciado:

Não visa a Campanha, no entanto, apenas essa aprendizagem

elementar, mas também a da difusão de noções sôbre a conservação da

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saúde, o trabalho, a economia e a formação moral e cívica. Isso está

sendo feito, e os meses restantes de ensino atenderão de modo especial

a esses pontos, para os quais conveniente material está sendo

ultimado.

As campanhas, na abrangência de seus objetivos, visavam, além do corpo, à

administração do tempo liberado das populações. De forma explícita ou mais sutil, a

noção de combate à “malandragem” constituía um dos escopos do dispositivo. Na

declaração do ministro Clemente Mariani sobre a Campanha de 1947, aparece

explicitamente este objetivo:

Onde fôr desde logo possivel, tratar-se-á de criar "centros de

comunidade", nos quais grupos de populações, agora como que

marginais, se ponham em maior contacto com a cultura, por

intermédio do rádio, do cinema, e de coleções de livros e de jornais.

Será preciso favorecer a vida social nos pequenos centros, para as

preocupações mais nobres e elevadas da vida.

O projeto civilizatório enviado às populações não alfabetizadas envolvia o

acesso a bens culturais também como pequenos mecanismos de controle do tempo, das

mentes, dos modos de vida, revelando as campanhas como dispositivos muito sutis e

abrangentes de controle das condutas, sobre os quais o poder investiu fortes

expectativas. Na Campanha Nacional de Educação Rural, um dos objetivos era assim

apresentado: “5) contribuir para a elevação dos padrões educativos, sanitários,

assistenciais, cívicos e morais das populações do campo” (REVISTA DA CNER, 1959,

p. 22).

Tratava-se de uma produção de mecanismos direcionados à vida inteira do

sujeito: uma governamentalidade ampla, abrangente, de pretensões totais: “o trabalho

não visará apenas a alfabetização. Cada classe deverá ser um centro de propagação de

informações úteis...”. A substituição da cultura do povo, o ensino de noções mais

“úteis” para sua vida, a administração do seu tempo. Todas essas ofertas compunham a

promessa de desenvolvimento oferecida às populações não alfabetizadas, e para isso

elas só precisavam aderir às campanhas.

O precário também atingia, ao lado da parcimônia dos saberes, e como um dos

operadores desse aspecto, o recurso à mão de obra de baixa qualificação. A docência no

âmbito do dispositivo é exercida por qualquer pessoa bem intencionada, com desejo de

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ajudar a pátria e dotada de disposição para o trabalho voluntário. No chamamento aos

professores da Campanha de 1947, o tom messiânico não passa despercebido:

Ao assumirdes a regência de uma classe de ensino supletivo para

adolescentes e adultos analfabetos, cumpris uma das mais belas tarefas

de vossa missão de educador. Onde quer que trabalheis, nas cidades

ou nos campos, estareis colaborando num grande movimento de

redenção nacional e humana.

No entanto, o reconhecimento desse papel não era coetâneo das reais condições

em que a docência existia no âmbito do dispositivo das campanhas. No documento

nº428, de 11/04/1957, exposição de motivos na qual o Sr. Heli Menegali argumenta

sobre as vantagens do Sistema Rádio Educativo Nacional, assim se refere à docência:

É do domínio comum que, em vários estados, não somente as escolas

do Serviço de Educação de Adultos mas também do ensino

fundamental comum (curso primário) são entregues, tem de ser

entregues, à boa vontade de pessoas sem formação profissional, ou

seja, aos chamados docentes de emergência.

Percebe-se a antiguidade da opção pelo educador leigo, alvo de outras análises e

críticas já consolidadas no campo de estudos da Educação de Adultos (BEISIEGEL,

2003). Embora argumentos dos mais variados sejam levantados para justificar essa

opção, inclusive o fato real de que não havia profissionais suficientes para a magnitude

da tarefa, a ideia de atuar com “docentes de emergência” se institui e perdura nas

campanhas até o século XXI, quando, em anos recentes, apenas depois de 2003, passou

a existir a exigência de formação mínima no magistério, ou Curso Normal Médio, para

atuação nas campanhas contemporâneas. A docência na tecnologia do precário é mais

uma forma política que se desmaterializa, relativiza as condições materiais, e se inclui

entre os traços daquelas escolhas cujos determinantes desaparecem na poeira do tempo,

ficando assemelhados a fatos da natureza. E uma das características vantajosas do

dispositivo é justamente sua capacidade de oferecer aquilo que se espera, sem, no

entanto, garantir sua real aquisição.

O Movimento Brasileiro de Alfabetização ― cuja sigla "Mobral" foi

transformada pelo uso coloquial em adjetivo pejorativo relacionado à noção de

ignorância ― foi a campanha do período da Ditadura Militar. Num de seus tantos

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enunciados legais, informa que a docência no processo de alfabetização de adultos

mantém, ao longo das décadas de 1960 e 1970, uma relação contínua com o improviso e

com a marginalidade:

Art. 1º A colaboração dos Professores, Monitores ou Alfabetizadores,

recrutados pelas Comissões Municipais da Fundação Movimento

Brasileiro de Alfabetização - MOBRAL para o desempenho de

atividade de caráter não econômico e eventual, não acarretará

quaisquer ônus de natureza trabalhista ou previdenciária.

A condição voluntária do trabalho desenvolvido pelos alfabetizadores e

alfabetizadoras nas campanhas, desde uma enunciação ligada ao patriotismo, modifica-

se para uma enunciação em que apenas o vínculo voluntariado permanece, caracterizado

pela relação de escassez de recursos financeiros ligados a essa atividade. Logo, temos

um cenário em que o sujeito alfabetizando é produzido como alvo de uma metanoia,

vinculado a uma ação que deveria prezar pelo baixo custo e resposta rápida, auxiliado

em sua instrução básica por um professor sem formação específica, cuja relação de

trabalho é reduzida a um vínculo voluntário, mediado pelo pagamento de um tipo de

apoio ou, num linguajar mais contemporâneo, uma bolsa, cuja regra central são os

valores irrisórios de contrapartida pelo serviço de alfabetizar uma nação em

desenvolvimento.

Percebe-se a disparidade entre os enunciados dos objetivos, do assombro com a

“vergonha nacional” e os enunciados da contrapartida investida pelo Estado na

superação desta “condição vexatória”. Entre uns e outros, a política do precário reveste

as práticas, conferindo uma inteligibilidade que integra os diferentes enunciados numa

certa estratégia geral do poder, relativamente às populações não alfabetizadas. Na

campanha de 2003, chamada Programa Brasil Alfabetizado, já no século XXI, em plena

era conhecida como “sociedade da aprendizagem” e numa conjuntura política de

ascensão de um novo ciclo desenvolvimentista, o enunciado sobre remuneração dos

docentes envolvidos com a alfabetização é proposta como uma relação de troca e

controle de metas a partir da ação docente:

§ 1º Na hipótese de se verificar, em cada uma das turmas cadastradas,

evasão superior a 4 (quatro) alfabetizandos, o OEx deverá descontar

da bolsa do alfabetizador o valor correspondente a R$ 7,00 (sete reais)

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por alfabetizando evadido. O desconto incidirá no mês subsequente ao

registro da evasão.43

Portanto, o comportamento do poder em relação às populações não alfabetizadas

parece guardar uma linha de regularidades que se tornam visíveis a partir desses

pequenos pontos de cruzamento. A condição da docência no âmbito da campanha de

2003 se modifica a partir de 2008, quando o professor alfabetizador passa a ser

declarado pelo documento reitor, a Resolução, como um dos beneficiários do Programa.

Especificamente, passa a ser “voluntário alfabetizador”. Ao incorporar na condição de

beneficiários aqueles que já detiveram a condição de benfeitores, a biopolítica passa a

incorporar a massa de alfabetizadores à mesma condição da massa de sujeitos não

alfabetizados. O quadro se completa com a ilação de que a esta altura o País já dispunha

de uma população de docentes de formação precária conduzida pelas escolas normais, à

altura, já extintas.

Agenciando uma formação vulnerável, com a precariedade da relação de

trabalho, caracterizada pela escassez financeira, o dispositivo da campanha estabelece

assim uma governamentalidade intrínseca ao campo da Educação de Adultos.

Conduzindo essa governamentalidade, uma racionalidade composta pelas relações de

visibilidade da população não alfabetizada no âmbito do Estado brasileiro se dá mediada

pela luz tremulante de uma vela iluminando um vão cheio de rostos indivisos,

ameaçados a serem outros continuando, no entanto, a serem eles mesmos.

Os enunciados da campanha configuram, assim, a política do abandono a partir

da precariedade expressa nas opções pelo baixo investimento financeiro, professores

com formação inadequada, objetivos direcionados claramente ao governo da população,

etc. Estar sob a lei, nessa perspectiva, ou seja, governamentalizado no espaço

biopolítico da campanha, permitiu que o Estado atuasse sobre as populações não

alfabetizadas ao longo do século XX. As práticas de postergação, mais visíveis no

espaço biopolítico da escola, serão tratadas a partir do delineamento das cronologias

escolares, em seu cruzamento com as possibilidades heterotópicas dos movimentos da

população estudados no próximo capítulo.

43

RESOLUÇÃO Nº 22, DE 20 DE ABRIL DE 2006: estabelece os critérios e os procedimentos para

transferência automática dos recursos financeiros do Programa Brasil Alfabetizado aos estados, ao

Distrito Federal e aos municípios.

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196

CAPÍTULO 5.

TEMPOS E DESLOCAMENTOS DIVERGENTES NO ESPAÇO

BIOPOLÍTICO DA ESCOLARIZAÇÃO

Procurando analisar a presença do biopoder e alguns de seus efeitos no processo

mais amplo de escolarização de pessoas adultas, esta parte do nosso estudo se debruça

sobre o registro geral de arquivamento da informação sobre a população de pessoas não

alfabetizadas, quando inseridas no aparato biopolítico da escola. Esse material é

atravessado por racionalidades estatísticas, políticas e culturais que lhes dão condições

de existência. Essas racionalidades conformam uma grade de visibilidade sobre a

Educação de Jovens e Adultos, a face escolarizada e contemporânea no Brasil do

fenômeno mais abrangente da Educação de Adultos.

Quando vislumbramos os efeitos do dispositivo da escolarização em sua

atualidade, cremos poder falar de uma análise do que o dispositivo representa para as

relações sociais nas quais ele está implicado, no caso, como a população de adultos não

alfabetizados no Brasil chega ao aparato escolar e se configura como sujeito de uma

escolarização subalterna mantida pelo Estado. Nesse quadrante, estamos num outro

lugar que já não é apenas o flagrante da emergência de uma forma de poder, mas sua

efetividade na produção do Presente.

Os documentos aqui focalizados compõem o regime de visibilidade, ou

Tecnologia do Abandono, uma forma de exibição do sujeito não alfabetizado que entra

em atuação após sua chegada ao espaço normalizador da escolarização. São históricos

escolares de estudantes de EJA do Ensino Fundamental de uma rede pública de ensino

que resguardam um manancial das informações consideradas úteis, através das quais o

Estado produz a administração da população. Embora tal documentação desfrute de um

valor de verdade para essa organização, Raffestin (1993, p. 67) nos lembra que se trata

de “uma representação da população. Sem dúvida uma representação abstrata e

resumida, mas já satisfatória para permitir uma intervenção que busca a eficácia.”

Destes documentos muitas coisas podem ser ditas e escritas. Mas, nosso

exercício consistiu em “deixar falar” essa documentação, o que significa passar o

arquivo pela grade de análise que vem buscando compreender como a educação escolar

de jovens e adultos no Brasil se constitui como uma não ignorável face biopolítica. Essa

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197

grade nos propõe observar os movimentos da população visíveis nesses documentos,

que representam as migrações de indivíduos e de parcelas da população por dentro do

território complexo da escolarização.

A leitura desses documentos nos permite ver o tipo de inscrição que demarca os

sujeitos da EJA em várias dimensões, desde a catalogação de sua identidade racial, de

gênero e etária, sua origem geográfica, sua ascendência, até a classificação geral dos

passos de sua caminhada individual no meio escolar, em enunciados como “retido”,

“aprovado”, “desistente”, utilizados para descrever um tipo de relação da escola com o

sujeito adulto, e das populações não alfabetizadas adultas com a escola.

Essa matriz de relações nos permite observar que, contrariamente à expectativa

geral de que a EJA se resolveria com fórmulas apressadas de tempo, com modos

intempestivos de atendimento, os sujeitos acabam inscrevendo, sobre a face biopolítica

dessa modalidade educacional, outros movimentos que terminam por demarcar tempos

e espaços outros.

Os deslocamentos dessa população pelo dispositivo de escolarização são

entendidos então como movimentação no espaço, mas também enquanto

problematização de racionalidades instaladas como crenças na feitura cotidiana daquilo

que vem sendo produzido como uma escola para pessoas adultas. Nesse sentido, as

racionalidades instaladas constituem regimes de verdade dotados de especial poder na

escolarização, seja a premissa de que o ensino pressupõe a presença diante do mestre,

seja a crença de que a frequência diária é um dispositivo pedagógico de garantia da

aprendizagem.

As populações não alfabetizadas provocam deslocamentos nessa racionalidade

que dá suporte à escola através de movimentações paradoxais, como longas

permanências, excessos de ausência, e a constituição de regimes de presença próprios

que desestabilizam as bases sobre as quais está organizada essa instituição. O exercício

do olhar analítico sobre a documentação enfocada nesta parte do trabalho nos permitiu

identificar que as movimentações dos estudantes pelo aparato escolar são formas

heterotópicas de ocupação do espaço regulador da escola.

Uma forma heterotópica é um “espaço absolutamente outro” (FOUCAULT,

2013b, p. 21), um espaço tocado pela diferença numa manifestação da resistência aos

códigos instituídos de movimentação e ocupação. Segundo Foucault, todas as

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sociedades constituem heterotopias, que são justamente aqueles espaços ocupados de

forma desviante, heterodoxa, divergente. Por vezes, contingente, por vezes duráveis, as

heterotopias “têm como regra justapor em um mesmo lugar real vários espaços que,

normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis.” (2013b, p.24). Por isso, as

questões da vida doméstica, as questões da vida laboral, as questões da vida amorosa

intersectam o lugar da escola de adultos, cruzando as linhas de tempo e as demarcações

do espaço e provocando deslizamentos, derrisões, acúmulos, uma má distribuição da

população no dentro e fora da escola. Exemplos de lugares heterotópicos são as clínicas

de repouso ou psiquiátricas, as prisões, os cinemas, o cemitério, o teatro e os jardins.

Para Foucault (2013b, p. 25), “as heterotopias são frequentemente ligadas a

recortes singulares do tempo. São parentes, se quisermos, das heterocronias”, e o

diagrama que formam tempo e espaço desenha a forma de resistências que se

multiplicam no mar sem fim das relações micropolíticas. Elas representam a suspensão

da própria norma, a deserção dos roteiros, a corrupção dos relógios e dos marcadores de

tempo. Representam o movimento possível dos corpos em deslocamentos divergentes

nas espacialidades da norma.

As heterocronias podem ser ligadas ao tempo da eternidade (cemitérios, museus,

bibliotecas e estâncias de férias) ou ao tempo das festas e ritos (as feiras, os festivais

religiosos, os períodos de jejum, as iniciações). Mas também há as heterocronias do

tempo regulado das instituições modernas, dos espaços do trabalho e da escolarização.

Para as populações que não dispõem da biblioteca como opção, ou das estâncias de

férias, ou dos museus, as relações de resistência se constituem por dentro do cotidiano

de atrito com a maquinaria da escola ou da empresa. As heterotopias, e as heterocronias

que as acompanham, são um tipo de relação polêmica com a norma. São espaços

produzidos quando a lei entra em cena, para sua atuação performativa enquanto

obrigação. Nos sistemas de abertura e fechamento que caracterizam as heterotopias

(FOUCAULT, 2013b, p.26), o espaço escolar apresenta as regras de frequência, de

horários de entrada, de saída, os tempos esperados de permanência. São aspectos

longamente incorporados à concepção de escola, regras contingentes essencializadas

num exercício de fixação contínua de um sistema de crenças que se perpetua como

expressão da racionalidade da instituição, que se manifesta como “razão de ser” daquele

espaço.

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Como tempo-espaço do abandono à vigência pura da lei, heterocronias e

heterotopias produzem o significado de uma presença que não se desfaz em simples

obediência ou repetição. Porque os corpos são simultaneamente alvo e superfície de

resistência ao biopoder, as heterocronias são inscritas como trajetórias outras, outros

deslocamentos, formando mapas paradoxais que levam simultaneamente a algum lugar

no tempo e no espaço. Nas escolas de adultos, isso significa produzir tempos outros,

forçar os limites da regulação exercida pelos dispositivos de frequência e permanência,

problematizar a corrida pela certificação acelerada, desviar-se da norma enfim.

Essas heterotopias se produzem numa intrincada relação com o tempo, pois as

pessoas adultas não alfabetizadas, enquanto indivíduos, ao adentrar o espaço da

escolarização, não se desvencilham de sua liberdade de forma tão automática como os

dispositivos de governamentalidade gostariam. Antes, e pelo contrário, carregam essa

liberdade consigo e dela fazem uso. E no vislumbre do processo agônico que se

desenrola sob as normas e leis de funcionamento da educação escolar, a população

adulta, subescolarizada, estabelece uma guerra própria com a escola, revelada pela sua

resistência aos processos normalizadores de tempo, presença e permanência.

Os históricos escolares registram, portanto, não apenas a catalogação geral da

população, seu recenseamento, mas, sobretudo, os diversos aspectos dessa guerra

silenciosa, corrosiva, presente, que opõe a vontade de poder dos governos e a liberdade

das populações que dizem a todo o tempo que não se trata dessa escola, desse tempo,

desse tipo de presença, dessas exigências, desses saberes. Ao procurar tornar a

população visível e, assim, governável, as relações assimétricas de poder criaram

também as condições para que o próprio princípio da guerra como continuidade da

política pudesse ser lido no âmbito da escolarização de populações adultas não

alfabetizadas.

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200

5.1. Racionalidade estatística e biopoder na gestão da população não

alfabetizada

A análise dos documentos expostos nessa seção trata de um exercício que exige

mais algumas considerações. Primeiramente, essa documentação é a planilha básica de

alimentação das estatísticas educacionais. Sua materialidade impressa44

é a versão

analógica dos dados individualizados que são inseridos no sistema nacional de

informações educacionais, mais conhecido como Censo Escolar. Uma vez inseridos na

rede de produção de conhecimento sobre a população, esses documentos naturalmente

ofereciam à análise uma série de dados estatísticos, de algum modo específicos, dotados

de cientificidade, mas não da cientificidade própria ao seu campo original de existência.

A estatística é um saber que se produz sobre a população com a finalidade de

governá-la, tal como Foucault (2008a) formulou. A estatística é um “sistema de razão”,

através do qual, informa Popkewitz (2001, p.115), “Os números definem trajetórias para

sinalizar progressos ou identificar locais potenciais de intervenção por meio de políticas

de Estado”. No entanto, os números indiciam também uma forma específica de relação

com a verdade, criando um modo de atuar sobre o real, a partir das categorias com as

quais o representam.

A população de pessoas não alfabetizadas é um caso sintomático de produção de

um problema social através da estatística. Conforme lembra Rosemberg (1996), é a

partir da década de 1940, com o aprimoramento das estatísticas nacionais, que o

problema do analfabetismo entra em cena como problema do Estado brasileiro. Assim,

como já vimos discutindo ao longo desta tese, o analfabetismo foi produzido no

momento em que processos de diferenciação se avolumavam na sociedade brasileira, a

partir dos quais, simultaneamente, os dispositivos de alfabetização e de escolarização

foram acionados de forma articulada à definição dessas populações como um problema

social que deveria ser “erradicado”.

Se, como sugere Popkewitz (2001, p. 123), “as categorias de números se

sobrepõem às ideias para formar um campo de práticas culturais”, a produção estatística

do analfabetismo dá conta não apenas do aspecto técnico da administração, mas também

da produção de subjetividades e lugares sociais. A estatística é um discurso poderoso no

44

Ver anexo 2.

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campo das definições de objetivos e práticas educacionais, compondo uma longa cadeia

de sentidos que se forma entre a representação estatística sobre uma população

transformada em categoria (pardos analfabetos acima de 15 anos, por exemplo) e a

produção de subjetividades conformes a essa representação. No jogo das veridições que

definem quem é analfabeto na sociedade, a estatística produz um efeito dissimulador

dos mecanismos pelos quais não apenas uma população, mas, antes mesmo de serem

constituídos como população, determinados grupos humanos são escolhidos para serem

colocados sob o poder, abandonados à sua intervenção.

Portanto, os dados quantitativos apresentados nesta seção da tese não foram

construídos com uma função descritiva e intenção generalizadora, expositora de

tendências, que uma análise estatisticamente orientada se propõe a fazer. Estes dados

foram construídos a partir da leitura dos documentos entendidos como uma superfície

de inscrição da biopolítica. As variáveis levantadas, as correlações identificadas, as

situações em que eles evocam uma “realidade” fazem parte de um processo de leitura

que busca a compreensão das relações de poder posicionadas no território da

escolarização. Menos do que construir uma representação “verdadeira” do real,

buscamos, com a produção de alguns dados quantitativos, descrever as séries que

narram a história interna dos indivíduos adultos pelo sistema escolar e assim

compreender como a questão do analfabetismo se concretiza como uma “luta” no

campo escolar e quais os efeitos dessa luta no processo de escolarização atual de

adultos.

De tudo quanto se diz sobre educação escolar, temos que uma parte expressiva

dos enunciados é gerada numa profusão de documentos, afirmando a potência da escrita

como lugar da verdade sobre o sujeito, suas práticas, sua trajetória. Tanto a ciência

participa disso, quanto a própria maquinaria que dá forma às práticas de governamento.

A história do sujeito, no campo pedagógico, é um construto em que muitas vezes a

instituição vê, e sabe mais sobre o sujeito do que ele mesmo sobre essa história.

Compreender então a inscrição dos documentos de gestão burocrática da vida escolar

exige que nos desvencilhemos da “soberania do empírico”, e busquemos abandonar

ainda mais essa pretensa razão universal que garantiria a tal “soberano” a função de fiel

da verdade. O histórico escolar que emerge desses documentos é uma narrativa dentre

outras sobre a escolarização, uma narrativa produzida pelas práticas de documentação,

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influenciada pela atualização da burocracia estatal e da estatística enquanto

racionalidades de governo.

A racionalidade burocrática está na base do exercício do poder de governo na

modernidade, constituindo-se numa das ferramentas através da qual um corpo

especializado exerce com legitimidade os mandatos dessa instituição.

A burocracia é uma forma de poder exercida por grupo social portador de

técnica específica e nomeado para o exercício legal da tarefa de administração do

Estado, na lógica do direito público (WEBER, 1999). É uma profissão, retroage sobre o

indivíduo através de compensações simbólicas altamente eficazes, mas, sobretudo, está

ligada à administração da multidão no âmbito de um território político. A burocracia é

fundada na legitimidade da norma (WEBER, 1999). E a norma, quando ultrapassa seu

sentido jurídico, conforme Foucault nos informa (2008a, p.79), cumpre uma função

normalizadora, ou seja, estabelece um modelo a partir do qual os sujeitos são

interpelados para se adequarem ao padrão a partir de aproximações sucessivas dentro de

uma linha de normalidade. A estatística, como ciência do Estado, tem por função

produzir as informações necessárias para conduzir esta movimentação das populações

em torno das linhas de normalidade.

A burocracia escolar faz uma combinação das duas lógicas do normal como

legalidade e como normalidade, pois articula o poder legal da burocracia na gestão da

vida escolar do estudante, com o poder legítimo da instituição em atestar sua condição

social de pessoa escolarizada, ou seja, inserida na normalidade da relação com a cultura

escrita. Isso se dá nos processos em que o controle sobre a população se exerce na

gestão da multiplicidade baseada no poder-saber técnico dos funcionários em produzir

as planilhas, que sistematizam a informação, o saber sobre os sujeitos, que por sua vez

retroage sobre a população como mecanismo de controle. A burocracia age sobre o

processo da escolarização, como uma ferramenta que a operacionaliza enquanto

biopolítica.

Mas na escola, no cotidiano, a escolarização é produzida nas relações entre os

sujeitos, a instituição, os saberes produzidos pela instituição sobre os sujeitos,

conformando diferentes linhas de força que ligam os pontos do dispositivo, ou seja,

fazem com que alguma relação de veridição opere entre o sujeito e as expectativas

sociais e políticas em torno de sua ação, como por exemplo, no discurso da

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“profissionalização” dos adultos, pressupondo que toda pessoa adulta não escolarizada

deseja o trabalho, e o trabalho formal, e ainda assim nas posições desprestigiadas que

lhes são oferecidas.

As linhas de força conectam a instituição com o sujeito através de variados

conjuntos de crenças, algumas estabelecidas como leis, outras que operam como mitos,

mas todas com o papel fundamental de fazer funcionar a maquinaria escolar e as

performances que são esperadas por esta instituição. Nessa perspectiva, o anúncio

recente de que certo país escandinavo deixará em poucos anos de organizar suas escolas

com base em currículos disciplinares, ou o anúncio de uma “escola sem muros”, ou

ainda o crescente movimento conhecido como “home schooling” estremecem as crenças

estabelecidas em torno dessa instituição aparentemente confiável.

Essas experiências inovadoras (algumas baseadas em princípios muito antigos)

desestabilizam essencialmente os dispositivos disciplinares presentes no que se

consolidou como modelo escolar, e os substituem por outros dispositivos, de outras

disciplinas, que estabelecem outro regime de verdade na relação com a liberdade e os

corpos dos sujeitos. Portanto, esses outros regimes desestabilizam as relações de força

que estão desenhadas, provocam mutações na instituição, ameaçando suas bases e

dogmas.

Mas por dentro do modelo escolar também há outros movimentos que produzem

o questionamento e, de certo modo, o desabamento dessas categorias que atuam sobre

os sujeitos envolvidos na educação escolar. São movimentos que problematizam as

disciplinas de tempo, espaço e corpo porque evidenciam o fato de que “o poder se

exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em

posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais são o alvo inerte

ou consentido do poder, são sempre seus intermediários” (FOUCAULT, 2005, p.35).

Nas escolas, o mais antigo e profundo desses dispositivos é o tempo

(FOUCAULT, 2009, p.144). Antes mesmo de existir a escola, e o processo que lhe dá

configuração de prática de Estado, a escolarização, os regimes de tempo já se

encontravam constituídos, sendo sua tecnologia altamente sofisticada. A tecnologia do

tempo escolar pode atuar ao nível da anátomo-política do corpo, com os regimes de

controle rígido dos horários e dos movimentos, tal como a produção da norma social da

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frequência; mas pode incidir também numa expectativa sobre os ritmos e pontos de

passagem de um ciclo a outro pelas populações.

No primeiro caso, as técnicas que produzem a relação disciplinar do corpo com

o espaço, instituindo na relação presença-ausência o regime de veridição pelo qual o

indivíduo passará para ser certificado pela instituição. São as regras sobre avaliação no

processo, em que a presença física do estudante é regulada em porções de tempo,

mensurada a partir dessa medida e, ao ser articulada com outras medições, estabelece

uma demarcação: aprovado, retido, abandono.

No segundo caso, as tecnologias que alegam haver uma “idade certa” para os

processos de escolarização ou para a alfabetização, o que exclui todos os adultos não

alfabetizados da possibilidade de serem considerados na temerária categoria daqueles

seres que estão na idade “certa”45

. Ao lado da definição de uma “idade certa”, a

presunção de que ciclos de três ou cinco anos, conforme cada modelo local, são os

tempos adequados ou suficientes, para que os sujeitos cumpram a etapa correspondente

de ensino.

Certamente, um considerável conjunto de conhecimentos baseados em pesquisas

das mais amplas possíveis é utilizado para definir e legitimar as opções sobre a

organização do tempo escolar. Esses saberes entram no campo das lutas e são da mesma

forma parte do cenário conflituoso que os próprios corpos andantes dos adultos

estabelecem com as crenças que sustentam as escolas.

Ao lado do tempo, o espaço foi fundamental para a administração dos sujeitos, e

das multidões transformadas em populações após serem atravessadas pelo crivo das

categorizações estatísticas. Segundo Foucault (2009, p. 138), “a disciplina organizou

um espaço analítico”, ocupado em “estabelecer as presenças e ausências, saber onde e

como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras.”

A disciplina, como técnica de localização, dispõe os corpos de sujeitos adultos em

classes numeradas, que indicam seu grau de avanço pela escolarização. Localizar as

populações não alfabetizadas no espaço escolar, ainda que ele se apresente como espaço

precário das campanhas, representa também a possibilidade de manter essas populações

sob um campo de visibilidade, permitindo a vigilância dos seus movimentos perigosos e

45

Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), Governo Federal, Ministério da

Educação.

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205

permitindo que práticas de subjetivação encontrem um campo permanente de

intervenção.

As cronologias dos alunos da EJA evidenciam movimentos outros que entram

em polêmica relação com esses pressupostos. Modos de ocupar o tempo e o espaço

escolar com seus próprios ritmos, seus deslocamentos, seus esvaziamentos. O que surge

do olhar sobre as cronologias é que os sujeitos criam outros regimes de presença e

ausência no espaço escolar, confrontando todas aquelas expectativas sobre quanto

tempo eles deveriam passar ali. Esses novos regimes participam da economia geral de

poder da escolarização de adultos como movimentos resistentes, seja porque resistem

para manter-se no espaço que se considera de “direitos”, seja para ampliar as exceções

ao ponto de suprimir a regra, seja simplesmente porque esperam outras coisas da

instituição escolar. Mas eles estão ali, em rede, como formas de poder que existem nos

sujeitos e são amplificadas pelo seu movimento enquanto parte de uma população.

5.2. A documentação “Histórico Escolar” e as operações sobre o arquivo

Ao contar essa história específica dos documentos subterrâneos da

escolarização, disfarçada pelo conjunto polifônico de outras práticas pedagógicas,

estamos considerando o “histórico escolar” como um documento que registra o processo

agonístico no interior da instituição escolar, no qual há diferentes saberes em luta pela

verdade. Foucault lembra que foi a “irrupção dos saberes sujeitados” (FOUCAULT,

2005, p.11) o processo que destronou o pensamento científico de seu lugar de verdade e

fez a relativização da força política e explicativa do discurso científico da modernidade.

Os saberes sujeitados são justamente os “saberes históricos das lutas”,

representados pelos conteúdos históricos soterrados e pelos saberes das pessoas,

desqualificados como não científicos porque seriam destituídos de verdade ou de

certeza. Segundo o autor, foi o caráter local desses saberes, sua inscrição nas questões

da vida dos sujeitos, que propiciou a sua emergência como forma crítica e contundente

de conhecimento. Os históricos escolares não guardam os saberes sujeitados per se, mas

são uma superfície de inscrição das lutas em torno da “Educação de Jovens e Adultos

com qualidade social”, pois registram esse “day after” da racionalidade qualificadora

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contra a racionalidade reparadora consignada pela passagem histórica do modelo de

atendimento educacional por campanhas para o modelo de atendimento por escolas.

A dispersão que caracteriza o dispositivo da escolarização envolve, como já

afirmamos, o convencimento do sujeito de que ele carrega um vazio que a escola vem

ocupar. Essa retórica é sustentada pela primazia da escrita instituída com o início da

modernidade e consolidada pelo desempenho, altamente eficaz para essa tarefa, da

instituição escolar ao longo dessa mesma era. O processo de diáspora africana, as

invasões coloniais e as formas de relação daí decorrentes reforçam, ampliam o escopo e

refinam os processos culturais que estabelecem a escrita como forma poderosa de uso

das línguas. Do ponto de vista de sua atuação, o dispositivo da alfabetização de adultos

tem uma ampla área de atuação dos seus argumentos estratégicos. A interpelação do

sujeito adulto para a alfabetização circula nos meios midiáticos, comunitários, políticos.

Não é preciso estar na escola para ser interpelado por essa racionalidade. A sociedade se

organizou em torno da escrita e todos deveriam adaptar-se a ela, e isso parece natural e

até necessário.

No diagrama que busca descrever o dispositivo escolar, tornando-o visível para a

finalidade de sua investigação, esses documentos participam da Tecnologia do

Abandono. Essa Tecnologia atua através de técnicas que descrevem, registram e

contribuem com o processo de produção do espaço de abandono à lei da Educação de

Jovens e Adultos.

Desse modo, como enunciados, os históricos escolares compõem o conjunto que

gera um regime de visibilidade específico sobre o sujeito da escolarização de adultos. A

sua presença massiva (um histórico para cada indivíduo) na materialidade da formação

discursiva sobre a EJA acompanha a curva de visibilidade e se relaciona intimamente

com a curva de enunciação que produz esse mesmo sujeito no interior de uma

população e “justifica” a biopolítica. O regime de visibilidade que constitui esse sujeito

estudante da modalidade educacional EJA utiliza como operadores de sua curva de

enunciação termos como “evadido”, “repetente” ou “retido”, “abandono”, “aprovado”,

“reclassificado” ou “nunca”.

Esses documentos explicitam não apenas movimentações de sujeitos pela

escolarização, mas compõem um quadro complexo com as racionalidades pedagógicas

sobre o tempo e o espaço escolar, e confrontam-se com a compreensão de um ethos da

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potência do sujeito, ao registrar o fracasso da escola em lidar com a liberdade das

pessoas adultas irem e virem.

O lugar que esses documentos ocupam na maquinaria interna da instituição faz

parte de uma rede que conecta a chegada do sujeito à escola no ato de matrícula, a sala

de aula e seu cotidiano, e os controles ao nível macro da política educacional. Essa

documentação é parte do sistema de coleta nacional de informações escolares ― o

Censo Escolar ― e fornece os dados primários para as estatísticas de governo sobre a

população. Trata-se de documentação que testemunha as movimentações dos sujeitos

pela escolarização, que é tida, pelos enunciados emancipatórios em torno da escola de

adultos, como um aparato menos precário que as campanhas.

Rendimento, movimento e fluxo não são em geral assuntos tratados no campo da

escolarização de adultos, exceto pelo fato de que esta modalidade educacional é vista

como resultante de situações mal resolvidas na escolarização. Isso ocorre, em geral,

quando um enunciado situa a modalidade como um público de “distorção idade série”,

ou quando, no plano extradiscursivo, estudantes com 15 anos ou mais e histórico de

repetência são encaminhados para o turno da noite, nas turmas de EJA

(aproximadamente 20% da coleção analisada nesta pesquisa carrega esse tipo de

registro).

Os históricos escolares de alunos da EJA do Ensino Fundamental representam o

“registro do olhar” da instituição sobre a movimentação desses sujeitos. Mais do que

isso, na formação discursiva da Educação de Adultos no Brasil, frequentemente essa

modalidade escolar é problematizada a partir de sua produtividade estatística. No

entanto, o tipo de informação que serve a essa problematização é muito mais uma

visibilidade dos quantitativos de indivíduos que estão fora da escola, dos índices de

analfabetismo, dados sobre evasão e menos, bem menos os índices de retenção,

reprovação e repetência de estudantes adultos em processo de escolarização.

Isso ocorre provavelmente em virtude de três fatores: por um lado, o imaginário

social sobre a Educação de Adultos condiciona a visibilidade do estudante a partir da

sua ausência (“não sabe ler e escrever”, “está fora da escola”, “evadido”) e, segundo, a

nossa capacidade de pensar esta modalidade educacional está condicionada à hipertrofia

discursiva da alfabetização como grande tema em disputa com a ideia de escolarização;

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o terceiro fator é a inadequação das categorias da escolarização regular para a

compreensão da Educação de Jovens e Adultos.

As categorias de rendimento e movimento, quando aplicadas à EJA, geram

dados estatísticos de natureza estranha, desestabilizam as linhas de normalidade que a

estatística tradicional ajuda a produzir, criam índices paradoxais. Portanto, essas

categorias, por serem também as mais abstratas e descritivas de uma noção do real, são

aquelas pelas quais mais se pode vislumbrar as inadequações do projeto de

escolarização.

Bastaria ao menos um, e não 141 dos estudantes longevos cujos históricos são

analisados mais detidamente nesta pesquisa, para justificar um debate sobre nossas

categorias de interpretação da escolarização de pessoas adultas, mas eles são 10% de um

conjunto de 1378 pessoas inseridas na escolarização de adultos em que cinco anos

(cinco séries anuais regulares exigidas como mínimo para o cumprimento do Ensino

Fundamental na rede da qual provêm os documentos) não foram suficientes para

garantir o acesso aos conhecimentos essenciais para sua inserção plena e autônoma na

vida cidadã de uma sociedade neoliberal.

Ao trazer à visibilidade tal documentação, nossa pesquisa problematiza esses

parâmetros e sua produtividade, observando os enunciados soterrados sobre as grandes

estatísticas, que evidenciam outras temporalidades, outras formas de relação com o

espaço escolar, e indiciam outras necessidades da população que é objeto da biopolítica,

produzindo hipóteses relativas à desestabilização do dispositivo, ao expor suas linhas de

fratura. Nesse sentido, tratamos mais das cronologias discutidas à frente no texto, do

que das categorias típicas do campo, como evasão e repetência. As cronologias nos

informam sobre longas permanências, retornos constantes mediados por abandonos

frequentes, movimentações em formas atípicas de convivência com a escolarização,

produzidas por sujeitos ao longo de sua vivência do tempo escolar e registradas

detalhadamente na documentação produzida pela instituição.

Os documentos foram selecionados numa rede de ensino46

que dispõe de um

aparato consolidado de atendimento educacional a jovens e adultos, professores

46

A não enunciação da identidade dessa rede, sua história específica, a manutenção de um campo de

generalidade para esse lugar de origem dos documentos trabalhados ocorre pela necessidade de não tratar

essa rede específica como um “caso” dentro de um estudo. A generalidade dessa origem marca a

possibilidade de pensar que essa situação ocorre em outros sistemas de ensino semelhantes. Observo que

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dedicados a essa tarefa, sistemas de controle e acompanhamento escolar, produção de

dados e, portanto, geradora de documentos que registram a trajetória dos sujeitos e

possuem força certificadora no marco da oficialidade. Embora possua projetos didáticos

e ações específicas voltadas para o público jovem e adulto matriculado, o que a rede de

ensino escolhida oferece é escolarização no seu modo convencional, com todo o aparato

típico desse processo social.

Dessa forma, por mais amplo que seja o estudo da escola e as capacidades de

reinvenção permanente do que se faz no cotidiano, este trabalho não analisa

documentação proveniente de um projeto pedagógico com intencionalidades especiais

ou diferenciadas da escolarização, nem um horizonte que se apresente em disparidade

com o projeto de escolarização da modernidade, mas um espaço onde as prerrogativas

desse projeto aparecem em sua forma estabilizada e não de forma institucionalmente

problematizada.

Ainda sobre esse ponto, é importante esclarecer que essa caracterização não

resume nem encerra a prática pedagógica dos sujeitos envolvidos com a produção

cotidiana na rede de ensino que produziu estes documentos, pois temos amplo

conhecimento de que essa característica conservadora e estabilizada na concepção

tradicional de educação escolar encontra-se em permanente questionamento, sendo

interpelada pelos educadores e pelos educandos.

Os textos denominados "históricos escolares" fazem parte de um circuito que

incorpora diferentes sujeitos, temporalidades, modos de enunciação e visibilidades. A

maquinaria da administração da educação escolar, essa educação de massas ocupada

com as populações, portanto, a educação da multidão, sempre esteve articulada com a

preocupação sobre os fluxos de produção. O debate sobre tempo escolar, do ponto de

vista da gestão desse fluxo, representa uma preocupação antiga, que remete aos

primeiros momentos de organização dessa instituição e, logo, aos processos presididos

o modelo tradicional de escolarização, esse que segue os parâmetros gerais de oferta escolar, com 200

dias letivos, 800 horas anuais, regimes de avaliação e aprovação por aproveitamento e frequência não é

exclusividade dessa rede de ensino que produziu os documentos. Outro elemento da opção pela

generalidade desse campo de origem dos documentos é o fato de que esta pesquisa não adentra pelo

debate sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas, sobre os projetos didáticos de professoras

particulares, as especificidades pedagógicas que produzem a singularidade do trabalho desenvolvido. O

nosso trabalho, especificamente no que tange ao tratamento dos documentos aqui analisados, procura

compreender essa rede de ensino como parte de um dispositivo mais amplo, e não a partir de sua

singularidade, uma vez que o debate aqui é sobre escolarização e não sobre experiência pedagógica,

trajetória de escolarização ou história de vida escolar.

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pela racionalidade disciplinar. No entanto, apresenta uma atualidade não desprezível,

preocupada com a eficácia das escolas e a eficiência do ensino. Essas noções de eficácia

e eficiência envolvendo metas e rendimentos quantificáveis representam a manifestação

da escolarização submetida ao pensamento da economia política, entendida aqui como

racionalidade estratégica da governamentalidade.

Nesse sentido, os cortes que constroem o arquivo, bem como a montagem desse

marco documental carregado pelo sentido de monumento representam uma criação do

pensamento interessado no fenômeno. Não há um fenômeno dado, mas uma construção

que gera o fenômeno e o legitima para a epistemologia do estudo.

No caso da nossa pesquisa, esses arranjos se deram da seguinte forma: os

arquivos da coleção “históricos escolares” foram postos diante de nossos olhos a partir

da iniciativa de uma educadora que atuava no interior dos processos de gestão da vida

escolar. Essa educadora nos apontou os documentos e perguntou: o que podemos fazer

com isso? O que esses documentos traziam era a história das interrupções, das

intermitências, das repetições, das reprovações e dos abandonos. Todas essas palavras

recheavam centenas de páginas cujo título era justamente: "histórico escolar". No

entanto, ao lado dos documentos, havia uma experiência nossa, que pode ser

considerada antiga, que nos dizia que aquela história, daqueles estudantes, não

começava ali, na relação com o aparato formal da escolarização.

Os documentos possuíam uma vida, estranha e subterrânea, eram eloquentes em

relação a muitos fatos e provocaram um olhar para as práticas a que se referiam. Ao

direcionar o olhar a essas práticas, percebemos que algo se passava, e ficava registrado

de maneira “rupestre” nos documentos; tais marcas sugeriam que os desenhos haviam

sido feitos com a intenção de idolatrar deuses ― a organização interna da “vida escolar”

como “garantia” do direito de aprender ― ou, talvez, e bem provavelmente, seu

contrário: os desenhos serviam para afastar os maus espíritos ― renegar aos

subterrâneos aquelas partes de nós mesmos que não queremos olhar no espelho.

Como recortar o fragmentário e percorrer sua inteligibilidade sem recorrer a

categorias como normas, tendências, regras transcendentes, verdade? Ao definirmos

uma postura em relação ao arquivo, concebemos a possibilidade de nossa narrativa se

constituir como mais uma, dentre as várias que cercam a Educação de Adultos em sua

história. Assim como fez Foucault (2010a, p. 7),

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Eu não queria ter de entrar nessa ordem arriscada do discurso; não

queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo;

gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma,

profunda, indefinidamente aberta.

Porém, se quisermos compreender como o poder atua, temos de estudá-lo, observar suas

práticas, lançar luzes sobre aquilo que ele esconde, entender porque esconde, onde

esconde e como o faz.

Nesse sentido, o arquivo “histórico escolar” foi submetido a alguns cortes que

poderemos chamar de tradicionais: gênero, raça, faixa etária, ano de nascimento. Ao

atravessar esses cortes com indicadores produzidos na pesquisa, como “tempo de

permanência na EJA”, “quantidade de anos repetidos sequenciais”, “permanência na

mesma escola”, pretendíamos submeter o arquivo a outros regimes de visibilidade. E

disso foram surgindo outras narrativas, com toda uma carga de objetividade que mal

disfarça sua real inscrição enquanto fotogramas de vidas de pessoas concretas cuja

experiência escolar é atravessada por intermitências, descontinuidades, retomadas,

abandonos.

A própria imagem do precário assume então outro sentido. Mesmo que

estejamos argumentando a todo o tempo que há uma EJA que produz exclusão, nossos

dados não dão conta da riqueza da experiência e do significado do cotidiano. Mas, eles

nos dão o índice que a riqueza da experiência e o sentido da vida escolar cotidiana,

nunca presente nos documentos, porque sempre possuem algo de incapturável pelo

poder, são constantemente atravessados pela norma que efetivamente produz a exclusão.

Confirmamos que os indicadores construídos na pesquisa, ainda que localizados,

ainda que construídos sem a pretensão normativa de uma amostragem quantitativa

típica, revelam uma profusão de instabilidades quando vislumbramos que processos

avaliativos, processos didáticos, processos pedagógicos em geral, mantém, em relação

com a vida cotidiana inescapável dos sujeitos da EJA, uma relação no mínimo

polêmica. Nossos dados aparecem então como enunciados que são como narrativas

plausíveis a contar uma “história íntima” da EJA, que é uma prática pública em sua

inscrição como processo educativo.

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Os documentos aqui analisados são uma produção da instituição escolar47

a

respeito do estudante jovem e adulto. Eles registram a trajetória desses sujeitos ao longo

de um processo de convivência com a EJA. Uma de suas funções é garantir que o

percurso do estudante esteja registrado para fins de certificação. Outra de suas funções é

garantir que a instituição conheça o fluxo dos estudantes pela modalidade. Nesse

momento em que o documento se torna uma informação sobre o sujeito para fins de

gestão dos processos, o que vemos emergir é uma visibilidade.

Esses são documentos poderosos, pois ao invés de apenas descrever ou registrar,

eles representam a legalidade para a concessão de certificados. Porém, ao descrever ou

registrar, eles também entram nas relações de força do dispositivo. Descrever e registrar

estão na ordem das visibilidades e produzem o saber da exposição do sujeito.

Nesse retrato, o estudante aparece como uma sequência de informações: dados

pessoais, dados documentais, e dados escolares: condição do aluno (promovido,

repetente, nunca estudou, etc). Há também dados sobre necessidades especiais, e o

histórico escolar propriamente dito. Há, ainda, lugar para foto de rosto. Das fichas que

recebemos da secretaria para esta pesquisa, após solicitação formal desses dados com

documento fornecido pelo Programa de Pós-Graduação, nenhuma veio com foto. Então

esses documentos falam do sujeito em sua relação com a escola, o local onde a relação

pedagógica ou com o saber é registrada como produto. Há outros lugares onde essa

inscrição pode ser feita, como o diário de classe, no qual há 6 linhas para a anotação da

avaliação docente de cada estudante, por folha de frequência anual. A relação do sujeito

com o saber é registrada em espaço bastante reduzido e o documento que registra a

trajetória do indivíduo pela instituição de ensino não dá conta dessa relação. Contudo,

dá conta de seus efeitos.

A ficha em si descreve a caminhada desses sujeitos pela escolarização. Com as

informações de ano de entrada na EJA, tempo de permanência na modalidade,

quantidade de anos de retenção, quantidade de anos de evasão, ao lado de idade e

cor/raça montamos uma matriz de análise que se inscreveu sobre os registros

preliminares, sobrepondo-lhes outra camada de informação. Com base nessas matrizes,

organizadas pela mesma relação escola/turma/sujeito que a instituição utiliza, pudemos

vislumbrar algumas movimentações mais específicas e problematizar sua existência.

47

Em sua abrangência, a rede de ensino é escola, pela dimensão da institucionalidade que abarca.

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O corte cronológico é de um ano letivo, 40 semanas, embora essas fichas nos

deem informações sobre vários anos da trajetória dos sujeitos. São fichas de turmas

completas de pessoas adultas matriculadas em 14 escolas de EJA dos anos iniciais do

Ensino Fundamental, perfazendo um total de 52 turmas. Nessas turmas, no ano de 2012,

estavam matriculadas 1.378 pessoas; destas, 548 eram homens e 829 eram mulheres. Na

linguagem estatística, os homens corresponderam a 40% e as mulheres a 60% da

“amostra”. A escola com maior número de alunos tinha na época 245 matrículas em

turmas de EJA, e a que possuía menor matrícula 36. O total de matrículas da amostra foi

de aproximadamente 11,5% das matrículas da Rede Municipal naquele ano, conforme o

Censo Escolar 2012.

Esse material é extenso e, portanto, procedemos alguns cortes para

conseguirmos lidar, até fisicamente, com a coleção. Tais fichas são documentos

objetivos e descritivos. Por dentro desse arquivo, construímos algumas séries, baseadas

em classificações já consolidadas na pesquisa social. Mas, sob o objetivo de fazer falar

os documentos, era importante ver o funcionamento da biopolítica no que tange a

populações específicas dentro da grande massa de pessoas adultas não alfabetizadas.

Portanto, raça, gênero, faixa etária e tempo de permanência na instituição escolar

constituem os recortes principais que produzimos no interior da coleção.

Esse procedimento cruza experiências analíticas de base quantitativa com

análises de cunho qualitativo, mas está orientada a compreender o funcionamento desse

material no conjunto do qual ele faz parte, ou seja, compreender a função desse arquivo

como uma superfície de inscrição da biopolítica da Educação de Adultos.

Após uma primeira leitura do material geral, foi gerado um arquivo menor,

chamado “arquivo de longevos”, que resultou, por sua vez, em duas coleções mais

específicas. O Grupo 1 contém todos os estudantes que possuíam registros de mais de 3

anos de escolarização e no Grupo 2, destacado do primeiro, todos os estudantes que

possuíam mais de 5 anos registrados. Esse critério foi montado pensando na

produtividade da amostra para a discussão da tese e não tem intenção descritiva dotada

de uma cientificidade estatística.

Ao todo, foram separados do conjunto original da coleção os históricos de 382

estudantes que integraram o Grupo 1 e, desses, 141 documentos dos sujeitos que

possuíam mais de 5 anos de registro de trajetória escolar na modalidade Educação de

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Jovens e Adultos, constituindo o Grupo 2. Esses históricos evidenciam uma

permanência no sistema. Mais do que uma permanência, uma insistência, uma

continuidade do vínculo que passa por várias cronologias específicas.

Como pode ser observado na tabela abaixo, 382 (27%) dos documentos

coletados, representam indivíduos que iniciaram sua a escolarização há mais de 3 anos

(considerando o ano de coleta dos documentos: 2012), e destes, 141 (10%) nasceram

para a escola há mais de 5 anos: são os longevos da amostra. Entre os 1.378

documentos da coleção original, é preciso contabilizar os jovens recém-matriculados, as

pessoas adultas em sua primeira ou segunda matrícula, estudantes cujas trajetórias

anteriores não foram inscritas no sistema do Censo Escolar, os estudantes recém-

matriculados oriundos de programas de alfabetização, entre outras situações que

produzem um registro inferior a três anos de escolarização naquela ocasião. A maioria

dos documentos do grupo geral informa sobre matrículas nos anos iniciais do Ensino

Fundamental. Em nenhum desses casos as histórias escolares podem ser presumidas

como restritas apenas aos anos registrados.

Os documentos não dão conta de todos os que não voltaram, daqueles que

tiveram alguma matrícula nos anos precedentes e desistiram, daqueles que tentaram por

longos períodos e depois não retornaram mais à escola. Esta é a série que fala dos que

persistiram, portanto, a série dos que se evadiram não está aqui registrada. Entretanto, a

evasão dos que persistiram está marcada. Suas ausências longas e seus retornos

aparecem aqui nas cronologias que evidenciam a cronologia dos ciclos relacionados às

vidas e indiciados pelo espaço escolar.

Tabela 1: dados gerais da coleção de Históricos Escolares

Grupo 1: documentos de sujeitos com mais de 3 anos de escolarização

Sujeitos Homens Mulheres Negros Pardos NI* Brancos

382 120 262 34 166 131 50

27% da

coleção

total

31%** 68% 9% 43% 34% 13%

Grupo 2: documentos de sujeitos com mais de 5 anos de escolarização

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Sujeitos Homens Mulheres Negros Pardos NI Brancos

141 44 98 10 63 46 20

10% da

coleção

total

31%** 69% 7% 44% 32% 14%

*NI = raça/cor não informada.

** Percentuais nesta linha referem-se à coleção específica.

Caracterizar o tempo de permanência na escolarização como um indicador da

biopolítica, ou seja, como parte de uma prática de conduta de uma população, polemiza

frontalmente com o argumento pedagógico de que os sujeitos aprendem em ritmo

próprio, conforme seus interesses e necessidades. Essa concepção de tempo de

aprendizagem, no entanto, problematiza os sistemas racionais que sustentam a

maquinaria da escola, e fazem par com processos como a reprovação de estudantes

adultos por “ausência frequente” a uma escola que só consegue considerar

aprendizagem aquilo que se constrói no interior de si mesma.

Ao questionarmos esses tempos, parece que estamos a polemizar com a

perspectiva de liberdade e autonomia do sujeito em produzir sua experiência escolar em

conformidade com seus interesses e necessidades, mas, tendo em vista a demarcação

desses ritmos específicos como retenção, repetência, desistência e abandono, palavras

associadas à “anomalia” da caminhada e não à sua plena vivência do tempo escolar, o

que acaba polemizando com a liberdade e autonomia do sujeito adulto na produção de

sua caminhada escolar é, antes, o enunciado analisado e menos nossos pressupostos.

Portanto, o que importa desses documentos não é tanto o que eles expressam em

sua tarefa de registro funcional de dados para alimentar um sistema maior de gestão das

redes de ensino. O que os torna relevantes para a análise biopolítica é sua condição de

indícios das séries emaranhadas pela invisibilidade funcional e pela indizibilidade

estratégica do dispositivo.

Como exemplo dessas séries, a categoria "raça" nos mostra mulheres e homens

negros, cuja média de anos de permanência no sistema é de 9,6 anos, em comparação

com a média geral de 5,5 anos no grupo que tem mais de três anos de escolarização

registrada, e 8,1 anos de permanência no grupo com mais de 5 anos de tempo escolar

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registrado. A materialidade mais premente da relação com o tempo abstrato da

escolarização é o quantitativo de pessoas que passam no sistema escolar mais tempo que

o máximo previsto para o cumprimento do ensino fundamental. Servindo aos processos

de regulação, a noção de permanência pode ser problematizada como um fator

biopolítico e não necessariamente um indicador do sucesso escolar em EJA.

Ao atuar sobre os documentos, poderíamos tê-los submetido a diversos estilos de

análises, incluindo estudos quantitativos que revelassem variáveis e levantassem dados

secundários sobre a questão do fluxo escolar. Contudo, a nossa opção foi olhar para os

documentos como parte de uma rede de enunciados sobre a escolarização de pessoas

adultas e pensar a partir daí sua participação no processo mais amplo do governo das

populações não alfabetizadas.

Diante desse caminho, optamos por abordar a documentação por grupos de

escolas, as turmas e os movimentos individuais de sujeitos anônimos e não

necessariamente biografias individuais. Ao fazer essa opção, ao que parece,

renunciamos a um objeto profundamente valorizado na tradição da pesquisa

educacional, e com especial valor para as pesquisas em Educação de Adultos. Porém,

reafirmamos que aqui o que investigamos não é a biografia do indivíduo, mas a história

do sujeito não alfabetizado na escolarização, no sentido que Foucault atribui a sujeito

como uma produção discursiva que demarca um lugar onde o poder incide através de

práticas disciplinares e normalizadoras.

Em busca da compreensão sobre como o constrangimento e o abandono se

constituem como técnicas de conduta da população não alfabetizada, o lugar desses

documentos e dos significados levantados pela sua análise é o de registrar as opções que

o poder tomou ao dedicar-se às populações em foco. Por essa razão, a análise

biopolítica, partindo de uma genealogia, pode abrir-se a outras ferramentas e

procedimentos de análise que, no entanto, mantenham um grau elevado de coerência em

relação aos princípios e finalidades do estudo, como algumas análises quantitativas que

produzimos minimamente e de forma cautelosa, a fim de evitar que se tornem um

“discurso da verdade” na tessitura da pesquisa.

Em relação aos níveis de análise, que denominaremos de população e indivíduo,

respectivamente, é importante salientar as finalidades de analisar cada um. Ao nível da

população, os dados coletados procuram submeter as noções convencionadas de sucesso

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e fracasso escolar à grade de uma “estatística subalterna”, sem intenção descritiva, mas

problematizadora, porque geradora de dados controversos. No outro polo, o nível do

indivíduo nos informa sobre a multiplicação dos movimentos possíveis do “um” dentro

da escolarização das multidões e problematiza, não apenas o modelo de gestão, mas

também o próprio modelo de escolarização ofertado. Isso se faz com a montagem de

cronologias individuais que cruzam o tempo e a passagem dos indivíduos pelo espaço

da escola.

Ao produzir as categorias da nossa intervenção sobre os documentos e, com isso,

pretender problematizar as racionalidades instaladas na produção da escolarização, nós

não perdemos de vista o que afirma Popkewitz (2001, p. 125) a respeito dos sistemas de

classificação nas estatísticas:

O agrupamento de pessoas por meio do raciocínio populacional faz

tanto parte de nossa ‘razão’ contemporânea que costumamos não ter

consciência de que os sistemas de classificação que designam as

pessoas como pertencendo a uma população é uma invenção histórica

e um efeito de poder. Ao aplicar um cálculo de probabilidade, o

pensamento populacional constrói uma nova forma de

individualidade. O indivíduo é normalizado em relação a agregados

estatísticos a partir dos quais características específicas podem ser

atribuídas ao indivíduo e de acordo com as quais uma trajetória de

vida pode ser mapeada e seu desenvolvimento monitorado e

supervisionado.

Vem da natureza biopolítica do nosso estudo o fato de que os casos analisados

não serão tratados no horizonte heurístico do valor de verdade biográfica, mas no

espaço muitas vezes convulsionado do anônimo. O anônimo que compõe as multidões

vive ao mesmo tempo sob a proteção de não ser identificado e um risco permanente de

ser capturado. Se as práticas disciplinares são individualizadoras e atuam num espaço de

constituição de subjetividades, as práticas biopolíticas precisam articular diversas

técnicas para conseguir manter seu objetivo de controle sob condições eficazes. O

anonimato também é uma forma de existência, e já foi problematizada por muitos,

inclusive fartamente na literatura da modernidade.

Esses documentos propõem um debate a respeito do modelo escolar, e dos

dispositivos que governam a vida escolar dos estudantes, mas, sobretudo, contam uma

história “íntima” da EJA, falando daquilo que não se fala quando se trata de discutir

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escolarização de adultos a partir de uma discussão simplificadora na qual o acesso é

uma categoria suficiente. Eles denotam a produtividade silenciosa da EJA e representam

um recorte numa realidade mais ampla, uma amostragem produzida sem a pretensão de

indicar uma tendência, nem de representar a totalidade, mas apenas de discuti-la e

problematizá-la a partir das heterotopias que emergem das escansões sobre o material,

da projeção de outro regime de classificações, desta vez interessado nas derrisões, nos

vazamentos, nas lutas cegas em torno da manutenção das pessoas não alfabetizadas nos

espaços do disciplinamento escolar.

Sobre o conjunto de documentos de longevos, fizemos algumas incisões como a

quantidade e o percentual por raça/cor/etnia, por gênero, por ano de ingresso, por

origem regional. As especificidades se multiplicam a ponto de não poderem gerar uma

lei de sua existência, como se cada história tivesse no âmbito da escolarização o direito

de ser única. Salientamos inicialmente que apenas um documento possuía atribuição

racial “amarela”, entre o grupo de longevos, bem como um que se autodenominou

indígena.

Nos próximos itens detalhamos uma seleção de componentes específicos que

analisam as condições de funcionamento da biopolítica: apresentaremos as médias

conforme as categorias trabalhadas na pesquisa; em seguida a tipologia dos estudantes

longevos; discutiremos os índices da aprovação, retenção, abandono na população

enfocada; traremos a reflexão sobre o tempo de permanência e os anos de escolarização

média dos indivíduos; e faremos a análise de algumas cronologias identificadas.

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219

5.3. Deslocamentos divergentes problematizando os parâmetros da

escolarização

A população de pessoas não alfabetizadas ou com baixa escolaridade no Brasil

no ano de 2012 era de aproximadamente 56 milhões de pessoas, segundo o

PNAD/IBGE 2011. Esse quantitativo, chamado pelos técnicos em estatística de

“estoque”, representa uma demanda potencial para a Educação de Jovens e Adultos.

Naquele mesmo ano, a EJA teve uma queda nas matrículas da ordem de 3,4%48

, fato

que vinha ocorrendo há alguns anos, e atendia aproximadamente 3.906.877 estudantes,

principalmente inscritos em escolas públicas de Ensino Fundamental (65% das

matrículas). O atendimento não passava de 10% da demanda.

No Estado de Pernambuco, as matrículas da Educação de Jovens e Adultos para

o Ensino Fundamental foram de 126.562 e o número de concluintes para esse universo

foi de 17.325, o que gera uma taxa de conclusão de aproximadamente 14%. Os censos

escolares não informam os dados desagregados por município para as turmas de EJA.

Os dados fornecidos pelo INEP sobre rendimento escolar para o ano de 2012 trazem os

resultados apenas do ensino dito regular, o Ensino Fundamental de 8 ou 9 anos e o

Ensino Médio. A dificuldade com a elaboração de taxas de rendimento e movimento

para turmas de EJA é um desafio que supera o marco das técnicas estatísticas, pois está

intimamente relacionado com a concepção de escola que demarca o atendimento à

população.

Para o INEP, órgão responsável pela produção das principais estatísticas

educacionais no País, o conceito de rendimento escolar refere-se “aos resultados obtidos

pelo aluno ao término do ano letivo”. Esses resultados podem ser de três ordens:

"aprovado", quando o aluno obteve “frequência e notas satisfatórias”; "reprovado",

quando não obteve frequência e notas satisfatórias, e "concluinte", quando ele é

certificado pelo cumprimento de uma etapa da Educação Básica. O conceito de

movimento refere-se à mudança de vínculo escolar do aluno no interior do ano letivo,

referindo-se: 1) às situações em que ele foi transferido, quando no mesmo ano letivo

esse aluno solicita formalmente matrícula em outra escola ou em outra modalidade da

48

Todos os dados apresentados nesta seção são oriundos do INEP/MEC; as exceções são informadas no

corpo do texto.

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mesma escola; 2) abandono, quando o aluno deixou de frequentar a escola, mas

permanece no sistema escolar; e 3) a condição de falecido (INEP, 2013).

A Educação de Jovens e Adultos enquanto modalidade escolar de oferta

obrigatória pelos sistemas também deve ser incluída no Censo, e o modo de anotação

dos resultados dessa modalidade, no qual são inseridos os dados de rendimento, podem

ser adequados aos modos de organização do currículo em cada rede de ensino.

A simples anotação de um resultado de aluno de EJA como aprovado ou

reprovado é suficiente para o processo de gestão da informação sobre o desempenho

dessa modalidade escolar, conferindo uma aparência de normalidade a um processo que

possui mais elementos distópicos do que se poderia esperar. Esse exercício contínuo do

registro sobre o sujeito produz marcas de identidade, ao lidar com os tempos e

demarcações, sobre quem fica retido e onde, ao longo do processo.

Esses dados referem-se ao saber disciplinar que demarca os sujeitos na condição

de “sucesso” ou “insucesso” escolar. Conviver com esses resultados, ser o corpo que os

carrega, representar socialmente o sujeito desse processo pode ser uma experiência em

que o constrangimento se constitui numa constante. A superfície de inscrição dessa

tecnologia do constrangimento articulada pela tecnologia do abandono é o campo sutil

em que atua o biopoder, em sua efetividade, em sua dispersão, e da forma mais

econômica possível.

5.3.1. A EJA de longa permanência: os ciclos dos adultos longevos

O grupo de estudantes cujos históricos indicavam mais de 3 anos de vida

escolar, ao lado dos estudantes com mais de 5 anos de vida escolar, recebeu a

denominação de “longevos” para indicar que a sua permanência no aparato escolar

indicava uma relação conflituosa que confronta a expectativa de uma formação

acelerada e a própria ideia de sucesso. Manter-se na escola, mas não avançar na

escolarização, representa um dos maiores desafios que a educação escolar no Brasil vem

enfrentando, seja em relação às populações infantis, seja em relação às populações

adultas. Para as primeiras, no entanto, essa problemática ganha visibilidade nos anos

1980. A ideia de sucesso escolar, da forma como é socialmente experimentada,

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221

relaciona-se à consecução das etapas educacionais e obtenção dos diplomas

correspondentes. A sua não obtenção revela um dado que seria menos decisivo se fosse

mais excepcional.

O debate que se colocava na década de 1980 teve como marco a pesquisa de

Fletcher e Ribeiro (1988), intitulada “A educação na estatística educacional”,

apresentada no “Seminário de avaliação das PNADs da década de 80”, no qual os

autores apresentaram uma análise crítica seguida de uma proposta de intervenção no

tratamento dos dados sobre a educação. A principal contribuição desse trabalho foi a

apresentação do modelo Profluxo, uma metodologia de análise estatística mais próxima

dos processos escolares e atenta a questões como base de dados utilizada, coerência

entre as variáveis aplicadas e confiabilidade dos resultados, bem como o tratamento das

categorias analisadas, como indicadores socioeconômicos. A aplicação do novo modelo

gera um deslocamento nos termos dos debates, pois, à época, o campo educacional

estava ocupado com a questão do acesso à escola, e com a questão da evasão, que eram

apresentados como os dois mais importantes problemas da educação pública brasileira.

Como base em novo modelo estatístico, Ribeiro (1991) e Fletcher e Ribeiro

(1981) demonstram que o problema central da escolarização no Brasil não era a

propalada evasão, mas a repetência. A mudança de foco trazia para dentro da escola os

problemas do atendimento escolar. Em artigo polêmico intitulado “A pedagogia da

repetência”, o engenheiro e físico Sérgio Costa Ribeiro acende uma discussão sobre o

papel da repetência como mecanismo de seleção social da escola brasileira do final do

século XX. Segundo o autor:

Ao analisarmos a probabilidade de reprovação para populações

urbanas pobres do Nordeste, verificamos que a probabilidade de

promoção para os alunos novos na 1ª série é próxima de zero, sobe

para aqueles que já têm uma repetência e só volta a cair para quem foi

reprovado mais de duas vezes. Este dado indica claramente que nas

escolas das classes menos favorecidas de nossa população existe uma

determinação política (ainda que não-explícita) de reprovar

sistematicamente todos os alunos novos. Esta prática mostra

claramente a tragédia e perversidade de nosso sistema educacional.

(1991, p. 15)

Nesse período, segundo Brandão (1983), em obra intitulada A escola em

questão, a produção acadêmica brasileira sobre evasão e repetência fazia a crítica

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interna do campo pedagógico, buscando interpretar os fenômenos em pauta a partir de

seis grandes enunciados: aspectos relativos ao aluno, aspectos relativos ao professor,

aspectos institucionais, aspectos das práticas pedagógicas desenvolvidas e aspectos

relativos à subnutrição e desempenho. Na década de 1980, o Brasil passava por

importante etapa de um processo de redemocratização que então avançava nas várias

esferas da vida social e adensava, pouco a pouco, o movimento em direção a uma

democratização mais efetiva e institucional. Os temas da educação eram também os

temas da democratização: educação para todos, busca da qualidade, superação das

desigualdades educacionais.

Nos anos 2000, considerando os primeiros 15 anos deste século, a situação para

a escolarização de adultos parece repetir o mesmo percurso problemático da educação

das crianças e adolescentes. As questões de movimento e rendimento das redes de

ensino no Brasil, que eram alvo da reflexão na década de 1980 em relação à educação

em geral, são as mesmas que aparecem na atualidade, se fizermos o exercício de pensar

a EJA como escolarização. O marco temporal dos temas que ora emergem no debate

sobre a escolarização na modalidade EJA data de aproximadamente 30 anos do

aparecimento desses mesmos temas em relação à educação “regular”.

Diante de um quadro onde a permanência é tanto um indicador de que a escola

está funcionando quanto do direito garantido para além do acesso, temos a problemática

histórica que nos informa sobre a permanência como um indicador ambíguo de que a

escola não faz exatamente aquilo que propaga.

Vejamos o que nos diz o arquivo de longevos desta pesquisa.

No Grupo 1 analisado, de todos os anos registrados de todos os sujeitos, a média

de anos de aprovação nos 382 documentos ficou em torno de 39%, a média de retenção

foi de 33% e os anos de abandono correspondem a 16% do total dos anos registrados

nos documentos. Os anos em que não há registro de resultado final, ou o aluno aparece

como transferido ou nunca frequentou, ficam em torno de 12% do tempo nesse grupo. O

tempo total em que o rendimento dos estudantes não atingiu os resultados tidos como

satisfatórios foi de 49% de todos os anos de escolaridade (quando somamos retenção e

abandono). Importante salientar que em todos os dados apresentados neste estudo, o ano

da coleta não foi contabilizado por não ter ainda registro do resultado, uma vez que o

material foi coletado no primeiro semestre.

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223

O que sugerem esses números? Indicam que a retenção e o abandono são uma

regularidade da administração da população que adere à Educação de Adultos, uma

regularidade que surge em relação polêmica com enunciados como “o principal

problema da EJA é a evasão”. É importante observar que nesse elemento em específico

da biopolítica, uma regra de administração é um nó que envolve o discursivo e o não

discursivo numa estratégia de governamento. A materialidade que o sustenta é o

discurso de insucesso que emerge dos dados, remetendo à possibilidade de produção do

real que as estatísticas encerram.

O exercício das médias é útil para produzir comparações, observar a incidência

de algumas tendências já conhecidas na discursividade da Educação de Adultos, e

principalmente refletir de que modo o processo normalizador interpela diferentes

categorias no interior de uma população específica. Esse é o exercício mais estranho,

quando partimos do pressuposto de que os enunciados estatísticos cumprem uma função

estratégica na governamentalidade da Educação de Jovens e Adultos. As análises aqui

tomam uma direção dedutiva, indo dos dados mais gerais para o mais específico da

amostra analisada. O objetivo foi dar visibilidade ao quadro geral em que se colocam os

dados construídos na pesquisa. No entanto, as médias são enganadoras, e se elas servem

para indicar tendências, são ineficazes para a tomada de decisões, se o que estiver em

jogo for algo mais do que a mera administração de sujeitos.

O principal indicador que nos interessa são os coeficientes de tempo que um

sujeito participante desses grupos precisa para produzir sua escolarização. Produzimos

médias de anos de permanência na escola buscando problematizar por que pessoas

adultas passam tanto tempo para obter uma certificação, quando um enunciado muito

disseminado afirma que o adulto, pelo seu acúmulo de informações sobre a vida, precisa

de menos tempo para aprender ou é aquele sujeito que, devido às suas condições de

vida, “tem pressa”. Os documentos de nossa pesquisa dão conta de sujeitos que estão no

sistema escolar há 17 anos. Esse tempo seria suficiente para a consecução da Educação

Básica inteira e entrada e conclusão no Ensino Superior.

Além da longevidade escolar que esses documentos indicam, a permanência na

escola parece estar assegurada, e não a evasão, mas o abandono e, principalmente, o

regresso do sujeito à escolarização, mesmo após muitos anos de ausência, apontam que

essa relação não se dá de forma estável, sendo constituído por temporalidades

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esdrúxulas à expectativa da racionalidade da urgência, por exemplo, que pressupõe a

opção por campanhas de alfabetização e a definição de ciclos de escolarização mais

curtos para as populações adultas.

Quando o problema do analfabetismo se tornou a bandeira pública da Educação

de Adultos no Brasil, por volta da década de 1940, e a questão da sua urgência surge

como enunciado central dessa discursividade, a premência de tempo era, sobretudo, do

país que ambicionava se adequar rapidamente ao processo de modernização. O adulto

não alfabetizado, ou alfabetizado sem escolarização, foi concebido como o sujeito que

iria rapidamente apreender os conteúdos básicos da leitura e escrita instrucionais e

rapidamente se tornar disponível como mão de obra para a industrialização nascente.

Nos dados que emergem dos históricos escolares, uma parte da população

escolarizada em processos de Educação de Adultos parece não aceitar ou não se

enquadrar de maneira adequada nessa lógica de tempo que lhe foi proposta. Pensando

em discutir essas ideias, fizemos um corte de idade dividida em três faixas: de 15 a 24

anos, de 25 a 59 e de 60 anos ou mais. Esses cortes seguem o mesmo padrão do IBGE

nas análises das Pesquisas Nacionais de Amostra Domiciliar, consideradas mais

confiáveis para microdados e análise de categorias específicas.

Recordando que estamos analisando sujeitos com ciclos longos na modalidade,

num recorte sobre uma amostra de documentos coletada com base em critérios bastante

amplos e com pouco caráter discriminatório, os dados que mais nos interessam são os

indicadores de raça, gênero e faixa etária em articulação com o tempo de permanência

na modalidade. Compreendemos que esse indicador nos permite observar essas

trajetórias longas como uma série que narra a história da escolarização de adultos a

partir de sua produtividade relativamente aos parâmetros de conclusão do Ensino

Fundamental.

No grupo em que os indivíduos estavam há mais de 3 anos na modalidade, a

média de idade era de 42 anos, considerando que o sujeito mais jovem possuía 1349

anos

e o mais idoso 81.

Quando analisamos os tempos médios no Grupo 2, no qual a longevidade é mais

pronunciada, a média de idade é de 45,6 anos e a média de anos aprovados desce para

49

É realmente espantoso que um adolescente de 13 anos esteja matriculado numa turma de EJA e já

cursando o seu terceiro ano na modalidade, principalmente quando sabemos que a totalidade das

matrículas analisadas era no turno da noite.

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35% enquanto a média de aprovação sobe para 36% e os abandonos ficam em torno de

16%. Logo, o sujeito passa mais tempo na escolarização, ficando mais velho, sendo

menos aprovado e recebendo mais retenções. Esses adultos abandonaram a escola

menos do que os indivíduos do Grupo 1. Como um grupo está inserido no outro,

podemos dizer que estes são os “persistentes” da amostra.

Apesar de esses dados parecerem óbvios, quando olhamos as cronologias, ou

seja, a análise dos eventos que descrevem essas movimentações, observa-se que os

tempos fora da escola aumentam. Estamos falando de um grupo que tem acima de cinco

anos de experiência escolar registrada e, nesse grupo, a média de anos de escolarização

é de 8 anos, contra 5,5 anos do Grupo 1, ou seja, a média do Grupo 2 equivale ao tempo

necessário para cumprir todo o Ensino Fundamental regular, e do Grupo 1 a todo o

Fundamental de EJA, definido em cinco anos segundo o modelo adotado na rede de

origem dos documentos.

A média de anos de escolarização no grupo específico composto apenas por

pessoas negras, homens e mulheres, dentre os longevos do Grupo 1 é de 9,6 anos de

escolarização, embora o seu nível de escolaridade corresponda ao Ensino Fundamental

ainda incompleto. No grupo só de mulheres de todas as raças, no qual mulheres brancas

compõem apenas 14% do total, a média de anos de escolarização é de 6,3 anos e entre

os homens longevos de todas as raças, essa média desce para 4 anos de escolarização.

Porém, a média de idade desse grupo é bem menor, ficando em 35 anos. No grupo de

mulheres longevas, a idade média é de 50 anos. Os homens da amostra chegaram à

Educação de Jovens e Adultos mais cedo e as mulheres mais tarde.

Repetindo o modo de compreensão do histórico da escolarização das crianças, os

dados apresentados parecem indicar que o problema da EJA também não é apenas a

evasão, mas o processo de retenção, já denominado no passado de repetência, cuja

imagem símbolo, para uma análise biopolítica, é a escola como instituição disciplinar

em que as populações são inseridas para serem normalizadas. A natureza da

normalização ofertada pela Educação de Adultos parece supor que o importante é

manter o risco social do analfabetismo inscrito em programas e salas de aula, regulando

sua anormalidade e administrando socialmente essa população.

Temos um arranjo em que a escolarização de adultos promove um processo

social de retenção das populações adultas num espaço social de “inclusão perversa”

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(SOUZA, 2004) agenciada pelo Estado. Os indicadores nacionais apoiam essa linha

argumentativa. Na análise da pesquisa amostral bianual realizada pelo IBGE, a PNAD

de 2014, o índice de analfabetismo estancou um ritmo de redução que se mantinha

constante desde a década de 1950. Estancar a redução num contexto institucional e

político de amplos investimentos em educação parece uma anomalia estatística.

No entanto, esse pode ser o indicador mais interessante para a consecução do

direito pleno à Educação de Adultos jamais surgido, justamente porque o problema, ao

nosso ver, não está na eficácia da escolarização, mas no seu modelo e finalidades

quando dirigidas a pessoas adultas, não alfabetizadas e de inscrição racial

principalmente negra. Diante dos vazamentos do modelo de oferta podemos refletir por

que pessoas deixam de frequentar ou não aderem ao processo de escolarização ofertado

com essas características.

As médias são enganadoras, mas sugestivas. Padrões sociais muito comuns se

revelam nesses dados simples. As questões de desigualdades de classe, raça e gênero de

nossa sociedade ressurgem na análise da longevidade escolar dos alunos da EJA. Em

outros suportes teóricos, o que estaria em discussão seria o aspecto reprodutivo desses

dados, meros espelhos de uma sociedade desigual. Podemos considerar que o biopoder

tem um aspecto de reprodução das desigualdades enquanto elas são funcionais para a

administração do poder.

A respeito desses padrões, no mesmo período histórico, a quantidade de pessoas

negras no Ensino Superior cresce em 230%, segundo dados do MEC. Incluir alguns e

excluir outros ou, antes, incluir alguns em alguns espaços e outros em outros espaços,

de modo a garantir a movimentação adequada e eficaz das populações não é outra coisa

senão a atuação do biopoder no campo educacional em pleno vigor (FOUCAULT,

2008). Não estamos mais no horizonte da proibição do século XVIII, em que homens

adultos negros só poderiam estudar as primeiras letras e em salas de aula noturnas.

Estamos na época da distribuição da regulação sobre as populações a fim de evitar o

“risco” que representam para as estruturas de poder quando acendem aos conhecimentos

de prestígio na sociedade. Desse modo, temos a escola básica para os mais idosos, mais

pobres e os negros inseridos no mercado informal ou empregados em funções que não

exigem qualificação, e o Ensino Superior para as massas jovens cuja força de trabalho

necessita ser mais bem qualificada.

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Voltando ao tema do tempo de escolarização, a média de anos marcados como

aprovação no Grupo 2, de pessoas com mais de 5 anos de registro de trajetória, é de

35%, nesse grupo, a menor de todas as médias de aprovação encontra-se no grupo

formado por homens longevos. Nesse grupo, a média de aprovação é de 28% dos anos

registrados, com 35% de retenção e 16% de abandono. Como esse é o grupo com menor

tempo de escolarização registrado (média de 4 anos), observa-se o mecanismo de

retenção mais alto e a maior participação de negros e pardos que, unificados, formam

57% da amostra. Diante do risco das médias, informamos que esse grupo tem sujeitos

com no mínimo de 5 anos de escolarização e 29% dele é composto de históricos com

mais de 10 anos de escolarização. Pela análise das cronologias, 25 desses sujeitos, ou

seja, 54% do total, ainda cursava os anos iniciais do Ensino Fundamental.

A sequência de séries cursadas por estes 25 sujeitos aparece na tabela abaixo em

forma codificada. Os números indicam a série, indo da primeira à terceira, o que

corresponde aos três primeiros anos do Ensino Fundamental.

Tabela 2. Cronologias de homens longevos cursando os anos iniciais do Ensino

Fundamental

Nº Documento Sequência de séries cursadas

140 1 2 2 2 2 2 2 1 1 1 1 3 3

204 1 1 2 3 4 3 3 3 3 3 3 3 3 3

64 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2 2

49 1 1 1 1 1 1 1 1 1 2 2 2 2 2

186 2 2 2 2 3 3 3 2 3 3 3

57 3 3 3

185 2 3 3 5 3 3 2 2 2 2 3

90 1 2 1 2 2 2 1 2 3 3

232 1 2 2 2 2 2 3 3

19 1 2 3 3 2 3 1 2

54 1 2 2 2 2 2 2 2

132 1 2 2 2 3 3 2 3

218 1 1 2 3 3 3 1 2

26 1 2 2 3 1 2

46 1 2 3 2 2 2 3

69 2 2 2 2 2 2 2

93 1 2 1 1 1 3

234 2 2 2 2 2 3

9 1 2 3 3 2 3

23 1 2 2 3 1 2

91 2 2 3 3 3 3

92 2 2 2 2 2 3

105 2 3 3 4 3 3

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Na formação discursiva, tais informações, codificadas por uma noção de verdade

científica atribuída à estatística, parecem não sustentar ou reproduzir, mas corroborar a

mensagem constantemente veiculada em torno da escolarização de adultos como uma

prática social permeada por narrativas excepcionais de sucesso, narrativas de um

cotidiano escolar esvaziado ou histórias de um fracasso generalizado dessa modalidade

educacional.

Nenhuma dessas narrativas é suficiente. Primeiro, porque elas acionam uma

forma da racionalidade pedagógica fundada sobre os processos burocráticos que

idealizam a escola para adultos a partir do modelo escolar infanto-juvenil. Segundo,

porque ela não oferece ferramentas de compreensão suficientes para todo o fenômeno

da educação escolar de jovens e adultos, que não se resume ao que dizem os dados.

Dessa forma, todos os percursos escolares possíveis, todas as temporalidades,

todas as possibilidades criadas a partir da prática concreta de professoras e estudantes

que recriam as condições para construir essa modalidade de educação fica invisibilizada

pelas formações discursivas sobre a evasão, pelos dados e pela assombrosa ideia do

“fracasso escolar”. O problema, advogamos, não se encontra exclusivamente nessas

práticas pedagógicas que constroem a EJA diariamente. O problema reside no advérbio

de modo temporal da última frase. É a racionalidade escolar da frequência, da presença

diária, da contagem dos tempos, da exigência de 200 dias letivos que cria um quadro em

que os tempos dos sujeitos não são percebidos, nem suas necessidades, assim como as

variadas possibilidades de vivenciá-las e saciá-las.

5.3.2. Excessos de ausência e os regimes de persistências de estudantes

adultos

O mecanismo que consolida o modelo escolar tradicional, baseado na

organização disciplinar e disciplinadora do tempo e dos corpos produz um “estado de

exceção” nas práticas em torno da EJA, colocando-a numa condição de instabilidade, de

adiamento, de permanente denegação do direito, como fica exposto em algumas

cronologias.

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O ciclo escolar de um sujeito de 42 anos nos informa que ele passou 14 anos

frequentando o Ensino Fundamental, sendo, desses, 6 anos de retenção, 4 de aprovação

e 2 de desistência. A sequência de anos de escolarização marcada em seu histórico

informa “13413333333332”, o que significa que ele estudou o primeiro ano do

fundamental na modalidade EJA, que é equivalente à alfabetização, passou para o

módulo 3 no ano seguinte, módulo 4 (primeira série dos anos finais), retornando ao

módulo 1 de alfabetização no ano posterior, passando em seguida por uma sequência de

9 anos no módulo 3 que ele já havia cursado com aprovação anos atrás, para, no ano

final do recorte desta pesquisa, estar matriculado, pela primeira vez, no segundo ano das

séries iniciais, módulo 2. A ficha informa ainda que esse sujeito é do sexo masculino, de

cor parda, oriundo do sertão pernambucano e que entrou na modalidade EJA, pelos

registros, aos 28 anos.

Um homem de 39 anos está há 13 anos matriculado nos anos iniciais do Ensino

Fundamental, sem nenhum registro de deficiência em seu histórico, que entrou na

modalidade no ano de 2000, portanto, aos 26 anos. A cor informada é negra, o que

significa que ele faz parte dos 9% do total de históricos analisados. A sequência de

anotações de resultados finais dos seus anos de escolarização informa que ele cursou

por dois anos o primeiro ano do fundamental (1 - 1), cursou o segundo ano, e em

seguida o terceiro e o quarto ano, passando para a etapa dos anos finais (3 - 4), ocasião

em que teve matrícula em duas escolas, retornando para uma longa sequência de estudos

no terceiro ano da primeira etapa do ensino fundamental (3-3-3-3-3-3-3-3-3), de modo

que esse estudante cursou o terceiro ano do Ensino Fundamental 10 vezes.

Uma mulher de 57 anos, cuja primeira matrícula em EJA consta nos registros em

1999, de cor parda, oriunda do sertão pernambucano, possui 12 anos de registro de

escolarização. Desses, foi aprovada em 4, retida em 5 e abandonou em 1 (o ano da

coleta dos dados ainda não dispunha dos resultados e há um ano sem resultado anotado).

Entre 1999 e 2012 ela não teve matrícula nos anos de 2002 e 2005. Apesar de tanto

tempo de permanência na escola, essa estudante só cursou a primeira etapa do Ensino

Fundamental. Sua sequência de séries cursadas foi a seguinte: 3-1-3-1-1-2-3-2-2-3-3-3-

2.

Movimentações como essas evidenciam tanto que o dispositivo atua de forma

eficiente para inserir os sujeitos na institucionalidade da educação, quanto que os

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sujeitos inscrevem seu próprio movimento nas superfícies de visibilidade da biopolítica.

Tal cronologia é um índice de que o percurso do estudante foi inscrito pelas

idiossincrasias de sua existência, na qual flutuam desejos, aspirações, decisões e

incidentes, as quais são aspectos da vida invisíveis para a biopolítica.

É importante alertar que a racionalidade biolítica não é a única que funciona na

escolarização, nem a lógica central. Ela participa do processo mais amplo de

escolarização da população não alfabetizada, mas convive e é permanentemente

questionada por outras racionalidades ali vigentes, com as quais entra em disputa no

campo de agonismos pela verdade da educação. Portanto, não vamos alegar que a escola

de adultos serve apenas para conter a população, mas precisamos alertar que ela também

se presta a esse serviço. A principal questão em torno desse serviço é que essa é a

racionalidade incorporada pelo Estado e posta em ação pelos seus agentes. Além disso,

essa racionalidade opera situações no real, fazendo pessoas ocuparem lugares

associados aos enunciados do fracasso, da evasão, e do precário, pois para registrar

essas caminhadas, esses movimentos, os termos utilizados são aqueles, já repetidos

aqui: "retido", "abandonou", "aprovado".

Ao inscrever sobre a superfície biopolítica sua própria movimentação, e persistir

numa relação conflituosa com as regras da escolarização, confrontando as marcas e as

demarcações do seu modo de ocupar aquele espaço, os adultos longevos, com as

“trajetórias acidentadas” pela escolarização, parecem supor que nem só de normalidades

vive a escola. Eles trazem com seus corpos, seus tempos e seus ciclos a possibilidade de

produção de heterotopias incessantes que corrompem o padrão de normalidade e forçam

o espaço escolar a conviver com corpos outros, tempos outros, que por sua vez

configuram esse como um espaço outro, marcado pelo conflito entre essas diferentes

perspectivas.

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231

5.3.3. 9,6 anos de estudos e nenhum diploma: o ciclo de escolarização das

pessoas negras

Em 2012, as pessoas negras, ou seja, o agrupamento estatístico e político dos

pardos e pretos das pesquisas censitárias, matriculados na modalidade Educação de

Jovens e Adultos, representavam 39% do total das matrículas na Educação de Jovens e

Adultos, num cenário em que 45% aparecem como raça não declarada; do total, 14% se

autodeclararam brancos, amarelos e indígenas somavam menos de 1%.

No conjunto de documentos analisados nesta pesquisa, a categoria "negros"

corresponde a 52% do grupo de pessoas cujos históricos informam mais de 3 anos de

escolarização (grupo 1 de longevos). Tais dados são úteis neste momento, porque nos

permitem chegar a informações como a quantidade média de anos de permanência na

escolarização para essa categoria.

Quando submetemos os documentos a essa contagem, com recorte conduzido

pelas nossas opções e compromissos ético-políticos, verificamos que no interior da

Educação de Jovens e Adultos, em que a população negra é maioria, o dado sobre

permanência de negros no sistema também se apresenta diferenciado em relação às

demais categorias sociológicas tradicionalmente utilizadas em estudos de população.

Para isso, nós temos dois subgrupos: o conjunto que agrega pretos e pardos e o

conjunto específico das pessoas registradas como negras nos documentos. Dos 382

documentos, elas foram apenas 10, ou 2% do total. Os pardos representavam 43% do

total. No entanto, essas dez pessoas que se autodeclararam com inscrição racial negra

estavam todas inseridas no Grupo 2, das pessoas com mais de 5 anos de escolarização

(141 sujeitos no total). Nesse grupo, pessoas negras tem uma idade média de 48 anos,

sendo o sujeito mais idoso uma mulher de 69 anos e o mais jovem um homem de 25

anos. Havia dois homens e oito mulheres nesse conjunto, mas esse grupo conseguiu

produzir a maior média de permanência na educação escolar de todas as categorias

trabalhadas nesta pesquisa: 9,6 anos de escolarização.

Dentre os dez, os históricos informam que 3 já cursavam a segunda etapa do

Ensino Fundamental. A pessoa mais idosa, uma senhora de 69 anos, passou 7 anos

cursando o segundo ano do Ensino Fundamental, repetidamente. Ela tinha 12 anos de

registro de escolarização no seu histórico. A segunda pessoa mais idosa, uma senhora

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com 65 anos, cursou a terceira série da primeira etapa do Fundamental por 4 anos, antes

de seguir para os anos finais.

Esse grupo detém o maior percentual de anos anotados com resultado “retido”,

em torno de 40%, dentre todas as categorias analisadas nesta pesquisa. Não é excessivo

relembrar que os documentos que forneceram esses dados não foram coletados sob

critérios estatísticos que lhes garantissem uma noção de representatividade. Não era esse

o escopo da nossa pesquisa. Mas, o enunciado que refere as populações negras no

interior do dispositivo da escolarização, este dado incluído, remete frequentemente à

estratégia de poder que demarca posições, reforça certos traços de sentido, que parece se

desdobrar sobre a caracterização do sujeito de forma contínua, capilar e detalhada.

Mesmo diante de um indicador invertido, a permanência como índice da

biopolítica e não do “sucesso” escolar, no qual um regime disciplinador territorializa

sujeitos no processo da escolarização, a população negra surge confrontada com os

indicadores mais desafiadores. No jogo de veridições que o dispositivo da escolarização

instala, esses índices representam a eficácia da escolarização para manter no âmbito do

seu território os sujeitos negros que foram interpelados por esse mesmo dispositivo. Ele

convoca e agencia. O que significa passar 14 anos na escolarização, para um homem de

39 anos? Ou 12 para uma mulher de 69 anos?

Certamente, há um desafio de compreensão enorme no âmbito dessa população

que só se revela a partir da inversão de um indicador e de seus significados. Esses

corpos negros podem representar uma heterotopia na escolarização? Seus ritmos,

desejos e movimentos quando submetidos à veridição do tempo marcado, do

funcionamento do tempo escolar, do regime de presença/ausência, não se encaixam?

Produzem outras formas de circulação no âmbito da escolarização? O dado fundamental

que esse indicador expressa, no entanto, não é o fracasso, mas a persistência. É preciso

uma ampla dose de persistência, força de vontade, algum desejo forte por algo, para

garantir a permanência por 14 anos num espaço que lhe demarca como “retido” por 7

anos seguidos.

Essas permanências, e as insistências, as formas de mobilização, os modos como

os sujeitos cujas movimentações dentro e fora da escola produziram esses

deslocamentos podem ser consideradas marcas de movimentos inadaptados, mas

resistentes, que ao invés de se evadir definitivamente e produzirem outro tipo de

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resistências à escola de adultos pela exterioridade, permanecem e estabelecem situações

constrangedoras, agora não mais para si, mas também para as redes de ensino, para os

responsáveis por essas escolas.

A presença persistente dos adultos na escolarização promove um

constrangimento sobre a EJA. “Nem vão embora, nem avançam”, e ainda produzem

movimentos longos num processo que deveria ser curto. Saem e retornam ano a ano ou

após intervalos de anos confrontando uma lógica de produção de resultados numéricos.

Seus corpos não atingem a certificação que a instituição tem por tarefa oferecer. Seus

corpos resistem às imprecações dos apelos constantes pela elevação da escolaridade da

população adulta. Sua movimentação, no entanto, informa de andares limítrofes.

Caminhos pelas linhas de resistência podem sempre levar às áreas mais inseguras dos

dispositivos.

Ser um estudante longevo pode certamente ser uma manifestação de uma prática

de resistência da qual a escola não consegue dar cabo (apenas registrar sua ocorrência).

Porém, a inversão da noção de permanência informa também que se está caminhando no

território do poder, estabelecido por ele, sob suas regras; que se está assumindo um

enfrentamento por dentro. Além disso, pode-se considerar que essa mesma condição de

longa permanência interpõe condições mais desvantajosas para o sujeito que a vivencia.

Todos esses jogos de poder são incapturáveis numa análise. O que podemos

dizer, por hora, é que as movimentações de estudantes no interior do dispositivo da

escolarização confrontam, apenas com seus movimentos e ciclos longos de

permanência, as regras instituídas pela norma escolar. Com esses modos de existência

no âmbito de um aparato tão sofisticado quanto é a escola, esses adultos longevos, e as

categorias que refinam essa mais ampla, como as pessoas negras, demonstram que

atuam por dentro do dispositivo, desmontando algumas de suas premissas através desses

movimentos, que são tempos outros andando sobre o espaço da modalidade Educação

de Jovens e Adultos.

No âmbito do dispositivo, esses documentos se relacionam com um arco em que

estão inscritas as linhas de força que falam da visibilidade do sujeito analfabeto. Na

curva de enunciados sobre a pessoa não alfabetizada, uma das regras é a ausência. O

sujeito é enunciado pela falta. O analfabetismo é enunciado como uma chaga, na qual

falta saúde ao corpo social. Então, o sujeito se torna visível para a instituição através de

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registros como esse, em que sua trajetória é “objetivamente” descrita. O histórico não é

uma história, no sentido de uma narrativa sobre o que é a Educação de Adultos. Ele

entra, como ensina Foucault, no jogo das forças. E forma rede com outros enunciados,

como as normas legais cristalizadas sobre tempos formais de escolarização, currículos

oficiais, currículos nunca terminados para uma modalidade em que o tempo é o cerne

das significações, o elemento central de singularização das forças do dispositivo.

Com os históricos, podemos tomar a palavra para falar da guerra silenciosa

travada pela biopolítica do analfabetismo contra os sujeitos dessa população. O fato de

essas informações existirem e os processos de escolarização seguirem sem uma

interpelação a respeito do que evidenciam esses documentos é um elemento desafiador.

Não se trata de criar outro tipo de ficha, outro documento mais pertinente, no qual a

trajetória do sujeito esteja registrada em sua plenitude. Essa tarefa é ilusória. A valência

dos documentos para a nossa análise não se respalda naquilo que os documentos

poderiam ser, mas naquilo que efetivamente eles são, e de todas as funções que eles

desempenham no quadro geral dessa biopolítica. É com sua inscrição na atualidade que

ele se torna um monumento crítico da EJA, evidenciando tanto o que ela faz aos

sujeitos, quanto o que deixa de fazer.

Parecem notícias de uma guerra silenciosa, de um processo de eliminação que

não elimina no sentido físico, mas, ao que parece, sedimenta ano após ano o sentimento

de que nada sai do lugar, de que as coisas não mudam, o tempo não avança, não segue

uma rota. Os históricos escolares são a materialidade que fala de uma contenção ― a

palavra “retido” repete-se centenas de vezes, na mesma ficha, em fichas diversas, ao

longo de muitos anos.

A dispersão desse termo informa-nos que o processo de exclusão da EJA não se

constrói “para fora”, mas é na contenção que ela conta uma de suas histórias. No

processo de contenção estamos falando de sujeitos que não atingem o Ensino Médio,

não completam o Ensino Fundamental, quiçá se alfabetizam, mas permanecem na

escola por longos períodos, contradizendo um dos enunciados mais poderosos do campo

da Educação de Adultos: o de que os sujeitos têm pressa para obter certificação, que

eles não precisam passar o mesmo tempo na escola que as crianças em “idade escolar” e

que o tempo da EJA tem de ser um “tempo menor”. Aqui, a trajetória dos sujeitos está

nos informando que a linha de fratura exercida pelo seu movimento no interior da

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modalidade representa um questionamento fundamental ao discurso da emergência que

funda a Educação de Adultos e a biopolítica do analfabetismo no Brasil. E eles dizem

isso ao tornarem-se visíveis não apenas conforme a norma, mas, sobretudo, nas

resistências que suas heterocronias expressam na relação com a norma.

Os históricos escolares formam uma rede com outros enunciados que compõem

o desenho geral da escola, através de suas normas, suas regras tácitas, sua cultura

pedagógica. As normas que prescrevem carga horária relacionam o enunciado do direito

(carga horária é a medida de tempo para a garantia do direito à escola) com o enunciado

da regulação, e as práticas de regulação são responsáveis pela produção de documentos

tais como os registros analisados. Todos são informados por uma cultura pedagógica

sobre o que deve ser a escola e quais suas tarefas.

As movimentações registradas pelos históricos escolares apresentam-se numa

regularidade entre diferentes contextos locais, em atuação na ordem das legalidades de

um processo de gestão da população analfabeta introduzida na escola, ou seja, são

narrativas autorizadas, com valor de verdade, que falam sobre o sujeito da EJA,

inscrevendo sua história, constituindo com essa inscrição um tipo peculiar de caminho,

ao sedimentar uma condição a partir da força narrativa de sua repetição e do lugar de

poder de onde falam esses documentos. Refletimos que eles compõem o dispositivo ao

reafirmar também as intermitências presentes na história da própria Educação de

Adultos como oferta escolar. O marco dos efeitos produzidos pelo dispositivo na linha

de força da qual os históricos são a visibilidade, reafirma a função disciplinar (sobre

cada sujeito) e biopolítica (sobre a população) das relações de poder que constituem a

Educação de Adultos.

O que quer nossa análise, interessada no dispositivo, em suas entranhas e suas

fissuras, nos sinais inscritos na silenciosa pilha de papéis, é justamente flagrar esses

movimentos derrisórios, essas tantas possibilidades que ali silenciavam a necessidade de

uma escola sem escolarização, uma escolarização sem normalização, uma possibilidade

de existência escolar que tivesse algo melhor para dizer sobre o sujeito que “retido”,

“abandonou” ou foi “aprovado”. As cronologias escolares dos estudantes da Educação

de Jovens e Adultos geram uma instabilidade em nossas categorias, como permanência,

sucesso, fluxo.

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Os documentos atestam a densidade do dispositivo e um registro dos modos de

atuação da biopolítica, portanto, mais do que o resultado numérico em si, ou a pretensa

realidade que ele descreve, o fato de haver um documento para cada estudante

matriculado, o fato de os ritmos de escolarização refletirem uma variedade de

frequências, expressa o regime de visibilidade do sujeito adulto escolarizado. Na

espacialidade da escola, território de atuação privilegiada do dispositivo, a presença é

regulada por normas criadas para sujeitos em outros momentos da existência. A norma é

a população infantil.

Quando se faz presente no espaço escolar, o sujeito passa a ser regulado

conforme os parâmetros da regulação do corpo infantil, sendo sua presença medida por

unidades de tempo chamadas “aulas” e transformada num índice que determina sua

“aprovação”, “reprovação” ou “retenção” ou sua “evasão”. Ao analisar as frequências

anuais, ou seja, a cronologia dos eventos escolarizados que configuram o ciclo longo

das movimentações escolares de adultos no Ensino Fundamental, observamos que a

frequência dos sujeitos tomada em ciclos de anos, e não em ciclos de dias, reflete um

movimento intenso de tentativas, retomadas, permanências longas, ao contrário das

conhecidas problemáticas da EJA identificadas com o conceito abrangente e genérico de

evasão. As cronologias indicam que o principal problema da modalidade Educação de

Adultos não é a evasão isoladamente, mas a permanência longa, o fato de que os

sujeitos adultos vivenciam tempos alargados para obter os resultados de sua

escolarização.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Parece evidente que o acesso ao conhecimento poderoso é uma possibilidade

concreta que o sujeito pode querer deter para acessar melhores condições de vida numa

sociedade que tem a escrita como norma. E este trabalho não se dedicou a provar o

contrário disso. Antes, dedicou-se a explicitar que nesse percurso pela obtenção do bem

simbólico da escrita uma série de dispositivos entra em ação para mediar o acesso ao

direito e ao conhecimento poderoso, fazendo dessa possibilidade emancipatória um

horizonte que se afasta do sujeito quanto mais ele tenta se aproximar.

Ratificamos aqui nossa crença de que o encontro de seres humanos em torno do

conhecimento e do afeto pode se configurar como um evento de produção de liberdades,

resistências e revoltas. E que isso pode ocorrer eventualmente nas escolas dos anos

iniciais para pessoas adultas, ainda que seja exatamente sobre esse lugar tão frágil que

os dispositivos de governamento atuam de forma mais presente, controlando o tempo, o

conteúdo, a avaliação, a frequência, a vestimenta, o mobiliário, o horário de entrada e

saída, a água que se bebe e o banheiro que se usa (ou não) no turno da noite.

Ao longo deste trabalho, apresentamos argumentos em torno da afirmativa de

que as políticas de alfabetização ― como políticas de escolarização ― se constituíram

na segunda metade do século XX no Brasil como biopolíticas, e indicamos algumas

problemáticas decorrentes desse modo de interpretar o fenômeno da Educação de

Adultos. Não debatemos práticas pedagógicas tomadas como formas de conhecimento

produzidas pela Pedagogia, nem investigamos as trajetórias dos sujeitos narradas a

partir da experiência. Não foram tomadas as escolas e o sistema que compõem como

eventos singulares. Os cenários aqui tratados foram abordados num foco que se

distanciava dessa singularização e, graças a esse afastamento e recolocação de foco,

pôde observar linhas de força que articulam diferentes objetos em atuação no

dispositivo.

O foco da análise biopolítica nos permitiu compreender que as populações

adultas não alfabetizadas foram assim definidas a partir da produção de uma

regularidade das relações de poder, assegurada pelas estratégias da interpelação,

governo e documentação da população. A principal consequência de uma análise que

parte desse tipo de assertiva é a desnaturalização do fenômeno. O analfabetismo, que já

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foi visto como um problema individual de dificuldade de aprendizado, um problema

populacional de atraso cultural, ou um problema social de falta de escolas suficientes,

emerge como um efeito das práticas de poder, que articula Estado, indivíduo e

população numa economia estratégica das relações do sujeito com a verdade da

educação e da escola.

As tecnologias do constrangimento e do abandono são dois dos muitos aspectos

possíveis de realização da educação escolar de adultos. Certamente, há muitos outros,

mas estes também existem no campo de práticas dessa modalidade educacional. E pela

sua eficácia, durabilidade, pela dispersão ampla que esses discursos encontram, pela sua

influência nas práticas, consideramos não ser pertinente calar sobre eles. É justamente

sobre o silêncio e a complacência que se eternizam as violências. Em algum momento é

preciso tomar a palavra, e contribuir para fazer ver e, assim, partilhar da luta e fortalecer

os enfrentamentos.

Este trabalho esteve todo o tempo caminhando sobre a fronteira que demarca a

educação escolar como uma prática que implica o disciplinamento dos corpos e o

controle das almas. E, no âmbito da educação escolar, a escrita foi interpretada como

um dispositivo normativo a partir do qual se estabelecem as práticas de governamento

das populações. Ao debater a vinculação da educação escolar com a obrigatoriedade da

alfabetização, e sobrepor essa normativa à análise dos procedimentos do poder,

emergiram as tecnologias do constrangimento e do abandono.

As tecnologias da escolarização de jovens e adultos evidenciaram o mecanismo

através do qual a vergonha vem sendo usada para promover experiências subjetivantes e

dessubjetivantes em sujeitos interpelados pela discursividade escolar. O cenário

genealógico desse processo é o discurso longínquo da nação e o projeto racista de

segregação e eliminação das populações africanas e indígenas forçadamente integradas

ao território nacional. A educação escolar foi ofertada, o acesso à escrita foi ofertado,

mas acompanhado pela exigência contínua de um “deixar de ser a si mesmo”, de um

abandonar-se à força da lei, de um esvaziar-se de si para ser outro, numa relação

mediada pelos dispositivos escolares.

A tecnologia do abandono nos permitiu falar sobre o processo de inclusão

escolar como abertura para novas camadas de regulação, num processo que torna visível

a população no espaço da regulação. No entanto, ao incorporar a população, incorpora

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também seus corpos e seus movimentos, e precisa lidar com suas liberdades. Por isso,

além de expressar o abandono à vigência sem significado da lei, a presença de adultos

em escolas, registrada em seus históricos escolares, nos permitiu ver, também, seus

deslocamentos divergentes, suas heterocronias expressas em ciclos longos e

permanências perturbadoras da estabilidade da norma.

Nas tecnologias do abandono e do constrangimento estão presentes as

racionalidades que promovem uma determinada forma de relação dos adultos com a

instituição escolar, o que faz da vergonha, da conversão, do precário e da postergação

modos de veridição dessa relação, ou seja, os pontos que conferem um sentido de

verdade às práticas.

A análise biopolítica se mostrou eficaz no estudo da economia das relações de

poder que envolvem um projeto de sociedade alfabetizada. Ela nos permite discutir a

formulação de subjetividades que emergem associadas ao subdesenvolvimento, ao

atraso, à ignorância. Além disso, evidenciou aspectos de uma maquinaria capaz de

conter as populações interpeladas de forma a mantê-las na espacialidade de uma escola

cuja precariedade a aproxima da experiência das prisões. No entanto, há luta.

Nem só de silêncio vive a população não alfabetizada nas línguas escritas de

matriz colonial. Ao movimentar-se com sua diferença no interior da biopolítica da

escolarização de adultos, esses sujeitos demarcados pela ausência rompem as

expectativas de uma escolarização rápida, de uma acelerada superação do analfabetismo

construído como problema social.

Constroem lógicas diferentes com seus tempos divergentes, com suas repetições,

suas permanências longas, seus volteios em torno do projeto de escolarização de

adultos, que acompanha o desejo não oculto das elites em civilizar, modernizar e

catequizar essas populações. Com seus tempos outros e movimentos divergentes os

adultos mostraram que todo edifício de poder possui suas rachaduras, suas fraturas.

É importante salientar, ainda, que a análise biopolítica não é uma reflexão sobre

o bem ou o mal da escolarização, mas sobre sua objetividade, no sentido com que

Foucault se refere à objetividade com aquilo em que o poder se faz visível, em que se

faz presente. Só podemos falar em subescolarização porque a escolarização se impõe

como norma social na modernidade e não se realizou de modo uniforme em todos os

locais onde seus enunciados chegaram.

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Não precisaríamos nos perguntar sobre o dispositivo da escolarização se ele não

fosse problemático, no sentido de que levanta questões. Para problematizarmos essa

escolarização, temos que partir do pressuposto e de alguma mínima adesão a princípios

como igualdade de acesso à escola, escola como lugar de acesso ao conhecimento e do

conhecimento como acesso ao poder, numa sociedade organizada em torno da escrita.

Portanto, o que nos provoca a problematizar a escolarização é a própria norma

discursiva da modernidade, que criou os seus próprios mitos, ao lado do pensamento

crítico sobre educação, que foi gestado como linha de resistência a essa norma e, logo,

dela participa. Desenredarmo-nos dessa rede talvez não seja a questão primeira.

Delinear seus contornos, compreender seu funcionamento, aprender como opera,

certamente.

Essa “baixa ambição” prescritiva é ácida para uma reflexão no campo

educacional. A todo o momento, a pergunta de cariz pragmático ― para que isso serve?

― nos assalta e nos interpela. Porém, a que serve o exercício de pensar o

funcionamento das coisas normais? Em primeiro lugar, serve para desnormalizá-las. Em

virtude dessa possibilidade analítica, o penoso exercício de analisar 1.378 históricos

escolares, compreender suas regularidades, suas cronologias, suas intempéries, revela-se

como uma possibilidade de estranhar o normal da normalidade, e entender suas

regularidades, que não são regras, mas as expressam.

Seria possível falar de uma forma de educação que produz sete reprovações

seguidas na vida de um sujeito adulto com outra terminologia que não a de Estado de

Exceção ou vida nua? Seria possível agir de modo não passional diante de uma

escolarização que aprova anualmente menos de 20% de seus sujeitos? Seria possível

conviver com as normas jurídicas, mas culturais, sociais e pedagógicas que criam regras

inadequadas à realização de um projeto de escolarização digno para pessoas adultas? É

uma linguagem da tormenta que nos permite olhar para esses problemas e retirá-los de

sua naturalidade e de sua cotidianidade, inscrevê-los numa outra discursividade, passar

uma linha sobre seus traços violentos. Recordar que é possível pensar de outro modo é

um ato de revolta necessário para a produção de outro devir.

Decorre daí a importância de observarmos as linhas das nossas discursividades e

nos prontificarmos a alterar as práticas, discursivas e extradiscursivas, modificando as

racionalidades que as presidem. Compreender os mecanismos de controle e subjetivação

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é um exercício que pode permitir a produção de discursos outros, modos outros de fazer

educação.

Analisar uma política pública que atende a um direito humano fundamental

como é a educação, no setor específico em que essa política dedica esforços na

administração da população adulta não alfabetizada significa, portanto, poder perguntar

em que medida, ou em qual momento, mas, sobretudo, por quais caminhos, aquilo que

entendemos por emancipação passa a representar, em dado contexto, um limite a esse

mesmo objetivo.

O que o olhar biopolítico acrescenta à reflexão? Que as formas de poder se

refinam e se desdobram no tempo indefinidamente; as práticas biopolíticas são versões

de modelos monoculturalistas de escola, formas uniformizadoras de relações sociais. No

entanto, a diversidade dos indivíduos, como elemento constitutivo, continua ali

presente, o que faz com que a população não seja um objeto estanque das políticas, mas

um número em movimento, alimentado pela necessidade e pelo desejo; o desencaixe

das práticas de escolarização advém dessa incapacidade de uma ação biopolítica dar

conta do movimento inteiro da vida que ela procura conduzir.

Efetivamente as palavras governam. Existe um governo da palavra. Porém, as

palavras governam não apenas um mundo simbólico (na hipótese de que algum mundo

humano não o fosse), elas governam uma materialidade. Quando um discurso é

direcionado a uma população, ele governa a conduta da multidão. Então suas

consequências sobre essa multidão são amplas e em grande medida incontroláveis. Isso

ocorre porque não podemos medir até que ponto a participação no dispositivo escolar

para sujeitos adultos realmente representa uma emancipação no sentido moderno da

palavra.

Nem mesmo os mais acurados estudos poderiam propor a generalização de uma

hipótese como esta, válida para toda a população interpelada. Exatamente pelo fato

inegável de que a experiência é incapturável e que não podemos, hoje, mensurar o que

foi perdido ao longo de todo trajeto em que a escolarização atravessou tempos,

referências culturais, políticas, formas organizativas e se impôs talvez com mais sucesso

que a própria ideia de moeda ou de deus (ou ambos).

A escolha por trabalhar com o enfoque biopolítico produziu aprendizados de

ordem epistemológica, com a perspectiva de leitura genealógica das linhas de força que

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sustentam as práticas ― as epistemes e as políticas ― no campo da Educação de

Adultos; trouxe, também, aprendizados em relação ao próprio objeto epistêmico que

essa educação configura. As racionalidades instaladas no processo social de produção

da Educação de Adultos, que não se esgotam nas políticas discursivas aqui estudadas,

representam um campo de pesquisa instigante e mobilizador.

No marco do programa de investigações que emerge a partir deste estudo, o

aprofundamento da pesquisa em relação às racionalidades resistentes ao projeto de

escolarização hegemônica representa um dos objetos que de forma mais premente exige

nossa atenção. No plano daquilo que está no porvir, das questões que não foram

atendidas neste momento, esta pesquisa se alonga para uma investigação sobre os

percursos individuais, desta feita, biográficos, dos sujeitos resistentes à biopolítica da

alfabetização e escolarização de adultos. Trata-se de compreender de forma mais

aprofundada de que modo se constituem essas trajetórias, quais as intercorrências, por

quais caminhos os sujeitos interagem com as racionalidades escolares hegemônicas.

O processo pelo qual nos sentimos autorizadas por essa teoria a falar que a

alfabetização e a escolarização de adultos possuem uma face biopolítica é justamente o

fato reconhecível de que ela atende a certos princípios operacionais dessa forma de

poder, ou seja, dirige-se a uma população, considera seu aspecto biológico nessa

interpelação, produz uma saber “de Estado” sobre essa população, utiliza esse saber

para exercer a conduta. O encaixe entre as questões analíticas e os mecanismos

analisados ocorre quando observamos a validade desses mecanismos na descrição da

atuação do Estado para com pessoas não alfabetizadas. O desencaixe é produzido

porque observar a Educação de Adultos por este viés provoca uma desestabilização da

retórica hegemônica sobre essa modalidade de educação. A racionalidade qualificadora

é suplantada pela atualidade, vigência e poder explicativo da racionalidade reparadora.

A escolarização de pessoas adultas funciona como uma biopolítica, e certamente há

linhas de fuga, mas a sua função primordial parece ser esta.

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253

ANEXOS

LISTA DE PRÊMIOS RECEBIDOS PELO CURTA METRAGEM VIDA

MARIA50

10 Melhores Curtas Brasileiros do Público no Festival Internacional de Curtas de São Paulo em 2007

2º Lugar - Melhor Animação Brasileira no Anima Mundi em 2007

2º Lugar - Melhor Primeira Obra no Anima Mundi em 2007

Melhor Animação no FAM - Florianópolis em 2007

Melhor Animação no FestCine Amazônia em 2007

Melhor Animação no Festival de Cinema e Vídeo de Santa Cruz das Palmeiras em 2008

Melhor Animação no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano em 2007

Melhor Animação no Tudo sobre Mulheres em 2007

Melhor Animação Internacional no FeSanCor - Festival Chileno Internacional del Cortometraje de

Santiago em 2007

Melhor Curta Brasileiro - Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará em 2007

Melhor Curta Metragem Hispano-Brasileiro no Festival Premis Tirant em 2008

Melhor direção no Festival Guarnicê de Cinema do Maranhão em 2007

Melhor Filme no Amazonas Film Festival em 2007

Melhor Filme no Cine Ceará em 2007

Melhor Filme no Cine PE em 2007

Melhor Filme no Curta Canoa em 2007

Melhor Filme no ENTRETODOS - Festival de Curtas-Metragem de Direitos Humanos em 2007

Melhor Filme no Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual em 2008

Melhor Filme no Festival de Cinema na Floresta em 2008

Melhor Filme no Festival de Cuiabá em 2007

Melhor Filme no Festival do Paraná de Cinema Brasileiro e Latino em 2007

Melhor Filme no Jornada Internacional de Cinema da Bahia em 2007

Melhor Filme - Júri Popular no Curta Lençóis - Festival Regional de Cine-Vídeo nos Lençóis

Maranhenses em 2008

Melhor Filme - Júri Popular no Festival de Cuiabá em 2007

Melhor Filme - Júri Popular no Mostra de Cinema de Tiradentes em 2007

Melhor Filme - Júri Popular no Primeiro Plano - Festival de Cinema de Juiz de Fora em 2007

Melhor Filme - Júri Popular no Vitória Cine Vídeo em 2007

Melhor Filme Animação no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em 2008

Melhor Filme Nordestino no Curta-se - Festival Luso-Brasileiro de Curtas Metragens de Sergipe em 2007

Melhor Roteiro no Cine PE em 2007

Melhor Roteiro no Granimado Festival Brasileiro de Animação em 2007

Melhor Trilha Sonora no Cine PE em 2007

Melhor Trilha Sonora no Granimado Festival Brasileiro de Animação em 2007

Menção Honrosa no Curta Lençóis - Festival Regional de Cine-Vídeo nos Lençóis Maranhenses em 2008

Menção Honrosa de Melhor Curta Internacional no Cleveland International Film Festival em 2007

Prêmio ABD e C no Curta Cinema em 2006

Prêmio aquisição Canal Brasil no Cine Ceará em 2007

Prêmio BNB de Cinema no Cine Ceará em 2007

Prêmio BNB de Cinema no Cine PE em 2007

Prêmio BNB de Cinema no Curta-se - Festival Luso-Brasileiro de Curtas Metragens de Sergipe em 2007

Prêmio da Crítica no Cine PE em 2007

Prêmio Especial no Anima Mundi em 2007

Prêmio Especial do Júri no FIC BRASILIA - Festival Internacional de Cinema de Brasília em 2007

Prêmio Unibanco de Cinema no Festival Internacional de Curtas de São Paulo em 2007

50

Obtido no sítio internet Porta Curtas, disponível em http://portacurtas.org.br/filme/?name=vida_maria

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254

ANEXO A. Edito de Pedro Correia Manoel de Aboim proibindo abertura de

escolas de ler e escrever em Portugal - 1765

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255

ANEXO B. Ficha de registro do Histórico Escolar de estudante da EJA

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256

ANEXO C: Ficha de Histórico Escolar