a ditadura militar brasileira: diÁlogos entre a sociologia e a arte...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS A DITADURA MILITAR BRASILEIRA: DIÁLOGOS ENTRE A SOCIOLOGIA E A ARTE SOCIALMENTE ENGAJADA EVELYN CAMILA DA SILVA PINHEIRO Vitória 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A DITADURA MILITAR BRASILEIRA: DIÁLOGOS ENTRE A SOCIOLOGIA E A

ARTE SOCIALMENTE ENGAJADA

EVELYN CAMILA DA SILVA PINHEIRO

Vitória

2018

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EVELYN CAMILA DA SILVA PINHEIRO

A DITADURA MILITAR BRASILEIRA: DIÁLOGOS ENTRE A SOCIOLOGIA E A

ARTE SOCIALMENTE ENGAJADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Sociais, do Centro de Ciências Humanas e Naturais, da Universidade Federal do Espírito Santo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Orientadora: Profa. Dra. Elaine de Azevedo.

Vitória

2018

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EVELYN CAMILA DA SILVA PINHEIRO

A DITADURA MILITAR BRASILEIRA: DIÁLOGOS ENTRE A SOCIOLOGIA E A

ARTE SOCIALMENTE ENGAJADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, do Centro de Ciências Humanas e Naturais, da Universidade Federal do Espírito Santo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Aprovada em 23 de março de 2018

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________

Profa Dra Elaine de Azevedo

Universidade Federal do Espírito Santo

Orientadora

_____________________________

Prof Dr Yiftah Peled

CAR/ CAV

Universidade Federal do Espírito Santo

_____________________________

Profa Dra Aline Trigueiro Vicente

DSCO/CCHN

Universidade Federal do Espírito Santo

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar agradeço a querida orientadora Elaine de Azevedo que me

apresentou novas formas de pensar a arte. Sou grata pela orientação tão

competentemente dedicada ao projeto. Agradeço principalmente a confiança, o

respeito e a todas as ricas trocas que vivemos enquanto esta pesquisa se desenvolvia.

Desejo imensamente que essas trocas não terminem aqui.

Rafael Pagatini obrigada por permitir que uma desconhecida estudante

bisbilhotasse seu trabalho. Obrigada por ter sido tão acessível e prestativo. Sua

colaboração foi enriquecedora e fundamental no desenvolvimento desta dissertação.

Agradeço a Aline Trigueiro e Yiftah Peled pela disponibilidade e atenção

dedicada ao projeto, pelas críticas e incentivos. A contribuição foi indispensável para

o amadurecimento das ideias aqui elaboradas.

Allan Depollo Andrade obrigada por tanta paciência, incentivo, e por acreditar

em mim mesmo quando eu era um amontoado de dúvidas e receios.

Lívia Melina, menina. Se chegamos a este mundo dividindo a placenta, não

seria diferente agora. Obrigada por ser a minha metade mais completa no mundo.

Lídia, mãe, obrigada por seu amor e apoio incondicional. Esse mestrado só foi

possível por que você sonhou esse sonho comigo.

Aparecida Depollo, Roberto Andrade, Alline Depollo, Dilton Rodrigues obrigada

pelo apoio de sempre. Espero um dia conseguir retribuir tanto amor recebido.

Paulo e Laure, meu querido irmão e cunhada. Obrigada por terem trazido ao

mundo a minha pequena Louise e agora pelo novo bebe a caminho que já é tão amado

e aguardado. Me esperem, comemoraremos juntos.

Harry Stain obrigada pelos incentivos e apoio. Obrigada por toda ajuda e

confiança depositada em mim e por ser tão generoso com a minha família.

Sara Ferreira Maia, tia e melhor amiga. Obrigada por ter me incentivado a

construir essa jornada acadêmica. Sinto seu amor em tudo o que faço. Em memória.

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EPÍGRAFE

“Ensinem tanto quanto possível aos que nada sabem; a sociedade é

culpada de não instruir gratuitamente e responderá pela escuridão que

provoca. Uma alma na sombra da ignorância comete um pecado? A

culpa não é de quem o faz, mas de quem provocou a sombra”

Victor Hugo, Os Miseráveis (1862)

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS ..................................................................................................07

LISTA DE ABREVIATURAS .....................................................................................09

RESUMO ...................................................................................................................10

ABSTRACT ...............................................................................................................11

INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12

1. CAPÍTULO 1: UM CAMINHO PARA A ARTE........................................................19

1.1 A Sociologia da Arte .............................................................................................20

1.2 Da Sociologia da Arte a Arte Sociológica .........................................................26

1.2.1 O Primeiro Manifesto.........................................................................................31

1.2.2 O Segundo Manifesto........................................................................................37

1.2.3 O Terceiro Manifesto .........................................................................................40

1.3 Da Arte Sociológica a Arte Socialmente Engajada...........................................42

1.4 A Arte Socialmente Engajada............................................................................53

1.4.1 Gran Furry..........................................................................................................56

1.4.2 Guerrilla Girls ....................................................................................................62

1.4.3 Mierle Laderman Ukeles....................................................................................65

2. CAPÍTULO 2: A DITADURA MILITAR BRASILEIRA E OS PERCURSOS DA

ARTE SOCIALMENTE ENGAJADA..........................................................................68

2.1. O Espírito Santo e a Ditadura Militar.....................................................................74

2.2 A Arte Socialmente Engajada e a Ditadura Militar Brasileira..........................99

2.2.1 Artur Barrio.......................................................................................................105

2.2.2 Cildo Meireles..................................................................................................108

2.2.3 Hélio Oiticica....................................................................................................113

2.2.4 Antonio Manuel................................................................................................117

2.2.5 Paulo Bruscky..................................................................................................120

2. 3. Rafael Pagatini, Fissuras................................................................................122

2.3.1 As Exposições.................................................................................................126

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................138

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA ............................................................................142

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos................................12

FIGURA 2 - Coletivo da Arte Sociológica....................................................................30

FIGURA 3 - Grupo 3NÓS3..........................................................................................32

FIGURA 4 – Ensacados..............................................................................................34

FIGURA 5 – O que está dentro fica, o que está fora expande.....................................35

FIGURA 6 – Welcome to American’s Finest Tourist Plantation……………………...…57

FIGURA 7 – Welcome to American’s Finest Turist Plantation – Ônibus…………….…57

FIGURA 8 – Welcome to American’s Finest Tourist Plantation – Jornais………….….58

FIGURA 9 – Kissing Doesn’t Kill: Greed And Indifference Do…………………...……..59

FIGURA 10 – The Government Has Blood On Its Hands……………………...………..61

FIGURA 11 – The Pope and The Penis………………………………………………......62

FIGURA 12 – Street Poster………………………………………………………………..64

FIGURA 13 – Guerrilla Girls (1984)............................................................................64

FIGURA 14 – Guerrilla Girls (2017)............................................................................65

FIGURA 15 – Touch Sanitation...................................................................................67

FIGURA 16 – Hélio Oiticica – Seja Marginal, seja herói..............................................68

FIGURA 17 – Oposição..............................................................................................89

FIGURA 18 – Protesto com pichações.......................................................................90

FIGURA 19 – Protesto com pichações.......................................................................90

FIGURA 20 – UFES Mural – Raphael Samú...............................................................92

FIGURA 21 – UFES Mural – Raphael Samú – detalhes..............................................93

FIGURA 22 – Trouxas Ensanguentadas (1970).......................................................107

FIGURA 23 – Trouxas Ensanguentadas (1970).......................................................107

FIGURA 24 – Introdução a uma nova crítica (1970)..................................................109

FIGURA 25 – Inserções em Circuito Ideológico: Projeto Coca-Cola (1970)..............111

FIGURA 26 – Inserções em Circuito Ideológico: Projeto cédula (1975)....................112

FIGURA 27 – Tropicália (1967).................................................................................114

FIGURA 28 – Urnas Quentes (1968)........................................................................116

FIGURA 29 – Urnas Quentes (1968)........................................................................116

FIGURA 30 – O Corpo é a Obra (1970) - Performance no MAM/RJ..........................117

FIGURA 31 – O que é arte? Para que serve? (1978)................................................120

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FIGURA 32 – Manipulações.....................................................................................126

FIGURA 33 – Exposição Fissuras (2016).................................................................128

FIGURA 34 – Bem Vindo Presidente (2016).............................................................129

FIGURA 35 – A Família Cristã (2016).......................................................................130

FIGURA 36 – DOPS (Série Movimentos Religiosos) (2016).....................................131

FIGURA 37 – Confiamos no Milagre Brasileiro (2017)..............................................132

FIGURA 38 – Retrato Oficial (2017).........................................................................133

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LISTA DE ABREVIATURAS

ASE – Arte Socialmente Engajada

CAMDE – Campanha Mulheres pela Democracia

DEOPS/ES – Delegacia Especializada de Ordem Política e Social do Espírito Santo

DOPS – Departamento de Ordem Pública e Social

ESCELSA – Espírito Santo Centrais Elétricas S/A

FCES – Fundação Cultural do Espírito Santo

FMP/ES – Frente de Mobilização Popular do Espírito Santo

GAEU – Galeria de Arte Espaço Universitário

MAM/RJ – Museu de Arte Modern/ Rio de Janeiro

MOMA/NY – The Museum of Modern Art/ New York

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PNC – Política Nacional de Cultura

RU – Restaurante Universitário

TEB – Teatro do Estudante do Brasil

UEE/ES – União Estadual de Estudantes do Espírito Santo

UES – Universidade do Espírito Santo

UFES – Universidade Federal do Espírito Santo

UNE – União Nacional dos Estudantes

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RESUMO

Esse trabalho tem como objetivo localizar a Arte Socialmente Engajada (ASE) dentro

do campo da Sociologia. Busca-se entender como a Sociologia olhou para a Arte no

decorrer da história e o espaço para absorver as possibilidades de engajamento

político que a ASE permitiria para a Sociologia. A ASE é entendida aqui como práticas

artísticas que permitem críticas sociais, econômicas, ambientais e políticas. Através

da ASE, artistas utilizam suas poéticas para construir tais críticas, permitindo a

participação e a colaboração de expectadores, além de promover questionamentos

sobre o sistema vigente. Nesta análise, o entrelaçamento entre Sociologia e Arte é

feito a partir de três importantes momentos: o surgimento da Sociologia da Arte, a

transição para a Arte Sociológica e, posteriormente, para a Arte Socialmente

Engajada. O recorte histórico de cada momento é particular e percorre diferentes

contextos e países, no entanto, para a compreensão da ASE o olhar foi lançado sobre

a Ditadura Militar Brasileira e como este momento político foi abordado por artistas

visuais como Cildo Meireles, Arthur Barrio, Hélio Oiticica e Antonio Manuel.

Atualmente essa poética tem sido abordada pelo artista radicado no Espírito Santo

Rafael Pagatini. Duas de suas exposições recentes foram acompanhadas nesta

pesquisa. Utiliza-se uma abordagem qualitativa, através de análise documental e

bibliográfica no intuito de compreender a Arte Socialmente Engajada e as

possibilidades de diálogo com as Ciências Sociais.

Palavras-chave: arte, ditadura, política, engajamento.

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ABSTRACT

This essay aims to locate the Socially Engaged Art (SEA) within the field of Sociology.

It seeks to understand how Sociology has looked at Art in the course of history and

where there is room to absorb the possibilities of political engagement the ASE would

allow Sociology to embrace. ASE is understood here as artistic practices allowing

social, economic, environmental and political criticism. Through the ASE, artists use

their poetics to construct such criticisms, conceding participation and the collaboration

of spectators, as well as promoting questions about the current system. In this analysis,

the interweaving between Sociology and Art is made from three important moments:

the emergence of Sociology of Art, the transition to Sociological Art and later to the

Socially Engaged Art. The historical of each moment is particular and crosses different

contexts and countries, however, for the understanding of ASE the look was launched

for the Brazilian Military Dictatorship and how this political moment has benn

approached by visual artists like Cildo Meireles, Arthur Barrio, Hélio Oiticica and

Antonio Manuel. Currently the subject has been approached by Rafael Pagatini, an

artist rooted in Espírito Santo. Two of his recent exhibitions were attended in this

research. A qualitative approach is used, through documentary and bibliographical

analysis in order to understand the Socially Engaged Art and the possibilities of

dialogue with the Social Sciences.

Keywords: art, dictatorship, politics, engagement.

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INTRODUÇÃO

FIGURA 1: Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos.

Fonte: Guerrilheiras ou para a terra não há desaparecidos. http://www.itaucultural.org.br/arte-e-politica-guerrilheiras-ou-para-a-terra-nao-ha-desaparecidos . Foto de Eliza Mendes para Itaú Cultural.

Acesso em 14 ago 2017.

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A arte essencialmente política é a arte que “rompe com a consciência

dominante e revoluciona a experiência”

Herbert Marcuse (1977)

Serão tantas as palavras usadas no percurso dessa dissertação que uma

página em branco se torna necessária. Como explicar com palavras o que deve ser

entendido com sentimentos? Este é o grande desafio para o campo das Ciências

Sociais em detrimento ao campo das Artes.

A arte ousa, extrapola, expõe, choca, provoca, incomoda, agrada, perturba,

alegra e angustia qualquer um que lhe olhe. As Ciências Sociais provocam o raciocínio

daquele que se propõem a ler. Uma página escrita, por mais forte que seja seu

conteúdo, não consegue nada a menos que seja lida.

A foto selecionada é de uma peça de teatro intitulada Guerrilheiras ou para a

terra não há desaparecidos (2015). Trata-se da história de 12 mulheres que resistiram

na guerrilha do Araguaia durante a Ditadura Militar Brasileira. A peça foi elaborada por

Gabriela Carneiro da Cunha1 após longas pesquisas bibliográficas e documentais.

Um fator comum a obras artísticas - teatrais, musicais, visuais – que lançam

o olhar para a ditadura, está no desaparecimento de corpos, no silêncio histórico,

assim como, nas lacunas dos relatos das memórias reconstruídas sobre o medo. Essa

percepção vem das análises feitas durante a dissertação e, apesar da imagem inicial

ser de uma peça de teatro, essa manifestação artística não é o foco desta pesquisa,

apenas aponta a força que tem uma imagem como mais uma das possibilidades de

recursos visuais e criativos existentes.

O campo das Ciências Sociais é vasto e praticamente tudo o que acontece

em uma sociedade tem o potencial para se tornar tema de pesquisa. Acontecimentos

religiosos, mercadológicos, econômicos, comportamentais, ambientais, culturais,

artísticos, dentre tantos outros, são passíveis de serem analisados sociologicamente

cativando a curiosidade do pesquisador.

O que caracteriza uma pesquisa não é o tema abordado, mas a metodologia

utilizada. Desde o surgimento da disciplina, no século XVIII, existiu a necessidade de

desenvolver metodologias que legitimasse as Ciências Sociais como ciência.

1 Gabriela Carneiro da Cunha é formada em artes cênicas pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), no Rio de Janeiro, e é integrante e fundadora da Pangeia Companhia de Teatro.

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Esta pesquisadora foi cativada pela criatividade de artistas que ousaram,

através da arte, criticar comportamentos sociais. Os problemas políticos vivenciados

no Brasil durante o chamado “anos de chumbo” foram gritados via arte. Estes gritos

altos e silenciosos estimularam o interesse em pesquisar as possíveis relações entre

o campo das Artes e o campo das Ciências Sociais, como estes campos dialogam e

interagem nos acontecimentos políticos de forma geral.

A presente dissertação tem como objetivo central analisar a Arte Socialmente

Engajada (ASE), entendida como práticas artísticas que permitem críticas sociais,

econômicas e políticas, tomando como período de análise a Ditadura Militar Brasileira

no qual a arte foi uma ferramenta de contestação e de problematização dos mais

variados conflitos sociais.

Isto posto, localizar um possível espaço para a ASE dentro das Ciências

Sociais torna-se a grande contribuição desta dissertação. A Sociologia está sendo

trabalhada em obras artísticas e textuais no campo das Artes, mas as ferramentas

que a arte política oferece ainda não encontrou um lugar de destaque nas

metodologias utilizadas nos campos da Sociologia, Antropologia e Ciências Políticas.

Azevedo e Peled ao analisarem as possibilidades metodológicas na junção

da Arte com as Ciências Sociais constatam uma aproximação com a Sociologia Visual

e observam que

A área da Sociologia que mais se aproxima dessa discussão é a Sociologia Visual, que tem por objetivo promover o estudo, a produção e o uso de informações e materiais visualmente orientados no estudo, na pesquisa e nas atividades aplicadas da Sociologia, com foco para a fotografia, o cinema e as imagens eletrônicas. Ou seja, a Sociologia Visual tem como interesse principal a imagens e outros dispositivos visuais para analisar a sociedade e a cultura. Suas estratégias mais utilizadas enfatizam os aspectos retiniano, composicional e formal como elos de ligação entre arte e sociologia (AZEVEDO; PELED, 2015, p. 516).

Tais metodologias, afirmam os autores supracitados, ainda se baseiam nos

tradicionais métodos quantitativos de Comte e Durkheim e qualitativo de Weber, ou

seja, não consideram a imagem um dado analítico, de forma que Azevedo e Peled “as

Ciências Sociais sucumbiram à lógica positivista, que desacreditou a imagem,

resgatada por subdisciplinas especializadas, como a Antropologia ou a Sociologia

Visuais” (2015, p. 5017).

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O entendimento de arte e política será construído através da reflexão de

diferentes autores das áreas das Artes Visuais e das Ciências Sociais. Destaca-se a

perspectiva de Herbert Marcuse (1999) e sua concepção de que a arte

essencialmente política é a arte que “rompe com a consciência dominante e

revoluciona a experiência” (1999, p. 10).

A análise assume a perspectiva da arte como possuidora de um tônus

especial, não como capaz de realizar a transformação automática da sociedade, mas

como parte essencial deste processo: “a arte não muda a realidade, mas é capaz de

mudar a consciência daqueles que mudam o mundo” (Marcuse, 1999, p. 11).

Elaine Azevedo e Yiftah Peled trazem contribuições à temática quando

assumem que

A arte social e o ativismo cultural, formatos híbridos de ativismo político desdobrados em práticas interdisciplinares e estratégias artísticas, inscreveram a arte nessa história e em contexto sociais e políticos específicos como uma forma de estetizar a política e a ação social (AZEVEDO; PELED, 2015, p. 498).

Também interessa estabelecer as conexões históricas da arte como produção

cultural através da concepção de que ela é grande produtora de percepção dos

fenômenos que estão interligados nas representações ou reelaborações simbólicas

das estruturas materiais, estando a reprodução ou transformação do sistema social

conectadas as “práticas e instituições dedicadas à administração, através da

renovação e reestruturação de sentido” (CANCLINI, 1982, p.29).

A arte encontra-se como uma das dimensões de maior relevância social

localizada dentro da esfera cultural, que é, como aponta Ana Escosteguy (2004, p.14)

“o terreno onde política, poder e dominação são mediados”. Dessa localização

transcorre a relação da percepção, criação, elaboração e linguagem artística

permeando os valores políticos.

O estudo transita pelo período da Ditadura Militar Brasileira, que através da

criação do AI-5, deu base para novos formatos de intervenção artística e as obras de

artistas brasileiros em críticas às políticas implantadas pelo sistema ditatorial. Obras

potentes que provocavam o público e o transformava, de um observador passivo, a

um colaborador. Uma verdadeira extensão da obra de arte que gerou uma corrente

de contestações políticas permitindo o uso, mais do que adequado, do termo Arte

Socialmente Engajada.

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O trabalho tem como recorte central o estado do Espírito Santo. Entende-se

que a experiência deste governo no eixo Rio – São Paulo já foi muito estudada, não

só pela perspectiva sociológica e política, mas também artística. Em contrapartida, o

Espirito Santo ainda está a margem de pesquisas que envolvam as artes visuais

durante o período da ditadura capixaba.

Há a necessidade de uma compreensão metodológica para análises do

comportamento artístico, assim como, das possibilidades visuais que captam os

conflitos sociais. Uma arte efêmera que expressa as ações humanas e causa

intervenções sociais, que desencadeia mobilizações e reflexões no expectador não

pode passar despercebida as Ciências Sociais.

Através da participação social, comum a esta forma de manifestação artística,

há uma ruptura da arte de contemplação e surge uma arte que é um gatilho

problematizador e transformador da realidade social. Interessa discutir uma Arte

Socialmente Engajada capaz de gerar uma corrente de pensamentos que possam

provocar mudanças políticas e comportamentais; uma arte que questione o seu

espectador e o torne um colaborador do processo de engajamento político.

Na temática da relação heurística da Arte com as Ciências Sociais, nas

disciplinas de graduação, há pouca atenção aos seus estudos e análises. Apesar da

existência de disciplinas como a Sociologia da Arte, História Social da Arte e Filosofia

da Arte, existem poucas pesquisas e autores nas Ciências Sociais que buscam

aprofundar o conhecimento do potencial social e principalmente o papel do artista

social ou sua função política na sociedade.

Entende-se que compreender as estruturas dos fenômenos artísticos, suas

manifestações, seus formatos híbridos e sua crítica socioambiental são ferramentas

potentes para uma maior compreensão da sociedade e de suas relações com os

sistemas políticos, econômicos, sociais e comportamentais e suas variadas formas de

discussão e contestação.

Para cumprir os objetivos propostos, a metodologia utilizada, nesta análise

qualitativa, será a análise documental e bibliográfica sobre o caminhar político da arte

a partir dos principais acontecimentos históricos que contribuíram para as transições

ocorridas ao longo do século XX, principalmente a partir dos anos 1960, em um

panorama internacional no intuito de entender os acontecimentos artísticos no Brasil,

durante a Ditadura Militar, relacionados ao campo político e artístico.

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Para abordar as dimensões políticas da ASE e sua relação com a Ditadura,

esse trabalhou foi dividido em dois capítulos a fim de construir o contexto histórico,

social e artístico da análise elaborada nesta dissertação.

O primeiro capítulo analisa a Arte Socialmente Engajada através de seu

percurso e transformações históricas a partir das considerações: surgimento;

capacidade de se relacionar com os mais variados contextos sociais; sua relação com

a ditadura militar brasileira, assim como com as diversas temáticas políticas

internacionais; modelos e formatos; suas mais variadas possibilidades. Neste capítulo

serão abordados alguns artistas plásticos, nacionais e internacionais, que se tornaram

conhecidos por essas intervenções artísticas e como manifestaram seus

posicionamentos políticos através da arte.

O segundo capítulo aborda a relação da ASE com a Ditadura Militar. Inicia-se

com um breve resumo do que foi a Ditadura, e partir deste modelo de governo, como

foram seus desdobramentos no Campo da Arte. Nesta análise será abordado o Brasil

da ditadura como uma releitura para se chegar ao Espírito Santo, analisando seu

histórico, assim como, as consequências políticas e econômicas deste governo.

Destaca-se a obra de Rafael Pagatini, nascido em Caxias do Sul, RS, e

radicado no Espírito Santo, através de uma breve amostra de suas exposições –

realizadas em São Paulo e no Espírito Santo. Ambas intituladas Fissuras, foram

elaboradas através de pesquisas do próprio artista sobre a ditadura no Espírito Santo.

A exposição nasceu da sua curiosidade em entender os altos índices de violência

contra a mulher, e também, o percurso do desenvolvimento social e econômico,

fazendo duras críticas a tal modelo através de suas obras. Foram acompanhadas

duas exposições do artista realizadas entre agosto e setembro de 2016, no Museu da

Imagem e do Som na cidade de São Paulo e, de junho a agosto de 2017, na Galeria

de Arte Espaço Universitário da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em

Vitória, utilizando a Ditadura Militar no estado do Espírito Santo em sua poética.

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CAPÍTULO 1

A ARTE E SUAS POSSIBILIDADES POLÍTICAS

A arte diz o indizível; exprime o inexprimível, traduz o intraduzível.

Leonardo da Vinci

Entender o que é a Arte Socialmente Engajada é uma tarefa complexa. Em

vários países como Inglaterra, França, Brasil e Estados Unidos, diferentes artistas

utilizaram de suas temáticas como caminho para criticar as mais diversas questões

socioambientais.

A variedade e a liberdade nas criações fizeram deste modelo artístico um

delicado tema de estudo. No próprio campo da Arte ainda há a ausência de definições

teóricas precisas para a ASE, o que permite imaginar de antemão, que não será

diferente no campo das Ciências Sociais.

O objetivo deste capítulo é, brevemente, apresentar as áreas denominadas

Sociologia da Arte, Arte Sociológica e Arte Socialmente Engajada tendo como

propósito compreender suas respectivas relações com o campo das Ciências Sociais,

através da revisão de obras bibliográfica de artistas, críticos de arte e sociólogos.

Compreender a relação do fazer artístico com o fazer sociológico com especial

atenção ao distanciamento versus a aproximação entre a Arte e a Sociologia e suas

consequências, sendo assim, a análise é pautada a partir de três manifestos escritos

por artistas plásticos que muito tem a colaborar com esta discussão.

A construção deste capítulo passa, suscintamente, pelo caminhar da arte e da

ciência ao longo da história, o que nos permitirá compreender o que distanciou os dois

campos e, concomitantemente, o que os aproxima. Elaborações artísticas e também

sociológicas que interferiram nesta relação serão aqui apresentadas.

Pretende-se com este capítulo repensar e, quem sabe, possibilitar uma

interligação mais profunda entre o fazer sociológico e o fazer artístico como outrora

existiu. Segundo Nisbet (2000), a relação entre arte e ciência não foi sempre

concebida da forma que é conhecida e aceita atualmente. O autor aponta o recorrente

hábito de tratar a ciência como distinta e distante da arte como um fato recente. No

entanto, critica duramente esta orientação metodológica e conceitual, afirmando que

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a Sociologia e a Arte são ambas formas de ciência, tanto quanto são

consequentemente formas de arte.

O pior resultado da separação entre arte e ciência no século dezenove não é a da interpretação histórica. É crença presente em muitas salas de aula e muitos laboratórios que os objetivos, assim como os processos de pensamento, são diferentes. Em sua pior versão, essa visão nos diz que apenas a ciência preocupa-se com a realidade; que a função da arte é simplesmente exercitar os sentidos em um tipo de busca sem rumo do ornamental e do agradável aos olhos (NISBET, 2000, p. 116).

1.1. A Sociologia da Arte

O campo das Ciências Sociais, de forma geral, busca compreender todas as

relações que envolvem o ser humano como ser social. A religião, a política, a arte e a

economia, assim como, as relações de trabalho e de produção são todos entrelaces

da existência humana e, destes estudos, muitas teorias foram criadas. Uma influente

teoria crítica social é o Marxismo que, apesar de não ser capaz de explicar todas as

nuances da sociedade, influenciou importantes trabalhos de abordagem Marxiana

sobre a arte.

As Ciências Socias é o campo do saber que busca traduzir em palavras os

acontecimentos cotidianos de uma sociedade. Decifrar a arte dentro desse campo foi

uma tarefa à qual alguns autores se debruçaram com afinco. Assim como as teorias

críticas da sociedade também surgiram as teorias críticas da cultura e alguns nomes

se destacaram nesse espaço.

Nestor Garcia Canclini (1982) define a arte como produções simbólicas das

estruturas materiais que possuem potencial transformador do próprio sistema social,

abrangendo as mais diversas práticas institucionais, sendo a arte capaz de

proporcionar renovação e reestruturação de sentido.

Nathalie Heinich (2001) aborda as definições do que é a Sociologia da Arte a

partir dos temas principais da disciplina, sendo eles a própria história da arte, as

críticas e a estética. Também estabelece conexões com objetos das Ciências

Humanas como a História, Antropologia, Psicologia, Economia e Direito, havendo

dificuldades em demarcar com precisão a Sociologia da Arte.

A autora supracitada ressalta as associações incorretas feitas a Sociologia da

Arte como sendo a sociologia da “cultura” ou diretamente associada a ela, exclui do

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contexto da disciplina o que deixa de ser “arte” no sentido restrito. Sendo assim, não

está ligado a disciplina itens como o lazer, mídia, vida cotidiana, habilidades

artesanais, criatividades espontâneas, dos que ela chama de leigos, sendo estes,

ingênuos, crianças, idosos, a não ser quando estiverem integradas a arte

institucionalizada.

Heinich (2001) acusa a fraca contribuição da Sociologia ao campo da Arte.

Resumidamente afirma que Émile Durkheim aborda a arte apenas pela percepção da

mudança em relação a religião. Por sua vez, Max Weber (1910) deixa um texto

inacabado abordando questões estilísticas ao processo de racionalização e dos

recursos técnicos, a qual Heinich afirma ter dado base a Sociologia dos Instrumentos

Musicais. Um pouco mais longe chegou Georg Simmel (1925), com escritos sobre

Rembrandt, Michelangelo e Rodin, nos quais acusa o condicionamento social da arte,

deixando nítida a relação com a arte e as influências que as crenças ou visões de

mundo exercem sobre a obra.

Ela nasceu entre os especialistas de estética e de história da arte, preocupados em operar uma evidente ruptura com o enfoque tradicional sobre o binômio artistas/obras, introduzindo nos estudos sobre a arte um terceiro termo “a sociedade” (HEINICH, 2001, p. 26).

A Sociologia da Arte caminha por três momentos, ou gerações, aos quais

Heinich (2001, p.26-28) enumera da seguinte forma: (1) o interesse pela arte e pela

sociedade contrariando as ideias da estética tradicional, momento essencialmente

especulativo, uma “estética sociológica”; (2) após a Segunda Guerra Mundial,

provenientes de historiadores, consagraram-se por “colocar a arte na sociedade”

momento predominantemente empírico, uma busca por inclusão dos contextos em

detrimento a antiga discussão sobre “autores” e obras”; (3) uma terceira geração de

estudos surge do desenvolvimento de métodos modernos de pesquisa provenientes

da estatística e da etnometodologia.

Muita coisa mudou ao longo dos anos e das três gerações, no entanto, a maior

mudança ocorreu na forma metodológica de como a Arte caminha pela Sociologia,

não sendo mais o estudo sobre “a arte e a sociedade, nem a arte na sociedade, mas

a arte como sociedade, interessando-se pelo funcionamento do meio que se dá a arte,

seus autores, suas interações e suas estruturações internas” (HEINICH, 2001, p. 61).

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As contribuições artísticas não podem passar despercebidas as Ciências

Sociais, mas acima de tudo, não deveriam continuar distantes as inter-relações do

cientista social e do artista social. Acreditar que a arte existe apenas pela sua

contribuição estética é negar o valor social de ricos e fortes trabalhos já elaborados

ao longo dos séculos aos quais a arte acompanha a humanidade.

A ausência desta separação permitiu, no passado, a existência de artistas-

cientistas como Leonardo da Vinci e Goethe, os quais Robert Nisbet (2000), utiliza

para exemplificar a indistinta relação entre as atividades da Arte e Ciência. O primeiro

pensava e elaborava suas obras artísticas da mesma forma que pensava e criava

seus artefatos através da fisiologia e da mecânica. O segundo, de igual modo, usava

a mesma forma de pensamento quando escrevia o Fausto tanto quanto fazia suas

importantes indagações sobre geologia e botânica.

É minha maior convicção que a Sociologia faz seus avanços intelectuais mais significativos sob o impulso de estímulos e através de processos que partilha extensamente com a arte; que, sejam quais foram as diferenças entre a ciência e a arte, é o que elas têm em comum o que mais importa para a descoberta e a criatividade (NISBET, p. 112).

Havia igual relação na criação através da Arte como na criação através da

Ciência. Nisbet (2000) afirma ser incompreensível, tanto na Renascença quanto no

Iluminismo, uma distinção radical entre os dois campos. O autor supõe ainda que a

distinção entre eles tenha surgido, então, no século XIX com os movimentos sociais

provenientes da Revolução Francesa, assim como a divisão do trabalho na Revolução

Industrial, através de “uma tendência crescente em imaginar que o artista e o cientista

trabalhavam de maneiras diferentes e até antagônicas entre si” (p. 114).

A ideia da Arte como proveniente de uma criação de um gênio, ou fruto de uma

profunda inspiração, jamais originada de trabalho técnico e experimental é recente. A

Revolução Industrial provoca alterações na Arte e na Ciência, no entanto, as

modificações são opostas, o artista utiliza a rejeição ao novo mundo ao mesmo tempo

em que o cientista utiliza cada vez mais de métodos, traços estes, afirma o autor,

dados a partir da divisão do trabalho.

Nisbet alega que “enquanto a Arte era repelida pela nova sociedade industrial,

a Ciência era virtualmente absorvida por ela”, ideia que era cada vez mais endossada

pela concepção de que “a Ciência como a indústria, é prática, o extremo oposto da

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Arte” (2000, p. 115). Essa concepção permanece até os dias de hoje, o que deve ser

profundamente repensado. No entanto, as transições do fazer artístico a partir dos

anos 60 modificam algumas das ideologias do campo da Arte.

Annateresa Fabris (1998) apresenta algumas importantes relações entre arte e

sociedade ao longo da história, aponta a forte relação entre os dois campos nas

observações do historiador Hugh Trevor-Roper (1914-2003), que, em seus estudos

sobre o mecenato existente de 1517-1633 ressalta as mudanças sociais artísticas.

A autora cita Hugh Trevor-Roper para quem a arte era, até então, proveniente

das necessidades da igreja. Posteriormente migra para uma prerrogativa dos

príncipes que passam a utilizar a arte a serviço da propaganda e do próprio prestígio,

mudança oriunda das influências do Renascimento que reestrutura completamente a

relação do homem com a arte e da arte com a sociedade.

O campo da História assume a arte como uma parte da substância da

sociedade e por sua vez é um instrumento utilizado para melhor conhecer a arte de

forma que, Trevor-Roper afirma que a história que a ignora é insípida, de igual forma

a sociedade sem arte é também insípida (FABRIS, 1998, p.8).

As mudanças na sociedade também provocam mudanças na organização e no

sentido do fazer artístico. A arte então é institucionalizada e sua institucionalização

ocorre a partir de importantes critérios aos quais Fabris delimita:

Pessoal – artista; clientela; especialistas; mercado da arte (em sentido mais restrito);

Material – transformação da obra em mercadoria; existência de locais de exposição / consagração;

Modelos – de fabricação/ produção; de identificação (mestre / discípulo, escola, estilo singular); de comportamento (artista original, boêmio, maldito ou singular embora não revolucionário); de recepção;

Organização – jurídica (propriedade e circulação das obras); administrativa; auto-organização dos artistas (associações, sindicatos); pedagógica (FABRIS, 1998, p. 9).

O quadro apresentado pela autora mostra com clareza as questões expostas

pelo Manifesto da Arte Sociológica, que será apresentado ainda neste capítulo. Sua

institucionalização obedece critérios estritamente políticos e capitalistas e nesta

organização não há espaço para liberdade de criação dos artistas que transformam a

obra de arte em uma mercadoria presa ao conceito estético do belo, de forma que, “a

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autonomia enquanto sinônimo de liberdade só existe dentro de determinados limites”

(FABRIS, 1998, p.9).

A relação de liberdade começa a mudar no século XIX com o fortalecimento de

uma sociedade burguesa liberal e capitalista, livre dos poderes da igreja e da corte e,

principalmente, livre das funções utilitárias permitindo, segundo Fabris, um artista

mais criativo e livre das interferências sociais, podendo afirmar seu direito de “livre

criação”. Ainda assim, sabemos que toda liberdade em uma sociedade capitalista tem

seus limites demarcados, expressa por Fabris através do conceito de Pierre Bourdieu

de liberdade formal “estribada na submissão às leis de mercado e de bens simbólicos”

(1998, p.12).

Importa observar que a arte não existe em si; ela existe a partir do

reconhecimento que tem (ou não) dentro do mercado, ou seja, a arte existe a partir de

um “ato de percepção” sendo “um signo social de prestígio e distinção” (FABRIS,

1998, p. 10).

A Sociologia da Arte buscou centralmente entender as relações sociais entre

arte e sociedade e analisou as relações de trabalho, de autonomia, de poder, de

mercado. Entretanto, todas as possíveis abordagens utilizadas pela Sociologia, para

entender e analisar a arte, foram criticadas pelo Coletivo da Arte Sociológica devido à

ausência do fazer criativo que a arte evoca.

A base para a pesquisa é estabelecida a partir dos principais autores da teoria

crítica da cultura, sendo eles Hebert Marcuse e Nicolas Bourriaud para assim

compreender por onde caminharam e a necessidade de ir além de suas premissas.

Os acontecimentos que norteiam a história da escola neohegeliana de

Frankfurt, a guerra e o nazismo, trazem a percepção da negatividade dialética fazendo

surgir as aspirações libertárias as quais afirma Merquior (1969): “liberdade e reflexão

filosófica realizam seu grande encontro histórico. A essência criadora do homem se

assimila ao pensamento do negativo. No ato crítico de recusa do existente o indivíduo

ascende ao plano da universalidade” (p.21).

Dando um passo grande na história, Nicolas Bourriaud (2009), e sua obra

Estética Relacional, definida por ser “[...] conjunto de práticas artísticas que tomam

como ponto de partida teórico e prático o grupo das relações humanas em seu

contexto social, em vez de um espaço autônomo e privativo” (p. 151). O autor aponta

a necessidade de uma quebra da alienação promovida pela arte que se limita ao seu

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próprio espaço museológico. Neste sentido, analisa o valor político de elaborações

artísticas como um critério para sua coexistência a transposição e a experiência de

vida dos espaços construídos representados pelos artistas, a projeção do simbólico

no real.

Bourriaud (2009) mostra que, a respeito da participação e da transitividade no

percurso da arte relacional, o artista contemporâneo “[...] concentra-se cada vez mais

decididamente nas relações sociais que seu trabalho irá criar em seu público ou na

invenção de modelos de socialidade” (p. 40). Isto posto, o caráter relacional é parte

intrínseca à obra sendo a esfera das relações humanas como eventos, manifestações

de cunho social ou político, jogos, festas, entre outras, são apropriadas conjuntamente

como “formas” e “conteúdos” possíveis da arte contemporânea.

Para Bourriaud o pensamento de Karl Marx teve fundamental importância na

história da arte a partir da crítica “[...] a distinção clássica entre práxis (ato de

transformar a si mesmo) e poiésis (ação ‘necessária’, servil, com vistas a produzir ou

transformar a matéria)”. Através da análise do autor, afirma-se que, para Marx “[...] a

práxis passa constantemente para a poiésis, e vice-versa” (BOURRIAUD, 2009, p.

144). A afirmação feita permite entender que a própria produção da arte também é em

si um processo de transformação, a começar pelo ser humano, e a partir deste,

através da transformação da natureza, transforma também a si próprio.

Ao analisar a influência de Marx sobre os Estudos Culturais, é importante

ressaltar que, não há uma definição precisa, e sim diferentes posicionamentos sobre

a relação. Para Richard Johnson (1983) existem três premissas principais:

A primeira é de que os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classes, com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade. A segunda é de que cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais para definir e satisfazer suas necessidades. E a terceira, que se deduz das outras duas, é que a cultura não é um campo autônomo nem externamente determinado, mas um local de diferenças e lutas sociais. Isto, de alguma forma, esgota os elementos do marxismo que, nas circunstancias existentes, continuam ativos, vivos e valiosos, sob a condição, apenas, de que também sejam criticados em estudos detalhados (JOHNSON, 1983, p. 13).

Com o avanço das tecnologias e da industrialização em escalas universais,

avança também as produções culturais que invade a superestrutura que se dá através

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da expansão e mercantilização da indústria cultural, sobre a qual Maria Eliza Cevasco

(2012), afirma que nunca a humanidade havia produzido tanta cultura como passou a

produzir a partir dos anos 1960. A autora enfatiza também que tal cultura, nunca havia

sido tão claramente produzida para consumo do sistema vigente.

A premissa da arte perpassa o caminho de quebra da alienação, aponta uma

nova forma de visualizar a realidade através das possibilidades estéticas que possui.

Para Marcuse (1999), a arte consegue transformar o que é natural em algo

extraordinário e, através dessa possibilidade, rompe com o pensamento normativo da

sociedade. A Sociologia da Arte abriu espaço para novos pensamentos e caminhos

para artistas e sociólogos, mas as transições vistas até agora, não terminaram,

prosseguiram ao longo dos anos chegando a Arte Sociológica apresentada a seguir.

1.2 Da Sociologia da Arte a Arte Sociológica

Nada é estático, tão pouco a arte e a ciência. Ao longo da história, essas áreas

sofrem profundas transformações e, a transição abordada nesse trabalho é oriunda

de um momento particular na história política e econômica global, permitindo o

surgimento de novas formas de engajamento político a partir dos anos 1960.

Alguns nomes tiveram forte impacto nas mudanças ocorridas dentro do campo

da Arte no início do século XX. Não é o objetivo desta pesquisa esgotar e nem seria

possível levantar todas essas influências, no entanto, ressaltar as obras e artistas de

maior potencial transformador do percurso histórico. O primeiro destaque recebe

Marcel Duchamp, por ter dado o passo inicial ao rompimento da arte com suas

algemas museológica. Duchamp abandona a pintura no início do século XX e produz

um novo conceito de arte chamado ready-made.

O conceito de ready-made, criado em 1913, é aparentemente simples, no

entanto, provocou fortes alterações no fazer artístico. O ready-made é a utilização de

um objeto do quotidiano que, ao ser transportado para o mundo da Arte, torna-se arte.

Temos alguns exemplos como o caso de In Advance of the Broken Arm, uma pá para

remover neve no sentido funcional considerado pelas entidades de legitimação

artísticas, uma obra de arte. O ready-made também pode ser manipulado pelo artista

como no caso de Fountain em que um urinol tradicional sofre uma rotação de 180º.

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É possível dizer que uma das grandes contribuições do ready-made foi romper

com as duras concepções de arte como produção estética permitindo que os artistas

expandissem suas elaborações para além do espaço museológico, relacionando a

arte com objetos e, consequentemente, relacionando a arte com questões do

cotidiano. Lembrando que a arte sempre teve certa relação com questões sociais, o

que difere neste momento é a quebra da arte como forma de propagação de cultura,

sendo uma ferramenta de contra-cultura, ou seja, o ready-made foi, de certa forma, o

passo inicial na transição artística que caminharia por algumas décadas e culminaria

nas fortes críticas artísticas dos anos 1960 e 1970.

Tanto artistas quanto sociólogos percebem as transições ocorridas na

sociedade, seus fazeres possuem um fator comum. Azevedo e Peled (2015) afirmam

que, tanto o fazer artístico quanto o fazer sociológico, caminham pela intensa vontade

de problematizar questões sociais e similarmente não tem o objetivo de buscar

soluções, mas sim de questionar e também provocar questionamentos.

De modo geral, é possível afirmar que o engajamento político, de grande parte

dos artistas, iniciado nos anos 1960 é motivado pelas crises políticas, golpes militares,

o avanço do capitalismo, o feminismo entre outros. Além disso, esse engajamento

transforma e altera a regularidade das obras e dos espaços por elas ocupados

tradicionalmente. Um momento marcado por crescentes mobilizações políticas,

movimentos de contra-cultura e de minorias na luta por transformações sociais e

culturais e, principalmente, marcado pela necessidade de repensar a função da arte

na sociedade e no mercado.

Os acontecimentos artísticos durante a década de 1960 e 1970 são analisados

por Cristiano Rocha Pithon (2006) que aponta a necessidade dos artistas de romper

com a alienação proveniente da espetacularização da Arte. A Arte Social busca

romper com a passividade e a alienação. Provocativa, extrai do expectador ação e

participação, um caminho de despertar para as questões sociais, algo relevante para

cada momento.

Retomando a Nisbet (2000, p. 117), a afirmação “ambos, artistas e cientistas,

são movidos pelo desejo de entender, interpretar e comunicar sua compreensão para

o resto do mundo” possibilita compreender a forte e inquietante necessidade dos

artistas de modificar e re-significar a arte, assim como os sistemas hierárquicos da

mesma.

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Pithon (2006) ressalta que, o grande interesse dos artistas na ruptura com a

arte tradicional, é buscando inovações cada vez mais ousadas ao elaborar criações

artísticas, sobretudo na forma de divulgá-las que move e moveu o fazer artístico das

últimas décadas. O autor afirma que foi através do interesse de romper com o padrão

da arte museológica, existente à centenas de anos, que artistas recorreram às teorias

sociológicas para uma elaboração que permitisse questionar e confrontar a realidade

vigente.

Neste contexto, o autor apresenta o “Coletivo de Arte Sociológica” composto

por Hervé Fischer, Fred Forest e Jean-Paul Thénot. Importa ressaltar que, de forma

geral, coletivos se tornaram comuns neste período em vários países, no entanto,

especificamente no Brasil, a prática foi bastante comum, inclusive pela necessidade

de reunir mais “força” devido à forte censura imposta pelo regime militar. Alves,

Oliveira e Oliveira (2014) ainda ressaltam que os coletivos de arte não eram

compostos apenas por artistas, mas também por outras pessoas que acreditavam no

engajamento e na temática proposta pelo coletivo artístico.

Artistas e também não-artistas agrupam-se em razão da afinidade de assuntos, níveis de simpatia e amizade ou pela vontade de trabalhar juntos, norteados pela similaridade ou pela diferença de suas experiências de vida. A participação de não-artistas em um coletivo abre percepções para outras áreas que não estão necessariamente conjugadas, mas passíveis de interligação e confluência (ALVES; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2014, p. 34).

A breve revisão histórica apresentada era necessária no intuito de entender,

brevemente, o que é a Sociologia da Arte para assim perceber justamente qual foi

crítica feita pelo coletivo da Arte Sociológica. Ao afirmarem que a Arte Sociológica sai

do discurso científico acadêmico, afirmam que ela está além das regras até então

conhecidas do fazer da arte academicista, se tornando uma prática ativa dentro do

campo social. Trata-se de uma real ruptura com a configuração da arte em que o

artista produz, em seu atelier, os objetos que serão expostos em uma galeria. Não há

interação na produção, tão pouco na exposição.

Neste trabalho, o “Coletivo da Arte Sociológica” recebe destaque devido as

publicações dos manifestos que serão apresentados ainda neste capítulo. Um fator

comum aos coletivos de arte política é sua configuração “heterogêneo e

descentralizado, dissimulando por vezes o caráter individual de cada artista” (ALVES;

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OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2014, p. 34). Neste sentido, estes autores assumem a

característica de uma “única voz para o coletivo” e de proximidade com a sociedade.

A abordagem artística próxima das pessoas, do urbano, as linguagens de arte utilizadas, com apropriação e desvio simbólico de instrumentos de comunicação mediam a participação do público. O questionamento sobre as representações culturais e a preocupação com as novas e as remanescentes configurações do poder delineiam uma nova atitude artística, bem como uma nova resposta de entendimento e percepção de suas proposições. Para tanto, estes artistas, organizados ou não em coletivos, voltam-se para a pesquisa das situações adversas que os concernem e levam a trabalhar a respeito (2014, p. 43)

O coletivo da Arte Sociológica recebe destaque, justamente, pelo teor social

dos manifestos, por seu engajamento político e por terem sido o primeiro grupo que

articulou possibilidades metodológicas do fazer da arte em conjunto com o fazer

sociológico. Além disso, a ideia de Arte Sociológica nascida com o manifesto, é

considerada aqui, como um marco de ruptura das premissas da Sociologia da Arte.

Com o intuito de exemplificar as manifestações artísticas do coletivo, dois de

seus muitos trabalhos elaborados são apresentados: a obra intitulada de Farmácia

Fischer (1975), realizada em São Paulo. Hervé Fischer vestido de farmacêutico em

uma barraca na Praça da República distribuía cápsulas de poliuretano, prometendo

ser a cura para todos os males: falta de dinheiro, de amor, de liberdade.

O segundo trabalho, O branco invade a cidade (1973), também em São Paulo,

quando Fischer andou por duas horas com dez cartazes brancos e nestes cartazes

as pessoas poderiam escrever livremente o que quisessem. Importa lembrar que o

Brasil vivia um período de intensas repressões políticas, a Ditadura Militar, por isso,

as consequências das manifestações contra o regime, teve como resultado horas de

prisão e cobertura jornalística.

Hervé Fischer, Fred Forest e Jean-Paul Thénot escreveram três manifestos

sobre a Arte Sociológica publicados em 1974, 1975, 1976 abordando a ligação da Arte

com a Sociologia. A intensão do coletivo era promover uma conexão entre os dois

campos utilizando dos métodos teóricos da Sociologia, e através destes métodos, os

autores tiveram a pretensão de elaborar uma teoria/metodologia para a arte crítica e,

com isso, criar também um campo de investigação e de experiência para a teoria

elaborada.

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Apesar da ousada tentativa de elaboração de uma metodologia do fazer crítico

da arte, os autores não conseguiram elaborá-la, mas o valor dos três manifestos

escritos na década de 1970 é grande e profundamente relevante para a compreensão

dos caminhos tomados pela arte.

Estes manifestos estão apresentados na íntegra nesta dissertação devido à

importância e a clareza com que descrevem suas considerações sobre a Arte

Sociológica assumindo uma posição diferente da Sociologia da Arte e aproximando-

se das premissas da ASE. Algumas dessas premissas serão destacadas, em negrito,

por serem de grande relevância para compreender a ASE e serão analisados ao longo

do capítulo. Abordaremos os manifestos separadamente, como foram publicados, no

intuito de melhor compreender as principais contribuições de cada um dos três

manifestos.

FIGURA 2: Coletivo da Arte Sociológica

Fonte: Da esquerda para direita: Fred Forest, Hervé Fischer e Jean-Paul Thénot – Veneza, 1976. http://artjournal.collegeart.org/?p=6903 Acesso em: 14 ago. 2017.

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1.2.1 O Primeiro Manifesto

MANIFESTO I - DA ARTE SOCIOLÓGICA

Hervé Fischer, Fred Forest e Jean-Paul Thénot decidiram constituir um coletivo de arte sociológica que pode funcionar como uma estrutura de recepção e de trabalho para todos aqueles que têm por tema fundamental da investigação e da prática artística o fator sociológico entre a arte e a sociedade.

O coletivo da arte sociológica observa a aparição de uma nova sensibilidade para o dado social, ligada ao processo de massificação. Os ajustes atuais dessa sensibilidade não são mais os da ligação do homem individualizado ao mundo, mas os da ligação do homem à sociedade que o produz.

O coletivo da arte sociológica, por sua prática artística, tende a colocar a arte em questão, a evidenciar os fatos sociológicos e a "visualizar" a elaboração de uma teoria sociológica da arte.

O coletivo da arte sociológica recorre fundamentalmente à teoria e aos métodos dos estudos sociais. Ele também quer, pela sua prática, criar um campo de investigação e experiência para a teoria sociológica.

O coletivo da arte sociológica leva em consideração as atitudes ideológicas tradicionais dos públicos a que ele pede. Ele recorre aos métodos de animação, investigação e pedagogia. Ao mesmo tempo que coloca a arte em relação com seu contexto sociológico, atrai a atenção nos canais de comunicação e difusão, tema novo na história da arte, e que implica também uma nova prática (FISCHER; FOREST; THÉNOT2, 1974, grifo nosso).

Foram abordadas, no início deste capítulo, algumas importantes considerações

sobre o campo da Sociologia da Arte, desta forma, fica clara a intenção do coletivo ao

problematizar esse novo formato artístico através das críticas que faz à Sociologia da

Arte e as propostas para uma Arte Sociológica.

Sabemos que as conexões entre arte e sociedade sempre existiram, mudaram

ao longo da história, no entanto, os acontecimentos a partir das décadas de 1960 e

1970 reconfiguraram essas conexões. É comum a prática artística as investigações

no intuito de inspirar para criar, porém, o que o manifesto aponta, não é uma simples

investigação sobre a arte, cores, temas, técnicas, e sim, a necessidade expressa por

seus autores quanto ao buscar o fator social para a elaboração artística. Desta forma,

o coletivo seria uma ferramenta para aqueles que intencionavam esse formato

artístico para “provocar pequenos questionamentos, não quebras radicais, mas a

percepção de novas possibilidades” (PITHON, 2006, p. 40).

2 O Manifesto Sociológico I foi publicado no Diário Le Monde, 10 de outubro de 1974. Texto acessado em: https://rigs.ufba.br/index.php/cppgav/article/view/3980/2922 Acesso em 14 ago. 2017.

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Neste sentido o coletivo foi bastante relevante, no contexto ao qual estava

inserido uma vez que, produções foram feitas, o fazer da arte foi repensado e, mesmo

que a elaboração teórica (que serão apresentadas nos próximos manifestos) que se

propuseram a criar não tenha sido produzida, o impacto causado pelos manifestos e

pelas elaborações artísticas do coletivo foi profundo.

As relações entre o público e a obra, criada através das atitudes ideológicas,

foram cada vez mais potencializadas. O espaço da arte era questionado quanto ao

seu elitismo, a ausência de interação entre o expectador e a obra, a utilidade do objeto

criado, o preço dos materiais utilizados e principalmente a incapacidade da arte

tradicional de promover experiências.

Além do coletivo da Arte Sociológica, Pithon (2006) apresenta outro grupo de

forte relevância, o 3NÓS3, formado por Rafael França, Hudinilson Júnior e Mário

Ramiro. Suas intervenções, em espaços públicos de São Paulo, tiveram bastante

repercussão principalmente devido a forma inovadora de manipular a mídia. As ações

do grupo são fortes e servem como fonte de ilustração precisa para as questões

abordadas no manifesto supracitado.

FIGURA 3 – Grupo 3NÓS3

Fonte: Da esquerda para a direita: Rafael França, Hudinilson Júnior e Mário Ramiro. https://br.pinterest.com/pin/201395414566032661/ Acesso em 14 ago. 2017.

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Em São Paulo, 1979, o grupo 3NÓS3 faz sua primeira intervenção intitulada

Ensacamento, onde 68 estátuas públicas da cidade têm suas cabeças cobertas por

sacos durante a madrugada, estátuas como O Monumento às Bandeiras (1953), do

escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894-1955). Durante a madrugada, o grupo

saia pela cidade cobrindo a cabeça de várias estátuas e, como se isso não fosse o

bastante, também faziam com que a ação se tornassem notícia.

Talvez a maior relevância deste grupo esteja na inovação quanto as ligações

anônimas à imprensa durante a madrugada para não dar tempo de a polícia retirar os

sacos. Eles se revezam em ligações fingindo serem vizinhos indignados com

vândalos, o que fazia com que as obras alcançassem grande cobertura midiática. Esta

intervenção, Ensacamento, faz uma crítica à prática comum em interrogatórios

militares nos quais as cabeças de presos políticos eram cobertas com sacos.

O uso dos espaços públicos para obras artísticas não é novidade. Todas as

cidades, a sua forma, utilizaram de obras de arte em suas construções. Cacilda

Teixeira da Costa (1998) afirma que a “arte nos espaços coletivos é tão antiga quanto

sua própria existência”. Segundo a autora as mais antigas formas de arte encontradas

foram justamente elaboradas em espaço público “não seriam as cavernas espaços

coletivos, onde o homem do paleolítico gravou seus devaneios e abstrações?” (p. 87).

Costa (1998) ressalta que a arte em espaços públicos sempre foi muito comum,

no entanto, a proposta dos coletivos de arte política ainda é algo novo na medida em

que, busca romper com o poder do Estado, com o controle e com a dominação

imposta pelo mesmo, assim como pelo capitalismo. O Estado sempre utilizou obras

de arte para a manutenção do poder e para elogiar as suas conquistas; basta

relembrar as construções egípcias e gregas e, atualmente, as placas de memorial em

nome de políticos em vários monumentos públicos nas cidades.

Interessante destacar que durante a ditadura militar, artistas eram contratados

pelo governo para a construção de obras em praças públicas, urbanização de cidades,

decorações urbanas, prédios oficiais do governo entre outros. Costa relembra a

incoerência de Lúcio Costa e de Oscar Niemeyer que, apesar de defender ideias de

esquerda, trabalharam para o governo durante longos anos, a exemplo de fazerem

parte da equipe de governo da era Vargas. Costa (1998) afirma “jamais acreditou que

política, em arte, está também em não fazer” (p.91).

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Utilizar-se de espaços público, obras que até então serviam para a pura e

constante manutenção do poder, através de ações interventivas foi um marco na

história contemporânea da arte. Combater as “verdades” ali expostas e permitir ao

público acesso a um repensar político era a forma encontrada por muitos grupos

ativistas.

Essas ações dialogam com o espaço urbano exatamente por participar dele, por observar as relações ali dispostas, especialmente acerca da configuração de uma nova forma de poder – e, claramente, direcionam-se a combatê-la (ALVES; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2014, p. 45).

Voltando ao 3NÓS3, para além das fortes críticas feitas ao governo, uma

grande contribuição do coletivo foi justamente a atitude inovadora de usar a mídia com

tanta ousadia. Denunciaram as próprias intervenções conseguindo ampla cobertura

em jornais da época, sem nem mesmo haver a necessidade de pagar pela divulgação

ou propaganda de sua arte, foi inovador e extremamente eficiente. Criticaram o poder

do Estado, as torturas, a censura, o poder das relações do mercado da arte, a falta de

acesso do público, o elitismo artístico e a espetacularização da arte e foram notícias

em vários jornais da época.

FIGURA 4 – Ensacados

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/201395414566032661/. Acesso em 14 ago. 2017.

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Sobre esta intervenção o grupo afirma:

(...) as galerias não eram acessíveis a jovens artistas, além disso elas ficavam trancadas, era necessário tocar a campainha para abrir as portas, porque ali estavam objetos de valor, a arte que pertence ao mundo capitalista (...) toda cidade possui um espaço reservado para a construção de monumentos, então a nossa ideia era cobrir a arte acadêmica que ficava exposta pela cidade, a nossa ideia era atacar o academicismo que por sua vez são os representantes da história oficial do Brasil, que são os representantes do governo, a história do Estado (3NÓS33).

Além da intervenção Ensacados, o grupo também faz uma intervenção

questionando a função das galerias que, neste momento, eram ainda mais restritas

devido a intensa censura vigente durante a ditadura. Lacram as galerias com fita crepe

com os dizeres “o que está dentro fica, o que está fora expande”, novamente entrando

em contato com a imprensa obtendo, mais uma vez, uma ampla cobertura, e assim,

contradizendo todas as normas formais de divulgação, tanto quanto popularizando o

acesso a arte (PITHON, 2006, p. 38)

FIGURA 5 – O que está dentro fica, o que está fora expande

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/201395414566032661/ acesso em 14 ago. 2017.

3 Transcrição da autora através do documentário apresentado na exposição das fotografias das ações dos grupos 3NÓS3 e Arte/Ação para o Centro Cultural. http://www.centrocultural.sp.gov.br/VIDEO_ARTES_VISUAIS_Arte_Acao_3NOS3.html Acesso em 07 ago. 2017.

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O pensamento em torno das movimentações dos artistas engajados é muito

bem sintetizado por Canclini (1979) que aponta a importância que o artista tem dentro

da sociedade. A esta importância ressalta o poder de utilizar o seu trabalho para

revelar conflitos sociais existentes e, através do impacto que suas obras causam nas

emoções e nas experiências de seus expectadores, despertar o pensamento crítico

sobre os temas sociais que abordam.

O artista deve aproveitar o conhecimento sociológico para entender as relações entre classes sociais, como operam os condicionamentos econômicos sobre a produção do imaginário, como estão instituídos os códigos coletivos de percepção e sensibilidade, em que medida podem ser modificados. E por sua vez o artista pode reparar em pontos especialmente sensíveis da vida social, pôr em evidência aspectos subjetivos e intersubjetivos das relações entre os homens, despercebidos pelo objetivismo científico, provocar experiências inesperadas e contribuir com seus próprios meios para que as pessoas tomem consciência das estruturas que as oprimem (CANCLINI, 1979, p.18).

Socializar a arte era – e continua sendo - um desafio. Os meios de divulgação,

o espaço institucional e os materiais utilizados estavam em constante

questionamento, mas não só isso, a própria motivação e o porquê de se elaborar

objetos artísticos de contemplação estava sendo repensado.

A arte estava presa as galerias e dificilmente chegaria ao público se não fosse

levada justamente para o ambiente aberto, acessível e democrático que é a própria

rua. O lugar da arte precisava ser repensado e questionado. Naquele momento os

próprios artistas não tinham total acesso a arte, uma vez que, os materiais eram

importados, caros e também a escassa acessibilidade em expor em galerias.

Pithon (2006) ainda ressalta a grande vontade dos artistas em unir a arte e a

vida através de obras que contavam com a participação do público, permitindo acesso

cada vez mais amplo das pessoas as obras, o que quebrava com a tradição

museológica da arte que, por séculos, era elitista e raramente acessível a grande parte

da sociedade.

O autor também aborda uma das principais características da arte política: sua

condição efêmera, e neste sentido, seu próprio registro é em si uma das principais

formas de divulgação tendo a condição de não possuírem caráter artístico, já que a

função da obra é justamente a “perda”. A imagem das obras através da fotografia

permite o caráter de documento aos registros feitos, sendo um dos principais acessos

aos que não estiveram no local do evento.

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Ainda hoje o acesso que temos as obras de arte interventivas, durante a

ditadura, são através de fotografias, sendo que, muitas delas nem mesmo foram

tiradas por fotógrafos profissionais, em muitos momentos, os próprios coletivos se

organizavam e solicitavam ajuda de amigos, conhecidos ou familiares para

documentar a ação que estivessem fazendo. A mídia também ganha destaque, uma

vez que, ao propaga-los como vândalos acabavam também registrando com uma boa

qualidade fotográfica as intervenções feitas, de forma que é possível achar

importantes registros nos jornais da época.

1.2.2 O Segundo Manifesto

MANIFESTO II DA ARTE SOCIOLÓGICA

A arte sociológica que defendemos novamente sozinhos alguns meses atrás, causam várias obstruções que tentam envolver-se na confusão. Portanto, é hora de fazer algumas recordações e reafirmar o sentido que sempre damos ao conceito de arte sociológica.

De fato, a arte sociológica se distingue tanto quanto a sociologia da arte como as concepções superficiais de uma "arte social".

Por um lado, como prática ativa no campo social, aqui e agora, recorrendo às abordagens teóricas que se submete à prova da ação, colocando em ação as estratégias em relação ao real, mas também em relação as Instituições, ao poder, inventando as técnicas de suas experiências - a arte sociológica sai do cenário do discurso científico e acadêmico. Recorrendo, ao conhecimento, instrumento da ação e se apresenta em troca, com cada nova experiência novos materiais de análise, passa-se dialeticamente na prática elaborada.

Por outro lado, a arte sociológica, pela especificidade de sua relação com a sociologia, não tem nada a ver com a bagagem cultural do tema "arte e sociedade", no qual alguns esticam o abuso de sua autoridade como crítica da arte, para diluí-lo para recuperá-lo. Outros, como nós, hoje, compreendemos esse perigo. Essa confusão mantida com inteligência constitui atualmente a ameaça mais insidiosa contra o nosso processo.

Politicamente comprometida, nossa prática sociológica distingue-se da arte militante tradicional com a qual se quer confundi-la. Este último expressa novamente com os formalismos estéticos e a classe média pictórica, aos quais queremos substituir uma prática ativa de questionamento crítico. A pintura militante foi uma etapa importante, mas prisioneira dos clichês e dos conformismos culturais que a tornaram inoperante, deixa aparecer hoje seus limites e seus fracassos com demasiada evidência, de modo que a arte sociológica o vincula a outros caminhos, implicando os novos meios de comunicação, dos métodos educativos críticos é o recurso fundamental à análise sociológica.

Definimos a arte sociológica pela sua relação epistemológica necessária com a ciência sociológica. Esta relação é dialética. Funda a prática artística que a experimenta e que a objetiva em troca a força da realidade social. Esta relação é específica da arte sociológica: distingue-a de todos os outros passos tradicionais ou vanguardistas. Significa, contra a expressão tradicional, a arte como uma ideologia mistificadora

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da irracionalidade, a vontade de recorrer ao discurso científico da sociologia e confrontar nossa prática com a racionalidade desse discurso.

A arte sociológica é uma prática que se funda na reversão da sociologia da arte contra a própria arte e que leva em consideração a sociologia da sociedade que produz esta arte. Provavelmente constitui uma das primeiras tentativas (exceto algumas experiências de sociodramas), de implementação de uma prática sociológica conhecida além do conceito tradicional de arte. Na verdade, a sociologia, ao contrário das outras ciências como a economia, a mecânica, a psicologia ou a biologia, não causou nenhuma prática, apenas estabelecimento ao nível do campo social.

O projeto da arte sociológica, é ao final elaborar a própria prática sociológica.

Mas, ao contrário dessas ciências e de suas aplicações, a arte sociológica não tem como objetivo gerir o real, o presente ou o futuro, mas exercer em relação à realidade social e a nós mesmos, uma função de questionamento e de ruptura. Esta função interrogativa e crítica implica não fazer as perguntas e as respostas. De fato, não visa justificar um dogma, nem reforçar sua burocracia, mas causar alguma consciência não alienante. Força a estabelecer, onde reina a difusão unilateral da informação, dialoga com as estruturas de comunicação e intercâmbios, implicando o engajamento recíproco da responsabilidade ativa de cada um.

A arte sociológica tenta colocar em questão as superestruturas ideológicas, o sistema de valores, as atitudes e mentalidades condicionadas pela massificação da nossa sociedade.

É neste objetivo que recorre à teoria sociológica, aos seus métodos e que elabora uma prática educativa de animação, de investigação, de ruptura dos canais de comunicação.

O conceito de arte sociológica, como propusemos em 1972, tal como o praticávamos mais uma vez, numa indiferença quase geral naquele momento, implica hoje, como ontem, o rigor de sua relação constituinte com a teoria sociológica materialista, O fim a consequência e de que marca a passagem ao ato como prática que opera no campo social (FISCHER, FOREST, THÉNOT4, 1975, grifo nosso).

Neste segundo texto, Manifesto da Arte Sociológica, os autores se preocupam

em diferenciar com clareza o que é a Sociologia da Arte para o que eles propõem

como Arte Sociológica, sendo assim, é necessário recorrer ao campo da Sociologia

da Arte de forma a diferenciá-lo com exatidão da proposta feita pelo coletivo.

Marília Andrés Ribeiro (1998) analisa o contexto da arte de vanguarda no Brasil.

A autora afirma que, a relação entre arte e política, após o golpe militar, ganha uma

característica peculiar tornando-se uma relação pautada pela construção e

reconstrução de novas poéticas interessadas na importância das culturas de massa,

com o objetivo de romper com as relações de poder, e assim, inserir a arte na vida

cotidiana nos grandes centros urbanos.

4 O Manifesto Sociológico II foi publicado no catálogo do Museu Galliera, Paris para a exposição da Arte Sociológica Coletiva, Maio de 1975. https://rigs.ufba.br/index.php/cppgav/article/view/3980/2922 acesso em 10 jun. 2017.

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(...) O pensamento utópico não é um pensamento erudito, não sonha com um paraíso futuro e nem desencanta diante da liberdade. Consiste no pensamento do possível que se engendra no agora e no lugar em que vivemos. Contrapõe-se as ideologias das camadas dominantes, denuncia a situação insuportável de exploração capitalista, vislumbrando a libertação e conduzindo ao desejo político. A utopia é impulsionada pelo desejo, animando a coletividade em direção a liberdade e a justiça. (...) A força da utopia norteou os discursos e as ações dos críticos e dos artistas militantes que se engajaram nas manifestações das novas vanguardas, assumindo formas específicas de acordo com sua inserção no contexto histórico de cada país durante os anos 60 (RIBEIRO, 1998, p. 165).

A referida autora também pontua que as contribuições do trabalho em conjunto

de críticos da arte e artistas, possibilitou ações militantes fortes aproximando o

trabalho teórico do trabalho prático, permitindo assim, uma ruptura na distância

existente entre o crítico e o artista.

As manifestações artísticas durante períodos de repressão, ditaduras, crises

econômicas e políticas apontam a necessidade de romper com as burocracias sociais

em que artistas, de vários países e diferentes contextos, utilizam da arte na tentativa

de sobrepor o homem ao sistema. Para Shannon Jackson (2011), a maior distinção

entre a arte do final do século XX e do início do século XXI, está justamente nas

características de questionadores e críticos ao contexto histórico e as ambivalências

de suas constituições governamentais, políticas e econômicas.

Se a relação do artista com o poder é variada, também diferenciada é a relação do poder com a arte. Segundo os regimes políticos e segundo a ideologia dominante, essa relação apresenta formas próprias e produz efeitos diferentes. Nos regimes autoritários, o Estado não camufla o poder que exerce sobre a arte, quer por intermédio dos aparelhos ideológicos, quer pelo uso da violência (prisão, hospital psiquiátrico, etc.). Apesar da repressão, a arte não é definitivamente proibida: sua produção é organizada autoritariamente pelo sistema de encomendas, seus produtos são submetidos a censura porque o poder detecta nela um modo eficaz de pressão ideológica e um instrumento de prestigio e propaganda para o Estado. É por isso que a estética oficial é geralmente realista e preza a doutrina da imitação. Para glorificar a ordem estabelecida, é necessário representá-la: representa-la como ordem, alheia a tudo que seja desordem, irregularidade ou confusão (FABRIS, 1998, p. 12-13).

Ao questionar, dos valores e normas vigentes, à autoridade e o poder das

instituições hegemônicas, os coletivos de arte romperam em muitos aspectos com a

tradição modernista da arte, propondo então, uma nova concepção de arte, agora

mais crítica em todas as suas esferas e relações.

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É importante entender que as questões sociais influenciam as criações

artísticas. A arte é criada através de conceitos existentes ou de crítica aos mesmos.

Para Chaves e Ribeiro, fica muito claro essa condição fundamental da arte, de forma

que, é possível afirmar a impossibilidade de dissociação das mesmas, não havendo

arte sem sociedade, tão pouco, sociedade sem arte.

1.2.3 O Terceiro Manifesto

MANIFESTO III DA ARTE SOCIOLÓGICA:

METODOLOGIA E ESTRATÉGIA

A prática da arte sociológica substitui as finalidades afirmativas e estéticas tradicionais da arte dos objetivos vinculados à transformação das atitudes ideológicas, no sentido de uma consciência da alienação social. Não é propor novos modelos de organização social, mas exercer o poder dialético de um questionamento crítico. Esta conscientização deve permitir, nos momentos de ruptura do sistema social (crise da estrutura econômica e burocrática) apresentar o questionamento fundamental susceptível de orientar os passos daqueles que querem transformar os laços sociais. Esse é o nosso projeto deliberado. A questão filosófica do sentido, em um sistema social que não tolera sua configuração em questão, é inevitavelmente subversiva.

Implica que o coletivo da arte sociológica considera a metodologia e a estratégia como dois conceitos fundamentais de sua prática.

1. A metodologia da arte sociológica. Seu objetivo fundamental é a criação de dispositivos de desvio. Seu campo de ação é diretamente o de relações interpessoais subjetivas. Não se pode emprestar à sociologia oficial, neste sentido, que este visa a perceber e a gerir, a manipular as atitudes dos eleitores/consumidores em relação às proposições alternativas e fictícias do próprio sistema social, e não colocar em questão essas proposições. A história desta metodologia de estabelecimento e burocrática está ligada às exigências do organismo governamental e econômico que financiou as investigações sociais na meta de assegurar o exercício de seu poder. Somente a prática de um questionamento crítico pode nos permitir usar esses métodos, desviando-os.

Nossa metodologia é inteiramente inventar. Ela pretende fazer aparecer concretamente a realidade das relações sociais que determinam os indivíduos, mas que a ideologia dominante oculta varia ao nível do imaginário nas consciências individuais, pelo seu discurso político, moral e cultural. A arte sociológica visualiza as relações sociais que revelam a análise sociológica teórica e a prática. Faz emergir suas estruturas abstratas à consciência de cada um, objeto do discurso sociológico, cego ideologicamente ao nível do cotidiano vivido. Esta prática educativa subversiva revela o funcionamento das relações sociais reais entre as categorias sociais, os modos de exploração, a lógica política dos sistemas dominantes de valores, a sua mistificação quotidiana, permitindo assim a cada um o exercício crítico de seu juízo e sua liberdade, em comparação com uma ordem social que se apresenta falsamente como natural e necessária. Esta auto-gestão do pensamento pode ser obtida graças ao efeito multiplicado de diferentes técnicas: deslocamento ou transferência de informação em comparação com seus lugares ou os apoios

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de processo cultural pertencentes a níveis ou esferas sociais, normalmente divididos, passos sintéticos que provocam curto-circuitos subversivos em todos os lugares onde a ideologia dominante se divide e se separa cuidadosamente para evitar as confrontações dialéticas, em suma um desvio combinatório dos elementos culturais reais, pondo em causa a sua lógica social e, portanto, fazendo aparecer o que sua coerência deve ao poder político dominador e repressivo.

Questionamentos, debates, energizações, rupturas dos circuitos afirmativos de comunicação, provocações, recusas, ficções críticas contra-usos, anti-instituições podem constituir essa prática transformadora.

Não é apenas a ação direta, mas também uma experimentação de que o efeito parcial ou diferido é tão importante como o confronto com as hipóteses da teoria teórica de pesquisa de uma sociologia crítica.

A estratégia da arte sociológica. Realismo e diversão são seus dois princípios. Pratica especificamente contra as instituições em lugar do sistema dominante, que quer pôr em causa. Constituído em coletivo, não só encontramos alguns indivíduos, mas também somos confrontados constantemente com essas instituições, que são por um lado artísticas e culturais (galerias, museus, críticos de arte, revistas, bienais, feiras da arte, etc.), por outro lado político e administrativo (meios de comunicação, partidos políticos, sindicatos, municípios, políticas, organismos de controle, de censura, grupos de pressão etc.). Os processos recuperadores do mercado da arte e a justificativa de nossas atividades por parte dessas diferentes instituições fazem problema. Com relação ao mercado da arte, o coletivo tomou a decisão de não participar e contestá-lo radicalmente; no que diz respeito às partes a ser realizada fora e questionar todos eles recusando os dogmas. Nossa função interrogativa crítica é contra toda militância.

A estratégia da arte sociológica visa descansar na permissividade da instituição artística, alargar a sua atividade a uma prática sociológica mais ampla do que a categoria da arte. O objetivo é colocar as mãos sobre o poder das instituições em vigor ou em repousar sobre alguns dos homens que exercem algumas responsabilidades lá, quer graças à lógica do poder adquirido, para desviar este poder, tão possível transbordar os processos de neutralização da ação que faz, em princípio, a execução institucional do microambiente da elite e devolver esse poder contra o sistema institucional que queremos questionar.

Em uma sociedade dominada por classe econômica e tecnocrática, à qual a maioria da classe média delegou seu poder político, é possível repousar nossa estratégia sobre uma parte da classe intelectual que contesta o poder dos administradores e suas finalidades.

O realismo da nossa estratégia implica constantemente um cálculo dos riscos no jogo das garantias institucionais, dos mecanismos de neutralização e recuperação e das possibilidades de experimentação ou de ajuste efetivo em questão. Se a curto prazo não é desprezível a longo prazo é uma perspectiva de esperança que necessariamente legitima toda vontade, como irrisório que parece transformar as relações sociais contemporâneas. É talvez a vontade de continuar, apesar de tudo, que dará a sua força à nossa recusa de uma sociedade de homens / objetos controlados pela cibernética. (FISCHER, FOREST, THÉNOT5,1976, grifo nosso).

5 O Manifesto Sociológico III Publicado no catálogo internacional - 37ª Bienal de Veneza, junho de 1976. https://rigs.ufba.br/index.php/cppgav/article/view/3980/2922 acesso 10 jun. 2017.

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Neste terceiro manifesto os autores propõem uma metodologia do fazer

artístico sociológico. Afirmam, logo no início do texto, que não possuem a intenção de

“propor novos modelos de organização social, mas exercer o poder dialético de um

questionamento crítico” e, para isto, assumem que as práticas artísticas devem,

fundamentalmente, criar mecanismos de desvios e, através destes mecanismos,

mostrar a realidade social que a cultura dominante impede que seja vista.

Em resumo, para o coletivo da Arte Sociológica, a proposta metodológica nada

mais é do que “inteiramente inventar” e assim “visualiza as relações sociais que

revelam a análise sociológica teórica e a prática” permitindo que, aqueles que não

conseguem visualizar as reais estruturas e mecanismos de opressão social, consigam

fazê-lo através do que os autores chamam de “auto-gestão do pensamento”, uma vez

que a prática da Arte Sociológica, para eles, seria na verdade uma prática educativa

subversiva e, esta prática, permitiria em fim o exercício crítico da lógica política dos

sistemas dominantes visando a liberdade.

Apontada a proposta metodológica, o coletivo apresenta a estratégia da Arte

Sociológica, o “realismo e a diversão”, afirmando a necessidade de crítica ao poder

estabelecido pela instituição da arte, assim como, o local da arte, as galerias e os

museus, no entanto, não aprofundam sua proposta, deixando em aberto qual de fato

seria a metodologia do fazer da Arte Sociológica.

A elaboração metodológica que Fischer, Forest e Thénot se propuseram a

fazer, nos manifestos, fica no ar. Os autores apresentam algumas ideias do que seria

a metodologia, no entanto, ela não é concluída o que não desvaloriza as profundas

análises feitas sobre o fazer artístico. O sentimento é que eles abriram os caminhos

para muitos artistas pudessem repensar a Arte, possibilitando novos caminhos e

trajetos que devem ser percorridos pela Sociologia também.

1.3 Da Arte Sociológica à Arte Socialmente Engajada

A Arte Sociológica foi um grande avanço para o engajamento político, abrindo

portas e pensamentos para novas formas de utilização da arte como ferramenta

política, no entanto, muitas discussões sobre o engajamento artístico tangenciam

também as relações entre problemas estéticos e conflitos ideológicos. É inevitável,

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em uma análise sobre o engajamento artístico, as considerações a respeito da

socialização e da compreensão dos conteúdos abordados.

Isto posto, é possível entender que, um aspecto essencial da Arte Socialmente

Engajada, está na profundidade com que ela provoca reflexão sobre os “sistemas

contingentes que gerenciam a vida” (JACKSON, 2011, p. 29). Chaves e Ribeiro

(2014), concordam com este pensamento, em seu artigo Arte em Herbert Marcuse:

formação e diligência à sociedade unidimensional, fazem importantes considerações

a respeito do potencial crítico da arte e, principalmente, da sua capacidade de

comunicar verdades que não são comunicáveis de nenhuma outra forma.

A presença da sociedade está na arte como matéria prima, como historicidade do material conceitual, linguístico e sensível, como campo de possibilidades concretamente disponíveis de luta e libertação e como posição específica da arte na divisão social do trabalho. A arte paga tributo ao que existe, mesmo em sua negação. Só como parte do que existe pode falar contra o que existe (CHAVES; RIBEIRO, 2014, p.16).

Marcos Napolitano (2011), em seu artigo A Relação entre Arte e Política: Uma

Introdução Teorico-Metodológica, aponta uma relação histórica fundamental para a

compreensão da função do artista engajado.

A tradição acadêmica francesa tende a plasmar o conceito moderno de “intelectual” à própria ideia de engajamento, à medida que o intelectual é definido como aquele que coloca sua palavra “lítero-jornalística” a serviço de causas humanistas, republicanas e progressistas .O marco histórico-genético desta categoria seria o caso Dreifuss no final do século XIX (WINOCK, 1999), quando as elites culturais francesas assumem uma postura cívica, negando a tradição clássica do intelectual como clérigo ou burocrata neutro e consagrando as atividades dos intelectuais voltadas para o público . Assim, a produção e atuação de jornalistas, escritores e artistas em geral voltam-se não apenas para o enriquecimento de uma vida interior – “espiritual” – mas também para intervir no mundo. Nesta vertente temos a negação do intelectual ascético, de inspiração clerical voltado para as “coisas do espírito”, defendido tardiamente por Julien Benda no seu clássico La Trahison de Clercs, de 1928. (NAPOLITANO, 2011, p. 19)

Napolitano define então a diferença entre “arte militante” e “arte engajada”

considerando que a arte militante é expressada pela mobilização de consciências e

paixões onde há, primordialmente, a incitação à ação em favor ou contra as mais

variadas questões políticas e sociais. A definição de arte engajada perpassa, o que

Napolitano (2011, p. 20) define como “o empenho do artista em prol de uma causa

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ampla, coletiva e ancorada em um objetivo moral e ético”, que permite sobretudo a

reflexão do expectador.

Tal definição não é separada das duas formas de engajamento da arte que as

distanciam, na verdade a definição apenas aponta particularidades no objetivo de

cada criação artística. Importa lembrar que uma mesma obra pode conter os dois

objetivos concomitantemente, e para além do termo “engajada” ou “militante”, os

conflitos metodológicos, da arte com teor político, perpassam questões entre

autonomia e heteronomia, questões entre o universal e o particular, e sobretudo a

capacidade e a percepção da linguagem crítica do artista.

Apesar da grande contribuição que fazem para o contexto histórico da ASE,

seus autores não conseguiram avançar para além das questões quanto as críticas ao

mercado e ao circuito institucional da arte, já assumido anteriormente pela Sociologia

da Arte (AZEVEDO; PELED, 2015, p. 498).

Azevedo e Peled (2015), a partir de Pastenak (2012), para quem alguns

movimentos e práticas artísticas iniciados na década de 1990 podem ser citadas como

precursores da ASE que contribuíram para ampliar poéticas artísticas: além de

Duchamp, supracitado, os movimentos do Dadaísmo e do Fluxus; a escultura social

de Joseph Beuys; os happenings de Allan Kaprow; as intervenções de Gordon Matta-

Clark; o movimento Tropicália, de Lygia Clark e Hélio Oiticica; o community based

public art, de artistas como Suzanne Lacy, Mierle Laderman Ukeles e Rick Lowe.

Para entender a contribuição dos movimentos mencionados a ASE, é

importante relembrar, brevemente, quais foram esses movimentos e principalmente a

ideologia por trás deles. Cavrell (2011) apresenta o Dadaísmo como movimento que

questionava a arte em todos os seus aspectos e repensava também as ações de um

artista. O Dadaísmo surge na Itália em 1909 e tem seu auge entre 1916 e 1922.

Para os Dadaístas, a arte havia se tornado banal e insignificante. O que quer que fosse Arte, os Dadás eram contra. Coincidente com a Primeira Guerra, as atividades do grupo se alimentavam de ideias originadas a partir da cena cultural e social da época. O grupo se revoltou contra quase todas as organizações e instituições, demandando ao público para despertarem e tomarem como ofensa a decadência da educação em arte, além de questionarem o bom gosto e o que fosse aceitável em qualquer área. As ações dadaístas na Alemanha eram particularmente políticas, empregando manifestações abusivas e sátiras cáusticas para criticar atividades políticas. Em Berlim, o movimento estava determinado a banir o Expressionismo, colando cartazes nas ruas cujos slogans diziam: “O Dadá lhes chuta o traseiro

e vocês gostam” (CAVRELL, 2011, p. 2).

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O Fluxus tem grande relevância no cenário da arte por ter promovido a

experimentação no contexto artístico. Cavrell (2011) apresenta o Fluxus como um

movimento de grande relevância na década de 1960, semelhante ao Dadaísmo no

que se refere a pauta poética, no entanto, muito diferente quanto a forma de lidar com

esta pauta. O Dadaísmo era radical em suas movimentações, enquanto o Fluxus,

utilizava variadas possibilidades artísticas. O grupo apresentava diferentes ângulos

da arte, uma vez que acreditavam que a arte é em si uma ação inerente ao

comportamento do cotidiano humano.

Joseph Beuys (1921-1986) é também um dos grandes nomes em torno do

caminho percorrido pela arte. Sua principal contribuição, para a arte social, repousa

no conceito de escultura social. Para Beuys, a arte deveria caminhar em todos os

âmbitos da vida humana, tocar o interior de cada indivíduo e com isso utilizar o

potencial transformador da realidade que a arte possui. A escultura, para o artista, não

era um objeto físico em si, ao contrário, tocava todas as esferas sociais como a esfera

política, cultural, educacional, todas as formas de organização social, sendo em fim a

escultura social o próprio pensamento humano (BEUYS apud TESSLER, 1996, p. 45).

Beuys também propunha uma aproximação, da arte com a vida, através da

relação da arte com os mais simples fazeres humanos e a utilização do fragmento de

realidade no fazer da arte. O artista afirmava que

Todo homem é um artista. Isso não significa, bem entendido, que todo homem é um pintor ou um escultor. Não, eu falo aqui da dimensão estética do trabalho humano, e da qualidade moral que ai se encontra, aquela da dignidade do homem (BEUYS apud TESSLER, 1996, p. 61).

Tessler (1996), ao analisar a vida e a obra de Beuys, aponta a similaridade das

obras do artista com as obras de Duchamp, assim como, a própria participação de

Beuys no coletivo Fluxus. Joseph Beuys permitiu a percepção da arte como uma

estrutura aberta a intervenções e discussões. Para o artista alemão, a arte deveria ter

como função principal aguçar os sentidos e a percepção humana e permitindo ao ser

humano ampliar e até mesmo descobrir novos órgãos de sentido.

Sneed (2011) apresenta obras e criações de Allan Kaprow (1927-2006) e seu

pioneirismo no desenvolvimento da arte da performance. O artista teve forte influência

no campo da arte nos anos 1950 e início dos anos 1960. Kaprow deu os primeiros

passos do que, posteriormente, seria chamado de “Ambientações” e “Happenings”.

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Durante a década de 1970, o artista, mudou suas práticas para obras as quais ele

nomeou “Atividades”, obras relacionadas ao “mundo real” e que não eram orientadas

ao público e, por isso, destinadas à exploração pessoal das atividades da vida

cotidiana.

Happenings não têm “nenhum plano, nenhuma ‘filosofia’ óbvia, e concretizam-se de forma improvisada, como o jazz... “Eles envolvem o acaso e comportam possíveis falhas, tornando-os mais parecidos com a vida do que com a arte. Da mesma forma, ao contrário dos objetos de arte, eles não são mercadorias, mas eventos breves, que não podem ser repetidos. Além disso, os happenings devem “eliminar a arte e qualquer coisa que remotamente a sugere, assim como evitar as galerias de arte, teatros, salas de concerto e outros empórios da cultura” Assim como os happenings deveriam renunciar às convenções artísticas, eles deveriam também renunciar às convenções teatrais. Ao contrário das peças de teatro, eles não deveriam ser ensaiados ou encenados por profissionais. Acima de tudo, “a ideia de audiência deve ser eliminada completamente”, escreve Kaprow em 1966, para que “todos os elementos - pessoas, espaço, os materiais particulares e características do ambiente, o tempo - possam ser integrados ... fazendo com que o último vestígio da convenção teatral [desapareça]” (SNEED, 2011, p. 172).

Solfa (2009) aborda a vida e obra de Gordon Matta-Clark que, nos anos 1960,

inicia uma caminhada rumo a novas possibilidades para a arte. Foi a partir de uma

pesquisa feita pelo artista, para cozimento de materiais, que o permitiu repensar a

relação do cotidiano com a arte, elaborando uma crítica as atividades automatizadas

do dia-a-dia. A autora mostra que Matta-Clark, arquiteto de formação, desenvolveu o

que parecia ser “uma atividade artística dedicada a minar os próprios fundamentos da

arquitetura” (p. 421).

Matta-Clark utilizava o cotidiano porém, re-significava seus lugares. A atividade

de cozinhar, por exemplo, toma grande espaço em suas obras. Para ele, cozinhar era

muito além do preparar o alimento, cozinhar era a possibilidade de exercer uma

atividade para além do espaço privado, podendo ser uma atividade coletiva, lúdica e

até mesmo artística. Um exemplo deste pensamento foi a colaboração em uma mostra

de Alana Heiss, em que Matta-Clark assou um porco debaixo da ponte do Brooklin e

convidou os participantes para uma refeição coletiva. Matta-Clarck atuou fortemente

na re-significação dos espaços urbanos, privados ou não. Engajou-se contra todas as

possibilidades de castração da liberdade nos usos destes espaços, dando assim, mais

um fôlego e possibilidade para a arte política.

Hélio Oiticica e Lygia Clark são os expoentes da arte experimental no Brasil,

afirma Sperling (2015). O autor apresenta o movimento Tropicália como diferenciado

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na arte brasileira por sugerir a participação do indivíduo e, assim, a ativação do corpo

como sendo a única forma de desnaturalização de hábitos e “descolonização do

imaginário”. Desta forma, a ação do sujeito “torna-se uma totalidade sensorial,

significativa e política” (SPERLING, 2015, p. 27). Além disso, a ideia da obra como

organismo vivo e da sua interação com o local e a arquitetura, onde os artistas

assumem o espaço estruturado e aberto como sendo o único campo para a atuação

da dimensão política.

Oiticica e Clark repensaram a arte política no Brasil e com isso reconfiguraram

muitas possibilidades artísticas e metodológicas quanto ao fazer da arte e o local da

arte, interagindo arte, arquitetura e política. Sobre esta particularidade Sperling afirma

A reproposição da arquitetura em Oiticica e Clark, germinada na reconsideração da ação artística, estrutura-se no reposicionamento de três aspectos fundamentais: o espaço, o tempo e a relação obra-espectador. O primeiro desloca-se do espaço geométrico da representação para o espaço topológico de relações. O segundo desloca-se do tempo como permanência da obra para a efemeridade da ação-interação do participante. O terceiro desloca-se da obra destinada a um espectador passivo para um campo ativado pelo participador-atuante (SPERLING, 2015, p. 31).

Os artistas e movimentos, abordados acima, abriram caminho para mudanças

ainda maiores no campo da arte e foram os precursores do que hoje chamamos de

Arte Socialmente Engajada. Com todos os novos rumos, possibilidades e o

surgimento de novas formas de fazer arte é necessário também compreender os

diferentes formatos existentes e suas flexibilizações quanto a produção artística. Estes

diferentes termos são abordados por Azevedo e Peled possibilitando uma melhor

compreensão das variadas possibilidades existentes para a Arte Sociológica.

(...) a estética relacional, em Nicolas Bourriaud (2009a); a estética social, em Lars Bang Larsen (2000); o contexto dialógico da arte, em Kester (2004); a “new genre public art”, em Suzanne Lacy (1995); a “littoral art”, em Bruce Barber (2013); a “art in the public interest”, em Miwon Kwon (2002); além de outras propostas como “community-engaged art”, “community (based) art”, “social justice art”, “social practices”, “experimental dialogic art”, “participatory, interventionist, research-based e collaborative art” (AZEVEDO; PELED, 2015, p. 497).

Além dos termos mencionados, um termo que surge na década de 1990 e que

vem ganhando cada vez mais destaque no cenário da arte mundial é o ‘artivismo’.

Vanessa Benites Bordin (2015), em seu artigo Artivismo – borrando fronteiras entre

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vida e arte, apresenta o surgimento do termo a partir das mudanças tecnológicas dos

anos 1990 que permite a ampliação do potencial de artistas políticos através dos

recursos dos meios de comunicação de massa. Para Bordin foi a internet e as

conquistas tecnológicas que permitiram as mais diferentes e inusitadas práticas

artivistas. A autora cita Diana Taylor, Taylor professora da Universidade de Nova York,

que assume essa relação:

O termo artivismo, a primeira vez que escutei foi com Ricardo Dominguez6, que vem de hacktivismo, com interrupções ativistas feitas principalmente pela internet. E a diferença entre o hacktivista e o hacker é que o hacktivista não danifica seu computador. E no caso do artivismo, a arte serve muitas vezes como proteção para o ativista (Diana Taylor apud, Bordin, 2015, p. 128).

É necessário destacar o termo artivismo, mesmo que não seja este o termo

desta dissertação, pela representatividade que tem no campo, aqui analizado, do fazer

político e artístico concomitantemente. O antropólogo português Paulo Raposo (2015)

faz importantes considerações ao termo, e o define

Artivismo é um neologismo conceptual ainda de instável consensualidade quer no campo das ciências sociais, quer no campo das artes. Apela a ligações, tão clássicas como prolixas e polémicas entre arte e política, e estimula os destinos potenciais da arte enquanto ato de resistência e subversão. Pode ser encontrado em intervenções sociais e políticas, produzidas por pessoas ou coletivos, através de estratégias poéticas e performativas (...). A sua natureza estética e simbólica amplifica, sensibiliza, reflete e interroga temas e situações num dado contexto histórico e social, visando a mudança ou a resistência. Artivismo consolida-se assim como causa e reivindicação social e simultaneamente como ruptura artística – nomeadamente, pela proposição de cenários, paisagens e ecologias alternativas de fruição, de participação e de criação artística (RAPOSO, 2015, p. 5).

Azevedo e Peled (2015, p. 497) usam o termo “artevismo”, uma junção de arte

social e o ativismo cultural, como “formatos híbridos de ativismo político desdobrados

em práticas interdisciplinares e estratégias artísticas que inscreveram a arte (...) em

contextos sociais e políticos específicos, como uma forma de estetizar a política e a

ação social”.

Todos estes termos, supramencionados, servem aqui para percepção das

variadas nuances existentes, as ricas possibilidades, e também as dificuldades de

6 Artivista e professor da Universidade de San Diego, EUA.

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demarcar apenas um contorno para a arte política. Ressaltamos com isso que o termo

utilizado nesta dissertação é Arte Socialmente Engajada.

Serão agora elaboradas algumas características da Arte Socialmente

Engajada, a partir da pesquisa de Azevedo e Peled (2011), que tomaram como base

estudos de Felshin (1995), Kester (2004), Bourriaud (2009) e Thompson (2012) e

podem ser resumidas a seguir. Pretende-se, no próximo capítulo, aprofundar cada

uma delas e ilustrar cada característica com trabalhos de artistas sociais.

A ASE configura-se por ser práticas com temporalidade particular; muitas

propostas valorizam o momento ao vivo, no entanto, existem trabalhos que podem

durar dias ou anos. Utilizam épocas e contextos sociais específicos; são práticas

colaborativas e dialógicas que estimulam participação entre artista e entre artista(s) e

o público; utilizam-se de estratégias informais e democratizantes de divulgação; usam

materiais baratos, reprodutíveis e impermanentes; propõem, com frequência, a

expansão de fronteiras estéticas e de experiência visuais, ampliando a perspectiva

ocularcêntrica da arte; propõem a ênfase em ideias – ou seja não são object

orientated: usam com frequência o corpo do artista como obra e elemento de

resistência assumindo elementos de risco e aproximando a arte da vida; interessam-

se por elemento de questionamento ou protesto contra padrões de comportamentos;

as práticas nem sempre seguem um roteiro fechado e ocorrem, com frequência, em

espaços variados, nem sempre aqueles conhecidos como espaços formais ou

legitimados pela arte (galerias e museus).

Ressalta-se também a pluralidade de propostas. É necessário endossar que a

ASE não possui amarras quanto ao modelo ou formato de execução para existir.

Mantem sempre forte a sua característica de promover a crítica social e legitima todas

as mais variadas formas de executá-la. A performance, por exemplo, é uma das

ferramentas das quais a ASE utiliza para provocar o seu expectador e levá-lo a

reflexão, porém a variedade de possibilidades é enorme. Outra questão importante

diz respeito a discussão que envolve o objeto (objetivo) final da arte que se pulveriza

na Arte social. Azevedo e Peled (2015) afirmam que:

Essas práticas podem ser percebidas como processo e não como resultado orientado para um objeto. É recorrente o desejo de expandir as fronteiras estéticas e a ênfase em ideias que vão além da forma física ou da definição e da experiência visuais. Também é comum o uso de materiais baratos, reprodutíveis e impermanentes, e não prevalece a preocupação central de

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dispor obras de arte ligadas ao sentimento de aquisição de um território ou de resultados pictóricos, esculturais ou estéticos que estreitam o espaço das relações. A arte que enfoca as interações humanas passa a se constituir um interstício social e político, questionando as bases de uma sociedade civil que se desenvolveu a partir da ideia de propriedade e posse de território (2015, p. 502).

Ironicamente, apesar do foco social dos seus trabalhos, a crítica inicial dos

artistas socialmente engajados estava ligada ao pouco acesso de seus projetos; uma

forma de elitismo da arte e na dificuldade de se propor arte e cultura para todos. O

elitismo dos países desenvolvidos, a elaboração de materiais artísticos de alto valor e

a localização da arte dentro dos museus, pouco frequentados pela grande massa da

população, foram pontos altamente criticados por artistas nacionais e internacionais

nos anos 1950, 1960, 1970.

A Arte Socialmente Engajada não permite apenas a existência de críticas

sociais, consegue ir além permitindo, sobretudo, uma nova relação do próprio ser

humano com as obras de arte, tirando a arte do objeto inanimado acessando o próprio

corpo como obra, e a experiência como produto final do trabalho do artista.

Yoko Ono, em breves palavras, expressa seu incomodo com a arte pela arte

em si, expressando a ausência de significado e de propósito na criação desmedida de

objetos ao invés de significados.

Artistas não estão aqui para destruir ou para criar. Criar é uma coisa tão simples e natural de se fazer quanto destruir. Todo mundo na terra tem criatividade. Até uma dona de casa pode criar um bebê. As crianças são tão criativas quanto as pessoas que a sociedade considera artistas. Artistas criativos são bons o suficiente para serem considerados crianças. Os artistas não devem criar mais objetos, o mundo está cheio de tudo o que precisa. Eu estou entediada com artistas que produzem enormes amontoados de esculturas, ocupando um grande espaço com elas e pensam que fizeram algo criativo, permitindo apenas que as pessoas aplaudam o amontoado. Isso é puro narcisismo. Por que não permitem pelo menos que as pessoas as toquem? Dinheiro e espaço são desperdiçados com projetos desse tipo quando existem pessoas morrendo de fome e pessoas que não têm espaço suficiente para dormir ou respirar (Yoko Ono apud PITHON, 2006, p. 33)

Nina Felshin (1995), em sua marcante obra intitulada “But is it art?”, mostra que

a as novas formas de engajamento artístico permitiram, através da participação, que

indivíduos comuns ganhassem voz, representatividade, visibilidade e, principalmente,

o conhecimento de que são parte de algo muito maior. A autora afirma que este

processo permitiu que questões pessoais se tornassem questões políticas, e utiliza a

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afirmação de Jeff Kelley que diz que o “processo de diálogo transforma tanto o artista

quanto o participante” (p.12).

Há uma grande mudança nas agendas artísticas e cada vez mais temas do

cotidiano e problemas sociais ganham espaço nos debates artísticos assim como nas

obras como abordam os autores do artigo Arte & Política: Tessituras do Urbano.

O movimento feminista, a nova configuração imperialista do capitalismo e os debates sobre gênero, classe e raça, apenas para citar alguns, estabeleceram, de certo modo, a agenda artística desde a década de 1970, uma vez que diversos artistas estavam envolvidos com as causas e as discussões de grupos e movimentos sociais. Este atrelamento de participação política tem pautado a produção cultural nas últimas décadas, agindo sobre as esferas local e global (ALVES; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2014, p. 29)

Ao analisar os contornos da arte política, os autores supracitados, constatam

que, comum a todas as manifestações da arte política, não importando qual temática

esteja sendo abordada, “o senso de resistência, traduzido em ações que

complementam o discurso do artista ativista” transformando a própria existência da

arte e assim não se satisfaz apenas em “ser arte, mas está imbuída de um significado

maior” (2014, p. 2014).

Toda a movimentação artística, de crítica social e política, tem uma

característica comum a qual Felshin (1995, p.10) constata ser dada pelo “auge de uma

vontade democrática de dar voz e visibilidade aos privados de direitos, e de conectar

a arte com um maior público”. Além disso, a autora também aponta as ações dos

artistas como dadas através de práticas discursivas e híbridas.

Para Felshin (1995), a arte contemporânea produzida coletivamente permitiu

um novo vigor aos impulsos estéticos, sociopolíticos e tecnológicos dos artistas nos

últimos anos no intuito de “[...] desafiar, explorar ou apagar as fronteiras e as

hierarquias que definem tradicionalmente a cultura tal e qual esta é representada pelo

poder” (p. 74).

Na obra de Nato Thompson (2012), Living as form – Social Engaged Art 1991

a 2011, é possível ver que a arte alcança as relações humanas com o cotidiano, o

vínculo entre arte e vida. Nesse sentido, a frase do artista Jeremy Deller citada por

Thompson (2012., p. 17) - “I went from an artist who make things, to an artist who

make things to happen” (eu deixo de ser um artista que faz coisas, para ser um artista

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que faz coisas acontecerem)7, corrobora com as novas concepções da arte para a

vida e não apenas a arte que cria objetos para o mercado e para a contemplação.

Outra forma de questionar o papel da arte aparece através do pensamento de Michael

Foucault também citado por Thompson (2012, p. 17) “[...] couldn’t everyone’s life

become a work of art? Why should the lamp or house be an object, but not our life?”

(Não poderia a vida de todo mundo se tornar uma obra de arte? Porquê um abajur ou

uma casa são objetos de arte, mas não a nossa vida?).

Muitos artistas desejam o entrelaçamento cada vez mais recorrente da

produção de arte com a própria existência social. Thompson (2012) apresenta em sua

obra um forte questionamento dos artistas através da busca por novas

ressignificações da vida - “what is meant by living?” (p. 21) – e, na busca por entender

o significado não da vida, mas do estar vivo, mostra que a relação artista-obra sofre

profundas mudanças das quais muitos artistas não queriam, no pós guerra fria,

produzir obras que fossem objetos, e sim que projetassem uma experiência e fossem,

em si, também um projeto artístico.

Apresar de poucos sociólogos discutirem a Arte Socialmente Engajada, a

Antropologia parece já ter despertado o interesse de críticos e estudiosos da Arte. Hal

Foster (1996) propõe um novo olhar para a intervenção do artista quando esse passa

a incorporar práticas tradicionalmente vinculadas ao campo da Ciências Sociais. Para

o crítico de arte estadunidense, são várias dimensões que justificam este interesse

mais recente da Antropologia que confere a essa ciência um status de vanguarda nas

artes.

Primeiro, Foster refere-se a Antropologia como ciência da alteridade, e

tradutora da prática artística e crítica do discurso. Foster identifica seu olhar para “um

outro cultural ou étnico” como decisório para o desenvolvimento de práticas artísticas

que assumem características interdisciplinares inerentes a Antropologia. Nessa

abordagem surge uma troca de interesse do sujeito do projeto artístico: de um sujeito

definido em termos de relação econômica (como no caso da arte política) para um

outro sujeito definido em termos de sua identidade cultural. Depois, o crítico referenda

a Antropologia como disciplina que considera a cultura como seu objeto e este campo

expandido de referências é o domínio da teoria e da prática pós-moderna, atraente

para estudos culturais em geral e também as artes. A seguir, ele destaca o caráter

7 Todas as traduções desta dissertação são livres feitas pela própria autora.

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contextual da etnografia, uma demanda que artistas e críticos atuais dividem com

outros praticantes que almejam desenvolver um trabalho de campo no dia-a-dia. Por

fim, Foster ressalta o elemento auto crítico da Antropologia que permite a reflexividade

do etnógrafo, outra dimensão ansiada pelos artistas contemporâneos.

Foster (1996) dá atenção especial as práticas de site-specific art - que têm o

local/ cultural como ponto de partida da análise artística (e antropológica) - e aborda

as tensões que surgem quando a arte tenta seguir os princípios etnográficos de

observador participante. Para ele, a reflexividade é essencial para o artista, para que

esse não passe a sofrer de um ‘excesso’ de identificação (over identification) com o

outro que venha a comprometê-lo ou aliená-lo.

No próximo capítulo serão abordados variados projetos de arte social ao redor

do mundo e como artistas utilizam de diferentes metodologias para produzir

questionamentos e experiências. Dessa forma, acredita-se que será possível

aprofundar as características aqui exploradas.

1.4 A Arte Socialmente Engajada

Foi apresentado, anteriormente, alguns movimentos artísticos que buscaram

aproximar a arte da vida cotidiana, resinificando, repensando e questionando os

sistemas vigentes. Agora a ASE será ilustrada através de ações de artistas de vários

países em diversos contextos. A primeira percepção é: falar de arte política, é falar de

conflitos sociais, é falar de incômodos e tentativas de ruptura, de formas de revolução

e luta.

O que está por trás das movimentações artísticas a exemplo do grupo 3NÓS3

e a intervenção Ensacados? Porque coletivos de arte? O que fez e o que faz com que

pessoas, muitas vezes desconhecidas, se unam por uma causa? O que move o ser

humano em determinados contextos, e não em outros? Por que sair das galerias rumo

aos espaços públicos? Porque deixar de criar apenas objetos para criar contextos?

Muitas perguntas podem ser feitas e não haverá uma só resposta, entretanto, é

possível analisar as características comuns ao engajamento artístico ao redor do

mundo.

Nina Felshin (1995) constrói importantes relações sobre o engajamento

artístico ao longo de sua obra But is it Art? e, a partir dessas relações, é possível

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compreender quais caminhos a arte tem percorrido nos últimos anos. A força e a

potência crítica que a arte exerce, frente aos diversos problemas sociais que aborda,

podem e devem ser mais exploradas.

Para começar, é preciso entender a relação do artista engajado com os

acontecimentos a sua volta e, para Felshin (1995), as transformações no fazer da arte

podem ser explicadas através do entendimento dos fatores políticos, nas quais estes

indivíduos cresceram. Trata-se de uma geração que cresceu em um momento do que

ela designa por “decade of conformity and a Cold War-derived fear of the ‘Other’”

(p.13). Para a autora foi a passividade na qual foram criados, durante a guerra fria,

que os fizeram questionadores, germinando assim, os discursos anti-guerras,

questionamentos ambientais, raciais, sexuais e liberdade entram em cena permitindo

voz aos que nunca antes a tiveram.

Felshin (1995) destaca a influência que a tecnologia, através da mídia, teve por

trás dos movimentos de ativismo político, assim como o aprendizado obtido através

do movimento dos direitos civis, onde foi constatado que a mídia era a alavanca que

movia o mundo com a manipulação em massa cada vez mais latente. A autora aponta

o termo “ativismo cultural” que Brian Wallis define por ser justamente os usos dos

meios culturais na tentativa de causar efetivas mudanças sociais. Entender a mídia e,

principalmente, utilizá-la a seu favor foi um grande ganho para artistas ativistas,

principalmente, pela importância que a mídia passaria a ter a partir dos anos 80

tornando-se “a national cultural obsession” (p.16).

Os coletivos de arte surgem da urgência de conectar a arte com a vida. Eclode,

entre a década de 1960 e 1970, o que Felshin chama de arte de performance, definida

como efêmera, interdisciplinar, hibrida e com grande potencial pela capacidade de se

conectar com seu expectador. Possui, também, a capacidade de ir além das fronteiras

da estética, oriundas da arte visual e dos recursos tradicionais do teatro.

A autora Também apresenta a arte feminista, orientada pela afirmação “the

personal is political”, formato que também se apropria das características da

performance. No entanto, assume uma posição de maior diálogo e participação com

constantes questionamentos sobre as premissas sociais e estéticas. Para Felshin, os

ativismos artísticos permitiram – não o surgimento de um novo público para a arte –

mas sim a democratização, do que antes era extremamente excludente e inacessível,

para a maior parte da população.

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Apesar de seu surgimento ter ocorrido no fim dos anos 1960 e início dos anos

1970, a autora afirma que, apenas a partir de 1980 é que de fato o ativismo artístico

se tornou efetivamente forte. Justifica-se, as dificuldades iniciais de consolidação

deste formato artístico, as grandes forças conservadoras, tanto no mundo político

quanto no próprio meio da arte. Importante lembrar que os movimentos ocorreram por

ambos ativistas de esquerda e de direita. Não foram movimentos restritos e sim

abrangentes de modo geral pelas temáticas que abordaram, seja por defender ou

atacar estas temáticas.

A aceitação institucional da arte política tem seu ápice em 1993, quando o

Whitney Museum of American Art dedica todo seu prestígio a Bienal Exhibition para

todas as formas de arte socialmente engajada (FELSHIN, 1995, p. 25).

É imprescindível pensar as relações de poder e as configurações que este

poder exerce no campo da arte. O coletivo Group Material8 apresenta três importantes

questionamentos sobre o conceitualismo da década de 1970, assim como, o pós-

modernismo dos anos 1980: “O que as políticas informam sobre as compreensões da

arte e da cultura? Quais interesse são atendidos por estas convenções culturais?

Como a cultura é criada, e para quem ela é criada?” (MATERIAL GROUP, apud

FELSHIN, 1995, p. 26). Felshin resume o que estaria no centro das ambições dos

artistas socialmente engajados

Para os ativistas, não se trata de uma simples questão de adotar formas de arte mais inclusivas ou democráticas de estratégias estéticas, ou de abranger questões sociais e políticas em crítica as representações no mundo da arte. Pelo contrário, os artistas ativistas criaram uma forma de cultura que adapta e aciona elementos de diversas formas de prática de crítica estética, unindo os organicamente através dos elementos de ativismo e organizações comunitárias. Não contentes em simplesmente fazer as perguntas, estes artistas engajaram-se em ativar um processo ativo de representação, buscando principalmente empoderar indivíduos e comunidades e posteriormente estimular mudanças sociais (1995, p. 26).

Apesar da ousada tentativa, a autora também questiona se houve ou não

sucesso, mas principalmente, questiona se é possível medir o sucesso ou o fracasso

proveniente de uma tentativa de estimular diálogos, questionamentos, aumento de

8 Group Material foi um coletivo de arte atuante, em Nova York – EUA, ao longo dos anos 1989 à 1996,

composto majoritariamente por Julie Ault, Tim Rollins e Mundy Mc Loughling, e alguns outros no decorrer de sua existência como coletivo. Coletivo questionou questões políticas e culturais envolvendo a AIDS, o próprio campo da arte e outros assuntos relativos.

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consciência e empoderamento coletivo. Para a autora é importante que os artistas

estabeleçam formas de mensurar as relações entre os projetos artísticos, assim como

as comunidades envolvidas, visando compreender as possíveis mudanças que os

projetos artísticos provocam a longo prazo, algo que, vem de encontro com o pensar

metodológico que a Sociologia poderia agregar ao fazer artístico, pensamento que

também norteia esta dissertação.

Felshin questiona também qual seria o futuro do ativismo artístico, e afirma que,

a única possibilidade que existe é a de especular que ele estará ligado a questões das

arenas políticas, uma vez que, a sociedade continua com suas contradições sociais

polarizadas quanto aos que são ouvidos e os que são silenciados, os que possuem

poder e os que não possuem.

Foi apresentado algumas das características principais da ASE que serão, a

seguir, detalhadas para melhor compreensão. Resumidamente estas características

são: diferentes temporalidades; contextos sociais; a colaboração; estratégias

informais e democráticas; expansão de fronteiras estéticas; a ênfase em ideias; o uso

do corpo do artista; protesto; variados espaços. Importa ressaltar que em muitos casos

uma mesma obra possui várias das diferentes características apresentadas.

1.4.1 Gran Fury

No final dos anos 1980, artistas americanos residentes em San Diego,

conseguem atrair grande visibilidade aos seus trabalhos que ressaltavam a ausência

de reconhecimento e dos direitos dos imigrantes ilegais, assim como a violência

sofrida pelos mesmos, principalmente pelas mulheres. Para Robert L. Pincus (1995)

o sucesso quanto a repercussão do movimento se dá pela elaboração de obras em

espaço público, afirmando que, se tivessem sido criadas para as galerias,

rapidamente seriam esquecidas. Para o autor os artistas, David Avalos, Louis Hock e

Elizabeth Sisco, sabiam disso quando criam o pôster intitulado Welcome to America’s

Finest Tourist Plantation e colocaram como um anúncio em cem ônibus ao longo de

um mês.

Durante uma entrevista, em 1988, os artistas declararam que a intenção da

obra era reinterpretar o espaço do comercial que alcança grande parte da população,

e com isso, provocar reflexões sobre a realidade civil e os problemas dos imigrantes.

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A ação foi feita no mesmo momento em que a cidade de San Diego sediava os jogos

do Super Bowl, um dos eventos mais tradicionais dos Estados Unidos, transmitido por

todos os meios de comunicação. O coletivo criticou a intensão dos governantes em

esconder e mascarar os problemas da cidade, no entanto, eles viram a oportunidade

de transferir os holofotes dos jogos para os problemas civis com suas intervenções.

De início os cartazes ocupavam apenas o espaço de propaganda comum nos

ônibus. Não era possível prever como seria a repercussão que a obra provocaria e as

discussões que geraria, no entanto, sabiam que os rádios, jornais e televisões

estavam voltados para San Diego e, de alguma forma, os cartazes seriam vistos.

FIGURA 6 – Welcome to American’s Finest Tourist Plantation

Fonte: http://visarts.ucsd.edu/faculty/louis-hock acesso em 13 out. 2017.

FIGURA 7 – Welcome to American’s Finest Turist Plantation – Ônibus

Fonte: http://visarts.ucsd.edu/faculty/louis-hock acesso em 13 out. 2017.

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Os ônibus circulavam pela cidade com o anúncio, da mesma forma que

circulavam com qualquer outra propaganda, cumprindo o objetivo do coletivo de arte

sendo “advertisement for itself9” (AVALO, apud PINCUS, 1995, p. 33). Inicialmente

foram colocados 100 pôsteres, no entanto, se tornaram milhares de reproduções

quando alcançaram as capas de diversos jornais americanos. Apesar da tentativa de

tirar os pôsteres de circulação, a repercussão foi imediata. A ação provocou muitos

diálogos e debates, em coberturas locais e nacionais, sobre os problemas referentes

aos imigrantes e da economia local da cidade de San Diego.

David Avalos, um dos criadores do projeto, faz algumas importantes

observações sobre o objetivo de seu trabalho, que corrobora com um fator importante

para a ASE: olhar além do óbvio; dizer o não dito; ressaltar o que, por ser tão comum,

não é enxergado caso não haja uma intervenção.

Meu interesse é olhar o sistema, quando, metaforicamente, ele é um cachorro que morde o próprio rabo, quando são forçados a se auto confrontarem. Meu trabalho olha para os pontos cegos criados quando o sistema olha para si mesmo (AVALO, apud PINCUS, 1995, p. 36)

FIGURA 8 – Welcome to American’s Finest Tourist Plantation – Jornais

Fonte: http://oac.cdlib.org/ark:/13030/hb4x0nb5q6/?brand=oac4 acesso em 13 out. 2017.

Pincus (1995) afirma que nenhum outro grupo de arte conseguiu tamanho

sucesso quanto a repercussão e a provocação de debates como David Avalo, Luis

Hock e Elizabeth Sisco conseguiram com seus pôsteres. Os maiores e mais

importantes jornais do pais, os programas de televisão, assim como programas de

9 Uma propaganda por si mesmo.

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rádio, debateram sobre o assunto por vários dias, não só sobre o trabalho dos artistas,

mas principalmente, sobre o problema social por eles exposto.

No segundo capítulo da obra But Is It Art?, o autor Richard Mayer (1995) aborda

a luta contra a epidemia da AIDS e como os artistas se mobilizaram em prol de

proporcionar diálogos e debates contra o preconceito existente. Neste engajamento

artístico se destaca o grupo Gran Fury, que se auto descreve como “um bando de

indivíduos unidos pela raiva e dedicados a explorar o poder da arte na luta pelo fim da

crise da AIDS” (MAYER, 1995, p. 51).

Nós não precisamos de um renascimento cultural; nós precisamos de uma ativa prática de participação cultural na luta contra a AIDS. Nós não precisamos transcender a epidemia; nós precisamos acabar com ela (DOUGLAS CRIMP, apud MAYER 1995, p. 51).

O trabalho intitulado Kissing Doesn’t Kill contava com pôsteres com três casais

inter-raciais vestidos com cores fortes em um contraste monocromático. A primeira

percepção é de um comercial de roupa como outro qualquer, no entanto, dois dos 3

casais dos pôsteres são do mesmo sexo com o slogan “Kissing Doesn’t Kill: Greed

and Indifference Do10” contendo ainda, em letras menores “Corporate Greed,

Government Inaction, and Public Indifference Make AIDS a Political Crisis11”.

FIGURA 9 – Kissing Doesn’t Kill: Greed And Indifference Do

Fonte: https://br.pinterest.com/pin/521010250623752308/ acesso em 14 out. 2017.

10 Beijo não mata: ganância e indiferença sim. 11 A ganância corporativa, a inércia do governo e a indiferença popular tornaram a AIDS uma crise política.

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Da mesma forma, como no trabalho anterior em San Diego, o coletivo Gran

Fury também utiliza de espaços públicos para os pôsteres produzidos. Espaços como

estações de metrô e ônibus foram escolhidos pelo grupo e também causaram forte

impacto.

A grande contribuição do coletivo Gran Fury foi debater os preconceitos e as

desinformações que cercavam a epidemia da AIDS. Segundo Mayer (1995), o grupo

conseguiu, com as imagens e as cores que escolheram, seduzir e atrair a atenção da

população. Um dos membros do Gran Fury, Loring McAlpin, compara a luta do coletivo

para atrair a atenção das pessoas, com sendo igual a luta da coca-cola pela atenção

do público. Além dos milhares de pôsteres também produziram vídeos que foram

transmitidos na MTV europeia e americana.

Avram Finkelstein, um dos membros do Gran Fury, associa o sucesso do

coletivo à abertura de informações políticas que o grupo conseguiu transmitir as

pessoas em locais que elas jamais encontrariam tais informações. Afirmava ainda que

receber um panfleto informativo, quando a pessoa não está receptiva a tais

informações, não permitiria a conscientização, no entanto, para Kinkelstein, quando

se está andando pela rua olhando para propagandas diversas há uma grande

possibilidade de ser tocado e provocado pela informação apresentada.

Gran Fury produziu vários trabalhos abordando a crise da AIDS. Outro projeto

de grande repercussão, intitulado The Government Has Blood on Its Hands12, possuía

este título e ainda a informação One AIDS Death Every Half Hour13, culpando a inércia

do governo por tantas mortes em decorrência da doença. O coletivo não hesitava em

usar técnicas de designers em suas elaborações artísticas.

A obra combinava informações, uma vez que a mão possui cinco dedos, uma

analogia a cartazes eleitorais alemães durante as eleições de 1928 com os dizeres “A

Hand Has 5 Fingers. With 5 You Can Repel the Enimy! Vote 514”. A campanha eleitoral

carregava dois significados devido ao número cinco, era o dia das eleições e, também,

a ordem do partido comunista na cédula de votos. Gran Fury trocou a mão de um

trabalhador pelas marcas de uma mão ensanguentada, além disso, o grupo marcava

com as próprias mãos locais próximos aos cartazes expostos pela cidade.

12 O governo tem sangue em suas mãos. 13 Um morte por AIDS a cada meia hora. 14 Uma mão tem 5 dedos. Com 5 você consegue repelir o inimigo! Vote 5.

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FIGURA 10 – The Government Has Blood On Its Hands

Fonte: https://aep.lib.rochester.edu/node/46461 acesso em 14 out. 2017.

Não só o governo foi questionado pelo coletivo, mas também instituições

religiosas. A Igreja Católica manifestou-se contrária ao uso da camisinha, alegando

que a moralidade era o remédio para a AIDS, de forma que, tornou-se um alvo de

questionamento do Gran Fury, respondendo a alegação do Papa com dois cartazes

expostos na Bienal de Arte de Veneza intitulados The Pope and The Penis. Um dos

cartazes continha as informações sobre o problema do sexismo e a morte das

mulheres com a imagem de um pênis. No outro cartaz o Papa usando a mitra e suas

frases proferidas, sobre o uso da camisinha e a moralidade cristã, colocado ao lado

da resposta do coletivo ao posicionamento da Igreja. Uma obra que transcendeu os

limites do aceitável e, com repercussão internacional, ganhou as capas dos mais

importantes jornais do mundo.

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FIGURA 11 – The Pope and The Penis

Fonte: http://lendavant.com/es-pot-censurar-al-segle-xxi/ acesso em 14 out. 2017.

O coletivo Gran Fury utilizou em suas poéticas várias das possibilidades da

ASE, as que mais se destacam são o uso de espaços incomuns a arte, como o espaço

destinado a propagandas em ônibus. Ousou no uso do contexto social, a crise da

AIDS, assim como na temporalidade, uma vez que os cartazes pregados pelas ruas

poderiam ser retirados a qualquer momento, ou deixados lá por meses.

1.4.2 Guerrilla Girls

Elizabeth Hess (1995) apresenta o coletivo Guerrilla Girls, coletivo feminista

composto por artistas que utilizavam mascaras de macacos e usavam nomes de

artistas mulheres, já falecidas, como: Frida Kahlo, Romaine Brooks, Käthe Kollwitz,

Meta Fuller ou Gertrude Stein em suas intervenções.

Durante uma conferência de arte, no Montgomery Museum of Fine Arts, a

autora relata a atuação do coletivo, que inicia sua apresentação com a artista que se

apresentava com o nome de Frida Kahlo dizendo “You know, the funny thing is if I took

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of this mask none of you would listen to me. I have to wear a hot heavy gorila mask on

this stage to get your attention15” .Sua colega de palco, apresentada como Romaine

Brooks, complementa “not to mention your respect16” (HESS, 1995, p. 309).

O grupo feminista criticava o tratamento desigual recebido pelas mulheres no

campo da arte. As críticas tocavam a falta de acesso para exposições em museus e

galerias, a diferenciação nos preços das obras, e a própria figura da mulher ao longo

da história da arte. O coletivo não parou por aí, também expandiu seu discurso para

os direitos civis no sul dos Estados Unidos.

Tudo teve início, afirma Hess (1995), em 1985, quando o Museu de Arte

Moderna inaugura uma nova exposição de pinturas e esculturas, que desencadeou

uma série de questionamentos, uma vez que, dos 169 artistas selecionados apenas

13 eram mulheres; além disso, 100 % deles eram caucasianas. As artistasficaram

furiosas, porém, não estavam organizada para fazer algo efetivo a respeito.

O grupo Guerrilla Girls surge em Nova York no mesmo ano da exposição e

baseou sua decisão quanto ao anonimato, por julgar ser mais importante a mensagem

que seria transmitida do que a personalidade por traz de sua mensagem. Esse formato

de anonimato fortaleceu também a crítica feita ao foco dado as personalidades das

mulheres artistas na década de 1970 em detrimento das suas criações.

Um de seus primeiros pôsteres critica a ausência de mulheres nos grandes

museus de Nova Iorque, trabalho que ganhou grande repercussão e que está sendo

apresentado em mostra desse ano de 2017, no Museu de Arte de São Paulo, na

capital paulista

O forte questionamento do coletivo era justamente o lugar da mulher no campo

da arte. Postam inúmeros pôsteres pela cidade, conseguem grande repercussão,

atuando até hoje contra o sexismo e a depreciação da mulher na arte.

15 Vocês sabem, o engraçado é que se eu tirar essa máscara nenhum de vocês me escutaria. Eu tenho que usar uma máscara quente de gorila neste palco para conseguir a atenção de vocês. 16 Sem mencionar o respeito.

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FIGURA 12 – Street Poster

Fonte: https://walkerart.org/magazine/feminism-statistics-guerrilla-girls acesso em 22 out. 2017.

O coletivo afirma que suas ações são apenas arranhões na superfície do

sexismo dentro do campo da arte, sendo necessário continuar atuando, pois muitos

ainda não sabem como o sexismo funciona e como ele deve ser combatido. O coletivo

percorre inúmeros países e cidades, e até hoje não tem a menor intenção de se

aposentar.

Quando perguntado sobre o futuro, a resposta recebida foi “ ‘Why should we

stop?’ asks Kahlo. ‘The phone is still ringing’ “. Por que deveríamos parar? Disse

Kahlo. O telefone continua tocando (HESS, 1995, p. 332).

FIGURA 13 – Guerrilla Girls (1984)

Fonte: https://walkerart.org/magazine/feminism-statistics-guerrilla-girls acesso em 22 out. 2017.

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FIGURA 14 – Guerrilla Girls (2017)

Fonte:http://casadamaejoanna.com/2017/10/03/guerrilla-girls-a-utilidade-publica-de-mostrar-as-

desigualdades/ acesso 04 fev. 2018.

O grupo Guerrilla Girls engajou-se na ressignificação da mulher no campo da

arte. Atua conscientizando e questionando o espaço por elas ocupados, e para elas

destinado. Utilizam o contexto social do sexismo na arte, a temporalidade de seu

engajamento vivo a quase três décadas, os meios democráticos exposição de seus

pôsteres como estratégias de protesto e a necessidade de abrir espaço igualitário na

arte para mulheres e negros.

1.4.3 Mierle Laderman Ukeles

A artista feminista, Mierle Laderman Ukles, engajou-se em tarefas rotineiras

buscando combater o sexismo e a banalização de importantes tarefas como a

manutenção da limpeza pública ou privada. Em 1996 a artista escreve O Manifesto da

Arte Manutenção no qual critica a divisão do trabalho, os espaços públicos e privados,

o museu, a arte e a manutenção dos mesmos.

Renata Corrêa Job transcreve em sua obra o Manifesto da Arte Manutenção e

a partir dele podemos entender o posicionamento da artista e suas performances.

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“Sou uma artista. Sou uma mulher. Sou uma esposa. Sou uma mãe. (Ordem aleatória)

Eu lavo, limpo, cozinho, renovo, apoio, preservo etc., exaustivamente, além disso (até agora separadamente) “faço” arte.

Agora, vou simplesmente fazer essas coisas de manutenção diária e trazê-las a consciência/percepção, apresentando-as, como Arte.

Vou viver no museu e fazer o que habitualmente faço em casa com meu marido e meu bebê na duração da exposição.

(Certo? Ou se você não me quer por perto à noite eu venho a cada dia) E fazer todas essas coisas como atividade da arte pública: vou varrer e encerar o chão, tirar a poeira, lavar as paredes (cozinhar) convidar pessoas para comer, fazer aglomerações e disposições dos resíduos funcionais. A área da exposição pode parecer “vazia” de arte, mas sua manutenção será toda feita às vistas do público. Meu trabalhar será o trabalho” (UKELES, apud JOB, 2011, p. 20-21).

Um importante trabalho de Ukeles se chama Touch Sanitation (1977-1988),

performance com duração de onze meses em que a artista convivia com os garis da

cidade de Nova Iorque. Acompanhou por meses os trabalhadores e diariamente

agradecia pelo trabalho desenvolvido por eles de manter a cidade limpa.

A autora afirma em diálogo com os trabalhadores “Não estou aqui para ver,

para estudar, para analisar ou para julgar você. Estou aqui para ficar com você: todos

os turnos, todas as estações do ano, para percorrer toda a cidade com você”

(UKELES, apud BERTUCCI, 2015, p. 20).

Ukeles com suas performances da limpeza diária de um museu comparada

com a limpeza diária de uma residência, indo até a limpeza diária de uma cidade,

conquista notoriedade por criticar o papel da mulher na sociedade e também o papel

da manutenção do que já existe, sendo este um trabalho ao qual chama a atenção. A

manutenção de uma casa, de um museu e de uma cidade é uma tarefa importante,

embora, passe despercebida na rotina diária. Mierle se destaca no campo da

performance pela temporalidade e pelo local em que atua, ora pelo tempo de uma

exposição em um museu limpando diariamente, ora no espaço público ao acompanhar

por meses os trabalhadores.

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FIGURA 15 – Touch Sanitation

Fonte:https://www.nytimes.com/2016/09/22/arts/design/mierle-laderman-ukeles-new-york-city-

sanitation-department.html acesso em 23 de out. 2017.

Existem muitos artistas que poderiam ser citados nessa dissertação nas mais

diversas formas de atuação, temáticas, temporalidades, espaços e outros. Foi

ressaltado alguns de relevância particular ao entendimento proposto, e que,

conseguiram abordar as características principais da Arte Socialmente Engajada,

mencionadas anteriormente.

No próximo capítulo será revisitada a Ditadura Militar Brasileira e como os

artistas atuaram politicamente durante este momento de forte censura no eixo Rio de

Janeiro – São Paulo. Será abordado o Espírito Santo, estado no qual essa pesquisa

foi realizada e que ainda tem pouco estudos que relacionam a arte e a ditadura e,

também, as exposições de Rafael Pagatini, artista radicado no Espírito Santo que

abordou a ditadura militar em suas poéticas.

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CAPÍTULO 2

A DITADURA MILITAR BRASILEIRA E OS PERCURSOS DA ARTE

SOCIALMENTE ENGAJADA

FIGURA 16: Hélio Oiticica – Seja Marginal, seja herói (1968)

Fonte: http://memoriasdaditadura.org.br/obras/seja-marginal-seja-heroi-1968-de-helio-

oiticica/index.html acesso em 04 de nov. 2017.

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Não existe arte pela arte. O artista é um ser social e só o fato de o ser é um ato político.

Paulo Bruscky

O objetivo deste capítulo é fazer uma breve reflexão sobre a história da

política no Brasil, entrelaçando o contexto histórico do campo da Arte com o cenário

político brasileiro. A partir disso, compreender como a arte se configurou no Brasil

durante a Ditadura Militar e seus atuais desdobramentos. A Ditadura é, possivelmente,

o período mais estudado da história recente do Brasil e o objetivo aqui não é trazer

uma nova análise política, e sim compreender como este momento influenciou as

produções artísticas, e para isso contextualizar o leitor desta obra, seja ele

familiarizado ou não com o histórico político brasileiro.

No campo das Ciências Sociais, a Ditadura tem sido um tema bastante

pesquisado. No entanto, com surpresa e indignação, a atual crise na política brasileira

tem aflorado um perverso saudosismo romântico pelo retorno dos militares ao poder.

Percebe-se que ainda há espaço e, principalmente, a necessidade de estudar e

relembrar as memórias desse obscuro período, que ainda lutam para sobreviver

apesar das fortes tentativas de silenciá-las, provenientes do governo e da mídia.

Isto posto, o ponto de partida para a análise bibliográfica da Ditadura Militar

Brasileira é o princípio de que o ditador não existe sem que todo um sistema político

o respalde em suas ações. Falsa é a ideia de que um ditador se opõe a um presidente

na concepção de que o presidente, por ser democraticamente eleito, representa os

interesses do povo e o ditador representa apenas os seus interesses individuais, na

verdade, esta é uma falsa crença que ainda povoa o imaginário popular. O ditador

representa os interesses de uma classe econômica poderosa, não obedece nenhuma

regra política e sim puramente os interesses privados da classe que o financia e apoia.

Spindel (1984) em sua obra O que são ditaduras, aponta o princípio

fundamental para compreender o que é de fato a representação do ditador:

Todo regime político responde sempre aos interesses de uma determinada classe social; o Estado é a instituição que permite a uma classe exercer seu poder sobre as demais classes da sociedade. Por esse motivo, o poder do ditador não emana de sua própria vontade e nem é irrestrito; na verdade, ele emana de uma determinada classe social e só é irrestrito dentro dos interesses dessa classe social da qual ele é o representante. Nada mais falso do que afirmar que a ditadura é o ditador (SPINDEL, 1984, p. 8).

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No Brasil, com a proclamação da República, implanta-se um sistema

federativo oligárquico. A democracia, aqui instalada, foi sempre uma democracia das

elites sendo amplamente manobrada para seu próprio controle e para exercício de

seu interesse, prova disso é o voto não secreto facilmente administrado para a

manutenção desta classe no poder.

Spindel (1984, p.34) afirma que no Brasil a primeira versão de democracia

não passava de “um arremedo de democracia, de um regime fundado no autoritarismo

e revestido com a máscara democrática” mantendo sempre as características de um

regime opressor, com violenta repressão aos movimentos da classe média urbana.

Notoriamente não é diferente da “democracia” que existe atualmente, visto a forte

repressão nos movimentos de rua iniciados no ano de 2013 até os dias atuais.

No histórico brasileiro houve o período de 1945 a 1964, conhecido como

período democrático, regido pela constituição de 1946, contando com itens legais

criados durante a ditadura de Getúlio Vargas. É necessário contextualizar que, o Brasil

“democrático” deste período, tinha ampla restrição quanto ao direito ao voto. Era

preciso ser alfabetizado para exercer esse direito, no entanto, a maioria da população

era analfabeta. Chiavenato (1994), em sua obra O Golpe de 64 e a Ditadura Militar,

aponta a disparidade da população total de 80 milhões de habitantes, versus a

população votante composta apenas por 15 milhões de eleitores.

A classe dominante possuía alto controle sobre a “democracia” brasileira e

não aceitaria perder seu poder e controle. Isto posto, as políticas reformistas

propostas por João Goulart, as quais abrangiam a reforma agrária, reforma eleitoral,

reforma administrativa e outras, eram vistas como políticas de risco para a classe

dominante e precisavam ser freadas a todo custo pois, se fossem de fato implantadas,

o poder dessa classe sofreria fortes abalos.

Chiavenato também ressalta que para entender o que foi o golpe de 1964 é

importante entender que este golpe não foi, de forma alguma, um tipo de “revolução”

a qual ele define por ser “a ruptura radical da ordem estabelecida” (1994, p. 6). O

golpe de 64 foi uma ferramenta para a manutenção da ordem vigente, uma forma

encontrada para permitir o processo ao qual ele chama de “nada acontecer”.

João Goulart, afirma Chiavenato, não pretendia fazer nenhuma espécie de

revolução, desejava reformas, mas não revolução. Sua própria personalidade era a

de um conciliador nato, um rico latifundiário criador de gado com raízes sólidas na

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classe social a qual pertencia. Assim sendo, por mais que possa parecer que suas

políticas fossem radicais, na verdade as diretrizes de Goulart provavelmente seriam

implantadas de forma suave visando, nada além, de uma melhoria na qualidade de

vida das classes menos abastadas, jamais uma reforma estrutural na economia e

políticas brasileiras.

O processo de “nada acontecer” sempre é traumático, porque trava artificialmente a evolução política. Exige vingança, punição, violência. Em alguns casos, os golpes políticos são contra-revolucionários. Nem essa “honra” tivemos no Brasil. Não havia qualquer processo revolucionário em andamento – o governo deposto pretendia apenas “reformar as instituições”. Com muita boa vontade, pode se dizer que houve no Brasil uma “contra-revolução preventiva” (CHIAVENATO, 1994, p. 7).

O caráter não revolucionário de João Goulart foi o que facilitou a sua queda

do poder. Na eminência do golpe ele manteve-se confiante e não tomou nenhuma

medida para um contra-golpe mesmo tendo consciência de toda a movimentação que

acontecia nos bastidores do poder. É mister destacar que, apesar desse

comportamento visto como passivo, houveram conspirações de ambas as partes e

Goulart também intentou contra o poder exercido por alguns governadores, sendo

estes Ademar de Barros, Carlos Lacerda e Miguel Arraes (CHIAVENATO, 1994).

Corroborando com as afirmações deste mesmo autor, Spindel (1984) endossa

que o regime autoritário era, de certa forma, apenas a continuidade do regime antigo,

porém sem o disfarce da máscara democrática e com o objetivo de impedir as

reformas desejadas por Goulart mantendo a população com pouco acesso a

informação, pouca ou rara participação política e, por tanto, facilmente governável e

manipulável.

Quando o governo é assumido por um poder ditatorial todo o sistema político

sofre suas consequências, nada lhe escapa. São eliminadas todas as instituições

assumidas como perigosas a ordem social, econômica e política. Para isso, em muitos

casos de autoritarismo, elimina-se até mesmo os dirigentes e políticos do regime

anterior. A ditadura cumpre sua função essencial: eliminar qualquer tipo ou forma de

oposição, sobrevivendo apenas, as oposições formais que não ameace em nada o

seu poder e hegemonia.

No decorrer de uma ditadura, ausência de oposição, gera na população uma

profunda apatia pelo político, o que explica também nos dias de hoje, o grande

crescimento de candidatos eleitos provenientes de programas de televisão,

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humoristas e empresários com o discurso do “não sou político” que se torna cada vez

mais popular, embora o Brasil em que esta dissertação é escrita seja “democrático”.

Ao lado da utilização em grande escala da propaganda de massas, as ditaduras lançam frequentemente mão de um outro argumento bastante convincente: a utilização generosa dos aparelhos de repressão. Os seguimentos da população que não se rendem a propaganda “excelência” do regime encontram poucos meios de expressar seu descontentamento (dada a censura dos meios de comunicação) e chocam-se com os argumentos do regime como, por exemplo, as prisões arbitrárias, os sequestros, as torturas e os assassinatos (SPINDEL, 1984, p. 9).

O principal pilar do poder da ditadura vem do apoio da polícia, do exército, do

judiciário e da burocracia. A manutenção do seu poder é exercida através do controle

total sobre os meios de informação onde nada lhe escapa: os jornais, o teatro, a

música, o cinema e a televisão. Todos os meios de comunicação são fortemente

controlados para que apenas as informações que o governo não considere de “risco”

chegue ao público. Utilizando da desinformação e da repressão controlam a

população e a mantem sobre uma forma de alienação constante, haja visto que, as

propagandas do governo substituem a verdade da situação real do pais, também

utilizam de constante violência resultando em medo e alienação (SPINDEL, 1984).

Durante o regime militar aproximadamente cinquenta mil pessoas foram

presas no Brasil, mais de quatrocentas foram mortas ou desapareceram. Estes foram

produzidos pelas famílias das vítimas apresentados pelo Dossiê ditadura: mortos e

desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985).

Um golpe militar não é constituído da noite para o dia; ele é decorrente de

uma série de condições históricas e de uma trama muito mais ampla do que fica de

fato explicito ao conhecimento da população. O golpe militar de 64 não foi diferente.

Teve sua articulação iniciada anos antes, através de discursos que impunham o medo

do comunismo a população, mas principalmente, lançavam o medo da classe média

de perder seus privilégios.

É necessário lembrar que o pavor com que a classe média via o crescente

ganho de direitos dos proletariados não era, de certa forma, infundado. Os operários

brasileiros dos anos 1960 eram, à aproximadamente 70 anos, escravos, uma vez que

a escravidão foi “finalizada” em 1888. O medo do aumento de perderem ainda mais

privilégios moldava o comportamento da elite brasileira.

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Não foi a primeira vez, na história do Brasil, que o medo do comunismo foi

usado para manutenção de interesses de uma pequena parcela privilegiada da

população. O anticomunismo não surge apenas anos antes do golpe de 1964, ele já

era um velho conhecido. De acordo com Fagundes (2014), o anticomunismo abrangeu

escala internacional após a Revolução Russa. No Brasil, o medo é recorrente com os

acontecimentos do início do século XX e ao longo dele, especificamente, os anos de

1935-1937 com a instalação do estado ditatorial conhecido como Estado Novo, ou

Terceira República Brasileira, fundada por Getúlio Vargas. Posteriormente o mesmo

medo permitindo a instauração da Ditadura Militar de 1964.

Todo enredo político de 1964 não é muito diferente do recente cenário político

de 2016, com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, e as “reformas” políticas

sendo implantadas no ano de 2017. O Brasil de 1937 – Era Vargas; de 1964 – Ditadura

Militar; de 1985 – Tancredo/Sarney; de 2016 – Impeachment, é o retrato do país

dominado por uma minoria que não se acanha em fazer o que for possível para

continuar no poder. São todos momentos marcantes na história e semelhantes na

clara intenção de barrar mudanças (que beneficiem a população), no entanto,

mudanças que privilegiem o poder econômico da elite, como a reforma da previdência

proposta por Michel Temer, recebem apoio por muitos lados do país. A máxima

continua sendo: tudo novo, de novo.

Neste sentido, uma análise mais apurada do que foi o governo de João

Goulart, mostra apenas que alguns interesses da classe dominante estavam

ameaçados, mas a elite, através de muita manipulação midiática, conseguiu infundir

medo na classe média e, principalmente, conseguiu vender suas ideias como ideias

que defendiam o interesse geral da sociedade como um todo.

O sentimento de medo, alimentado pela mídia e essa por sua vez financiada

por grandes empresas internacionais e pelos Estados Unidos, permitiu o apoio de

grande parte da população ao golpe. Não parou por ai. Líderes religiosos também se

manifestaram abertamente, inclusive afirmando se tratar de uma providência divina

no manifesto escrito pelos bispos, divulgado na data de 29 de maio de 1964 na

Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros.

O contexto econômico do Brasil mostra o grande interesse dos Estados

Unidos na alternância do governo. A não aprovação do presidente João Goulart fica

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expressa quando exposto os números dos empréstimos cedidos pelo FMI antes do

governo de Goulart, durante seu governo e o governo militar após o golpe.

Entre 1953 e 1961, o Banco Mundial emprestou ao Brasil cerca de 16,6 milhões de dólares anualmente totalizando 149,5 milhões. No governo Goulart, entre 1962 e 1963 não houve sequer um empréstimo. Depois desse bloqueio, entre 1964 e 1977, o Banco Mundial emprestou ao regime militar 2,96 bilhões de dólares, o que representa uma média de 211,6 milhões por ano. O FMI, o Banco Mundial e os norte-americanos discursavam em favor da democracia, mas os dólares só eram dados as ditaduras (CHIAVENATO, 1994, p. 50).

A relação política e econômica brasileira não passava despercebida frente

aos interesses estadunidenses e internacionais como um todo. Em um mundo cada

vez mais globalizado, o que acontece em território nacional não está restrito apenas

aos interesses locais, mas também internacionais.

Entender o momento político brasileiro permitirá entender como a arte se

configurou em meio a repressão, a violência e a forte censura. Ressalta-se que, em

outros países, os artistas estavam politicamente engajados com as mais variadas

temáticas, onde o contexto social aparece fortemente nas poéticas elaboradas.

É importante entender que a ditadura não foi percebida por todos os

brasileiros da mesma forma. As consequências econômicas e políticas não afetaram

a vida cotidiana de todo cidadão do país, talvez, pela grande dimensão regional

brasileira, ou mesmo pela falta de acesso as informações. A percepção do que foi a

ditadura possivelmente será singular a cada regiões pesquisada como Sul, Sudeste,

Centro-Oeste, Norte e Nordeste, assim também se for estudada a níveis mais

específicos se considerado cada realidade estadual. Através desse pensamento o

Espírito Santo assume importância nesta pesquisa. Saindo do eixo Rio – São Paulo,

busca-se entender melhor o que aconteceu neste estado durante o regime ditatorial.

2.1 O Espírito Santo e a Ditadura Militar

Antes de trabalhar a relação da ASE e a ditadura no Espírito Santo é

necessário entender qual era a situação da arte, da economia e da política regional.

O objetivo deste tópico não é o aprofundamento de cada uma das categorias citadas,

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mas sim o entrelaçamento delas de forma a entender como se configurava a arte

neste contexto no estado.

Almerinda da Silva Lopes (2012) analisa as artes plásticas no estado do

Espírito Santo, dos anos 1940 até os anos de 1960, com relevantes informações para

entender o caminhar da arte, dentro do contexto político e econômico em que a

ditadura foi instaurada.

Toda análise, apresentada pela autora, inicia com dados do recenseamento

de 1940 que apontou uma população composta por pouco mais de 750 mil pessoas,

o que já tornava o estado diferente dos demais estados da região Sudeste pela

quantidade populacional inferior, justificado pela falta de empregos. A economia

predominante era a agricultura, principalmente a produção de café em pequenas e

médias propriedades. Contrariando os demais estados cresciam com a migração dos

trabalhadores do campo em busca de empregos nas fábricas, o Espírito Santo

mantinha o mesmo sistema de produção de capital do século anterior, justificando

assim a população predominantemente rural.

Lopes (2012) aponta que, todo o sistema político e econômico do estado,

funcionava em prol dos interesses da elite. A elite era composta, predominantemente,

por agroexportadores engajados em proteger seus interesses oportunistas e

conservadores, desta forma, a relação da estagnação econômica e a manutenção de

uma aristocracia rural estavam diretamente relacionadas. Essa relação não seria

diferente no campo da arte.

Para salvaguardar o seu status, as oligarquias mantinham a arte como algo restrito e de seu domínio exclusivo, adquirindo e validando produtos estéticos de formulação acadêmica. Por essa mesma razão os representantes das elites não investiam em políticas públicas voltadas para a criação de um sistema artístico local, que possibilitasse o acesso das classes populares aos bens culturais, o que confirma a ideia de que a cultura envolve sempre relação de poder (LOPES, 2012, p. 17).

Ao ser comparado com os demais estados da região Sudeste, a mais

desenvolvida do país, os Espírito Santo permanecia a margem das propostas de

progresso econômico durante o governo de Getúlio Vargas. Resistia aos

investimentos industriais e mantinha-se firme a sua estrutura mercantil-cafeeira, de

forma que, seu desenvolvimento e modernização, não ocorria igualmente como nos

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estados vizinhos, o que de forma alguma incomodava as oligarquias, embora

causasse inquietação aos demais estados e ao poder central.

Em 1930, João Punaro Bley foi nomeado Interventor Federal para solucionar

o problema econômico do estado. Bley foi escolhido por não ter nenhuma ligação

com a região o que facilitaria sua intervenção. Durante os anos de 1930 a 1935, o

interventor, buscou soluções para o problema econômico do estado com foco em

investir em sua modernização. Lopes (2012) foram grandes os esforços para melhorar

as condições sociais como saúde e educação, no entanto, a ausência de instituições

de natureza artístico-cultural não recebeu nenhuma atenção, não sendo mencionadas

e ficando distante de qualquer investimento.

Todas as ações de Punaro Bley focavam em transformar a área econômica

do estado. Durante o segundo e o terceiro mandato, foi ainda mais ativo nas ações,

visando a modernização do mesmo. Em 1937 cria o Banco de Crédito Agrícula do

Espírito Santo, que mais tarde se tornaria o Banco do Estado do Espírito Santo

(BANESTES), com o intuito de acelerar e modernizar os meios de produção através

de máquinas e diversificando a produção para novos produtos como: cacau, feijão,

mandioca, milho e frutas em geral.

Até a década de 1930 não havia, no estado do Espírito Santo, nenhuma

instituição de ensino superior, diferente de todos os demais estados da região

Sudeste, assim sendo, investiu e inaugurou as faculdades de Direito, Farmácia e

Odontologia. Reestruturou a Escola de Aprendizes Artífices de Vitória, fundada no

início do século XX, tornando-se a Escola Técnica de Vitória.

Na área da saúde o Interventor criou o Hospital dos Servidores Públicos, o

Hospital Infantil Nossa Senhora da Glória, além de outros estabelecimentos

destinados a doenças específicas como tuberculoses, lepra, sanatórios e asilos.

Apesar de não dedicar nenhum esforço a qualquer criação voltada as produções

artísticas, João Punaro Bley, criou o Museu Capixaba em 1938 inaugurado apenas

em 1944 já no mandato do sucessor Jones dos Santos Neves.

A II Guerra Mundial, aponta Lopes (2012), prejudicou grandemente o

desenvolvimento econômico do estado, tornando ainda mais evidente o problema da

economia cafeeira do Espírito Santo o que, de certa forma, abriu caminho para se

pensar a industrialização do estado com mais boa vontade política, até então

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encontrada por Punaro Bley, quem percebeu a vocação siderúrgica da cidade de

Vitória, deixando o desafio para Jones dos Santos Neves.

Em 1942, instala-se a Companhia Vale do Rio Doce visando abastecer o

mercado bélico dos países aliados firmado em Washington, com a participação da

Inglaterra e Irlanda, o qual afirma Lopes (2012), como o maior feito da administração

de Punaro Bley. O empreendimento foi facilitado pela já criada rede ferroviária que

ligava Vitória-ES a Belo Horizonte-MG inaugurada no ano anterior, 1941. Também foi

reformulado todo o sistema portuário da cidade para facilitar escoamento das

produções.

No cenário nacional, Lopes (2012), ressalta a animosidade em prol do retorno

da democracia, neste interim, Getúlio Vargas nomeia Punaro Bley diretor da

Companhia Vale do Rio Doce, substituindo-o por Jones dos Santos Neves em 1943,

conhecido por ser um homem culto e empreendedor, formado pela Universidade de

Medicina e Farmácia do Rio de Janeiro. Jones dos Santos Neves (1943-1945) teve

uma breve administração a frente do estado, não tendo tempo de fazer mudanças

mais significativas no cenário sócio-político-econômico, no entanto, ampliou a

capacidade de produção de energia elétrica e abriu novas estradas visando gerar um

meio de sustentação da industrialização do estado.

Marta Sorzal e Silva (1995), em Espírito Santo: Estado, interesse e poder, faz

importantes considerações sobre o segundo mandato de Jones dos Santos Neves

(1951-1955). Desta vez, o governador, faz fortes investimentos no campo social.

Amplia o número de escolas, públicas e privadas, tornando-se o maior investimento

de seu governo: a educação. Em seu mandato também promoveu existência de uma

universidade “integrada” no ES, criando em 5 de maio a Universidade do Espírito

Santo (UES).

Importa ressaltar que, governo de Santos Neves, não promoveu grandes

rupturas em relação ao padrão político oligárquico e elitista predominante na forma de

articulação entre o Estado e a sociedade capixaba, afirma Silva, entretanto se

empenhou em alterar o tradicional modelo econômico em vigor, que era ainda,

predominantemente agrário e dependente da cultura cafeeira, guiando-o para formato

um pouco mais industrial, conforme apresentado em seu “Plano de Valorização

Econômica” (SILVA, 1995, p. 251-253).

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A própria criação da UES é justificada como uma estratégia para o aumento

da qualificação profissional objetivando resolver o problema da escassez de mão-de-

obra preparada no estado.

Também elaborou o projeto de urbanização de Vitória junto com o prefeito da

cidade, Américo Poli Monjardim, contratando o urbanista capixaba, Moacyr Fraga

formado no Rio de Janeiro, para o projeto denominado “Plano Diretor”, que projetou

uma cidade clássica, um ambicioso plano de fazer de Vitória a cidade famosa do

continente.

Fraga projetou uma cidade muito diferente dos traços modernistas de Oscar

Niemeyer e Lúcio Costa. No entanto, o projeto não saiu do papel, afirma Lopes (2012),

uma vez que não foram encontrados quem quisesse colaborar financeiramente com

a remodelação da cidade. Ainda assim, alguns dos prédios projetados no “Plano

Diretor” foram construídos por governos sucessores, mas sem qualquer semelhança

com os clássicos projetados por Fraga, por não estarem de acordo com a

modernização que acontecia no estado.

Carlos Lindenberg assume em 1947, e mesmo após 16 anos de tentativa de

reestruturação do estado, ainda encontra uma economia pobre, atrasada e

grandemente voltada para o café. Seu principal feito foi o aumento considerável de

receita permitindo uma maior política de investimento social. Ampliou a educação rural

e urbana, mesmo que apesar das 52 mil vagas nas escolas, mais de 70 mil crianças

continuavam sem acesso à educação. Quanto a estratégia para atrair capital para o

estado, afirma Lopes (2012), Lindenberg foi pouco criativo ao adotar a isenção de

impostos para tal.

Getúlio Vargas retorna ao poder federal em 1950, agora pelo voto direto. No

Espírito Santo, retorna ao poder Jones dos Santos Neves com maior ousadia do que

demonstrada na sua primeira gestão, que seria a entrada significativa da

modernização no estado.

Lopes (2012) aponta os grandes feitos rumo a modernização: ampliação do

Porto de Vitória, construção do cais acostável de Paul, construiu pontes, criou o

estaleiro naval de Vitória, instalou oleodutos, investiu na geração de energia elétrica

criando as usinas hidroelétricas e a empresa ESCELSA - Espírito Santo – Centrais

Elétricas S/A. Na área rural incentivou a criação de frigoríficos, laticínios, fábricas de

farinha e mandioca, também como a produção de cimento no município de Cachoeiro

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de Itapemirim. Na política social melhorou e ampliou a saúde pública, instalou postos

médicos em todo território estadual, criou hospitais e centros médicos voltados

também a assistência social, criou também moradias voltadas a população de baixa

renda. No setor educacional ampliou a rede de escolas e jardins de infância, investiu

no ensino técnico, aumentou o quadro de professores. No nível superior criou a Escola

de Belas Artes, a escola Politécnica, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Instituto

de Música, Escola de Auxiliares de Enfermagem, cria o Instituto de Tecnologia, este

com equipamentos de instalação importados da Suíça. Além disso Jones dos Santos

Neves funda Universidade Federal do Espírito Santo em 1954. Apesar de não ter

nenhuma política expressiva na área artístico-cultural, Neves também apoiou a

criação da Escola de Escultura e tinha a intenção de remodelar o Museu Capixaba

criado em 1939.

Todo o projeto urbanístico da cidade foi revisto e muitas obras são produzidas,

atraindo assim, mão de obra ao estado devido a perspectiva de trabalho. Também

foram feitos investimentos no campo da pintura havendo uma maior intensificação,

uma vez que os investimentos existiam desde 1930-1940.

Durante os anos de 1955 a 1959 o governo era chefiado por Francisco

Lacerda de Aguiar, para Lopes (2012), tal fato traz de volta o conservadorismo e a

barganha política ao poder, e para sua sustentação faz concessões para aprovação

de projetos considerados duvidosos ou desastrosos, segundo a autora, por resultarem

em total fracasso. Foi uma administração fraca e de baixo desempenho, causando

grandes prejuízos ao plano de modernização do Espírito Santo. Mesmo sendo

pressionado pelo governo federal a modernizar o estado, Lacerda de Aguiar, sempre

mostrava mais simpatia com a condição rural, estando em total desarmonia com o

governo federal que tinha ousados planos de desenvolvimento.

No âmbito nacional Juscelino Kubitschek (1956/ 1960) após seu ousado

“Plano de Metas” que visava grandes avanços para o país e a enorme construção de

Brasília deixa o país afundado em dívidas e uma economia criticamente inflacionada.

No final do mandato a capital do país é inaugurada atraindo olhares do mundo todo

para a cidade-monumento construída pela genialidade de Oscar Niemeyer e Lúcio

Costa, o que atraiu também investidores.

A pesar dos problemas econômicos provenientes da gestão Kubitschek, não

havia aparente preocupação por parte da população, nem mesmo, como afirma Lopes

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(2012), uma diminuição no otimismo e entusiasmo que este governo conseguiu injetar

em todas as camadas da população.

Inicia-se assim os anos 1960.

Jânio Quadros assume o governo em 1961 com o que a autora define por

uma situação paradoxal: uma grande euforia popular ao mesmo tempo que uma

insustentável crise econômica. Não se sustentou no poder por muito tempo, uma vez

que implantou políticas severas de arroxo salarial, restringiu o crédito, congelou

salários além de cortar subsídios de importação. Todas estas medidas, na tentativa

de solucionar o problema criado por seu antecessor, criaram um ambiente inóspito

para o seu governo. A inquietação da população crescia, greves aconteciam pelo pais

fortalecendo o movimento operário sindicalista e resultando em sua renúncia.

João Goulart assume o poder e tenta implantar mudanças que seriam a base

de sustentação da justificativa do golpe militar que sofreria em 1964, apresentado no

início deste capítulo.

No Espírito Santo Carlos Lindenberg, já em seu segundo mandato, defendia

que o equilíbrio financeiro não viria de medidas austeras apenas, e sim do

desenvolvimento econômico do estado. Uma de suas grandes conquistas é vista pelo

aumento expressivo na produção de aço, saltando 40 mil toneladas em 1959 para 300

mil toneladas em 1962, conforme observa Lopes (2012).

Em julho de 1962, Carlos Lindenberg e João Goulart, assinam o contrato para

a criação do Porto de Tubarão, obra que estava dentro das metas prioritárias do

Governo Federal. Lindenberg também investe na melhoria de serviços como o

cinema, o rádio e o teatro educativo criados na década de 1930. Sua maior conquista

foi a federalização da Universidade do Espírito Santo.

Os revezamentos no poder do estado continuam. Em 1962 vence Francisco

Lacerda de Aguiar (1963-1966) assumindo o governo em meio a grandes crises

internas e externas. Novamente direcionava suas metas de melhorias econômicas

para o desenvolvimento agrícola do estado, movimento que não agrada os militares

no poder que investiam toda sua capacidade no desenvolvimento industrial. A pressão

sofrida fez com que voltasse sua atenção para expandir a Companhia Ferro e Aço de

Vitória, aumentando então a geração de energia e construindo rodovias.

Sobre o desenvolvimento do Espírito Santo Marta Zorzal Silva (2001) em seu

artigo O Espírito Santo Face à Logística de Expansão da Companhia Vale do Rio

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Doce faz importantes analises sobre todo o aspecto econômico das décadas de 1960

e 1970. A autora aponta que todo o investimento feito pelo regime burocrático-

autoritário elevou o estado - de economia primário/exportadora da monocultura

cafeeira para uma economia urbano/industrial moderna - em um prazo de menos de

vinte anos. A chegada das grandes industrias mudou drasticamente o cenário

capixaba.

Antes de qualquer interpretação qualitativa sobre o desenvolvimento

econômico do Espírito Santo, é necessário refletir sobre as consequências desse

crescimento que, até os dias de hoje, tem grandes impactos na vida social do estado.

Marta Zorzal Silva deixa um pensamento ao concluir seu artigo “A resposta à pergunta

sobre quem são os grandes beneficiários deste processo de crescimento nos diz que

não são, prioritariamente, os capixabas” (2001, p. 143). Apesar do desenvolvimento

econômico ter permitido ao Espírito Santo um grande crescimento econômico, a

desigualdade de distribuição de seus benefícios é, até os dias de hoje, alarmante.

A população urbana crescia proveniente da falta de espaço no campo,

posterior a erradicação do café, momento de crescimento das periferias de Vitória,

que ocorre em desordenada ocupação dos morros da cidade.

Em 1966 Lacerda de Aguiar, acusado de ligação em processos de corrupção

administrativa é afastado do cargo pelos militares, assumindo Rubens Rangel (1966-

1967) que, apesar do curto mandato, Lopes (2012) afirma ter tido mais harmonia com

os objetivos de avanço econômico desejados pelo regime militar.

Este é o cenário político ao qual o Espírito Santo estava inserido, muito

diferente dos demais estados da Região Sudeste: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas

Gerais. Isto explica a fraca, ou quase inexistente presença de movimentações

artísticas em oposição ao regime militar experimentadas pelos demais estados.

O Espirito Santo permanecia alheio a toda movimentação artística

internacional e nacional, tão alheio, que os acontecimentos no estado, quando

comparados aos acontecimentos no circuito da arte no Rio de Janeiro e em São Paulo

faz com que haja a sensação de os acontecimentos aqui abordados não sejam

contemporâneos aos acontecimentos vizinhos.

Quanto a situação artística, espírito santense, projetada a nível internacional,

pode-se afirmar que, no campo da arte o Espírito Santo estava a quase um século

atrasado, lembrando que Marcel Duchamp já havia criado o ready-made no início do

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século XX e feito duras críticas ao mercado da arte, conforme apresentado no primeiro

capítulo. Sobre este atraso Lopes observa

O meio artístico espírito-santense, no entanto, iria prolongar até a década de 1960 o seu histórico atraso cultural. A inanição cultural isolava os artistas e tornava-os presas fáceis do gosto retrógrado de uma elite conservadora, mas também inflexível a qualquer mudança ou atualização das gramáticas estéticas. [...] a pintura acadêmica, expressa por paisagens que mostram um mundo paradisíaco e harmonioso, expresso pela natureza dos arredores de Vitória, ainda intocada pelo homem, continuaria a encontrar ampla e incontestável difusão e aceitação pelas classes dirigentes e pela elite endinheirada. A assimilação desse gênero de paisagem parece diretamente associada à afeição que nossos administradores mantinham pelo campo. Enquanto em todo mundo o modernismo já havia completado seu ciclo e se iniciava o período das chamadas pós-vanguardas, as vertentes do século XX continuavam a ser completamente ignoradas ou rechaçadas pelos capixabas (LOPES, 2012, p. 38).

Ainda sobre o contexto artístico do estado a autora continua

O tímido apoio do governo estadual à área artística restringiu-se ao patrocínio de exposições de paisagistas acadêmicos, promovidas por artistas de médio e pequeno significado no contexto da história da arte brasileiras, as quais eram realizadas num salão do Teatro Carlos Gomes. Por essa razão, o Estado adentraria a década de 1970 sem possuir um único Museu de Arte, nem ao menos uma galeria ou espaço cultural adequado à realização de exposições (LOPES, 2012, p. 39).

Enquanto a arte espírito-santense permanecia intocável, as mudanças

econômicas e políticas chegavam ao estado na velocidade que interessava aos

governantes do país, sendo notória a rapidez com que o estado recebe as “boas

novas” do golpe, chegando a informação logo no primeiro acontecimento, no dia 31

de março de 1964, com reações imediatas.

No livro O Estado do Espirito Santo e a Ditadura, Fagundes (2014), aponta

relatos e documentos sobre o engajamento da Frente de Mobilização Popular

(FMP/ES) e a União Estadual de Estudantes (UEE/ES) e a nota que publicaram no

jornal local, A Gazeta, alertando a população capixaba dos recentes acontecimentos

e da tentativa de golpe que estava em percurso.

No dia 1° de abril de 1964 os estudantes marcharam pelo centro de Vitória

dirigindo-se a sede do governo. O então governador, Francisco Lacerda de Aguiar

“afinado” com as lideranças civis do golpe recebeu um grupo de estudantes, porém

apenas como uma manobra figurativa, ao mesmo tempo, a Rádio Capixaba, dirigida

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pela Arquidiocese de Vitória, foi obrigada a apoiar o golpe nas suas transmissões

(FAGUNDES, 2014, p. 9).

A repressão foi forte e intensa na capital capixaba com prisões que duraram

algumas horas e outras que duraram semanas. Os locais de prisões e interrogações

eram o quartel do Corpo de Bombeiros Miliar ou na Chefatura de Polícia Civil na

capital, e também o 3° Batalhão de Caçadores – atual 38° Batalhão de Infantaria.

Fagundes (2014) apresenta o relato de um dos casos mais dramáticos como o de

Jaime Lana Marinho, estudante de odontologia da UFES e dirigente da UEE/ES.

Em seu depoimento à Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito Santo, relatou que, depois de sua detenção, foi levado com outros prisioneiros para as dependências do 3° BC, na cidade de Vila Velha. Neste local ficou detido, por algumas semanas durantes as quais foi submetido a uma série de pressões e torturas, tais como ser acordado no meio da noite e ser submetido a uma encenação de fuzilamento, ser deixado em uma pequena embarcação durante todo o dia sem alimento e/ou água, além de interrogatórios e ameaças de morte (p. 12).

Apesar de não figurar os noticiários com a mesma representação que as

grandes cidades ao redor, o Espírito Santo, também sediou fortes episódios de

repressão. Alguns dos mais conhecidos foi o afastamento do reitor Manuel Xavier de

Paes Barreto da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo. A razão deste

afastamento se deu pelo fato do reitor ter sido indicado pelo presidente João Goulart.

Também ocorreu a cassação do mandato do deputado Ramon de Oliveira Neto, de

igual forma, ou seja, pela proximidade com o presidente.

A UFES sofreu várias interferências, explica Fagundes (2014), devido ao fato

de ser a única instituição pública de ensino superior do estado. O autor chama de

“saneamento ideológico” os inquéritos administrativos que foram instaurados em

todos os centros da universidade. Inúmeras foram as vezes em que professores e

alunos tiveram que prestar esclarecimento sobre as atividades dos centros

acadêmicos.

Como supramencionado, uma grande parcela da população apoiou o golpe

militar e viu nele a possibilidade de manutenção da “paz e da “ordem” vigente,

afastando o país definitivamente da ameaça comunista. Neste contexto se explicam

as celebrações pela vitória da “Revolução Gloriosa” que ocorreram em várias

localidades do país.

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No Espírito Santo houveram várias manifestações de celebração ao golpe.

Em destaque Fagundes (2014) aponta três momentos principais: as comemorações

pela posse do Marechal Humberto Castelo Branco, seguido pela publicação de um

Caderno Especial no jornal A Gazeta e, por último, a Marcha da Família com Deus

pela Liberdade.

Vitória, 15 de abril de 1964. Não era nem um dia de jogo ou ano de Copa do Mundo de futebol. Entretanto, o som de fogos de artifício, de buzinaços de carros e de navios, somados a repartições públicas e ao comércio fechados – em plena quarta-feira – conferiu à cidade um clima semelhante ao de comemoração de um título mundial de futebol. Naquele dia, Vitória, capital do Espírito Santo, parou para celebrar a posse de Humberto Castelo Branco (1964-1967) para o cargo de Presidente da República. (FAGUNDES, 2014, p. 14).

O apoio ao regime era irrefutável. Os mais importantes grupos empresariais

do estado bancaram a edição especial do dia 19 de abril com inúmeras felicitações ao

novo governo. A lista é grande e traz nomes como Chocolates Garoto S/A, Banco

Agrícola do Espírito Santo, Vitóriawagem, Tyresoles do Brasil S/A, dentre outros. Em

todas as notas as felicitações ao novo presidente com o uso recorrente das palavras

– liberdade e democracia.

O apoio que os grandes empresários capixabas demonstraram ao golpe não

ficou apenas em notas de felicitações nos jornais. Sobre o envolvimento dos industrias

capixabas, Rafael Pagatini faz ricas considerações em seu artigo “Bem Vindo

Presidente”: a arte como dispositivo crítico da construção da memória, relacionando

o uso do jornal por ser “veículo de discussão pública” onde as relações de poder e

controle estiveram fortemente presentes ao longo do regime militar (PAGATINI, 2016,

p. 1865).

Este envolvimento, supramencionado, não ficou apenas nas elogiosas

palavras publicadas no jornal, na verdade o golpe foi, sobretudo, patrocinado por

empresários brasileiros e também pelos capixabas, como aponta o autor.

Um exemplo importante do financiamento de empresários capixabas ao regime como um todo, como destaca o relatório da Comissão da Verdade, é observado a partir do nome de Camilo Cola, fundador da Viação Itapemirim. De acordo com o documento, um ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social prestou depoimento a membros da CNV e expôs o financiamento, em nível nacional, do aparelho de repressão, tortura e assassinato do regime ditatorial (PAGATINI, 2016, p. 1868).

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Sobre as manifestações nas ruas, outro evento de grande apoio ao golpe, foi

a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que acontece em São Paulo no dia

19 de março em protesto ao governo vigente de Goulart contando com a presença de

600 mil pessoas. Essa manifestação cristã teve também sua versão capixaba após

instaurado o golpe. A Igreja Católica, com máxima eficiência associou o comunismo

à forte concepções demoníacas e, juntamente com as Forças Armadas, foi a grande

divulgadoras do medo da ameaça comunista.

Assim, numa legítima união entre o “sagrado” (igreja) e o “profano” (empresários) como ocorreu em dezenas de outros municípios brasileiros, em Vitória essa manifestação reuniu milhares de pessoas com a finalidade mais específica: comemorar o golpe de 31 de março (FAGUNDES,2014, p. 19).

As matérias do jornal da cidade, A Gazeta, abordam as convocações para a

participação da população na marcha como sendo organizadas pelas “senhoras da

comissão organizadora”, no entanto, como afirma Fagundes (2014), não há qualquer

menção sobre quem seriam essas tais senhoras. Nos anúncios, no rádio e jornal,

essas figuras anônimas solicitavam que todos usassem lençóis brancos e bandeiras

do Brasil ou do Espírito Santo com o intuito de deixar o evento ainda mais marcante.

Foi oferecido transporte para facilitar o acesso a todos que tivessem interesse

em participar da marcha. O engajamento das “senhoras” abrangeu todos os possíveis

participantes indo de visitas a repartições públicas, até mesmo visitando empresários

e comerciantes. A ideia era contar com a presença do maior número de pessoas.

Toda a movimentação em prol da marcha recebeu bastante atenção da mídia,

que a retratou como a maior manifestação da história do estado e, na edição dos dias

26 e 27 de abril, estampou a fotografia da multidão que se concentrara na escadaria

do Palácio Anchieta na primeira página.

Fagundes (2014) afirma a importância desses acontecimentos no estado para

mostrar que assim como em outros estados brasileiros, no Espírito Santo houve

grande adesão ao golpe. No entanto, não houve apenas adesão, como mencionado,

mas também resistência manifestada por uma pequena parcela da população e pouco

apoiada pela mídia.

A imprensa do Espírito Santo era composta por quinze jornais, conforme

apresenta Teixeira (2013), mas seus principais eram: A Gazeta fundada em 1928, A

Tribuna fundada em 1938 e por fim o jornal Folha Capixaba em 1945. Diferente dos

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dois primeiros, o jornal Folha Capixaba era administrado por membros do Partido

Comunista Brasileiro (PCB), de forma que este jornal foi fechado imediatamente após

o golpe militar não voltando a funcionar após o fim do regime, mesmo tendo sido o

jornal de maior circulação durante alguns de seus anos de funcionamento.

Roberto Teixeira (2013) faz uma importante analise sobre o jornal Folha

Capixaba afirmando ser uma representação da abertura de posições políticas de seu

tempo. Atuava para além de suas paredes, se preocupando em “dar voz” ao povo e

tudo o que desejavam era publicado, diferente dos outros dois grandes jornais da

cidade onde reclamações e inquietações da população não recebiam espaço.

Portanto, é preciso perceber a Folha Capixaba como uma expressão concreta da necessidade de expressar ideias, posicionamentos políticos profundamente reprimidos durante muito tempo no País. O jornal representa a reorganização explícita da esquerda em torno de questões políticas, representada no PCB, o qual teve papel central em manter o jornal e pensá-lo como instrumento de classe.

A Folha Capixaba circulou oficialmente até 1º de abril de 1964 quando sua sede foi invadida e destruída pelos agentes da ditadura militar. Todo o registro do jornal em papel foi perdido, uma vez que todo o acervo foi queimado ou apreendido. O pouco que restou dos materiais e equipamentos foi vendido tempos depois como sucata.

Os responsáveis foram presos temporariamente. Clementino Damácio, por exemplo, chegou a ser detido três vezes num mesmo dia por participar da equipe do jornal. Depois de 15 anos em circulação, o Folha Capixaba deixa como legado um exemplo de meio de comunicação a serviço dos ideais democráticos e participação popular (TEIXEIRA, 2013, p. 13).

Os acontecimentos em torno do jornal, Folha Capixaba, esclarecem em

grande parte, a ausência de uma maior contestação política da população do estado.

Havia pouco ou mesmo quase nenhum acesso a informações reais sobre o que

acontecia ao longo do regime militar. O papel de formadores de opinião ficou sob a

responsabilidade dos jornais que pautaram o apoio irrestrito ao regime militar. Sobre

a importância social do jornal Teixeira afirma

Também promovia comícios e atividades, ou seja, os debates na vida política ultrapassavam as páginas do jornal e concretizavam-se na prática, no cotidiano, na praça pública. Como diz Clementino Dalmácio, são “histórias de Vitória antiga”, mas que marcaram um período de reabertura política do País. É interessante notar que o jornal refletiu a inserção da classe operária na cena política do Brasil e do Espírito Santo, guiada pelo PCB, que teve fundamental importância na difusão dos ideais de esquerda nesse período (TEIXEIRA, 2013, p. 13).

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Embora não houvesse mais o engajamento do jornal “Folha Capixaba”,

ocorreram algumas importantes mobilizações contra o regime militar. Um movimento

que recebe destaque é o dos estudantes universitários da UFES, analisado por

Leandra Fonseca (2011) em seu artigo O movimento estudantil capixaba durante a

ditadura militar: o ano de 1968.

Para a apresentação do movimento estudantil, é necessário pontuar o papel

da polícia política, uma vez que era a grande responsável pela manutenção das forças

do regime militar, e tinha o papel de conter as “ameaças”. A polícia política conhecida

como DOPS, cuja criação é muito anterior ao golpe de 1964, remota as décadas de

1920 e 1930, ganha extrema importância na manutenção do regime após o golpe de

1964. Sobre o histórico desta polícia, Fonseca apresenta as mudanças que sofreu ao

longo de seus primeiros anos de criação e assim é possível compreender o que era a

polícia política do regime militar.

No Espírito Santo, foi criado em 27 de novembro de 1930 o cargo do Delegado de Ordem Social, subordinado à Delegacia Geral. A partir de então, inicia-se a formação de uma polícia voltada para a manutenção da ordem social do estado. Porém somente entre os anos de 1935 e 1937, no Espírito Santo, foi organizada a Delegacia de Segurança Política e Social, que teve como principal finalidade coibir a formação de quistos sociais, além de “proteger’ a sociedade de ideologias exóticas que pudessem levar a qualquer tipo de contestação ao governo de Getúlio Vargas, combatendo, sobretudo, as atividades comunistas (FONSECA, 2011, p. 4).

Apenas em 1946 a Delegacia da Ordem Política e Social unifica-se a

Delegacia de Estrangeiros e a Delegacia de Auxiliares tornando-se a Delegacia

Especializada de Ordem Política e Social do Espírito Santo (DEOPS/ES). Suas

atribuições eram

[...] a manutenção da ordem política e social; a fiscalização e registro de estrangeiros; a fiscalização e controle do comércio; o uso e depósito de explosivos, armas, munições e produtos químicos; fiscalização dos embarques e desembarques terrestres, marítimos, fluviais e aéreos; fiscalização de hotéis, pensões e casas de cômodos; serviços secretos; além de crimes contra a economia popular e corregedoria, possuindo jurisdição em todo o estado (FONSECA, 2011, p. 4).

Em 1953, o DEOPS sofre uma alteração e seu nome passa a ser Delegacia de

Ordem Política e Social (DOPS). Cada delegacia especializada compreendia um

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Gabinete do Delegado, Cartório e pessoal específico sendo responsáveis

predominantemente pela manutenção da ordem vigente.

Destarte, a função da polícia política era vigiar os elementos considerados

subversivos. Neste contexto a UNE (União Nacional dos Estudantes) estará sempre

sobre os holofotes do DOPS, tanto em âmbito nacional quanto nos menores grupos

no âmbito estadual.

A UNE surge no início do Estado Novo (1937-1945) sob os cuidados do ministro

da educação Gustavo Capanema. Fonseca (2011) afirma que o apoio ministerial

recebido pela UNE tinha o intuito de mantê-la e submetê-la sobre o controle político,

o que justifica a afirmação de seus integrantes de que, a UNE, só nasce

verdadeiramente ao longo do Congresso Nacional dos Estudantes, em dezembro de

1938 que contou com a participação de 80 associações universitárias e secundaristas,

assim como, teve a participação de vários professores e integrantes do Ministério da

Educação.

Ao fim do congresso, a UNE elege uma nova diretoria com compromisso

político, também aprova um novo plano para a Reforma da educação, cria o Teatro

do Estudante do Brasil (TEB) inspirado nos moldes universitários da Europa. Essas

ações provocam o rompimento com a Casa do Estudante fazendo com que a UNE

seja então uma organização sem sede.

O percurso histórico, da UNE no Brasil, também se entrelaça com os

acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, exigindo uma postura do Brasil contra o

nazi-fascismo, criticando duramente a postura neutra exercida pelo país.

A relação entre o movimento estudantil e o governo Vargas sempre foi uma relação ambígua, apesar de terem o reconhecimento formal do estado e seu direito de representação assegurado, o envolvimento de sua liderança com o Partido Comunista do Brasil (PCB) fazia com que muitos de seus representantes fossem presos, perseguidos e torturados (FONSECA, 2011, p. 6).

Esta relação do governo com a UNE se torna ainda mais intensa com o golpe

militar. Logo após o golpe em 1964 ela é fechada e a sede é incendiada. Alguns de

seus dirigentes buscam exílio, outros buscam meios de exercer sua resistência na

clandestinidade. Todo o corpo universitário passa a ser constantemente vigiado pela

polícia política.

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FIGURA 17 – Oposição

Fonte: http://periodicos.ufes.br/SNPGCS/article/viewFile/1552/1142 acesso em 10 de dez. 2017.

No Espírito Santo não foi diferente. A UFES passa a ser constantemente

vigiada pelo DOPS/ES. Muitos estudantes optam pela clandestinidade, algumas

passeadas acontecem, mas sobretudo pichações pela cidade são alvos de

investigações.

Fonseca (2011) apresenta em seu artigo algumas das fotografias encontradas

nos arquivos do DOPS/ES como provas de atitudes subversivas dos estudantes.

Sobre as fotografias Fonseca observa

Na primeira e segunda imagem temos pichações em um coletivo, consta do inquérito que o motorista da Viação Imperial Limitada, fazia o trajeto da Ilha de Santa Maria a Vila Rubim e por volta das 10 horas da manhã foi obrigado a parar em frente ao prédio do Correios e Telégrafos, devido à interrupção do trânsito. Quando a fila de veículos se movimentou, o carro dirigido pelo declarante foi interceptado por um grupo de “moças e rapazes” que queriam pregar cartazes nos seus para-brisas, pedindo com veemência que não colassem o cartaz no veículo, enquanto pedia para não fixarem o cartaz seu veículo foi pichado. As pichações continham frases contra o regime vigente, exigindo a saída dos “cães racistas”, e “abaixo gorilas” como foram apelidados os membros da força policial. Há também um pedido de liberdade para os jovens, e a famosa frase “abaixo a ditadura”, além do que podemos considerar uma assinatura em letras maiúsculas o nome da entidade UNE (FONSECA, 2011, p. 12).

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FIGURA 18 – Protesto com pichações

Fonte: http://periodicos.ufes.br/SNPGCS/article/viewFile/1552/1142 acesso em 10 de dez. 2017.

FIGURA 19 – Protesto com pichações

Fonte: http://periodicos.ufes.br/SNPGCS/article/viewFile/1552/1142 acesso em 10 de dez. 2017.

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O Restaurante Universitário (RU) também foi alvo de pichações que fizeram

com que o delegado de polícia solicitasse ao reitor o comparecimento de todos os

funcionários na delegacia para prestarem esclarecimentos. Apesar do

comparecimento de apenas duas funcionárias, nada de relevante foi informado no

inquérito (FONSECA, 2011).

A década de 1960, como um todo, foi marcada por profundas mudanças. A

arte, conforme abordado no capítulo anterior sofreu profundas transformações, a

política no mundo todo também migrava com grande velocidade, e não seria diferente

com os movimentos estudantis.

As mudanças enfrentadas no campo da arte eram diferentes para cada país,

da mesma forma, as experiências nos movimentos estudantis, ao redor do mundo,

também seriam distintas. Tanto a arte quanto o movimento estudantil no Brasil

estavam dentro de um contexto de dura e intensa repressão política, mas nem por

isso deixaram de vivenciar suas potencialidades no decorrer dos anos 1960. Enquanto

o movimento estudantil francês engajava-se em melhores condições de trabalho e

salário, o movimento estudantil brasileiro engajava-se na luta pela democracia e

liberdade, no entanto, ambos foram movimentos potentes, inquietos que refletiram os

problemas políticos de uma geração.

Todo este processo político teve como marco final de confronto e radicalização dentro do movimento estudantil brasileiro, onde se organizava o XXX Congresso da UNE organizado de forma clandestina no sítio Murundu nas imediações de Ibiúna (SP), onde na madrugada de doze de outubro a Polícia Política invadiu o local, prendendo cerca de 920 estudantes que foram transportados em cinco caminhões do Exército e dez ônibus21. Dos 920 participantes do congresso em torno de 200 eram mulheres, e inclusive uma delegação de estudantes capixabas, os representantes mais expressivos do movimento estudantil estavam presentes e foram detidos e dentre eles vinte três participantes foram reconhecidamente assassinados pelos repressores. [...] o mundo jamais foi o mesmo para estes jovens, o congresso, os anos de resistência foram para muitos um rito de passagem para a vida adulta, a perda das ilusões da juventude, para outros foi à perda da vida, do direito a verdade, pois ainda são muitos anônimos, desaparecidos encerrados dentro de valas clandestinas ou das memórias de seus amigos, familiares e arquivos (FONSECA, 2011, p. 17).

Embora existam arquivos, sobre o que aconteceu no Espírito Santo durante a

ditadura militar, muitos arquivos foram destruídos no fim do regime, uma tentativa de

esconder ou apagar o que não deveria ser de conhecimento popular.

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No que se refere a arte, não foram feitas grandes obras como no Rio de Janeiro

e em São Paulo, e, no intuito de destacar um tímido avanço da arte, até então

adormecida em solo espírito santense, houve a criação do “Mural da UFES”. Esta obra

foi elaborada pelo artista Raphael Samú, professor de artes da mesma instituição na

época. O convite foi feito pelo reitor Máximo Borgo. O projeto foi elaborado e aprovado

sem sofrer alterações e tinha a intenção de humanizar o campus universitário.

FIGURA 20: UFES Mural – Raphael Samú

Fonte: file:///C:/Users/Windows%207/Downloads/7745-17919-1-PB.pdf acesso em 18 de dez. 2017.

Interessa nessa obra a novidade por conta do trabalho em si, uma vez que a

técnica de mosaico utilizada não era familiar aos artistas capixabas e serviu como

uma verdadeira aula da técnica para os alunos do Centro de Artes.

Raphael Samú, nascido em São Paulo em 1929, estudou na Escola de Belas

Artes de seu estado e se formou em escultura no ano de 1955. Samú adquiriu amplo

conhecimento na execução de murais em pastilhas de vidros trabalhando para artistas

como Di Cavalcante, Clóvis Graciano e Cândido Portinari. O próprio mural da UFES

revela a influência desses artistas na obra de Samú, que tendência em suas obras a

crítica social expressiva, afirma José Cirillo (2014).

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A questão social permanecia. Como construir uma imagem de futuro para uma Universidade se colocava como um desafio em tempos de censura. Assim, na interface com a cultura de seu tempo, bem como com a mediação de sua memória como sujeito fenomenológico, revelam-se tendências do projeto poético do artista. Assim, toma na sociedade e nas questões atuais o ponto de partida das diretrizes a serem consideradas para a produção. Imagens de desenvolvimento, de sonho que se torna realidade, da tecnologia transformando a sociedade. Estas são nortes iniciais. O início dos anos 1970 ainda estava tomado pelo assombro dos primeiros passos na Lua. A corrida espacial era fato, embora fora ficção. A imagem: um sonho que se realizava. Utopia e realidade como dualidades complementares. Binômios iniciais nortearam o projeto. Samú se coloca então em direção à materialização dessa imagem da utopia x realidade. A forma geral deveria ser capaz de expressar essa realização [...].

Parecia que a promessa positivista se concretizara e a tecnologia redimiria a humanidade, superaria as diferenças, minimizaria o sofrimento – pura ilusão ufanista do fim da década de 1960, quando a realidade social do mundo estava prestes a desabar. A Guerra Fria dividira o mundo. As pessoas pareciam emudecidas por totalitarismos políticos e econômicos. Raphael Samú, filho cultural e exilado do Leste Europeu, com pais despatriados pela ditadura soviética, encontrou na saga espacial a imagem inicial. A metáfora da ficção se tornara realidade. Uma metáfora da própria história da UFES, o novo campus era um fato, e o painel expressaria isto. Promessas de desenvolvimento científico e cultural estavam à sombra do manto totalitarista do regime militar e da opressão política no Brasil. Essa névoa cinzenta pairava nos becos escuros da glória da propaganda desenvolvimentista do país. Neste conflito deste contexto, as imagens e o projeto do painel começam a configurar-se (CIRILLO, 2014).

FIGURA 21: UFES Mural – Raphael Samú - detalhes

Fonte: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1647-61582014000100029

acesso em 18 de dez. 2017.

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Para entender o mural é necessário fragmentá-lo e analisar suas diferentes

composições. Cirillo (2014) destaca algumas características importantes para essa

pesquisa na obra. Na primeira imagem, à direita são quadrinhos inspirados em

imagens de desenho de Flash Gordon, referência a Apolo XI e o Módulo Lunar, na

sequência uma pessoa caminhando com macacão espacial de astronauta. Abaixo um

grupo de jovens, trajando calças curtas e de pés descalços e ao fundo a sombra de

outras pessoas; há a sensação de um diálogo, estão de costas para as imagens

anteriores e um deles tem o rosto voltado para o final do projeto, onde está a sigla da

Universidade "UFES" com um desenho de um computador de bobinas, um cartão e

números relacionados a processamento de dados.

Para Cirillo (2014), alguns itens se destacam por suas disposições no mural.

Os campos da obra revelam uma aproximação política de antagonias, o centro da

imagem é ocupado por um jovem utilizando um microscópio, ou seja, fazendo uma

pesquisa, o qual o autor considera uma metáfora do investigar e produzir

conhecimento sem o controle do setor militar. Ainda observa-se que o astronauta

demarca o fim da área da "direita", é da mancha que se forma a partir da roupa do

jovem central que surge a silhueta do grupo de estudantes, de costas para a direita

da obra e voltados para a extrema esquerda, onde se coloca o nome da Universidade

e as imagens ligadas a computadores. No entanto esses jovens possuem silhuetas

marcantes de trabalhadores braçais e estão descalços, mostram um verdadeiro

desacordo com o campus universitário.

Para o autor, apesar da obra criticar o sistema político, o autor não faz

associações ao estado econômico do Espírito Santo, o grande índice de

analfabetismo e a grande parte da população ser trabalhadora rural. É possível

acrescentar a esta análise uma crítica econômica também, uma vez que a ditadura

trazia avanços econômicos ao estado, a universidade crescia e se desenvolvia, mas

grande parte da população continuava sem acesso ao conhecimento e continuaria

sendo, predominantemente, trabalhadora braçal.

O Mural da UFES é uma obra importante na capital do Estado. Ilustra uma sutil

tentativa de problematizar as dicotomias vividas por sua população. No entanto,

mostra a ausência da ousadia no campo das artes visuais que em outros estados

brasileiros se manifestou, e para além dessa ausência, ilustra também a ausência de

conhecimento das profundas mudanças que a arte vivenciara ainda na década de

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1960 as quais, quase duas décadas depois, aparentemente, ainda não era conhecida

em terras capixabas.

Se no campo das artes plásticas o engajamento político não foi percebido, já

no campo das artes cênicas a situação se configurou de forma bem distinta. No que

se refere a arte, não foram feitas grandes obras como foram no Rio de Janeiro e em

São Paulo, porém o teatro conseguiu manifestar-se de forma diferenciada.

Na obra de Dúlio Henrique Kuster Cid (2015) Revolução Caranguejo: O Teatro

no Espírito Santo durante a Ditadura Militar é possível perceber a importância que o

teatro teve na história cultural do estado, mas principalmente na ferramenta política

que se configurou durante os anos da ditadura.

Vale ressaltar que um estado que não se importava com a cultura artística, tão

pouco se interessava pelo teatro. Os relatos da década de 1960 sobre o Teatro Carlos

Gomes é de total abandono, sendo que os moradores de rua passaram a habitar o

espaço.

A história do Teatro Carlos Gomes era conhecida em outros estados. Quando

Paulo Autran, ator que levava sua peça - Liberdade, Liberdade - por estados

brasileiros, chega ao Espírito Santo, mesmo já tendo lido a respeito em jornais do Rio

de Janeiro, choca-se com a situação do local. O teatro capixaba estava

completamente abandonado, sendo utilizado como abrigo por moradores de rua,

mostrando o descaso do governo com a casa, assim como, com os problemas sociais.

Paulo Autran paga aos moradores de rua para limpeza do local e restauração

do que restava no intuito de apresentar sua peça no teatro. Kuster (2015) aponta o

interessante discurso feito pelo artista, ao fim da apresentação. O teatro estava repleto

de ilustres figuras da sociedade capixaba, tornando seu discurso potente ao culpar o

próprio prefeito do descaso com a casa. Todo este contexto permitiu a reforma no

teatro e este passaria a receber algumas apresentações; no entanto, ainda bem

aquém de sua capacidade e importância.

Kuster (2015) divide a história do teatro capixaba durante a ditadura militar em

três momentos. Dos anos de 1964 a 1969, haviam poucos grupos teatrais em

atividade, os principais eram os coletivos Geração, Equipe e Praça Oito, e por espaço

físico existia o Teatro Carlos Gomes, no centro da capital, construído com as sobras

do Teatro Melpômene, destruído por um incêndio, que estava em completo abandono

como supramencionado.

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Posteriormente, o autor aponta os anos entre 1970 e 1977, quando o poder

estadual cria a Fundação Cultural do Espírito Santo (FCES) no intuito de estabelecer

e permitir a execução das políticas culturais do governo. A Fundação tinha como

objetivo

(...) a reforma e reinauguração do Teatro Carlos Gomes; a contratação de espetáculos do Rio de Janeiro e São Paulo para realizarem as suas estreias em Vitória; a realização de um concurso de dramaturgia, do I Festival Capixaba de Teatro Amador e de cursos de formação dramática; a criação de grupos teatrais mantidos pelo Estado, como o Grupo de Teatro Amador Carlos Gomes e o Grupo de Teatro da FCES; a concessão de verbas para montagens teatrais e a criação de novos espaços de apresentação, como o Teatro Estúdio, também localizado no centro da capital, e o Circo da Cultura, que possuía um aspecto itinerante (KUSTER, 2015, p. 26).

Apesar das políticas de incentivo, a ditadura permanecia exercendo seu poder

de censura.

No começo da década de 1970, ocorreu aquele que pode ser considerado um marco tanto da ação da Censura Federal no 4 estado quanto da reação dos artistas à mesma. Ensaio Geral foi um musical que possuía uma temática de protesto e que teve o texto proibido pouco antes da data prevista para sua estreia. Com isso, a equipe optou por manter o espetáculo apenas com música e expressão corporal. Mesmo assim, no dia da realização do ensaio geral para a Censura, a apresentação foi novamente proibida. Tendo em vista a produção já realizada, os artistas resolveram levar a empreitada adiante e, ao término da encenação, muitos foram à Polícia Federal prestar depoimentos (KUSTER, 2015, p. 3).

Entre os anos 1977 e o início dos anos 1980 acontece o que o autor determina

por terceira fase do teatro capixaba, durante a Ditadura, apresentando uma situação

paradoxal, uma vez que, é perceptível o desenvolvimento do movimento teatral com

o surgimento de novos grupos, o engajamento do movimento estudantil da

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) em parceria com às Mostras de Teatro

realizadas pela instituição entre os anos de 1976 e 1979. Em contrapartida, houve

uma significativa redução das verbas destinadas a cultura no Espírito Santo e em

pouco tempo a própria Fundação Cultural deixaria de existir.

Apesar do contexto ao qual o estado estava inserido, de total desatenção com

a cultura, a Escola de Artes FAFI é criada em 1992 oferecendo variadas oficinas

artísticas, entre elas a de teatro. Anos depois, em 1998, passou a se chamar Escola

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de Teatro e Dança FAFI, oferecendo até os dias atuais cursos de qualificação

profissional.

A nível nacional foram feitos vários investimentos no campo cultural durante e

em 1975 é criada a PNC (Política Nacional de Cultura). Kuster (2015) analisa às

diferenças do que estava escrito nas diretrizes políticas culturais, do que era praticado

pelos militares. Mesmo com a afirmação de que não haveria intervenções nas

atividades culturais espontâneas,

[...] uma política de cultura não significa intervenção na atividade cultural espontânea, nem sua orientação segundo formulações ideológicas violentadoras da liberdade de criação que a atividade cultural supõe. O governo brasileiro não pretende, direta ou indiretamente, substituir a participação dos indivíduos nem cercear as manifestações culturais que compõe a marca própria do nosso povo. [...] Constitui a Política Nacional de Cultura o conjunto de diretrizes que orientam e condicionam a ação governamental, não como dirigismo, mas como instrumento de estímulo e formação. Respeita o Estado a liberdade de criação e procura incentivar e apoiar o desenvolvimento da cultura, impulsionando os instrumentos que estimulam suas diferentes manifestações (Ministério da Educação e Cultura de 1975, apud KUSTER, 2015, p. 51)

O que era prometido não era cumprido como é observado pelo autor.

[...] Ventura apontou que mais de cem peças de teatro e trinta filmes estavam oficialmente proibidos em todo o território nacional, além de uma dezena de artistas que haviam sido punidos com a suspensão de suas atividades no teatro, no rádio, no cinema ou na televisão. Entre os autores censurados no Brasil, Ventura relaciona desde nomes da literatura nacional como Machado de Assis, Eça de Queiroz, Jorge Amado e Carlos Drumond de Andrade até o comediógrafo grego Sófocles, falecido há mais de dois milênios antes dos eventos que ocorriam no país (KUSTER, 2015, p.39).

Kuster (2015), corroborando com o pensamento de Claudia Calirman (2015)

sobre os artistas plásticos brasileiros – que será trabalhado na continuidade deste

capítulo – questionam o problema da autocensura. A censura imposta pelo Estado

tinha, de certa forma, algum tipo de regra, mesmo que não fosse muito precisa, no

entanto, a autocensura dos artistas possivelmente fez com que obras, tanto nas artes

plásticas, quanto nas artes cênicas nunca fossem criadas. É possível analisar, criticar,

problematizar o que foi feito porém, sem sombra de dúvidas, a autocensura também

é uma marca estéreo e traumática do controle militar.

Sobre acontecimentos do teatro capixaba, Kuster traz um significativo relato

para exemplificar o que acontecia nas peças pelo Brasil o que de certa forma

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corrobora para perceber que, aparentemente, no Espírito Santo era ainda mais

intensa a repressão.

O detalhe da censura era esse. O espetáculo vinha de fora, estava em cartaz em São Paulo, mas a censura era local, então às vezes tinha passado pela censura lá, apresentava aqui e era cortado aqui. Da censura, um episódio interessantíssimo é que veio para cá um espetáculo chamado O que mantém um homem vivo, era com a Éster Góes e com o Renato Borghi, na época em que os dois eram casados. Eu não me lembro do nome do diretor, mas o espetáculo era maravilhoso. Muito Brecht! Muito esquerda, para sair e fazer uma passeata depois do espetáculo. Talentosíssimos. Isso em 76, 77 por aí. Quando eles fizeram a apresentação para a Censura, ela cortou aquele poema do Brecht, sobre o analfabeto político. Ninguém podia assistir o ensaio para a Censura, mas eu ficava, me escondia. Ficavam os dois no centro da plateia, um censor e um assistente, e dando gritos para o palco: “pode começar!”, “Agora!”; “espera aí, deixa eu ver isso aqui”; completamente autoritários, os grupos tinham que ficar: “Sim, senhor”. E aí ele cortou o poema todo! E o Renato ficou puto com o corte, ele argumentou... Ele falava o poema numa maca de hospital, como se fosse um doente no final da vida, e quando ele terminava o poema ele caía e era arrastado para fora do palco. Ele ficou uma arara, por ter apresentado no Brasil quase todo, já tinha passado por Porto Alegre, Curitiba, centros intelectualmente mais evoluídos do que Vitória na época, e teve que fazer aquele corte. Então ficou aquele frisson. E eles ameaçavam, quando tinha algum problema eles voltavam de noite para ver se o cara obedeceu ao corte ou não. Ele cortou, mas na hora que chegou a cena em que ele ia falar o poema, ele fez assim ó [coloca as duas mãos sobre a boca], e ficou parado com a mão na boca até a plateia começar a entender e teve um aplauso enorme e aí isso ficou em todas as sessões (Renato Saudino, entrevista, apud, KUSTER, 2015, p. 55).

A censura também era diferenciada, não só de estado para estado, mas

também quanto ao local em que a peça seria apresentada como é possível perceber

na continuação do relato de Saudino.

Nessas mostras era quase como que um território livre. Era o Carlos Gomes lotado de gente pendurada em tudo quanto é canto. Como era coisa da UFES então era responsabilidade deles. Enquanto era no Carlos Gomes, a gente fazia normalmente, na UFES eles já relaxavam mais, a Polícia Federal falava assim: “bom, aqui dentro o problema é de vocês, o senhor reitor é que resolva”. Onde hoje é a psicologia, ali tinha o teatrinho da UFES, o cineclube, a sala das coordenações, a sala do DCE..., não tinha aula naquele prédio, era só da sub-reitoria de assuntos comunitários. Ali no cineclube que a gente fazia teatro. Um palquinho diminuto, e lá teve um episódio maravilhoso. Tinha um monólogo chamado Muro de Arrimo de Cássio Queiroz Teles, do Cento de Ciências Jurídicas e Econômicas, feito pelos atores do GPP que eram também desse Centro. Os dois Robsons eram da comunicação, mas participavam outros alunos que não eram do GPP. [...] o Muro de Arrimo foi fazer um ensaio para a censura, com o texto na mão. Dentro da UFES era mais tranquilo, mais para constar. E nisso de só para constar, o Robinho começou a lascar o texto, era um texto enorme. Aí o censor falou: “-Opa, está cortado aqui!”; o que estava cortado era “porra”, tinha um carimbo: CORTADO. Vamos dizer que isso foi na página 5, mas um pouquinho a

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frente, lá pela página 19, ele tinha um ataque histérico, e o personagem falava assim: “-também essa porra desse muro, essa porra dessa lajota, essa porra desse bairro, essa porra desse rádio, dá vontade de pegar essa porra dessa pilha e...”; ele falava “porra” a página inteira! Mas o censor de Brasília não carimbou CORTADO. Então aqui pode, aqui não está cortado. Era assim a incoerência. [...] Você mandava três cópias para lá e uma era sua, uma ficava com a Polícia Federal daqui e a outra ficava lá em Brasília no arquivo. E o censor da hora pegava e acompanhava, com óculos, colocava um terno, era uma coisa caricata! [risos] (Renato Saudino, entrevista, apud, KUSTER, 2015, p. 55).

Importa observar, no Espírito Santo, o teatro não estava tão alienado dos

acontecimentos políticos como as artes visuais aparentavam estar. O teatro

conseguiu, de certa forma, provocar, questionar e refletir sobre questões políticas

importantes durante a ditadura militar, mesmo não havendo incentivos

governamentais efetivos no campo das artes cênicas, como também não havia no

campo das artes plásticas, o teatro capixaba se posicionou e se manifestou frente aos

problemas políticos.

2.2 A Arte Socialmente Engajada e a Ditadura Militar Brasileira

O medo era um sentimento comum aos artistas. Enquanto o mundo repensava

o papel da arte, os artistas brasileiros estavam em uma delicada posição, precisavam

repensar as formas de elaborações artísticas em meio a forte censura e repressão

ditatorial, assim como, repensar a própria arte em si.

Claudia Calirman (2013), em seu livro Arte Brasileira na Ditadura Militar, afirma

que os artistas tiveram a necessidade de inovar seu comportamento artístico devido

aos graves episódios de censura com a instauração do AI-5, fazendo com que os

artistas se tornassem cada vez mais dissimulados e apropriassem de ações as quais

Frederico Morais intitulou de “arte de guerrilha”.

Os artistas brasileiros não eram censurados apenas pelo governo; eram

criticados por todos os lados: “a esquerda os acusou de serem elitistas, sem

comprometimento social com a produção cultural de base, enquanto a direita rotulou-

os de rebeldes lançando a semente do comunismo por todo o país” (CALIRMAN,

2013, p.5).

O questionamento que pairava no ar era como conciliar a agenda política

concomitantemente as inovações do fazer artístico, e ainda além, como conciliar a

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atuação política local ao mesmo tempo atuar internacionalmente haja vista os grandes

acontecimentos artísticos internacionais (CALIRMAN, 2013).

Os artistas brasileiros engajaram-se e muitos utilizaram de suas poéticas para

criticar a ditadura, a censura, assim como o próprio campo da arte, e neste último a

grande crítica abordava o valor dos materiais necessários para se fazer uma obra de

arte de qualidade. A crítica também tocava questões sobre a possibilidade de produzir

ações e obras artísticas que questionassem os expectadores. Outro dilema era como

apontar as graves violências promulgadas pela ditadura utilizando de produções

artísticas, uma vez que, tudo passava pela censura dos órgãos do governo.

As mobilizações contra o governo aconteceram em várias camadas da

sociedade e das mais variadas formas possíveis: movimentos estudantis, músicos e

cantores, artistas, jornalistas, escritores, poetas, cineastas e outros. Analisar as

diversas situações ocorridas é tarefa para diferentes abordagens e pesquisas, por

isto, nesta dissertação é analisado as críticas provenientes de artistas plásticos a partir

de suas obras ou intervenções.

Alguns nomes começam a apontar no cenário artístico brasileiro, sendo muito

notória a participação de Frederico Morais, crítico fundamental na história da arte no

pais, que atuou de forma inovadora. Moraes foi muito além de ser um crítico da arte,

mas um atuante e importante agitador desse novo formato artístico definido por ele de

“contra-arte” ou “arte de guerrilha”. Conseguiu com sucesso propor encontros de arte,

ficando famoso por seus eventos como “Domingo da Criação” e “Arte no Aterro”.

Tornou-se um constante companheiro e incentivador dos artistas da vanguarda

brasileira.

Arthur Freitas (2011) destaca em seu artigo Corpo em festa: Frederico Morais

e o Sábado da Criação um importante trecho de um texto publicado por Frederico

Morais sobre esta estratégia artística que surgiam em meio aos conflitos do governo

e as duras censuras

(...) não sendo mais ele autor de obras, mas propositor de situações ou

apropriador de objetos e eventos não pode exercer continuamente seu controle. O artista é que dá o tiro, mas a trajetória da bala lhe escapa. Propõe estruturas cujo desabrochar, contudo, depende da participação do espectador. O aleatório entra no jogo da arte, a “obra” perde ou ganha significados em função dos acontecimentos, sejam eles de qualquer ordem. Participar de uma situação artística hoje é como estar na selva ou na favela. A todo momento pode surgir a emboscada da qual só sai ileso, ou mesmo

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vivo, quem tomar iniciativas. E tomar iniciativas é alargar a capacidade

perceptiva, função primeira da arte (MORAIS apud FREITAS, 2011, p. 4).

A ditadura foi um marco na história política do Brasil, assim como a instauração

do Ato Institucional n°5, conhecido como AI5, um marco drástico nos meios artísticos

e culturais do país resultando imediatamente em prisões em massa de grupos de

estudantes, artistas, intelectuais, jornalistas além de censurar com maior violência os

meios de comunicação. Desta forma, Arthur Freitas (2013), em outra relevante obra,

“Arte de Guerrilha”: Vanguarda e Conceitualismo no Brasil, ressalta o impacto do AI5

nas elaborações artísticas.

A partir dali, vários daqueles jovens artistas – ou “contra-artistas”, como queria o crítico – estariam envolvidos com uma produção urgente, efêmera e comportamental, nascida às margens do AI-5 e disposta, se quisermos, como uma forma bastante particular de conceitualismo ideológico. Paralelo a isso, foi logo no começo de 1970 que Frederico amadureceu seus argumentos e buscou trabalhar com a ideia de uma “arte de guerrilha” – com o que [...] pôsse em contato, embora indiretamente, com uma problemática estético-ideológica mais ampla e basicamente latino-americana (FREITAS, 2013, p. 72).

Claudia Calirman (2013) faz um importante panorama internacional da década

de 1960, explicando o porquê de a situação política brasileira não ter conseguido

maior destaque internacional. A autora afirma que se o golpe militar tivesse ocorrido

em outro contexto o Brasil teria alcançado grande destaque nas páginas dos jornais

internacionais, no entanto, explica que o mundo vivia uma profunda agitação social.

Na Bolívia a morte trágica de Che Guevara, outubro de 1967, se tornando um

grande ídolo de toda uma geração. Os Estados Unidos em profundo nível de

descontentamento com a guerra do Vietnã, que deu origem aos movimentos de

contracultura, juntamente com o assassinato de Robert F. Kennedy e do ativista Martin

Luther King Jr., momento que se torna um marco na luta pelos direitos civis em 1968.

Do outro lado do Atlântico o clima não era nada diferente. Na França, no mesmo ano,

surgem uma série de movimentações estudantis na luta por um ideário moral

libertador, onde jovens estudantes ocupam a Sobornne com cartazes “É proibido

proibir”, “Juventude no poder” e “Sejam realistas, exijam o impossível”. Todo este

cenário internacional “fez com que coubesse ao povo brasileiro grande parte da

responsabilidade de moldar seu próprio caminho, tanto político, como culturalmente”

(CALIRMAN, 2013, p. 10).

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Em 1969, alguns meses antes da X Bienal de São Paulo, artistas e intelectuais

se reuniram no Museu de Arte Moderna de Paris para debater a situação política do

Brasil, decidindo por um boicote à Bienal, em solidariedade aos artistas brasileiros

que viviam e trabalhavam sobre forte repressão. A consequência desta decisão foi a

recusa de 80% dos artistas convidados de países como: Argentina, Estados Unidos,

Itália, México, República Dominicana, Espanha entre outros. A autora afirma que a

ausência da participação destes artistas e da entusiástica arte proveniente da década

de 1960 deixaram a comunidade artística brasileira isolada das estimulantes criações

artísticas internacionais.

As grandes mídias foram imediatamente censuradas com a ratificação do AI5,

e no mesmo dia em que foi promulgado, inúmeras redações de jornais foram visitadas

por agentes do regime militar tirando notícias de circulação e até mesmo impedindo o

funcionamento total de alguns desses jornais.

Quando censores chegaram ao Jornal do Brasil, o periódico mais importante da época no Rio de Janeiro, o editor-chefe Alberto Dines estava determinado a burlar os censores e a denunciar o controle militar sobre a imprensa. No dia seguinte, uma manhã quente de dezembro, os leitores viram um título incomum na primeira página do Jornal do Brasil: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar é irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos” (CALIRMAN, 2013, p. 21).

Apesar de toda a censura imediata sofrida pela mídia, os artistas conseguiam

trabalhar relativamente livres em suas rotinas. A autora justifica esta relativa liberdade

á alguns fatores como a falta de visibilidade que a arte tinha, a qualidade efêmera das

produções e sobretudo a ideia que o governo tinha dos artistas como –

inconsequentes e irrelevantes – utilizando seus esforços ao que consideravam mais

acessível ao grande público como os jornais e a televisão. Além disso, a censura

sofrida pelos artistas era sombria e não tinha qualquer critério estabelecido. A relativa

liberdade dos artistas fazia com que muitos deles se autocensurassem impedindo a

existência de mais obras do que as que foram levadas até a última instancia da

criação.

Outro contraste da censura com a arte, em detrimento a música, jornal, teatro

e outros é a ausência de números para uma melhor compreensão de quantas obras

de arte foram censuradas, uma vez que, quando uma exposição era fechada pela

censura, centenas de obras de arte não eram expostas. Calirman (2013) afirma que

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até os dias de hoje não há nenhum levantamento sobre quantas obras de arte foram

censuradas.

Uma exposição pequena alcança as mordaças do AI5 em 1968, um ano antes

da X Bienal de São Paulo, particularmente, devido ao discurso do governador da

Bahia, Luiz Vianna Filho que dizia que toda a nova arte tinha que ser revolucionária,

defendendo que é a liberdade que caracteriza a arte. No dia seguinte ao discurso de

inauguração, a II Bienal Nacional da Bahia foi fechada pela Polícia Federal e os

organizadores foram presos.

Muitos outros momentos de censura na arte aconteceram.

Na primavera de 1969, em meio a crescente inquietação na comunidade artística, os censores atacaram novamente, naquele que se tornou o episódio mais grave, culminando no boicote a X Bienal de São Paulo. A Pré-Bienal de Paris, programada para inaugurar em 29 de maio de 1969 no MAM/RJ, foi concebida como uma seleção prévia para a VI Bienal de Jovens no Museu de Arte Moderna de Paris (outubro, novembro, 1969). Das obras de arte inscritas 12 haviam sido escolhidas para representar o Brasil nas categorias de pintura, gravura, fotografia, escultura e arquitetura. Todos os trabalhos submetidos ao júri ficariam expostos ao público até o fim de junho, quando as obras selecionadas seriam então enviadas a Paris. Dentre aquelas que fariam parte da exposição, várias foram consideradas provocadoras. Evandro Teixeira, repórter fotográfico do Jornal do Brasil, apresentou uma fotografia, de 1965, de um motociclista da Força Aérea Brasileira (FAB) caindo no chão durante uma manifestação de rua, uma imagem que ridicularizava a polícia. A série de Antonio Manuel, Repressão outra vez – eis o saldo (1968), constituiu-se numa obra instigante ao convidar os expectadores a suspender as cortinas negras que cobriam imagens de comunicação que chamavam a atenção para os conflitos entre a polícia e os estudantes (CALIRMAN, 2013, p, 25).

Lamentavelmente a Pré-Bienal de Paris foi fechada antes mesmo de ser aberta

ao público. Os militares entraram no museu e fecharam a exposição colando todas as

obras no depósito. Este acontecimento chamou a atenção dos militares para as obras

artísticas e para os museus de forma geral. O MAM/RJ passou a ser vigiado

diariamente. Internacionalmente este evento teve a repercussão necessária para que

houvesse, meses depois, o grande boicote a X Bienal de São Paulo, que não foi

apenas um boicote a esta bienal, e sim um grande boicote que durou uma década.

Todo o movimento em torno do boicote a X Bienal de São Paulo proporcionou

grande repercussão internacional e contou com apoio de vários países como Grécia,

Bélgica, Itália, México, Espanha, Suíça, entre outros que não só aderiram ao boicote

a X Bienal, como mantiveram o boicote nos anos seguintes. No entanto, a situação

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dos Estados Unidos era mais complexa. A arte fazia seu caminho cada vez mais

político, no entanto as políticas públicas do país caminhavam por direções bem

diferentes. Sobre este momento, György-Kepes citado por Calirman aponta

A política externa do governo dos Estados Unidos é um obstáculo em potencial a todas as exposições que ocorrem sob sua tutela. (...) infelizmente, não vivemos numa época em que uma exposição de arte possa ser vista e apreciada por si só. O governo americano está engajado em uma guerra imoral com o Vietnã e apoia vigorosamente os regimes fascistas no Brasil e em outras partes do mundo. Neste momento, todas as exposições sob os auspícios do governo americano são feitas para promover a imagem e as políticas deste país. É uma operação de relações públicas, não importa quais sejam as intenções dos organizadores e dos participantes, e, graças a tolerância de governos repressores, a energia dos artistas tem sido canalizada para servir uma política que eles legitimamente desprezam. Se eles não desejarem se tornar cúmplices involuntários, não há outra escolha senão recusarem-se a mostrar seu trabalho nas representações do país afora (GYÖRGY-KEPES, apud CALIRMAN, 2013, p. 31).

Toda a movimentação em torno do boicote, afirma Calirman (2013), contribuiu

significativamente como uma mobilização do meio artístico através de uma profunda

polêmica em torno da ética em um campo dominado pela estética.

Em resumo, a X Bienal de São Paulo aconteceu de forma que a maior parte do

público nem mesmo tomou conhecimento de todos os meses de debates que

aconteceram anteriormente. A intensão do boicote criou um senso de solidariedade

no meio da arte e quase foi levado até as últimas consequências, no entanto, a

decisão de participar da Bienal de forma estratégica, fez mais sentido do que

simplesmente agir passivamente deixando os espaços em branco. A mídia

internacional conseguiu fazer uma substancial cobertura do boicote, diferente da

mídia brasileira.

No total 50 países e 510 artistas plásticos participaram dessa Bienal, porém

toda a situação em relação ao boicote, e apesar da adesão dos que participaram, a

Bienal tornou-se um evento irrelevante, haja visto as obras que foram apresentadas e

a ausência de trabalhos potentes que aconteciam ao redor do mundo que não

participaram do evento. A França e os Estados Unidos foram acusados de sabotarem

o evento a fim de manterem sua hegemonia cultural (CALIRMAN, 2013).

Os anos que se seguiram foram anos aos quais a autora critica a afirmação de

“vazio cultural” utilizada por Zuenir Ventura que descreveu estes anos por

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(...) desaparecimento de temas políticos e controvérsias na esfera cultural, a evasão dos melhores cérebros, o êxodo de artistas, o expurgo nas universidades, a queda a venda de jornais, livros e revistas, programas de televisão de segunda categoria, o surgimento de valores estéticos falsos e a hegemonia da cultura de massa (ZUENIR VENTURA, apud CALIRMAN, 2013, p. 38).

Para a autora, é inegável o poder de estagnação cultural que foi exercido pela

ditadura militar, no entanto, os artistas plásticos não reprimiram sua luta e

engajamento político em suas poéticas. Foram anos estéreis em vários aspectos para

a grande massa da população, no entanto para a arte, apesar de percorrer caminhos

sombrios, o AI5 criou um solo fértil para potentes intervenções artísticas, algumas já

vistas anteriormente e outras que serão exploradas a seguir, com foco nas

provocações das obras sobre a Ditadura Militar Brasileira.

2.2.1 Artur Barrio

Artur Alípio Barrio de Sousa Lopes, artista plástico nascido em 1945 em Porto,

Portugal, e passando a residir no Rio de Janeiro a partir dos 10 anos de idade. Sua

grande contribuição foi a crítica que fez as artes quanto a utilização de materiais

precários, perecíveis e de baixo custo, argumentando que os materiais tradicionais

eram mais uma forma de poder da elite que minimizava a liberdade de artistas de

países subdesenvolvidos.

Barrio agia de forma bem particular em meio ao cenário artístico brasileiro,

Calirman (2013) acredita que o expectador não familiarizado teria profundas

dificuldades em identificar suas obras como arte, inclusive para as próprias forças de

repressão, passando despercebido em algumas de suas intervenções. Sobre esta

perspectiva, Frederico Moraes ressalta que

O artista, hoje, é uma espécie de guerrilheiro. A arte, uma forma de emboscada. Atuando imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada (pois tudo pode transformar-se, hoje, em arma ou instrumento de guerra ou de arte) o artista cria um estado permanente de tensão, uma expectativa constante. Tudo pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano. Vítima constante da guerrilha artística, o espectador vê-se obrigado a aguçar e ativar seus sentidos (o olho, o ouvido, o tato, agora também mobilizados pelos artistas plásticos), sobretudo, necessita tomar iniciativas (MORAES, apud, FREITAS, 2013, p. 82).

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Entre a arte e a loucura, Barrio também tinha grande interesse em entender

esta relação e utiliza o próprio corpo para testar seus limites. Na performance 4 dias

e 4 noites (1970) o artista caminhou pelas ruas do Rio de Janeiro sem parar para

comer ou dormir. Interessante a esta criação é o fato de não haver nenhum registro

da mesma, nem fotografias, nem filmagens, nada. Sobre esta intervenção efêmera,

existem apenas a memória e os escritos do artista, com profundas críticas a arte na

sociedade capitalista. Durante estes quatro dias, Barrio, conviveu com moradores de

rua, dialogou com transeuntes, andou por vários locais até mesmo por galerias de

esgoto experimentando o corpo até o auge do esgotamento.

Outro momento importante na história de Artur Barrio foi a interação que o

artista fez na exposição da artista Cláudia Paiva no Museu de Arte Moderna do Rio

de Janeiro. Barrio dançou pelo salão em que as obras estavam instaladas, andou,

pisou e chutou o que estava no local. Uma das latas de tinta exposta se abriu sujando

o chão do museu. O artista declarou que sua intenção era criar um vínculo com a obra

em que ele se misturou com a própria obra em uma dança livre e espontânea.

Naquele momento a arte e a vida, a loucura e a morte misturavam-se com tal violência nessa performance sem espectadores que se poderia dizer sem medo de errar que a arte brasileira atingia o clímax de sua tragédia, seu momento alto na figura iluminada de Barrio, cujo comportamento existencial passava a ser símbolo de toda uma geração ameaçada e frustrada (MORAIS, apud CALIRMAN, 2013, p. 99).

Barrio foi intenso em todas as suas poéticas. Destaca-se as Trouxas

Ensanguentadas17, frente ao momento político da ditadura militar, tornando-se sua

obra mais famosa, ou mais marcante. Esta criação foi elaborada a partir do uso de

materiais precários e perecíveis com: carne, osso, sangue, espuma, papel pano e

cordas. A obra questiona a violência imputada pelos militares, assim como a

necessidade de materiais caros para a produção de arte. A obra foi uma dura crítica

ao sistema econômico artístico e ao sistema político implantado com o golpe militar

que imputava severa violência para manutenção do regime através de mortes,

perseguições políticas e dos inúmeros casos de torturas.

17 As trouxas foram espalhadas pela cidade e também expostas em galerias. “Catorze misteriosas Trouxas Ensanguentadas (1970) surgiram nas margens de um rio em Belo Horizonte” – Publicação do Instituto Inhotim.

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FIGURA 22: Trouxas Ensanguentadas (1970)

Fonte: http://doobjetoparaomundo.org.br/artista/artur-barrio/ acesso em 23 de out. 2017.

FIGURA 23: Trouxas Ensanguentadas (1970)

Fonte: http://doobjetoparaomundo.org.br/artista/artur-barrio/ acesso em 23 de out. 2017.

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[...] A tarefa do artista-guerrilheiro é criar para o espectador (que pode ser qualquer um e não apenas aquele que frequenta exposições) situações nebulosas, incomuns, indefinidas, provocando nele, mais que o estranhamento ou a repulsa, o medo. E só diante do medo, quando todos os sentidos são mobilizados, há iniciativa, isto é, criação. [...] O artista não é o que realiza obras, dadas à contemplação, mas o que propõe situações – que devem ser vividas, experimentadas (MORAIS, apud, FREITAS, 2013, p. 102).

A intervenções de Artur Barrio, com as trouxas ensanguentadas simulando

corpos assassinados e desovados pela cidade, provocaram os expectadores, a polícia

e a mídia. A especulação em torno da obra é muito bem definida pelas considerações

feitas por Frederico Morais supramencionada, que explica que uma intervenção tem

quando provoca e mobiliza os sentidos de seus expectadores.

2.2.2 Cildo Meireles

Cildo Meireles, artista nascido no Rio de Janeiro em 1948, tornou-se de

grande importância nacional e internacional. O artista formula seus questionamentos

aos sistemas artísticos e políticos produzindo grande impacto na arte de vanguarda

brasileira.

Meireles começa sua carreira em meio aos primeiros anos da ditadura militar

e suas poéticas evidenciam duas posições distintas do artista: a busca por uma

profunda investigação conceitual, baseada em tempo e espaço, ao mesmo tempo que,

utilizava de suas poéticas para fazer duras críticas ao regime político de seu tempo.

Calirman (2013) afirma que o confronto nas criações do artista permeava o

questionamento quanto a efetividade da arte em um país com rotineira censura dos

meios artísticos, midiáticos, jornalísticos. Qual arte faria sentido nisso tudo? Como

elaborar uma arte que fosse efetiva frente a estas questões? Aos questionamentos,

Kynaston McShine em seu ensaio introdutório sobre Meireles aponta

Se você é um artista no Brasil, você sabe de pelo menos um amigo que está sendo torturado; se você é um artista na Argentina, você já teve algum vizinho que esteve na prisão por usar cabelos compridos, ou por não estar “vestido” de forma apropriada; e se você está vivendo nos Estados Unidos, você provavelmente teme ser baleado, ou nas universidades, ou em sua cama, ou em termos mais formais, na Indochina. Pode parecer totalmente descabido, se não absurdo, levantar-se pela manhã, entrar numa sala, apertar um pequeno tubo de tinta e dar pinceladas em uma tela quadrada. O que você pode fazer, sendo um jovem artista, que pareça relevante? (MCSHINE, apud CALIRMAN, 2013, p. 124).

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Sobre os violentos métodos adotados pela polícia durante os interrogatórios

Meireles elabora sua mostra intitulada Introdução a uma nova crítica (1970). A obra

era uma cadeira com vários pregos espetados para cima, e, de certa forma, coberta

por um pano preto simulando um local de interrogatório e tortura.

FIGURA 24: Introdução a uma nova crítica (1970)

Fonte: https://comunicacaoeartes20122.wordpress.com/2013/02/18/cildo-meireles/ acesso

em 05 de nov. 2017.

Na amostra Information (1970) o artista carioca utiliza mais uma vez a

oportunidade de transformar sua criação em protesto político, elaborando em suas

poéticas algumas criações baseadas nos meios de circulações existentes na

sociedade. Sobre essas obras o próprio artista afirma

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1) Existe na sociedade determinados mecanismos de circulação (circuito); 2) estes circuitos veiculam, evidentemente, a ideologia do produtor, mas, ao mesmo tempo, são passíveis de receber inserções na sua circulação; 3) e isso ocorre sempre que as pessoas as deflagram. As inserções dos circuitos ideológicos surgiram também da constatação de duas práticas mais ou menos usuais. As correntes de santos (aquelas cartas que você recebe, cópia e envia para as pessoas) as garrafas de náufragos jogadas no mar. E trazem implícita a noção do meio circulante, noção que se cristaliza mais nitidamente no caso do papel-moeda e, metaforicamente, nas embalagens de retorno (as garrafas de bebidas por exemplo) (MEIRELES, apud CALIRMAN, 2013, p. 125).

A partir dessas concepções, Cildo Meireles, cria Inserções em Circuitos

Ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970), exibida na mostra Information no Museu de

Arte Moderna de Nova Iorque (MOMA-NY). Meireles utiliza uma técnica chamada

silkscreen e escreve em garrafas de Coca-Cola várias mensagens, entre elas a

“Yankees go home” (algo como “Americanos voltem para casa”), retornando as

garrafas para circulação. O artista utiliza-se dos sistemas de distribuição de bebidas

de uma marca tão cara ao capitalismo para fazer circular informação sem nenhum tipo

de controle centralizado.

A apropriação feira por Cildo Meireles dos mecanismos de circulação, coloca

o expectador como peça fundamental em sua criação. A obra caminha pela

sociedade, transita pelo ambiente comum, público, sai do circuito artístico e entra no

tráfego comercial. Dependente deste público, não prossegue se não houver

participação. Uma nova versão do ready-made de Duchamp, no entanto, apesar da

pequena intervenção do artista no objeto, o ponto forte da obra é a vinculação pública

e de certa forma, gratuita da mesma.

A obra de Cildo convida para ação do público contra um processo imperialista, uma ação política, não uma imagem para se contemplar. Cildo busca ir além da metáfora, e seu trabalho chama a população para praticar um ato de insubordinação social e política. Dessa forma, vanguarda e guerrilha se cruzavam na redefinição de valores éticos, culturais e políticos. Transformar a arte era transformar o mundo e o início desse processo se estabelecia na criação de crises, entre as quais a maior era a própria dificuldade de julgar ou entender os limites entre arte e vida (PAGATINI, 2016, p. 1863).

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FIGURA 25: Inserções em Circuito Ideológico: Projeto Coca-Cola (1970)

Fonte: https://livroseafins.com/a-coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles/ acesso em 23 de out. 2017.

É deste projeto que Meireles elabora uma das obras mais marcantes, no

período da ditadura, intitulada Inserções nos Circuitos Ideológicos: Projeto Cédulas,

com uma atitude ousada, interventiva e de caráter contestador, carimba em notas

reais e válidas da época a frase “Quem matou Herzog18?”, e ao recolocar estas notas

18 A obra faz menção ao jornalista morto no dia 25 de outubro de 1975 havendo muitas controvérsias sobre possível assassinato ou possível suicídio.

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em circulação causa forte impacto. Uma atitude que mostra sua visão de

democratização da arte e da informação que foi além de uma crítica as políticas da

ditadura, mas uma grande crítica ao elitismo artístico da época e também

questionando a relação do público com o privado.

FIGURA 26: Inserções em Circuito Ideológico: Projeto cédula (1975)

Fonte: https://livroseafins.com/a-coca-cola-incendiaria-de-cildo-meireles/ acesso em 23 de out. 2017.

Sobre esta criação Cildo Meireles faz as seguintes considerações.

Nem sempre a função é buscar a beleza. Talvez o percurso esteja muito mais ligado à questão a verdade do que da beleza. O que eu acho interessante no objeto de arte é quando ele sequestra espectador, naquele lugar e naquele momento. Mesmo que seja por milionésimos de segundo, está você e o objeto, você sai daquele lugar, naquele momento, e vive uma experiência única, por mais breve que seja... Não é um êxtase, mas é alguma coisa que altera profundamente a tua relação normal com aquele espaço, aquela rua, aquela cidade, aquele país, entendeu? É quando o objeto faz o sujeito esquecer-se de si mesmo. Para mim, isso está muito próximo do que é a beleza em arte (MEIRELES, apud, RODRIGUES, 2012, p. 106).

As obras de Cildo Meireles contrastam a relação sentimental com a relação

do objeto concreto e simbólico. O medo da censura no simbolismo da cadeira de

tortura, o impacto do questionamento sobre a morte de Herzog, são abordados pelo

artista na tentativa de seduzir sentimentalmente o expectador, uma diferente

perspectiva do uso dos sentidos, assim como, nas poéticas de Artur Barrio.

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2.2.3 Hélio Oiticica

Hélio Oiticica (1937-1980), nascido no Rio de Janeiro, participou ativamente

do engajamento político junto com demais artistas de sua época. Sua contribuição

para as artes brasileiras é inestimável em vários campos.

Oiticica elabora uma nova possibilidade artística intitulada Nova Objetividade.

Sobre este movimento o próprio artista define

Nova Objetividade seria a formulação de um estado da arte brasileira de vanguarda, cujas principais características são: 1: vontade construtiva geral; 2: tendência para um objeto ao ser negado e superado o quadro do cavalete; 3: participação do espectador (corporal, tátil, visual, semântica etc.); 4: abordagem e tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos; 5: tendência para proposições coletivas e consequente abolição dos “ismos” característicos da primeira metade do século na arte de hoje (tendência esta que pode ser englobada no conceito de “arte pós-moderna” de Mário Pedrosa); 6: ressurgimento e novas formulações do conceito de antiarte (OITICICA, apud FERREIRA, COTRIM, 2006, p. 154).

Segundo o artista, o que difere a formulação artística no Brasil também é

consequência de ser o brasileiro um povo em busca por uma caracterização cultural,

justificado por todo histórico de formação do país e por não existir aqui um legado

cultural milenar como existe em países europeus, assim como, nos Estados Unidos

com sua superprodutividade exportando sua cultura mundo a fora.

A partir desta explicação, o artista explica a necessidade construtiva do

brasileiro visando abolir de certa forma os resquícios do colonialismo, e, para ele, é

esta necessidade que explica a função primeira da Nova Objetividade: buscar “pelas

características nossas, latentes e de certo modo em desenvolvimento; objetivar um

estado criador geral, a que se chamaria de vanguarda brasileira, numa solidificação

cultural”. Para Oiticica este esforço fundamental inclusive, se para isso, for necessário

usar métodos especificamente anticulturais (OITICICA, apud FERREIRA, COTRIM,

2006, p. 154).

Hélio Oiticica, juntamente com Antonio Manuel, elaboram juntos Tropiália no

Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Tropicália recriava o espaço dentro de

uma favela do Rio de Janeiro a partir dos materiais que os próprios moradores da

favela utilizavam em seu cotidiano. Eram dois barracos de madeira cobertos com

tecidos coloridos. No espaço, o chão coberto de areia e pedra, que propiciava o

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público caminhar descalço, também estavam papagaios vivos, andando dentro de

uma grande gaiola, componho a exposição. Em um ambiente escuro uma televisão

era usada para recriar os sons e ruídos da cidade, em um segundo ambiente a

inscrição “A pureza é um mito”.

FIGURA 27: Tropicália (1967)

Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento81894/nova-objetividade-brasileira-1967-rio-de-

janeiro-rj acesso 05 de nov. 2017.

Em 1959, Oiticica funda com Lydia Clark, Franz Weissmann e Amilcar de

Castro o grupo Neoconcreto, mudando de vez as feições da arte moderna brasileira.

Sobre este movimento o poeta Ferreira Gullar escreve um manifesto19 no qual faz

importantes afirmações sobre a arte. Para o crítico a obra de arte não deveria ser

19 Ferreira Gullar, “Manifesto Neoconcreto,” IN: 1 a.Exposição Neoconcreta, catálogo (Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1959), s. p. O crítico escreveu esse manifesto, que foi co-assinado pelos participantes da exposição inaugurada em 19 de março de 1959.

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concebida nem como máquina tão pouco como objeto, para Gullar a arte é um “quasi-

corpus”, ou seja, a arte assume a perspectiva de um ser, cuja realidade, não finda nas

relações externas de seus elementos. Para Gullar a pintura e a escultura foram

superadas por uma arte que transpassa o espaço, alcançando a vida e no Brasil este

entrelaçamento se dá de forma problemática as conexões entre arte e vida. Gullar

também assume que o movimento Neoconcreto brasileiro é definido pela transição da

arte modernista para a arte vanguardista.

Além de todo engajamento de Hélio Oiticica no grupo Neoconcreto, ele

também faz fortes contribuições as críticas ao governo ditatorial. Uma singular atitude

do artista, ocorre no ano de 1965, quando a polícia matou um marginal chamado Cara

de Cavalo, pessoa com quem Oiticica tinha contato na favela. Sobre o acontecimento,

os jornais noticiaram a morte do marginal com uma foto, a qual Oiticica usou para

compor um estandarte, com a técnica da serigrafia sobre tecido. Ele alterou a legenda

original do jornal e re-escreveu a seguinte frase: “Seja Marginal. Seja Herói20”. A obra

foi exposta na Boate Sucata durante um show dos Mutantes com Gilberto Gil. Esta

atitude causou o fechamento da boate e consequentemente justificou a perseguição

aos músicos. A obra tinha o nome de “Homenagem a Cara de Cavalo”, o que era,

claramente, uma afronta aos militares.

Em 1968, Oiticica junto com Antonio Manuel elabora mais uma ação coletiva.

A pedido de Oiticica, Manuel cria a série intitulada Urnas Quentes que contava

inteiramente com a participação do público e fazia duras críticas ao regime militar. A

ação aconteceu no Aterro do Flamengo e o público era solicitado a quebrar vinte

caixas lacradas e dentro destas caixas haviam recortes de jornais, textos, poemas e

fotografias da época. Todas as urnas eram diferentes, cada uma continha um

conteúdo específico e só era acessível ao público após ser quebrada com martelo.

Claudia Calirman (2013) analisa a intervenção com uma curiosidade, a qual

possivelmente o próprio Antonio Manuel desconhecia. O artista intitulou a obra de

Urnas quentes devido a urgência do problema político brasileiro, e também com uma

profunda ironia a supressão das eleições no Brasil durante a ditadura, no entanto, Guy

Brett observa a palavra urna, em inglês é urn é associada a cinzas e morte, diferente

da palavra no português que refere-se a uma caixa apenas, reforçando ainda mais a

crítica situação vivida pelo país.

20 Imagem apresentada na abertura deste capítulo, página 68.

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FIGURA 28: Urnas Quentes (1968)

Fonte: http://brmenosmais.blogspot.com.br/2010/08/antonio-manuel-urnas-quentes-1968.html acesso

05 de nov. 2017.

FIGURA 29: Urnas Quentes (1968)

Fonte: http://brmenosmais.blogspot.com.br/2010/08/antonio-manuel-urnas-quentes-1968.html acesso

05 de nov. 2017.

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2.2.4 Antonio Manuel

Antonio Manuel, nascido em Portugal no ano de 1947, chega ao Brasil em

1953 passando a residir no Rio de Janeiro. Em 1970 ganha grande destaque com sua

criação O Corpo é Obra na qual propõe o uso do próprio corpo para ser exposto

durante o XIX Salão Nacional de Arte Moderna, no MAM/RJ.

Claudia Calirman (2013) aponta as dificuldades encontradas pelo artista.

Antonio Manuel recorda: “No dia da exposição, levei um banquinho e fiquei na fila esperando a vez de apresentar minha obra de arte... Eu me ofereci para ser exposto ao público no museu por todo o tempo que durasse a exposição” O primeiro problema que surgiu foi de ordem burocrática: de acordo com as regras do Salão, não era permitida a presença de um artista durante a deliberação do júri. Antonio Manuel respondeu que ele, enquanto obra de arte, tinha o direito de permanecer no museu (...) O segundo obstáculo foi quanto a autoria: quem seria considerado o criador da obra? Quando confrontado pelo júri, Antonio Manuel disse: “Eu sou a obra de arte e meu corpo quer concorrer ao prêmio final. Portanto, se eu ganhar, o prêmio deve ser dado ao autor da obra, que nesse caso é meu pai (CALIRMAN, 2013, p. 41).

FIGURA 30: O Corpo é a Obra (1970) - Performance no MAM/RJ

Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202008000100007 acesso em

23 de out. 2017.

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Sua obra foi recusada, no entanto, no dia da abertura do Salão, Antonio

Manuel, presente como convidado, despiu-se e subiu as escadas do MAM/RJ, chegou

ao parapeito e segurou um poste. Sua postura, aponta Calirman, transmitia a ideia de

um brando e de estar segurando uma bandeira invisível. A atitude crítica do artista,

seu ato de transgressão em resposta a rejeição alcançou grande repercussão.

Para a autora, a atitude do artista poderia ter tido outra percepção caso não

tivesse alcançado uma repercussão tão significativa, poderia ter sido considerado

infantil, no entanto, seu ato espontâneo, contudo, acabou se tornando um símbolo de

rebeldia. Rebeldia contra as regras arbitrárias de salões de arte e exposições, e

sobretudo contra a falta de critérios consistentes para a censura as artes provenientes

da Ditadura Militar. No dia seguinte a performance de Antonio Manuel a exposição foi

fechada pela polícia.

A atitude do artista alcançou as mídias e também os críticos de arte que

fizeram duras críticas. Alguns críticos de arte se manifestaram em artigos e jornais.

Jacob Klintowitz, no jornal Tribuna da Imprensa, questiona a importância de Antonio

Manuel no campo da arte, afirmando que, ele não tinha um nome de representação,

tão pouco tinha criado algo de valor estético relevante em sua carreira, ainda chama

a obra de um exibicionismo sexual. Antonio Bento, no jornal Última Hora, afirma que

o artista não tinha as condições estéticas necessárias para apresentar o próprio corpo

como obra de arte, alegando que o corpo de Antonio Manuel não era a mesma coisa

que a estátua de Apolo de Belvedere de Leocarés ou a Manja Desnuda de Goya, pois

por não possuir a estética de um deus grego era desprovida de valor artístico

(CALIRMAN, 2013).

Ao fugir da exposição, por medo da perseguição e da censura recorrente,

Antonio Manuel se refugia na casa de Mário Pedrosa, que em conversa gravada pelo

fotógrafo Hugo Denizart, afirma que “‘a atitude de Antonio Manuel transcendeu a

discussão estética. Era a própria vida. Já não era mais uma obra de arte acabada que

estava em discussão, mas uma ação criativa’” (PEDROSA, apud CALIRMAN, 2013,

p. 48).

O comportamento do artista foi repudiado oficialmente pela Comissão

Nacional de Belas Artes negando o direito de participar de qualquer salão oficial de

arte por dois anos. Sobre toda a situação Antonio Manuel resume

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Naqueles dias o corpo estava na linha de frente. Ele foi submetido à violência em protestos de rua e aos mecanismos de tortura utilizados pelo regime militar contra prisioneiros políticos. Pouco a pouco, comecei a perceber o corpo como o tema central para o meu trabalho. Afinal, era meu corpo que estava nas ruas, exposto a tiroteios, tiros e pedradas durante os confrontos dos estudantes com a polícia. Então, imaginei meu corpo como obra de arte (MANUEL, apud CALIRMAN, 2013, p. 49)

O corpo, em um regime opressor, é um importante meio para manutenção do

medo e do poder da ordem vigente através de torturas, prisões e morte. O corpo é o

objeto utilizado para a dominação política: forças de opressão o atacam diretamente.

Em outros países aconteciam intervenções em que o nu era utilizado, no entanto, no

Brasil despir-se era um ato de rebeldia política fortemente combatido.

Nitidamente as críticas feitas ao artista baseavam-se apenas nas normativas

estéticas convencionais. Antonio Manuel, conforme afirma Calirman (2013) seguia os

caminhos de Duchamp, uma vez que ambos utilizaram o corpo para criticar o papel e

os valores das instituições e a arbitrariedade dos regulamentos e dos juris da mesma.

Duchamp com sua obra Fountain em1917 e cinquenta e três anos depois Antonio

Manuel com O corpo é a obra 1970. Pensando nos últimos acontecimentos

envolvendo o corpo nas Artes Visuais,21 as raízes normativas da arte continuam

carentes de questionamentos no Brasil de 2017.

Todas as obras aqui apresentadas, e muitas outras que ficaram de fora, as

palavras de Calirman na conclusão de sua obra devem ser relevantes nas análise

sobre a arte durante regimes opressores, quaisquer que sejam eles.

[...] Foi, sem dúvida, o período mais duro da história moderna brasileira, uma época de medos e horrores inimagináveis. Assim, ainda que os trabalhos comentados neste livro tenham surgido de um desejo de resistir ao regime, de provocá-lo e de denunciar os horrores cometidos em seu nome, seria absurdo dar qualquer crédito à ditadura como estímulo à produção artística. Pode-se somente imaginar a riqueza da produção artística que poderia ter florescido no Brasil não fosse o medo da repressão, e se o país não estivesse sido subjugado pelos militares. Os artistas discutidos neste livro usaram sua criatividade e talento para refletir sobre a ditadura, mas a sua criatividade não foi produto do regime – eles não fizeram arte por causa da ditadura, mas a despeito de e apesar dela. Contudo, suas obras estavam ligadas a esta terrível realidade. Qualquer discussão a arte deste período, por tanto, deve deixar isto bem claro: apesar da importância das obras produzidas, foi uma época desoladora (CALIRMAN, 2013, p. 103).

21 Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. A referida exposição, que estava em

cartaz a um mês no Santander Cultural foi cancelada, em setembro de 2017, após protestos nas redes sociais articulados pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e grupos religiosos alegando que a amostra fazia apologia à pedofilia e a zoofilia.

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2.2.5 Paulo Bruscky

Paulo Roberto Barbosa Bruscky, artista e poeta, nascido em Recife em 1949,

é um importante nome no movimento de Arte Postal de nível internacional, e um dos

pioneiros dessa categoria de intervenção no Brasil.

Bruscky fez duras críticas ao sistema institucional da arte, considerava os

museus como cárceres e as telas como celas. Nos anos 1975 e em 1976 organiza

duas exposições internacionais de arte em Recife. A primeira apresentada dentro de

um hospital, e a segunda no prédio dos correios de Recife, no entanto, a última foi

fechada pelo regime militar. Em 1978 o artista pendurou no próprio pescoço uma placa

com os dizeres “O que é arte? Para que serve?” e ficou na entrada de uma grande

loja, também pichou em um muro “Não se pode aprender a arte”.

FIGURA 31: O que é arte? Para que serve? (1978)

Fonte: https://jornaltabare.wordpress.com/2013/03/20/nao-se-pode-prender-a-arte/ acesso 22 de dez.

2017

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Ludimila Britto (2013, p. 207), ao analisar as obras de Bruscky e a Arte Postal,

aponta os movimentos futuristas e dadaístas e suas influências para a arte

contemporânea na aproximação da arte e da vida. Quanto a Poesia Visual, formaram

as bases dessa linguagem artística “por conta de seus “jogos” e experimentações

tipográficas, a quebra da sintaxe usual e à mescla de aspectos visuais e sonoros em

determinadas obras gráficas”. Para Britto, os movimentos Dadá e o Futurismo foram

precursores da Arte Postal, uma vez que muitas das características centrais destes

dois movimentos, são encontrados nos trabalhos de Arte Correio dos anos 1960 e

1970. Sobre o movimento da Arte Correio Britto (2013) ressalta

Longe de produzir trabalhos leves e despretensiosos, a rede internacional de Arte Correio, que se espalhou pelo mundo e atingiu seu apogeu em meados de 1970, produziu um circuito de troca de ideias, informações e propostas artísticas socialmente engajadas, com uma preocupação política que ultrapassava seus ideais estéticos. Atitudes de grupos irreverentes e contestatórios, como o Fluxus e o Gutai, que adquiriram visibilidade internacional nos anos 1960, foram essenciais para a rede de arte por correspondência, e vale ressaltar que Paulo Bruscky estabeleceu contatos com artistas desses grupos, como Robert Rehfeldt, Dick Higgins, Ken Friedman, entre outros membros do Fluxus; Shozo Shimamoto e Saburo Murakami, esses dois últimos integrantes do Gutai, com os quais Bruscky se comunica até hoje (BRITTO, 2013, p. 208).

Paulo Bruscky em ação postal, Sem Destino, realizada várias vezes durante os

anos 1970, questionava o sistema de funcionamento dos próprios correios. Tinha o

intuito de repensar o correio e a lei da União Postal Universal que dizia que toda

correspondência deve retornar ao remetente, se o destino da carta não fosse

encontrado, além de proibir a violação da carta. Com essas características em mente

Bruscky enviou postais e cartas sem destino por todo o mundo. Nas cartas e postais

o artista imprimiu Sem Destino no local reservado ao endereço do destinatário; pediu

a cooperação de seus colegas da rede de Arte Postal para que eles distribuíssem

essas correspondências por caixas de correio em vários países.

Britto (2013) aponta o surgimento da Arte Postal como proveniente de uma

vontade coletiva de expandir os limites da arte e com isso apresentá-la a partir de uma

prática cotidiana, em uma época e contexto que certas coisas precisavam ser ditas a

qualquer custo. Paulo Bruscky, assim como vários outros artistas ao redor do mundo,

desenvolveu coletivamente um circuito de troca de informações, ideias e propostas

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estéticas quebrando a dependência dos centros artísticos oficiais, com isso burlaram

a censura oficial desenvolvendo novos métodos criativos e eficazes.

A Arte Postal surge da necessidade de dizer a todo custo as verdades que,

muitas vezes, eram silenciadas, seja pelo próprio circuito da arte, seja por governos

opressores. Um formato relevante de arte que toca o artista, o público, os correios e

as instituições de poder.

2. 3. Rafael Pagatini, Fissuras

Pensar a arte contemporânea é pensar sobre um entendimento crítico do mundo. Uma proposta artística que traga questões sobre a realidade e o contexto social tem um impacto enorme sobre o entendimento de mundo, já que a arte é capaz de criar formas de visualidade que afrontam o poder. Criar essa visualidade, essas “máquinas simbólicas” de que Pierre Bourdieu fala, é uma forma de problematizar temas do nosso dia-a-dia sem se fechar na dramatização das questões sociais, como aconteceu com parte da arte moderna brasileira, que apostou em uma espécie de “portinarização” como se essa produção, pelo seu formalismo, conseguisse atender realmente à crítica política. Assim, penso que seja importante que essas investigações históricas sejam apresentadas na arte. Existe, apesar da pouca relevância desse campo, um processo de contaminação contínuo a partir do campo artístico, que faz com que consigamos observar as coisas de outra forma, na potência do micro22.

Rafael Pagatini

A Ditadura Militar Brasileira, percurso pelo qual a dissertação caminhou,

permitiu entender as diversas possibilidades no uso de recursos artísticos em análises

sociológicas. A Ditadura foi um momento singular na história do país, com muitas

criações críticas ao golpe e ao governo ditatorial, como apresentado nos primeiros

capítulos. A realidade, mais de 50 anos depois, não é tão diferente frente ao momento

político vivido nos últimos anos, 2013 com muita mobilização nas passeatas de rua,

reverberando nos anos posteriores, no impeachment da Presidenta Dilma Rousseff,

em 2016, e posse do presidente Michel Temer.

O projeto de pesquisa desta dissertação, analisar as possibilidades políticas da

arte com plano de fundo a ditadura militar, já havia sido aprovado quando a informação

de que Rafael Pagatini, artista plástico e professor da mesma instituição, UFES,

22 Rafael Pagatini em entrevista a Gabriel Bogossian, curador da exposição em São Paulo para o site do Paço das Artes. http://www.pacodasartes.org.br/temporada-de-projetos/2016/artistas/rafaelpagatini.aspx acesso em 20 de jan. 2018.

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elaborava uma exposição sobre a ditadura no Espírito Santo. Era a oportunidade de

destacar o estado nesta pesquisa, uma vez que o eixo Rio-São Paulo já foi

relevantemente estudado.

Na elaboração de um projeto artístico há inúmeras conexões, inclusive com o

contexto social vivido pelo artista, que motivam sua elaboração e as obras se tornam

a existência física de sua sensibilidade ao mundo que o cerca.

Surge assim, a necessidade de ir ao campo entrevistar Rafael Pagatini e

acompanhar sua exposição Fissuras, exposta no Museu da Imagem e do Som em

São Paulo, e na Galeria de Arte Espaço Universitário – GAEU no Espírito Santo.

Foram feitas duas entrevistas com o artista no intuito de entender a trajetória que o

levou a abordar a Ditadura em suas poéticas. Uma delas foi realizada em 23 de abril

de 2016, antes da montagem da exposição, e outra em 31 de abril de 2017, depois da

mostra, abordando questões remanescentes da análise, e assim, acompanhar os

desdobramentos da exposição e também como da futura amostra que seria realizada

no Espírito Santo.

Para entender a trajetória de Fissuras, é necessário entender a trajetória de

Rafael Pagatini. Aprovado no concurso para professor da Universidade Federal do

Espírito Santo em 2013, chega ao estado vindo do Rio Grande do Sul, onde se formou

na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Logo de início sua percepção é forte

quanto a altas taxas de feminicídio, além da intrigante força das grandes indústrias

como Vale e Petrobrás, as quais ele chama de patrimônio da cidade. O artista se

rendeu a curiosidade de conhecer melhor as terras que o recebiam.

O que capta a atenção de Pagatini são os níveis de violência e como essa

violência se estruturou dentro do estado. Na busca por respostas, ele inicia uma

pesquisa sobre a formação do Espírito Santo contemporâneo, que passa pela

Ditadura Militar Brasileira e como se deu a modernização do estado a partir dela. Na

tentativa de conectar o passado com o presente, para compreender as atuais

questões políticas e sociais do estado. Foi através do contato com o professor história

da UFES, Pedro Ernesto Fagundes, que sua pesquisa seguiu os caminhos do

processo de modernização do estado com a chegada das grandes indústrias,

simultaneamente a Ditadura Militar.

Pagatini inicia sua pesquisa ainda sem ter ideia da profundidade do impacto

que o regime militar tinha provocado no estado. A medida que aprofunda suas leituras,

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percebe a história do estado como um quebra-cabeças que para ser montado

dependeria não só das leituras, mas também de visitas ao arquivo público, e assim,

camadas e mais camadas empoeiradas, de uma história abafada ao longo dos anos,

foi se tornando fonte de reflexões, e inspirações, que não poderiam continuar

esquecidas, tão pouco silenciadas.

A profundidade com que a pesquisa foi feita é facilmente percebida através de

suas obras expostas na exposição Fissuras, que a partir do uso das imagens

encontradas, retrata o que foi o regime militar no estado. Além disso, chama a atenção

do artista o fato de que o que é encontrado nos arquivos são as evidencias que não

foram destruídas, ou seja, as evidencias que foram deixadas acessíveis, aquilo que

poderia ser visto, uma vez que muitos arquivos foram destruídos.

Ganha destaque importantes fatos sobre a história do Espírito Santo e como

se estabeleceram as relações sociais, políticas e econômicas. A relação entre a

industrialização do estado, o crescimento da violência, a transição do modelo

econômico, a violência contra a mulher, entre outros aspectos que reverberam no

cotidiano capixaba até os dias de hoje foram se entrelaçando a medida que avançava

as conexões entre o Espírito Santo e a ditadura militar.

O passado é refletido diariamente nas ações cotidianas, de forma que, para

Pagatini, discutir essas relações históricas é fundamental para criar novas

possibilidades sociais, reformular pensamentos e projetar novos caminhos.

A importância de discutir a ditadura é perceber o quanto ela está presente hoje, não só em personagens como Bolsonaro, mas em vários aspectos do nosso dia-a-dia e também da arte – se pensarmos na produção conceitual com tons políticos que emergiu no Brasil e na América Latina nos anos 1970. Os discursos sobre o passado estão sempre em jogo, como diz Andreas Huyssen23, e legitimam o presente. A fetichização dessa discussão na arte, me parece, está muito associada à investigação da repressão política, da violência contra os corpos e da tortura, mas existem outros aspectos a se investigar24.

23 Andreas Huyssen autor do livro Seduzidos pela Memória que relata a Alemanha pós II Guerra Mundial

e o homérico esforço na criação, do que pode ser chamado, de uma cultura da memória caracterizado por um profundo medo do esquecimento, processo ao qual incontáveis obras públicas foram feitas em memória ao Holocausto. Acesso em 19 de fev. 2018. 24 Rafael Pagatini em entrevista a Gabriel Bogossian, curador da exposição em São Paulo para o site

do Paço das Artes. http://www.pacodasartes.org.br/temporada-de-projetos/2016/artistas/rafaelpagatini.aspx Acesso em 20 de jan. 2018.

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Sobre sua ação na elaboração das obras, a partir dos arquivos encontrados ao

longo da pesquisa, o artista pontua

Sobre a intervenção técnica, percebi durante a pesquisa que o documento era interessante por si e não vi necessidade de intervir de forma muito direta nele. Me pareceu importante trazê-lo em suportes que evocasse parte da discussão que quero introduzir, sobre as relações com a memória. Por isso, em alguns casos o suporte de destino busca trazer uma leveza, um ver-não-ver que reproduz características do suporte original – o microfilme –, às vezes riscado ou com lacunas. É muito interessante pensar o gesto de investigação sobre esses documentos como um processo artístico e um potente gesto político, já que se trata de pensar na própria história e no objeto de arte como um objeto que simula uma história. O documento é então uma possibilidade de criação, que traz uma relação com a história e a memória pública da cidade25.

Importa ressaltar que, por maior que seja o esforço de alguns artistas em

abordar a ditadura em suas obras, quando este esforço é comparado com as ações

de artistas em países latino-americanos, após o fim de seus governos ditatoriais, a

diferença é expressiva. No Brasil, enquanto a ditadura estava vigente, muitas ações

foram feitas, como apresentadas ao longo deste trabalho, situação que difere das

ações nos primeiros anos posteriores ao fim do regime, onde não há o mesmo volume

de criações como houveram nos demais países.

A ditadura foi revisitada na literatura, na arte, na dramaturgia em vários países

e no Brasil, afirma Diogo Matos26, acontecem tímidos avanços com a criação da

Comissão da Verdade. Sobre a paralisia artística brasileira frente ao fim da ditadura,

Matos analisa

Arrisca-se dizer que essa paralisia frente ao passado e o retardamento do trato de um assunto tão complexo e urgente vem daquilo que Hélio Oiticica identificou como condição crônica da sociedade brasileira, a “convi-conivência”. Ou seja, conviver com conivência é aceitar corretamente um código de conduta social e comportamental que reprime e dilui a ideia de embate inerente a política na esfera pública. Em oposição a tal condicionante, a arte parece querer resistir e daí renovar percepções, discursos e retratos postos a sombra27.

25 Rafael Pagatini em entrevista a Gabriel Bogossian, curador da exposição em São Paulo para o site do Paço das Artes. http://www.pacodasartes.org.br/temporada-de-projetos/2016/artistas/rafaelpagatini.aspx Acesso em 20 de jan. 2018. 26 Diego Matos, curador. 27 Texto extraído do folder de divulgação de Fissuras intitulado Retrato Calado, por Diego Matos.

https://gabyindiodacosta.com/portfolio-items/rafael-pagatini-fissuras/ Acesso em 19 de fev. 2018.

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Embora haja recentemente a revisitação as memórias da ditadura e um

crescente acesso a elas, se torna curioso o fato de que, no início o artista não

conseguiu espaço para expor suas obras no Espírito Santo, o que fez com que a

primeira exposição de Fissuras fosse realizada em São Paulo, e, somente meses

depois outra versão da mostra foi apresentada no Espírito Santo.

2. 3.1 As Exposições

Ao entrar no Museu de Imagem e do Som em São Paulo, na sala onde estava

a exposição, já de início pode-se observar uma ampla imagem de um fusca em

chamas, ao lado vários alto-falantes espalhados pelo chão; a esquerda uma estrutura

de madeira com placas desse mesmo material contendo imagens e frases; mais

adiante várias fotos de capas da revista Família Cristã. Na parede ao lado reportagens

de jornal impressas em um papel fino e transparente que balançavam suavemente ao

vento.

FIGURA 32: Manipulações

Fonte: Exposição Fissuras de Rafael Pagatini. http://www.infoartsp.com.br/agenda/fissuras/ Acesso

em abr. de 2017.

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O carro símbolo da modernidade brasileira parece incitar a insubordinação através da máquina moderna sendo destruída pelas chamas. Ao mesmo tempo a imagem também pode ser utilizada como forma de manipulação como, por exemplo, o Atentado ao Riocentro, promovido por militares com o objetivo de acusar a esquerda por atos terroristas e que teve no carro destroçado o grande exemplo de seu fracasso. O presente trabalho foi desenvolvido a partir do pensamento que algumas imagens parecem atravessar a história recente brasileira e podem se estruturar como representações constantes de nosso imaginário28.

Rafael Pagatini, que desde sua primeira exposição abordou questões sobre a

memória e o esquecimento, também usou desses conceitos na elaboração dos

materiais da exposição. Na imagem, do carro em chamas, o destaque dado a ela vem

no intuito de trazer o impacto desta imagem a memória da violência imputada pelo

regime.

A memória fina e frágil que grande parte da população mantém da ditadura;

trata-se de uma memória construída pela mídia e canais de informação da época.

Uma ideia montada pela percepção do que era dito, e não do que de fato acontecia e,

neste sentido, Pagatini cria megafones em concreto, material extremamente pesado

provocando a ideia de que, apesar de existir a informação, ela não é manuseada com

facilidade e nem da forma como deveria. Uma forma extrema de abordar

antagonicamente o silenciamento que envolvia (e envolve...) a censura, bem como o

“excesso” de informação versus o “peso” e a dificuldade daqueles que ousavam lidar

com ela. Há ainda duas relações que são interessantes nesta obra: o concreto e o

megafone.

O concreto entra como elemento de construção, material usado na construção

civil, mas também é usado no cemitério. São duas relações interessantes para o

mesmo material. Concretar passa pela construção de uma nova história, no entanto,

concretar também passa pelo silenciamento de uma história vivida que finaliza-se com

uma lápide de concreto.

O megafone, por sua vez, é um equipamento de amplificação do som, é

utilizado para que um número maior de pessoas consiga ouvir o que um indivíduo está

falando. Aqui a ideia de divulgação e ampliação das informações em um equipamento

que é muito utilizado em protestos, no entanto, feito de concreto.

28 Texto extraído da fixa técnica do material de divulgação da exposição.

http://www.pacodasartes.org.br/storage/Release%20TP%20no%20MIS%20-%20Raphael%20Pagatini%20-%20Fissuras.pdf Não há menção do nome do autor do texto. Acesso em 20 de jan. 2018.

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FIGURA 33: Exposição Fissuras (2016)

Fonte: Exposição Fissuras, de Rafael Pagatini. Fotografia por Evelyn Pinheiro. Ago. de 2016.

Rafael Pagatini, em seu artigo “Bem Vindo Presidente”: a arte como dispositivo

crítico de disposição da memória (2016), faz importantes observações sobre o Espírito

Santo durante o regime militar. O texto permite uma melhor compreensão de sua obra,

também intitulada Bem Vindo Presidente, que se propõe a problematizar e repensar

as relações de poder e controle encontradas nos jornais - veículo de discussão

pública. Para isso, o artista utiliza a arte como ferramenta para provocar

questionamentos.

O trabalho é constituído de mais de 200 anúncios impressos a jato de tinta e organizados em uma instalação de parede. Esses anúncios de empresas, datados das décadas de 60, 70 e 80, foram publicados no jornal A Gazeta, em circulação na cidade de Vitória, no Espírito Santo. As datas utilizadas para catalogação do jornal foram baseadas na estada dos presidentes militares em terras capixabas para inaugurar grandes projetos no estado. Os anúncios eram publicados dias antes da chegada, continuavam ao longo da estada presidencial no estado e, em alguns casos, persistiam por dias após a sua partida. Além disso, foram publicados suplementos mostrando os supostos ganhos sociais promovidos pelo regime, a importância dos empreendimentos para a modernização do estado capixaba, os empregos e a estimativa de arrecadação que seria gerada pelos investimentos.

[...]Os anúncios se estabelecem como dispositivo crítico sobre a memória do governo no estado e o papel das empresas no governo militar. Dessa forma, a ausência desse debate promove conflitos atuais na esfera social, política e econômica do país, fato que indica que os traumas do passado nunca estiveram tão presentes (PAGATINI, 2016, p. 1860).

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FIGURA 34: Bem Vindo Presidente (2016)

Fonte: https://ocula.com/magazine/reports/southern-panoramas-20th-contemporary-art-fest/ 15 de

jan. 2018.

As manchetes de jornal, encontradas no arquivo público, foram apresentadas

em papel fino, delicado e leve com uma suave impressão deixando certa dificuldade

de visualizar seu conteúdo uma estratégia para apresentar o esquecimento e

apagamento de informações. Os papeis fixados com suavidade na parede

enroscavam, soltavam, balançavam sem nenhuma rigidez, sem contornos, sem

molduras, suaves e sensíveis como as percepções sociais de quem as leu um dia, e

de quem nunca teve acesso a elas.

Os empresários agradeceram a vinda do Marechal Castelo Branco, saudaram

os militares, se alegraram com os avanços prometidos às terras capixabas. Os

empresários mostraram seu total apoio ao novo regime, parabenizaram as forças

armadas em inúmeras notas nos jornais da cidade. Agradeceram entusiasmadamente

os investimentos e a modernização proporcionada ao estado que até então vivia

preponderantemente da cafeicultura. O que chama a atenção de Pagatini nos

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anúncios de Bem Vindo Presidente, encontrado nos jornais e nome dado a obra, é a

aceitação e a valorização que as indústrias deram ao regime militar.

Toda a elaboração de Rafael Pagatini serve para mostrar as ligações entre as

iniciativas privadas e o governo ao apresentar os recortes encontrados no jornal A

Gazeta, o qual, durante a ditadura militar foi utilizado como “veículo a serviço de

estruturas ideológicas que se relacionam com o poder ditatorial” (2016, p. 1871), o

que endossa as ligações de interesse entre os militares e os grandes empresários

brasileiros.

Além dos jornais, Pagatini também encontrou uma importante revista católica

da época intitulada A Família Cristã. Na mostra, o artista utiliza a capa das revistas

sem fazer alterações; usa o próprio material como um ready-made, técnica de

transportar um objeto comum para o contexto da arte, elevando-o a categoria de obra

de arte.

“A Família Cristã” apresenta, na década de 1960, a imagem da mulher como guardiã do bem-estar, do lar e a noção de mundo na qual ela se estabelece como a conservadora das tradições e principalmente da família. Esta noção promovia o discurso anti-comunista e foi fundamental para a formação de entidades femininas, como, por exemplo, a CAMDE (Campanha Mulheres pela Democracia) que apoiou o golpe militar em 196429.

FIGURA 35: Família Cristã

Fonte: Exposição Fissuras, de Rafael Pagatini. Fotografia por Evelyn Pinheiro. Ago. de 2016.

29 Texto extraído da fixa técnica do material de divulgação da exposição.

http://www.pacodasartes.org.br/storage/Release%20TP%20no%20MIS%20-%20Raphael%20Pagatini%20-%20Fissuras.pdf

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Anteriormente, neste capítulo, ao analisar a arte no Espírito Santo foi possível

perceber o tradicionalismo das famílias capixabas, neste aspecto, a revista A Família

Cristã ganha espaço pelo poder de influência no ideário de paz, ordem, civilidade que

muitos guardam até hoje na memória dos tempos de ditadura. Justifica o discurso

saudosista e a manutenção das tradições familiares que definem a sociedade

capixaba.

Pagatini teve acesso as revistas a partir de seus arquivos privados comprados

pelo próprio artista para abordar o tema em sua exposição; esse material destaca o

imaginário da família ideal e o papel da mulher na sociedade, importado dos Estados

Unidos, em uma revista que tinha o poder de construir desejos de semelhança nas

famílias brasileiras moldando o ideal a ser seguido por elas. Destaca-se a a

semelhança desta revista com o conteúdo da matéria divulgada em 2016 que

apresenta a esposa do atual presidente da República, Marcela Temer, que até então

era figura quase que desconhecida da população brasileira, com o título de Bela,

recatada e do lar. Logo após a exposição, Michel Temer assume como presidente

interino durante o processo de impeachment de Dilma Roussef.

FIGURA 36: DOPS (Série Movimentos Religiosos)

Fonte: Exposição Fissuras de Rafael Pagatini. http://www.infoartsp.com.br/agenda/fissuras/ Acesso

em abr. de 2017.

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Na obra acima, a partir de fotografias encontradas no arquivo público, Pagatini

elabora placas de madeira com suas informações gravadas; no entanto, as

informações descritas nos versos das fotos são separadas em outras placas de

madeira, mostrando assim como era subjetiva a escolha dos “subversivos”. Uma

mesma inscrição pode ser colocada ao lado de diversas fotografias. No intuito de

mostrar as irregulares formas de repressão, as peças podem ser manuseadas pelo

expectador que pode combinar a foto com a inscrição que considere mais adequada.

No entanto, as informações são tão abrangentes que as possibilidades são enormes,

apresentando nitidamente a falta de parâmetros e as arbitrariedades das

investigações e prisões durante o regime.

No Espírito Santo, a exposição contou com algumas novidades e outras obras

se repetiram. Na entrada da Galeria de Arte Espaço Universitário na UFES, uma das

manchetes de jornal é apresentada na fachada do prédio.

FIGURA 37: Confiamos no Milagre Brasileiro (2017)

Fonte: Exposição Fissuras, de Rafael Pagatini. Fotografia por Evelyn Pinheiro. Ago. de 2017.

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Além das obras já apresentadas, Pagatini elaborou quadros a partir da

fotografia de quatro presidentes ao longo da ditadura brasileira. As imagens impressas

sobre grandes parafusos revelam uma parte do rosto dos presidentes, destacando

seus lábios e seus trajes. Interessante ressaltar que o último presidente é o único que

não está de black tie e que possui um sorriso nos lábios, característica que Rafael

Pagatini quis apresentar pontuando a tentativa de um governo prestes a se tornar um

pouco mais acessível a sua população.

FIGURA 38: Retrato Oficial (2017)

Fonte: Exposição Fissuras, fotografia por Evelyn Pinheiro. Ago. de 2017.

Sobre a mostra Retrato Oficial, Pagatini (2017) escreve um artigo com o mesmo

título, analisando o uso dessas fotografias oficiais dos presidentes para a criação do

pensamento em torno da imagem, além de observar como essas imagens são

utilizadas na reconstrução de narrativas históricas e nos conflitos existentes nos

processos de representação política.

Alguns aspectos nas fotografias apresentadas chamaram a atenção de

Pagatini, indo muito além do “inocente’ sorriso diferentemente dos lábios cerrados dos

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demais “presidentes”. Sobre a mostra Pagatini apresenta sua análise quanto ao

desenvolvimento da imagem pública do chefe de estado, a qual, ao longo do regime

militar apresenta também o que o autor chama de imaginário relacionado ao

presidente. A relação, afirma Pagatini, se estabelece desde a República Velha até a

atualidade seguindo uma lógica na composição do tipo fotográfico presidencial, ou

seja, “o predomínio do masculino, a pose ereta, a face voltada para frente da objetiva

ou ainda de três quartos indicam uma tipologia” (2017, p. 75) que o autor afirma ter se

mantido no imaginário dos fotógrafos oficiais do governo.

Não é aleatória a decisão quanto a roupa utilizada nas fotografias oficiais dos

presidentes do país. Pagatini aponta que, nas fotografias da galeria dos presidentes

localizada no Palácio do Planalto, em Brasília “pode se observar que todos que

possuíam patentes militares e que assumiram o poder anteriormente a 64, vestiam a

farda militar” (2017, p. 75), ou seja, a tradição era de que os presidentes provenientes

da área militar usavam fardas de forma que eram diferenciadas as roupas dos

militares dos que não eram.

Essas duas tipologias levam à contradição da representação dos generais brasileiros ao longo do regime militar, justamente pelo predomínio da presença do tipo fotográfico político de 1964 a 1985. Chama a atenção a ausência da farda, justamente no período comandado por militares: Castelo Branco (1964-1967), Artur da Costa e Silva (1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979) e João Batista Figueiredo (1979-1985). Este fato merece destaque, tendo em vista que o uniforme se estrutura como elemento importante dentro do imaginário militar, ele representa a união do coletivo e sua importância dentro do espírito da organização, da qual o então presidente fazia parte. Diferentemente de outros países latino-americanos, nos quais os militares apresentavam-se com suas fardas nas fotografias oficiais de seus governos, como por exemplo Augusto Pinochet no Chile. No brasil ela foi subtraída, como estratégia na tentativa de dar ares de legalidade ao governo de exceção.

Os mandatários do período de 1964-1979 vestiram ternos de gala em seus retratos, o que sugeria associação com a tradição do retrato, enquanto o último, Figueiredo, reintroduz o terno e a gravata, o que contrasta com os demais e promove a criação de uma visualidade mais moderna relacionada ao imaginário presidencial. No entanto, a construção da imagem de Figueiredo representa a tentativa de criar o emblema de um governo de transição, de uma abertura política, o que é ressaltado pela ausência de óculos e o sorriso mais amplo e mais arrojado que os demais (PAGATINI, 2017, p. 75).

Todo o contexto histórico do golpe, suas tramas e enredos reafirmam, segundo

Pagatini (2017), que não foi apenas um golpe militar, uma vez que as relações civis-

militares estavam fortemente entrelaçadas. As fotografias, reforçam tais relações de

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poder estabelecidas entre civis e militares. Ou seja, as fortes ligações de interesses

existentes entre uma rica classe brasileira e os militares que a representavam no

poder público, um conhecido comportamento de golpismo institucionalizado no Brasil

que permanece bastante atual.

Sobre a obra Rafael Pagatini conclui que

[...] a fotografia do retrato presidencial ao ser utilizada como matéria para a construção de um trabalho de arte evoca discussões e debates que povoam o imaginário em torno da imagem. A arte, neste contexto, possibilita a ressignificação da visualidade relacionada à construção imagética do governo de exceção, ao mesmo tempo em que atualiza o debate e apresenta como as narrativas sobre acontecimentos marcantes da memória nacional ainda estão em disputa (2017, p. 80).

Diego Matos, curador, faz profundas considerações sobre a obra de Rafael

Pagatini, algumas destas considerações merecem destaque justamente por trazer um

novo pensar sobre as atribuições do ator social - o artista - mas que também deve ser

apropriado para pensar as atribuições dos cientistas sociais.

Matos apresenta dois momentos distintos na elaboração da exposição

Fissuras. Primeiro aponta – (1) a função de “artista-pesquisador” – pela capacidade

de Pagatini ao extrair de sua pesquisa um amplo repertório criativo, utilizado para

reestabelecer as conexões das memórias passadas com os pensamentos atuais; (2)

a função de “artista-produtor”, pois produz através de uma elaboração poético-

interpretativa, a ação de alertar e denunciar e, para além da denúncia, desconstruir a

história, assim como, desmistifica-la.

Neste sentido, em Fissuras, o artista também utiliza os símbolos e signos do

próprio poder para apresentar os entrelaces estéticos de manutenção da ordem

vigente. Matos aponta a importância da obra de Rafael Pagatini também pelo atual

momento político vivido no Brasil, crise política ampla e sem precedentes na história

da nação, fazendo com que não seja apenas necessário, mas urgente que as

memórias do passado sejam revisitadas e as semelhanças percebidas. Construir um

novo caminho exige a reconstrução da memória e da história nacional brasileira.

A contribuição da exposição de Rafael Pagatini, Fissuras em 2016/2017, é de

um repensar o passado, ressiginificar o presente e reformular o futuro. Provocativo,

faz com que seu expectador reflita e questione as semelhanças do passado com o

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presente, além disso, cutuca a memória adormecida permitindo voz a história, por

tantos anos, silenciada.

Importa ressaltar que Rafael Pagatini não é o único artista a abordar a ditadura

atualmente. Recebe o foco desta análise por ser o artista que dialoga a história do

Espírito Santo e a ditadura militar em suas poéticas.

Isto posto, ressalta-se que outros artistas estão se mobilizando sobre a

temática. Juliana Domingos de Lima publicou uma reportagem no jornal online Nexo

com o título Como a Arte Contemporânea Brasileira Está Acessando os Arquivos da

Ditadura, publicado no dia 20 de novembro de 2017. Na reportagem é feito um breve

apontamento da escassez de produções artísticas com a temática da ditadura quando

termina o regime, ao qual Lima pontua a observação do professor da Unicamp, Márcio

Seligmann Silva, por ser um período de certa “ressaca” na produtividade desta

temática, momento em que os artistas lançam seus olhares para outras agendas.

Juliana Domingos de Lima, apresenta o trabalho de cinco artistas: (1) Clara

Ianni com sua obra Detalhes Observados de 2017, elaborada a partir de arquivos do

DOPS em São Paulo, onde hoje é o Memorial da Resistência; (2) Fulvia Molina com

sua obra Memória do Esquecimento: 434 vítimas de 2017, uma instalação com totens

cilíndricos com fotografia de todas as 434 vítimas relacionadas no relatório da

comissão da verdade; (3) Leila Danziger com sua obra Perigosos, subversivos,

sediciosos [cadernos do povo brasileiros] de 2017, a obra foi criada a partir de livros

que foram censurados pela ditadura; (4) Jaime Lauriano com sua obra O Brasil de

2014, trata-se de um vídeo elaborado a partir de matérias dos jornais televisivos ao

longo dos anos 1964-1968 com as propagandas oficiais do governo federal durante

os primeiros anos da ditadura militar; (5) Rafael Pagatini com a obra, exposta aqui

nesta dissertação, Fissuras de 2016, destacando a instalação Bem Vindo, Presidente,

que reforça a conexão entre a iniciativa privada e os governantes ao longo da ditadura.

É importante enfatizar que as obras de Pagatini não se encaixam nas

caraterísticas apresentados de uma Arte Socialmente Engajada, no entanto, aborda

o tema central do estudo e enriquece essa dissertação reverberando com seu objetivo:

a análise da arte como uma ferramenta política de contestação e crítica, assim como,

sua provocação e capacidade de estimular a reflexão. Além disso, Pagatini não podia

ser ignorado neste estudo, uma vez que é o primeiro artista visual que se dedicou a

Ditadura Militar no Espirito Santo com uma exposição inteira sobre esta temática.

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Em sua publicação Pagatini faz um alerta importante sobre a memória:

Cabe destacar, por fim, que a necessidade de reescrever a história brasileira e, principalmente a do Espírito Santo, é urgente, pois ainda há um extremo silêncio sobre o tema. Se para Frederico Moraes o artista deveria ser um guerrilheiro, o museu pode se estruturar como as trincheiras da imaginação, a fim de promover a discussão política sobre a memória (2016, p. 1872).

A análise deste trabalho revela a importância do espaço que a arte vem

alcançando, nas últimas décadas, como problematizadora de questões políticas,

econômicas e sociais. A temática da ditadura é uma das possíveis abordagens, dentre

tantas outras, que poderiam ter sido plano de fundo desta pesquisa. Pontuar a

importância da acessibilidade que a Arte Socialmente Engajada permite é

fundamental para repensar a acessibilidade das Ciências Sociais. O entrelaçamento

entre estes dois campos do saber é a motivação desta pesquisa e o desejo de que,

pesquisas com essa temática continue sendo elaboradas, e assim, um caminho para

a ASE seja traçado dentro das Ciências Políticas, da Sociologia e também da

Antropologia.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas questões foram levantadas ao longo da pesquisa, no entanto, devido ao

tempo de elaboração de uma dissertação muitas delas ficaram sem a devida atenção

neste trabalho. O envolvimento da igreja católica, a perseguição aos indígenas, o

crescimento das periferias, a violência urbana, o engajamento das mulheres, a

violência das torturas, os presos políticos, os desaparecidos, documentos acessados

pela Comissão da Verdade e também o Relatório Figueiredo, arquivo com mais de

sete mil páginas sobre as ações do regime militar, recentemente descoberto. Não foi

possível verificar todos os pontos importantes para entender os anos de ditadura no

Espírito Santo, com isso, algumas lacunas aparecem nesse estudo.

A pesquisa elaborada teve a ousadia de explorar e, indiretamente, propor uma

possibilidade metodológica para o uso da arte dentro do campo das Ciências Sociais,

que, logo de início, teve que ser revista, devido à falta de delimitações precisas sobre

o que é a Arte Socialmente Engajada para o campo da arte, tão pouco para o campo

das Ciências Sociais.

No campo da Sociologia, o qual focamos a analise, foi nítida a dificuldade de

uma definição única para a arte. No decorrer da pesquisa foi percebido que era muito

mais importante dar o primeiro passo, e assim, criar um caminho para possibilidades

metodológicas serem pensadas e elaboradas posteriormente, uma vez que, este

alcance não foi possível no curto espaço de tempo de um mestrado.

Ao buscar compreender como a arte foi mobilizada pelas Ciências Sociais ficou

nítida a ausência de consenso entre seus estudiosos, embora, o que mais chamou a

atenção foi a utilização das possibilidades artísticas que não acompanhavam sua real

potência política. Arte é potência, é incomodo, é reflexão, é crítica. Não era possível

ficar passivo à ausência da força da arte em pesquisas sociológicas. Era necessário

dar voz a sua potência também no campo das Ciências Sociais.

A ausência de consenso quanto ao conceito do que seria uma Sociologia da

Arte também foi percebida no decorrer do estudo, o que levou a pesquisa a explorar

outro objetivo não incorporado inicialmente: revisar três momentos da relação entre a

Arte e a Sociologia, importantes para compreender o que seria o seu objeto de

pesquisa, e assim, apontar as divergências em suas abordagens.

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A ideia foi construir uma concepção mais clara e precisa do que é a Arte

Socialmente Engajada, uma estratégia de força política que parece, até esse

momento, mais clara no campo das Artes Visuais e que ainda carece de construção

histórica no campo das Ciências Sociais. Esta também é a razão pela qual a maioria

dos autores usados para discutir ASE estão no campo das Artes Visuais.

É necessário pontuar três importantes aspectos de cada um dos momentos

relacionados entre o campo das Artes Visuais e o campo das Ciências Sociais:

(1) Toda arte é social já que surge com o ser humano como se pode ver pelo

registro das pinturas rupestres. A Sociologia da Arte aparece com a intenção de

entender o comportamento social do circuito artístico e se debruça sobre a

institucionalização da arte. O foco, não era a obra ou o artista, mas essa relação como

produto da sociedade humana. Diferentes autores e escolas sociológicas se

debruçam sobre essa relação e, embora, muitos trabalhos que relacionam os dois

campos vem sendo elaborados, ainda estão focados em analises mercadológicas,

relações de poder e manifestações culturais. A crítica é a ausência participativa na

democratização do saber sociológico através das ferramentas criativas que a arte

oferece.

(2) Pode se dizer que a Arte Sociológica se propôs a politizar a arte. É uma

proposta “mais autoral” no sentido que remete ao “Coletivo de Arte Sociológica”

composto por Hervé Fischer, Fred Forest e Jean-Paul Thénot. O grupo tentou

mobilizar metodologias sociais para potencializar as capacidades críticas da arte.

Pretendiam abordar a estrutura de ligação entre a arte e a sociedade para acolher

aqueles que tinham o fato sociológico como tema fundamental de pesquisa e prática

artística. Perceberam a necessidade de metodologias sociológicas para que a arte

alcançasse suas questões mais profundas, e assim, conseguisse elevar estas

questões ao mundo externo, saindo das galerias inacessíveis a maior parte da

população, alcançando o espaço público, democrático e acessível.

(3) A arte assume claramente e garante seu potencial político e mobilizador a

partir da Arte Socialmente Engajada que vai ao encontro dos objetivos da Arte

Sociológica e conecta artistas e cientistas sociais em um desejo por mudanças e

ressignificações sociais. É sobre esta possibilidade, o uso de ferramentas criativas,

lúdicas e potentes na relação da arte com a política, que este trabalho lança seu olhar

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percebendo a necessidade de repensar as competências do fazer do cientista social

em detrimento ao artista social.

Foster (1996) menciona um tipo de ‘inveja mútua’ entre o artista e o cientista

social. Porém, tem sido mais fácil encontrar o artista que reinventa os métodos

etnográficos e usa estratégias de recolha e de documentação características das

Ciências Sociais para a produção de projetos artísticos, do que o cientista social que

procura poéticas ou metodologias artísticas para debater e legitimar questões

socioambientais. Então, deseja-se um pouco mais de ‘inveja’ às Ciências Sociais de

forma que os cientistas se debrucem sobre essas questões e sobre novos desafios:

Por que artistas sociais têm buscado o espaço público, aberto, democrático para suas

criações e os sociólogos ainda permanecem encarcerados em suas academias e

bibliotecas? Onde estão os sociólogos enquanto os artistas estão nas ruas? Qual o

caminho a trilhar para que, assim como a ASE, a sociologia democratize-se, alcance

os espaços público, as pessoas comuns, os pensamentos e questionamentos

humanos? Qual a finalidade de uma sociologia excludente a uma parcela de

especialistas que tem acesso a suas publicações e ao linguajar complexo? Como

poderiam sociólogos e artistas trabalhar em conjunto para formas mais criativas de

popularizar a arte? Qual o melhor atalho para promover esse diálogo?

Os estudiosos, do campo das Ciências Sociais, a exemplo da Escola de

Frankfurt, que se debruçaram sobre as conexões entre a arte e a sociedade, falharam

em suas percepções políticas. Fizeram profundas análises da arte, da sociedade e da

política, no entanto, não conseguiram promover um fazer metodológico com a força e

potência que esta ligação é capaz de promover. Ainda hoje há lacunas que precisam

ser pensadas e revisitadas, o que permite perceber que o campo da arte avança neste

sentido, enquanto o campo das Ciências Sociais ainda se ausenta desta

responsabilidade.

Certamente novos atores políticos estão nas ruas. Esse texto termina sob os

acordes do carnaval de 2018 que legitimou a rua como palco político; através dessa

forma de arte popular, o antropólogo Nilton Santos30 enfatiza que o carnaval deu corpo

à crítica e subverteu a política através da satirizarão das questões sociais que a

30 Entrevista com Dr Nilton Santos, da Universidade Federal Fluminense, apresentada no Programa: Papo de Segunda - Verão, do canal a cabo GNT no ar no dia 17 de fevereiro de 2018.

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sociedade brasileira deixou de reivindicar nos últimos meses. Essa manifestação

artísticas devolveu a voz ao povo e se configura como instrumento legítimo de ação

política.

Os atores dos novíssimos movimentos sociais também ocupam espaços não

formais e deslegitimados como territórios de ação política. Entretanto, a questão

nesse momento é, minimamente, legitimar nas Ciências Sociais essas criativas

formas de ativismo cultural e, quem sabe, contaminar as arcaicas estruturas políticas

e metodológicas que ainda prevalecem na academia de modo a dissolver fronteiras

em busca de territórios mais porosos e instigantes como os que a arte tem oferecido.

Rafael Pagatini apontou o pensamento de Frederico Moraes, para quem o

artista deveria ser um guerrilheiro, acrescentou que desta forma, “o museu pode se

estruturar como as trincheiras da imaginação, a fim de promover a discussão política”

(2016, p. 1872). A partir desse pensamento, seria possível então, que a academia se

estruture como uma praça pública, para cientistas sociais, como um espaço capaz de

promover reflexões (com ou sem o uso da palavra escrita) ou seremos ainda reféns

das rígidas estruturas academicistas em todas as suas formas de pensar a sociedade

e seus conflitos?

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