história da guerrilha do araguaia

250
1 T E S E D E D. E. A. A G U E R R I L H A D O A R A G U A I A ( BRASIL: 1966 - 1975 ) Por Gilvane FELIPE Sob a Orientação e Direção de Guy MARTINIERE Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine (I.H.E.A.L.) - Université de la Sorbonne Nouvelle - (Paris III) Outubro 1993

Upload: api-26012164

Post on 07-Jun-2015

2.228 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Tese de D.E.A. (Mestrado) em História pela Université de la Sorbonne Nouvelle, Paris, França, 1993. Por: Gilvane Felipe.

TRANSCRIPT

1T E S E D E D. E. A.

A G U E R R I L H A

D O

A R A G U A I A

( BRASIL: 1966 - 1975 )

Por Gilvane FELIPE

Sob a Orientação e Direção de Guy MARTINIERE

Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine (I.H.E.A.L.)

- Université de la Sorbonne Nouvelle -

(Paris III)

Outubro 1993

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) II

A defesa desta tese de D.E.A. aconteceu no dia 15 de outubro de 1993, tendo a mesma obtido a

nota 36/40, o que equivaleria no Brasil à nota 9/10. A banca examinadora foi composta pelos professores

do Institut des Hautes Études de l'Amérique Latine (I.H.E.A.L.) em Paris, Guy MARTINIÈRE

(Orientador da pesquisa), COLLIN DELAVAUD e do professor Bruno REVESZ, professor e

pesquisador junto ao CIPCA.

Í N D I C E

AGRADECIMENTOS.............................................

DEDICATÓRIA................................................

IN MEMORIAN................................................

INTRODUÇÃO.................................................

CAPÍTULO I - BREVE HISTÓRICO DO PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (1922 - 1969)

I . 1 . Da Fundação ao Cisma...............................

I . 1 . 1 - Insurreição armada e clandestinidade........... I . 1 . 2 - Legalidade e semi-clandestinidade.............. I . 1 . 3 - A discórdia que veio de Moscou................. I . 1 . 4 - A criação do Partido Comunista BRASILEIRO e o racha do 'velho' PCB...

I . 2 . O Partido Comunista do Brasil (PC do B)............

I . 2 . 1 - Os primeiros passos............................ I . 2 . 2 - A 'construção' da linha militar do PC do Brasil (1966 - 1969)..............................................

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) IV

I . 3 - O documento Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil

I . 3 . 1 - Da sua importância............................. I . 3 . 2 - Da conjuntura em que surgiu.................... I . 3 . 3 - O conteúdo do 'GPOP'...........................

CAPITULO II - DAS PALAVRAS AOS ATOS: A GUERRILHA DO ARAGUAIA, A PREPARAÇÃO E OS COMBATES ARMADOS (1966-75)...

II . 1 - A Inação Aparente.................................

II . 1 . 1 - A Comissão Militar e seu Trabalho Sigiloso (a opção teórica; a escolha de 'áreas propícias'; os escolhidos para a 'tarefa especial')....................

II . 2 - A Preparação da Luta Armada (1966-1972)...........

II . 2 . 1 - As Tentativas de Implantação de 'Frentes' de Luta Guerrilheira.............................. II . 2 . 2 - A Construção das 'Frentes' do Araguaia (a região do Araguaia; 1966: os 'paulistas' estão chegando; as dificuldades de adaptação; o trabalho de massas; a preparação militar; a organização militar)................................................................................

II . 3 - 12 de Abril de 1972: O Início dos Combates........

II . 3 . 1 - A Descoberta da 'Base' do Araguaia................ II . 3 . 2 - As Forças Armadas Atacam e os 'Paulistas' se Transformam no Temido 'Povo da Mata'.................................................................................

II . 4 - A Guerra na Selva (1972-1975).............................

II . 4 . 1 - As Campanhas de 'Cerco e Aniquilamento' das Forças Armadas e as Táticas da Guerrilha (a primeira campanha; a segunda campanha; a grande trégua; a terceira e última campanha).........................................................................

Índice

V

CONCLUSÕES.................................................................

BIBLIOGRAFIA...............................................................

ANEXOS ( I a IX ).............................................................

A G R A D E C I M E N T O S

Agradecimentos

VII

"... e aprendi que se depende sempre,

de tanta, muita, diferente gente. Toda pessoa sempre é as marcas

das lições diárias de outras tantas pessoas. É tão bonito quando a gente entende

que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá;

É tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por mais que pense estar;

É tão bonito quando a gente pisa firme nestas linhas que estão na palma de nossas mãos;

É tão bonito quando a gente vai à vida nos caminhos onde bate bem mais forte

o coração."

(Luíz Gonzaga Júnior - 'Gonzaguinha')

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975) VIII

Mais que a qualquer outra pessoa, gostaria de agradecer ao meu querido amigo e professor,

Ruy Rodrigues da Silva que, por seu exemplo de vida consagrada à ciência e à educação, à humanidade

enfim, e pelo apoio moral, intelectual e material a mim dedicado, teve papel decisivo na transformação do

meu sonho em realidade.

Aos meus pais, Bárbara Lôbo Felipe e Antônio Bento Felipe, que, da mesma forma concorreram

para a materialização deste trabalho, sobretudo à minha mãe que não poupou esforços para viabilizar esta

pós-graduação.

Ao meu orientador no Instituto de Altos Estudos da América Latina (I.H.E.A.L.), em Paris,

Professor-Doutor Guy Martinière que teve grande participação na obtenção deste resultado. Ainda no

I.H.E.A.L., à Roberto Vega, funcionário eficaz, atencioso e gentil e à Sra. Paradis, professora de

Francês, por sua enorme paciência.

Às professoras Janaína Amado e Raquel Figueiredo que me ajudaram a dar forma ao projeto de

pesquisa que desembocou na presente dissertação, assim como ao meu mestre e amigo, Professor Juarez

Costa Barbosa, aquele que me ensinou o amor pela História.

Aos muito queridos amigos, Romualdo Pessoa Campos Filho, a quem devo a publicação inédita

de um dos documentos secretos - o pertecente à Polícia Militar do Estado de Goiás - que tanto

enriqueceram esta dissertação, e Luciana Sousa Bento, com cuja dedicação sempre pude contar.

Agradecimentos igualmente a Ricardo Parvex (CIMADE) e Madeleine Babinet, ambos de Paris, e

ao diretor da Alliance Française de Goiânia, Alain Royant, que souberam me apoiar quando me esbarrei

com algumas dificuldades legais na França.

Aos dirigentes do PC do B, José Reinaldo de Carvalho e José Renato Rabelo, que tudo fizeram

para me franquear o acesso aos documentos e publicações partidárias concernentes à Guerrilha, assim

Agradecimentos

IX

como tudo fizeram para mitigar a distância do meu País, me enviando sempre, periódica e

constantemente, notícias do Brasil.

Ao meu professor de Francês e revisor deste trabalho e do projeto de pesquisa que o deu origem,

Christian Gouraud.

À Sra. Cirille, Zélia, Gabriela, Adeane, Elyeser, François, Lucivânia, Cyro, Juarez, Benaias,

André, Nancy, Tércia, Morad, Eugênio, Itamar, Doracy, Élvio, Alan, Farias, Sayonara, Fabrice,

Alexandre, Kênia, Laida, Jean Yves, Oscar, Valérie, Nica, Laisy, Luca, Hamazan, Maristela, Vincent e a

tantos outros que, de uma maneira ou de outra, às vezes sem nem mesmo o saberem, me ajudaram a

realizar esta travessia seja através de atos concretos, seja pelo fato de terem acreditado na minha

capacidade de completá-la e me encorajado a fazê-lo.

Por fim, e de modo muito especial, à minha amada companheira, que sempre apoiou minha

decisão de levar até o fim este trabalho, até mesmo quando isso signficou o nosso distanciamento,

Claudia Cleine Barcelos Cunha.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

X Dedicatória

X

D E D I C A T Ó R I A

Aos mortos e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, à seus familiares e amigos.

Ao meu filho, Frederico Carvalho Felipe.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

XI In Memorian

XI

I N M E M O R I A N

À memória da inesquecível amiga e companheira, Andréa Ribeiro dos Santos.

I N T R O D U Ç Ã O

Introdução

13

No ano de 1972, eu tinha apenas 9 anos de idade. Começara a cursar em março a 4ª série do

curso primário. Passados mais de vinte anos, não consigo me lembrar de muitas coisas. Além de alguns

nomes de colegas de sala de aula, uma das únicas reminiscências desse tempo que retive na memória foi a

de um forte boato que corria, o qual dava conta de que uma guerra de verdade estaria a acontecer não

muito longe de nossas casas, no norte de Goiás. Dizia-se que muitos conscritos de nossa cidade, recrutas

de 18 anos que então cumpriam o seu serviço militar obrigatório, tinham sido levados para a floresta

amazônica onde travavam violentos combates contra um bando de "terroristas", "um exército invasor

vindo de Cuba", "um grupo de fanáticos adeptos do diabo", etc.... as versões pululavam.

Era uma época de forte repressão policial-militar, de cerrada censura à imprensa. Tais

comentários não apareciam nas páginas dos cotidianos, nos boletins difundidos pelo rádio ou nos tele-

jornais. No entanto, à boca pequena, em conversas mais reservadas, o assunto vinha à tona com muita

freqüência.

Minha escola ficava ao lado do Colégio Prof. Pedro Gomes, também conhecido como 'Liceu de

Campinas'. Ali, naquele enorme prédio branco, nos tinham contado, houvera, há não muito tempo,

grandes enfrentamentos entre estudantes e policiais. Ponto de tradicional força do movimento estudantil

secundarista, durante muitos anos o nome Pedro Gomes significou subversão, luta estudantil, violência

policial. Não obstante a notoriedade, este também era um assunto proibido, dele só se tomava

conhecimento através de relatos proferidos em voz baixa. Falava-se de estudantes que tinham sido

abatidos ao tentar saltar o muro da escola para fugir a uma invasão da PM. Contava-se também de

estudantes que haviam alvejado alguns soldados com pedras. As estórias eram várias, às vezes

descambavam para o terreno do lendário, do fantástico, mas nós, pequenos estudantes, achávamos aquilo

tudo fascinante e, ao mesmo tempo, aterrador.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

14

Essa proximidade com aquele "antro de subversão", como diziam os militares, fazia com que a

força dos boatos aumentasse, assim como o 'zêlo' governamental com o lugar e redondezas. Assim, neste

período passamos a ter um novo professor, um senhor que se dizia oficial do Exército, se não me engano

um coronel. Semanalmente, nós, pequeninos 'projetos de gente', tinhamos então aulas de uma nova

disciplina que se chamava Educação Moral e Cívica1, ocasião em que recebíamos uma dose de anti-

comunismo, de intolerância, de 'civismo', de fanatismo patrioteiro, e também de medo dos ditos

terroristas que estariam espalhados por toda parte.

À época não nos dávamos conta do que se passava. Hoje, depois de saber da existência da

Guerrilha do Araguaia e após ter estudado as teorias militares de guerra de guerrilhas e aquelas de

combates contra guerrilhas, consigo enxergar tal fato como sendo parte de uma operação preventiva de

combate à guerrilha então em curso na região do Araguaia. Medida que suponho tenha sido levada a

cabo em todos os principais centros populacionais, possíveis de se tornarem focos de apoio ao

movimento guerrilheiro.

Foi assim o meu encontro com o tema que agora me proponho a historiar - a Guerrilha do

Araguaia. Desde essa época e até hoje sou um apaixonado por todas as notícias que lhe digam respeito.

Coleciono recortes de jornais, revistas, livros que tratam do tema há já bastante tempo.

O episódio a que se convencionou chamar Guerrilha do Araguaia foi um movimento de oposição

ao Regime Militar concebido, organizado e dirigido pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), entre

os anos de 1966 e 1975, na floresta amazônica, às margens do Rio Araguaia, na região norte do Brasil,

mais precisamente no sul do Estado do Pará e norte do Estado de Goiás (hoje, Tocantins). A

denominação se justifica pela utilização de formas de organização e de táticas militares próprias de uma

guerra de guerrilhas pelos militantes comunistas para se contrapor às ofensivas militares das Forças

Armadas (FF.AA.) realizadas entre 1972 e 1975.

1 Nas Universidades, a disciplina equivalente chamava-se Estudos dos Problemas Brasileiros (sic!) - EPB. Na segunda fase

do 1º grau assim como no 2º grau, seu nome era Organização Social e Política Brasileira ou simplesmente OSPB.

Introdução

15

Em 1980 ingressei na Universidade Federal de Goiás (UFG) para fazer o curso de História. O

meu interesse pela Guerrilha do Araguaia longe de diminuir, cresceu à medida em que verificava a não

existência de nenhum estudo aprofundado a nível da UFG sobre aquele evento ocorrido bem ali, no norte

do Estado. Fiz parte de duas diretorias do Centro Acadêmico (C.A. de História) - orgão de

representação dos estudantes de História, a primeira como diretor de imprensa e divulgação e a última

como presidente. Nas duas oportunidades, em conjunto com outros colegas também interessados, tudo

fiz para que o tema fosse debatido. Convidamos ex-guerrilheiros, dirigentes do partido que tinha

organizado a resistência armada - PC do B, professores, jornalistas, etc. Imprimimos dois números da

Revista do C.A. de História e, não por acaso, em ambos constavam matérias sobre a Guerrilha.

Confeccionamos uma camiseta com uma gravura e um trecho de um poema que homenageava a

Guerrilha. A camisa era vendida e servia para arrecadar fundos para o nosso movimento ao mesmo

tempo em que divulgava o acontecimento dos anos setenta. O barulho que fizemos, embora grande, não

foi suficiente para suscitar o interesse do Departamento de História da Universidade. Nenhum trabalho

ou proposta de pesquisa sobre o tema surgira nesse período.

Quando me graduava, em 1991, pude notar que o tema continuava como antes: virgem, do ponto

de vista historiográfico. Algumas novidades, é certo, tinham vindo à tona, algumas publicações,

notadamente do lado dos guerrilheiros, tinham enriquecido o magro acervo documental do evento. O PC

do Brasil tinha publicado diversos materiais, dentre os quais se destacava a revista Guerrilha do Araguaia

em 1982, por ocasião do décimo aniversário do início dos combates entre militares e guerrilheiros. Um

diário da Comissão Militar - o comando militar-operacional da Guerrilha - também viera à tona,

prefaciado pelo historiador Clóvis Moura. Alguns livros de memórias e entrevistas de pessoas que

tomaram parte dos combates foram publicados. Tudo assim, disperso. Sem nenhum esforço da

inteligência historiográfica brasileira no sentido de desvendar esse importante episódio da nossa história

recente.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

16

Não bastasse isso para justificar o despertar de um maior interesse pelo ocorrido, acresça-se o

fato de a região onde se desenvolveram os combates e redondezas - sul do Pará e 'bico do papagaio' - se

constituir até hoje em ponto dos mais tensos do País, onde a luta pela posse da terra opõe violentamente

'posseiros' de um lado, contra fazendeiros e 'grileiros' e 'jagunços', de outro, o que, não raro, acaba em

enfrentamentos armados e, conseqüentemente, em mortos de lado a lado. Nada disso pareceu capaz de

atrair a atenção e de sensibilizar os nossos historiadores.

A essa época, já havia me decidido a me dedicar à realização de uma tese de doutorado numa

universidade francesa. O tema da pesquisa ainda não tinha sido escolhido. Oscilei entre pesquisar o papel

dos religiosos dominicanos franceses na ocupação do norte de Goiás e a história do movimento estudantil

universitário em Goiás após o Congresso de Reconstrução da UNE em Salvador em 1979. Por fim, tratei

de organizar cuidadosamente um arquivo dos documentos e publicações guardados por longo tempo em

minha casa e, eu mesmo, me surpreendi com a riqueza do material acumulado sobre a Guerrilha. Era,

sem sombra de dúvida, um bom ponto de partida. Resolvi então me consagrar à pesquisa do tema que me

atraía desde minha infância, a Guerrilha do Araguaia.

Em suma, minhas lembranças de infância, a 'virginidade' do tema, a sua originalidade, assim como

a realidade ainda explosiva da região que sediou a conflagração, tudo isso, de maneira conjugada,

conduziu minha reflexão e me empurrou em direção ao estudo da Guerrilha do Araguaia.

Olhando em retrospectiva, penso que não poderia ter feito melhor escolha para tentar começar

uma carreira profissional no campo da História. Conciliei trabalho e prazer, o que nem sempre é fácil, e

me ocupo hoje contentemente da tarefa a que me propus.

Uma coisa é certa: há uma enorme diferença entre gostar de um determinado tema, colecionar

gratuitamente tudo que se lhe refira, quase como um 'hobby', e se dedicar a uma pesquisa histórica, com

todos os quesitos necessários para o seu sucesso, com todo o cuidado e rigor científicos. As dificuldades

começam quando começamos a nos dar conta de que o material que julgávamos suficiente é bastante

Introdução

17

limitado. Sobretudo no tocante a documentos primários, traços documentais da Guerrilha, relatórios

oficiais, etc.

De fato, apesar de contar com um acervo que inclui, se não tudo, pelo menos quase a totalidade

do que foi publicado a respeito - o que não é sinônimo de grande quantidade, pelo contrário, sobre o

evento há uma muito restrita bibliografia - um dado perturba mais que os demais o bom caminhar do

trabalho de pesquisa: o insistente silêncio por parte das Forças Armadas (FF.AA.) no tocante ao

episódio.

Das autoridades militares não se obteve até hoje nem sequer o reconhecimento verbal oficial da

ocorrência da Guerrilha, que dirá documentos oficiais a respeito. Sobre o fato vive-se uma tragicomédia

em que, não obstante todos os testemunhos, todos os relatos, todos os documentos surgidos, nega-se

peremptoriamente o óbvio.

A conseqüência trágica desta postura é a inquietude dos familiares dos guerrilheiros que

enfrentaram os contigentes militares oficiais nas matas do sul do Pará. Eles vivem desde então um

verdadeiro pesadelo, qual seja o de não saberem do destino de seus entes queridos. Essas pessoas vivem

num estado de terrível esperança, espera de notícias, espera de um retorno cada vez mais improvável,

sem saber se devem chorar as suas mortes ou se devem esperar ainda mais. Todos eles sabem que os seus

parentes foram para o Araguaia, supõem que estejam mortos, mas resta sempre uma ponta de dúvida, um

fio de esperança.

Uma conseqüência, não menos prejudicial, dessa posição assumida pelas FF.AA. diz respeito à

ausência da versão oficial governamental do ocorrido, o que, sem embargo, obstaculiza uma maior

proximidade do historiador da realidade do fato histórico, da verdade, haja vista que a quase totalidade

da documentação até hoje obtida ser devido a revelações da outra parte do confronto, do PC do Brasil,

atitude que, diga-se de passagem, deve ser exaltada.

Se bem que tenhamos hoje a posse de documentos secretos das FF.AA., obtidos por vias outras

que as normais, ao ser o historiador da Guerrilha do Araguaia obrigado a lançar mão desse material, e

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

18

somente dele, corre o risco de trazer à luz unicamente parte da realidade vivida o que, sem dúvida, já é

alguma coisa mas ainda muito longe de ser satisfatório.

Aqui o historiador se vê obrigado então a inventar caminhos para atingir a sua meta: a verdade

histórica. É onde a tarefa do historiador se aproxima daquela de um detetive policial que meticulosa e

escrupulosamente (supõe-se!) tenta descobrir a verdade a partir de alguns indícios, montando então um

grande quebra-cabeças.

Ao que tudo indica, teremos que enveredar por esse caminho sinuoso se realmente quisermos

retirar pelo menos parcialmente os véus que encobrem os fatos do "mais importante movimento armado

já ocorrido no Brasil rural"2, nas palavras do General Hugo de Abreu; dessa "guerra suja dos dois

lados"3, segundo o hoje senador e oficial da reserva do Exército, Jarbas Passarinho, ministro da educação

do governo do presidente-general Emílio Garrastazu Médici, à época do início dos combates; ou, ainda,

do "maior movimento de tropas do Exército, semelhante à mobilização da FEB"4, segundo opinião do

General Vianna Moog.

Ao que tudo indica. Dizemos isso no condicional pois, muito embora não seja esta a nossa

opinião, a evolução dos acontecimentos pode nos conduzir a maiores revelações e, quem sabe, até

mesmo a um reconhecimento oficial da Guerrilha. Tal pode vir a acontecer. Exemplo desta hipótese é o

estardalhaço que tem feito nesse sentido a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos 'mortos e

desaparecidos políticos durante o regime militar' da Câmara dos Deputados, em franca atividade de busca

de elementos que possam contribuir para a elucidação de vários fatos ocorridos na nossa história recente,

dentre eles da Guerrilha do Araguaia.

O assunto é, em si, polêmico, e explosivo, alguns dizem mesmo que é perigoso. Delicado talvez

seja a expressão mais feliz para qualificá-lo. Não sabemos o que realmente move as FF.AA. na sua

2 Citado por: Palmério Dória et alii. A Guerrilha do Araguaia. Col. História Imediata, n° 1. SP, Alfa-Õmega, 1978, p. 5.

3 Idem op. cit., p. 23.

4 Idem, p. 5.

Introdução

19

obstinação a esconder sob sete chaves os fatos da Guerrilha da Araguaia. Seja o que for, trata-se de tema

frágil posto que envolve a vida (e a morte) de, segundo se estima, mais de uma centena de brasileiros, de

ambos os lados. Além disso, põe em xeque o papel jogado pelas FF.AA. durante os chamados 'anos de

chumbo'.

Tais questões, longe de nos afastar do nosso desígnio, nos liga mais ainda à solução desse enígma

da nossa história que no ano passado completou duas décadas.

Na área da metodologia, para alcançarmos êxito nessa empreitada, ao lado de explorarmos à

exaustão a reduzida bibliografia existente, ainda teremos que nos valer de recursos metodológicos mais

recentes que poderão nos ajudar a abrir trilhas rumo à verdade, como por exemplo da utilização de

fontes orais, método outrora chamado 'história oral', terminologia abandonada por imprópria. Desta

forma, estamos convencidos de que conseguiremos nos apropriar de um conjunto de técnicas que

poderão nos aproximar bastante do ocorrido às margens do Rio Araguaia na primeira metade dos anos

setenta.

Essa certeza de que fazemos uma opção não apenas necessária mas também correta, não nos ilude

quanto à dimensão do desafio que se nos apresenta. Optar pela utilização de fontes orais num estudo da

Guerrilha do Araguaia implica em optar por um grande trabalho 'de campo' que, em se tratando da região

em questão, anuncia-se bastante duro, haja vista que as condições geográficas não amenizam em nada a

tarefa, ao contrário, dificultam sobremaneira um trabalho dessa envergadura. Isso para não citar a

dificuldade já provada por jornalistas de conseguir revelações e entrevistas junto à população que a tudo

assistiu ou até mesmo tomou parte do conflito. É o medo que a lembrança dos tempos da guerra traz

àqueles que o viveram, é o trauma de uma população que de repente se viu no centro de uma

movimentação de tropas nunca vista e que sofreu muito pelo fato de ser julgada e tratada pelos soldados

governamentais cúmplice do 'povo da mata'.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

20

As dificuldades na obtenção de entrevistas não parece ser menor entre os militares que

participaram das operações de combate à Guerrilha. Não obstante, tem havido na sociedade brasileira

uma tendência a aparecerem cada vez mais pessoas dispostas a revelar o que sabem sobre os sombrios

anos do regime militar e isso nos abre uma perspectiva menos negativa. Mesmo no tocante a documentos

secretos das FF.AA., temos grande esperança de que consigamos obtê-los em boa quantidade, campo em

que já obtivemos consideráveis avanços. A impressão que temos é de que há um potencial a ser

explorado entre os militares e estamos dispostos a ir até o fim e recolher o que for possível.

Uma outra dificuldade no presente trabalho de pesquisa que já podemos prever é a que se

relaciona aos meios materiais para concretizá-la. Ao que tudo indica, receberemos a partir do próximo

ano letivo uma bolsa de estudos da agência governamental brasileira, CAPES. Tal notícia, a se confirmar,

já trará em si motivo de regozijo e alegria, vez que nos proporcionará meios de continuar nossos estudos

na França. Contudo, uma questão ainda ficará à espera de solução, qual seja a de recursos suficientes

para se fazer uma grande enquete com atores diretos e indiretos do conflito, uma pesquisa que alcance

uma porção representativa da região onde ocorreu a Guerrilha, que tente retraçar os caminhos

percorridos pelo fato histórico, assim como as repercussões daquele evento na realidade político-social

da área. Mas que não se detenha aí. Uma pesquisa séria terá também que procurar encontrar alguns

atores daquelas escaramuças militares que se encontram hoje espalhados pelo território nacional e que o

pesquisador terá que alcançar. São guerrilheiros, dirigentes comunistas, oficiais das FF.AA., religiosos,

ativistas sindicais, historiadores, jornalistas, auto-didatas da Guerrilha e antigos habitantes da região que

terão absolutamente que ser ouvidos posto que foram de uma forma ou de outra atores do conflito.

Para solucionarmos este problema que se anuncia grandioso, temos em vista realizarmos gestões

junto a Organizações Não-Governamentais (ONG's) no sentido de conseguirmos apoio para a realização

das citadas incursões na região afetada e alhures, onde se fizer necessário, para o pleno sucesso da futura

tese de doutorado.

Introdução

21

Uma outra fonte, igualmente reduzida mas de forma alguma negligenciável, será a utilização de

matérias publicadas em periódicos nacionais e estrangeiros. Em território brasileiro, salvo raras exceções,

teremos que nos contentar com artigos, na sua maior parte, aparecidos a partir de 1978, quando a

censura oficial abrandou-se. Da imprensa estrangeira, por enquanto, conseguimos rastrear o que foi

publicado no diário francês Le Monde, o que segue publicado na última parte do presente mémoire,

como anexo.

No trabalho de pesquisa que ora começamos, as hipóteses que buscaremos verificar são os

seguintes:

I - Que a Guerrilha do Araguaia foi um dos episódios mais significativos de contestação

política contra o regime ditatorial estabelecido em abril de 1964; a resistência armada mais eficaz

levada a cabo pela esquerda revolucionária no período em questão; aquela que exigiu, malgrado

sua derrota, o maior esforço dos militares para esmagá-la; e que é por este mesmo motivo que até

hoje, mais de vinte anos depois, ela continua sendo o único movimento de oposição armada ao

qual as FF.AA. brasileiras ainda recusam o reconhecimento oficial de sua ocorrência;

II - Que a Guerrilha gozou do apoio da população da região, esta se constituindo bem na

razão fundamental de sua longa duração e de sua imensa capacidade de sobrevivência diante dos

sucessivos e poderosos golpes do inimigo, não obstante a sua inegável superioridade tanto em

termos materiais como em termos de número de combatentes empregados;

III - Que os movimentos de resistência dos 'posseiros' na região onde se desenvolveu a

Guerrilha foram fortemente marcados por seu advento. Sobretudo as suas formas coletivas de luta

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

22

assumidas desde então, sofreram grande influência da Guerrilha dos anos setenta - mesmo que tal

não seja evidente numa primeira abordagem e mesmo que este fato seja enfáticamente negado

pelos atores atuais das lutas sociais que por lá se passam -, tornaram-se mais organizadas e mais

radicais, não raramente respondendo com a mesma moeda à violência armada de fazendeiros e de

seus agentes, os 'grileiros'.

Para a tese, nossa intenção é de desenvolver, ao lado da problemática principal acima enunciada,

alguns temas específicos relacionados com a Guerrilha que poderão tomar a forma de capítulos ou de

secções, quais sejam:

1 - a imprensa nacional e estrangeira : censura e auto-censura;

2 - o processo de crítica e de autocrítica do Partido;

3 - a vingança das FF.AA. : a " chacina da Lapa " (16/12/1976);

4 - as razões do insistente silêncio das FF.AA.;

5 - o mítico na memória dos tempos da Guerrilha entre os habitantes da região;

6 - as conseqüências da utilização dos índios Suruí pelo Exército no combate à Guerrilha;

7 - a posição assumida pelos religiosos presentes na região durante a Guerrilha.

8 - a incansável busca dos corpos dos guerrilheiros por seus familiares e amigos;

Por fim, a intenção do pesquisador na presente pesquisa é a de contribuir para bem responder à

necessidade da sociedade brasileira de conhecer sua própria trajetória histórica, mesmo aqueles episódios

mais obscuros.

Tal se faz tanto mais necessário hoje quando já podemos assistir a um processo de

comercialização da memória da Guerrilha, com a transformação dos rastros e vestígios daquele

importante movimento político-militar em fonte de obtenção de recursos através do turismo, conforme já

Introdução

23

anunciam os meios de comunicação5, quando sequer a história do evento foi escrita. Trata-se dessa forma

de tentar recuperar o tempo perdido e resgatar este episódio antes que a sua memória seja corrompida e

deturpada por interesses outros que não o historiográfico.

Tal é o nosso desafio.

5 Angela Klinke e Luciana de Francesco. "Guerrilha e Paz". In: Revista Isto É, n° 1243, SP, Ed. Três, 28/07/1993, pp. 48-

51.

C A P Í T U L O

I

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

25

B R E V E H I S T Ó R I C O

D O

P A R T I D O C O M U N I S T A

D O B R A S I L

- P C d o B -

( 1922 - 1969 )

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

26

I . 1 . Da Fundação ao Cisma

I . 1 . 1 - Insurreição armada e clandestinidade

O Partido Comunista do Brasil (PCB) foi fundado em 25 de março de 1922. Uma de suas

primeiras medidas foi filiar-se à Internacional Comunista (IIIª. IC).

Em 1928, o PCB participa das eleições legislativas através do Bloco Operário-Camponês (BOC),

fato que o projeta em escala nacional.

Mas será em 1935 o apogeu da influência comunista nessa sua primeira fase. Em novembro,

através de uma organização política de massas - a Aliança Nacional Libertadora (ANL) - sob sua direção,

o PCB lança uma insurreição nacional. A revolta se restringe a algumas unidades militares e fracassa.

Apesar da derrota, o ato lhe valeu o título de primeira organização comunista latino-americana a dirigir

um levante armado no continente. O episódio será chamado doravante pelos comunistas de 'insurreição

nacional libertadora', enquanto que os militares, assim como os sucessivos governos posteriores -

castrenses ou não - o batizarão de 'intentona comunista'. Nas casernas, a memória de 1935 é celebrada

todos os anos. É, por excelência, a oportunidade anual de o alto oficialato renovar a sua profissão de fé

anticomunista e de lançar advertência aos que, por acaso, ainda alimentem sonhos semelhantes àqueles

dos insurretos de 35. Nos discursos proferidos em tais ocasiões se repete insistentemente a acusação de

que se tratou de 'covarde traição comunista realizada na calada da noite contra valorosos soldados

desarmados, ainda em seus leitos'.

Tal lembrança é tão traumática para os militares brasileiros que até os nossos dias, segundo

relatos de ex-soldados, nos quartéis das FF.AA., quando da realização no período noturno de exercícios

militares de prontidão, o álibi usado é sempre o mesmo: 'De pé! De pé! Os comunistas estão atacando o

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

27

quartel!' Quando todos se levantam e se colocam em posição de combate, o comando anuncia que se

trata somente de um treinamento, mas alerta que em novembro de 35...6

A derrota de novembro de 35 foi uma das razões, entre outras, evocadas pelo presidente da

República, Getúlio Vargas, para justificar o golpe de Estado de 1937, liderado por ele próprio, que

instaurou a ditadura do 'Estado Novo'.

De 1935 a 1945, os comunistas são literalmente caçados pelo governo como inimigos públicos da

nação. Seus líderes são presos, torturados e assassinados nos cárceres. Entre eles, o mais conhecido de

todos e, por esse mesmo motivo, o mais procurado pelas autoridades policiais: Luíz Carlos Prestes, ou,

como ficará conhecido, 'o cavaleiro da esperança'7.

I . 1 . 2 - Legalidade e semi-clandestinidade8

Apesar da perseguição, o partido liderará movimentos de pressão popular contra a aproximação

do regime de Vargas com o 'Eixo nazi-fascista' e pelo envio de tropas brasileiras para combatê-lo, ao

lado das 'Forças Aliados'. Tal movimento coroa-se de êxito e o Brasil declara guerra ao bloco militar

liderado pela Alemanha de Hitler, chegando mesmo a enviar tropas à Itália.

Tal sucesso faz com que o PCB volte com força à cena política nacional. Em 1945, um amplo

movimento popular, com os comunistas, ainda que clandestinos, novamente à frente, põe termo ao

6 Ver: Marly de Almeida Gomes Vianna, Revolucionários de 35. SP: Cia. das Letras, 1992.

2 Tal alcunha se deve à biografia romanceada da trajetória de Luíz Carlos Prestes, publicada nos anos quarenta pelo famoso

escritor brasileiro, à época membro do PCB, Jorge Amado. O livro se chama 'O Cavaleiro da Esperança' e atualmente seus

direitos de publicação no Brasil pertencem à Editora Record.

8 Aqui segue-se a argumentação apresentada por Edgar Carone em: O PCB: 1943 à 1964 (2 vol.), SP, Difel, 1982, v. I,

passim.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

28

Estado Novo, conquista a anistia dos presos políticos, a convocação de uma Assembléia

Nacional Constituinte e obtem a legalização do partido.

Em 1945/46, o PCB participa das eleições à Assembléia Nacional Constituinte e apresenta

candidato próprio à disputa presidencial. Obtendo significativa votação, elege expressiva bancada de

deputados que se destaca nos trabalhos constituintes.

Em 1947, uma cilada jurídica dá fim à breve existência legal da agremiação. O PCB retorna à

ilegalidade, se bem que sem rigores que fizessem lembrar os negros tempos idos da ditadura

estadonovista.

Mesmo ilegal, o PCB continua a atuar em diversos setores da sociedade brasileira em condição de

semi-clandestinidade. É forte a sua presença sobretudo no movimento sindical urbano e estudantil.

A nível da política institucional tampouco o PCB deixa de participar. Embora ilegal, toma parte

nas eleições legislativas e presidenciais que se seguem, ora lançando candidatos comunistas por outra

sigla, ora apoiando candidatos de outros partidos considerados 'democratas e progressistas'. É expressivo

desse período o apoio praticamente explícito que o PCB presta ao então candidato presidencial da

coalizão PSD-PTB, vencedora em 1956, Juscelino Kubitscheck.

I . 1 . 3 - A discórdia que veio de Moscou

Também em 56, no mês de fevereiro, tem lugar um outro acontecimento marcante na história dos

comunistas do Brasil, desta feita fora dos limites nacionais. Ocorre o XX Congresso do Partido

Comunista da União Soviética (PCUS) cujas decisões vêm a acender o rastilho de polvora que conduziria

à implosão da até então inquebrantável unidade do partido. O PCB, é certo, já havia enfrentado

problemas relativos à sua unidade interna, mas nenhum de grande envergadura, que chegasse a ameaçar a

existência mesma do 'velho' partido de 1922, como o que então terá início.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

29

E em torno do XX Congresso do PCUS e de suas resoluções que se produz o primeiro grave

cisma da história do partido. As mudanças aprovadas da linha política do PCUS9 e, notadamente, a

aparição do célebre 'relatorio secreto', no qual Nikita Khruchov elencava denúncias do que teriam sido os

'crimes de Stálin', tiveram efeito similar ao de uma bomba de alto teor explosivo lançada no interior do

PCB. Dois polos então se formam em seu seio e, sobretudo, em sua direção central: um, adepto das

resoluções aprovadas pelo PCUS; outro, ácidamente crítico em relação a elas.

Três outros acontecimentos internacionais, ocorridos na seqüência, contribuem para jogar ainda

mais lenha na fogueira: primeiro, em 1957, o Partido Comunista Chinês (PCCh) e outros partidos

marxistas manifestam discordância da nova orientação seguida por Moscou10, sobretudo das teses da

'transição pacífica' e da 'coexistência pacífica'. Trata-se na verdade do primeiro passo do processo que

culminará na crise e ruptura sino-soviética nos anos sessenta11; segundo, o PTA, o partido dos

comunistas albaneses, segue o exemplo chinês e também se manifesta contra a orientação de Khruchov, à

frente da URSS e do PCUS12; e, por fim, em 1959, sagra-se vitoriosa a revolução cubana, a primeira de

caráter nitidamente popular e anti-imperialista, com fortes tendências socialistas, ocorrida em território

latino-americano. O seu advento radicaliza o já aguçado debate em torno da questão do caminho, da via

para se atingir o novo regime, o socialismo.

9 As mais polêmicas teses aprovadas pelas plenárias do XX Congresso do PCUS foram: a 'coexistência pacífica entre

socialismo e imperialismo'; a 'transição pacífica do capitalismo para o socialismo'; o 'partido de todo o povo'; e, o 'Estado de

todo o povo'.

10 A posição chinesa foi tornada pública no dia 10/11/1957 em Moscou, à ocasião da 'Conferência dos Doze Partidos

Comunistas' (Cf. "Les Thèses Chinoises Sur les Voies de Passage au Socialisme". In: Roger Garaudy, Le Problème Chinois,

Paris, Éd. Seghers, 1967, annexe II, pp. 277-80).

11 Para maiores informações, ler: F. Fejto, Chine/URSS: de l'Alliance au Conflit. Paris, Seuil, 1973.

12 O Partido do Trabalho da Albânia criticou o PCUS na 'Segunda Conferência dos Partidos Comunistas e Operários', mais

conhecida como 'Conferência dos 81 Partidos Comunistas' (Cf. Enver Hoxha, "Discours Prononcé à la Conférence des

Partis Communistes et Ouvriers à Moscou", novembre de 1960. In: Institut des Etudes Marxistes-Leninistes, Histoire du

Parti du Travail d'Albanie, Tirana, Ed. Naim Frashëri, 1971, pp. 488-504).

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

30

Segue-se, durante quatro anos - de 1956 até o V Congresso do PCB, em 1960 - uma

intensa luta interna opondo 'comunistas' a 'revisionistas'; ou, noutra classificação, 'revolucionários' a

'reformistas'; ou ainda, 'militaristas' a 'pacifistas'; ou mesmo, 'estalinistas' a 'khruchovistas', conforme o

jargão da época.

Mas o rótulo que se atribui a cada uma das partes em disputa pela hegemonia na direção do PCB

não é tão importante quanto a identificação da essência das divergências em curso. O elemento de

decantação é, sem sombra de duvida, a posição que cada grupo assume em relação às deliberações do

XX Congresso do PCUS e seus desdobramentos ao nível da atuação da URSS, enquanto Estado

socialista, e do partido soviético, enquanto referência para todo o movimento comunista internacional.

Mas não é só isso. A adoção ou não das 'teses de 56' implicava em diferentes abordagens na

elaboração e aplicação da política comunista no Brasil.

Assim, a partir de uma mesma matriz, externa, e da visão que cada agrupamento nutre a seu

respeito, surge e se desenvolve um grande desacordo no seio do PCB. Pouco a pouco, a norma leninista

do 'centralismo democrático', cujo pilar básico é o princípio da existência de um centro único de direção

partidária, vai se esvaindo e acaba por cair no vazio. A razão disso é que a premissa para que aquela

regra prevaleça, a 'unidade de vontade', de 'propósitos políticos', progressivamente deixa de existir na

direção do PCB, dando lugar à uma, cada vez mais acirrada, disputa de correntes, cada qual com sua

própria plataforma política, totalmente distintas entre si.

Atingido um tal ponto de degradação, um partido de concepção leninista, e portanto de grande

rigidez normativa e disciplinar, não conta mais com os instrumentos que lhe possibilitariam, em condições

normais, assegurar a continuidade da sua unidade organizativa, posto que toda a estrutura concebida por

Lênin se baseia na disciplina como ato voluntário. Então, se não há mais a disciplina partidária, ou seja, a

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

31

'vontade' de se referênciar no 'centro único', na direção, na qual já não se confia mais, então o caminho

está aberto para a cisão13.

Essa rota autofágica, começada em 1956, e acentuada notadamente a partir de 58, o PCB a

percorrerá até que se consume, em 1962, a primeira grave divisão de sua história.

I . 1 . 4 - O criação do Partido Comunista BRASILEIRO e o racha do 'velho' PCB

Em 1958, a direção do PCB, ja contando com uma maioria adepta das teses do PCUS, faz

publicar a "Declaração Politica de março de 1958"14, cujo conteúdo já era afinado com a política do

PCUS, modificando assim a linha política aprovada em seu IV Congresso. Tal documento fez se

deteriorarem ainda mais as relações entre as alas litigantes.

Na plenária do V Congresso, realizado em agosto de 1960, os termos da 'Declaração...' são

ratificados, a opinião que defendia total aval às teses do PCUS alcança a maioria entre os delegados

presentes. Dá-se então o desfecho da controvérsia. Foram aprovadas todas as teses defendidas pelo

PCUS e também, ato contínuo, foram afastados das funções dirigentes todos aqueles que haviam

manifestado discordância com a nova linha. Desde então o cisma passou a ser questão de tempo e de

oportunidade. Só o que faltava era um bom pretexto.

E ele não tarda a chegar: em 1961 a nova direção central, adepta da política da 'legalidade a

qualquer preço', para obtê-la, após haver negociado com o presidente da República, João Goulart, muda

o nome do partido, seus estatutos e programa. O partido passa então a se chamar Partido Comunista

13 As idéias de Lénine sobre o partido revolucionário e sua organização podem ser encontradas em quase toda a sua obra.

Mas quase todos os estudiosos de sua produção teórica são unânimes em afirmar que aquela em que elas aparecem mais

sistematizadas é a que ele escreveu em 1902, na qual me referenciei nessa passagem: V. I. Lênin, Que Fazer?, SP, Hucitec,

1979, passim. Ver também: V. I. Lênin, A Organização Comunista (coletânea de textos), Lisboa, Maria da Fonte, 1975.

14 "Declaração sobre a política do PCB". In: Edgar Carone. O PCB: 1943 à 1964. SP, Difel, 1982, v. 2, pp. 176-96.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

32

Brasileiro guardando, todavia, a sigla tradicional - PCB15. Entretanto, a manobra fracassa pois

o Tribunal Superior Eleitoral não se comove com a mudança de nome do partido e arquiva o pedido de

registro16.

Se tais medidas não surtem os efeitos esperados, ou seja, a obtenção do registro legal. Elas serão,

contudo, bem eficazes ao propiciar uma ocasião ideal à consumação da cisão do 'antigo' PCB. A partir

deste momento, o movimento comunista no Brasil, até aqui unitário, se bifurca irremediavelmente.

Os discordantes da nova maioria partem para a ofensiva. Acusam a direção de haver

descaracterizado o partido fundado em 1922, de ter dado um verdadeiro golpe na organização e de ter

fundado um outro partido, de tipo social-democrata. Declaram-se de pronto descomprometidos com a

'nova' organização. E conhecido o episódio em que a direção decide pela expulsão de um dos mais

antigos filiados ao 'velho' PCB, o operário ferroviário José Duarte, um dos dissidentes à época. Ao ser

comúnicado da punição, ele responde, sintetizando nesta resposta, de maneira simples, o pensamento de

toda a dissidência: "Eu não posso ser expulso de um partido ao qual eu não pertenço. Em 1922 me filiei

ao Partido Comunista do Brasil e não a um certo Partido Comunista Brasileiro!"17

Os dissidentes lançam um manifesto contendo assinaturas de mais de uma centena de militantes

convocando uma Conferência Nacional Extraordinária. Realizam-na na segunda quinzena de fevereiro de

1962 quando decidem 'reorganizar o Partido Comunista do Brasil'18, retomando assim o nome com o

qual o partido fora fundado. No entanto, para se diferenciarem da outra agremiação, quase homônima,

adotam uma nova sigla: PC do B.

15 O Partido Comunista Brasileiro - PCB - manterá essa denominação até 1991, quando, após o desmantelamento da URSS,

ele mudará outra vez seu nome. Desde então, ele se chama Partido Popular Socialista - PPS - e seu presidente, Deputado

Roberto Freire, é atualmente o líder do governo do presidente da República, Itamar Franco, na Câmara dos Deputados.

16 Tal iniciativa permanecerá arquivada até 1964, quando o governo militar se apossará dela para perseguir todos os

eleitores que a haviam subscrito.

17 Ver: José Duarte, Memórias, SP, Centro de Cultura Operária, 1981.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

33

18 Ver: "Manifesto-Programa do PC do Brasil", "Estatutos" e "Em Defesa do Partido". In: A Linha Politica

Revolucionária do Partido Comunista do Brasil (M-L). Lisboa, Maria da Fonte, 1974.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

34

I. 2 . O Partido Comunista do Brasil (PC do B)

I . 2 . 1 - Os primeiros passos

No mesmo ano de 1962, são publicados o Manifesto-Programa e os Estatutos do Partido

Comunista do Brasil. Neles, o PC do B reivindica-se como sendo o herdeiro do patrimônio histórico do

'velho' PCB e autêntico continuador de seus ideais, ao mesmo tempo em que acusa o 'novo' PCB de

"traição aos interesses da classe operária" e de ser um mero "apêndice da burguesia nacional"19.

Assim, doravante, duas organizações distintas comemorarão separada e, quase, opostamente em

território brasileiro o 25 de março, aniversário da fundação do 'velho' PCB.

A nova agremiação, nos seus primeiros passos, não contará que com uma flagrante minoria da

militância do 'antigo' PCB. Não obstante esta desvantagem inicial, o PC do B ou o 'do Brasil', ou

simplesmente o 'do B', como era conhecido, conseguirá reunir em torno da bandeira da "reorganização

da vanguarda do proletariado brasileiro", um número considerável de militantes e, o que é mais

importante, uma não menos significativa quantidade de dirigentes históricos do 'antigo' PCB20, o que lhe

conferirá o peso e a legitimidade necessárias para se apresentar como alternativa política à senda

escolhida por Prestes e seus seguidores.

19 Ibidem, passim.

20 Os mais conhecidos eram: João Amazonas, Pedro Pomar e Maurício Grabóis. Todos foram deputados constituintes em

1946, sendo que Grabóis, à ocasião, foi o líder da bancada. Grabóis também foi o comandante operacional da Guerrilha do

Araguaia e lá teria sido morto no natal de 1974 por tropas do Exército. Pomar foi assassinado em 1976, na 'Chacina da

Lapa', em São Paulo. Amazonas é o 'presidente' do PC do B, segundo hierarquia adotada para obtenção do registro legal em

85; ou 'secretário-geral', segundo a tradição leninista.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

35

A grande maioria seguirá o outro agrupamento, o Partido Comunista Brasileiro, liderado pelo

famoso líder comunista, Luiz Carlos Prestes. Tal fato, sem duvida, influiu bastante na opção feita pela

maior parte da base partidária, pois a figura de Prestes era cercada de lendas, ele era venerado como um

heroi, sendo bem provável que fosse mesmo mais conhecido pelo povo do que o nome ou a sigla do

partido a que pertencia.

Essa condição de herdeiro da maior parte do contingente de filiados fará com que o 'Brasileiro'

passe a ser conhecido também pelo apelido de 'Partidão', alcunha que continuará a vigorar até mesmo

quando a relação quantitativa entre os dois partidos se inverter, por volta da metade dos anos oitenta.

Em Moscou, Nikita Khruchov, à testa do Estado e do partido soviéticos, informado do racha,

sinaliza claramente em favor do partido liderado por Prestes, dando publicamente a este o seu aval. Tal

fato faz com que o PC do Brasil aprofunde o processo de crítica às posições do PCUS e evolua para a

ruptura total com este21.

Estamos então na primeira metade da década de 60, tempo em que se dá o apogeu da crise sino-

soviética. Tal fato faz com que o PC do Brasil se aproxime das fileiras pró-chinesas, então em franca

beligerância com Moscou. Apesar disso, o partido nunca em seus escritos se declarará 'maoísta', como o

fizeram inúmeras outras organizações, também discordantes do PCUS, que consideravam Mao Tsé-tung,

o 'quinto clássico do marxismo'22. Tal singularidade de procedimento não impediu, entretanto, que os

documentos do PC do B datados dessa época rendam grandes homenagens à revolução chinesa e ao seu

21 "Resposta a Khruchov". In: Op. cit., pp. 115-40.

22 Os quatro primeiros clássicos do marxismo para muitas destas organizações eram K. Marx, F. Engels, V. I. Lênin e J.

Stalin.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

36

líder máximo, citando-o não poucas vezes como sendo "o maior marxista-leninista da época

presente"23, revelando encanto com a experiência em curso naquele gigantesco país asiático24.

Data desta época também o início da profíqua amizade do PC do Brasil com o Partido do

Trabalho da Albânia, PTA25. A essa época, ambos, guardadas as proporções, se encontravam então sob a

influência do governo e do partido da China Popular, todos contra o 'revisionismo soviético e o

imperialismo ianque'.

Em relação à Cuba, o único Estado socialista da América Latina, o PC do Brasil, apesar de lhe

emprestar discreta 'solidariedade internacionalista', se mantem prudentemente afastado. As razões para tal

distanciamento podem ser encontradas também na conjuntura da época. Pressionada pelos Estados

Unidos, Cuba se ligava cada vez mais estreitamente ao bloco pró-soviético, fato que era visto com

bastante desconfiança pelo PC do B. Outro grupo de razões, que diziam respeito à compreensão que os

cubanos tinham do 'caminho revolucionário', também contribuía para reforçar a repulsa entre o PC do

Brasil e o partido e o governo da pequena ilha de Cuba.

23 "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra o Ditadura Militar". In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no

Brasil. Lisboa, Maria da Fonte, 1974, p. 56; e "Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil". In: op. cit., p. 154.

24 A caracterização do PC do Brasil como partido 'maoísta' é repudiada por sua direção e seu presidente publicou um livro a

respeito (Ver: João Amazonas, O Revisionismo Chinês de Mao Tsé-tung, SP, Anita Garibaldi, 1981). O partido rompeu

com a China em 1978. Em todo caso, trata-se de grande controvérsia, impossível de ser esgotada aqui. Numa primeira

aproximação, pensamos que tal designação se deveu muito mais à divisão do campo socialista na década de 60 e à tendência

que se seguiu de proceder a uma classificação pétrea de todas as organizações comunistas entre 'pró-soviéticos' e 'maoístas',

conforme posição assumida em relação à 'crise sino-soviética'. Como veremos, na confecção da linha militar do PC do B, os

Escritos Militares de Mao tiveram peso decisivo. Mas, o PC do Vietnam também adotou e desenvolveu a teoria da 'guerra

popular' e, nem por isso, seria exato considerá-lo 'maoísta'. Para escapar à adjetivação fácil, seria necessário um estudo

sobre este ponto em particular.

25 As relações com o PTA só se fortalecerão. Sobretudo quando da ruptura com Pequim, iniciativa que o PTA também havia

tomado. Esta amizade durará até o início da década de 90, quando o sistema socialista albanês é derrubado e substituído por

uma 'economia de mercado', de tipo capitalista.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

37

Além da acerba crítica ao XX Congresso do PCUS, da ruptura com o raio de influência de

Moscou e da aproximação com a China, algumas outras características são perceptíveis desde logo na

nova agremiação.

Um dos traços mais luminosos trata-se da reverência com que o PC do Brasil se refere aos

'princípios marxistas-leninistas', da sua confessada ortodoxia doutrinária. A fidelidade aos primados da

teoria marxista é reafirmada incansavelmente, como um tipo de resposta à ação diametralmente oposta

levada a efeito pela organização concorrente, o 'Partidão', que continuava a perseverar nas mudanças

começadas em 1958 no seu corpo doutrinário e na sua linha política.

I . 2 . 2 - A 'construção' da linha militar do PC do Brasil (1966 - 1969)

Não menos reluzente é a reafirmação que o PC do B faz do 'caminho revolucionário para o

socialismo'. Mas, até aqui, nenhuma novidade em relação ao 'velho' PCB, que também sempre

reafirmara, até o seu V Congresso, em suas declarações programáticas, a crença na via revolucionária

como forma de se atingir o socialismo.

O fator diferenciador que singularizará a trajetória histórica do PC do Brasil, neste particular, será

a vontade, a firme decisão de passar das propostas à ação, da palavra ao ato, do programa revolucionário

à preparação concreta da luta armada, à revolução. De fato, desde a sua Conferência Nacional

Extraordinária em 1962, pode-se notar a reafirmação deste intuito, e a história, como se verá, mostrará

que o PC do B não estava blefando.

Tão congênita e explicita era esta característica do PC do Brasil, que para ele parece tão somente

terem afluido adeptos da revolução e, dentre estes inclusive, alguns adeptos da 'revolução, já!' Tanto

parece ser verdade tal afirmação que se dissidências houve na sua primeira década de existência, elas se

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

38

deveram muito mais a críticas e discordâncias quanto ao cronograma da luta armada a ser

deflagrada, que a motivos de outra ordem.

Tal foi o caso em duas dissidências verificadas em 1966. A primeira deu origem ao 'Partido

Comunista Revolucionário (PCR)'; e, a segunda, à 'Ala Vermelha do PC do B'. Ambas tiveram curta

existência. As duas se constituiram como organizações à parte e passaram a se dedicar ao que chamavam

'ação direta', ou 'ações terroristas', como preferem os militares. Presume-se que, por volta do final de

1971, ambas já haviam sido extintas pela ação da repressão policial-militar26.

Sobre o tema, trata o documento do Comitê Central do PC do B de Maio de 1967:

"O Partido ... vem sustentando uma luta constante, ... Logo após a sua reorganização,

teve de enfrentar o aventureirismo pequeno-burguês que tentava arrastá-lo à luta

armada, sem que existissem as condições necessárias e sem que houvesse uma

suficiente preparação. Mais tarde, despontou uma tendência de fundo anarquista que

advogava os métodos da «ação direta». Tanto uma como outra manifestação foram

derrotadas. Após o golpe de abril, apareceu, no [Estado do] Rio Grande do Sul, um

pequeno grupo que, sob o pretexto da existência de um «movimento incontrolável»

visando à luta armada, pretendia colocar o Partido a reboque da parte radical da

burguesia ... foi desmascarado e afastado ... O Comitê Regional do Rio Grande do Sul

assinalou, na época, que a formação do grupo resultou «da junção de dois fatôres: a

existência no Partido de alguns elementos imbuídos da doença infantil do

esquerdismo e a pressão exercida nas próprias fileiras pela burguesia radical»."27

Por outro lado, de questionamentos significativos quanto ao caminho armado em si, não se têm

noticia. Ao que parece, este era um ponto pacífico para o conjunto do efetivo partidário.

Com o golpe militar, o PC do Brasil, de 'grupelho estalinista sectário', como era considerado por

muitos, passou a ser visto como uma organização séria, uma das poucas que alertavam, ainda no período

26 Nesse particular, segue-se a argumentação apresentada por Jacob Gorender em Combate nas Trevas, SP, Atica, 1990, p.

109.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

39

anterior a abril de 1964, para o perigo de uma sublevação direitista dos quartéis contra a ordem

constitucional vigente.

Aqui, mais uma vez as duas organizações surgidas a partir do leito unitário do 'antigo' PCB, o

'Partidão' e o 'do B', revelaram que suas diferenças iam muito além de nomes e siglas. Enquanto o PC do

B já alertava, em documentos bem anteriores ao golpe de 1° de Abril de 1964, para o 'perigo militarista',

o 'Partidão', através de seu secretário-geral, Luíz Carlos Prestes, declarava a apenas quatro dias do golpe

de Estado, que "não havia condições favoráveis a um golpe reacionário, mas, se este viesse ... os

golpistas teriam as cabeças cortadas"28, demonstrando assim, de forma inequivoca, que a direção do PC

Brasileiro se fiava no então muito falado 'dispositivo militar' do presidente da república, João Goulart.

Indiscutível é o crescimento do conceito do PC do Brasil aos olhos dos militantes e organizações

de esquerda em ação no País. Também o efetivo partidário cresce consideravelmente após o golpe de 64.

O PC do B começa então a ter condições de participar mais ativamente de eventos políticos de peso, tais

como o Congresso da UNE, e também de tomar parte nas composições de direções de entidades sindicais

e populares. Em suma, o partido se impõe como agremiação séria e passa a ser levado mais em

consideração pelas demais organizações.

O PC do B demonstra ter consciência de que os ventos começam a soprar a seu favor, conforme

o demonstra o documento de agosto de 1964 da sua comissão executiva, "O Golpe de 1964 e Seus

Ensinamentos". Nele, se declara:

"O golpe de primeiro de abril serviu também para aferir as posições e o

comportamento das duas correntes do movimento operário representadas pelo Partido

Comunista do Brasil e pelo Partido Comunista Brasileiro...

Os revisionistas brasileiros... desde 1958 elaboraram, apoiados nas teses do XX

Congresso do PCUS, toda uma política reformista. Em 1960, no V Congresso do

27 "Desenvolver a Luta Ideológica e Fortalecer a Unidade do Partido". In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no

Brasil. Op. cit., pp. 10-1.

28 Luíz Carlos Prestes, "Discurso na Sede da ABI", 27/03/1964 (Citado por: Jacob Gorender, op. cit., p. 64).

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

40

Partido, sistematizaram-na. Negando os princípios do marxismo-leninismo,

afirmaram que o Estado brasileiro encontrava-se em processo de democratização

crescente, que o Exército era democrático... A acumulação de reformas conduziria à

libertação do País, à revolução pacífica...

Daí, a primeiro de abril, os dirigentes revisionistas sofreram uma decepção. Seus

planos e suas teses foram reduzidas a nada. O 'exército democrático' resolveu entrar

em ação."29

Ainda segundo o documento, diferente fora o comportamento do PC do B:

"Foi comprovada pela prática a orientação política do Partido Comunista do

Brasil... Os marxistas-leninistas revolucionários viram ratificadas as teses que

defendem.

Em seu programa... afirmavam com ênfase que as classes dominantes tornavam

inviável o caminho pacífico... e que o povo devia trilhar o caminho revolucionário...

Na sua atividade política... se batia por uma posição independente do movimento de

massas em face do governo e condenava as atitudes seguidistas. Conclamava os

trabalhadores e o povo a confiar em suas próprias forças e se preparar para fazer

frente à violência das classes dominantes, viesse de onde viesse. Jamais alimentou

ilusões no chamado dispositivo militar do governo... Os fatos demonstraram que... foi

a corrente política que melhor delineou uma orientação e uma perspectivas corretas...

Por esse motivo [os comunistas] sentem-se estimulados"30

Contudo, na seqüência reconhece que

"Infelizmente, o PC do Brasil não dispunha de suficiente influência entre as massas

para levá-las a interferir de maneira adequada nos acontecimentos... era uma

organização pequena para a envergadura das tarefas que tinha a realizar...

29 "O Golpe de 1964 e seus Ensinamentos". In: Wladimir Pomar. Araguaia: o Partido e a Guerrilha. SP, Brasil Debates,

1980, pp. 81-2.

30 In: Wladimir Pomar, op. cit., p. 84.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

41

Em que pese a brutalidade da reação, que também atingiu as suas fileiras... graças

à sua orientação, não ficou perplexo e pôde resguardar a maior parte de suas

forças."31

Mais à frente, o documento afirma a crença da direção do PC do Brasil de que

"O confronto entre a linha revisionista do PC Brasileiro e a linha marxista-leninista

do PC do Brasil, que até então era feito principalmente no plano teórico, agora foi

realizado no crisol da prática... O revisionismo foi duramente abalado."32

O documento conclui, anunciando em linhas gerais as pistas do roteiro que doravante o partido

deverá seguir:

"O povo brasileiro enfrenta o dilema de permanecer na dependência dos imperialistas

norte-americanos, viver humilhado e sem liberdade ou fazer a revolução. Não há um

terceiro caminho. Não é possível repetir, sob outras formas, o mesmo ciclo já antes

percorrido, ou seja, conquistar pouco a pouco algumas liberdades e, em seguida,

suportar o peso de um golpe militar, perder as posições conquistadas e recomeçar de

novo."33

Tal respeitabilidade adquirida, contudo, não isentava o PC do B de ser por vezes discriminado

quando da realização de algumas ações da esquerda revolucionária que o consideravam muito ponderado

e imobilista do ponto de vista da ação revolucionária, pois se negava terminantemente a tomar parte das

ações de guerrilha urbana. Emblemático do que se diz é o seguinte episódio, narrado por Jacob

Gorender:

"Um golpe decisivo [contra as esquerdas] veio a 12 de outubro [de 1968]... a prisão

de 739 [estudantes] universitários no 30° Congresso da UNE... os congressistas foram

fichados, liberados e recambiados aos Estados de origem, exceto pequeno grupo de

31 Idem. In: Op. cit., pp. 84-5.

32 Idem. In: Op. cit., p. 85.

33 Idem. In: Op. cit., p. 89.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

42

líderes. Entre estes, Luís Travassos, José Dirceu e Vladimir Palmeira

saíram do País em setembro do ano seguinte, banidos como integrantes da lista de

prisioneiros trocados pelo embaixador norte-americano seqüestrado. Sorte diferente

coube a Antônio Guilherme Ribas... também preso em Ibiúna. Por ser membro do PC

do B, que as organizações seqüestradoras desprezavam, Ribas não mereceu a

inclusão na lista de resgate. Ficou no Presídio Tiradentes"34.

Este tratamento diferenciado para com o PC do Brasil acabava por se constituir numa fonte de

pressão política importante sobre a sua base partidária. Esta pressão pode estar na origem das supra

citadas dissidências surgidas em seu interior.

O PC do Brasil, entretanto, não cederá à tentação e continuará a criticar as ações de guerrilha

urbana, as quais qualificava de puro 'aventureirismo', totalmente desvinculado das massas. Preferirá

promover 'depurações' em suas fileiras a embarcar na via do 'terrorismo'.

Todavia, apesar de tudo parecer indicar que o PC do B repetia a velha mania de separar as

palavras das ações, na verdade, não era bem assim que se passavam as coisas.

Em realidade, o PC do Brasil, desde o golpe de 1964 passou a ter como uma de suas prioridades

táticas a preparação e o desencadeamento da luta armada revolucionária para derrubar o governo militar.

Assim, se desde o Manifesto-Programa em 62, o partido já externava claramente a idéia de que o

caminho da revolução brasileira seria o da luta armada, o que é reafirmado no documento supra citado O

Golpe de 1964 e Seus Ensinamentos, no entanto, só em 1966, em sua VI Conferência Nacional, realizada

clandestinamente no exterior, tal prioridade será enfim materializada.

A VI Conferência deliberou pela constituição de uma 'comissão militar' ou 'especial', encarregada

de elaborar a linha militar do partido e definir os princípios que a governariam, ela funcionaria

subordinada ao Comitê Central. Estava também incumbida de estabelecer um plano de ação e, o que lhe

conferia grande autonomia, colocá-lo em execução o mais rápido possível.

34 Jacob Gorender, op. cit., p. 149.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

43

No conjunto das Resoluções da VI Conferência Nacional também se pode constatar que o PC do

B avançara bastante na confecção de sua linha de atuação no campo militar. Nelas, já se encontram

afirmações sobre a inevitabilidade de uma etapa nacional e democrática na revolução brasileira; a

primazia do campo como cenário revolucionário fundamental e a importância do campesinato como

massa principal de combatentes; assim como, sobre o caráter da luta armada a ser empreendida, que ela

se daria sob a forma da guerra popular e que lançaria mão de táticas de guerra de guerrilhas.

Em documentos posteriores do Comitê Central, o partido parece aprofundar progressivamente

sua compreensão sobre o caminho revolucionário a ser trilhado35.

No documento Desenvolver a Luta Ideologica e Fortalecer a Unidade do Partido, publicado em

maio de 1967, embora o tema em pauta sejam problemas ideológicos surgidos no seio do partido e

questões relativas à sua unidade interna, afirma-se, en passant, a respeito do caráter da revolução a que o

PC do Brasil aspira:

"... Uma das principais opiniões a combater prende-se ao caráter da revolução.

Volta à cena a velha e desmascarada tese trotsquista de que, nos países da América

Latina, a atual etapa da revolução é socialista... Tais «teorias» entravam seriamente

o processo revolucionário... Nas condições atuais do Brasil, não existem condições

objetivas para a realização imediata de uma revolução de caráter socialista. Mas

existem tôdas as condições para tornar vitoriosa a revolução nacional e democrática

que abrirá o caminho para a passagem à revolução socialista... A experiência

histórica indica que todas as revoluções socialistas já realizadas passaram pela etapa

democrática... Somente nos países desenvolvidos... onde a etapa democrática já foi

cumprida, está na ordem-do-dia a etapa socialista... Não fazer diferença, no Brasil,

entre um e outro tipo de revolução significa colocar-se em posição sectária, que só

serve ao inimigo, e marchar para a derrota. Por outro lado, erguer uma muralha

35 São eles: "Desenvolver a Luta Ideológica e Fortalecer a Unidade do Partido", "O Partido Comunista do Brasil na Luta

Contra Ditadura Militar" e "Preparar o Partido para Grandes Lutas", assim como o artigo aparecido no jornal A Classe

Operária, "Alguns Problemas Ideológicos da Revolução na América Latina". In: Guerra Popular - Caminho da Luta

Armada no Brasil. Op. cit., pp. 9-114.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

44

entre uma e outra etapa, não ver o nexo que as une, representa uma atitude

oportunista de direita."36

No documento "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar", datado de

novembro de 1967, feito com o intuito de analisar "êxitos e falhas" da atuação política da militância,

"esclarecer e aprofundar alguns pontos da linha política" aprovada na VI Conferência, como consta de

sua introdução, encontramos, em breve exposição, a tática definida naquele fórum deliberativo do PC do

Brasil:

"A tática do Partido pode ser assim resumida:

1 - Politica de união dos patriotas pela independência, o progresso e a liberdade,

união de todas as forças favoráveis à derrubada da ditadura;

2 - Concentração dos ataques no imperialismo ianque e na ditadura, que expressa os

interêsses dos monopolistas norte-americanos e de seus sustentáculos internos;

3 - Ações de massas, cada vez maiores, nas cidades e no campo, em todos os

aspectos;

4 - Primazia para o trabalho no interior do País, tendo em vista que aí se realizará a

luta armada;

5 - Utilização de todas as formas de luta, tanto abertas como clandestinas,

preparação e desencadeamento da luta armada, com o proposito de desenvolver a

guerra popular."37

Mas o documento vai mais longe ainda no traçar mais preciso da fisionomia que a linha política

do PC do Brasil para a questão da luta armada vai assumindo, como pode se notar no seguinte trecho:

"A tática do Partido exige que sua atividade se realize fundamentalmente no

interior... não só pelo fato de que os homens do campo constituem a força básica da

revolução, mas também porque o interior é o cenário mais favorável à luta armada.

A luta armada é o único meio de modificar o estado de coisas vigente... nas

condições atuais, devido ao rumo que toma a situação internacional e ao regime

36 In: Op. cit., pp. 15-6.

37 In: Op. cit., pp. 36-7.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

45

militarista... nem mesmo as reivindicações limitadas de uma política de liberdade,

progresso e independência... podem ser alcançadas pacificamente."38

Na seqüência, o documento explica a relação entre a proposta de frente-única e a solução

revolucionária, dizendo que elas não são incompatíveis:

"Ao contrário [do PC Brasileiro], a frente-única preconizada pelo PC do Brasil, sob

a forma de união dos patriotas, dimana da concepção de que não se pode livrar o

País do dominio do imperialismo e da reação sem a derrubada violenta do poder das

atuais classes dominantes."39

Em outro trecho, faz-se uma crítica mordaz ao 'fidelismo', ou seja, ao conjunto de concepções

abertamente defendidas pelo líder cubano, Fidel Castro e pelo Partido Comunista Cubano, que abrange as

teorias do 'foco' e da 'revolução continental'.

Aqui, o documento assume grande importância pois estabelece um divisor de águas com as

fileiras cubanas e com a sua concepção político-militar, tão em voga à época nos meios políticos e

intelectuais de esquerda latino-americanos - o 'foquismo'40.

Nas suas relações com Cuba, até então, o PC do Brasil se portara sempre de maneira cuidadosa,

como é o caso da referência contida no documento de agosto de 196441, onde se demonstra o destaque

que ainda se dá à 'questão cubana': "Parte integrante da luta dos brasileiros pela paz e a independência

é a solidariedade com Cuba"42.

38 Idem. In: Op. cit., pp. 38-9.

39 Idem. In: Op. cit., p. 44.

40 A teoria do 'foco' ou o 'foquismo' foi fundada pelos comunistas cubanos, notadamente Che Guevara e Fidel Castro, que

diziam ser uma sistematização da experiência da revolução cubana de 1959. Trata-se de uma teoria político-militar que

substitui o papel desempenhado pela população e pelo partido num dado processo revolucionário, através da constituição de

um foco guerrilheiro composto de um punhado de homens corajosos, decididos e bem treinados, isolados do povo e das suas

organizações, que declarando guerra ao Poder estabelecido, arrastariam atrás de si as multidões.

41 "O Golpe de 1964 e Seus Ensinamentos". In: Wladimir Pomar, op. cit., pp. 65-90.

42 Idem. In: Op. cit., p. 88.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

46

Todavia, deixando de lado o tom diplomático com que desde 62 se referira à pequena

ilha caribenha, o PC do Brasil critica aberta e duramente o PC Cubano e Fidel Castro, qualificando-os,

sem quaisquer rodeios, de porta-vozes de um "revisionismo de novo tipo"43, adjetivo altamente

pejorativo nos meios revolucionários e comunistas.

Nesta crítica, reprova primeiramente a política, dita "intermediária", adotada por Fidel, para, em

seguida, enfatizar a ação que considera negativa dos 'cubanos' em suas relações com os movimentos

revolucionários latino-americanos. Diz o documento:

"O fidelismo já passou por várias fases. Inicialmente, estimulou e ajudou na

América Latina os movimentos da natureza do de Francisco Julião44. Tendo

fracassado... mudou de orientação: apoiou-se nos partidos revisionistas... sob o

patrocinio do PCUS. Também malogrou... Foi um curto período em que os partidos

revisionistas passaram a elogiar a Revolução Cubana e seu líder. Agora, o fidelismo

adota outra tática... Apregoa que a revolução nos países latino-americanos é

socialista e que se travará, como processo único, em todo o Continente. Considera

que é desnecessária a existência do partido revolucionário da classe operária... que...

se formará com os que empunharem as armas. Do ponto-de-vista militar, defende a

teoria do «foco», expressa na idéia de que o núcleo armado é bastante para cumprir

todas as tarefas relacionadas com a revolução. Trata-se de uma teoria falsa sobre a

revolução nos países da América Latina."45

E acrescenta, no que se refere à proposta de 'revolução continental', que ela

43 "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar". In: op. cit., p. 50.

44 Francisco Julião foi o principal líder do movimento das 'Ligas Camponesas'. Surgido inicialmente na região nordeste do

País, se espalhou por várias outras regiões brasileiras. Julião foi eleito deputado federal. Em 1964, as 'Ligas' foram

proscritas e seus líderes foram perseguidos. Julião foi cassado e seguiu para o exílio. As 'Ligas' estão na origem, juntamente

com outras iniciativas do gênero, do atual movimento sindical rural. Para maiores informações, ver: Elide Rugai Bastos, As

Ligas Camponesas, Petrópolis, Vozes, 1984.

45 Ibidem.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

47

"... é estranha ao marxismo-leninismo... Marx e Engels afirmavam que «a luta do

proletariado contra a burguesia, embora não seja na esência uma luta nacional,

reveste-se primeiramente dessa forma. É natural que o proletariado de cada país,

antes de tudo, deva liquidar a sua própria burguesia» . A revolução será feita em

cada país pelo seu próprio povo... Todo país tem suas peculiaridades, sua formação

histórica e suas tradições, sua cultura e composição étnica, seus hábitos e costumes.

Todo povo terá de encontrar as formas específicas de abordar a revolução... É um

absurdo varrer de uma só penada as diferenças nacionais entre os países latino-

americanos para justificar uma revolução continental única, com uma só tática, com

exército e direção comuns."46

Na tecla da primazia do fator político sobre o militar, o PC do B bate forte. Partindo de uma

citação de Regis Débray, um dos principais expoentes teóricos e práticos do 'foquismo' e/ou do

'fidelismo', que dizia em seu livro Revolução na Revolução que "o exército popular será o nucleo do

Partido e não o inverso"47, o documento declara que tal doutrina se trata de

"generalização mecânica do que ocorreu em Cuba... nenhuma revolução triunfou sem

que antes se houvesse formado um partido revolucionário capaz de dirigi-la. E

verdade que no curso da luta armada, o Partido se tempera como organização de

vanguarda e cumpre sua missão histórica... Mas o Partido não pode se resumir a um

simples destacamento armado... A luta armada não é mais do que uma projeção, em

plano mais elevado e decisivo, da luta política... Não é o fator militar que dirige o

político, mas justamente o contrário: o fator político é que dirige o militar."48

O documento do Comitê Central também polemiza fundo com a teoria do 'foco'. Segundo o PC

do Brasil,

"tal teoria subestima os papeis desempenhados pelo partido e pelas massas. Situa-se

no plano puramente militar. Segundo esta idéia, é suficiente um punhado de

46 Idem, p. 51.

47 Idem, p. 53.

48 Idem, pp. 53-4.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

48

elementos corajosos e bem armados, em lugares inacessíveis, para levar

adiante a revolução. Em essência, é a falsa teoria dos heróis ativos que arrastam

atrás de si as multidões. Indubitávelmente, a luta armada se inicia, em geral, a partir

de pequenos grupos de combatentes, de homens decididos e convencidos até a morte

da justeza da causa que defendem... Mas estes grupos devem estar profundamente

identificados com as aspirações populares, em particular da região onde operam,

necessitam atuar em função dos interêsses das massas, contribuir para despertar sua

consciência política e ajudar sua organização. A ação militar destes grupos não é

algo isolado. É parte da atuação geral do Partido em todo o País. Ao mesmo tempo

que eles desenvolvem sua atividade, o Partido realiza intenso trabalho político e de

organização entre as massas, sustenta por todos os meios os combatentes armados e

trabalha permanentemente pelo surgimento de novos e novos grupos. Pouco a pouco,

a luta armada adquire prestígio e vai-se estendendo entre as massas até se

transformar, num processo mais ou menos longo, em guerra de todo o povo."49

Numa comparação entre a teoria do 'foco' e a da 'guerra popular', o documento estabelece que

"Tanto a teoria do «foco» como a da guerra popular têm como premissa o amplo

emprego da tática de guerrilhas. Mas, enquanto na primeira os grupos se bastam a si

mesmos e com suas ações esperam que as massas os sigam, na segunda teoria, os

grupos guerrilheiros se apoiam nas massas e no Partido, esforçam-se para

estabelecer bases de apoio no campo e sua atuação está fundamentalmente voltada

para ajudar as próprias massas a se levantar e a fazer a sua guerra."50

O documento conclui a seção dedicada ao combate às idéias cubanas sobre o caminho

revolucionário na América Latina de maneira severa:

"O fidelismo é uma teoria eclética, caracteristicamente pequeno-burguesa que tende

a levar ao fracasso todos os movimentos que por ela se orientam. E outra face do

49 Idem, pp. 54-5.

50 Idem, p. 55.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

49

revisionismo... [como o PCUS] também revisa o marxismo, mas parte de posições de

«esquerda»."51

Assim, o PC do Brasil distancia-se do 'foquismo', advogado por inúmeras organizações da

esquerda brasileira no final da década de sessenta52. O partido também se diferenciará delas ao não

participar do amplo engajamento destas em ações de guerrilha urbana, ou, como preferem os militares, de

'terrorismo'53.

Como se poderá verificar, a negativa do PC do Brasil em se entregar de imediato à luta

guerrilheira, e sobretudo à guerrilha urbana, o preservará de perdas mais significativas e de perseguições

policiais mais severas, como as que ocorriam com as organizações nela engajadas. Ao que tudo indica, as

forças de repressão política priorizavam naquele momento o combate à guerrilha urbana e aos

agrupamentos que a promoviam, deixando um pouco mais à vontade, naquele lapso de tempo, aqueles

que a ela não se dedicavam54.

Um argumento que pesa em favor de tal atitude do partido é o de que ela lhe permitiu a

preservação de forças. De fato, a sábia discrição com que o PC do Brasil desenvolverá a sua atividade lhe

51 Idem, ibidem.

52 As principais eram: ALN, FALN, MR-8, PCBR, Dissidência Leninista, Dissidência Universitária, Dissidência

Estudantil, MOLIPO, Tendência Leninista, Corrente Revolucionária, PRT, FBT, OC-1º de Maio, POLOP, POC, MAR,

MNR, FLN, Ala Vermelha do PC do B, MEP, MRT, PCR, VPR, REDE, VAR-PALMARES, e COLINA. Quase todas, de

maneira direta ou indireta, são dissidências do 'Partidão', ou dissidências de organizações dissidentes deste. Da mesma

forma quase todas se orientam pela teoria do 'foco' e se consagrarão à guerrilha urbana. Duas entre elas, a ALN e o

COLINA, se auto-proclamam 'terroristas', apesar desse adjetivo ser utilizado fartamente pelo regime militar para designar

todos os movimentos de contestação política de caráter mais radical.

53 Somente o PC Brasileiro, o PC do Brasil, o Partido Operário Revolucionário - Trotsquista (POR-T) e a Ação Popular

(AP) fugirão à regra do total engajamento na guerrilha urbana. O primeiro, por que perseverou na linha pacifista adotada

ainda no período pré-1964; os demais, por seguirem diferentes concepções da luta armada revolucionária.

54 Muito embora esta 'trégua' não declarada possa ser deduzida, ela deve ser, contudo, bem relativizada, pois durante todo o

período em questão, o PC do B, embora não fosse o alvo prioritário, nem por isso deixou de ser perseguido e teve que se

impor a mais severa clandestinidade para que conseguisse sobreviver. Feitas estas ressalvas, segue-se, nessa passagem, a

hipótese defendida originariamente pelo historiador Jacob Gorender, op. cit., p. 207.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

50

possibilitará colocar em funcionamento a mais importante tentativa de derrubada violenta do

regime militar de 1964, a Guerrilha do Araguaia.

Em maio de 1968, surge outro importante documento do Comitê Central, Preparar o Partido

para Grandes Lutas55. Mais uma vez a questão da luta armada é abordada. A diferença é que este é mais

enfático.

Assinalando um ascenso nas lutas populares, o documento dá a impressão a quem o lê de que

trata-se de um alerta geral ao efetivo partidário. A linguagem utilizada tem um 'quê' de véspera de grande

acontecimento, um tom solene e impaciente de quem parece estar prestes a realizar um objetivo há muito

desejado. É como que um prenúncio de que o partido a qualquer momento poderá se entregar, enfim, à

efetivação de ações armadas.

Nele, há fartura de explicitações que já permitem uma maior aproximação da fisionomia final do

quinto item do plano tático do PC do Brasil - a luta armada. Trata-se, verdadeiramente, do último passo

dado rumo à caracterização definitiva da linha militar do PC do B.

Assim, pode-se ler que

"os militantes devem compreender em sua plenitude a situação atual de ascenso do

movimento popular, preparar-se para dirigir grandes embates de classe, tanto nas

cidades como no campo, e adestrar-se em todos os sentidos para a guerra popular...

Impõe-se o estudo da técnica de auto-defesa. Mas o melhor aprendizado é a prática

da luta de massas. Um revolucionário que só conhece a teoria... é um combatente

despreparado para dirigir as massas. Cada comunista precisa adestrar-se para ser

um lutador da guerra popular...

Um revolucionário deve perguntar-se todos os dias o que fez pela revolução e para

fortalecer o Partido."56

55 In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil. Op. cit., pp. 71-92.

56 Idem, pp. 85-87.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

51

Nesse mesmo período também são publicados diversos artigos no jornal do partido, A Classe

Operária. Em todos, o tom é o mesmo: os militantes devem estar prontos pois o momento do

desencadeamento da guerra popular se aproxima. Da mesma forma que nos documentos emitidos pelo

Comitê Central, pode-se perceber, pelo exame do conjunto dos artigos aparecidos no jornal, que uma

compreensão político-militar está a se cristalizar, se desenhando cada vez com linhas mais perceptíveis.

Mas ainda faltava o documento definitivo sobre a questão da violência revolucionária e seu

caminho no Brasil. Contudo, terá que se esperar ainda o início de 1969 para que, finalmente, se possa ver

o parto desse tão ansiosamente esperado documento.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

52

I . 3 - O documento GUERRA POPULAR - CAMINHO DA LUTA ARMADA NO BRASIL

I . 3 . 1 - Da sua importância

Em janeiro de 1969, o Comitê Central do PC do Brasil aprova e faz publicar o documento Guerra

Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil que, no jargão cifrado dos porões da rigorosa

clandestinidade vivida pelo partido, logo ganha o apelido diminuitivo de 'GPop', senha que será utilizada

em todas as anotações e documentos secretos relativos à luta armada. A sua primeira redação correu por

conta da 'comissão militar', eleita na VI Conferência. O documento foi então levado à apreciação do

Comitê Central que o aprovou. Estava, pois, definida, e formalizada, a linha militar do Partido Comunista

do Brasil.

Esta condição faz do 'GPop' um incontornável instrumento de estudo para quem quer que queira

se dedicar ao estudo do seu fruto mais dileto: a Guerrilha do Araguaia.

Trata-se de documento de valor histórico inestimável, posto que representa a síntese da evolução

do pensamento político-militar do PC do B no período, e será, como veremos mais adiante, o

documento-base que subsidiará a ação armada revolucionária do PC do Brasil levada a termo às margens

do Araguaia.

E é por este grupo de razões que nos dedicaremos a um exame mais detalhado de seu conteúdo.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

53

I . 3 . 2 - Da conjuntura em que surgiu

Inarredável é a necessidade de realçar a particularidade da conjuntura política nacional que se vive

quando da aparição do 'GPop'. Cerca de um mês antes, mais exatamente a 13 de dezembro de 1968, a

ditadura militar editava o Ato Institucional n° 5 (AI-5), o que fazia recrudescer ainda mais a já brutal

repressão política. Era o endurecimento do regime militar, o que alguns historiadores chamam de o 'golpe

dentro do golpe'.

A tortura e o assassinato de oposicionistas se torna norma corriqueira de conduta das forças

policiais e militares. Põe-se em funcionamento um enorme aparelho repressivo que inclui não só os

chamados orgãos de informação e segurança interna, como as próprias FF.AA., que criam os seus

próprios mecanismos de combate à 'subversão'. Começava então o período mais selvagem do regime

militar, a época que ficou conhecida como sendo a do 'terrorismo de Estado', onde nem os mais

elementares direitos humanos eram respeitados.

Em agosto de 1969, para evitar a posse do vice-presidente da república, Pedro Aleixo - um 'reles'

civil -, assumia o Poder um triunvirato castrense, em substituição ao presidente da república, Marechal

Costa e Silva, afastado por motivo de doença. Os militares desobedeciam assim, mais uma vez, aos

dispositivos constitucionais que ordenavam que, em caso de impedimento do presidente da República,

deveria assumir o seu lugar o vice-presidente.

Tal operação guindou a 'linha dura' militar à chefia do governo. Em realidade, a sua influência há

muito vinha crescendo, podendo mesmo a ela ser atribuida a idéia da decretação do AI-5, assim como

dos demais atos institucionais e decretos de igual teor discricionário que a ele se seguiram.

Em outubro do mesmo ano, este trio fardado passa o cetro para o General Emílio Garrastazu

Médici, que durante o seu mandato consolida a hegemonia política da tendência de extrema-direita

militar.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

54

Se antes do AI-5 a esquerda, na sua maior parte, já estava convencida da necessidade

do emprego da violência revolucionária para destronar os militares do Poder, a partir do final de 68, tal

via parecia cada vez mais incontornável, e se tornou praticamente impensável outra solução. O clima de

radicalização política entre governo e oposições atingira a temperatura máxima.

Ademais, no plano internacional, existiam diversas lutas revolucionárias em curso: a guerra de

guerrilhas conduzida pelo Viet-Cong (e FLN) contra as poderosas tropas norte-americanas obtinha

importantes vitórias, aumentando a fé no método de luta guerrilheiro; pipocavam as guerras de libertação

no continente africano; os jovens se revoltavam pelo mundo afora, tanto no mundo capitalista como no

bloco soviético; movimentos de guerrilhas surgiam como cogumelos após a chuva na Asia e América

Latina; conflitos raciais sacudiam os EUA; a China realizava a sua polêmica 'revolução cultural'. Em

suma, havia um clima de radicalização no 'ar', que vinha do mundo inteiro e que se chocava com as

nuvens negras da repressão militar no Brasil. Assim, a opção pelas armas não era nada de 'exotico' ou 'de

outro mundo', ao contrário, parecia haver uma certa complascência generalizada para com a luta armada.

As guerrilhas e seus líderes tinham uma aura de romantismo, sendo alguns de seus mártires rapidamente

transformados em ídolos da juventude, como foi o caso do 'Che'. A vitória dos guerrilheiros era tida

como apenas uma questão de tempo, posto que, conforme se pensava então, este método de luta era

imbatível57. Tudo parecia confirmar as palavras de Mao Tsé-tung de que "... não é possível transformar o

mundo senão com o fuzil."58

57 Para citar somente um exemplo, ver a obra de Robert Taber, Teoria e Prática de Guerrilha, Lisboa, Iniciativas Editoriais,

1976 (1ª ed. 1965).

58 Mao Tsé-tung, Escritos Militares, Goiânia, Libertação, 1981, p. 389, v. II.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

55

Assim, até mesmo personalidades independentes, isto é, sem filiação partidária, passam a

endurecer o tom de seus discursos, tais como o famoso sociólogo brasileiro de expressão internacional,

Josué de Castro59, que à essa mesma época declarou a um orgão da imprensa espanhola:

"Eu, que recebi um Prêmio Internacional da Paz, penso que, infelizmente, não há

outra solução que a violência para a América Latina. Só vejo uma resposta para os

problemas da América Latina: a revolução... a luta"60.

É nesse quadro de exaltação extrema dos ânimos políticos de governo e oposições que vê a luz

do dia o documento Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil.

59 "O professor Josué de Castro, ganhador de numerosos prêmios internacionais, é autor entre outras das célebres obras

"A Geografia da Fome" e "A Geopolítica da Fome". Foi presidente da Organização de Alimentação e Agricultura das

Nações Unidas (FAO). Antes do golpe de 1964, era o representante do Brasil na Conferência de Desarmamento de

Genebra, quando teve seus direitos políticos cassados." [Extrato dos comentários da Editora Brasiliense no livro de Josué

de Castro, Sete Palmos de Terra e um Caixão, 2ª ed., 1967]. Citado em nota de rodapé por João Batista Berardo, Guerrilhas

e Guerrilheiros no Drama da América Latina, SP, Ed. Populares, 1981, pp. 281-2.

60 Cf. Josué de Castro (entrevista). In: Jornal Arriba, 14/12/68. (Citado por João Batista Berardo, op. cit., p. 280).

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

56

I . 3 . 3 - O conteúdo do 'GPOP'

Dividido em seis seções, o 'GPop', em linguagem acessível, expõe as concepções do PC do Brasil

sobre o provável curso da revolução brasileira.

Começando, à guisa de introdução, por reafirmar o trecho de seu Manifesto-Programa, que

asseverava a inviabilidade do caminho pacífico da revolução em solo nacional, o documento diz da

convicção do partido de que

"o povo, mais dia menos dia, terá que recorrer à luta armada. Não por amor à

violência ou pelo absurdo de derramar sangue. Mas sim como resposta à política

terrorista da reação interna e do imperialismo norte-americano. Onde há opressão,

torna-se inevitável a luta revolucionária."61

Nessas linhas introdutórias, o documento também cuida de revelar as referências teóricas levadas

em conta para a sua redação, assim diz que

"A elaboração do caminho da luta armada... é problema decisivo... Elementos

essenciais desse caminho foram apresentados pelo Partido em alguns de seus

documentos. Mas isto não é suficiente. Agora, baseado no marxismo-leninismo, nas

geniais contribuições de Mao Tsé-tung sobre a guerra popular, o Partido deve

examinar as premissas para o surgimento e desenvolvimento da luta armada e

delinear, num plano mais geral, o curso provável desta luta."62

A primeira subdivisão do documento cuida dos "fatores que influem na definição do caminho

armado"63, que são divididos entre fatores favoráveis e desfavoráveis.

61 "Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil". In: Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil, op.

cit., p. 116 (Ver este documento na íntegra em Anexos).

62 Idem, p. 117.

63 Idem, p. 119.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

57

Entre os primeiros, ou seja, os aspectos que favoreceriam a eclosão e o desenvolvimento da

revolução brasileira, o 'GPop' argumenta que

"a propriedade da terra é monopolizada por um pequeno grupo... enquanto a imensa

maioria... não possui terra para trabalhar. Métodos arcáicos de produção

entravam o desenvolvimento da agricultura"64.

E continua, enumerando os pontos da realidade nacional considerados positivos para o projeto

revolucionário:

"A dominação imperialista norte-americana faz-se sentir cada vez mais

pesadamente...

Embora dispondo de imensas riquezas naturais, o Brasil encontra-se num estágio de

subdesenvolvimento...

A esmagadora maioria da população... atravessa toda espécie de dificuldades,

enquanto uma minoria vive no luxo e na abundância...

Apesar de ser uma nação única, o Brasil contém de fato dois brasís: o das grandes

cidades... e o do interior... onde há imensos vazios... Extensas camadas da população

tomam consciência de que sem liquidar o sistema do latifundio e o domínio

imperialista é impossível conquistar uma vida melhor. Contingentes sempre mais

numerosos tornam-se partidários da ação armada...

Atua no País um partido marxista-leninista, o Partido Comunista do Brasil que...

tem condições para dirigir com êxito a luta emancipadora do povo brasileiro...

Além disto, o Brasil é um país de dimensões continentais... Possui regiões

montanhosas e... densas florestas. Tal circunstância possibilita às forças

revolucionárias um imenso campo de manobra."65

No grupo de fatores desfavoráveis à luta armada, ressaltam-se os seguintes itens:

"[1] as Forças Armadas... em certa medida são fortes. O Exército brasileiro é o mais

numeroso e bem equipado da América Latina... [2] o povo brasileiro não possui ainda

64 Ibidem.

65 Idem, pp. 119-20.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

58

suas forças armadas e sua experiência de luta armada, nas últimas décadas,

é muito limitada. [3] Não há tradição de grandes lutas no campo. O movimento

revolucionário no interior desenvolve-se lentamente, está atrasado em relação ao que

se processa nas cidades... [4] ao contrário do que acontecia antes de 1930, quando

eram acentuadas as contradições inter-imperialistas no Brasil e, em conseqüência, as

classes dominantes se dividiam... presentemente predomina de forma quase total a

influência norte-americana... A divisão entre as classes dominantes se dá,

fundamentalmente, entre os que são ligados a certos interêsses nacionais e os que se

encontram mais diretamente unidos aos monopólios ianques... A possibilidade de um

conflito armado entre as classes dominantes... é pouco provável."66

Concluindo a primeira seção, o documento procede a um balanço entre os fatores pró e contra o

empreendimento da luta armada. Diz que os aspectos supra citados são "fatores desfavoráveis e indicam

que a luta será dura e prolongada"67. Contudo, demonstrando que tal balanço pendia, na opinião do PC

do Brasil, para o lado dos revolucionários, o documento avalia que "estes fatores são transitórios"68,

para acrescentar em seguida, de maneira conclusiva, que

"Os fatores favoráveis, ao contrário, atuam de maneira permanente e tendem a

influir de forma sempre mais favorável. A existência do monopólio da terra, por

exemplo, fará com que os camponeses se voltem cada vez mais para o lado da

revolução. De igual modo, a dominação crescente do imperialismo norte-americano

despertará um número cada vez maior de patriotas para a luta revolucionária. O

movimento democrático e anti-imperialista marcha no sentido de se tornar sempre

mais forte. E o partido da classe operária também crescerá e sua influência se

estenderá continuamente."69

66 Idem, p. 121.

67 Ibidem.

68 Ibidem.

69 Idem, p. 122.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

59

Com uma avaliação político-militar tão otimista das possibilidades militar-revolucionárias que

ofereceria a realidade nacional; avaliação esta, sem embargo, marcada por um certo triunfalismo que,

mesmo anotadas as ressalvas, praticamente proclama de antemão a vitória das forças revolucionárias e o

total esmagamento das fileiras inimigas, o documento 'GPop', na sua seção II, repertoriando quais seriam

os "aspectos básicos do curso da guerra revolucionária no Brasil"70, cita:

"1) A luta armada... terá um profundo caráter popular... O fato de ser o Brasil um

país dependente e de a terra estar monopolizada... imprime à revolução um caráter

nacional e democrático, o que permite a mobilização de imensas forças sociais para

derrubar o atual regime reacionário.

2) As grandes cidades não podem ser o cenário principal... Nelas estão

concentrados os contingentes mais numerosos e mais fortes... do inimigo...

Isto não significa que... não terão papel a desempenhar... A correta e estreita

coordenação das atividades revolucionárias, armadas e não-armadas, no campo e nas

cidades é o caminho para tornar vitoriosas as forças do povo...

O interior é o campo propício... Aí existe uma população que vive no abandono... as

tropas reacionárias atuarão em ambiente adverso...

3) Os brasileiros não podem esperar uma vitória rápida... [Será] necessário destruir

as forças armadas dos reacionários... Será preciso derrotar também numerosas tropas

norte-americanas... Tal a importância do Brasil... será prolongada a guerra de

libertação...

4) A guerra popular exigirá grandes recursos humanos e materiais... Não se deve

alimentar ilusões no apoio logístico do exterior... o povo fará a sua guerra apoiado

principalmente nas próprias forças.

5) ... a guerra de guerrilhas é o instrumento adequado para iniciar a luta armada e

o ponto de partida para construir o exército regular...

6) ... [para] travar combates decisivos pela tomada do Poder... será indispensável

construir o exército popular.

7) ... é vital a construção de bases de apoio no campo... sem elas é impossível

desenvolver a guerra de guerrilhas e construir um poderoso exército popular...

70 Idem, p. 123.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

60

... é a garantia fundamental para a preservação e o desenvolvimento das

forças revolucionárias, a base de sustentação das guerrilhas e do exército popular

para uma guerra prolongada...

...[Estas bases] não poderão surgir de uma hora para outra. Já na preparação... é

imprescindível ter em vista zonas propícias... e nelas trabalhar com esta perspectiva...

Os guerrilheiros operarão em áreas determinadas... terão grande mobilidade, não se

apegando à defesa de territórios, mas não serão jamais grupos errantes [referência

crítica indireta ao 'foquismo']. Tendo como função precípua ganhar as massas para a

revolução, tratam de lançar raízes profundas entre os habitantes da área... os

defendem das violências de 'jagunços' e soldados... procuram despertar sua

consciência política e estimulam sua organização...

8) ... para acumular forças e adquirir poderio, os combatentes do povo, na

primeira fase da guerra popular, terão que desenvolver sua luta no quadro da

defensiva estratégica.

9) Sem uma política justa... não poderá alcançar êxito. Sendo uma guerra das

massas, ela deverá expressar as aspirações mais sentidas do povo... Se a luta armada

apresentar um programa político que não corresponda à realidade estará

condenada de antemão ao fracasso.

... deverá desfraldar bandeiras políticas bem amplas...

... nas áreas onde obtiver a vitória, criará o poder popular e executará seu

programa" [todos os grifos são nossos].71.

Na terceira subdivisão, intitulada "Apreciação crítica de outros caminhos da luta armada"72, o

documento retoma e sistematiza as críticas que vinha fazendo desde o golpe militar de 1964 às diferentes

concepções de vias revolucionárias.

Também procede a um breve exame crítico e autocrítico das várias tentativas de luta armada

levadas a cabo em território nacional nos últimos cinquenta anos. A análise revisita as principais, desde

aquelas promovidas pelos levantes 'tenentistas', passando com destaque pela 'Coluna Prestes' e pela

71 Idem, pp. 123-32.

72 Idem, pp. 135-9.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

61

Insurreição de 1935 até chegar ao fracassado 'levante dos sargentos'73, já durante o governo do

Presidente João Goulart. Nestas, e em outras duas ocorridas após o golpe militar74, o PC do Brasil

enxerga a influência, e até mesmo a preponderância, de uma concepção que privilegiava o método de

'levantes de quartel' e/ou 'militaristas', 'foquistas' ou não. A opinião expressa é a de que nenhuma destas

propostas são capazes de levar a bom termo a guerra revolucionária em solo brasileiro.

Mas, sobretudo, o que esforça-se por demonstrar, em alto e em bom som, é a distância entre as

idéias expostas no 'GPop' daquelas outras defendidas pelos adeptos do 'foquismo'. Neste particular, o

documento repete, acentuando a acidez e a ênfase, as críticas já desfiladas em documentos anteriores75.

Em sua seção IV, o documento põe-se a discutir questões de ordem mais prática, tais como o

início e o desenrolar da guerra popular.

Quanto ao início, diz-se que não se trata de questão de somenor importância. Segundo o

documento, nesse momento o 'voluntarismo', que despreza as condições concretas para se deflagrar a

guerra revolucionária, deveria ser, a todo custo, evitado:

"O início da guerra popular não pode ser um ato voluntarista desta ou daquela

corrente política. ... surge numa determinada situação em que se torna necessária a

73 Revolta dos sargentos da Aeronáutica e Marinha, motivada pela cassação do mandato de deputado estadual pelo Rio

Grande do Sul, sargento Aimoré Cavaleiro, pelo Supremo Tribunal Federal. O teor da sentença argumentava com a

inelegibilidade de subalternos das FF.AA. e se constituia também numa ameaça ao mandato do único sargento que se

elegera deputado federal, Antônio Garcia Filho. Liderada pelo sargento Antônio Prestes de Paula, a rebelião estourou em

12/09/63 e foi derrotada por forte repressão promovida por tropas do exército. Ver: Jacob Gorender, op. cit., pp. 56-7.

74 Tratam-se das tentativas de militares nacionalistas de criação de 'focos' revolucionários para derrubar a ditadura militar:

a do Coronel Jefferson Cardim, no sul do País, em março de 1965; e, a outra, em abril de 1967, de um grupo de ex-militares

e civís ligado ao ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, agrupados no Movimento Nacional Revolucionário

(MNR). Teve lugar na divisa dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo e ficou conhecida como a 'Guerrilha de

Caparaó', se bem que chamá-la de 'guerrilha' talvez não seja apropriado, pois ela foi desmantelada antes mesmo de realizar

qualquer operação. Para saber mais, consultar: Jacob Gorender, op. cit., pp. 123-6; e, João Batista Berardo, op. cit., pp. 252-

5.

75 Ver notadamente: "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar", In: Guerra Popular - Caminho

da Luta Armada no Brasil, op. cit., pp. 23-70.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

62

passagem da fase da luta de massas não-armada para a fase da luta

armada de massas"76.

Em seguida, alerta para outro perigo - o 'espontaneísmo' - que seria o reverso da medalha, ou

seja, a não preparação do partido para o momento da passagem acima citada:

"Em tal situação, o trabalho consciente da vanguarda desempenha um papel muito

importante, tanto no que respeita à indicação do rumo acertado, como no referente à

ação prática orientada no sentido da passagem de uma fase à outra. Nesta questão é

sumamente falsa qualquer posição espontaneísta."77

Classificando de estúpidas e ignorantes as teses defendidas pela a Escola Superior de Guerra

(ESG)78, segundo as quais a guerra revolucionária seria uma criação artificial e alimentada do exterior, o

documento contra-argumenta que "... o irrompimento da guerra revolucionária resulta de processos

internos, obedece a leis objetivas... ... é produto do agravamento das contradições de classe"79.

Para o 'GPOP',

"O início da luta armada... Relaciona-se diretamente com a questão de que os

primeiros grupos de combatentes são débeis, enquanto o inimigo é forte. As forças da

reação intensificam seus esforços para... esmagá-la no nascedouro. Deste modo, para

os revolucionários não se trata apenas de começar as ações armadas. A sobrevivência

e o desenvolvimento dos grupos combatentes constituem problema vital."80

E adverte:

"Mesmo que a situação esteja madura, impõe-se que os combatentes tenham forjado

solidos vinculos com as massas... e saibam formular as suas reivindicações, conheçam

76 "Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil". In: Op. cit., p. 141.

77 Ibidem.

78 Escola de formação do alto oficialato das FF.AA. brasileiras.

79 Idem, p. 142.

80 Ibidem.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

63

perfeitamente o terreno... e que este, por suas condições geográficas, seja favorável

às forças revolucionárias e desfavorável ao inimigo... [e] que se tenham preparado

física e moralmente"81.

Apesar de o problema do início da luta armada ser considerado muito relevante e ser

cuidadosamente tratado nas páginas do 'GPop', ele não é visto como "algo que apresente obstáculos

intransponíveis"82. Pelo contrário, para o PC do Brasil são múltiplas as motivações que dariam ensejo ao

seu desencadeamento no campo. O documento cita algumas hipóteses:

"... Pode ser resultado da luta popular contra injustiças e arbitrariedades;

conseqüência do movimento de massas no interior por suas reivindicações

específicas; fruto da política que envolve todo o país; decorrência da ação de grupos

de propagandistas armados...

Desta forma, a luta armada poderá surgir de distintos motivos e em vários pontos...

do interior"83.

Entretanto, muito embora o interior seja sem duvida alguma considerado o cenário fundamental

para o início e a realização dos movimentos da guerra popular, o documento abre a hipótese, embora

considerando-a muito pouco provável, de que tal possa se dar num cenário urbano. Mesmo

desacreditando nesta possibilidade, no caso disso acontecer, aconselha que,

"... Como são poucas as possibilidades de as forças revolucionárias manter-se nas

cidades, elas se empenharão numa resistência organizada e devem estar preparadas

para retirar-se para o interior, quando suas posições se tornarem insustentáveis"84.

Retornando ao terreno das probabilidades que considera mais realistas, o documento retorna ao

'locus' onde o PC do B crê que quase fatalmente se dará o começo das operações armadas: o interior.

81 Ibidem.

82 Ibidem.

83 Idem, pp. 142 e 144.

84 Idem, p. 145.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

64

Afirma que, não importando qual seja o motivo detonador da guerra popular, "a luta armada

no interior se apresentará no início sob a forma de guerra de guerrilhas"85.

A importância conferida ao início da guerra popular é atestada pelas longas linhas dispensadas ao

problema. De fato, ele é visto como o período fundamental, onde a sorte do movimento armado é

definida. Assim, o documento estabelece desde então alguns pontos a serem estritamente observados

pelos guerrilheiros nesta etapa tão frágil e decisiva:

"A fase inicial será a mais difícil... O inimigo tem condições de concentrar grandes

efetivos [para] tentar esmagar os primeiros grupos guerrilheiros... apagar o fogo

antes que se estenda"86.

E conclui:

"... A guerrilha sobreviverá se tiver apoio das massas e grande mobilidade para

impedir o cerco. Deve saber ocultar-se, cortar contacto com o inimigo e romper o

cerco quando isto acontecer. Terá que contar com refugios seguros.

No início a preocupação... será menos a de travar combates... e mais a de fazer

propaganda revolucionária entre as massas"87.

Na quinta seção, o documento trata de estabelecer claramente quem são os seus inimigos e de

avaliar a sua força. Para o PC do Brasil, os principais inimigos a serem batidos através da guerra popular

são"... as forças reacionárias internas... as atuais Forças Armadas e, posteriormente, com tropas norte-

americanas que, inevitavelmente, virão em seu socorro."88

Ressalta o documento que as FF.AA., desde o golpe de 64, estão em intensa preparação material

e treinamento de seu pessoal para enfrentar movimentos populares de contestação de maior monta e

85 Idem, p. 146.

86 Idem, p. 147.

87 Ibidem.

88 Idem, p. 149.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

65

mesmo aquilo que "mais temem... o surgimento da guerra popular"89. Para o PC do Brasil, a verdade é

"que elas estão em guerra contra o povo"90.

Contudo, na análise do PC do Brasil, isso não a salvará de uma derrota acachapante. É o que se

pode inferir do trecho que se segue:

"As Forças Armadas... não são tão fortes como procuram aparentar. Ao contrário,

são bastantes vulneráveis. A causa que defendem é repudiada... Seu moral é

alicerçado em princípios antidemocráticos e antinacionais. Não resistirá aos embates

de uma guerra popular. Os soldados são oriundos do povo e não pensam... [como] os

generais fascistas... Também sargentos e alguns oficiais são sensíveis à luta

patriotica... Numa luta encarniçada... tendem à desagregação e não terão grande

combatividade. Sua tradição militar é quase nula. Empenharam-se pouquissimas

vezes em renhidos combates. Nos últimos anos, dedicaram-se especialmente a

prender, espancar e torturar presos, manifestação evidente de extrema covardia...

O inimigo acabará afogado no oceano da guerra popular."91

E, refletindo sobre as dificuldades que as FF.AA. encontrarão, prevê que:

"As montanhas e as florestas, as quebradas e os capões de mato, as grutas e as

plantações mais densas, abrigarão os heróicos guerrilheiros, protegidos pela simpatia

e vigilância das massas.

As cidades criarão também seus grupos de auto-defesa para proteger as

manifestações de massas, os quais, no processo da guerra popular, atingirão pontos

nevrálgicos do inimigo, organizarão ações de fustigamento e trabalho

diversionista"92.

Entretanto, em mais um arroubo que visa à demarcação de campos com as concepções e,

sobretudo, com as ações de guerrilha urbana promovidas por certos grupos então em plena atividade nas

89 Idem, p. 151.

90 Ibidem.

91 Idem, p. 153.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

66

cidades, às vezes inclusive descambando para o puro 'terrorismo', afirma numa referência

pretensamente indireta, mas, em realidade, com endereço bem preciso e conhecido, que as ações destes

'grupos urbanos de auto-defesa' "... em nada serão semelhantes aos actos terroristas actualmente

realizados nas grandes cidades.."93 por que

"Simultâneamente com as ações armadas, se desenvolverão as lutas de massas nas

cidades e no interior... as lutas das massas urbanas contribuirão para reter... enormes

contingentes das forças reacionárias."94.

Aliás, sobre os assaltos a bancos, seqüestros, etc., ou seja, sobre as ações das chamadas guerrilhas

urbanas, há uma frase muito emblemática do pensamento do PC do Brasil a este respeito, de um dos

principais líderes do partido que dizia sempre a seus amigos: "Isso pode levar ao banditismo"95.

No seu epílogo, o 'GPop' se ocupa de historiar todo o processo de discussão que levou à sua

elaboração, assumindo então, de forma sintética, o papel de documento definitivo sobre o programa

militar do partido.

Interessante é perceber que o PC do B não omite, pelo contrário, reafirma a fonte onde foi beber

para erigir o documento em questão. Afirma claramente que depois de percorrer, desde 1962, um longo

percurso de estudo e reflexão sobre a complexa realidade brasileira, o "estudo das obras de Mao Tsé-

tung sobre a guerra revolucionária serviu de guia na elaboração deste caminho."96

Enrigecendo ainda mais o discurso de que todo o trabalho partidário deverá estar subordinado à

preparação e deflagração da guerra popular, o documento afirma que

92 Idem, pp. 153-4.

93 Ibidem.

94 Idem, ibidem.

95 Frase atribuída a Pedro Pomar por Arnaldo Mendez, "Depoimento de um Amigo". In: Luís Maklouf e alii, Pedro Pomar.

SP, Brasil Debates, 1980, p. 77.

96 In: Op. cit., p. 156.

Breve Histórico do Partido Comunista do Brasil

67

"A essência estratégica do Partido, definida em seu Manifesto-Programa, é a

conquista de um governo popular revolucionário através da luta armada, da guerra

popular. A [ela] subordina-se a táctica do Partido... Toda a actividade

partidária...Tudo quanto realizarem os militantes precisa-se ligar... a esta

finalidade... Qualquer que seja o tipo de trabalho... ou o lugar em que se realize, seu

conteúdo fundamental será sempre a preparação e o desencadeamento da guerra

popular... [todos os comunistas] precisam dominar e aplicar a linha política e estudar

a arte militar"97.

Os últimos parágrafos do documento são consagrados à chamamentos de ordem ideológica,

visando a que os comunistas estejam prontos para colocarem em prática as linhas do documento 'GPop'.

Desta forma, pode-se notar nas seguintes palavras, que em muito se assemelham às de um edital de

convocação militar, em tempo de guerra, colocando a tropa em 'estado de prontidão'. Tal tom grave, hoje

é testemunho da seriedade com que o partido se propunha então a tornar realidade o que estava

propondo:

"Cada comunista é um soldado da revolução e pode ser convocado para quaisquer

tarefas, inclusive a da luta armada. O militante... organiza a sua vida em função dos

interesses do povo, livra-se de tudo que possa criar dificuldades insuperáveis ao seu

trabalho revolucionário...

Que os militares fascistas e os imperialistas ianques espumem de ódio! A guerra

popular será uma realidade. E o povo vencerá!"98

Se é verdade que desde 1962 o PC do Brasil rufava os seus 'tambores de guerra', fustigando e

hostilizando violentamente a ditadura militar no Poder, ao mesmo tempo em que anunciava sua

convicção e firme intenção de liderar um movimento popular armado contra ela, sem duvida, é a partir de

1969, com a publicação do documento Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil, que se

97 Idem, pp. 156-8.

98 Idem, pp. 158-60.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

68

pôde verificar que uma declaração aberta de guerra acabara de ser decretada. Não tardaria a

começarem os enfrentamentos militares entre o partido e os efetivos militares do regime de 64.

Passara-se o tempo em que a retórica da guerra revolucionária bastava a si mesma. Estávamos no

climax da repressão policial-militar. A alegria e a irreverência, traços tão peculiares à juventude brasileira,

mesmo àquela mais engajada políticamente, dava lugar a uma vida repleta de coragem e ousadia, mas

também de medo e incerteza, traição e alienação. Ao mesmo tempo, aquela parcela socialmente mais

combativa, iniciava-se na dureza da clandestinidade. Esta nova vida, plena de disciplina e privações,

impunha comportamentos e atitudes rigorosas, muito díspares daquela experimentada até então. Tais

mudanças, bruscas, colocavam-se com força de obrigação, a qual não se podia simplesmente ignorar. Era

uma nova existência, cheia de perigos que traziam consigo um sem número de precauções que, uma vez

não odedecidas à risca, significavam - não raro - a perda da própria vida e, até mesmo, a de várias outras

pessoas.

Era tempo de deixar de lado o velho modo de viver e atuar. Para muitos, era chegado o tempo de

empunhar um fuzil e partir para a revolução.

C A P Í T U L O

I I

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

69

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

70

DAS PALAVRAS AOS ATOS:

A PREPARAÇÃO E OS COMBATES ARMADOS

( 1966 - 1975 )

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

71

"... São tantas lutas inglórias, são histórias que a história

qualquer dia contará, de obscuros personagens, as passagens, as coragens

são sementes espalhadas neste chão; de Juvenais e de Raimundos,

tantos Júlios de Santana, dessa crença num enorme coração;

dos humilhados e ofendidos, explorados e oprimidos

que tentaram encontrar a solução. São cruzes sem nomes,

sem corpos, sem datas... São vozes que negaram

liberdade concedida, pois ela é bem mais sangue,

ela é bem mais vida; são vidas que alimentam nosso sonho e esperança,

o grito da batalha: quem espera nunca alcança! Eh, êê, quando amanhecer

é que eu quero ver quem se lembrará,

Eh, êê, quando o sol nascer é que eu quero ver quem recordará.

Eh, eu não quero esquecer essa legião que se entregou

por um novo dia, Eh, eu quero é cantar essa mão tão calejada

que nos deu tanta alegria"

(Luíz Gonzaga Junior)

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

72

II . 1 - A Inação Aparente

II . 1 . 1 - A VI Conferência Nacional, a Comissão Militar e seu Trabalho Sigiloso

Como vimos, a linha político-militar do PC do Brasil foi elaborada entre os anos de 1966 e 1969,

tendo como marcos, inicial e final, as Resoluções da VI Conferencia Nacional e o documento Guerra

Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil, respectivamente.

Constitui, pois, grande surpresa quando nos deparamos com o fato de que o PC do B não

esperou a definição formal desta linha, ou pelo menos a sua publicação, para se consagrar à preparação

concreta da luta armada.

De fato, a chamada Comissão Militar ou Especial, adjunta ao Comitê Central, composta por

ocasião da VI Conferência com o intuito de materializar a proposta de guerra revolucionária, aprovada

naquele evento, ao que tudo indica, trabalhou incessantemente desde então e, como se poderá verificar,

os seus frutos começaram a despontar bem rápido.

Donde a conclusão de que a chamada 'inação' de que o partido era acusado, notadamente por

movimentos de dissenção interna, não existiu. Na verdade, o PC do B praticou o que dizia, ou seja,

pregou que a luta armada era o meio de se contrapor à ditadura militar no Poder e tratou de prepará-la e

executá-la.

Ao mesmo tempo, tal procedimento nos indica que o fato de o partido só vir a publicar o 'GPop'

em princípios de 1969, não significava que inexistisse uma linha militar partidária. Pelo que podemos

inferir, o que acontecia era antes uma medida diversionista, que visava a não atrair a atenção da repressão

policial-militar sobre a organização.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

73

Aqui, cumpre destacar o profissionalismo com que o problema foi tratado. Tamanhos

foram os cuidados tomados pela Comissão Militar, no tocante à preservação da segurança, que nem

mesmo o conjunto da direção central do partido tomara conhecimento de que a execução do 'ponto

cinco'99 estava em pleno andamento.

Tal procedimento valerá ao PC do Brasil críticas acerbas como as que lhe foram feitas pelo seu

ex-militante, Wladimir Pomar, de que "não foi possível nem mesmo ao conjunto da direção do PC do B

discutir, como deveria"100.

Por outro lado, lhe valerá também elogios insuspeitos de Jacob Gorender, historiador, membro do

PC Brasileiro e aliado de Prestes à época da cisão do 'velho' PCB, posteriormente um dos fundadores do

PCBR101. Não obstante ser confessadamente um adversário histórico do PC do Brasil, ele afirmará

enfáticamente, em uma de suas raras referências positivas ao PC do B, que, em relação à preparação

deste para a luta armada, a sua conduta tinha sido dígna de nota, como pode-se ler no seguinte trecho:

"Para a esquerda armada, a guerrilha urbana devia ser preparatória da guerrilha

rural. Nenhuma... chegou à guerrilha rural. Algumas dezenas de pequenas bases

foram esboçadas em regiões agrícolas... Quando não sofreram o desmantelamento

por intervenção do inimigo, essas bases... se desativaram por si mesmas.

Unicamente o PC do B conseguiu preparar e efetuar verdadeiras operações de

guerrilha rural [grifo nosso]. Se considerarmos a fase de preparação de seis anos,

99 Ou 'quinta tarefa', era uma referência ao quinto ítem da tática traçada na VI Conferência Nacional, assim resumido no

documento "O Partido Comunista do Brasil na Luta Contra a Ditadura Militar", de novembro de 1967: "5 - Utilização de

todas as formas de luta, tanto abertas como clandestinas, preparação e desencadeamento da luta armada, com o propósito

de desenvolver a guerra popular." (In: Guerra Popular..., op. cit., p. 37).

100 Wladimir Pomar, op. cit., 17.

101 O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, PCBR, surgiu de dissidência do 'Partidão' em 1967/68. Reunia alguns

líderes históricos do 'antigo' PCB, tais como Mário Alves, Apolônio Carvalho, além do próprio Gorender. Sobre a trajetória

do PCBR, ver: Antônio Caso, A Esquerda Armada no Brasil - 1967/1971 (ed. portuguesa), Lisboa, Moraes Editores, 1976,

p. 29; e, Jacob Gorender, op. cit., pp.101-6 e 179-83.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

74

cabe concluir que se tratou de notável façanha. A própria guerrilha esteve ativa

durante cerca de dois anos [sic!], o que representou façanha ainda mais notável.

Alguns fatores favoreceram este resultado. Antes de tudo, o PC do B se afastou por

completo da luta armada nas cidades... se dedicou ao proselitismo discreto e à

propaganda sem estardalhaço, o que não atraiu a atenção dos órgãos da repressão

policial. Em conseqüência, sofreu poucas prisões de militantes até 1972...

O PC do B pôde, em suma, concentrar recursos humanos e materiais na

estruturação da sua base guerrilheira, no que revelou extraordinária capacidade

organizativa"102.

Mas, deixando de lado as opiniões emitidas a este respeito, o que importa mesmo é verificar que a

forma com a qual o PC do Brasil levou a efeito a preparação - discreta e silenciosa - foi um dos pontos

altos na avaliação que se pode fazer de suas ações militares no período e, sem embargo, uma das razões

que, juntamente com o não envolvimento nas ações de guerrilha urbana, lhe permitiram a paciente e

meticulosa preparação do movimento guerrilheiro de maior fôlego que este período conheceu, a

Guerrilha do Araguaia.

Pensamos sinceramente que, agindo de outra forma, fazendo 'amplas discussões', como pretende

W. Pomar, fatalmente todos os anos de preparação militar do PC do Brasil teriam sido descobertos,

abortando desta forma todo o processo. É claro que se poderia argüir, como o faz o autor citado, da

ausência de democracia interna na tomada de decisões concernentes a um problema tão delicado e

decisivo para o partido. Contudo, tal argüição teria que nos levar, sob pena de cometermos uma

abstração total da conjuntura política que então se vivia, a uma discussão mais ampla, sobre a

possibilidade de um pleno funcionamento democrático de uma organização partidária revolucionária

duramente perseguida, como o era o PC do Brasil naquele então.

Tal ponto de vista nos parece tanto mais plausível quando tomamos consciência de que a

vastíssima rede de informações com que contava os órgãos repressivos incluía, como se verificará mais

tarde, até mesmo um membro da alta direção do partido, que tanto prejuízo causará à organização,

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

75

inclusive o assassinato em 1976 de importantes dirigentes do PC do Brasil e mesmo de um de

seus principais reorganizadores em 1962, Pedro Pomar.

II . 1 . 1 . a - A opção teórica

As opções pela teoria da 'guerra popular'; pela utilização das táticas de guerrilhas no seu

princípio; pelo interior do País, como cenário fundamental da luta armada; e, da importância fundamental

do campesinato, como força combatente fundamental, entre outras, não couberam à Comissão Militar,

haja vista que as Resoluções da VI Conferência já afirmavam claramente a convicção do PC do Brasil

que estas seriam algumas das características da guerra revolucionária no Brasil.

Coube à Comissão Militar, então, a tarefa de estudar de maneira mais profunda os textos

revolucionários que se relacionavam com a preparação e o desencadeamento da guerra popular103, assim

como, verificar em que condições aqueles preceitos gerais poderiam ser aplicados concretamente,

levando-se em conta as especificidades da realidade brasileira.

Sobretudo foram estudados à exaustão as obras de Mao Tsé-tung, de onde os artífices da linha

militar do partido tiraram suas linhas mestras104.

102 Jacob Gorender, op. cit., p. 207.

103 O conjunto de obras de referência incluía desde obras de autores considerados clássicos na questão da guerra, tais como

Sun Tzu, Clausewitz e Maquiavel, até teóricos mais recentes da guerra de guerrilhas, com destaque para os Escritos

Militares de Mao Tsé-tung, mas também para textos de autores vietnamitas como os de Giap ou aqueles de Van Thieu.

Além destes, os membros da Comissão Militar também estudaram as obras de Fidel, Guevara e Débray, contudo, como

pôde-se ver no capítulo anterior, as teses destes últimos serão desprezadas e criticadas.

104 Ver supra, ítem II. 3. 3, pp. - .

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

76

II . 1 . 1 . b - A escolha de 'áreas propícias'

Lugar de destaque ocupa nas idéias militares do líder chinês, o primado da construção do que ele

chamava "bases de apoio"105, que se constituiriam na retaguarda da guerrilha. Segundo Mao, sem elas

um comando guerrilheiro não seria mais que um "bando rebelde errante"106, sem nenhuma possibilidade

de êxito.

A este ítem a Comissão Militar também dispensará a maior atenção, pois, na sua concepção, sem

que os guerrilheiros estabelecessem profundas ligações com as massas da região onde operam, a guerra

popular não obteria sucesso. Condição sine qua non para que se conseguisse isso era que os guerrilheiros

agissem em "áreas determinadas"107, embora ressalte-se que eles não se apegariam "à defesa de

territórios"108, para que com o tempo, aquelas áreas se transformassem em "sólidos pontos de apoio"109.

Note-se, de passagem, que este é um dos pontos principais de diferenciação entre as teorias de guerra de

guerrilhas maoístas e aquelas defendidas por Fidel, Guevara e Débray.

Ajuntava-se a tal imperativo um outro, de igual peso, a procura de cenários onde as condições

geográficas favorecessem a realização de movimentos de guerra de guerrilhas e, por outro lado,

dificultassem a ação das forças repressoras inimigas. A indicativa mais geral já havia sido dada por

diversas vezes desde 1966: tal cenário seria no interior, "o elo mais débil da dominação das forças

reacionárias no País"110, contudo cabia à Comissão Militar determinar onde exatamente, na imensidão

do interior brasileiro, se reuniam as condições propícias, requeridas pelo partido.

105 Mao Tsé-tung, "Criação de Bases de Apoio". In: Escritos Militares, op. cit., cap. VI, pp. 290-306.

106 Idem. In: Op. cit., p. 291.

107 "Guerra Popular...". In: Op. cit. p. 130.

108 Ibidem.

109 Ibidem.

110 Idem. In: Op. cit., p. 125.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

77

Muito embora não contemos com nenhum dado que possa lançar luz sobre como

procedeu-se para efetivarem-se as ditas escolhas, pode-se facilmente supor, pelas dimensões continentais

do País, que tal tarefa não deve ter sido de forma alguma fácil; que deve ter implicado em inúmeras

viagens, coletas de informações geográficas, etc., antes de que se pudesse chegar a alguma proposta

conclusiva.

II . 1 . 1 . c - Os escolhidos para a 'tarefa especial'

Uma vez definida a linha política geral que seguiria a ação armada do PC do Brasil e eleitos os

cenários onde estas se efetivariam, faltava somente a escolha dos militantes para executarem a tarefa

militar ou, como era chamada, 'especial'.

Embora não tenha vindo à tona nenhum documento partidário que informe os critérios usados

para que um militante viesse a ser incluído na relação dos escolhidos, nas entrelinhas dos documentos

produzidos pelo PC do B no período de 1966 a 1969, pode-se perceber a exaltação de um determinado

conjunto de traços que um militante comunista deveria possuir.

Assim, por exemplo, podemos ler que o partido deveria destinar ao trabalho no campo "o maior

número de militantes, que sejam combativos, abnegados e com capacidade de ligar-se às massas,

pessoas que se disponham a viver de fato no interior, a integrar-se com a população rural"111.

Humildade e modéstia são outras das qualidades exigidas e constantemente reafirmadas, segundo

o partido, elas seriam necessárias pois implicavam em reconhecer o óbvio, ou seja, que

"Os comunistas têm ainda pouca experiência de trabalho no campo. Por isso,

modestamente, devem aprender com as massas do interior... Não podem... querer

111 Idem, p. 157.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

78

impor seus costumes e as regras de comportamento próprios dos grandes centros

urbanos"112.

Outros atributos citados que comporiam o perfil ideal do combatente da guerra popular, para o

PC do B, eram os que se seguem:

"dominar e aplicar a linha política do partido e estudar a arte militar"113

"Os membros do PC do Brasil têm obrigação de aparecer diante das massas como os

elementos mais destemidos, abnegados e capazes de indicar proposições justas... O

Partido necessita de homens e mulheres capazes de assimilar o estilo bolchevique de

Lênin e Stálin, a tenacidade e a firmeza revolucionária dos comunistas chineses e

albaneses, o espírito de decisão e a fibra dos combatentes... do Vietnam... [que]

saibam se orientar nas condições mais difíceis e considerem que o êxito da linha do

Partido está em suas mãos"114.

Outro fator que definiu o destacamento de militantes para a tarefa 'especial' foi o fato de estarem

'queimados', o que queria dizer no jargão da clandestinidade, estar sob suspeição dos órgãos de

repressão, sob ameaça de prisão.

Pelo menos três pessoas que estiveram na Guerrilha do Araguaia e que sobreviveram, Dower

Cavalcante, José Genoíno Neto e Criméia Alice Schmidt de Almeida, à época conhecidos líderes

estudantís, afirmaram que foram designados para a luta armada, primeiro por que assim o quiseram e,

segundo, por que suas vidas corriam perigo nas cidades, mesmo estando usando nomes falsos115. É

provável que muitos outros também tenham sido transferidos pela mesma razão.

112 Idem, ibidem.

113 Idem, p. 158.

114 "Preparar o Partido para Grandes Lutas". In: Op. cit., p. 92.

115 Cf. Nonato Albuquerque. "Em busca da guerrilha perdida, entrevista com Dower Cavalcante". In: Jornal Vida & Arte,

Fortaleza, 18/05/1991, caderno B; Cf. "Carta de José Genoíno Neto à Justiça Militar" (SP, 02/1975). In: Fernando Portela,

Guerra de Guerrilhas no Brasil, 5ª ed., Global, 1981, p. 202; e, Cf. "Entrevista com Guerrilheiros Hoje - Elza Monnerat e

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

79

Ao que tudo indica, a estes dois fatores se somava um terceiro, o da disposição pessoal

do militante de se deslocar para regiões inóspitas e de aceitar que tal deslocamento era irreversível, ou

seja, que, por motivos de segurança, não haveria a possibilidade de volta, conforme narrou Dower

Cavalcante116, muito embora, como se verá, exceções houve e alguns dos que para a área escolhida se

dirigiram, por motivos diversos, de lá se retiraram.

Outro critério que podemos inferir é o de dominar técnicas úteis à atividade a que o partido iria se

entregar. Neste sentido, pensamos não ser mera coincidência o grande número de geólogos ou de

profissionais da área de saúde, por exemplo, entre os escolhidos.

Disposição para se integrar à 'quinta tarefa' parece não ter faltado à época no conjunto do coletivo

partidário. Antes, pelo contrário, pela leitura dos relatos de sobreviventes, pode-se mesmo perceber uma

grande expectativa de 'merecer' ser escolhido e se verificaram mesmo solicitações de vários militantes

para que fossem transferidos para tal 'frente'. Tal foi o caso, por exemplo, de Glênio Sá, que assim conta

como se passou com ele:

"... «Guerra Popular, Caminho para a Luta Armada no Brasil» incentivou-me a sair à

procura do que existia de concreto sobre a preparação dos comunistas para a luta

armada. Solicitei o meu deslocamento para o campo, usando como argumento a

minha origem sertaneja117 [grifo nosso]."118

Por características de personalidade, por aptidão e conhecimento das questões relativas à 'arte da

guerra' ou subjacentes, por pura falta de condições de sobrevivência e atuação nas grandes cidades, por

manifesto desejo de participar de confrontos armados contra os detentores do Poder... Na verdade,

pouco importa a causa imediata da escolha, o essencial nesse processo é que ela foi acolhida com

Criméia A. S. Almeida". In: João Amazonas et alii, Guerrilha do Araguaia: 1972-1982, 2a. ed., SP, Anita Garibaldi, 1982,

pp. 40-1.

116 Idem, ibidem.

117 Natural do campo, de origem rural.

118 Glênio Sá, Araguaia: Relato de um Guerrilheiro, SP, Anita Garibaldi, 1990, p. 5.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

80

entusiasmo por todos os 'eleitos'. Isso porque em seus corações e mentes pulsavam forte um incontido

ímpeto revolucionário e a firme certeza de que somente pela via armada poderiam o Brasil e seu povo

encontrar novos caminhos, diferentes daqueles que até então trilharam.

A existência de tais sentimentos podem ser conferidos através da leitura da carta que um destes

'escolhidos' e futuro guerrilheiro, Guilherme Lund - 'Luís', escreveu a seus pais, quando já estava

residindo no Araguaia:

"... Queridos pais

Diante da situação atual é preciso que se encare seriamente a questão da nossa vida e

a que dedicá-la. Andei pensando bastante... nada adiantará continuar a estudar; pela

própria situação do país, cada vez se torna mais difícil para os jovens... Não há

perspectiva para a maioria... muito menos para mim, que não consigo ser

inconsciente ou alienado... Sobre as propostas que me fizeram... não posso aceitar,

não posso largar tudo; seria atentar contra a minha própria consciência... Minha

decisão é firme e bem pensada... No momento só há mesmo uma saída... A violência

injusta gera a violência justa... a violência popular é justa porque está a favor do

progresso e da justiça social.

... Gosto e considero muito vocês, mas temo que não compreendam a grandeza do

caminho que vou tomar... a nobreza dos meus ideais...

Não se preocupem comigo, estou bem e seguro, não estou sozinho.

Um grande abraço,

Guilherme."119

119 Guilherme Lund, "Carta a Seus Pais", São Paulo (?), fevereiro de 1970). In: João Amazonas et alii, op. cit., p. 47. Ver a

íntegra nos Anexos.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

81

II . 2 - A Preparação da Luta Armada (1966-1972)

II . 2 . 1 - As Tentativas de Implantação de 'Frentes' de Luta Guerrilheira

Convencido da justeza de sua linha militar que estabelecia o interior como cenário da guerra

popular, o PC do Brasil trata então de transferir importante contingente de militantes para as regiões que

a Comissão Militar considerou preencherem os requisitos estabelecidos, ou seja, regiões onde as tropas

da repressão não contassem com

"suficientes efetivos militares para ocupar vastas áreas rurais... [onde] atuarão em

ambiente adverso: situação geográfica que dificulta as [suas] ações... meios de

transporte difíceis ou inexistentes, ausência de fontes de abastecimento para forças

regulares numerosas, condições sociais desfavoráveis"120

Em outro trecho, quase de maneira imperceptível, o PC do B citava outra característica a ser

observada ao se proceder à escolha do cenário da luta armada e que se revelará de um peso

desproporcional ao destaque dado no documento:

"O interior é o campo propício... aí existe uma população que vive no abandono, na

ignorância e na miséria. Nos mais diversos níveis, os camponeses empenham-se na

luta pelos seus direitos. Devido à repressão brutal dos latifundiários e da polícia, as

ações no campo assumem logo caráter radical. Sobretudo nas regiões de posseiros

são freqüentes os choques armados com grileiros [grifo nosso]."121

120 "Guerra Popular...". In: Op. cit., p. 125.

121 Idem, ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

82

Assim, a Comissão Militar procurou também localizar aqueles que deveriam ser os embriões das

bases guerrilheiras, em regiões de expansão da 'fronteira agrícola', onde as querelas em torno da

propriedade e usufruto da terra, sempre presentes em função da incorporação de novas áreas à esfera da

produção agrícola capitalista e sua conseqüente e brusca valorização, favoreceriam um clima de

radicalização política.

Mas não só isso. A linha estabelecida pregava também que "Quanto mais regiões sejam

obrigadas a ocupar, as tropas da reação mais dispersarão as suas forças e com isto se enfraquecerão

porque serão forçadas a se subdividir, ficando expostas aos golpes dos revolucionários."122

Tanto neste trecho como em outros em que aborda-se a questão da construção de bases de apoio,

o plural é sempre utilizado. Assim, sempre se diz 'regiões', 'bases de apoio', etc., explicitando a intenção

de criar não só uma área de operações de guerra revolucionária, mas mais, quem sabe, muitas.

Dessa forma, o PC do Brasil empenhar-se-á inicialmente em implantar pelo menos três 'frentes

guerrilheiras'. Um dos membros da Comissão Militar, Angelo Arroyo, assim narrou o esforço

empreendido neste sentido:

"Inicialmente, pensava-se em criar várias frentes de luta... Sempre se admitiu que, se

houvesse gente disponível, deviam-se preparar três, cinco, dez... No começo da

execução da tarefa especial, contava-se com três... uma em Goiás, outra no

Maranhão e a do Araguaia. Acontece que a de Goiás desmantelou-se (o responsável,

além de erros que cometera, desistiu de desenvolver o trabalho já avançado); a do

Maranhão ficou ameaçada de ser denunciada ... ficou apenas a do Araguaia. Esta, na

realidade, não era somente uma, mas três"123.

Sobre as razões do fracasso nas tentativas de construção de bases de atuação guerrilheiras nos

Estados de Goiás e Maranhão, não se diz quase nada além do que o trecho acima citado, sinteticamente,

expõe. Não é necessário ser um gênio militar ou advinho para entrever como poderia ter sido diferente o

122 Idem, ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

83

desfecho da iniciativa militar do PC do Brasil se estas outras 'frentes' tivessem sido colocadas a

ponto de funcionamento.

Ao que tudo indica, desvendar estas razões poderá nos ajudar a enxergar de maneira mais realista

quais as dificuldades enfrentadas para efetivar-se um tal empreendimento, assim como esclarecerá o

porquê de, no fim das contas, somente terem restado as 'frentes' do Araguaia. Mas, tais perguntas só

poderão ser respondidas satisfatoriamente depois de realizar-se todo um programa de entrevistas com

pessoas que tomaram parte, de uma forma ou de outra, naqueles projetos, o que extrapola os limites do

presente mémoire de DEA.

123 Angelo Arroyo, "Um Grande Acontecimento na Vida do País e do Partido". In: João Amazonas et alii, op. cit., p. 30.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

84

II . 2 . 2 - A Construção das 'Frentes' do Araguaia

De concreto mesmo, só restou o trabalho na região do baixo Araguaia, uma grande extensão de

terra em forma de um quadrilátero que perfazia "um total de cerca de 6.500Km²"124, no sul do Estado do

Pará. Mas que inicialmente também se estendia a "zonas próximas ... norte de Goiás e oeste do

Maranhão."125 Ao sul e ao norte, respectivamente, o trabalho do PC do B, tinha mais ou menos como

limites geográficos a cidadezinha de Xambioá, no Estado de Goiás e Marabá, no Estado do Pará. À leste,

o limite acabou sendo o Rio Araguaia, o que não impediu algumas incursões dos guerrilheiros além do

rio; e, à oeste, segundo relatos, a localidade limítrofe se localizaria nas profundezas da floresta, num

povoado chamado 'Pau Preto'.

A região correspondia plenamente aos pré-requisitos estabelecidos pela direção do PC do Brasil,

seja do ponto de vista geográfico, seja do ponto de vista de ser uma região onde explodiam conflitos

sociais, no caso concreto em torno da propriedade da terra, muito embora praticamente inexistissem

organizações sindicais rurais.

a - A região do Araguaia

A região onde o PC do Brasil havia definido como prioritária e que, ao final, acabara por se

constituir em única, se localizava em plena floresta amazônica, na chamada 'Amazônia legal'126.

124 Cf. Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia" (1975). In: Op. cit., p. 17.

125 Idem. In: Op. cit. p. 18.

126 A Amazônia 'legal', assim definida por lei, nesta época compreendia integralmente os Estados do Pará, Acre e

Amazonas e dos Territórios Federais de Rondônia, Roraima e Amapá. Mas incluía igualmente parte de três outros Estados:

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

85

Área de condições de vida muito severas em razão do clima quente e chuvoso, das

dificuldades de transporte, da ausência de postos de saúde e da existência de inúmeras doenças graves

tais como a malária e a leishmaniose, continha contudo uma população habituada ao lugar. Na sua ampla

maioria era composta de caboclos127 e de migrantes, vindos de outras regiões do País, sobretudo do

nordeste.

Tomando como referência a história de uma das principais cidades da região em questão,

Conceição do Araguaia, no sul do Pará, sobre a qual existe uma excelente obra histórico-sociológica128,

tentaremos traçar, em linhas gerais, o retrato da situação da área eleita pelo PC do Brasil para se

constituir no palco de uma guerra de guerrilhas.

Mesmo que seja um tanto quanto restritivo nos deter apenas à observação dos aspectos da

formação histórico-social de uma só cidade, acreditamos que a partir desta 'amostragem', de

resto muito significativa, poder-se-á ter mais claro a conjuntura regional que os militantes do PC do B

encontraram quando para lá se trasferiram.

Tudo começa em 1897 com a fundação do povoado de Conceição do Araguaia que, segundo

Octávio Ianni,

"nasceu do encontro, comunhão e antagonismo entre cristãos e índios, sob a direção

de religiosos dominicanos e a propósito de bens espirituais e materiais... Os cristãos

eram principalmente os caboclos amazonenses, depois somados com os cearenses... os

Mato Grosso (em sua quase totalidade); Maranhão (quatro quintos do Estado); e, Goiás (sua parte norte, acima do paralelo

13, hoje Estado do Tocantins).

127 Habitantes da floresta amazônica, frutos da mestiçagem de índios e migrantes que para lá se dirigiram ao longo da

história da região. São, na sua maioria, posseiros e vivem de uma agricultura bastante rudimentar, da caça, pesca e coleta.

128 Nesta parte, no que se refere à descrição e periodização histórica e conjuntural de Conceição do Araguaia e região

próxima, nos baseamos fundamentalmente na obra de Octávio Ianni, A Luta pela Terra - História Social de Conceição do

Araguaia, Coleção Sociologia Brasileira, nº 8, (2ª ed.), Petrópolis, Vozes, 1979 (1ª ed. 1978).

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

86

índios eram principalmente os Karajá e Kayapó... Todos sob a direção espiritual dos

religiosos dominicanos"129.

Os religiosos pretendiam 'cristianizar' os índios, através da catequese, muito embora se deva

considerar que os "cristãos, por seu lado, estavam menos interessados na alma do que na força de

trabalho indígena."130

Traço congênito do povoado foi a violência que "permeou tudo... seja nas relações dos homens

entre si, principalmente cristãos e índios, seja nas relações dos homens com a natureza."131

Apesar da suposta 'boa intenção' dos dominicanos, seu trabalho de catequese ajudava

objetivamente, mesmo que tal não fosse seu desejo expresso, a desarmar o espírito de resistência

indígena, deixando-os à mercê das vontades e ao sabor dos interesses dos "cristãos, interessados nas

drogas do sertão, látex, roça ou criação"132.

Em 1908, o 'povoado' de Conceição do Araguaia que já havia sido em 1901 promovido à

condição de 'freguesia', transforma-se em 'município', o que significava mais uma elevação, desta feita, a

mais importante, de seu estatuto político-administrativo "em decorrência da expansão das atividades

econômicas e do crescimento populacional. Nessa época, a vida econômica do lugar começava a ser

dominada pela borracha."133

De fato, desde os últimos anos do século dezenove crescia a exploração das árvores amazônicas

produtoras da goma elástica que, após processada industrialmente, seria transformada em borracha,

mercadoria de alto valor comercial.

129 Op. cit., p. 9.

130 Idem, p. 16.

131 Idem, p. 9.

132 Idem, p. 28.

133 Idem, ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

87

Nesta primeira fase da história de Conceição, de 1897 a 1912, a sociedade local se

transforma profundamente. Surge uma maior diferenciação social em seu interior, mercantilizam-se as

relações dos homens entre si e com a natureza. Tudo girava então em torno da extração e comércio da

borracha.

Neste período, "... em cada passagem de ribeirão, em cada cabeceira, em cada campestre

fixavam-se moradores, animados pelos fartos lucros provenientes do trânsito ininterrúpto de comboios

de seringueiros."134

O chamado 'ciclo da borracha' durará até 1910-12, quando a produção da borracha brasileira é

desalojada pela borracha produzida na Malásia e no Ceilão, que a fornecia a preços muito mais

competitivos no mercado internacional:

"Foi em 1899 que a produção do Pará atingiu o seu máximo. Em seguida, decresceu

continuadamente...

Em 1910, a borracha amazônica representava um pouco mais de 88 por cento do

total da produção mundial. Apenas quatro anos depois, em 1914, ela estava reduzida

a cerca de 43 por cento"135.

Durante toda esta primeira fase, marcada pelo 'boom' da borracha amazônica, dá-se a largada ao

processo de ocupação da região amazônica, até então, refúgio de uns poucos aventureiros, ou de

descendentes de escravos que sonhavam ter uma terra para trabalhar, longe da opressão social contra

aqueles que eram provenientes da raça negra, ou ainda, esconderijo de quem tinha cometido alguma falta

grave nas regiões mais urbanizadas e que, por isso, para fugir às perseguições policiais, para aquele 'fim

134 Idem, p. 36.

135 Idem, p. 57.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

88

de mundo' se dirigiam, procurando assim na floresta amazônica, outrora chamada de 'inferno verde'136, o

seu paraíso, seu recanto de paz.

Quando predominavam a extração e produção da rica 'goma elástica', a relação que os homens

estabeleceram com a terra foi de simples 'ocupação', ou seja, na apropriação de fato. Não existiam títulos

de propriedades. Nem os pequenos sitiantes, nem os fazendeiros, e nem mesmo os seringalistas137 se

preocupavam com tal medida.

A razão parece estar no fato de a terra 'livre', isto é, sem ocupante, nesse período existir em

grande quantidade.

"A terra, sem qualificativos, era abundante, não era escassa... Mas outra coisa era a

terra onde pudessem encontrar-se árvores de látex; ou que fossem propícias à

agricultura e à criação...

Tanto o extrativismo, como a agricultura e a pecuária implicavam na ocupação da

terra. E a ocupação da terra implicava na apropriação. A apropriação de fato foi a

principal regra naquele então"138.

136 Não nos foi possível apurar quem primeiro assim adjetivou a selva amazônica, mas um viajante francês, que assim a ela

se referiu no livro em que relata viagem que fizera pela região, foi a referência mais antiga que encontramos. Cf.

COUDON, Paul. Le Pays de Grands Fleuves: du Paradis Paraguayen à l'Enfer Amazonien. Paris, J. Peyronnet & Cie.

Editeurs, 1945.

137 'Seringalista' era o patrão de uma empresa de extração de goma de seringueira ou de caucho, eram dele os instrumentos

de trabalho, cabia a ele negociar a goma recolhida. O trabalhador que, a serviço daquele, entrava na floresta em busca da

goma, onde ficava por até dois meses, era o 'Seringueiro'. O montante do que receberia como pagamento era definido pela

quantidade de goma recolhida. O material e a alimentação de que necessitava para sobreviver neste período deveriam ser

comprados obrigatoriamente do patrão, que lhe cobrava preços extorsivos. O resultado era que no final do mês, feitas as

contas, era freqüente que o 'seringueiro' estivesse em débito, ficando pois impedido de sair do emprego enquanto não o

quitasse. Tal sistema, chamado de 'aviamento', na verdade se constituía em uma forma de trabalho semi-escravo e tinha

como objetivo, além de maximizar os lucros da empresa de exploração gomífera, impedir que os 'seringueiros'

acumulassem reservas que lhes permitissem se transformar em sitiantes autônomos, em camponeses. Ver: Op. cit., cap. V -

"O Sistema de Aviamento".

138 Idem, pp. 36-9.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

89

Durante todo este lapso de tempo, não se cuidou da legalização das ocupações de terra.

Nessa ampla ocupação o meio privilegiado para assegurá-la foi a violência privada.

Importante notar que é ainda nesta primeira fase que pode-se considerar como o período de

nascimento do sistema do latifúndio na região amazônica:

"Desde a época do monoextrativismo da borracha... formaram-se latifúndios de

vários tamanhos. O seringalista... era um posseiro de extensas terras... na época da

borracha o seringalista era um latifundiário. Para monopolizar as árvores gomíferas,

era obrigado a monopolizar as terras nas quais se concentravam ou se dispersavam...

Assim começa a estruturar-se um sistema latifundiário no lugar"139.

Mas com as transformações verificadas no mercado internacional da borracha, o Brasil perde para

sempre a hegemonia. O resultado é o desabamento total da economia da região amazônica que passa a

experimentar uma regressão econômica.. Diversas unidades de produção são simplesmente abandonadas

em pleno meio da floresta. Para toda a área significa o fim da monocultura extrativista da goma elástica

Começava então a segunda fase da história da região de Conceição do Araguaia. Ela durará de

1912 até o início da década de sessenta.

Após esta crise fulminante, seguida de ruína econômica, toda a região parece ter reencontrado a

paz. A terra é abundante e pertence a quem primeiro a ocupar. Os antigos territórios de extração de látex

se transformaram em roças e criações, formavam-se núcleos de sitiantes.

Uma economia de tipo camponêsa se organiza, onde o predominante é produção voltada para o

auto-consumo e para a produção de pequenos excedentes a serem trocados com outros pequenos

produtores. O comércio é bastante reduzido e é feito sem a mediação do dinheiro. Há grandes e pequenas

propriedades, mas todas subordinadas à lógica econômica camponêsa.

Salvo algumas esparsas oscilações, notadamente no chamado 'ciclo do cristal' nos anos quarenta e

no efêmero ciclo chamado de 'segunda borracha', que só vigorou durante os últimos anos da II Guerra

139 Idem, p. 86.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

90

Mundial, quando os mercados produtores asiáticos encontravam-se inacessíveis aos aliados, a "cidade...

entrou numa longa e duradoura fase de regressão, a maior até agora em sua história... [até mesmo] a

sua população diminuiu consideravelmente"140.

Por toda a extensão do município de Conceição do Araguaia, a crise do mono-extrativismo da

borracha provoca um ressurgimento ou mesmo um nascimento de uma economia de características

camponesas, onde predomina a produção de subsistência. A coleta, a caça e a pesca se combinam com

uma pobre agricultura. Reduzido era o excedente de produção que era então 'comercializado' nos

aglomerados urbanos. Os pequenos posseiros ou caboclos "vivem dispersos, às vezes várias léguas de

distância uns dos outros, em terras ocupadas. Para eles, nessa época, a terra era farta, dada, de

ninguém, de quem quisesse, sem fim"141.

Até os anos quarenta, ainda se pôde notar importantes conflitos entre 'cristãos' e índios, malgrado

no mesmo período ter se desenvolvido

"amplo e continuado processo de miscigenação, em particular entre brancos e

índios...

Ao longo da história social de Conceição do Araguaia... os índios vão sendo

expulsos, dizimados, submetidos ou absorvidos. Em 1897 eles eram numerosos; em

1950 eles são 20... O que aconteceu foi a cristianização dos índios."142

Assim, nos anos 1912/1960,

"predominou... uma economia camponesa de subsitência que abrangeu também as

fazendas e latifúndios... uma camponezação geral. Mas preservaram-se, renovaram-

se ou formaram-se sítios, fazendas e latifúndios... consolidou-se uma estrutura

fundiária na qual sobressaíam grandes posses, mal delineadas ou demarcadas, ao

lado de sítios localizados... havia se constituído uma malha razoavelmente articulada

140 Idem, p. 62.

141 Idem, p. 65.

142 Idem, pp. 66-9.?????

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

91

de sítios e fazendas, ou pequenas posses e latifúndios de estreita ou larga

extensão... Mas o que passou a predominar, por sua força econômica e política na

sociedade local, foi o latifúndio, a larga extensão de terra, pouco ou escassamente

trabalhada"143.

Tal situação durará até os anos sessenta, quando a política 'desenvolvimentista' implementada

pelo governo do presidente Juscelino Kubitcheck (1956-60) alcança a região com a construção de

Brasília e, sobretudo, com a da rodovia BR-14, que a ligaria com a capital paraense, Belém. Iniciava-se

então a terceira fase da história social da região.

Quase como mágica, as terras que, até então, eram 'abundantes e sem fim', começam a ser objeto

de ambição de grandes investidores nacionais e estrangeiros. Os posseiros são cada vez mais ameaçados

pelos grileiros que lhes expulsam da terra que ocupam, muitos entre eles, depois de mais de uma

geração. Uma vez a terra 'livre', grandes empresas agrárias de criação de gado bovino, originárias da

região centro-sul do Brasil, ou representantes de empresas estrangeiras, compram-nas dos grileiros.

E não era só isso, no mesmo período "fortes contingentes de trabalhadores do nordeste, Goiás,

Minas Gerais vieram assentar-se nos terrenos laterais da rodovia"144.

A criação da SUDAM145 em 1965, já sob o regime militar, dá um novo impulso a este processo de

expropriação do campesinato, doravante sob a proteção do Estado. Evidentemente, estas expropriações

não são levadas a cabo sem o emprego da violência, agora não somente privada, mas também oficial,

porque a resistência que os posseiros opõem é bastante firme, a terra para eles sendo tudo, significa toda

a sua possibilidade de sobreviver. No entanto, tal resistência tem sempre um caráter individual, isolado

ou então é muito localizada.

143 Idem, pp. 86-90.

144 Idem, p.93.????

145 "Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia". Agencia governamental encarregada de coordenar e

favorecer os investimentos da região amazônica através de incentivos fiscais e de empréstimos a juros subsidiados.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

92

O lançamento estrondoso, feito em 1970 pelo general-presidente Médici, da construção da

rodovia Transamazônica e o anúncio oficial da implantação de projetos de colonização na Amazônia só

vêm a reforçar a corrida em direção às terras da região.

"... o próprio Estado, com o peso de sua força, econômica e militar, abriu espaços

novos, geográficos e econômicos, para o capital. De um lado, transferindo largas

parcelas de recursos públicos para mãos privadas... dinheiro que deixa de ser

aplicado em serviços essenciais e obras públicas úteis e necessárias ao povo para se

transformar em capital privado...

Um país inteiro é expropriado e lesado... Jamais se deu sequer um centavo de

incentivo fiscal a um posseiro, a um pequeno lavrador.

De outro lado o peso do Estado se faz sentir num dos mais radicais e amplos

processos de expropriação de que se tem notícia na história contemporânea"146.

O discurso do General Garrastazu Médici enfatizava o fato de que o projeto de colonização da

Amazônia se justificava na assertiva de que eram 'terras sem homens para homens sem terra' ou, numa

outra vertente de argumentação, de que era uma razão de segurança nacional a ocupação da Amazônia, o

que se sintetizava no slogan: 'Integrar para não entregar'.

Contudo, tais argumentos contrastavam com dois aspectos da realidade: primeiro, grande parte

dos recursos da SUDAM se destinaram a empresas estrangeiras, o que não seria aconselhável caso

houvesse sinceridade no propósito de preservar a soberania nacional; e, segundo, não era verdade que a

região amazônica era uma terra vazia:

"As terras novas, abertas aos «pioneiros», isto é, aos capitalistas, não eram

indevassadas. Muito ao contrário. Além das terras indígenas, secular e legitimamente

possuídas por esses brasileiros, amplas faixas devolutas147 já estavam ocupadas por

milhares de posseiros.

146 José de Souza Martins, "Apresentação". In: Palmério Dória et alii. A Guerrilha do Araguaia, Col. História Imediata, nº

1. SP, Alfa-Omega, 1978, p. 8.

147 Terras desocupadas pertencentes ao Estado.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

93

Quando o presidente... afirmou, em depoimento dramático, que era

preciso ocupar as terras da Amazônia sem homens com os homens sem terra do

Nordeste, não disse nenhuma novidade para o lavrador nordestino. Largas correntes

de retirantes148 já estavam há muito se estabelecendo nas terras amazônicas. Esses

brasileiros não foram assistidos durante os muitos anos do seu êxodo... Migraram

com sua miséria e nessas condições podem ser encontrados aos milhares no Centro-

Norte"149.

O que na verdade ocorre é a materialização de um plano governamental de transformar a região

amazônica em área de predominância de empresas agrícolas de caráter capitalista. Este processo provoca

toda uma tensão social onde o centro nervoso do problema se localiza na propriedade da terra.

A situação se agrava ainda mais para os posseiros pelo fato de eles não terem em mãos

documentos que legalizassem as suas posses, coisa com a qual nunca se preocuparam.

Quem trará títulos de propriedade - falsos ou legalmente obtidos - serão os grileiros, que atuam

quase sempre em sintonia com as grandes empresas agrícolas que estão a chegar na região.

Essa nova configuração social e econômica criará conflitos sociais de graves proporções em toda

a região. O campesinato, constituído notadamente de migrantes vindos do nordeste do País em busca de

terra desde o começo do século, se revolta para defender seus direitos contra os grileiros e os jagunços,

ambos a serviço de grandes empresários capitalistas que para lá migravam, eles também, vindos de outras

partes do Brasil, daquela mais industrializada - o centro-sul - ou mesmo do estrangeiro, em busca do

dinheiro barato, quase sem juros, concedido pelos orgãos governamentais.

"Até há pouco eram os nordestinos sem terra que se dirigiam para o sul e sudeste do

país, buscando trabalho... Hoje é o capitalista dessas mesmas regiões que desaba

sobre o Norte com o peso do «seu» dinheiro, dos seus títulos e de suas desmedidas

ambições...

148 Habitantes oriundos da região nordeste que migram para outras regiões do Brasil.

149 Idem, pp. 8-9.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

94

Procura-se levar os homens e as idéias do Sul para a Amazônia, mas nada de levar

a Amazônia para os homens que já estão na Amazônia"150.

Este processo de expropriação dos posseiros vai criando entre estes uma revolta crescente contra

a violência com a qual os grileiros tiram-lhes a sua única fonte de sobrevivência, a terra. Sobretudo entre

os

"mais experientes, que já passaram por despejos e situações semelhantes, cansados de

perambular... são mais propensos à resistência, às investidas do latifundiário e, não

raro, os conflitos acabam terminando em mortes de ambos os lados."151

C'est bien au moment où tout ce processus était en train de débuter, c'est à dire en 1966, que le

PC du Brésil inicie le transfert de militants vers l'Amazonie. Les futurs guérilleros y commencent alors à

arriver venus, eux aussi, de différentes régions du pays, mas com propósitos totalmente diferentes,

quando não opostos àqueles que motivavam os outros personagens que à mesma época chegavam - os

retirantes nordestinos e os empresários da região centro-sul.

b - 1966: os 'paulistas' estão chegando

Nos anos de 1966/67 chegam à região do Araguaia os primeiros militantes do PC do Brasil.

Muitas são as narrativas dos sobreviventes sobre o momento do primeiro contato com a floresta

amazônica.

É verdade que os chegantes não possuíam nenhum traço de fisionomia que aparentasse serem

originários da região e a maioria não chegava mesmo a demonstrar a mínima intimidade com o trabalho

rural. Tais 'detalhes' poderiam dar indicativos à população de que algo de estranho estava a acontecer,

150 Idem, p. 10.

151 Octávio Ianni, op. cit., p. 192.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

95

despertar suspeitas. Porém, isso não se passou. Não aconteceu porque, sendo a região uma

área em expansão, que atraía cada vez mais pessoas, as populações locais já haviam se habituado a ver

chegar e partir pessoas de todos os pesos e tamanhos, de todas as cores e sotaques, vindos e levados

pelos motivos os mais variados. A eles o povo chamará em geral de 'paulistas', ou de 'mineiros'152, no

caso do grupo que vai morar junto com 'Osvaldão', que lá morava desde 66 e de quem se sabia ser

natural do Estado de Minas Gerais.

Sobre o não estranhamento da população local em relação aos 'paulistas' que chegavam cada vez

em maior número, J. Genoíno dá o seu depoimento:

"O Araguaia, até 72, era uma região onde entrava muita gente, de todos os

lugares... E havia muitas pessoas perseguidas... Vou citar um caso concreto: um dia...

passa um rapazinho de uns 20 anos, filho de uma família de Goiás. Estava fugindo

para o Pará porque tinha-se envolvido num conflito de terras... entrou em choque com

um grileiro, matou o homem, foi perseguido pela polícia e aí fugiu. Alguns meses

depois, passa um grupo da polícia militar procurando informações sobre o rapaz.

Então... era uma região de pessoas estranhas, e não apenas nós. Ninguém reparou na

nossa chegada."153

A naturalidade com que os habitantes locais receberam e trataram os militantes que chegavam não

amenizou a dificuldade de adaptação a um meio tão díspare daquele onde até então viviam aqueles

recém-chegados citadinos.

A orientação que recebiam do partido era de estabelecerem laços de amizade com todos, respeitar

os hábitos e costumes da região, em resumo, se constituírem em exemplos de integridade moral e

prestatividade, qualidades com as quais a Comissão Militar contava precisar bastante nas horas em que

viessem os combates contra as forças governamentais.

152 'Paulista' é aquele (a) natural do Estado de São Paulo. 'Mineiro' designa os naturais do Estado de Minas Gerais.

153 "Fala o Guerrilheiro" (entrevista com José Genoíno Neto). In: Fernando Portela, Guerra de Guerrilhas no Brasil, 5ª ed.,

SP, Global, 1981, p. 152.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

96

Sobretudo, manter o máximo segredo em relação ao objetivo que os havia levado até aquelas

paragens. E assim se deu.

De 1966 até 1972 são destinados à região do Araguaia um total de 69 militantes. Eles não

chegam todos de uma só vez, nem todos a um mesmo lugar. Chegam progressivamente e distribuem-se

por toda a área que margeia do lado esquerdo o Rio Araguaia, entre Marabá e São Geraldo.

Cada qual tem o seu álibi. Uns, como 'Glênio' e 'Geraldo' eram pretensos sobrinhos do 'Tio Cid'

que teriam vindo para ajudá-lo a cuidar da posse154 e irão viver junto com ele e Osvaldo. Outros, vinham

para estabelecer um pequeno negócio, ou mesmo para ser um posseiro como tantos outros.

Assim, 'Osvaldão', ao que tudo indica o primeiro a chegar, fará o estilo 'mil e uma utilidades', ou

seja, se apossará de um pedaço de terra, será caçador, lavrador, castanheiro, etc., atividades que lhe

permitirão se tornar aquele, dentre todos os guerrilheiros, que mais conhecia os segredos da floresta e,

por isso mesmo, será um dos últimos guerrilheiros a serem mortos pelas FF.AA.

'José Carlos', 'Alice', 'Beto' e 'Luís' organizam um pequeno comércio numa localidade chamada de

Faveira, em que compram a produção dos moradores e vendem aquilo de que necessitam. No mesmo

local, montam um pequeno serviço de socorro médico, pois Alice havia feito um curso de enfermagem,

embora nunca viesse a revelar tal fato aos 'pacientes' de quem cuidara.

'Paulo' e 'Doca' vão residir próximo à cidade de São Geraldo e se consagrarão a uma atividade

que em muito lhes servirá para bem conhecer a região, serão vendedores ambulantes de pequenas

bugigangas domésticas, roupas e artigos de pesca. Utilizarão para isso um barco que batizarão de

Carajá, onde passavam grande parte de seu tempo a subir e descer o rio e a conhecer todas as suas

barrancas.

154 'Tio Cid' era o codinome usado pelo dirigente João Amazonas; 'Geraldo', José Genoíno Neto; e, 'Glênio' era Glênio Sá,

seu nome não havia sido mudado pois o PC do B o julgava não tão conhecido pela repressão, dispensando-se assim a

necessidade de usar um nome 'frio'. Ver lista completa dos guerrilheiros, nomes e respectivos codinomes, nos Anexos.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

97

Todos enfim se dedicarão a uma atividade que lhes permita ao mesmo tempo aprender

com a gente simples do interior a viver na floresta e com eles também travar relações de amizade. Assim

o "Diário da Guerrilha do Araguaia", redigido pela Comissão Militar instalada na região, relata os

progressos atingidos pelos 'novos' habitantes: "Vivem como vive o povo. Aprendem dia a dia. Com a

natureza, com as massas. Transformam-se em moradores locais, gente simples e prestativa".155

c - As dificuldades de adaptação

Entretanto, todos, sem distinção da função que tenham assumido perante a população do lugar,

aprenderão a cultivar o solo, a fazê-lo produzir, pois considerava-se tal aprendizado como parte

fundamental da formação do futuro guerrilheiro. No próprio documento 'GPOP', o PC do B externou a

sua posição sobre a vinculação das duas esferas de atividades na parte em que avaliava que o processo da

guerra popular teria que se apoiar em suas próprias forças:

"... A guerra popular exigirá grandes recursos humanos e materiais...

Fundamentalmente os recursos materiais serão obtidos no País... A alimentação terá

de provir do campo. Por esta razão, os combatentes, desde o início, a par de sua

atividade militar, dedicar-se-ão, juntamente com os camponeses ao trabalho

produtivo, a fim de não sobrecarregar a população local no fornecimento de

gêneros"156.

Durante os anos de preparação, os militantes do PC do Brasil encarregados de colocarem em

execução o 'ponto cinco', se dedicarão basicamente à três tarefas: (1) estabelecer relações profundas de

amizade com a população sertaneja, visando conquistar a sua confiança; (2) aprender a sobreviver na

155 Clóvis Moura (Org.), Diário da Guerrilha do Araguaia, 2a. ed., SP, Alfa-Omega, 1979, p. 23.

156 "Guerra Popular...". In: Op. cit., p. 127.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

98

região, ou seja, aprender a lavrar a terra, a caçar, a pescar, a se orientar na mata, a saber reconhecer e

coletar os frutos e líquidos que a floresta pode oferecer; e, (3) preparar-se do ponto de vista militar,

teórica e praticamente, para os futuros combates.

Assim, à luz do dia, eles se dedicarão às atividades produtivas 'legais' e, na surdina, bem longe dos

olhos e ouvidos de seus vizinhos, se consagrarão a exercícios que visavam a sua preparação militar.

O trato com a terra, isto é, conseguir fazê-la produzir, exige por si só uma infinidade de

conhecimentos, cujos detentores constituem uma categoria bem específica - o campesinato - coisa que

aqueles de extração urbana tendem a menosprezar.

São necessárias muitas informações, além de muito esforço físico, para levar a cabo tal tarefa.

Antes de tudo, é preciso saber distinguir uma terra apta ao cultivo de uma outra menos favorável, em

seguida é mister saber prepará-la, semeá-la, zelar para que ela sobreviva às ervas daninhas e aos animais,

irrigá-las, quando necessário, colher, armazenar e comercializar um virtual excedente da produção. Em

todas as etapas, observando-se criteriosamente o tempo indicado para a realização de cada uma delas.

Tudo isso não se aprende da noite para o dia. Todo esse conjunto de regras, aparentemente muito

complicadas, e realmente o são para os não iniciados, são executadas quase que mecanicamente por

milhões de lavradores todos os anos, que não fazem que aplicar o que aprenderam com seus pais ou com

a 'vida', através de uma dedicação de anos a fio ao trabalho no 'eito'.

O professeur e ex-ministro chileno da agricultura do governo do presidente Salvador Allende,

Jacques Chonchol, se bem que em outro contexto, discutindo uma questão bem diversa da que aqui

tratamos, assim se referiu, en passant, a importantes quesítos para se 'trabalhar' com o camponês, no caso

concreto, para envolvê-lo como sujeito ativo num projeto de desenvolvimento rural:

"Il faut apprendre à connaître la «rationalité» paysanne qui est liée à son expérience

historique, à sa dépendance de facteurs naturels et à sa tradition de longue

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

99

oppression sociale, au besoin de chercher avant tout la sécurité, de

respecter l'équilibre de son environnement, etc."157

Estes mesmos 'conselhos', se bem que expostos de maneira genérica, seriam também indicados

para quem quer que queira ganhar o campesinato para um projeto maior de transformação social, mesmo

que radical, como aquele apregoado pelo PC do Brasil.

O partido parece não ter ignorado estas especificidades dos camponeses. Pelo menos é o que nos

faz pensar certos trechos de seus documentos que precederam a guerrilha e mesmo de entrevistas mais

recentes de seus dirigentes avaliando a experiência do Araguaia:

"Os comunistas... modestamente, devem aprender com as massas do interior e

procurar compreender seus usos, hábitos, moral, modo de pensar e agir... Apesar do

atraso em que vivem... sabem o que querem e dão soluções adequadas à realidade

local. Neste sentido, muitas coisas podem ensinar ao homem da cidade"158

"Nos quatro anos de convivência estreita com os homens e mulheres simples do

campo... aprendi bastante... Os camponeses constituem universo à parte na sociedade

brasileira. Deles sabemos apenas que cultivam a terra e são ignorantes. Ou que são

vítimas de feroz exploração. Pouco se conhece da sua alma, dos seus sentimentos, da

sua maneira de pensar e de agir. Sem dúvida reina... a ignorância e o atraso. Somente

alguns sabem ler e com dificuldade. Ignorância, no entanto, não é sinônimo de

burrice. Dentro das escassas possibilidades materiais, mostram-se habilidosos e

inteligentes. Ninguém caça melhor que eles, ninguém planta com magros recursos de

que dispoem melhor que eles, ninguém observa tão atentamente a natureza como eles.

Para penetrar nos segredos da mata e daquela vida áspera é preciso tê-los como

mestres. E foi isso que fizemos no Araguaia... Todos, rapazes e moças, sem exceção,

aprenderam... labores complexos: caçar, andar na mata, plantar colher, construir

barracos..."159

157 Jacques Chonchol, Paysans à Venir, Paris, La Découverte, 1986, p. 288.

158 "Guerra Popular...". In: Op. cit., pp. 157-8.

159 "Entrevista com João Amazonas". In: João Amazonas et alii, op. cit., pp. 9-10.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

100

"Tinha uma espécie de lei geral: 'ouvir muito e falar pouco'. Não havia mesmo

condições de discutir sobre o que não se sabia. O nosso professor era exatamente o

pessoal da região"160.

"... nossos vizinhos acabaram sendo nossos professores."161

Apesar da inestimável ajuda dos camponeses, pode-se imaginar as dificuldades experimentadas

pelos cerca de setenta ativistas políticos que para lá se deslocaram, em sua maioria oriundos de grandes

centros urbanos, alguns deles, inclusive, tendo constando no espaço de seus currículos reservado à

profissão simplesmente a palavra 'estudante', o que queria dizer que ainda não tinham uma atividade

profissional definida, em outras palavras que sequer haviam se dedicado ao labor cotidiano e regular.

"Nos primeiros dias de trabalho... cortando o mato, apareceram bolhas nas palmas

das minhas mãos... Usei as meias como luvas, para amenizar a dor e diminuir o atrito

do cabo do facão com a pele fina. Nessa nova tarefa, era necessário engrossar a pele

das mãos."162

A fase de adaptação ao novo 'métier' de agricultor e também de 'coletor' de frutos naturais foi

dura mas foi ultrapassada, como nos indicam os seguintes relatos:

"... Darci, um deles, me ensinou como encontrar inhame163... Num domingo de folga,

fui a outras capoeiras mais distantes. Encontrei tanta batata que não dava pra

carregar sozinho. O jeito foi voltar à casa e pedir ajuda aos camaradas... O

deslumbramento foi geral, principalmente porque estávamos com pouco mantimento

naquele dia...

160 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 29.

161 Glênio Sá, op. cit., p. 7.

162 Ibidem.

163 "inhame sm. Bras. Nome comum a certas ervas que produzem tubérculos nutritivos e saborosos, do mesmo nome." (Cf.

Aurélio Buarque de Holanda, Minidicionário AURÉLIO, RJ, Nova Fronteira, 1977, p. 268).

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

101

Com a chegada do inverno, a nova casa estava pronta. O terreno em

frente... estava plantado de milho e banana. Tinha também fruteiras ao redor"164.

O mesmo ocorreu com relação ao aprendizado da caça e pesca:

"Comecei a sair com os vizinhos para caçar, convencido de que eles eram meus

mestres em tudo que dizia respeito à vida local... Os caboclos ficavam impressionados

com a nossa disposição de aprender e de superar nossas dificuldades.

Com a pesca, era a mesma coisa"165.

Um grande obstáculo a ser ultrapassado pelos futuros guerrilheiros foi o das doenças próprias

daquela região.

"A malária é também inimiga dos habitantes do sul do Pará. Há muitas outras

doenças - a leishmaniose, os vermes, a frieira, os males venéreos. Mas o paludismo

ataca a todos. E às vezes sob a pior forma - a terçã malígna... É comum encontrar

lavradores, castanheiros e madeireiros trabalhando dias seguidos com febre.

As febres atacaram também os chegantes... Todos foram se acostumando, ou melhor,

aceitando o inevitável"166.

Todos os relatos dos remanescentes da guerrilha poem em relevo esta dura prova pela qual

praticamente todos tiveram que passar. A situação foi mais grave no princípio, com os primeiros

militantes, depois a Comissão Militar organizou um serviço de socorro, baseado em militantes que tinham

formação na área de saúde, sob a direção do médico gaúcho, João Carlos Haas Sobrinho. Mas, até que

tal serviço fosse colocado em funcionamento, a única forma de não sucumbir às doenças foi ouvir os

conselhos da população local ou improvisar, se arranjar como fosse possível.

"...Nessa fase se vai sofrer muito por causa de doenças. Não sabíamos como conviver

com a doença. Pegamos malária - geralmente a primeira é a mais violenta. A gente

164 Idem , pp. 7-8.

165 Idem, p. 8.

166 Clóvis Moura, op. cit., p. 26.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

102

tinha um caderninho escrito com as doenças e a receita. Quando pegava malária

ficava bem baqueado até descobrir o que era. Depois se consultava o caderninho e ia

tomando os comprimidos recomendados.

Não tinha médico e nada organizado em termos de saúde - resolviam-se os

problemas baseados em como a população fazia. Quase que eu ia pro beléléu167 por

causa de malária, por falta de conhecimento que a gente não tinha, que vem mais

tarde quando se organiza todo um serviço de saúde"168.

"Em menos de um mês de chegada tive minha primeira crise de malária... Depois

dessa, perdi até a conta dos acessos de malária que viria a sofrer...

Na nova leva de gente que chegava, veio a Tuca, uma enfermeira experiente do

Hospital das Clínicas de São Paulo. Logo ela começou a nos dar aulas de primeiros

socorros e montou um esquema preventivo contra a malária, que daria bons

resultados... Tuca era até dentista, quando precisava...

Um dia... senti que entrou alguma coisa no meu ouvido. Inicialmente não me

perturbou, mas com o passar das horas aquilo foi me deixando inquieto e começou a

doer até a loucura... tinha sido uma mosca varejeira169 [grifo nosso]. Alguém sugeriu

que se pusesse creolina170 [grifo nosso]. Eu, louco de dor, pedi para que pusessem

logo e Tuca, nossa enfermeira ainda quis resistir. Depois o médico falou que a

creolina foi a minha salvação. Mais algumas horas e eu poderia ter morrido...

... Outra vez, reclamei de uma ferida no meu nariz e Tuca acabou concluindo que se

tratava de Leishmaniose... consegui curá-la, mas ficou a cicatriz"171.

Mesmo o gigante Osvaldo, antes da organização do serviço de socorro, sofreu uma terrível crise

de malária que quase o nocauteou: "No segundo semestre de 70... o Osvaldo teve uma malária que

quase morria. Mesmo sem conhecimento, tivemos que aplicar soro na veia dele."172

167 'Ir para o beléléu' quer dizer, na linguagem popular, morrer.

168 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: op. cit., pp. 31-2.

169 Inseto típico da região amazônica, transmissor da doença chamada de 'bicheira'.

170 Medicamento veterinário, usado para curar doença chamada 'bicheira' em animais.

171 Glênio Sá, op. cit., pp. 7-13.

172 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 39.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

103

Apesar de todas estas dificuldades relativas à saúde, que, de resto, perdurarão até o

final da guerrilha, não há nenhum caso de morte de guerrilheiro por causa das doenças tropicais. No

entanto, alguns terão que retirar-se da região para receber tratamento especializado em hospitais

localizados em grandes cidades, o que não deixará de ser um fator negativo para os planos do PC do B.

Como se verá, foi através de um caso desse tipo que o governo militar tomará conhecimento da

preparação guerrilheira em curso no Araguaia.

d - O trabalho de massas

Em 1966, chegava à região do Araguaia-Tocantins, o primeiro dos membros do PC do Brasil,

encarregado de se ocupar da execução da 'quinta tarefa'. Não seria apenas o primeiro na ordem

cronológica de chegada, seria também o mais conhecido e, segundo afirma a própria direção do partido,

"o maior conhecedor de toda área, tanto da guerrilha como das áreas circunvizinhas"173. Além de ser

considerado o 'primeiro' em mais de uma coisa, ele será senão o último, um dos últimos guerrilheiros a

serem mortos pelas FF.AA.

Chamava-se Osvaldo Orlando da Costa, conhecidíssimo por toda a região não só por causa de

"sua bondade, sua força, sua coragem e pontaria"174, mas também, e talvez principalmente, em razão de

seus atributos físicos, que o tornavam uma figura inesquecível.

"O Osvaldo era uma pessoa muito respeitada... Todo mundo confiava nele, um cara

sério... Camponês que ia lá resolvia até problema de casamento com ele, era padrinho

de todo mundo, toda a população conhecia muito ele.

O tipo dele também ajudava muito, um cara assim muito forte, de quase dois metros

de altura. Por exemplo, a população via que ele atirava muito bem porque ele caçava

173 In: Amazonas et alii, op. cit., p. 50. 174 João Amazonas e alii, op. cit., p. 50.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

104

junto com a população. Era um cara que botava um saco de 60 quilos num ombro e

um saco de 60 quilos no outro e carregava. Não encontrava camisa ou sapato -

calçava 48 - que servisse nele."175

Era um gigante, forte como um touro, que fôra campeão carioca de box pelo Botafogo Clube e

Regatas. Tinha feito um curso na Escola Técnica Nacional e fizera também um outro no CPOR (Centro

de Preparação de Oficiais da Reserva), sendo, portanto, oficial da reserva do exército brasileiro. Após

1964, obrigado a viver na clandestinidade, partira para o exílio no exterior, para a Tchecoslováquia, onde

seguira três anos do curso de Engenharia.

Osvaldo, ou 'Osvaldão', ou ainda 'Mineirão', como o chamavam, primeiramente se estabeleceu

próximo à cidade goiana de Araguatins e depois se transferiu para uma posse perto do Rio Gameleira,

um afluente do Araguaia. Ele não era apenas o mais conhecido dos comunistas que para lá se

transferiram, era também o mais querido e mesmo objeto de lendas que percorrem até hoje aquela região.

"Mais acima... vive um negro simpático, alto... conhecido por Osvaldo... Todos

gostam dele. É simples, comunicativo, sempre pronto a ajudar... Certa vez - contam as

pessoas do lugar -, passava por um barraco pobre, num 'centro' distante. Parou para

beber água. A dona do casebre lhe falou agoniada sobre a filha pequena que estava

morrendo. Ela não tinha recursos. Se tivesse um dinheirinho salvaria a criança.

«A única coisa que tenho é esse cachorro. Não quer comprar?»

Osvaldo meteu a mão no bolso. Todo o dinheiro que possuía entregou à mulher.

«Bem, o cachorro é meu, mas a senhora fica tomando conta dele..»."176

Uma professora da Universidade de São Paulo, num estudo original sobre a memória dos tempos

da guerrilha entre os habitantes da região, ao promover diversas entrevistas na área, ouviu muitas

'estórias' sobre 'Osvaldão', e pôde mesmo registrar algumas delas tais como as que se seguem:

175 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 31.

176 Clóvis Moura, op. cit., pp. 19-20.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

105

"... «o Osvaldo era encantado. Por isso foi o último a morrer». Ele tinha o

dom de se transformar no animal que quisesse. «Um dia, os federais177tocaiaram ele

na mata. Ia passando um bando de macacos e ele se transformou num deles e

conseguiu fugir pulando por cima da cabeça dos federais que nem desconfiaram. Mas

no que ele se transformava mesmo era em cachorro». A mãe de M. um dia encontrou

Osvaldão. Ela tinha ido dar comida aos porcos... e apareceu um cachorro preto,

enorme, e começou a comer junto com os porcos, não sem antes lançar um olhar

muito triste à mãe de M., que apavorada correu para dentro de casa, chamou os

filhos e o marido, «fecha tudo e avisa que vai haver problemas», pois os federais

deveriam estar por perto. De fato, pouco depois chegaram os federais"178.

Mesmo à sua morte, a população local deu uma versão toda especial para justificá-la: "Quando o

mataram, Osvaldão estava com malária e faminto. Não teve tempo de se encantar. Foi morto pelas

costas. "179.

Tanto era verdade o fato de Osvaldo ser querido na região e de sua fama de 'imortal' correr de

boca em boca, que as próprias FF.AA. quando, em meados de 1974, conseguiram localizá-lo e matá-lo:

"... sobrevoaram toda a área com o cadáver amarrado numa corda, pendendo de um

helicóptero e, com um alto-falante, reuniam os habitantes do povoado «e falavam que

era pra todos verem que até [grifo nosso] o Osvaldão tinha sido morto». Não era

invencível como diziam."180

As FF.AA. tinham razões de sobra, militarmente falando, para assim proceder em relação ao

mineiro Osvaldo Orlando da Costa. Consta que, já nas primeiras investidas contra os 'subversivos', entre

abril e julho de 1972, os soldados tiveram problemas com a população local, pois divulgavam a versão de

177 Uma das formas pelas quais os habitantes da áreas denominam os soldados das tropas federais empregados na repressão

aos guerrilheiros.

178 Regina Sader, "Lutas e Imaginário Camponês". In: Tempo Social; Rev. Sociologia USP, SP, 2(1), 1º sem. 1990, pp. 119-

20.

179 Idem, p. 120.

180 Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

106

que os guerrilheiros eram bandidos, malfeitores, assassinos, ladrões, etc., ao que eram por vezes

contraditos pelos humildes moradores, como atesta a seguinte narrativa:

"Em Araguatins181, uma mulher é presa no mercadinho e surrada no meio da rua.

Ela topara uma provocação. Levantara sua voz para dizer que Osvaldo não era

nenhum bandido, mas a pessoa mais séria, mais honesta, mais prestativa da

região."182

O motivo de começarmos esta sub-seção por esta breve narrativa da auréola que havia em torno

de 'Osvaldão' é o de demonstrar o caráter do 'trabalho de massas' efetuado pelos militantes do PC do

Brasil durante a fase de preparação da guerrilha.

Como já foi dito, o centro da atividade política de massas do PC do Brasil na região era o de

estabelecer relações as mais próximas com a população local, sem, entretanto, revelar a ninguém os

verdadeiros propósitos que os tinham atraído para aquele 'torrão' distante.

Sobre a vida dupla que os militantes do PC do B levavam, o jornalista Fernando Portela, no

primeiro trabalho de fôlego de pesquisa jornalística sobre a Guerrilha do Araguaia, diz que eles

"... conseguiram, por força de suas convicções, levar uma vida dupla de guerreiros em

preparação e posseiros pacíficos, ou comerciantes, ou profissionais liberais. Uma

vida que desgastaria fisicamente a maioria das pessoas. Ao mesmo tempo em que

preparavam a guerra, eles se misturavam ao povo, cada vez mais cativado"183.

Além de pescar, caçar, plantar como os camponeses, e junto com eles, os 'rapazes e moças' do PC

do Brasil, ateus convíctos, chegavam até mesmo a freqüentar as celebrações religiosas da população

local, num esforço supremo de se integrar à vida cotidiana:

181 A época, município do Estado de Goiás. Desde 1988 pertence ao Estado do Tocantins.

182 Clóvis Moura, op. cit., p. 36.

183 Fernando Portela, op. cit., p. 36.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

107

"Respeitávamos completamente as crenças dos caboclos e participávamos

de tudo o que ocorria nas redondezas: de novenas184a rituais de terecô185... Tínhamos

inúmeros afilhados de fogueiras juninas...

Um certo dia... nosso vizinho, perguntou-me qual era a nossa religião. Eu, sem

responder, perguntei-lhe por que. E tive a seguinte resposta:

- Acho vocês tão bons e diferentes!"186

Os militantes do PC do Brasil incentivaram bastante a solidariedade entre os moradores da região,

sob a forma de trabalhos agrícolas coletivos, conhecidos na região pelo nome de 'mutirão'ou 'adjunto',

que consistia em reunir todo o povo de uma mesma área para realizar trabalhos na posse de alguém que

estivesse em dificuldade. Por vezes, tal se realizava sem o prévio conhecimento do posseiro que ia

receber a ajuda dos outros, quando assim se procedia era chamado de 'traição'.

Os 'mutirões' também eram utilizados para se realizar trabalhos de interesse coletivo tais como

uma pequena ponte, uma limpeza de uma determinada área, etc. Normalmente tais eventos se passavam

nos fins de semana e, inevitavelmente, terminavam com a realização de um 'forró'187.

O entrosamento com a população avança, consolida-se a ligação dos futuros guerrilheiros com a

população pela via da amizade, considerada um ponto de partida para a realização de um trabalho

político de nível superior. Este processo é assim avaliado pela Comissão Militar no seu Diário da

Guerrilha do Araguaia:

"Passam-se muitos meses, dois anos talvez. Os novos moradores estreitam suas

relações com o povo, identificam-se com ele. São estimados e estimam sinceramente

os que conhecem. Amizade não se consegue da noite para o dia. Vai-se forjando com

184 Cerimônia religiosa católica, existente dentro e fora da estrutura oficial da Igreja, que consiste em realizar orações

durante um período de nove dias, em homenagem a um santo, a uma data, em gratidão a uma graça pedida e alcançada, etc.

185 Ritual religioso que expressa o sincretismo havido entre o candomblé, de origem africana, com as crenças dos índios

amazônicos.

186 Glênio Sá, op. cit., p. 10.

187 Festa popular onde se dança ao som de músicas de ritmo nordestino.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

108

o tempo. Uma ajuda aqui, outra acolá, o respeito às pessoas, a atenção que se lhes

presta na conversa, o interesse pela sua vida, o conselho que se ouve dos que habitam

o lugar, o desejo de aprender com a massa - tudo isto vai tecendo os fios invisíveis da

amizade."188

O grau de confiança da população local que os 'paulistas' conseguem atingir é invejável e

inqüestionável como nos conta Fernando Portela:

"A boa fé folclórica das populações brasileiras santificou os 'paulistas' e a ninguém

ocorreu perguntar o porquê de tanta bondade. A dependência e o respeito chegou a

um ponto que nada de mais importante era feito sem que algum deles fosse

consultado. Questões de terra, de saúde, íntimas... A confiança naquelas pessoas finas

era total. Na região, há homens que não deixam suas mulheres aparecerem para

visitas de conhecidos, quanto mais de estranhos. Pois os 'paulistas' solteiros recebiam

todas as atenções das donas-de-casa, davam-lhes conselhos sobre problemas de saúde

e outros, e os maridos, quando viajavam ou iam caçar na mata, pediam aos 'paulistas'

para tomar conta da casa, afinal pode aparecer gente ruim por aí..."189

Outra coisa que os caboclos admiravam nos seus 'novos' vizinhos era a coragem. Coragem no

sentido de enfrentar os grileiros que infectavam cada vez mais a região:

"... o povo começava a acreditar, porque os 'paulistas' diziam, que era possível

enfrentar de igual para igual seus inimigos. Uma prova: «cadê que ninguém mexia

com os paulistas? Gente esclarecida, letrada».. Um grileiro foi ameaçar tirar a terra

de 'Osvaldão' e acordou, na sua casa, com um cano de um 38 cutucando o seu rosto e

a ordem dita por «um negrão de quase dois metros de altura e com dois braços que

pareciam duas pernas», segundo descrição dos que o conheceram: «ô grileiro, vamos

fazer outro negócio: em vez de você ficar com minha terra, você dá a sua a uma

família muito necessitada. A família já tá aí, esperando. Vou lhe levar até a

rodoviária e você não aparece mais aqui, senão morre. E se achar ruim morre agora

que fica mais fácil...»

188 Clóvis Moura, op. cit., p. 26.

189 Fernando Portela, op. cit., p. 39.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

109

O grileiro saiu com a surpresa de encontrar os novos proprietários e mais

de 30 pessoas das redondezas que aplaudiam a atitude de seu 'Osvaldão', homem

justo."190

"... diziam: nos mineiros ninguém mexe. Os 'mineiros' éramos nós."191

De uma maneira geral se espalha a fama da valentia dos 'paulistas' ou 'mineiros'. Fernando Portela

ainda destaca o que contavam a respeito de uma outra militante comunista instalada na região,

personagem igualmente lendária para o povo da região:

"Osvaldão não era o único a distribuir heroísmo: Dina Monteiro, a Dina baiana, a

Dona Dina, geóloga, uns 30 anos, professora primária numa escola que ela mesma

construiu; parteira que salvou muitas vidas, num lugar onde o índice de mortalidade

infantil ainda hoje é assustador... e uma lavradora exemplar, obviamente. Difícil é

saber se Dina marcou mais como assistente social ou como guerrilheira. Sua

personalidade era tão forte que, num lugar onde o patriarcado é a lei máxima, o seu

marido, também guerrilheiro, ganhou o apelido de Antônio da Dina"192

"... Na região, Dina virou lenda:

- Era a mais bonita das mulheres e a que atirava melhor, dizem por lá. Jogava

tampinha de Coca-Cola para cima e acertava uma por uma."193

O trabalho de massas dos militantes do PC do B, pelo menos nesse primeira fase, se restringiu ao

entrosamento com a população sertaneja, à conquista da sua plena confiança com vistas aos

enfrentamentos que, eles o sabiam, viriam inexoravelmente, mais cêdo ou mais tarde.

Este será o caráter do trabalho político de massas até meados de 1971, quando "a fase de

pequenas conversas vai dar lugar a um relacionamento muito mais direto e integrado com a

população... A gente era um deles!"194

190 Idem, pp. 38.

191 Glênio Sá, op. cit., p. 13.

192 Fernando Portela, op. cit., p. 38-9.

193 Idem, p. 87.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

110

O início da década de setenta verá a intensificação da corrida em direção às terras amazônicas,

sobretudo rumo àquelas localizadas próximas à nova rodovia, a Transamazônica. Tal construção fez

aumentar o povoamento da região e com ele, o aumento da grilagem, o que tornou maior a tensão social

já vivida na área em torno da posse da terra. Era o processo de expropriação dos posseiros que ganhava

mais velocidade e violência.

"... começam nessa época os grandes conflitos pela posse da terra com os grandes

grileiros, grandes fazendeiros da Amazônia. Vamos fazer um trabalho mais avançado

com a população, se integrar mais naquela luta com os posseiros...

Nossa área era muito cobiçada... Terras férteis e boas para criação de gado. Nosso

destacamento começa a sofrer ameaça de expulsão. Então, a gente vai conversar com

todo mundo"195.

"...O assunto era um só: a grilagem que aumentara na região e o que iríamos fazer.

Falávamos para todos que se os nossos vizinhos e amigos ficassem unidos os grileiros

não iam mexer com ninguém."196

Ultrapassado o período de adaptação à região e integração com o povo e acentuada a tensão

sócio-política, os militantes comunistas sentem-se mais seguros para elevar o grau de politização das

relações que mantinham com ele:

"Em meados de 71 vamos elaborar, junto com a população, um programa com as

reivindicações da região, desde o problema da terra, grilagem, saúde, miséria, falta

de comércio até o problema mais geral dos camponeses, que desemboca na reforma

agrária.

Era um programa de 27 pontos que se propagava naturalmente. Porque, se íamos

juntos para as novenas e festas, ficávamos conhecendo os problemas deles. Esse

programa, quando ia pros mutirões, era discutido numa conversa natural. Com base

194 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 35.

195 Idem, p. 40.

196 Glênio Sá, op. cit., p. 13.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

111

nele foi organizado o movimento ULDP (União pela Liberdade e pelos

Direitos do Povo)."197

José Genoíno e Glênio narram que os avanços obtidos pelo seu destacamento, o B, foram

inúmeros neste período que vai de meados de 1971 até o início de 1972, o que mereceu até mesmo uma

grande comemoração:

"... foi uma fase de grandes êxitos para nós. Estávamos com grandes roças plantadas

e abertas, o castanhal cultivado... Aí juntamos todo o destacamento na casa principal,

na noite de 31 [de dezembro]... às 9 da noite vinha chegando gente do mato - num

ambiente de alegria.

Iamos comemorar uma passagem do ano diferente da de 70 para 71...

Essa agora era uma passagem vitoriosa: havia três grupos... Uma alegria geral.

Teve muita cantoria..."198

"Entramos no local da nossa festa... em fila indiana, cantando a Internacional. Foi

emocionante...

Neste dia tivemos de tudo: jogo de vôlei, música, poesias, teatro... Cinco minutos

para a meia-noite nos perfilamos com as armas empunhadas e saudamos a chegada

do ano-novo com tiros para o alto."199

Para os militantes do PC do Brasil, o ano novo se iniciava com um saldo muito positivo: avanços

no campo da preparação militar; entrosamento cada dia mais forte com a população local; adaptação do

pessoal à selva com progressos notáveis; êxitos também no aprendizado da agricultura, caça e pesca.

Também tinha-se concluído um mapeamento completo da região, assim como tinha-se estabelecido todo

uma rede de depósitos secretos de armas, munição, remédios e alimentos.

197 Idem, p. 39. Ver o 'programa dos 27 pontos' em 'Proclamação da União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo', nos

Anexos.

198 Idem, ibidem.

199 Glênio Sá, op. cit., p. 12.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

112

"Começávamos o ano de 1972 com nova disposição. Nossa vida estava mais

organizada e disciplinada"200

"De março para abril de 72 começamos a colher o arroz plantado em dezembro, uma

grande quantidade, uma admiração. Estávamos sentindo na prática que éramos de fato

lavradores e pessoas naturalizadas na região."201

e - A preparação militar

Mas nem só de convivência com a população local viviam os 'paulistas', numa intensa atividade

paralela, eles também se preparavam militarmente para o que os esperava.

A preparação propriamente militar dos militantes que chegavam consistia em aulas teóricas e em

treinamentos práticos, ambos feitos às escondidas.

O guerrilheiro Glênio, pertencente ão Destacamento B, chefiado por 'Osvaldão', ainda se recorda

de alguns pontos tratados nas aulas teóricas:

"aprendíamos tudo sobre guerra regular e irregular, a relação entre os dois tipos, a

guerra de guerrilhas, algumas experiências internacionais e nacionais, as

contradições da tática anti-guerrilha, a moral dos combatentes, como criar um

exército popular, guerra justa e guerra injusta... Algumas orientações deviam ser

assimiladas por nós. Lembro-me de dez delas:

1 . O homem é o principal numa guerra...

2 . O aspecto político é o dirigente de qualquer luta;

3 . A moral depende da causa que se defende;

4 . Priorizar a guerra de guerrilhas como o método ideal de luta para nós (luta do

fraco contra o forte);

200 Ibidem.

201 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 40.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

113

5 . Ser ao mesmo tempo político, trabalhador e militar;

6 . Lealdade à causa, espírito coletivo, solidariedade, coragem e respeito aos bens,

às mulheres e aos costumes do povo;

7 . Domínio do cenário onde se desenvolve a luta;

8 . A adaptação à vida local já é uma preparação;

9 . Disciplina;

10. Indispensável apoio popular."202

José Genoíno Neto, que pertencia ao mesmo grupo de Glênio, sobre a preparação teórica,

completa que ela consistia no estudo das

"... leis gerais de guerras na região, as características gerais da guerra de guerrilha,

discussão feita em cima dos clássicos, de Visconde de Taunay (Retirada da Laguna) e

Euclides da Cunha (Os Sertões). Era preciso se habituar com a linguagem da guerra,

porque ia servir para o dia-a-dia...

Outro ponto dessa preparação teórica era sobre as qualidades de um guerrilheiro.

Nossa concepção era a de que... é um cara que faz tudo: trabalha na roça, faz

política, combate. A gente discutia muito as qualidades morais de um combatente:

solidariedade, respeito ao povo, espírito coletivo - isso se colocava até na prática: ou

vence todo mundo ou não vence ninguém. Um tipo de vida em que não podia ter um

cara que era o bom: ou vence o grupo ou não vencia ninguém"203.

Quanto à preparação prática para os enfrentamentos militares que viriam, segundo os relatos até

hoje publicados, eram realizados de manhãzinha, entre 6h30 e 7h30, pois "era um horário em que nunca

apareciam visitas"204 nas matas ou em suas casas. Já os treinamentos mais longos e exigentes eram feitos

"durante o inverno, principalmente, porque aí os rios enchem e há menos gente na mata"205 e seguia o

seguinte roteiro:

202 Glênio Sá, op. cit., p. 11.

203 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 37.

204 Glênio Sá, ibidem.

205 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 38.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

114

"A gente acordava às 6 em ponto. Fazia ginástica de características militares... para

enrijecer os músculos... no terreno de casa. Uma corrida um pique, camuflagem,

rastejamento; carregar peso, ficar com o braço estirado... carregar um companheiro

imobilizado. Uma hora e meia de ginástica pesada...

Tínhamos uma norma geral: ficar correndo durante uma hora sem parar dentro do

mato... tinha quase meia hora de natação"206.

No campo da preparação prática para a guerra de guerrilha, também constavam outros ítens, tais

como: "... aulas de tiro ao alvo... lançamento de granadas"207.

Do ponto de vista da tática aprendia-se a fazer retiradas de emergência, realizar assaltos,

fustigamentos, preparar armadilhas, emboscadas, a escolher um bom local para se armar um

acampamento e depois como camuflá-lo de modo a não deixar indícios nem rastros da presença dos

guerrilheiros, etc.

Um exemplo disso eram os treinamentos de retiradas de emergência, no meio da noite. Cada

militante deveria então embrenhar-se na mata por trilhas previamente estabelecidos e construídas com

este fim, levando somente o conteúdo da mochila que, por sua vez, deveria estar sempre pronta para tal

eventualidade. Em seguida, deveriam se encontrar em pontos também já pré-fixados, isso tudo sem

deixar a menor pista, é claro.

Um ponto que merecia grande atenção era o relativo à sobrevivência durante longo período na

mata:

"já tínhamos um manual de sobrevivência na mata - principais frutas, as principais

caças, como tratar da caça, como obtê-la sem risco; como fazer fogo na mata, como

despistar, correr... Também catalogamos as principais raízes, os cipós que davam

água, os tipos de fruto de cada área"208.

206 Idem, pp. 36-7.

207 Glênio Sá, ibidem.

208 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 37.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

115

Outro ítem que merecia igual tratamento prioritário era o de saber orientar-se na selva,

pois

"... uma guerrilha sem domínio do terreno é uma guerrilha cega. Nos orientávamos

pela bússola, a Lua, o Sol, as estrelas...

Tinha a orientação pelo sistema de drenagem, porque uma grota vai dar na outra

até dar no Araguaia e do Araguaia, o mar... O Cruzeiro do Sul também servia.

Tínhamos os mapas do IBGE209, mas... não eram suficientes, não davam grota, tipo

de selva, o rio. Era preciso um conhecimento detalhado"210.

Como a orientação na área era considerada fundamental, decisiva mesmo, aproveitando-se do

fato de que entre os futuros guerrilheiros havia quem tivesse conhecimentos de geologia, procedeu-se

então ao mapeamento da região:

"Começamos a mapear a região a partir do meio de 70...

Existiam vários grupos mapeando ao mesmo tempo... passávamos vários dias na

mata... O meu destacamento mapeou a região que vai da Palestina a São Geraldo."211

Havia ainda uma outra etapa dos treinamentos físico-militares, a preparação de caráter individual,

num momento mais avançado da preparação:

"Por exemplo, habilidade de correr. Já avançando na preparação, saíamos de casa

dois, três, quatro, só com sal, farinha e munição, para passar um mês na mata. Nas

marchas... em grupo, pequeno ou grande, já se ia treinando tudo. Quando se passava,

não quebrava galho, não quebrava nada, porque daí era muito mais fácil camuflar;

atrás vinham os camufladores e mais atrás um observador, que via como tudo era

camuflado. Também se fazia treinamento de um grupo sendo guerrilha e outro não

sendo; então ia um grupo marchando, ia outro atrás para pegar.

209 Sigla do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

210 Idem, ibidem.

211 Idem, pp. 37-8.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

116

... O importante era se movimentar, parar mas ao mesmo tempo não deixar rastro,

aprender a despistar e cortar rapidamende o contato com o inimigo.

... Esses treinamentos vão nos aproximar da realidade da guerra, porque eram

duros. Se alguém tinha malária, ele participava para ver a sua resistência marchando

assim. Era preciso ver o nosso ritmo na mata com os 20 quilos na mochila."212

Cuidou-se também de construir-se uma rede de depósitos de mantimentos, remédios, armas e

munições distribuídos pelo meio da selva. Genoíno diz que

"Essa era uma das tarefas mais sigilosas... ninguém conhecia tudo... Chegamos a

enterrar armas, colocar dentro de troncos de árvores... Cada um tinha uma técnica e

um local desconhecidos pelos outros."213

Através de um método de avaliação coletiva se observava o desenvolvimento da preparação, seus

avanços e debilidades. Mas o comandante do destacamento, no caso presente, Osvaldo, observava todas

as atividades do grupo e procurava localizar as maiores debilidades afim de superá-las.

Com a chegada de 1972, intensificam-se os treinamentos militares:

"Estávamos numa corrida contra o tempo. Só aí é que vamos homogeneizar a

preparação, porque até aí cada grupo tinha feito um treinamento inteiro, e agora

vamos ter uma programação mais coletiva. Fizemos uma manobra simulada de todo o

destacamento.

Fizemos tudo... 20 pessoas no mato, mais ou menos uma semana... no dia que a

manobra terminou, dois estavam com malária"214.

f - A organização militar

212 Idem, p. 38.

213 Idem, p. 39.

214 Idem, p. 40.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

117

A organização propriamente militar dos militantes do PC do Brasil se deu com sua distribuição

em três destacamentos guerrilheiros. Havia o Destacamento A, liderado por André Grabóis, localizado na

região chamada de Faveira; o Destacamento B, chefiado por 'Osvaldão', com base na área do Rio

Gameleira; e, o C, comandado por Paulo, estruturado também próximo a um afluente do Rio Araguaia,

chamado Caiano.

Cada um dos três destacamentos era composto por um comandante e um vice-comandante,

também chamado 'comissário político', e mais vinte e um membros, divididos em três grupos de sete

guerrilheiros, cada qual com seu líder, totalizando assim vinte e três componentes215.

Havia ainda a Comissão Militar, liderada por 'Mário', 'Tio Cid', 'Joaquim' e 'Pedro', mas também

composta pelos comandantes dos três destacamentos mais o responsável pelo serviço médico, 'Juca'.

Embora tenha mudado muito de localização durante o período de enfrentamentos com as tropas

governistas, sua base durante a fase de instalação das 'frentes' na região do Araguaia teria se localizado

nas proximidades da Aldeia dos índios Suruí216.

As normas que regiam toda a organização político-militar foram publicadas sob o nome de

'Regulamento das Forças Guerrilheiras do Araguaia' - FORGA, datado de "meados do ano de 1973"217.

No entanto, é de se duvidar que tal regulamento só tenha entrado em vigor na data de sua publicação,

pois desde a chegada os militantes tinham que se submeter a uma disciplina férrea e com peculiaridades

que não constam dos estatutos do partido. Logo, pensamos, tal 'regulamento', na prática foi o corpo

normativo que estabeleceu os direitos e deveres dos militantes destacados para o tarefa 'especial' no

215 Este era o número considerado ideal de componentes para um destacamento, o que não significa que os três já o

tivessem atingido. Glênio Sá, do B, diz que em 1972 "precisávamos... de mais quatro... para completar" (Op. cit., p. 12) e

Angelo Arroyo diz que "Para completar os efetivos, faltavam 13 elementos" ("Relatório Sobre a Luta no Araguaia". In: João

Amazonas e alii, op. cit., p. 17).

216 Cf.: mapa do "palco de operações". In: Fernando Portela, op. cit., p. 24.

217 "Regulamento de 32 Artigos das Forças Guerrilheiras do Araguaia". In: Clóvis Moura, op. cit., pp. 67-74.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

118

Araguaia, assim como as sanções a que estariam virtualmente sujeitos em caso de falta para com a

organização, definia também a estrutura organizativa da base guerrilheira, assim como, regulamentava a

hierarquia entre as diversas instâncias de organização existentes e suas relações recíprocas.

Detalhe importante de tal 'Regulamento' é que a instância máxima de comando operacional-militar

estava, expressamente, submetida ao "Comitê Político da região guerrilheira", o qual, aliás, tinha como

prerrogativa designar a própria Comissão Militar. Em outras palavras, o texto em exame obedecia ao

preceito fixado há muito pelo PC do B de que 'o político dirige o militar e não o contrário' (Ver supra,

p.).

Outro detalhe importante de toda a organização militar levada à prática na região do Araguaia era

o isolamento de um destacamento em relação aos demais. Ou seja, só mesmo a Comissão Militar tinha o

conhecimento da localização exata das três frentes de trabalho político na área, assim como do número

de efetivos, nomes e codinomes, programação de atividades, etc.

Tal estrutura seguia de perto as idéias de Lênin sobre o trabalho conspirativo do partido

comunista e suas normas de organização em condições de clandestinidade. Tais preceitos visavam,

sobretudo, através de uma estrutura rigidamente vertical, onde é impossível o contato 'horizontal' direto,

no caso em questão, de um destacamento com outro, proteger o conjunto da organização que não seria

conhecida por completo que por seus dirigentes máximos. Tal expediente era como que uma válvula de

segurança, para a eventualidade de algum ou alguns de seus militantes serem presos, não poderem,

mesmo se assim o desejarem (ou forem forçados), denunciar à repressão todo o conjunto do partido.

Para que o conjunto do trabalho não se efetue de uma maneira anárquica, Lênin preconizava uma direção

centralizada, à qual todos os organismos partidários estariam submetidos política e organizativamente,

através do expediente do 'centralismo-democrático'218.

218 Cf.: V.I.Lênin, Organização Comunista, Lisboa, Maria da Fonte, 1975, passim.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

119

II . 3 - 12 de Abril de 1972: O Início dos Combates

II . 3 . 1 - A Descoberta da 'Base' do Araguaia

O ano de 1972 começa com o PC do Brasil endurecendo o seu discurso oposicionista e, nas

entrelinhas, pode-se entrever que a longa preparação guerrilheira em curso na região do Araguaia, era

vista com muito otimismo e esperança pela direção partidária.

Em artigos aparecidos na imprensa do partido ficaria demonstrado claramente este 'otimismo' do

PC do Brasil:

"Neste início de 1972, descortinam-se... para os brasileiros... melhores perspectivas

para dar um vigoroso impulso à sua luta contra a ditadura militar-fascista.

Amadurecem rapidamente as condições para tornar uma realidade a guerra popular,

fazer avançar a revolução democrática e nacional. Tudo indica que o povo se lançará

em importantes batalhas e alcançará brilhantes vitórias.

O Partido Comunista do Brasil, que desde a sua reorganização, há cerca de 10

anos, empunha, firmemente, a bandeira revolucionária, ingressa no ano novo mais

forte, mais consciente de seu papel, mais coeso, mais aguerrido para ocupar o posto

que lhe compete na preparação, desencadeamento e consolidação da guerra

popular."219

"Ao comemorar o seu quinqüagésimo aniversário, o PC do Brasil indica ao povo o

verdadeiro caminho da libertação: a guerra popular. Demonstra ser este o único meio

para derrubar a ditadura...

O governo dos militares procura apresentar-se como todo-poderoso, inabalável, ao

qual todos devem se submeter... Sua força, porém, é aparente... não possui a força

219 "1972 - Maior Impulso à Luta Contra a Ditadura". Jornal A Classe Operária, s.l., nº 61, janeiro de 1972. In: Wladimir

Pomar, op. cit., p. 220.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

120

que apregoa. Se o povo se levantar verá que ele é o forte e o opressor o fraco. Pode,

portanto, atrever-se a lutar, desafiar a reação interna e o imperialismo norte-

americano. As condições lhe são favoráveis. Ousando combater e persistindo no

combate será vitorioso."220

Enquanto o Comitê Central do PC do Brasil se reunia para comemorar os cinquenta anos de

fundação do partido, e mostrava o otimismo que se pôde atestar nas linhas supra citadas, o clima entre os

comunistas não era muito diferente na região do Araguaia.

Como já foi dito, havia um novo ânimo para os 'paulistas' ao despontar o ano de 1972. Eles

contabilizavam diversos avanços em variados aspectos da tarefa à qual se consagravam há quase seis

anos.

Juntamente com este certo clima de euforia pelos obstáculos superados, crescia também entre os

'paulistas' a tensão pois os problemas em torno da posse da terra aumentaram vertiginosamente em toda a

região, multiplicando os conflitos entre posseiros e grileiros, o que fazia supor que tal fato acabaria por

atrair a atenção das forças repressivas:

"Enquanto isso, a construção da Transamazônica progride do lado do Pará. Como

cogumelos depois da chuva, aparecem os grileiros. Grilagem por estas bandas sempre

foi fenômeno comum. Mas agora assume características de uma operação gigantesca,

apoiada pelo governo...

De repente, desaparece o relativo sossego dos posseiros"221.

"A inquietação vai tomando conta dos pacatos moradores do sul do Pará. Dezenas

de lavradores... procuram Paulo Rodrigues para discutir a situação... No Gameleira,

muitos buscam contato com Osvaldo para pedir-lhe conselhos. Zécarlos também é

ouvido. A massa fala em... volta ao cativeiro"222.

220 "PC do Brasil - Vanguarda Combativa do Proletariado e do Povo Brasileiro". Jornal A Classe Operária, nº 63 (edição

especial), março de 1972. In: Op. cit., pp. 226-7.

221 "Diário da Guerrilha do Araguaia". In: Op. cit., p. 32.

222 Idem, p. 34.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

121

Mesmo entre os outros moradores é grande a expectativa de um ataque violento dos

grileiros à região:

"O ambiente torna-se tenso, todos esperam a qualquer momento o emprego da força

pelos grileiros, com o apoio do governo. Algumas pessoas ainda pensam que o

Exército poderá defendê-las, outras dizem que fardas só trazem desgraças. Os

fatalistas afirmam que pobre nasceu para ser enxotado. Há também os que guardam

silêncio, um silêncio feito de ódio"223.

Como que presentindo o que iria se passar na seqüência, os 'paulistas' tomam medidas de

precaução:

"... a Comissão Militar ordenou maior vigilância. Estabelecemos um sistema de

guarda noturna em cada casa e nos trabalhos na roça durante o dia. Sentíamos que o

clima poderia esquentar."224

Em março, o primeiro indício de que o Exército suspeitava de que alguma coisa estava a ocorrer

naquela região não é levado a sério:

"Em março de 72 eu fui pra Xambioá... fazer compras... No dia anterior os caras de

Brasília tinham passado, à paisana. Vou prum [sic] hotel, e, como a mulher me

conhecia bem, falou:

- Olha, passaram os federais aqui, procurando 'terroristas'...

O pessoal me falou mas eu tinha elementos pra saber que não era a gente que

estavam procurando."225

"... Uma vez, cheguei a Xambioá à noite e estava havendo uma batida da Polícia

Federal por causa de algumas mortes ocorridas em Paraíso do Norte com o pessoal

do MOLIPO... e a mulher do hotel falou para mim que não fosse para a rua de

revólver pois poderiam me prender. Eu fiquei muito preocupado, pois estava sozinho

223 Idem, ibidem.

224 Glênio Sá, op. cit., p. 14.

225 "Entrevista com José Genoíno Neto" (1979). In: Op. cit., p. 41.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

122

naquele hotelzinho, e ela deve ter notado. Fui ao armazém comprar farinha, sal,

armas e munição e confirmei a presença dos federais. Resolvi, então, viajar de noite.

Quando fui pegar o barco para voltar para o mato, ela olhou para mim e perguntou:

«Por que você está saindo agora?» Mais tarde, quando fui preso e levado para a

pracinha do hotel, lá em Xambioá, a velhinha botava a cabeça na porta, me olhava

rapidamente todo amarrado e só de calção, e se escondia de novo. Parecia que ela

estava recompondo aquela história."226

Não se levaria em devida conta as informações obtidas em Xambioá, por que os 'paulistas'

estavam informados de que a repressão estava procurando na área dois 'terroristas' de uma outra

organização de esquerda no norte de Goiás, o que, ao que tudo indica, era inexato pois hoje supõe-se

que já se tratavam então de 'especialistas' das FF.AA., verificando informações recebidas. Mesmo assim,

a Comissão Militar emite orientações no sentido de se reforçarem medidas de segurança e de que todos

estivessem em permanente vigilância, em 'estado de alerta'.

Mas, mesmo os militantes do PC do B estando em 'estado de alerta', não deram muita atenção à

passagem dos 'federais' por Xambioá.

O PC do B intensifica o trabalho político de massas em toda a região. O mote utilizado é o clima

de apreensão e insegurança reinante entre os posseiros da região. Ampliam a divulgação do 'programa

dos 27 pontos' e tentam criar um clima favorável a uma resistência dos moradores caso se concretizasse

uma agressão dos grileiros e/ou do governo.

226 Roberto Benevides, "Playboy entrevista José Genoíno", Revista Playboy, SP, maio de 1993, p. 38.

"Senhores, peço licença

Me ouçam com atenção

Vou falar sobre o Brasil

Da atual situação

Do camponês cá do Norte

Que sendo valente e forte

Ainda passa aflição

Garimpeiro, seringueiro

Madeireiro, lavrador

Seja qual a profissão

É um povo sofredor

O vaqueiro, nem se fala

O barqueiro, êsse não cala

Vão lutar pra ter valor...

'Vão lutar pra ter valor'. Nos versos de cordel, que eles mesmos inventavam, as

novas idéias começavam a tomar conta das populações dos lugarejos do Araguaia"227.

Os militantes do PC do Brasil espalham a idéia da resistência e procuram avançar ainda mais na

organização da população para este efeito, realizam neste momento também algumas ações contra

grileiros que andavam atormentando famílias de posseiros (Ver supra: p. ).

Todavia, continuam guardando o segredo em torno do porquê de estarem instalados naquele

rincão longínqüo. A continuidade deste segredo, nao os impede contudo de avançar um pouco mais no

trabalho político com os habitantes locais:

"... Osvaldo mobiliza seus amigos. Zécarlos, idem. Outro tanto, Paulo Rodrigues. São

os elementos mais considerados na região. Fazem-se preparativos. Se o inimigo

atacar, como proceder? Todos recebem instruções"228.

O 'estado de alerta' fôra ordenado pela Comissão Militar e os 'paulistas' passam a estar bem

atentos a quaisquer movimentos suspeitos em toda a região. Pressente-se que o momento do confronto

se aproxima:

"A gente estava mais ou menos no geral preparado para, a qualquer momento, ser

forçado a resistir...

A frase que a gente mais ouvia era:

- Chegou a hora!"229

227 Fernando Portela, op. cit., p. 37.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

124

Constitui grande problema para um historiador da Guerrilha do Araguaia, afirmar com segurança

como as FF.AA. descobriram o trabalho político-militar que o PC do Brasil realizava na região do

Araguaia.

Angelo Arroyo, um dos membros da Comissão Militar, dirá em relatório feito ao Comitê Central

sobre a situação no Araguaia, em princípio de 1975, que

"... O Exército soube da nossa presença no sul do Pará através da denúncia do

traidor Pedro Albuquerque que, meses atrás, tinha fugido, com sua mulher, do

Destacamento C... Em março de 1972, soube-se que Pedro Albuquerque havia sido

preso no Ceará e, em seguida, começou a pesquisa policial na zona."230

Contudo, em 1982, quando o PC do Brasil publica o referido relatório, após realizar maiores

investigações a respeito, acrescenta-se, sob a forma de uma nota de rodapé, que "... verificou-se que o

denunciante dos companheiros que se encontravam no Araguaia foi Lúcia Regina Martins de Souza e

não Pedro Albuquerque."231

Wladimir Pomar, à época membro da direção do partido, detalharia um pouco mais essa

retificação feita pelo PC do Brasil, observando que o próprio Arroyo havia participado das investigações

que concluíram por inocentar Albuquerque e inculpar Lúcia Regina:

"No 'Relatório'... afirma [-se] que a área fôra descoberta por denúncia de Pedro

Albuquerque... Comprovou-se posteriormente, com o auxílio do próprio Arroyo, que

essa informação era inexata"232.

228 Clóvis Moura, op. cit., p. 34.

229 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 41.

230 Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia". In: João Amazonas e alii, op. cit., p. 17.

231 Idem, ibidem (nota de rodapé).

232 Wladimir Pomar, op. cit., p. 37 (nota de rodapé nº 61).

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

125

"... Regina, uma das militantes selecionadas para o trabalho na área,

ficou doente e teve que ser enviada para o sul em meados de 1971 para tratamento,

apesar das normas em contrário estabelecidas pela Comissão Militar. Acabou

desertando e, sob pressão da própria família, denunciou o trabalho de preparação"233.

O jornalista Fernando Portela, em obra anterior a esta revelação da direção do PC do Brasil,

sustentara outra versão do fato, uma outra hipótese de como as FF.AA. chegaram ao Araguaia:

"... o Exército é alertado pelas polícias militares de Marabá e Xambioá de que há

estranhos subversivos na região... As PMs daqueles ermos, que poderiam usar o lema

'sempre em defesa do mais forte', eram constantemente informadas por grileiros e

fazendeiros, acostumados a resolver a bala e sem revide os seus problemas com

posseiros, de que havia uma certa resistência, comandada por «gente de São Paulo».

As informações iam além: os 'paulistas' ensinavam o povo a ler e haveria até médicos

no meio deles, porque distribuíam muito remédio «que não era amostra grátis».

Um grupo de 'pessoal especializado' é enviado à região e, junto às PMs das duas

cidades, começa a investigar. Depois de alguns meses, concluem os 'especializados':

tratam-se de estudantes subversivos do Sul em fase de 'refrescamento', ou seja: saindo

de circulação nas grandes cidades, onde seus nomes eram conhecidos do

Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e se fixando na região até a coisa

acalmar"234.

Baseando-se nesta avaliação dos 'especialistas' enviados à região, ele prossegue afirmando que

"Foi um erro de avaliação. Sabe-se, de fontes militares [grifo nosso], que, nessa

fase de investigações, o próprio governo federal não deu muita atenção ao caso, que

ficou basicamente a cargo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e órgãos

paralelos, como o DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações - Centro

de Operações de Defesa Interna) e outros. Algumas reuniões dos chefes militares,

233 Idem, p. 38.

234 Fernando Portela, op. cit., p. 28.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

126

onde se sobrepunha o Comando Militar do Planalto, em Brasília, e a ordem foi a de

prender todos os subversivos amazônicos"235.

A versão sustentada pelo PC do Brasil é digna de credibilidade, pois é fruto de uma longa

investigação promovida pelo próprio partido. Entretanto, a versão apresentada por Portela não tem

menos credibilidade e cumpre ao menos o papel de lançar a dúvida no ar, pois sabe-se que, para escrever

o seu livro sobre a Guerrilha, ele contou com fontes de informação no alto escalão das FF.AA236.

Em todo caso e, por via das dúvidas, não se pode afirmar com absoluta certeza como se deu a

descoberta dos preparativos do PC do Brasil na área do Araguaia sem que as FF.AA. permitam o acesso

aos seus arquivos. Só assim será possível desvendar mais este mistério, entre tantos outros que ainda

existem.

O fato é que as FF.AA. descobriram a 'base' do Araguaia e, a 12 de abril de 1972, procedeu à

uma invasão e ocupação de toda a região do sul do Pará. Começava, então, verdadeiramente, a Guerrilha

do Araguaia.

II . 3 . 2 - As Forças Armadas atacam e os 'paulistas' se transformam no temido 'povo da mata'

No dia 12 de abril de 1972, ocorreu o ataque das FF.AA. à região do baixo Araguaia. Apesar de

W. Pomar escrever que tal acontecimento se deu de forma inesperada, que teria pego o partido na região

desprevenido:

235 Ibidem.

236 É visível a colaboração de militares em seu livro. Em primeiro lugar, ele publica uma entrevista com um oficial do

Exército sobre o tema - fato inédito. Em segundo lugar, a partir da terceira edição, o livro passa a incluir carta ao autor, do

General Hugo de Abreu, um dos principais comandantes das FF.AA. no combate à Guerrilha, na qual elogia o trabalho de

Portela. (Ver: Fernando Portela, op. cit., p. 1).

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

127

"O ataque das Forças Armadas foi uma surpresa tanto para a direção do

partido na área, quanto para a parcela da direção que ficou responsável pelo resto do

trabalho partidário."237

Pelo menos no que diz respeito ao partido na área, não é isso o que se depreende do relato de

Angelo Arroyo, membro da Comissão Militar, presente na região naquele momento. Em seu

'Relatório...', ele nos conta que após tomar conhecimento da prisão de Pedro Albuquerque, em março de

1972,

"... reforçaram-se as medidas de segurança. Construíram-se alguns barracos na mata

ou em capoeiras e o nosso pessoal passou a dormir fora dos locais conhecidos. De

dia, colocavam-se guardas para manter a vigilância. Os destacamentos ficaram de

sobreaviso, prontos para informar uns aos outros quaisquer fatos que afetassem a

segurança."238

Arroyo continua, narrando o começo das operações das FF.AA. na área, assim como a primeira

prisão de um dos membros do PC do Brasil, José Genoíno Neto, codinome: 'Geraldo'.

"No dia 12 de abril foi atacado o Destacamento A. O comando enviou um

companheiro para avisar o Destacamento B. Por sua vez, o Destacamento C, que

havia sido atacado dia 14, avisou a CM, através de um dos seus membros que lá se

encontrava... O Destacamento B, ao tomar conhecimento do que havia ocorrido no A,

tratou de enviar um elemento (Geraldo) para avisar o C. Acontece que o C já havia se

retirado. Geraldo... retornou por estrada, quando devia vir pela mata, conforme

recomendação. Em conseqüência, foi preso"239.

Fernando Portela narra assim o começo das operações no mesmo dia 12 de abril:

237 Op. cit., p. 37.

238 Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia". In: Op. cit., p. 17.

239 Idem, ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

128

"... cerca de 2 mil homens das Brigadas de Infantaria da Selva (BIS) e outras

unidades da área, mais pessoal de Brasília e Rio, inclusive pessoal à paisana do

Comando Militar do Planalto, tomam de assalto a região do baixo Araguaia, fazendo

de Marabá e Xambioá suas cidades-quartéis"240.

"Veio o dia 12 de abril de 1972... As forças do governo invadem as cidades, as

estradas, os rios. Já sabem que em Gameleiro, Caiano e Faveiro há focos de

'terroristas'."241

Devidamente informados sobre a presença das tropas governamentais na área, os militantes do PC

do Brasil, embrenham-se na mata, frustrando assim as expectativas de uma mera e simples missão de

rotina para prender 'alguns poucos estudantes de São Paulo':

"Dia 12, as tropas iniciam o ataque aos habitantes da zona da Faveira e de São

Domingos das Latas. Prendem diversas pessoas. Aí pelas doze horas... chegam ao

barraco denominado PEAZÃO... Não encontram ninguém porque todos se internam

na mata...

Dia 14, o Exército ataca o pessoal da área do Caiano e de São Geraldo... Mas não

conseguem prender os que aí vivem. Empregam a violência indiscriminada contra a

população...

Uns dez dias depois, o Exército assalta também os moradores do Gameleira.

Osvaldo e seus companheiros já haviam se retirado para a mata."242

"No dia 13 de abril, à noite, veio ao castanhal um camarada nos avisar de que um

estafeta nosso da região de Apinagés chegara com a notícia de que o Exército tinha

invadido aquela área... a decisão era uma só: resistir...

Começamos a arrumar as nossas coisas e a levá-las para o mato... Eram os

preparativos para a resistência necessária.

As quatro casa foram evacuadas às pressas. Partimos em marcha para a floresta,

cuidando para não deixar rastros...

240 Op. cit., p. 28.

241 Idem, p. 44.

242 "Diário da Guerrilha do Araguaia". In: Op. cit., pp. 35-6.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

129

... Começava uma nova vida para todos nós. A vida de guerrilheiros."243

Fernando Portela diz, partindo da sua hipótese de que as FF.AA. para lá se dirigiram para prender

alguns estudantes, diz, mas que, no entanto, logo mudaram de opinião acerca das dimensões do núcleo

subversivo a ser combatido:

"Depois, quando se concluiu que os 'paulistas' não eram subversivos comuns

(estudantes e alguns operários), mas uma força militar organizada do PC do B que

conseguira cativar as populações locais, chegaram reforços de todo o país, além de

lanchas da Marinha que vasculhavam o Araguaia, e helicópteros e aviões da Força

Aérea Brasileira, no apoio. A Transamazônica recebeu cerca de dez postos de

patrulhamento e a Belém-Brasília, seis"244.

Enquanto as FF.AA., por sua parte, se davam conta de que o que se passava no Araguaia era algo

de muito mais grave do que imaginaram, os 'paulistas', por sua vez, tomavam todas as providências para

organizar a resistência armada e já falavam aos seus vizinhos com maior desenvoltura sobre seus planos

de resistir com armas em punho contra o ataque:

"... dia 16 à tarde alguns lavradores estiveram lá em casa. Viram que estávamos

num clima de tensão. Falamos:

- Os grileiros estão querendo perseguir a gente. Não vamos querer ser presos, não

vamos ficar em casa, vamos nos defender!

Todo mundo dizia:

- Podem contar conosco! Como é que é? Vocês vão pro mato?

A gente ia falar pro povo agora abertamente, falar o que estava existindo, o que é

que era mesmo."245

243 Glênio Sá, op. cit., pp. 14-5.

244 Op. cit., p. 28.

245 "Entrevista com José Genoíno Neto". In: Op. cit., p. 42.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

130

"... Nós decidimos, junto com o povo, não nos entregarmos ao Exército quando ele

atacou. Decidimos não depor as armas, não ser pego vivo, não ser preso de jeito

nenhum. Resolvemos, junto à população, resistir."246

Quando as FF.AA. atacam a 'base' do Araguaia, a Comissão Militar considerava que "ainda não

se tinha terminado a preparação dos três destacamentos para a luta"247.

A direção do PC do Brasil declara que não considerava o momento propício para o início da luta

armada, mas que não lhe havia restado outra alternativa senão resistir:

"A fase da luta surgiu num momento em que as massas populares estavam

estranguladas, a imprensa censurada, tudo contido pelo fascismo ao lado da euforia

do 'milagre brasileiro'. Na verdade, não esperávamos que a hora chegasse em 1972.

Isso não foi bom, mas nos descobriram, nos atacaram, então não tinha jeito."248

Em entrevista recente, José Genoíno Neto também disse que a Guerrilha só foi desencadeada

naquele instante por causa da ofensiva das tropas governamentais: "Se dependesse dela, a guerrilha

começaria de outra maneira. Agente certamente faria alguma ação fora e se refugiaria na região"249.

Mesmo assim a orientação dada foi a de resistir, muito embora se ajuntasse que todos os

destacamentos deveriam retirar-se para seus refúgios no interior da selva.

Arroyo faz um balanço quantitativo e qualitativo dos efetivos do PC do Brasil presentes na região

no momento em que as FF.AA. atacaram:

"... A situação dos destacamentos era a seguinte: no A havia 22 elementos... no B,

22... no C, 20... Na CM, além dos 4 membros, havia 2 elementos de guarda. Ao todo

havia 69 elementos. Para completar os efetivos, faltavam 13 elementos... Embora

todos tivessem feito progresso no conhecimento do terreno, as deficiências eram ainda

246 "Fala o Guerrilheiro" (Entrevista com José Genoíno Neto). In: Fernando Portela, op. cit., pp. 154-5.

247 Angelo Arroyo, "Relatório...". In: Op. cit., p. 17.

248 "Fala o Líder Comunista" (Entrevista com Haroldo Lima). In: Fernando Portela, op. cit., p. 172.

249 Roberto Benevides, "Playboy entrevista José Genoíno", op. cit., p. 38.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

131

grandes. Muitos companheiros tinham ainda dificuldades em se orientar na

mata e caçavam mal."250

Também procede a um inventário da situação material das três frentes do Araguaia, destacando a

questão das reservas alimentares e do arsenal que se tinha:

"... Todos os destacamentos tinham reservas de alimento, roupas, remédios e munição.

Faltavam, no entanto, coisas indispensáveis. No A e no C não havia reserva de

farinha. As armas com que se contava eram precárias. O Destacamento A tinha 4

fuzís, 4 rífles 44, uma metralhadora fabricada lá mesmo, uma metralhadora INA, 6

espingardas 20 e duas carabinas 22; o Destacamento B tinha 1 fuzil, 1

submetralhadora Royal, 6 rífles 44, uma metralhadora fabricada lá mesmo, uma

espingarda 16 de dois canos, uma espingarda 16 de um só cano, 6 espingardas 20,

uma espingarda 36 e 2 carabinas 22; no C havia 4 fuzís, alguns rífles 44, espingardas

20 e carabinas 22; Na CM, havia 2 espingardas 20. Na maior parte, essas armas

eram antigas e apresentavam defeitos. Todos os combatentes tinham revólveres 38,

com mais de 40 balas, cada."251

A essa observações, Arroyo acrescentava outras de caráter mais geral:

"... Não existia também uma rede de informações e de comunicações. Não existiam

organizações do Partido nas áreas periféricas, nem mesmo nos Estados vizinhos. A

CM e os Destacamentos A e B dispunham de pouco dinheiro."252

Mesmo que o balanço final não fosse dos mais animadores, principalmente do ponto de vista

material, os 'paulistas' decidiram resistir e refugiam-se na selva amazônica, procurando de toda forma

evitar entrar em 'contato' com o inimigo.

Assim, os militantes do PC do Brasil deixavam de ser 'pacíficos' lavradores, caçadores,

pescadores, enfim, camponeses da região do baixo Araguaia. Doravante serão guerrilheiros, dispostos a

250 Idem, ibidem.

251 Idem, ibidem.

252 Idem, ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

132

entregar suas próprias vidas pelo ideal que abraçavam. Não serão mais chamados pelos habitantes da área

de 'paulistas' ou de 'mineiros'. Não. Do momento em que internam-se na mata e fazem dela o seu 'habitat',

para os caboclos e posseiros, os seus 'simpáticos' vizinhos passarão a ser designados como o 'povo da

mata'.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

133

II . 4 - A Guerra na Selva (1972-1975)

II . 4 . 1 - As Campanhas de 'Cerco e Aniquilamento' das Forças Armadas e as Táticas da

Guerrilha

As FF.AA. lançaram contra os guerrilheiros do Araguaia três ofensivas, três campanhas de 'cerco

e aniquilamento', como se diz no jargão militar.

Nas duas primeiras, as FF.AA. utilizaram métodos convencionais e tradicionais no combate à

Guerrilha. Ambas não atingiram os seus objetivos de aniquilar o movimento guerrilheiro.

E como o objetivo principal de um comando guerrilheiro, no seu início, é o de sobreviver. Pode-

se mesmo dizer que, nas duas ocasiões, os guerrilheiros levaram a melhor. Não por que tenham vencido

batalhas, mesmo porque esta não é uma característica própria da guerra de guerrilhas, nem um dos seus

objetivos sobretudo na fase inicial, mas pelo simples fato de terem conseguido sobreviver, de não terem

sucumbido nas duas ferozes ofensivas do inimigo.

"O tempo corre a favor da guerrilha, tanto no campo de batalha, onde o inimigo

dispende diariamente uma fortuna para a perseguir, como na cena político-

econômica...

... a missão das guerrilhas... é destruir a imagem de um governo estável... pôr em

causa a sua eficiência...

O primeiro passo será o começo... golpe em cheio que traz sempre sério desprestígio

ao regime. A sobrevivência da guerrilha durante largo tempo, demonstrando a

incapacidade do exército, faz continuar o processo já iniciado... aumenta o apoio à

guerrilha... à medida que se vai revelando a fraqueza do governo [grifo nosso]"253.

253 Cf. Robert Taber, Teoria e Prática de Guerrilha, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1976, pp. 36-7.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

134

Já a terceira campanha, que se diferenciou bastante das duas outras que a precederam, obteve o

êxito esperado pelo alto comando das FF.AA.

Passaremos agora a tentar desenhar um quadro dos enfrentamentos militares ocorridos no sul do

Pará entre os anos de 1972 e 1975, que se assemelhe ao máximo àquele que se configurou em realidade,

buscando verificar quais os principais eixos táticos e estratégicos utilizados pelos dois lados em cada uma

das fases do enfrentamento militar.

Todos os que até hoje se debruçaram sobre os fatos ocorridos naqueles anos às margens do Rio

Araguaia, são unânimes em pelo menos um aspecto: a periodização da luta.

Neste trabalho, não encontramos nenhuma razão plausível para não adotá-la, pois parece ser

aquela que mais luz lança sobre os eventos que lá ocorreram, possibilitando a sua mais inteligível

compreensão.

A periodização é marcada temporalmente pelas campanhas militares desfechadas pelas FF.AA.,

tendo assim, sistematicamente, três fases de combates cerrados e um interrégno, de 'trégua', entre a

segunda e a terceira campanhas das tropas governamentais.

Vamos, então, à descrição de cada uma delas...

a - A primeira campanha (abril-julho de 72)

A primeira campanha de 'cerco e aniquilamento' realizada pelas FF.AA. começou com a chegada

das tropas oficiais à área no dia 12 de abril de 1972 e terminou com a retirada das mesmas em julho do

mesmo ano, tendo durado, portanto, cerca de quatro meses.

Apesar de incluírmos estes quatros meses todos numa só fase, não queremos com isso dizer que

se tratou de operação homogênea, do ponto de vista tático-militar das FF.AA.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

135

Pelo contrário, se levarmos em conta o que relatou Fernando Portela (Ver supra, p. ),

as tropas do governo foram obrigadas a realizarem uma inflexão tática quando se deram conta, logo no

início de suas incursões na região, de que, diferentemente do que lhes haviam informado os 'especialistas',

o que estava a ocorrer às margens do Araguaia era muito mais amplo que se pensava quando para lá se

dirigiram os primeiros soldados. Tal tomada de consciência no entanto não alteraria o essencial da tática

empregada desde o início da primeira campanha. As mudanças que se efetuariam se dariam mais no

campo da número de efetivos empregados que subiria consideravelmente.

Arroyo, ainda em seu 'Relatório...' comenta os principais eixos de atuação das tropas governistas:

"O Exército atacou simultaneamente os destacamentos A e C. Uns dez dias depois,

atacou o Destacamento B e também o local da CM. As tropas ficaram na

Transamazônica e nas cidades... e nos povoados... Não foi muito grande o número de

soldados que entravam na área onde se achavam os PA [pontos de apoio]... ocupou

algumas fazendas e castanhais... Utilizou aviões, helicópteros e... barcos da Marinha.

As tropas não chegaram a entrar na mata, movimentaram-se pelas estradas. Ficavam

emboscadas nas proximidades de casas de moradores, nas roças, capoeiras, grotas e

algumas estradas... Começaram a se apoiar nos bate-paus... e recrutar muitos deles

para pô-los a seu serviço... Todos os nossos locais foram queimados... inclusive os

paióis de milho, arroz e depósitos de castanha. Cortaram todas as árvores frutíferas...

O Exército não possuía informações completas sobre nós. Alguns PA só foram

queimados uns 15 dias após o início da luta... além da farda comum, usou também

roupa azul... camuflada e trajes civís. Suas patrulhas eram de 10 elementos"254.

Em relação à população local, segundo Arroyo, o procedimento das FF.AA. foi o seguinte:

"... procurou apresentar os guerrilheiros como marginais, terroristas, assaltantes de

bancos, maconheiros, etc. Depois passou a dizer que éramos estrangeiros: russos,

cubanos, alemães. Prendeu muitos elementos de massa, os que considerava mais

amigos nossos, tanto nas roças como nas cidades vizinhas. Depois de alguns dias,

esses elementos foram soltos... Forçaram muitos moradores a servir de guias...

254 Angelo Arroyo, "Relatório Sobre a Luta no Araguaia".In: op. cit., p. 18.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

136

Também algumas roças e casa da massa foram queimadas. As perseguições

estenderam-se aos padres. Alguns foram presos e depois soltos."255

Ainda sobre a tática usada pelas FF.AA., todas as evidências apontam para o fato de que, no

início, talvez por conta da pouca importância que se tinha dado aos 'subversivos' estabelecidos na região

amazônica, foram utilizados soldados não-profissionais, ou seja, recrutas ou conscritos, jovens de 18/19

anos que cumpriam o serviço militar obrigatório. Sobre o tema, F. Portela narra um episódio que diz ser

"um exemplo do primeiro erro das forças do governo... jogar recrutas de seis meses

de quartel dentro da selva inóspita, habitada por um contingente de 63 guerrilheiros,

treinados dentro da própria selva, alguns com seis anos de preparação militar rígida,

espartana, e um espírito de decisão surpreendente. Além disso, muito bem orientados

por militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B), homens com formação

militar no exterior, teoricamente comparáveis a brilhantes oficiais brasileiros"256.

O jornalista dizendo que os recrutas foram verdadeiros 'bois de piranha'257 utilizados pelo

Exército, reconta uma história que se sucedeu com um jagunço, o 'China', que habitava na região quando

chegaram os primeiros soldados que o forçaram a servir de guia ou bate-pau:

" - A culpa foi minha, diz ele [o China]. Quando o Exército entrou... procurando

terroristas, eu sabia que só podia ser os 'paulistas' como 'seu' Paulo... que eu

conhecia muito de vista, eu caçava por ali... Esse 'seu' Paulo e os amigos e amigas

dele... a gente via que era de fora... Aí eu caí na besteira de contar que conhecia... e o

sargento me disse: «Olha 'seu' China, quem conhece terrorista é terrorista também, e

só tem um jeito de provar que não é terrorista». Aí eu senti a perdição. . «E como é

que é que eu provo, 'seu' sargento?». Ele disse: «Me leva até lá que eu vou prender

esses caras». Eu fiquei até com dó do homem, coitado... porque aquele pessoal do

255 Idem, ibidem.

256 Op. cit., p. 25.

257 Expressão popular que significa usar algo ou alguém como ísca, como chamariz. No caso concreto, significa usar de má

fé soldados mal treinados e despreparados para operações violentas e em ambiente totalmente adverso para, através deles,

sentir a dimensão real do que as FF.AA. teriam que enfrentar.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

137

mato... não era brincadeira não, eles treinavam muito tiro, caçavam melhor

do que eu, essa Dina aí era a que atirava melhor de todos eles, bonitona, e foi ela

mesmo que quase matou nós todos, aí eu disse: «Sargento, não dá pra prender os

homens, não». Ele: «Deixa comigo e me leva lá, que esses terroristas só são bons em

São Paulo, aqui a gente torce o pescoço deles». Eu não tinha jeito, né? Fui guiar os

homens... mas quando eu vi o soldado cair duro, sabe, eu pensei foi só em mim mesmo

e resolvi cair fora daquela guerra, porque se eu não morresse naquele dia, morria no

dia seguinte, aquilo ia durar muito tempo, os soldados não entendiam nadinha de

mato..."258

Apesar de nos fazer rir, esta história contada pelo jagunço 'China' atesta a irresponsabilidade do

comando das FF.AA. ao envolver soldados 'involuntários' numa tarefa de combate em selva. Mas,

vivíamos então a época do 'terrorismo de Estado', e todos, principalmente os soldados, recrutas ou

profissionais, tinham que se envolver no combate ao 'terrorismo', na luta para 'salvar o Brasil da ameaça

do comunismo internacional'. Então, tudo se justificava em nome do 'Brasil grande', slogan daqueles

tempos. E quem se negasse, fosse pelo pretexto que fosse, passava a ser suspeito de 'atitude negativa' em

relação às FF.AA.

Não se têm até hoje as estatísticas de quantos recrutas teriam morrido nessa primeira ofensiva das

FF.AA. Sobre o assunto, temos, tão somente, alguns relatos:

"... Um padre da localidade de Porto Nacional, na região, vê um caminhão frigorífico

num posto de gasolina. Soldados armados em volta do caminhão. Ele vai até lá, saber

o que é. Quando recebe a ordem de dispersar, identifica-se.

- Ah, o senhor é padre? - diz um soldado. Então venha rezar aqui...

O padre quase desmaia: o caminhão frigorífico está cheio de soldados mortos."259

" - Quando o Exército entrou na mata foi mal sucedido. Fiquei com pena dos

rapazes do Exército. Foram mortos muitos. Caminhões saíram cheios de soldados

mortos"260.

258 Op. cit., pp. 25-6.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

138

"... o número exato das baixas do Exército permanece em repouso nos arquivos

secretos das Forças Armadas. Segundo E. (Por motivos de segurança... VEJA se vê

obrigada a omitir... nomes), um técnico maranhense que chegou a Xambioá... quartel-

general das tropas que operaram na zona da guerrilha em princípios de 1972, essas

baixas não foram poucas... «No começo os soldados apanharam muito», lembrou E. a

VEJA na semana passada. «Os corpos vinham nos helicópteros que desciam na base

aérea e eram colocados em carros frigoríficos». Cerca de um mês depois da chegada

das tropas, E. ouviria um comentário de um soldado: «Com esse, são onze». Mais

tarde, a contagem subiria para 32."261

"Os primeiros meses foram difíceis para o Exército. «As tropas entraram na mata

pensando que não haveria problemas, mas só num dia, perto do Brejo Grande,

morreram dezesseis soldados», disse a VEJA um integrante do 51º Batalhão de

Infantaria de Selva (BIS)".262

Além dos problemas de ordem técnica, isto é, relativos à preparação, ou à falta dela, um oficial

que não se identificou, entrevistado por F. Portela, acrescentaria:

" - Você pensa que o problema dos recrutas era somente o da inexperiência, de não

conhecer a mata, essas coisas? Ou do medo dos guerrilheiros? Que nada: além de ter

medo dos guerrilheiros, eles, coitados, que vinham de famílias humildes dali do Norte

mesmo, tinham medo de Saci, Mãe de Fogo, Lobisomem263 [grifos nossos]..."264

As FF.AA. cometiam erros e mais erros, também em outros domínios, sendo que o fundamental

de todos eles parece ter sido o de subestimar os guerrilheiros do Araguaia e de cometer abusos e

259 Op. cit., p. 52.

260 Frei Gil Vila Nova, "Entrevista com Frei Gil". In: João Amazonas e alii, op. cit., p. 14.

261 VVAA, "As Guerras Secretas", Revista VEJA, SP, Ed. Abril, 06/09/1978, p. 54.

262 Idem, p. 56.

263 Entidades fantásticas que, segundo as crenças populares, habitariam as florestas, protegendo alguns e atacando outros.

264 Op. cit., p. 58.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

139

violências contra a população local, de quem se suspeitava fortemente simpatizar e ajudar o

'povo da mata'.

Nem mesmo o prefeito de Xambioá, segundo nos conta o seguinte relato aparecido num

insuspeito periódico de circulação nacional, teria escapado do tratamento bestial das FF.AA.:

"Era natural, assim, que Xambioá acabasse rapidamente transformada num Forte

Militar. Certa feita, um oficial do Exército solicitou ao prefeito João Saraiva, do

MDB265, que providenciasse um trator para melhorar as condições da pista de

aviação. Ao retrucar que qualquer trator atolaria no terreno, lamacento com as

chuvas de inverno, Saraiva ouviu a ameaça: «Se não arranjar o trator, vou fazer um

avião bater na sua bunda». Depois de alguns incidentes desse gênero, Saraiva foi

preso e encaminhado a Araguaína, de onde só voltaria graças à mediação de um

deputado - e já filiado à ARENA."266

A guerrilha, por outro lado, acumulava capital político e militar, que se traduzia na admiração que

todo o povo daquelas paragens àqueles que tinham a coragem, ou melhor, a audácia de enfrentar de,

igual para igual, as todo-poderosas FF.AA. muito melhor equipadas e em incomparável maior número.

Assistiam e ouviam histórias e 'estórias' sobre a valentia e ousadia dos seus ex-vizinhos e já nesta época

começam a circular as primeiras lendas acerca de alguns guerrilheiros, notadamente Dina e Osvaldo, que

seriam, segundo revelações dos espíritos nas sessões de 'Terêcô', imortais, teriam o corpo fechado267.

Não era para menos, enquanto o Exército, que se auto-proclamava o salvador daquelas

populações da influência malsã dos 'terroristas', maltratava e humilhava diariamente pais de família,

265 Sigla do Movimento Democrático Brasileiro, então o único partido legalmente autorizado a existir, além do partido

situacionista, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Muito embora, no princípio, tenha sido um partido extremamente

moderado, era assim mesmo objeto de perseguições. Mais tarde, se transformará no principal partido de oposição e elegerá

em 1985, com apoio da maior parte do movimento popular organizado e de partidos políticos de oposição, clandestinos ou

não, Tancredo Neves, presidente da República, marcando, assim, o fim de mais de 20 anos de regime militar.

266 "As Guerras Secretas", op. cit., pp. 55-6.

267 Expressão de uso corrente nos rituais de origem africana. Significa ter o corpo invulnerável, inatingível por qualquer

objeto material (balas, por exemplo) ou pensamento maldoso, venha de onde vier.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

140

suspeitos de serem colaboradores da guerrilha, os guerrilheiros, quando apareciam, explicavam porque

lutavam, pediam ajuda, quase sempre gêneros alimentícios, não tomavam nada da população. Além disso,

aqueles que agora se acusava de serem terroristas haviam convivido com aquele povo pobre durante

cerca de seis anos, em tudo lhe servindo, fazendo-lhes prova de amizade e respeito.

"... na cadeia de Xambioá... o pessoal 'especializado' chutava as pessoas, dava

socos, choques elétricos nos pés, testículos, ouvidos. Viajantes, hippies, vendedores,

comerciantes dos lugarejos, todos gritavam por inocência, nem mesmo entendiam o

que estava acontecendo, e muitos não queriam acreditar que os 'paulistas', que eles

conheciam tão bem e de quem eram tão amigos, fossem tudo aquilo que os 'pessoal

especializado' dizia... que eram terroristas, assaltantes de banco no Sul... defloradores

de moças, uns eram amulherados e todas as mulheres prostitutas em São Paulo. Todo

mundo apanhou mas ninguém acreditou.

...O povo ficou revoltadíssimo"268.

A Igreja Católica também foi vítima das agressões indiscriminadas praticadas por agentes das

FF.AA. Frei Gil Vila Nova, um dos pioneiros no trabalhos de catequese junto aos índios Suruí, ganhou a

antipatia das tropas do Exército porque se opôs enquanto pôde à utilização dos indígenas como guias

para caçar os guerrilheiros. Fernando Portela diz que certa feita ele foi obrigado a fugir de uma área em

que os agentes de segurança o procuravam vestido com hábitos de freira269.

Em outro incidente, o desfecho não foi tão favorável aos membros do clero católico. No dia 30

de maio de 1972, a população de um povoado chamado Palestina assiste, impotente e revoltada, à prisão

de um padre e uma freira, tudo porque um tenente, chamado Alfredo, convenceu-se de que se tratavam

de dois líderes da guerrilha. A irmã Maria das Graças seria uma das guerrilheiras. O padre francês,

Roberto Valicourt é preso pois os soldados procuravam um padre que seria o comandante guerrilheiro,

Paulo Rodrigues. Ocorre que o padre que eles procuravam era igualmente francês, mas outro, o padre

268 Fernando Portela, op. cit., pp. 47-8.

269 Op. cit., p. 53.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

141

Humberto Rialland. Mesmo quando ele se identificou, o tenente não se importou e o levou

assim mesmo. Ambos são presos e conduzidos a um lugar ermo, uma casa vazia onde se segue o seguinte

interrogatório:

"... O tenente pergunta enquanto bate:

- Por que tu tiraste os santos da igreja?

Socos no peito. O padre, muito magro, caiu.

- Por que tu andas sem batina?

Chute no estômago.

- Por que tu fazes reunião para falar mal do governo?

Os dedos do tenente enfiados nos olhos do padre.

- Por que tu falas mal do INCRA270?

O padre é pego pelos cabelos e o tenente martela a sua cabeça de encontro ao chão

e à parede.

- Onde está o padre Humberto?

Pontapé nas costas.

- O que tu viestes fazer no Brasil?

Aí o padre respondeu: «Vim pregar o evangelho de Jesus Cristo».

- Ah, não me fale de Jesus Cristo... Onde está o padre Humberto?

E o padre, já muito machucado: : «Deve estar em Itamirim, preparando os festejos».

- Não minta, o padre Humberto fugiu!

O padre ficou no chão quase sem sentidos.

Quanto à irmã... as torturas por que passou são impublicáveis...

Até hoje, segundo os religiosos locais, a irmã... está «psicológicamente

imprestável».

O padre e a irmã ainda foram amarrados com as mãos nas costas e receberam

cordas em volta do pescoço. Saíram de jeep... Todo o povo assistiu ao deplorável

desfile, em carro aberto"271.

270 Sigla do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

271 Idem, pp. 53-4.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

142

Assim que soube do que estava a ocorrer com os religiosos, a mais alta autoridade eclesiástica da

região, o bispo de Marabá, imediatamente dirigiu-se até onde eles estavam presos, mas mesmo ele, foi

vítima do tratamento animalesco dos oficiais das FF.AA.:

"O bispo Estevão Cardoso Avelar chegou a ser detido na estrada, por uma barreira

militar, por cinco horas. Eletentava chegar aos dois religiosos de qualquer maneira...

Num outro município... chegou até um major, chamado de major Otto [que]

amabilíssimo, pediu desculpas... Mas o bispo, ele sim, estava com os nervos abalados.

Sobretudo porque, antes, ouvira a acusação de que o padre francês Roberto de

Valicourt lia o «jornal comunista Le Monde» e também ouvira do próprio tenente

Alfredo, que cepois de muita relutância o enviara ao major Otto:

- O senhor vai ser acompanhado por um pelotão.

E dirigindo-se ao sargento chefe do pelotão:

- Leve esses camaradas (o bispo estava acompanhado) para Araguatins e, se eles

criarem caso na estrada, passe fogo!"272.

Até mesmo em São Felix do Araguaia, pequeno povoado do Estado do Mato Grosso, muito

distante do 'teatro de operações' da guerrilha do Araguaia, e, ao que consta, jamais freqüentado pelos

'paulistas', as FF.AA. atacaram membros da Igraja Católica. O bispo Dom Pedro Casaldáliga,

considerado um 'progressista' dentro da Igreja, e, portanto, suspeito em potencial, teve toda sua área de

atuação vasculhada pelas tropas federais, a população local foi igualmente intimidada, ele é quem se

recorda da época:

"A prelazia de São Felix, o povo da região, e mais concretamente a equipe

pastoral... sofreu realmente a repressão... Teve o caso das famosas emissoras de rádio

clandestinas, que eles nos acusavam de possuir. A polícia procurou-as, por duas

vezes, até dentro da caixa d'água. Todas essas operações procuravam ligar [-nos]...

às guerrilhas do Araguaia. E apanhamos muito por causa disso. Todo o povo da

região, logicamente, pegou mais antipatia à repressão. Posteriormente o povo fez

272 Idem, p. 54.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

143

outro tipo de comentário: «Então, se os terroristas são isso que eles dizem,

se comunista é isso que eles dizem, só pode ser gente boa»"273.

Desta forma, a primeira campanha das FF.AA. de 'cerco e aniquilamento' se esvaía. É ainda o

jornalista Fernando Portela quem diz que data desta época, fins de julho de 1972, um início de divisão no

seio do seu Alto Comando. Uma divisão a respeito de como deveria ser levada a luta anti-guerrilheira no

sul do Pará:

"... Em Brasília e Rio já se podiam perceber duas correntes de estratégicos: uma

delas, ainda em minoria, mas recebendo adesões, defendia um novo plano de combate

às guerrilhas, usando o mesmo recurso dos guerrilheiros: ganhar o povo; penetrar

sutilmente na região, através de espiões; evitar, também, muita pancada. Uma outra,

maioria, aceitava a tese de incrementar ao máximo as atividades assistenciais...

aceitava o envio de espiões, mas era favorável a um abafa final, um outro cerco e

aniquilamento, usando desta vez, tropas descaracterizadas274 em larga escala, e

soldados profissionais. Nada de recrutas."275

Durante esses quase quatro meses, o comando geral dos guerrilheiros, a Comissão Militar (CM),

orienta os destacamentos a "1) recuar para as áreas de refúgio; 2) buscar contato com as massas; e, 3)

tentar realizar ações de fustigamento e emboscada do inimigo"276. A CM também faz publicar e circular

entre a população o 'Comunicado nº 1', no qual se explica o porquê da resistência armada em curso,

proclama-se a fundação das Forças Guerrilheiras do Araguaia (FORGA), conclama o povo a apoiar os

guerrilheiros e a resistir aos ataques das FF.AA. Redige-se também a 'Carta a um Deputado Federal',

que é enviada ao sul para divulgação nos grandes centros urbanos pelos organismos do partido. O

273 "História da Guerrilha do Araguaia", jornal Movimento, SP, nº 159, 17/07/1978, p. 10.

274 Tropas federais que não se identificam, que não portam uniformes, não cortam os cabelos ou fazem a barba como é a

regra nas casernas, nem carregam consigo quaisquer objetos que as identifiquem como tal. Normalmente, são componentes

das forças de elite das FF.AA.

275 Op. cit., p. 57.

276 Angelo Arroyo, op. cit., p. 18.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

144

Destacamento A (Faveira) envia uma carta a Dom Estevam Cardoso de Avelar, intitulada 'Carta de

Quatro Guerrilheiros ao Bispo de Marabá', na qual expõe os motivos da guerrilha e se solidariza com os

religiosos agredidos covardemente pelos soldados do Exército (Ver íntegra destes documentos nos

Anexos).

No tocante aos destacamentos, o balanço é o seguinte:

"O Destacamento A permaneceu no refúgio mais de um mês. Enfrentou dificuldades

de abastecimento. Em junho voltou-se para a massa e foi bem recebido. No contato

com as massas resolveu o problema da alimentação. Fez-se algumas tentativas de...

fusqtigamento ou emboscada, mas não houve nenhuma ação militar...

O Destacamento B permaneceu mais tempo do que devia no refúgio. Somente em

fins de junho começou a voltar-se para a massa, sendo também bem recebido. Houve

o choque militar já mencionado [em trecho anterior: "Em fins de abril, dois

elementos do B defrontaram-se com um grupo do Exército. Houve troca de tiros. Um

sargento foi morto e um soldado ferido"].

O Destacamento C apresentou alguns problemas mais sérios. Em abril... havia já

abandonado a área do rio Caiano, onde atuara, e se concentrara numa área de mais

mata, mas onde o pessoal era recente, não conhecia bem a região... alguns elementos

mostraram vacilação. Esse destacamento perdeu contato com a CM até janeiro de 73.

Ao contrário do A e do B, que mantiveram os três grupos de sua composição sob

controle direto do comando, no C o destacamento se dispersou em três grupos, indo

um deles para a antiga região do Caiano. Todos procuraram contatos com a massa.

Houve vários choques militares"277.

A guerrilheira 'Alice', na verdade Criméia, sobrevivente da Guerrilha do Araguaia, participou de

toda a primeira campanha e relata suas impressões:

"... apesar de ter participado apenas da 1ª campanha, deu pra sentir que não seria

fácil. O inimigo, forte e bem armado, impôs-nos um violento cerco. Passamos fome,

frio, vivemos ao relento, encharcados até os ossos, muitas vezes tivemos que comer

277 Idem, ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

145

carne crua porque o inimigo presente não nos permitia acender o fogo...

meu destacamento, o A, não teve confrontos durante a 1ª campanha. Mas, junto com

um grupo guerrilheiro, fomos cercados... Isto durou uns 15 dias. Neste período,

evitamos contato com a população para impedir que pudesse haver alguma delação

ou informação a nosso respeito. Foram dias muito difíceis. O moral porém manteve-

se bem elevado"278.

Glênio também narra o que se passou com o seu destacamento, o B, durante o mesmo período:

"Mais de uma semana depois da nossa retirada para a mata, chegou uma tropa do

Exército à nossa morada principal. Observamos a sua aproximação. Eram cerca de

30 soldados. Queimaram as duas casas... Mas não chegaram a penetrar na floresta.

Os nossos dirigentes decidiram que iríamos para uma área de refúgio mais distante,

dentro da selva... Tínhamos todo o cuidado com a fumaça e o fogo para não serem

vistos por aviões e helicópteros. A ordem era evitar o contato com o inimigo. Nesse

local, passamos uns dois meses. Tivemos problemas com alimentação... de saúde...

diarréia e malária...

... A nossa moral, apesar das dificuldades, era muito elevada"279.

Enquanto tudo isso se passava nas matas amazônicas, a direção central do PC do Brasil, tentava

de todas as maneiras restabelecer contatos com os guerrilheiros. Tal ligação, até então bem estreita,

deixara de existir a partir do ataque das FF.AA.

O dirigente comunista João Amazonas, então encarregado de cumprir o papel de elo de ligação

entre as frentes guerrilheiras e o partido, havia ido a uma reunião do Comitê Central, comemorativa do

cinquentenário de existência do partido, no dia 25 de março e, quando voltava, uma outra dirigente do

partido, Elza Monnerat, lhe advertira, através de sinais, que fosse embora, pois o Exército havia cercado

todas as proximidades do baixo Araguaia. Ambos, por um golpe de sorte, sobreviveriam, impedidos que

se encontraram de se integrarem às FORGA. Sobre o ocorrido, relembram E. Monnerat e J. Amazonas:

278 Criméia Alice Schmidt de Almeida, "Entrevista com Guerrilheiros Hoje". In: Op. cit., p. 44.

279 Op. cit., pp. 15-6.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

146

"No final de fevereiro de 1972, saímos... João Amazonas e eu, com destino a São

Paulo a fim de participar da reunião do Comitê Central...

Após a reunião... no dia 11 de abril... tomei o ônibus para Marabá. Esse ônibus...

foi dando defeito... de modo que chegamos a Tocantinópolis, onde pernoitamos. No

dia seguinte, continuamos...

Logo depois de atravessarmos o rio Araguaia, dois soldados do Exército... entraram

no ônibus, examinaram os documentos do motorista, olharam atentamente para todos

os passageiros... retiraram um rapaz e deram ordem para que o coletivo prosseguisse.

Pouco depois... justamente... onde eu ia descer, deparei com uma barreira... na

Transamazônica... Entrou um homem vestido como camponês e disse que havia na

região um grupo de terroristas... Os passageiros tiveram de apresentar documentos...

Nada encontrando de suspeito o tal 'camponês' determinou que o coletivo seguisse...

chegando a Marabá... [Elza faz algumas viagens de ônibus com o intuito de não voltar

pelo mesmo caminho e retornar a Anápolis para avisar Amazonas]

Se, em vez de sair... no dia 11... eu o tivesse feito três dias antes, teria... participado

da guerrilha"280.

"... eu, Grabois e Arroyo nos revezávamos... Em fins de novembro... Grabois tinha

feito essa viagem, retornando em principios de janeiro... Havíamos elaborado na

selva o documento 'Cinqüenta Anos de Luta"... Cabia a mim tomar parte na reunião

do Comitê Central... Deixei assim o Araguaia... Devíamos voltar precisamente no dia

14 de abril. A Elza viajou antes... e comunicaria o meu regresso para uns 8 dias

depois, devido a... grave infecção bucal. Saí de São Paulo na data combinada. Ao

chegar a Anápolis, comprei imediatamente passagem para o ônibus que sairia às

19:30h... Já tinha deixado a rodoviária quando me lembrei de comprar uns folhetos...

Com surpresa vi, casualmente, que a Elza ali se encontrava... se o ataque tivesse sido

em princípios de janeiro, quem ficaria de fora seria o Grabois"281.

280 Elza Monnerat, "Entrevista com Guerrilheiros, Hoje". In: Op. cit., pp. 43-4.

281 João Amazonas, "Entrevista com João Amazonas". In: Op. cit., p. 10.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

147

O Comitê Central perderia o contato com a CM. Durante este período, reinou a

expectativa na direção do partido em torno da decisão que seria tomada pelos militantes estabelecidos na

região do Araguaia.

Ponto ainda não esclarecido é quando o contato da CM com o Comitê Central do PC do Brasil se

restabeleceu. Sabe-se que 'Alice', grávida de três meses, deixara a região no final da primeira campanha,

com destino a São Paulo. Esta pode ter sido a via do reencontro. Outra possibilidade é a de que o CC

tenha sabido da decisão de resistir através de um emissário da CM. Outra hipótese ainda, embora pouco

provável, é a de que a direção central do PC do B tenha sabido através das páginas do conservador jornal

O Estado de São Paulo que em setembro de 1972, inusitada e inesperadamente, furando o forte bloqueio

imposto pela censura, publicou grande matéria sobre a guerrilha, a única de que se terá notícia até o fim

das operações militares na área em 1975282.

O fato é que a partir do momento em que o CC soube da decisão de deflagrar a guerrilha, tratou-

se de, nas grandes cidades, tentar dar publicidade ao que acontecia no sul do Pará. Divulgou-se então o

'Comunicado nº 1', a 'Carta a um Deputado Federal', ambos redigidos pela CM.

Já entre os guerrilheiros, desde o seu sumiço na selva e transformação em 'povo da mata', a

expectativa do reencontro com a população local era grande como nos conta Criméia:

"... A minha maior alegria na guerrilha foi... a primeira visita aos moradores...

Constituíamos grupos armados de propaganda. Iamos esclarecer a população sobre o

ocorrido. Esperávamos encontrar uma população desconfiada e arredia. Mesmo

tendo sido nossos amigos antes... poderiam estar culpando-nos pela presença das

Forças Armadas... pela repressão e violência... Por erro... chegamos a uma casa de

moradores desconhecidos. E foi com surpresa que fomos recebidos como velhos

amigos. Deram-nos o pouco do que tinham... A princípio, desconfiamos que a

acolhida amistosa fosse movida pelo medo, já que estávamos armados. No entanto...

uma jovem com um bebê, chamou-me... perguntou-me: - Eu posso entrar para a

guerrilha?... Nas outras casas... foi sempre igual. Éramos recebidos com muito

282 "Em Xambioá, a Luta é Contra Guerrilheiros e Atraso". In: Jornal O Estado de São Paulo, 24/09/1972.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

148

carinho e vários pediam-nos para entrar [para a guerrilha]... particularmente os mais

jovens."283

No final de julho, as FF.AA. se retiram da região, mantendo somente algumas patrulhas

espalhadas em pontos estratégicos. A campanha de cerco e aniquilamento deflagrada em abril havia

fracassado, os guerrilheiros eram recebidos como heróis pela população local.

b - A segunda campanha (setembro-outubro de 72)

Com a retirada das tropas do Exército, Marinha e Aeronáutica, os guerrilheiros se sentiram - e

foram assim considerados pelo povo - como os grandes vitoriosos do confronto. As baixas entre os

combatentes da FORGA teriam sido nove, entre presos e mortos em combates284. Os guerrilheiros

estavam mais experientes do ponto de vista militar, tinham passado pelo batismo de fogo da guerra. O

governo tinha perdido credibilidade, era o 'vilão' da história, o agressor, tinha perdido não só

militarmente, mas também politicamente o primeiro 'round' da luta.

"Todo o mês de agosto foi um mês de festas nos povoados... apesar da permanência

de uns 500 militares em bolsões espalhados na selva e nas bases... E esses militares

ficavam sempre à distância dos lugarejos onde os guerrilheiros festejavam a 'vitória',

a 'expulsão dos tiranos do povo'... Afinal, não só os 'paulistas', mas todos haviam sido

atacados... dizia [-se] que Deus estava do lado dos... 'homens da mata'. Os soldados

até bateram nos padres e nas freiras...

283 Op. cit., pp. 44-5.

284 "Transcrição Parcial das Anotações de Aldo Arantes na Reunião do Comitê Central de Dezembro de 1976". In: Pedro

Estevam da Rocha Pomar, São Paulo, 1976: Massacre na Lapa, SP, Busca Vida, 1987, pp. 165-9. Citamos este documento,

muito embora, ao que se saiba, sua autenticidade não tenha sido confirmada nem negada pelo seu suposto autor, Aldo

Arantes. Arroyo teria, à oportunidade, feito o seguinte balanço dos efetivos das FORGA ao fim da primeira campanha: "-

mortes 4, prisões 5" (Op. cit., p. 166).

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

149

Os padres, assim como os soldados e a PM (ficou assustadíssima com a

retirada das tropas), evitavam qualquer encontro... com os guerrilheiros"285.

Embora essa retirada das tropas governistas não tenha durado mais que um mês, o de agosto, as

FORGA bem souberam aproveitar este curto período para realizarem ampla divulgação dos seus

propósitos e dos motivos de estarem combatendo os soldados das FF.AA. A politização, que não pudera

ser feita anteriormente, de forma aberta, era agora feita às escâncaras:

"Estes, tranqüilamente, começaram a explicar os 'motivos da resistência', disseram

que o Exército voltaria, que ninguém duvidasse e iniciaram o desenvolvimento [sic]

do Programa dos 27 pontos... começaram a organizar os núcleos da ULDP...

chegaram a organizar 20... onde discutiam:

a) o programa de reivindicações;

b) a política local (jagunços, bate-paus e guias do Exército estavam definitivamente

condenados);

c) os problemas da guerrilha... como as populações poderiam apoiar... começam as

primeiras adesões"286.

Em setembro de 1972, as FF.AA. retornam ao 'teatro de operações'. Segundo a já citada

reportagem do jornal O Estado de São Paulo, um grande contingente estava mobilizado, e o jornal ainda

listava as unidades militares que estariam engajadas nessa segunda campanha de cerco e aniquilamento.

Ironicamente, o 'Diário da Guerrilha do Araguaia', do Comando das FORGA, se apoia na lista

fornecida pelo jornal direitista paulista, citando a reportagem, reproduzindo-a:

"... São elas: Batalhão de Guarda Presidencial; 8º Grupo de Artilharia Antiaérea;

Regimento de Cavalaria de Guarda; Polícia do Exército de Brasília; 10º Batalhão de

Caçadores de Goiânia; 6º Batalhão de Caçadores de Ipameri; e, 36º Batalhão de

Infantaria de Uberlândia. Além destas, há também forças do Comando Militar da

Amazônia e da 12ª Região Militar. Afirma a reportagem que da Aeronáutica há

285 Fernando Portela, op. cit., p. 58.

286 Idem, pp. 58-9.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

150

unidades da 1ª Zona Aérea de Belém; da 6ª Zona Aérea de Brasília; e da 3ª Zona

Aérea do Rio de Janeiro. Da Marinha, segundo ainda O Estado de São Paulo, toma

parte uma tropa do grupamento de fuzileiros navais de Brasília. Agora - diziam os

generais - seria para valer; as Forças Armadas não admitiriam desafios"287.

Tal publicação geraria ódio dos agentes das FF.AA. contra o tradicionalíssimo jornal da família

Mesquita, um dos mais reacionários e direitistas do País, um dos apoiadores de primeira hora do golpe

militar de 1964, como nos conta o jornalista Fernando Portela:

"No dia 24 de setembro de 1972, o jornal O Estado de São Paulo cairia no

desagrado do governo Médici... Pela primeira vez o assunto guerrilha chega ao leitor

brasileiro com informações precisas. Mas, se o governo não estava satisfeito, os

oficiais, na região, chegariam a rompantes de raiva contra o jornal e sua reportagem.

O 'pessoal especializado', com o jornal aberto no campo de concentração (o campo

dos buracos) de Xambioá, fazia promessas do tipo:

- Os Mesquitas ainda vão ser pendurados num pau-de-arara por causa disso... a

gente ainda pega eles..."288

A razão disso parece se localizar na inquietude com a persistência da guerrilha que, apesar do

emprego de incontáveis contingentes militares e do mais moderno material bélico, não se extinguia. Tal

fato começava a impacientar importantes figuras das FF.AA. e mesmo a arranhar a imagem de

'estabilidade total e milagre econômico' que o governo do general-presidente Médici zelosamente vendia

no exterior. Embaixadas estrangeiras começavam a enviar relatórios a seus respectivos governos nos

quais falavam de 'guerra civil'289.

287 Op. cit., p. 44.

288 Op. cit., p. 68.

289 Cf. Fernando Portela, op. cit., p. 70.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

151

Um oficial, entrevistado por F. Portela, reconheceria que "se na época houvesse um

surto guerrilheiro, uma guerrilha espalhada pelo território nacional, o governo não teria condições de

segurar o Brasil todo."290

Arroyo avalia assim a movimentação das FF.AA. nessa segunda campanha:

"... empregaram de 8 a 10 mil soldados... eram em geral... recrutas e de vários

Estados. Distribuíam-se por várias bases implantadas na área... fazendas, sedes de

castanhais ou mesmo roças. Ocuparam as estradas e abriram algumas picadas na

mata. Chegaram a entrar na mata, guiados por um morador local (Osmar) na área do

B. Havia pouca tropa especializada. A moral dos soldados era baixa... ansiosos para

regressar. Armaram muitas emboscadas... algumas armadilhas. Utilizaram

helicópteros e aviões. Soltaram três bombas na mata... Recrutaram bate-paus locais e

pagavam... por dia... Distribuiu boletins... concitando os guerrilheiros a se

entregarem... também... carta do 'Geraldo' [José Genoíno Neto] ao Glênio (do B)...

pedindo a ele para se entregar... Ao mesmo tempo... desenvolveram uma ação

paralela junto às massas... a operação ACISO... também uma operação com o

INCRA... anunciava que iria distribuir terra, legalizar as posses. A campanha militar

manteve-se até outubro."291

Arroyo soube resumir bem a tática das FF.AA. empregadas nesta segunda campanha, salvo aquilo

que nem ele nem a CM observara, ou aquilo a que não deram a devida atenção, à penetração de espiões

das FF.AA. na área, que mais tarde tantos prejuízos causariam à organização guerrilheira, como por

exemplo

"... a vinda, para o lugarejo de São Domingos, do feliz Nonato, sempre brincalhão,

boêmio, amigado com uma das prostitutas da região, muito querido naquele

submundo."292

290 Idem, p. 116.

291 Angelo Arroyo, op. cit., p. 20.

292 Fernando Portela, op. cit., p. 59.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

152

Prova de que o Exército adotara a medida de infiltrar na região conflagrada uma quantidade não

desprezível de agentes disfarçados é o seguinte depoimento:

"Ruimar Vieira, soldado que servia na 3ª Brigada de Brasília no ano de 1973 e que

foi motorista do General Antônio Bandeira... em Xambioá... conta que... aos soldados

que serviam em Brasília, geralmente os que não tinham família, eram oferecidos pelo

Exército terras, caminhões e implementos agrícolas para se instalarem naquela

região como lavradores e colaborar com as Forças Armadas."293

As FF.AA. começavam a colocar em funcionamento uma rede de espiões, muito bem treinados.

Eles entravam na região, pouco a pouco, como lavradores, fazendeiros, etc. Era uma manobra que se

dava paralelamente ao desenvolvimento da segunda campanha e prosseguiria até o desencadeamento

pelas FF.AA. de sua ofensiva final, a terceira e última campanha em outubro de 1973.

A operação citada por Arroyo, ACISO, sigla de Ação Cívico-Social, era uma tática anti-guerrilha

que as forças armadas nacionais 'exportaram' (sic) de exércitos de países que haviam enfrentado guerra

de guerrilhas. Semelhantes operações foram utilizadas amplamente depois do início dos anos sessenta,

sobretudo na Argélia, Vietnã e rebeliões anti-coloniais no continente africano. Consistia em as FF.AA.,

elas mesmas, promoverem ações de assistência social e operações de guerra psicológica, com o objetivo

nítido de ganhar ou pelo menos neutralizar a população em relação ao confronto militar que ocorria,

afastá-la da simpatia que quase naturalmente a ligava aos guerrilheiros.

Por toda a região, pela primeira vez, se organizou campanhas governamentais de distribuição

gratuita de remédios, consultas médico-odontológicas, campanhas de vacinação, transferência de doentes

para atendimento em hospitais militares nos grandes centros, etc. As cidades e povoados esquecidos

daquela região receberam então uma atenção nunca antes a eles dispensada. A reportagem do jornal O

Estado de São Paulo, hoje fato marcante na história do jornalismo brasileiro, citava a reação de um

293 "História da Guerrilha do Araguaia", op. cit., p. 6.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

153

vereador da cidade de Araguaína, município do Estado de Goiás, diante de tantas 'novidades'

da operação ACISO, desembarcadas junto com as tropas das FF.AA.:

" - Deus me perdoe, mas a presença de terroristas por aqui até que foi uma benção,

porque chamou a atenção do Exército e dos governos estadual e federal para essa

região..."294

Houve o início também da operação INCRA, que consistia em colocar em ação na área,

funcionários daquele órgão governamental, pretensamente para solucionar, sur place, todos os problemas

e desacordos em torno da questão da posse da terra. Era uma tentativa de amenizar a revolta existente

entre os posseiros daquela região contra a ação conjugada de grileiros, fazendeiros e policiais a seu

soldo. Desta forma, o Exército tentava evitar que tal conflito levasse 'água para o moinho' da guerrilha,

incentivando os caboclos a lhe prestarem apoio.

Tal medida, contudo, não solucionaria o problema, pois havia diretrizes maiores, no domínio da

política agrária para a Amazônia, que incluiam verbas, incentivos fiscais, etc., todo um arcabouço

político-jurídico e financeiro, visando claramente a favorecer o surgimento e desenvolvimento da grande

empresa agrícola, das grandes fazendas capitalistas. Inseridas dentro deste contexto maior, estas

iniciativas das FF.AA. na verdade não passarão de uma grande encenação, um engodo que visava a fazer

crer aos posseiros que todos os conflitos agrários seriam resolvidos pelo governo federal em favor dos

despossuídos e pobres, acalmando-lhes , desta forma, os ânimos. Em realidade, não será nada além de

mais uma manobra tática de 'guerra psicológica' que as FF.AA. estavam colocando em movimento. Após

a derrota da guerrilha, tais promessas só serão cumpridas como recompensa àqueles que lhes serviram

fielmente de bate-paus, durante os anos de guerra. No que diz respeito à grande maioria, esta ficará como

sempre esteve: esquecida e abandonada pelas autoridades governamentais. A única diferença será que

doravante ela seria muito mais vigiada, muito mais policiada e, por conseguinte, muito mais reprimida.

294 Citado por Fernando Portela, op. cit., p. 68.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

154

Quanto ao processo de expropriação então em curso, sofrerá um hiato durante os anos da guerrilha para

retomar o fôlego logo em seguida.

Até mesmo, algumas operações que, vistas de retrospecto, chegam a provocar risos, como por

exemplo um 'teatro' que as FF.AA. realizaram na cidade de Marabá, o que viria a ser motivo de mais um

incidente entre a Igreja Católica. O episódio envolveu o bispo de então, Dom Estevão Cardoso Avelar, e

as tropas federais, fato que é lembrado pelo seu sucessor à frente da Diocese de Marabá, Dom Alano

Maria Pena:

"... Distribuíram revólveres de brinquedo aos jovens da região, que fariam o papel de

tropas legais, e as tropas descaracterizadas fariam o papel de terroristas...

- Foi uma coisa gozadíssima. eles fizeram um bombardeio da ilha aqui na frente,

batalha simulada, jogaram napalm na ilha, fogo de morteiro, e depois uma

programação da vitória. Houve festas na cidade e o baile da vitória à noite, e esse

negócio todo veio organizado de Brasília. E havia uma missa. E foi aí que começou o

enguiço, porque Dom Estevão recusou-se a rezar a missa. Isso foi em setembro. Aí o

prefeito veio aqui pedir, até o governador procurou Dom Estevão para demovê-lo, até

o arcebispo se prestou a esse papel de insistir com Dom Estevão, que continuou a

rejeitar energicamente. Aí eles troxeram um capelão militar do Nordeste e decretaram

aqui uma praça militar, e o capelão celebrou a missa. Uma palhaçada verdadeira."295

Já no campo de batalha, ou seja, na mata, as coisas endureceram um pouco para o lado dos

guerrilheiros. Apesar de Arroyo afirmar que quase não havia tropa especializada e que a maioria seria

ainda constituída de recrutas, o fato é que todos os personagens entrevistados até hoje por jornalistas são

unânimes em dizer que já nessa segunda ofensiva, utilizou-se soldados profissionais em maior número,

por causa do fiasco que tinha sido durante a primeira campanha a participação majoritária, ou mesmo

quase exclusiva, de conscritos.

295 Fernando Portela, op. cit., p. 68.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

155

Apesar de utilizar uma tropa formada por militares profissionais e, dentre estes,

batalhões especializados em luta anti-guerrilha, o que se pode perceber é que os frutos foram não muito

diferentes daqueles colhidos na primeira campanha. O mesmo oficial, incógnito, opinou que:

"... os conscritos que entram de cara na guerrilha não ganhavam para aquilo, só para

fazer o serviço militar. Esse pessoal sofreu muito... perderam feio. Isso desmoralizou

mais ainda a tropa...

... Mas, com o fracasso... passou a usar tropa especializada, profissional... tropa de

elite, que sabe sobreviver na selva, tem curso prático e teórico de guerra

antiguerrilha... Mas as tropas profissionais... também andaram apanhando

bastante"296.

A segunda campanha das FF.AA. não pode ser qualificada simplesmente como sendo uma mera

repetição da primeira, embora guarde com esta muitos pontos em comum. De diferença mesmo, pelo

menos que fossem visíveis, somente a ação das operações ACISO e INCRA e um aumento em termos

absolutos dos efetivos empregados, assim como do número de soldados profissionais em relação aos

recrutas que, contudo, ainda na segunda ofensiva perecem terem sido utilizados, apesar da desastrada

experiência da primeira campanha.

Uma questão bastante controversa que diz respeito à ação das FF.AA. a partir dessa segunda

campanha trata-se da polêmica em torno da utilização ou não de 'assessores', 'experts' internacionais em

luta anti-guerrilheira. Apesar de que mesmo aqueles oficiais que aceitaram dar entrevistas anônimas

neguem terminantemente tal ocorrência, a revista Veja, por exemplo, afirma categoricamente que houve

esse tipo de 'ajuda' e cita nominalmente um oficial estrangeiro que nela teria tomado parte:

"Em setembro, todavia, o Exército voltou - e já com a estratégia reformulada.

Coordenadas por três generais - Antônio Bandeira, Viana Moog e Hugo de Abreu - as

296 Op. cit., p. 114.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

156

tropas contariam nos meses posteriores com a assessoria do coronel Hermes de

Oliveira, do Exército português, um veterano das guerras coloniais na Africa."297

Nesta passagem, interessante é perceber a importância da confirmação desta informação, e de

outras, que davam conta igualmente da participação de militares americanos, que haviam combatido no

Vietnã, na repressão à guerrilha do Araguaia. Talvez, a partir de 1997, quando os arquivos diplomáticos

norte-americanos se abram aos historiadores, se possa finalmente confirmar tanto esta como tantas outras

informações até hoje negadas pelas FF.AA. brasileiras.

Desde os primeiros meses de presença das tropas federais na região, foram feitas centenas de

prisões. Todos eram conduzidos à cadeia pública de Xambioá, um dos quartéis-generais das FF.AA. em

suas operações. Como a capacidade desta cadeia fosse bem pequena, pois a população da cidade não

ultrapassava à época a cifra de cinco mil habitantes, ordenou-se que se constríssem buracos bem fundos,

próximos ao aeroporto militar e convenientemente longe dos olhos dos habitantes. Tais buracos eram

depois cobertos com arame farpado e serviam de cela para os detidos que, além disso, ficavam o tempo

todo amarrados e/ou algemados.

Pois bem, apesar de algumas pesquisas jornalísticas afirmarem que na segunda campanha se

atenuou a repressão aos prováveis colaboradores da guerrilha, durante os curtos dois meses que durou,

eles não foram de todo desativados, apesar do fato de que alguns presos foram transferidos para Brasília,

onde sofreriam novos suplícios. Pelo contrário, continuaram a ser enchidos de presos que eram mantidos

assim, ao relento, nus e amarrados.

Ali, sem exceção, todos eram torturados, espancados pelos agentes das FF.AA. encarregados dos

interrogatórios. Dali, muitos presos puderam assistir a cenas que certamente nunca mais esqueceriam,

como a que se segue:

"Ainda em maio, os presos dos buracos da base de Xambioá assistiram... [à]

chegada de um tenente pára-quedista, todo sujo de sangue, e gritando muito. Os

297 Op. cit, p. 56.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

157

berros de dor foram ouvidos por toda a base... Minutos depois chegava o

corpo do guerrilheiro Bergson Gurjão de Farias, cearense, 25 anos... Toda a tensão

que se acumulara... por causa dos gritos do tenente ferido vai ser descarregada no

cadáver já deformado de Bergson, que é chutado e pisado"298.

Do lado das FORGA, a tática empregada foi exatamente a mesma da primeira campanha, ou seja:

evitar o confronto com as tropas federais, refugiar-se na mata, realizar operações de fustigamento contra

as tropas inimigas e manter ligação com as massas.

Arroyo, num balanço da atuação dos combatentes das FORGA neste segundo enfrentamento,

relata o que se segue:

"Ao iniciar-se... os guerrilheiros já possuíam maior experiência. Tinham avançado

no conhecimento da mata, na ligação com as massas, na preparação militar, e

conseguido organizar um pouco melhor o abastecimento. As armas, no entanto,

continuavam precárias. Não havíamos conseguido tomá-las do inimigo"299.

Outro problema que afligia a CM era a continuidade da falta de contato com o Destacamento C.

Neste sentido, toma a iniciativa de enviar a sua procura, um grupo de guerrilheiros afim de reatar

contato. O grupo partira antes do início da segunda ofensiva, estava a caminho quando isso ocorreu,

houve choques com tropas das FF.AA., dos cinco que compunham originalmente o grupo, três foram

abatidos, entre eles 'Juca', membro do Comando das FORGA e médico gaúcho, conhecidíssimo em toda

a região, João Carlos Haas Sobrinho.

Do ponto de vista dos destacamentos, as observações de Arroyo sobre o comportamento que

tiveram foram as seguintes:

"No Destacamento A, o inimigo não conseguiu estabelecer contato com os

guerrilheiros. Movimentou-se na área sem resultado. O comando do destacamento

tentou, também sem resultado, realizar... fustigamento... No dia 29 de setembro,

298 Op. cit., p. 51.

299 Op. cit., p. 20.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

158

houve um choque... Helenira Resende... Foi presa e torturada até a morte... [o que]

causou muita indignação300...

No Destacamento B... O comando resolveu retirar o grosso dos combatentes e

mudar de área... Dividiu-se... em dois grupos e seguiu-se para a nova área. Aí

resolveu-se fazer trabalho de massa, apesar do inimigo estar desenvolvendo sua

campanha... Surgiu um sério atrito entre o vice-comandante, Zeca, e os demais...

irritado insultou muitos companheiros e acabou dizendo que ia se demitir do cargo...

Ele não tinha nenhuma razão e, com isso, perdeu a autoridade...

A CM decidiu retirá-lo do cargo e incorporá-lo à guarda da CM...

No Destacamento C... Depois desses fatos [quatro baixas], o comando do C decidiu

recuar e procurar por todos os meios o contato com a CM"301.

No final de outubro, as FF.AA. retiram-se novamente do 'teatro de operações', numa decisão até

hoje meio inexplicada. Fernando Portela opina que tal medida talvez tenha se dado em virtude do fato de

que nem mesmo as tropas descaracterizadas, e bem treinadas para combates na selva, estavam a obter os

resultados almejados. A esta hipótese, ajuntaríamos uma outra: o baixo rendimento das tropas nesta

segunda campanha corria o risco de se transformar em tragédia com a chegada da estação das chuvas na

virada do mês de outubro para novembro, e a conseqüente piora das condições de trasitabilidade na

mata. A campanha de 'cerco e aniquilamento' poderia com a elevação do nível das águas acabar por

afogar o esforço governista e expor os soldados a ataques mais ousados por parte dos guerrilheiros, o

que debilitaria ainda mais a moral já abalada da tropa.

Além disso, pelo que se pode supor hoje, olhando em retrospectiva, as FF.AA. optavam então por

uma tática menos policial e mais 'política' para combater uma guerra essencialmente política, como é o

caso da guerra de guerrilhas.

300 Helenira Resende de Souza Nazareth, codinome 'Fátima', participara entre os anos de 1969 e 70 da diretoria da UNE.

Fora então presa e torturada. Quando conseguiu sair da prisão, passou a viver na região do Araguaia. Era muito querida em

seu destacamento que, em sua homenagem, daí em diante, se auto-denominará 'Destacamento Helenira Resende'.

301 Op. cit., p. 20-2.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

159

Terminava, assim, mais uma campanha de 'cerco e aniquilamento' das tropas federais

das três Armas e contingentes das PM's dos Estados de Goiás e do Pará, lideradas pelo Exército. Apesar

de todo o aparato bélico, da enorme vantagem numérica, não se conseguia apagar a chama que inflamava

as margens paraenses do Rio Araguaia.

Nas FORGA, as baixas atingiram o número total de nove, sendo seis mortos em combate

('Flávio', 'Cazuza', 'Vítor', 'Juca' e 'Zé Francisco'302), dois presos e mortos sob tortura (Helenira e

'Antônio') e dois desaparecidos (Glênio e 'Gil'303). Arroyo procede, então, ao primeiro balanço parcial dos

efetivos guerrilheiros:

"Desde que começou a luta... até o final de outubro as baixas foram 18 (entre mortos

e aprisionados). O total de combatentes era então de 50 (com a saída da companheira

para o Sul304). O Destacamento A estava com 19 elementos; o B, com 14; o C, com 9;

a CM, com 8."305

O que sobreviria seria um grande período de 'trégua', que duraria quase um ano. Este será,

contudo, um período muito ativo para as Forças Guerrilheiras do Araguaia. E, embora o PC do Brasil e o

Comando das FORGA estivessem bastante convencidos do inevitável retorno das tropas do governo, não

perceberam em profundidade as mudanças que sofriam a linha estratégico-militar das FF.AA. Nesse

302 'Zé Francisco' era o negro Francisco Chaves. Integrou-se na Marinha de Guerra, nesta instituição sofreu discriminação

racial. Membro do partido desde 1935, Graciliano Ramos, grande nome da literatura brasileira, que com ele conviveu na

prisão após a Insurreição de 35, na qual os dois tomaram parte, cita-o em seu famoso livro 'Memórias do Cárcere'. Contava

à época com mais de sessenta anos.

303 O guerrilheiro 'Gil', na verdade o operário Manoel José Nurchis, Arroyo considerou que deveria ter morrido. Mas, aqui,

para efeito de contagem, o incluímos entre os desaparecidos, pois ele pode ter sido preso com vida. Quanto a Glênio, se

perdera na mata onde ficou vagando por quase dois meses, sendo depois preso (Cf. Glênio Sá, op. cit., pp. 19-28).

304 Trata-se de 'Alice', ou Criméia A. Schimidt, que com problemas na gravidez teve que ser levada para São Paulo, onde

será presa e, nesta condição, conceberia.

305 Op. cit., p. 22.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

160

ínterim, elas também estiveram em franca atividade, desenvolviam enormes esforços de preparação para

um retorno, que desta vez se pretendia triunfal, ao 'teatro de operações' no sul do Pará.

c - A grande trégua (outubro de 72-outubro de 73)

"Suspensão temporária de hostilidades"306, eis aí a significação da palavra 'trégua', correntemente

adotada, na língua portuguesa falada no Brasil. Tal definição, assim colocada, em termos genéricos, não

traduz bem o que ocorreu entre as partes beligerantes na guerrilha do Araguaia. Talvez se ajuntássemos a

ela a palavra 'militares', ou se a substituíssemos pela expressão 'cessar-fogo', apesar de não corresponder

ainda totalmente à realidade, pelo menos nos aproximaríamos mais do sentido real que tal termo adquiriu

neste período. Pois durante todo esse ano, não se assistiu a enfrentamentos significativos nas matas, mas

as partes nem por isso deixaram de se 'hostilizar' mutuamente.

Uma cópia de um documento oficial, estampando no alto de todas as suas páginas um enorme

carimbo onde se lê a palavra 'secreto', escrita em letras maiúsculas, nos chegou há não muito tempo às

mãos. As fontes através das quais o obtivemos, por razões não difíceis de serem compreendidas,

infelizmente não podem ser reveladas, sem colocar em risco a vida de quem o deu para ser divulgado.

Trata-se de mais um documento que comprova, apesar das já patéticas negativas das FF.AA., que a

guerrilha do Araguaia aconteceu e que chegou mesmo a preocupar bastante as autoridades

governamentais brasileiras. Passemos a examiná-lo mais de perto.

Escrito em Goiânia, o documento é, estranhamente, datado à folha de nº 1 de 28 de novembro de

1972 e à folha de nº 5, de 22 do mesmo mês, o que deve ter se devido a um simples erro de datilografia.

Este engano, contudo, não chega a comprometer qualquer avaliação do mesmo, pois, seja dia 28, seja dia

22, o importante é que ele é redigido quando as tropas das FF.AA. tinham interrompido as operações

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

161

armadas contra os guerrilheiros pela segunda vez e se retirado da zona conflagrada, iniciando a

chamada trégua.

O documento é proveniente da Polícia Militar do Estado de Goiás. Nomeado "POP nº 003/72 -

Plano de Operações 'Araguaia', Ação Preventiva Meios Urbanos e Rural" e composto de cinco páginas

que, ao final são assinadas pelo Cmt. Geral da PM-GO, Coronel Israel Cópio Filho, e pelo Chefe do

Estado Maior da PM-GO, Coronel Geraldo Antônio de Freitas, o documento trata do envio de efetivos

daquela instituição, a 1ª Companhia da PM, para a área do baixo Araguaia, margem direita, norte de

Goiás (hoje, Estado do Tocantins).

O documento é acompanhado de quatro anexos: A, B, C e D; de um apêndice, chamado "A"; e,

de um "Adendo ao Plano OP 03/72", totalizando dezessete preciosas folhas, nas quais podemos

encontrar algumas informações inéditas sobre a guerrilha do sul do Pará, assim como, e nisso reside a sua

maior importância, pistas valiosíssimas que, uma vez seguidas cautelosamente, podem conduzir a fontes

extremamente essenciais à elucidação de todo o processo de enfrentamento armado ocorrido naqueles

anos na região do Araguaia.

Na sua introdução, o documento enuncia o porquê de tal operação:

"Verificou-se a existência de um núcleo de guerrilheiros instalado na região do

vizinho Estado do Pará [PA] na margem esquerda do Araguaia, confrontando aos

municípios de Xambioá, Ananás e Araguatins. Com a ação antiguerrilha das tropas

regulares naquela área problema, os guerrilheiros poderão refugiar-se na margem

direita daquele rio, nos municípios considerados, onde há ambiência própria para

desenvolvimento dessas atividades... poderão cruzar o rio... embrenhando-se na mata

da lontra ou de Ananás."307

306 Aurélio Buarque de Holanda, op. cit., p. 478.

307 "POP nº 003/72 - Plano de Operações 'Araguaia'", Polícia Militar do Estado de Goiás, Goiânia, 28 (?) de novembro de

1972, fl. 1. Ver íntegra (salvo o Adendo, pois nele constam nomes que preferimos manter em sigilo) nos Anexos, infra, pp.

x-x².

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

162

Como missões a serem cumpridas na 'área problema', o documento diz que trata-se de:

"Cobrir a área problema... com policiamento ostensivo-preventivo a fim de evitar

instalação, aparição e/ou permanência de elementos subversivos e contraventores...

proteção à intalação militar e de apoio... Cooperar, quando solicitado, com as demais

forças regulares... inclusive, no território do PA308 [grifo nosso]... proteção das

instalações vitais... Apoiar as autoridades policiais locais no que tangem [sic] a

manutenção da ordem pública e a execução do serviço de polícia... Desenvolver ação

cívico-social (ACISO)... Fazer relações públicas junto à comunidade local, com

programas-esclarecimento à população."309

Em seguida o documento divide em três grupos de ações as operações a que se consagrarão os

efetivos que estava enviando à região. O primeiro grupo de ações, chamada de 'operações tipo campanha'

visaria:

"neutralizar a ação subversiva e/ou terrorista... impedir o apoio aos infratores...

proteger a população ordeira... impedir a injunção [sic] de elementos menos avisados

a missão da tropa... desenvolver, com amplitude, o serviço de informações [grifo

nosso]... Assegurar o pleno... funcionamento... dos meios de comunicações e

transporte... proteger os órgãos de serviços assistenciais"310.

Já o segundo grupo de ações seria classificado de 'ações e medidas psicológicas' que visariam a:

"Dissuadir as pessoas induzidas no processo latente da subversão; Anular a ação da

propaganda subversiva; Desviar a motivação para o recrutamento de novos adeptos

da subversão; Conhecer a vulnerabilidade do oponente e forçá-lo ao desestímulo pela

ação subversiva; Manter e velar o moral do pessoal empenhado na missão; e

308 PA é a sigla correspondente ao Estado do Pará. Note-se como neste trecho, o conceito de federação, consagrado pela

constituição em vigor, é simplesmente anulado, sinal evidente da gravidade da situação.

309 Idem, fl. 2.

310 Ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

163

Conquistar e reconquistar os tendentes à esquerda com a melhoria do

ambiente, através de aviso [?]."311

No terceiro e último conjunto de ações que envolveriam as tropas da PM de Goiás, estavam as

'operações de combate', que incluíam as seguintes modalidades de ação militar:

"... de inquietação dos locais em que existam indícios de freqüência de elementos

infratores... ofensivas para localizar, eliminar e/ou capturar... guerrilheiros... buscas,

apreensões e vistorias de objetos, veículos e de outros meios suspeitos... identificação

e fiscalização de pessoas e objetos com possível implicação no cumprimento da

missão... guarda, ou evacuação de pessoas, ou pertences presos, apreendidos ou

capturados"312.

O corpo principal do documento termina com prescrições sobre as relações entre a PM-GO e as

'forças amigas' - PM-PA e tropas das FF.AA., estabelece que o posto de comando da operação seriam o

Quartel General da PM-GO, localizado em Goiânia, assim como a 1ª Companhia deslocada e acantonada

em Xambioá.

No "Anexo A (Informações)", datado de 29 de novembro de 1972, o chefe da PM-2, serviço de

informações da Polícia Militar, faz um relatório interessante sobre o que seria a situação dos guerrilheiros

e dos enfrentamentos destes com as tropas governistas até aquele momento:

"1. RESUMO DA SITUAÇÃO INIMIGA

Na região sul do Estado do Pará e norte do Estado de Goiás, nas áreas

compreendidas pelas cidades ribeirinhas ao rio Araguaia: Xambioá, Araguatins e

várias outras vilas e povoados entre essas cidades, tem se verificado tentativas de

implantação de núcleos de guerrilha rural, conforme consta de documentação

difundida pelos órgãos de informações federais. Os terroristas escolheram... uma

região afastada dos grandes centros urbanos, deficiente de vias de transporte e

próxima de limites de Estados da Federação, entretanto, tais tentativas foram

311 Idem, fl. 3.

312 Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

164

imediatamente reprimidas pela ocupação da área por Tropas das FF.AA. Consta que

pequeno grupo de subversivos ainda atuam [sic] na região, protegidos pelo aspecto

fisiográfico da área, muito favorável ao inimigo. Atualmente as Tropas Federais

estão deixando a região, para dar lugar à PM GO e PM PA... que se encarregarão

de dar continuidade ao combate sistemático ao subversivo [todos os grifos são

nossos]."313

Difícil aqui é saber se trata-se de pura falta de informação do oficial da PM de Goiás que redigiu

o presente relatório; se as FF.AA. em seus comunicados à PM-GO sonegou informações, para que a real

situação não 'vazasse', já que, à época, preocupava o alto escalão das FF.AA. o fato de que a guerrilha

começava a ter repercussão no exterior, na imprensa estrangeira314 e em certos meios diplomáticos; ou,

ainda, se assim ele foi instruído para proceder pelos seus superiores de modo a não despertar o pânico

entre os soldados da PM que para lá estariam sendo transferidos.

Esta duas últimas alternativas, combinadas talvez, parecem encaixar-se melhor numa

compreensão mais global do problema, senão vejamos. Em primeiro lugar, convenhamos que as FF.AA.

não poderiam, sob pena de fazer propaganda involuntária da guerrilha em suas próprias fileiras, relatar os

revéses que sofreram nas suas duas primeiras ofensivas. Tal iniciativa teria como único efeito um

comprometimento ainda maior da moral das suas tropas, já um tanto quanto abaladas.

Por outro lado, o jornalista Fernando Portela fala de um forte clima de pânico que passou a reinar

entre as polícias militares dos dois estados envolvidos, assim como das tropas das FF.AA. que

permaneceram em pontos estratégicos na área, após a segunda retirada do 'teatro de operações':

"As polícias militares da área, desde que sentiram que até os melhores homens do

Exército não conseguiam pegar os 'terroristas', passaram a viver em pânico. Cenas de

covardia cômica eram registradas, como o fato de que qualquer oficial-policial, desde

313 Idem, "Anexo A (INFORMAÇÕES)", p. 6.

314 Exemplo disso é a aparição do tema no cotidiano francês Le Monde, por três vezes (edições de 04/11/1972, p. 6;

12/01/1973, p. 3; e, 12-3/08/1973, p. 2). Ver cópias nos Anexos, pp. x-x².

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

165

que sentisse necessidades fisiológicas e fosse obrigado a se afastar para

satisfazê-las, levava uma escolta de quatro homens consigo"315.

O clima de medo de 'ir para Xambioá', como se dizia à época não atingiu somente os efetivos das

polícias estaduais, penetrou também nas FF.AA. Ser destacado para lá equivalia para muitos a ser

condenado ao inferno, como comprova o seguinte relato:

"... Adhemar Santillo, que foi prefeito de Anápolis até o início de 1973, conta um

episódio interessante: o então sargento Sebastião Maués dos Santos, logo que soube

que havia sido destacado para engrossar as fileiras do Exército em Xambioá,

requereu sua inscrição numa chapa de candidatos do MDB a vereador, como forma

de se livrar da missão... a inscrição do sargento ficou pronta antes que as dos outros

candidatos, provocando, então, o desengajamento do sargento... [Antes,] Maués dos

Santos chegou a integrar durante dois meses, de maio a junho de 1972, as forças do

Exército acantonadas em Xambioá"316.

Desta forma, como atestam as narrativas acima, não interessava de forma alguma ao alto

comando das FF.AA. assustar ainda mais os policiais que para lá estavam se destinando. Só desta

maneira pode-se compreender tanta desinformação no relatório da PM-GO que ora analisamos. A única

dúvida que persiste é se os comandantes das respectivas forças políciais estavam informados, ou se

mesmo eles foram vítimas da contra-informação das FF.AA.

Neste mesmo "Anexo A", a PM-2 ainda fornece algumas orientações para o trabalho de

informação que a tropa deveria desenvolver, recomendando que "... Deverá ser feito relatório diário de

todas as atividades da Tropa empenhada na operação."317

Quando nos deparamos com uma orientação deste tipo, transmitida de maneira tão precisa, ou

melhor, com uma ordem, pois trata-se de uma corporação militar, onde o respeito à hierarquia é uma das

315 Op. cit., p. 71.

316 "História da Guerrilha do Araguaia", op. cit., p. 6.

317 "Anexo A (INFORMAÇÕES)", Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

166

pré-condições de sua existência, o senso do historiador se sente ultrajado, agredido mesmo. Isso porque

se se confronta tal documento à insistência das autoridades policiais e militares em dizer que não há

nenhum registro da guerrilha do Araguaia, com alguns chegando mesmo ao cinismo, de causar inveja a

Goebbels, de afirmar que tal evento só aconteceu na cabeça de alguns lunáticos, que ele nunca se passou,

o contraste é gritante e revoltante. Parecem seguir obstinada e fielmente um dos preceitos que dirigiam o

trabalho daquele genocida nazista de que deve-se mentir, mentir, repetir insistentemente a mesma mentira

até que ela se torne verdade.

O 'Anexo A' encerra-se com algumas outras determinações práticas, tais como, o procedimento

que se deveria ter em relação aos prisioneiros: "As pessoas civís presas, envolvidas em subversão,

deverão ser exploradas ao máximo [grifo nosso] como fontes de informes", o limite deste 'ao máximo'

corria por conta do humor e do sadismo dos oficiais de plantão, mas, pelo que relatam a maioria absoluta

daqueles que passaram por prisões na área durante os anos da guerrilha, a tortura e, no limite, o

assassinato de suspeitos era um expediente normal. Convem lembrar que em todo o território nacional o

mesmo se passava com os inimigos do regime, e atingia até mesmo pacifistas confessos, religiosos,

parlamentares, jornalistas, etc., ninguém escapava à selvageria da repressão política naqueles anos, então,

pode-se fazer uma idéia do que acontecia com quem fosse aprisionado numa região conflagrada, onde

destacamentos guerrilheiros 'ousavam' desafiar o poderio das FF.AA.

Seguem-se os "Anexos B e C". O primeiro é um mapa da 'área problema'. Já o Anexo C se refere

a assuntos administrativos. Nele encontra-se listado todo o material que seria levado com a tropa:

fardamento, equipamentos em geral (barracas, camas de campanha, capas impermeáveis, etc.),

armamentos, munição, aparelhos de comunicação, entre outros ítens.

O "Anexo D", elaborado sob a responsabilidade do chefe PM-3, Major Waldir Martins de Moraes,

estabelece que "as ligações e comunicações entre o Comando Geral e a área problema serão feitas

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

167

através de... mensagens cifradas"318. Em seguida, lista os códigos a serem utilizados. Assim,

por exemplo, quando uma patrulha quisesse pedir 'reforços' deveria dizer a senha 'chuva', e assim por

diante.

O "Apêndice A" é um comunicado do Serviço de Manutenção e Transportes (SMT) da PM-GO,

que especifica quais viaturas seriam enviadas junto com a 1ª Companhia para Xambioá e termina

esclarecendo como seriam mantidos e abastecidos os veículos supra citados.

O "Adendo ao Plano OP 03/72", redigido sob a responsabilidade do chefe da PM-1, Major

Alvaro Alves Júnior, fornece ao historiador da guerrilha do Araguaia um grande instrumento de pesquisa.

Nele, estão listados todos os que seriam deslocados para a 'área problema', com a respectiva cidade para

onde se dirigiriam e ficariam acantonados - Xambioá e Araguatins. Nesta lista cita-se o nome completo

do policial, o grau hierárquico que ocupa na corporação, o seu número de registro na PM e a função a

ser desempenhada na operação. Somente nesse 'Adendo' conta-se quarenta e três nomes de policiais dos

mais variados degraus da hierarquia da PM de Goiás que, comprovadamente, tomaram parte, direta ou

indiretamente, de operações contra os guerrilheiros na região do Araguaia e que serão procurados por

nós, visando a obtenção de testemunhos pessoais sobre o que presenciaram durante sua permanência

naquela zona conflagrada e, quem sabe, mais documentos oficiais venham à tona.

De seu lado, o Exército durante este período se consagrou à execução minuciosa de um amplo

plano que visava a combater a guerrilha em todas as frentes em que ela atuava. Entre a população, ele se

fará presente oficialmente através da incrementação ainda maior da Operação ACISO e também da

Operação INCRA, visando a conquista da simpatia das populações da região. Oficiosamente, marcará

sua presença através de espiões que infiltrará e instalará por toda a área.

No campo militar, as FF.AA. reunem os melhores homens que possuem no seu quadro

profissional em todo o país e inicia com eles um treinamento intensivo de sobrevivência e luta anti-

guerrilha na selva. A frente destes 'boinas verdes' brasileiros está a Brigada de Paraquedistas do Rio de

318 Idem, "ANEXO D - LIGAÇÕES E COMUNICAÇÕES", p. 14.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

168

Janeiro, tropa de elite do Exército, muitíssimo bem treinada e liderada pelo General Hugo de Abreu.

Mas, isso não será tudo. O Exército faz construir cinco novos quartéis espalhados na área. Assim, as

cidades de Marabá, Imperatriz, Itaituba, Altamira e Humaitá, todas localizadas na Amazônia, receberão

sedes de unidades militares. Toma medidas para aumentar a transitabilidade da zona conflagrada,

edificando toda uma rede de estradas e melhorando as condições das já existentes, de maneira que

permitisse uma melhor movimentação de suas tropas quando de uma nova ofensiva. Arroyo cita cinco

novas estradas que são abertas neste período:

"... a de São Domingos a São Geraldo; Transamazônica-Brejo Grande; da Fazenda

do Mano Ferreira, passando pelo garimpo da Viúva e indo até o Arguaia; a estrada

que ia da Viúva (próximo de Santa Isabel), passando pelo Castanhal do Ferreira e

indo até Santa Cruz; a estrada Transamazônica-Tabocão."319

Nas grandes cidades, a repressão se entregará à tarefa de localizar e destruir as organizações do

PC do Brasil. Adota-se então a tática de esmagar a cabeça para atingir e destruir o braço armado da

organização. Entre dezembro de 1972 e março de 1973, quando o partido encontrava-se em plena

preparação para o envio de reforços, de mais combatentes para o Araguaia, eis que sofre grandes perdas,

o que compromete seus planos.

A repressão consegue prender quatro membros do Comitê Central, três dos quais membros da

sua comissão executiva, elementos fundamentais que cumpriam a função de elo de ligação entre o

Comitê Central, o trabalho no Araguaia e as bases partidárias no sul do País. Carlos Nicolau Danielli,

Lincoln Cordeiro Oest, Luís Guilhardini e Lincoln Bicalho Roque são presos, torturados e assassinados

nos porões dos órgãos de repressão da ditadura. Além desses 'peixes grandes', como diria o sertanejo, a

repressão se abateu também sobre diversos Comitês Regionais do partido, desarticulando boa parte da

organização a nível nacional. Não chega a liquidá-la mas aborta diversas tentativas de se fazer repercutir

mais fortemente pelo país afora a luta que se travava nas matas que margeiam o rio Araguaia. Era, na

319 Angelo Arroyo, op. cit., p. 22.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

169

verdade, a primeira expressiva vitória das forças da repressão na luta contra o levante

guerrilheiro do sul do Pará.

Desta forma, o Exército arma e põe em execução um plano que, em linhas gerais, bem que

poderia assim ser resumido: disputar com os guerrilheiros a influência política sobre a população local,

através das medidas assistencialistas já citadas; retirar as tropas da região, isto é, ceder terreno à

guerrilha, ao mesmo tempo em que patrocina ampla infiltração de espiões; deixar o campo aberto para

que os guerrilheiros se exponham ao fazer o seu necessário trabalho de massas e, para que, ao assim

procederem, exponham também aos olhos e ouvidos dos agentes infiltrados todos os seus colaboradores

e simpatizantes entre o povo; melhorar a presença das forças de repressão no conjunto da região com a

construção de quartéis, assim como das condições de acesso ao 'teatro de operações' através da

construção de estradas; treinar importante contingente militar profissional, especializando-o em luta anti-

guerrilheira rural; atacar a única fonte externa de onde os guerrilheiros internados na floresta amazônica

poderiam vir a receber ajuda - a organização do PC do Brasil nos centros urbanos.

Segundo as FF.AA., uma vez cumpridas todas estas diretivas do plano, a nova ofensiva seria

vencida com maior facilidade, pois a essência de todo este conjunto de providências táticas era cortar as

relações dos guerrilheiros com o povo e com o partido que a organizou. O plano tinha como objetivo

final, estratégico, enfraquecer o núcleo guerrilheiro internado na mata, isolá-lo, para que, assim, asfixiado

pela ajuda cada vez mais arisca da população, neutralizada pela ação social do governo federal, e pela

não ajuda do partido, entrasse em colapso.

Ao final de todo esse processo, entrariam em cena de novo as tropas federais, desta vez melhor

ou tão bem preparadas quanto os guerrilheiros, e os esmagariam, se é que eles ousariam ainda resistir.

Bom, este era o plano, pelo que se pode deduzir quando se observa o conjunto das ações desenvolvidas

pelo governo militar durante o período de trégua. Veremos mais à frente, como ele se realizará na

prática.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

170

Enquanto isso, do exterior, algumas organizações da esquerda brasileira manifestavam apoio e

solidariedade aos combatentes do Araguaia. Assim, o Jornal Ação, da Ação Libertadora Nacional (ALN)

em sua edição em língua espanhola, trimensal de outubro/novembro/dezembro de 1972, em artigo

intitulado "Guerrilla en el Araguaia", declarava que:

"A las orillas del rio Araguaia, próximo a los poblados ribereños, un puñado de

hombres se rebeló y lucha a mano armada contra la explotation y la miseria a que

está sometido el campesinado braszileño. Cercados por tropas numéricamente

superiores ellos mantienen la lucha... Es preciso divulgar esa lucha, organizando

comités de solidaridad a las Fuerzas Combatientes del Araguaia... La ALN expressa

su solidaridad a los valerosos combatientes de las Fuerzas Guerrilleras del

Araguaia."320

Uma outra organização que manifestará também o seu apoio à guerrilha do Araguaia, será a Ação

Popular (AP). Da França, expressará no editorial de seu jornal, Libertação, do mês de outubro de 1972,

o seu total endosso:

"Aujourd'hui, la démarcation entre la révolution et le camp de la contre-révolution

c'est l'attitude que l'on adopte face à l'héroïque résistance des patriotes et démocrates

du sud du Pará."321

Entre os guerrilheiros, cuida-se da preparação para o enfrentamento de uma nova ofensiva militar

das FF.AA. Arroyo relata quais foram as diretivas emitidas então pela CM:

"A CM orientou os destacamentos no sentido de melhor aproveitar a trégua para se

preparar. Previa a nova ofensiva para o começo do verão, lá para maio. Entre as

tarefas mais importantes, destacava: ligação maior com as massas, tanto em extensão

como em profundidade; preparação de locais para ações de fustigamento e

emboscada; preparação de bons locais de refúgio; conhecimento maior do terreno e

320 Citado por: Adamastor Terra, Brasil: La Guerrilla de Araguaia, Buenos Aires, Nativa, 1973, pp. 12-3.

321 Citado em: La Résistance Armée au Brésil, Textes de la Résistance Armée au Sud du Pará, Paris, CILA, 1972, p. 4.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

171

melhoramento dos croquis; intensificação do preparo militar; procurar

melhorar o armamento através das massas (compra, troca, etc.) e montar uma oficina

de consertos; organização de depósitos que garantissem alimentação para seis meses

(sobretudo farinha, milho, arroz). Os depósitos deveriam ser pequenos,

descentralizados, e a maior parte dos alimentos guardados deveria ir para as zonas

de refúgio... orientou também para que os destacamentos limpassem a área,

eliminando os bate-paus; para que mantivessem vigilância a respeito de todas as

pessoas estranhas que aparecessem... O princípio estratégico fundamental era o da

sobrevivência das forças guerrilheiras... preservar as forças, não fazer ações que

redundassem em baixas. A CM insistiu também na necessidade de sze criar núcleos da

ULDP."322

A CM promove também neste período uma reestruturação do Destacamento C, aquele que

sofrera mais perdas até então. Inicialmente, ela opta pela fusão deste com o B, mas, logo em seguida

volta atrás e transfere elementos dos dois outros destacamentos para refoçá-lo. Paulo, até então

comandante do C, é transferido para a CM. 'Pedro' o substitui no comando do destacamento e 'Dina' fica

como vice-comandante. Ainda sobre o C, que, ao que parece, era o destacamento que mais preocupação

causava à CM, decide-se que ele passe a concentrar provisoriamente a sua atuação na área de São

Geraldo, ao invés de permanecer na área onde atuara até o momento, Caiano e Grota Vermelha323.

Publica-se nesse período diversos materiais, impressos em mimeógrafo ou mesmo escritos à mão,

destinados ao trabalho de massas, de divulgação e propaganda da guerrilha:

"1) 'Carta ao Povo de Porto Franco e Tocantinópolis', assinada pelo médico João

Haas; 2) 'Carta de Osvaldão a Seus Amigos'; 3) 'Comunicado Sobre a Morte de

Helenira Resende'; 4) 'Comunicado Sobre a Morte do Juca'; 5) 'Manifesto do 1º Ano

de Luta'; 6) 'Manifesto ao Soldado'. Foram mimeografados mais de cem exemplares

do documento 'Em Defesa do Povo Pobre e Pelo Progresso do Interior' (programa da

322 Idem, ibidem.

323 Op. cit., p. 22-3.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

172

ULDP). Também foi mimeografado o 'Romance da Libertação' (de autoria do

Mundico, do C). Editou-se igualmente um manifesto contra o INCRA."324

A Comissão Militar (CM), como era conhecida internamente, entre os guerrilheiros e no partido,

ou o 'Comando das FORGA', como ela assinava seus documentos a serem divulgados amplamente,

elaborou também alguns manuais de orientação militar, contendo algumas orientações aos combatentes,

sobre como proceder em alguns domínios considerados por ela, CM, débeis. São eles:

"1) 'Normas sobre Segurança no Trabalho de Massa'; 2) 'Normas sobre

Acampamento'; 3) 'Normas sobre Recrutamento para a Guerrilha'; 4) 'Adendo às

Normas de Marcha'; 5) 'Indicações para a Organização de Núcleos da ULDP'."325

A edição de todos estes materiais se justificava na medida em que, segundo Arroyo, a maioria dos

combatentes que haviam tombado, o foram por causa de erros de procedimento nesses pontos

considerados críticos.

Assim, nas visitas que fossem feitas às massas deveria-se tomar todas as medidas de segurança

possíveis, tratar tal ação como sendo uma ação militar. Também quanto aos acampamentos, estabelecia-

se condições de boa escolha de local para sua instalação e funcionamento do mesmo. Quanto à marcha,

ainda segundo Arroyo, dever-se-ia evitar explorar caminhos que não se conhecia, para assim evitar

perdas na mata, que foram freqüentes.

Já quanto às normas para eventuais recrutamentos de novos integrantes para os destacamentos,

nota-se grande rigidez, afim de evitar a infiltração de espiões:

"Exigia-se que antes de trazer qualquer elemento de massa para as fileiras... era

preciso conhecer bem a pessoa, saber a opinião das massas... se se trata de morador

antigo ou novo e se é estimado ou não. Antes do ingresso... era necessário

experimentar os elementos novos na realização de determinadas tarefas... ajudar... a

324 Op. cit., p. 23.

325 Idem, ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

173

elevar o seu nível político e ideológico e ensinar os analmfabetos a ler e

escrever. os recrutados não deviam conhecer os depósitos, áreas de refúgio e locais

de encontro com outros destacamentos."326

Sobre a criação dos núcleos da ULDP, igualmente passíveis de infiltração de agentes do inimigo,

definem-se as seguintes regras de organização e funcionamento:

"a) deviam ter de três a cinco membros, com um responsável; b) os componentes de

um núcleo não deviam conhecer a organização de outros núcleos; c) as tarefas dos

núcleos deviam ser: colher informação, fazer propaganda da guerrilha... ajudar...

com alimentação, defender os interesses do povo da região."327

Arroyo afirma que o maior avanço da guerrilha durante o período de trégua foi justamente o

trabalho de massas, ele diz que:

"Estendeu-se nossa influência entre o povo. Ganhamos muitos amigos, e não era só

apoio moral. Amassa fornecia comida e mesmo redes [hamacs], calçados, roupas, etc.

E informação. Contávamos com o apoio de mais de 90% da população. Afraca

presença do inimigo na área e a nossa política correta no trabalho de massa

proporcionaram esses êxitos. Os guerrilheiros, todos eles, eram bastante estimados.

Os de maior prestígio eram: Osvaldo e Dina... Os guerrilheiros ajudavam as massas

no trabalho de roça. O 'Romance da Libertação' era recitado pela massa. Os hinos da

guerrilha, elaborados lá mesmo, eram cantados pela massa. Nas sessões de terêcô

(candomblé) se faziam cantorias de elogio à guerrilha... alcançou êxito também o

folheto 'A vida de um lavrador', literatura de cordel de autoria de Beto... Uma

composição musical em ritmo de toada local (lindô), da autoria de Osvaldo e Peri...

326 Ibidem.

327 Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

174

alcançou êxito. A Rádio Tirana328 era ouvida por muitos... e seus comentários eram

bem recebidos."329

Nesse tempo também se fez reuniões de massa para discutir problemas comuns como por

exemplo a questão do INCRA, tais reuniões chegaram a alcançar o número de cinquenta pessoas.

Quanto à organização dos núcleos da ULDP, segundo Arroyo, criaram-se treze, espalhados pela

região. Ampliou-se também o contato com o que ele chama de "outras forças", comerciantes, religiosos,

etc.

No que tange a novas adesões à guerrilha, Arroyo fornece as seguintes cifras:

"Aderiram à guerrilha, como combatentes, vários elementos de massa: em dezembro

de 1972, entrou 1; em abril de 1973, 1; de junho em diante entraram mais 5 no A, 2

no B e 2 no C. Uma boa parte da massa realizou tarefas ligadas à atividade

guerrilheira."330

Mas, durante a trégua, nem só de trabalho de massa viveram os destacamentos guerrilheiros.

Todos os três realizaram ousadas ações militares que contribuíram para fazer crescer ainda mais a

admiração e o respeito das populações locais pelo 'povo da mata'.

O Destacamento B, sob o comando de 'Osvaldão', eliminou um bate-pau chamado Osmar, grande

conhecedor da região e que vinha guiando as tropas do Exército na caça aos guerrilheiros. Em março de

1973, realizou uma outra ação que colocará em pânico os grileiros da região. Foi feito o 'justiçamento'331

de um afamado grileiro, conhecido e odiado pela população pobre pela sua maldade. Trata-se de 'Pedro

Mineiro', o mesmo que Osvaldo expulsara da área antes do começo da luta armada. Após a primeira

328 Emissora de rádio da ex-República Popular Socialista da Albânia, que transmitia diariamente programas destinados ao

Brasil e que, não raro, emitia comunicados e apoios da guerrilha ou a ela destinados.

329 Op. cit., p. 24.

330 Ibidem.

331 Termo correntemente utilizado para designar o fuzilamento por um pelotão de execução guerrilheiro de inimigos

confessos da guerrilha ou traidores.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

175

ofensiva do Exército, o tal grileiro voltou a se estabelecer na região e, o que piorou a sua

situação, passou a colaborar com as tropas federais, denunciando os supostos colaboradores da guerrilha.

"... o Destacamento B realiza uma operação contra um odiado pistoleiro que

responde pela alcunha de Pedro Mineiro. Estava a serviço da CAPINGO, empresa-

arapuca de grileiros, conhecida... por uma série de crimes praticados contra

lavradores e peões contratados para derruba, limpeza, plantio, etc. Mineiro era

também bastante conhecido, tinha nas costas dezenas de mortes. Expulsou de seus

lares... muitas famílias de posseiros, abrindo caminho para a ocupação por intrusos

poderosos. Sempre esteve ligado à polícia. Agora, contava com a proteção do

Exército. Numa ação bem coordenada... o destacamento... detém o bandido... Faz-se

um julgamento sumário e aí mesmo o criminoso é fuzilado... No local apreendem-se

armas e munições, roupas, comestíveis e remédios... são encontrados mapas

aerofotogramétricos... vários títulos de posse ilegal de terras e cartas de militares

recomendando-o... A execução deste pistoleiro alcança enorme ressonância... é

saudada... como um grande ato de justiça do povo".332

Noutra versão, do jornalista Fernando Portela, o episódio é narrado da seguinte maneira:

"Na verdade, os guerrilheiros se envolveram com outras preocupações antes... da

terceira campanha. Eles deixaram a guerrilha de lado [sic] e fizeram política. Um

exemplo é o 'julgamento' de Pedro Mineiro.

Pedro Mineiro: jagunço, dedo-duro da polícia, contumaz deflorador de moças e

guia do Exército. Homem de uma impopularidade espantosa... Assim, foi apresentado

como 'inimigo das massas'. Os guerrilheiros conseguiram pegá-lo e ele foi julgado

por um 'tribunal popular' que imediatamente o condenou à morte. Do 'tribunal'

faziam parte vários nativos. E o pelotão de fuzilamento foi sugestivamente composto

só de mulheres, guerrilheiras ou não."333

Já o Destacamento C realizou ação semelhante embora o desfecho não tenha se dado da mesma

forma. Em agosto, invadiu durante a noite a fazenda e casa de comércio de um certo Nemer Kouri.

332 "Diário da Guerrilha do Araguaia". In: Op. cit., pp. 55-6.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

176

Segundo testemunhas ele teria ajudado o Exército a prender 'Geraldo', José Genoíno Neto, e que teria

também se apossado de um burro que pertencia aos guerrilheiros. Assim Arroyo narra a operação:

"Sua fazenda foi cercada. Encontravam-se láNemer e sua mulher e mais 13

trabalhadores. Nemer foi preso. Aos 13 peões, os guerrilheiros, explicaram o motivo

da ação e os objetivos da luta. Nada se fez contra eles. Os guerrilheiros confiscaram

400 cruzeiros; um revólver 38; roupas, alimentos, remédios."334

O Destacamento lançaria em seguida um comunicado escrito em que relatava a ação punitiva

realizada contra Nemer. Nesse comunicado, pode-se ler que:

"... o destacamento... decidiu cobrar unicamente uma indenização pelos prejuízos

materiais que ele ocasionara às Forças Guerrilheiras. Não lhe aplicou pena mais

severa tendo em vista dar-lhe uma oportunidade de se corrigir... os combatentes

arrecadaram armas, dinheiro e mercadorias num valor igual ao do montante dos

danos que o fazendeiro causara aos guerrilheiros. Nem um centavo a mais... foi um

ajuste de contas. Disto são testemunhas os... peões e empregados de Nemer...

... que a punição... sirva de advertência a todos aqueles que perseguem e se prestam

ao infame papel de bate-paus..."335

Mas, a ação mais espetacular do período, será mesmo a realizada pelo Destacamento Helenira

Resende (A), em setembro de 1973, quase no final da trégua. Trata-se de um ataque a um posto da

Polícia Militar do Estado do Pará, com o qual, além de se fazer uma enorme propaganda da guerrilha,

ainda conseguiu-se capturar armas e munição. O ocorrido é relatado em um comunicado do

Destacamento:

"Aos moradores de Marabá, São Domingos e Brejo Grande.

333 Op. cit., p. 79.

334 Angelo Arroyo, op. cit., p. 24.

335 "Comunicado do 3º Destacamento Sobre a Punição ao Grileiro Nemer Curi". In: João Amazonas e alii, op. cit., pp. 80-1.

Ver íntegra do documento em Anexos, pp. x-x².

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

177

As populações do Sul do Pará.

Um grupo de Combate... atacou, na segunda quinzena de setembro, o Posto da

Polícia Militar situado na Transamazônica...

Ao amanhecer, o Grupo... cercou... e intimou os soldados... a render-se. Não

atendendo à intimação, foi dada a ordem de atirar e, em seguida, ateou-se fogo no

Posto, o que obr'igou os seus ocupantes a se entregarem.

Foram apreendidos 6 fuzís, 1 revólver, munição... roupas e calçados. Os soldados,

depois de interrogados, sofreram severa advertência: se voltarem a cometer

violências contra o povo serão justiçados. Os atacantes os expulsaram do local.

A ação... contou com o apoio e a simpatia da população. Os soldados portavam-se

como desordeiros, cometiam constantes arbitrariedades contra o povo, faziam

extorsões e chantagens, desrespeitavam as famílias dos lavradores. Eram odiados por

todos...

José Carlos,

Comandante do Destacamento."336

A versão do jornalista F. Portela é um pouco mais jocosa e detalhada. Tais detalhes não se sabe se

são verdadeiros ou frutos da imaginação popular que já cuidava de tranformar o 'povo da mata' em seres

fantásticos, providos de poderes sobrenaturais:

"Isso repercutia na população. E foi muito fácil aquele assalto. O grupo guerrilheiro,

já integrado por elementos locais, entrou no posto e, sem a menor reação, confiscou

todas as armas dos policiais, inclusive metralhadoras [sic]. Depois exigiu que os

trêmulos soldados tirassem a roupa. recolheu também as fardas e ordenou:

- Agora todo mundo vai correr até Marabá!

Debaixo das gargalhadas dos guerrilheiros e tiros para cima, os policiais entraram

em pique pela estrada. A notícia correu com a mesma velocidade. E a maioria dos

soldados da PM começou a sentir em cada homem pobre daqueles lugarejos, um

inimigo em potencial"337.

336 "Comunicado do Destacamento Helenira Rezende Sobre o Ataque a um Posto da Polícia Militar". In: Op. cit., p. 82.

337 Op. cit, p. 71.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

178

Em agosto de 1973, a CM realiza uma reunião com os comandos dos três destacamentos com o

intuito de realizar um balanço do trabalho até então realizado. Difícil era esconder a euforia que tomava

conta do conjunto dos combatentes haja vista os avanços obtidos em diferentes domínios de suas

atividades. Entre os maiores êxitos, cita-se o trabalho de massas, o maior conhecimento do terreno e o

suprimento de alimentos. Na lista de debilidades, inclui-se precariedade de armamento, pequena rede de

informações. Orienta-se, ao final, que se estenda o trabalho de massas, ao mesmo tempo em que todos se

coloquem em estado de alerta pois as tropas federais poderiam voltar a qualquer momento.

Em seguida, a reunião se debruça sobre a avaliação das diferentes hipóteses de tática que deveria

ser utilizada pelas FF.AA. Neste momento, o comando guerrilheiro começa a cometer graves erros

táticos e, mesmo, estratégicos:

"Na reunião adotaram-se as seguintes recomendações. Ao começar a ofensiva do

inimigo, os destacamentos deviam concentrar todos os seus componentes [grifo

nosso] e, diante das informações concretas, ver como agir... ter sempre presente o

nosso objetivo estratégico principal nessa primeira fase da luta guerrilheira:

conservar as forças, sobreviver... evitar ações que redundassem em baixas.

Dependendo da envergadura da ação do inimigo, poderia se recuar para as áreas de

refúgio ou continuar realizando pequeno trabalho de massas e ações militares de

fustigamento ou mesmo de emboscadas."338

A diretiva de agrupar todos os guerrilheiros, por si só contraria um dos princípios mais basicos da

guerra de guerrilhas, sobretudo em sua fase inicial. A força da guerrilha está justamente na dispersão

territorial de pequenos grupos que, embora atuando autonomamente, são dirigidos e coordenados por um

comando único. Então, a reafirmação aprovada em seguida na mesma reunião de que o importante era

sobreviver, caia em direta contradição com a primeira assertiva, comprometendo-a seriamente.

Mas os erros de orientação militar não parariam por aí. Na mesma reunião, é feita uma série de

avaliações que se demonstrariam tragicamente incorretas:

338 Angelo Arroyo, op. cit., pp. 24-5.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

179

"Predominava na CM a opinião de que, se o inimigo não entrasse até

outubro, possivelmente não entraria no período seguinte, devido às chuvas. E que ele

não poderia fazer uma campanha demorada, devido a problemas de logística.

Acreditava-se que não entraria na mata, pois não tinha bastante tropas especializadas

para isso. ficaria nas estradas e batendo as grotas. Achava-se improvável um cerco

total da área. Considerava-se que o inimigo atacaria mais seriamente as massas e por

isso se devia estudar a possibilidade de a massa se proteger. Havia condições para

recrutar muitos elementos de massa para a guerrilha. Era grande já o número dos

que se tinham comprometido a ingressar na luta caso o Exército ocupasse as

roças."339

O único ítem deste elenco de apreciações feitas na reunião da CM que corresponderá inteiramente

ao que de fato virá a ocorrer, é o último deles, o de que o Exército dessa vez atacaria mais violentamente

as massas. Mas, mesmo nessa avaliação, não se considerava a intensidade da violência que seria

empregada pelas tropas federais. Em verdade, ela será tão vigorosa que mesmo o contigente que segundo

se relata estaria disposto a se integrar à guerrilha se verá impedido de fazê-lo.

Numa palavra, a reunião do comando guerrilheiro cometeu um erro que já fez sucumbir através

da história poderosíssimos exércitos. Desde Napoleão durante a invasão da Rússia Czarista, até Hitler,

igualmente na invasão nazista da União Soviética. Tal erro, de um primarismo que choca, pois ao se

estudar importantes guerras através da história, sempre se constata a sua ocorrência quando se avalia os

porquês da derrota de uma parte e da vitória da outra, consiste simplesmente em menosprezar o

adversário com o qual se bate, o que, nas condições de uma guerra de guerrilhas significa, quase

fatalmente, a derrota militar completa e total, a aniquilação do movimento guerrilheiro. Esta fatídica

reunião e as decisões que dela emanaram terão, como veremos, papel preponderante na configuração

final do confronto militar no sul do Pará.

Juntamente com estes erros, outros foram cometidos. Desta feita, não por que a CM tivesse

orientado mal os destacamentos, e sim porque estes deixaram de aplicar firmemente as recomendações

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

180

por ela emitidas. tal se verifica na questão da eliminação dos bate-paus da região, o que Arroyo, em

trecho já citado, eufemísticamente chamou de 'limpeza da área'. Somente o Destacamento B cumprirá

essa ordem e 'justiçará' dois bate-paus (Pedro Mineiro e Osmar) que haviam ajudado o Exército a

eliminar vários guerrilheiros, guiando-o mata adentro. Os outros destacamentos simplesmente não

procederam desta forma, essa omissão custará muito caro aos guerrilheiros, pois um bate-pau,

conhecedor dos segredos da mata, de seus caminhos quase invisíveis, valia mais que um batalhão inteiro

de soldados. Ao não aproveitar o período de trégua para eliminá-los, potencializava-se involuntariamente

a futura campanha de cerco e aniquilamento. Algumas vezes alguns desses bate-paus ou mateiros não

foram abatidos por pura ingenuidade dos combatentes:

"... O nosso pessoal tinha uma enorme e justa preocupação para não cometer um

engano qualquer e ferir ou matar um homem do povo. Isso gerava hesitações. Havia

um jagunço na região conhecido por Pernambuco, que estava fazendo um estrago

com a gente. ele conhecia muito bem a mata e guiava o Exército aos lugares certos,

obrigando-nos a entrar em contato, em confronto direto, o que sempre era

desvantajoso. O nosso pessoal resolveu que tinha de dar um jeito no tal Pernambuco

ou ele causaria danos maiores na gente. o problema é que quase ninguém conhecia o

jagunço. E, certa vez, ficaram dois guerrilheiros tocaiados esperando o Pernambuco.

Depois de algum tempo surgiram dois sujeitos, com aquele jeito de gente da roça. Os

guerrilheiros pularam em cima deles, dominaram, e aí começou o erro. Um dos

guerrilheiros foi logo dizendo:

- Fiquem calmos que a gente não vai fazer nada com vocês. Quem são vocês?

Os dois negaram que conhecessem Pernambuco... e forma liberados. Pois um deles

era o próprio... Mas esse nosso pessoal nem pediu documentos. Inexperiência"340.

339 Idem, p. 25.

340 Idem, "Fala o Líder Comunista" (Entrevista com Haroldo Lima), pp. 169-70.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

181

Um oficial avaliou, numa entrevista anônima, a importância e utilidade dos mateiros ou

bate-paus para as forças do governo, por suas palavras pode-se perceber como o não cumprimento

estrito daquela ordem da CM foi prejudicial para a guerrilha:

" - Nós não víamos o que eles viam: folhas quebradas, galhos, coisas muito pequenas

que o sujeito vai deixando na hora em que se desloca. Um bom rastreador, um

jagunço, um mateiro desses, consegue localizar a mínima pisada que alguém dá na

lama, ou numa folha. E, através de um galho quebrado no chão, o mateiro tira a

direção da pessoa que persegue."341

Outro erro, igualmente grave, foi o de não ter tomado providências contra as pessoas estranhas

que nesse período começaram a se instalar na área, em sua maioria, informantes das FF.AA. que

desempenhariam um papel fundamental na terceira ofensiva das tropas governamentais. Nesse particular,

Arroyo dizia que havia uma infiltração muito grande de policiais disfarçados na região, ou seja,

demonstra que o comando sabia dessa manobra das FF.AA. Então se impõe a pergunta: Por que não se

tomou nenhuma providência a respeito? A resposta nos é fornecida nos seguintes trechos:

"... Os guerrilheiros cometeram erros primários para não desagradar o 'seu povo'"342.

"Mas entre os guerrilheiros há euforia... e uma idéia exageradamente otimista

ganha adeptos entre os combatentes: o Exército jamais nos pegará...

A quase certeza de que o Araguaia seria uma 'área autônoma' dentro do Brasil,

começa a desmobilizar os guerrilheiros. Eles desconfiam dos fazendeiros que vão

surgindo, de maneira legal, porque compram suas terras em cartório, mas é uma

gente estranha. Querem expulsá-los dalí, desconfiados de que são espiões de Exército.

Mas o povo não deixa, não acredita. «É gente boa», dizem. E os guerrilheiros já se

haviam acostumado a jamais descontentar aquele povo que lhes dava alimentação e

341 Fernando Portela, op. cit., p. 69.

342 Idem, p. 39.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

182

lhes escondia, quando a coisa apertava dentro da floresta, e que agora até homens

oferecia."343

Internamente, na sua estrutura organizativa, houve alguma mudança como Arroyo explica:

"Desde a segunda campanha... os destacamentos já não conservavam a antiga

estrutura dos grupos de sete permanentes. mantiveram-se os chefes de grupos, mas

estes grupos variavam, em sua composição e número, segundo as necessidades da

tarefa. Terminada... o grupo desaparecia. Os destacamentos jogavam com o conjunto

dos combatentes."344

Quanto aos efetivos mais antigos, foram registradas duas baixas, ambas em setembro. A primeira

foi a morte de 'Mundico', do C, através de um acidente com sua própria arma. A segunda foi a fuga de

'Paulo', do A.

Conseguimos obter dois outros documentos oficiais inéditos, ambos redigidos nesse mesmo

período de trégua e pertencentes ao Exército. Pelo valor que os dois apresentam, procederemos aqui à

sua análise minuciosa.

O primeiro deles trata-se de um relatório, ao que tudo indica, produzido pelo serviço de

informações daquela instituição e é extremamente rico pois traz uma avaliação mais do que insuspeita

sobre a real situação do movimento guerrilheiro em meados de 1973. A deficiência do documento,

contudo, consiste em não estar datado precisamente. Entretanto, uma referência a um fato ocorrido em

abril de 1973, nos indica que ele deve ter sido produzido logicamente após aquela data e, por outras

indicações mais difusas, antes do início da terceira campanha. Logo, em nossa opinião, sua data

presumida de publicação se situa entre fins de abril e setembro de 1973, muito embora, supomos que ele

tenha começado a ser redigido ainda no ano de 1972, pois à primeira página escreve-se este ano. Para

ter-se uma idéia mais exata da data verdadeira de sua edição, precisaríamos de alguns dados que no

343 Idem, p. 70-2.

344 Op. cit., p. 25.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

183

momento ainda não possuímos. Por exemplo, em um dado trecho, periodiza-se a apreciação

em 'antes' e 'depois' da chegada das tropa de Pára-quedistas. Em seguida, tudo leva a crer que o

documento foi redigido logo depois deste evento. como não sabemos ao cero quando tal se deu,

permanecemos no terreno das probabilidades.

Chama-se "Relatório do Destacamento das Forças Especiais da Operação Andorinhas - 1972 -

Exercício de Operações Psicológicas". Não traz assinaturas, nem qualquer símbolo oficial, nem local de

publicação. Apesar destes incovenientes, o que, de resto, é assaz normal em se tratando de documentos

produzidos pelos órgãos de informação ligados à repressão política na época em questão, é um

documento riquíssimo e traz importantes informações sobre a guerrilha no sul do Pará. Vamos ao seu

exame.

O documento começa pela descrição fisiográfica do que é denominado 'área de operações'.

Fornece detalhadamente dados relativos à superfície e forma, orografia, vegetação, transitabilidade do

solo, hidrografia e clima.

Feitas essas caracterizações físicas da região, num segundo momento, o documento passa a

relatar as suas condições econômicas: transportes, cidades principais e número de habitantes, recursos

econômicos e padrão de vida. Fechando este ítem, justamente, na parte que trata do 'padrão de vida',

pode-se ler interessantes comentários, sobretudo quando se considera que são oriundos do Exército. Diz

o documento:

"Sem dúvida o padrão de vida reflete na área a existência de uma população

miserável, explorada e mantida, para sobrevivência, sob jugo de uma pequena

minoria que não só explora como ameaça, manda destruir, apossa-se de propriedades

dos pequenos e não raro os elimina, contando para isso com o beneplácito de

autoridades policiais corruptas e legisladores e governantes inescrupulosos."345

345 "Relatório do Destacamento das Forças Especiais da Operação Andorinhas", s.l., s.d., fl. 4 (Ver íntegra nos Anexos, pp.

x-x²).

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

184

Feitas essas observações, abre-se um novo ítem, denominado 'Fatores Psicossociais', que merece

um pouco mais de atenção. Começa-se por avaliar o 'estado sanitário' da região. Em seguida, constata-se

a ausência de assitência médico-hospitalar à população, acrescentando-se que tal situação:

"contribui enormemente para [que], como vinha sendo feito, nas áreas rurais e mais

afastadas das cidades tal assistência médica vir sendo dada por intermédio dos

subversivos que se encontravam na área. Este vínculo criado e fortificado, em uma

população abandonada, poderá criar sérios obstáculos à atuação da fôrça Federal

naquela área [grifos nossos]."346

Neste mesmo ítem, 'Fatores Psicossociais', há um parágrafo dedicado à descrição da 'Estrutura

Social', não menos interessante:

"... há praticamente duas sociedades na área de operações - a das cidades e a dos

campos... Não conseguimos identificar a possibilidade de mobilidade social nas áreas

urbanas, sendo no entanto totalmente inexistente nas áreas rurais... A sociedade rural

é dominada pelos donos de serrarias, que em sua maior parte moram nas cidades. A

maioria de seus componentes é constituída de camponeses sem terra, sem organização

e sem apoio governamental. É uma sociedade completamente estratificada...

As tensões sociais, originam-se da insatisfação da classe média, arbitrariedades

cometidas por grandes proprietários e a polícia, ao desemprego crônico, a exploração

do homem e ao trabalho rural em regime de semi-escravidão"347.

Sob o título de 'Características Culturais', um outro parágrafo afirma que:

"... mais de 75% da população não sabe ler e escrever... inexistência de escolas

primárias... Os subversivos haviam montado escolas primárias em áreas bastante

interiorizadas (ESPERANCINHA, PATRIMÔNIO, etc.)"348.

346 Ibidem.

347 Idem, fl. 5.

348 Ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

185

Até aqui, tudo o que é relatado poderia muito bem ter sido feito por um dos

guerrilheiros. Trata-se de um trabalho de observação da realidade nua e crua, tal e qual ela se lhes

apresentava. Poderiam muito bem constar num panfleto das FORGA, mas neste caso, seria considerado

subversivo. Os trechos acima citados nos demonstram claramente que as FF.AA. tinham muito claro a

situação de injustiça reinante na região e, mesmo sem o querer, acabavam por legitimar a luta levada a

cabo pelos guerrilheiros.

O documento passa então a tecer comentários sobre a 'Atitude da População'. Constitui-se numa

importante avaliação feita pelas forças governistas, portanto altamente insuspeita, sobre como se

comportou a população diante do conflito:

"A população... ao princípio das operações, sem que tivesse sido doutrinada pelos

subversivos para tal, manteve-se simplesmente apática à presença da tr'opa federal.

Tanto dava informações sobre os terroristas, como em nossa opinião fornecia

informações da tropa para os subversivos.

Este fato é digono de nota, pois seria mais grave se as ações de proselitismo

houvessem sido feitas.

O povo demonstra grande amor pela liberdade e ânsia de soberania, o que pode

facilmente deduzir-se pela enorme quantidade de denúncias e queixas realizadas

contra os grandes proprietários da área. Somente após duas a três semanas de intenso

trabalho psicológico, através da ACISO junto à população é que a mesma passou a

tender para o lado da força federal. Os subversivos, em nenhuma ocasião fizeram

pressão sobre a população. Mesmo durante as incursões para obtenção de alimentos,

portaram-se de maneira cavalheiresca"349.

O documento continua, no mesmo parágrafo, avaliando a profundidade da ligação existente entre

guerrilha e população. Conclui, como se verá, dizendo que não existia uma "força de sustentação, como

a concebemos [grifo nosso]"350. Para saber o que vem a significar essa assertiva, assim como outras em

349 Idem, fl. 6.

350 Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

186

que se refere vagamente a um outro conceito, 'força subterrânea', necessário seria saber qual era essa

concepção de 'força de sustentação' que o Exército tinha. E segue o documento:

"Os guerrilheiros vinham há quase quatro anos instalando-se pacientemente... Com a

eliminação física dos pontos de suprimento, o apoio de logística foi extinto. Como não

havia estrutura realmente organizada junto à população civil, surgiu o caos, a falta

de alimentos, suprimento médico e informações. A população somente ligada

afetivamente ao indivíduo, sem vínculo político-partidário e sem organização. Por

essa razão sua atitude tranformou-se rapidamente em favor da Força Federal. A

atitude da população face ao comunismo é a mesma face à democracia, simplesmente

porque desconhece o que venha a ser um ou outro... Por longa tradição aceita a

violência como fator de definição nas situações críticas, porque não há sistemas

policial e garantias individuais na área, em que a justiça em grande parte dos casos é

feita pelas próprias mãos. Por outro lado é ordeira, pacífica e humilde"351.

Mais à frente arremata sobre o trabalho político dos guerrilheiros com a população:

"Somente após a presença da tropa na área é que sentiu-se a participação política

dos subversivos...

Possivelmente sua doutrinação política seria iniciada dentro de mais algum tempo. a

principal atuação política era realizada somente entre eles em que os chefes de grupo,

possuiam livros e marcavam debates de reforço... com vistas à preparação da luta

armada."352

Num outro ítem, 'Apreciação sobre as Operações', o tom otimista do parágrafo anterior é

atenuado. Lista-se as dificuldades que a tropa federal tem enfrentado no combate à guerrilha:

"- [A região] Apresenta fisiográficamente todas as condições ideais para a

implantação de infra-estrutura para uma organização guerrilheira

- Apresenta as causas econômicas, psicossociais e políticas fundamentais à

motivação e ao desenvolvimento de movimentos revolucionários.

351 Ibidem.

352 Idem, fl. 7.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

187

- É área insalubre, de difícil acesso em seu interior, com rede de circulação

reduzida, exigindo da tropa treinamento adequado e condições psicológicas para o

tipo de combate que nela se iria fazer.

- A falta de cartas, mapas, fotografias e informações exatas, dificultou sobremaneira

e retardou as operações na área. Obrigou ao uso de mateiros e guias locais, pela total

impossibilidade de identificação dos locais pelos meios próprios."353

Num ítem especial sobre a 'organização subversiva', após advertir-se que para tais considerações

seriam levados em conta as informações exitentes e os informes colhidos durante as operações anteriores,

notadamente, o período compreendido entre 14 de maio e 12 de junho de 1972, tece-se os seguintes

comentários sobre a estrutura organizativa da guerrilha e sua movimentação na área:

"Conforme consta do 'Relatório de Informações' os subversivos da área estavam

organizados e distribuídos em três destacamentos... Cada um dos destacamentos se

compõem de 3 grupos de elementos. Tal organização foi plotada [palavra inexistente,

talvez a intenção tenha sido de se escrever 'plantada' ou 'implantada'] durante as

operações realizadas antes da chegada da tropa de pára-quedistas à área de

operações.

Após a chegada da tropa pqdt [pára-quedista] e início de suas operações [Quando?]

tudo levava a indicar a presença de uma centena de guerrilheiros homiziados e

interiorizados na área NE da Serra das Andorinhas... GAMELEIRA, GROTA SÊCA e

COURO DANTAS.

Havia sido identificado como líder dêsse grupo o indivíduo conhecido... pela

alcunha de OSVADÃO.

Na área SW da Serra das Andorinhas, vários informes haviam identificado os

subversivos 'PAULO', 'JAIME', 'ANTÔNIO', 'DINA', 'CARLITO', 'MARIA' e

'HELENA', nas áreas de CAIANO e PAU PRETO.

Configurava-se o quadro que os subversivos conheciam os movimentos realizados

pelas patrulhas naquela região e homiziavam-se, interiorizando-se na mata, furtando-

353 Idem, fls. 7-8.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

188

se ao combate e evitando qualquer contato com a Fôrça Federal. Apareceram em

vários lugares por onde a tropa (cia (-) do 2ºBIS) já havia passado"354.

Continuando na tentativa de mesurar e definir a organização guerrilheira, o documento deixa

transparecer que, até o momento de sua redação, não se sabia da existência de um comando unificado

das atividades guerrilheiras, pelo menos é o que faz pensar o seguinte trecho:

"Os informes definiram a organização dos grupos e destacamentos bastante

descentralizadcos em grupos de 4, 3 e 2 elementos, a fgrande distância uns dos

outros. Não havia a identificação de fôrça principal [grifo nosso], notando apenas

trabalhos de desinformação e difusão de boatos, o que não considera-se como força

subterrânea [?], uma vez que poderia ser fruto da imaginação e do misticismo de uma

população ingênua e ignorante. Não havia então, a configuração da existência de

fôrça de sustentação [?], julgando-se pelos fatos conhecidos e possibilidade de sua

existência."355

As duas últimas folhas do documento, ambas manuscritas, são intituladas "Conclusões do Est. Sit.

Área", que pode-se muito bem considerar como sendo: 'Conclusões do Estudo da Situação da Area da

Operação'. Nelas, toma-se conhecimento, de maneira resumida, das opiniões finais do(s) autor(es) do

'Relatório'.

Começa-se por enumerar os principais problemas da área:

"falta de assistência médica e social... de medicamentos contra a malária... ação

negativa da Polícia Militar de Goiás... em Xambioá... analfabetismo... luta entre os

donos de castanhais, serrarias, fazendas, posseiros e grileiros... inexpressiva agro-

indústria... mau aprovetamento das terras."356

354 Idem, fl. 8.

355 Idem, fl. 9.

356 Idem, fl. 10.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

189

O segundo ítem das conclusões, é dividido em quatro sub-ítens. Façamos pois um

pequeno apanhado das partes mais importantes deles:

"a . A área... é facilmente isolável e foi bem escolhida... pois:

- está nos limites de área do CMA, CMP e VIII RM.

- ... excelentes condições de homízio.

- a população, desassistida pelos órgãos governamentais, é revoltada... presa fácil

daqueles elementos mediante um bom trabalho de massa.

- a área propicia condições de auto-sustento proporcionado pelo solo fértil, que

facilita a cultura e a criação... bem como pela caça, pesca e frutos naturais...

- as rivalidades... na área, são passíveis de exploração, podendo facilitar o

arrebanhamento de uma das partes em benefício da subversão [todos os grifos são

nossos].

b . No aspecto do terreno, os subversivos... conhecem em profundidade... :

- em cada ponto estratégico, acredita-se que... tenham uma base de apoio

preparada... donde conclui-se que no caso de fuga disponham de várias alternativas.

- a adesão de colaboradores locais facilita seus movimentos...

c . Os problemas sociais da área constituem a base da doutrinação... : terra, escolas,

saúde e aposentadoria para o lavrador.

Em 12 de abril de 1973... lançam um manifesto, em que explora esses problemas e

compele o povo a filiar-se à... (ULDP) "357.

Ao finalizar o documento, faz-se uma afirmação muito importante para se avaliar a dimensão que

o movimento guerrilheiro estava a assumir para as FF.AA.:

"d . Se aliarmos o grande conhecimento do terreno ao trabalho de massas que vem

tendo junto à população, e sua adesão, conclui-se que uma vez livres da ação da

tropa, têm condições de ampliar seu movimento visando ações de maior vulto,

podendo chegar à coluna guerrilheira, a médio ou longo prazo [grifo nosso]."358

357 Idem, fls. 10-1.

358 Idem, fl. 11.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

190

Segundo Mao Tsé-tung, as colunas guerrilheiras seriam já um estágio superior da guerra de

guerrilhas, acima da organização por destacamentos e grupos, próprias da primeira fase da luta, e pouco

abaixo da organização do exército do povo ou exército popular. Passar de um estágio a outro depende

de muitos fatores, entre os quais, a sobrevivência do movimento guerrilheiro e um amplo trabalho de

politização junto aos camponeses. Donde pode-se concluir que, na avaliação dos serviços de informações

das FF.AA., a guerrilha estava ganhando força e, se não fosse aniquilada, poderia vir a se constituir num

grande problema para a segurança do País.

Como se vê, uma afirmação, proveniente dos serviços de informação das FF.AA., que chega a

registrar tal opinião, deveria fazer pelo menos alguns daqueles que insistem em negar a importância da

Guerrilha do Araguaia, a compará-la com outras tentativas isoladas da esquerda armada, sem nenhuma

base de apoio popular, enfim, sem maior conseqüência, a rever seus pontos de vista. Com uma tal

avaliação da situação do confronto no sul do Pará, pode-se facilmente entender muitas coisas em todo o

processo. Por exemplo, o porquê da censura cerrada. Ao contrário do procedimento que se adotava no

combate às chamadas guerrilhas urbanas, nem mesmo notícias falsas sobre o que ocorria nas selvas do

baixo Araguaia foram permitidas. Fez-se a opção pelo silêncio total e absoluto, e tudo nos leva a

acreditar que foi por puro medo de uma proliferação do fenômeno guerrilheiro, de um 'surto guerrilheiro',

como nos falava um oficial algumas páginas atrás.

Um outro documento secreto, intitulado "Norma Geral de Ação - NGA", originário do gabinete

do ministro do Exército em Brasília, redigido pelo Centro de Informações do Exército (CIEx) e datado

de cinco de setembro de 1973, foi um outro grande achado a que conseguimos recentemente ter acesso.

Ele, além de se constituir em mais uma prova material daquilo que as FF.AA. teimam em negar, ou seja,

a existência da Guerrilha do Araguaia, é um retrato, ainda que parcial, de como, no momento mesmo em

que se cuidava dos últimos preparativos para o início da terceira campanha de cerco e aniquilamento, o

comando das forças de repressão avaliavam e dimensionavam o movimento guerrilheiro, assim como,

quais orientações davam aos seus subordinados. Trata-se também, pela profundidade com que

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

191

fundamenta o tema, de um pequeno resumo teórico de um dos aspectos da guerra de

guerrilhas, no qual se chega até mesmo ao requinte, supremo e inimaginável num documento das FF.AA.,

de fundamentar sua argumentação em Mao Tsé-tung - que heresia!

É sinal que as FF.AA., desde o começo dos embates, amadureceram-se do ponto de vista militar-

estratégico, procuraram tirar lições das duas operações anteriores. Elas deixaram de considerar, pelo

menos ao nível de seu alto comando, o movimento que ocorria às margens do rio Araguaia como uma

mera ação de banditismo, isolado das massas, enfim, enxergaram o erro que tinham cometido ao

menosprezá-lo.

Esta nova maneira de encarar o confronto com os guerrilheiros, levaram-nas à compreensão de

que a guerra estavam travando era uma guerra política, e que nunca a ganhariam se a tratassem como um

simples caso de polícia ou como uma guerra convencional.

Pois bem, feitas estas considerações passemos a uma breve análise do documento. Todo ele é

consagrado à questão do 'trato com a população', ou seja, de como as FF.AA. deveriam se relacionar

com o povo da região conflagrada. Trata-se de um documento de instrução para a ação prática das

tropas mas com uma introdução que procura teorizar sobre que tipo de combate elas iriam travar.

Num ítem chamado "Conceitos Preliminares", o 'NGA' trata de definir três:

"Subversão - ... é antes de tudo, uma guerra psicológica executada atrvés de

propaganda para conquistar a mente da população e o seu apoio a um movimento

revolucionário de cunho ideológico.

Guerrilha - No contexto de guerras internas, constitue uma guerra revolucionária,

que busca a conquista do poder. Quando sob a forma de luta armada [sic], tem na

população o fator principal para sua existência e êxito"359.

E continua, desta feita procurando demontrar a relação fundamental numa guerra de guerrilhas,

qual seja, a dos combatentes em armas e o povo da região onde atuam. Reproduziremos o seguinte

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

192

trecho em sua íntegralidade, haja vista a sua impotância para se compreender os movimentos militares

que o Exército, à frente das demais forças de repressão nacionais, promoverá em seguida:

"Guerrilha - apoio da população - A população é o meio, o instrumento e a

condição essencial para o sucesso da guerrilha.

O domínio e o controle da população, fundamentos básicos dessa forma de luta

armada, constituem objetivos preliminares que são buscados progressivamente.

Importa obter uma disposição favorável e adequada da mesma. Para o êxito da

guerrilha, basta apenas que uma pequena parcela da população esteja resolvida a

apoiá-la, que outra veja o movimento com simpatia e a massa se mantenha

indiferente.

O apoio da população constitue, primordialmente, o meio de que dispõem os

terroristas-guerrilheiros para sobreviver. Nela procura as condições básicas de

sobrevivência, que dependem, em essência, das informações que a população pode

prestar, do alimento que pode fornecer e do apoio moral e financeiro que pode

proporcionar.

Sem o apoio consciente ou forçado da população o guerrilheiro morre, a guerrilha

fracassa. Não é por menos que o comunista chinês MAO TSE TUNG [sic] afirmou: 'A

população é para o guerrilheiro, como a água é para o peixe'.360

Como pode-se notar, o combate à guerrilha havia sido içado à categoria de luta a ser levada

'cientificamente', a ser ganha politicamente. Após a leitura destas linhas temos bastante dificuldade em

imaginar que elas foram redigidas pelas mesmas mãos latu sensu que redigiram os planos das duas

primeiras operações, pois delas se difere imensamente. Justiça seja feita: o Exército e as FF.AA.

demonstraram uma alta capacidade de avaliação de seus próprios erros e de correção de sua linha tático-

estratégica. O Exército que voltaria à área conflagrada, qualitativamente, do ponto de vista militar, não

era o mesmo que de lá tinha se retirado onze meses antes, sem atingir seus objetivos.

359 "Norma Geral de Ação", Brasília, Centro de Informações do Exército (CIEx), Ministério do Exército (Gabinete do

Ministro), 05/09/1973, fl. 1 (Ver íntegra nos Anexos, pp. x-x²).

360 Idem, pp. 1-2.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

193

Mas, o documento continua. Começa agora a enumerar aquilo que chama de 'Ações

Terroristas para Conquistar a População', onde repertoria as formas através das quais os guerrilheiros

fazem o trabalho político ('psicológico', segundo as FF.AA.) junto ao povo da região:

" - a propaganda ostensiva ou subliminar utilizando todos os meios de comunicação

social existentes... panfletos, contatos pessoais, reuniões de grupos com finalidades

diversas; toda ação guerrilheira que possa favorecer à população... é aproveitada ao

máximo na propaganda. Da mesma maneira, as ações praticadas pelas forças de

segurança que de alguma forma sejam consideradas negativas ou prejudiciais à

população;

- a tomada de posição em favor dos menos favorecidos, fazendo suas as aspirações

daqueles...

- o incentivo ao agravamento dos conflitos sociais... a posse de terras, o desequilíbrio

das classes sociais, o trabalho semi-escravisado, a carência de recursos, as

deficiências... sanitária e educacional... Em muitos casos, como é o atual, os

terroristas... afloram de outras regiões... são... foragidos... sendo chamados... pela

população de 'paulistas'.

- a exploração de divergências entre grupos sociais... de caráter político, religioso,

econômico ou ideológico.

- a coação [grifo nosso], gerando o medo e o pavor, através de ameaças à integridade

física e moral, assassinatos ('justiçamentos'), sequestros, assaltos, sabotagens,

delações e ações diversas, capazes de manter a população num estado de permanente

terror."361

Nesta última passagem, interessante é perceber a gritante contradição entre o presente

documento, oriundo do gabinete do ministro do Exército, localizado em Brasília, assaz distante da zona

em questão, e aquele outro, anteriormente analisado, redigido igualmente por agentes do serviço de

informações, mas que se basearam em um trabalho de pesquisa de campo, sobre o terreno afetado. Aqui

se diz que os 'terroristas' utilizam a coação como método de trabalho 'psicológico' junto ao povo, lá

afirma-se textualmente que

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

194

"... os subversivos em nenhuma ocasião fizeram pressão sobre a população. Mesmo

durante as incursões para obtenção de alimentos, portaram-se de maneira

cavalheiresca"362

Talvez o presente documento esteja se refirindo tão somente aos casos de 'justiçamento' de dois

bate-paus, ao ataque ao posto policial e à ação contra o fazendeiro Nemer Kouri, realizados pelos

destacamentos guerrilheiros.

Se é esse o caso, então, o documento confunde, propositadamente, este terror, promovido contra

aqueles que estavam agindo concretamente contra a guerrilha, em outras palavras, que estavam, como as

FF.AA., em guerra contra os guerrilheiros, com o tratamento dispensado por estes à população local que,

aliás, apoiou e saudou entusiasticamente aqueles atos acima citados contra personagens extremamente

mal vistos na área.

E mais outra coisa, ao que tudo indica, os únicos a se sentirem coagidos, aterrorizados por tais

ações político-militares dos guerrilheiros, pelo que pudemos apurar de todo o material a que tivemos

acesso, foram os soldados das PM's, jagunços, grileiros e tipos afins.

Muito ao contrário, se os guerrilheiros conseguissem o seu objetivo de eliminar ainda um outro

bate-pau como pretendiam, aquele que conseguiu escapar, como narrado linhas acima, o vulgo

Pernambuco, tudo nos leva a crer que tal ato seria igualmente acolhido pelos populares com simpatia, se

não o fosse com entusiásmo e júbilo, pois eram, todos eles, verdadeiros criminosos, de um sadismo

lendário e, apesar disso, protegidos pelos policiais e fazendeiros poderosos da área que os contratavam

quando tinham algum 'problema' com um trabalhador rural ou com algum posseiro mais renitente.

Pelo menos é o que nos conta o seguinte trecho de um relatório elaborado pelos estudantes que

faziam seu estágio no campus avançado da Universidade de São Paulo, na cidade de Marabá, no ano de

1974. Nele, os universitários paulistas relatam como o dito Pernambuco, à essa época já premiado com

361 Idem, pp. 2-3.

362 "Relatório do Destacamento das Forças Especiais da Operação Andorinhas", s.l., s.d., fl. 6.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

195

um emprego público no INCRA, como responsável pela distribuição de lotes a posseiros, era

odiado pelo povo daquelas redondezas:

"... há reclamações generalizadas contra José Fernandes Figueira, vulgo

Pernambuco, que, como responsável pela cessão dos lotes [grifo nosso], foi acusado

de doá-los a quem é de seu agrado, tirando-os de outras pessoas e provavelmente

reservando a interesses alheios e rentáveis. Em nossa atuação... durante o ano

passado, quando auxiliávamos na identificação do pessoal, pudemos observar este

fato... Entre as inúmeras reclamações contra o vulgo Pernambuco, anotamos a de...

[que] constam da série de formulários preenchidos... em Marabá."363

Como pode-se ver por este relatório insuspeito, os personagens contra os quais os guerrilheiros

promoviam ações de coação, não eram somente inimigos da guerrilha, eram inimigos do povo pobre e

abandonado daquela região, eram aqueles que cometiam toda sorte de abusos contra o povo, coagindo-

os, eles sim, a abandonar as terras que cultivavam por meio de ação violenta, para que elas passassem a

ser sedes de grandes fazendas, isso tudo, não raro, contando com a complascência, quando não com o

total apoio das forças policiais.

A preocupação que o documento das FF.AA. expressa contra a coação exercida contra a

população da área não parece sincera quando vemos que um dos grileiros mais afamados da região será

nomeado funcionário do INCRA, órgão que, teoricamente, deveria promover a política de reforma

agrária e distribuição de terras a quem não a tem. Este absurdo, um grileiro ser funcionário do INCRA,

se parece mais com uma velha anedota que se refere ao ato insensato de se colocar a raposa para tomar

conta do galinheiro, do que com uma medida de uma força que se pretende séria e que se dizia salvadora

das populações pobres daquelas paragens, aliciadas, coagidas, enganadas por 'terríveis terroristas'.

Com ações semelhantes, o Exército demonstrava a favor de quem se postava nos conflitos que há

muito confrontavam posseiros de um lado, e fazendeiros e grileiros do outro. Caía de pouco a pouco a

363 "Relatório de Atuação na 45ª Equipe do Campus Avançado da Universidade de São Paulo (CAUSP)", Marabá,

11/10/1974. In: Fernando Portela, op. cit., p. 258-9.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

196

sua máscara de neutralidade. Não é pois de se estranhar que o movimento guerrilheiro do Araguaia tenha

recebido o apoio da ampla maioria da população da zona conflagrada.

Mas, voltando à análise do documento proveniente do CIEx/gabinete do ministro do Exército, na

parte seguinte, sugere-se as ações que as FF.AA. deveriam executar para 'neutralizar' as ações dos

guerrilheiros sobre a população, são elas:

" - ... ação do poder público... que solucione os problemas existentes...

- ação do poder militar para destruir ou neutralizar a força guerrilheira e,

paralelamente, assegurar o clima de tranquilidade...

- um órgão central planejador e coordenador das ações que possa conjugar os

esforços para a conquista dos objetivos colimados;

- o tratamento dispensado à população pela força militar, autoridades e

representantes diversos do poder público."364

É sobre esta última sugestão apresentada que trata a parte seguinte do documento, intitulada

"Prescrições Gerais para o Trato com a População". Nessa parte, lê-se entre outras recomendações, as

seguintes:

"Para dar a sensação de segurança e tranquilidade é necessário que a tropa encare

a população com simpatia. São brasileiros como nós e estão sendo explorados em sua

boa fé pelos terroristas. É verdade que existem os colaboradores espontâneos já

conquistados ideológicamente pelos terroristas. Estes, já foram identificados...

Para nossa vantagem, a população da área, em geral, é expectadora da luta... Do

comportamento de cada um de nós... dependerá... para que lado tenderá [grifos

nossos]"365.

Deste trecho pode-se depreender algumas conclusões. Primeira, que o Exército, como já foi dito

antes, mostra-se disposto a travar luta cerrada contra os guerrilheiros em todos os campos, inclusive, e

principalmente, no campo da política de massa, embora a isso denominem 'trabalho psicológico'.

364 "Norma Geral de Ação", Brasília, op. cit., fl. 3.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

197

Segundo, que às vésperas da terceira campanha de cerco e aniquilamento, as FF.AA. já tinham

a lista dos colaboradores da guerrilha, certamente, fruto do eficiente trabalho de seus espiões infiltrados.

Por último, podemos notar que para o Exército, no tocante à população, o jogo estava empatado,

conquistaria seu apoio o lado que melhor soubesse 'trabalhá-la' e, já que o documento anteriormente a

considerara como sendo o fator decisivo em tal tipo de guerra, nesse particular as FF.AA. deveriam tudo

fazer para ganhá-la, sob pena de, mais uma vez, não conseguir atingir o seu objetivo estratégico - destruir

o núcleo guerrilheiro.

Esta última avaliação pode dar ensejo a duas reflexões. Uma, que diz respeito ao reconhecimento

por parte das FF.AA. que o trabalho político dos guerrilheiros tinha alcançado certo êxito, pois

provocara pelo menos o estado de 'simpatia passiva' da população, apesar de todo o trabalho 'psicológico'

que as FF.AA. vinham realizando há cerca de um ano; outra, que se a soldadesca não fosse capaz de

realizar as determinações que se lhes dirigem no tocante ao tratamento a ser dispensado ao povo, ele

poderia tender para o lado adversário. Ou seja, as FF.AA. reconhecem que não há ainda uma definição na

disputa guerreira, o jogo não está ainda decidido, tudo dependeria da atuação das tropas federais. O que,

considerada a desproporção numérica e material das partes em confronto, não deixa de ser uma avaliação

um tanto quanto negativa para o lado oficial, embora tal não chegue a ser dita abertamente.

O 'NGA' termina com orientações expresas aos soldados, de como deveriam se relacionar com a

população:

" - Tratar com educação e consideração todos os membros da população.

- Pagar o que utilizar e devolver o que pedir emprestado.

- Ser solícito e prestimoso...

- Nunca prometer o que não puder cumprir.

- Ser paciente e atencioso.

- Respeitar a família, os hábitos e costumes...

365 Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

198

- Evitar a arrogância, o excesso e o abuso de autoridade, em situações normais [grifo

nosso]"366.

Tais foram as prescrições que as tropas receberam ao começarem a terceira campanha. Mas,

desde já, convém fazer uma distinção. Estas diretivas referiam-se tão somente ao procedimento que se

deveria ter em relação à população não suspeita de colaboração com os 'terroristas'. A estes e a como

tratá-los, o documento destina suas últimas linhas, tanto vagas como sugestivas, sobretudo se

observamos de hoje como as FF.AA. agiram em relação a eles.

" - Tratar com energia e discrição todo prisioneiro apanhado entre os componentes

da população, mesmo os infiltrados [sim, por que senão se revelaria para todos suas

verdadeiras identidades];

- Evitar cenas públicas que... possam chocar a população. [grifos nossos]"367

Tais enunciados, genéricos, ganham vida e conteúdo bem concretos quando observamos como se

realizou a terceira campanha das FF.AA. e como ela tratará os presos, suspeitos de serem simpatizantes

das FORGA.

O período de relativa trégua persistirá somente até o início do mês de outubro, completando

assim cerca de onze meses de cessar-fogo, onze longos meses de intensa preparação guerreira de ambos

os lados.

No dia sete de outubro, início do período de chuvas, contrariamente às previsões da CM, as

FF.AA. voltam ao 'teatro de operações', começava assim a terceira campanha de cerco e aniquilamento

contra as Forças Guerrilheiras do Araguaia.

d - A terceira e última campanha (outubro de 74 - janeiro de 75)

366 Idem, fl. 4.

367 Ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

199

Até hoje, nenhuma introdução a uma exposição da terceira campanha de cerco e aniquilamento

foi tão bem escrita como o fez o jornalista Fernando Portela. Como forma de lhe render uma merecida

homenagem, abriremos a presente seção com a sua reprodução. Tal se justifica, mesmo que não

partilhemos de todas as suas conclusões, porque trata-se do primeiro intelectual a se debruçar seriamente

sobre os acontecimentos da Guerrilha do Araguaia, numa época em que tal atitude representava não só

coragem, mas audácia:

"Vista do lugarejo de São Domingos, o início da última campanha do governo

ganha movimentos cinematográficos.

O lugarejo, de 500 casas e cerca de 3.000 habitantes, reduto da ULDP dos

guerrilheiros, é tomado de assalto por um estranho grupo de homens: armados,

barbudos, sujos, correndo pelas ruas, dando saltos de samurais em frente aos

casebres, fazendo o povo sorrir de admiração. Algumas pessoas dizem:

- São os homens da mata e agora vão tomar as cidades todas!

Mas, de todos aqueles homens, só um é conhecido no lugarejo: o engraçado, o

simpático boêmio Nonato, que chegara de São Paulo e se amigara com uma mulher

de bordel. Nonato, o que gostava de cerveja. Nonato, o pecaminoso sorridente.

Nonato, o espião. E Nonato, um tenente ou sargento na verdade, é o comandante

daquela tropa descaracterizada.

A ação é rápida: depois dos saltos, os homens invadem as casas e vão retirando os

suspeitos de colaboração com a guerrilha...

Naquele começo de outubro, outros grupos descaracterizados do Exército entram

também nos povoados de Bom Jesus, Metade e Palestina. E vão pegando as pessoas

suspeitas. Foram tantos os desaparecidos... que as mulheres e filhos correram

chorando ao bispo Estevão Cardoso Avelar para que ele fizesse alguma coisa. Dom

Estevão chegou a entrar em contato com os oficiais e foi tranqüilizado: apenas uma

investigação, nada estava acontecendo àquele povo.

As famílias tiveram que esperar até o fim do ano. E, quando os homens pouco a

pouco foram chegando, as famílias não quiseram acreditar a princípio no que se

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

200

havia passado, mas as marcas nos corpos e sobretudo o desequilíbrio emocional

daquelas pessoas acabaram por convencer a todos."368

Por mais que estivessem advertidos pelos guerrilheiros de que as tropas federais voltariam e que

desconfiassem dos novos habitantes que para lá se mudavam, os simples moradores daqueles rincões

distantes não poderia imaginar que o retorno das FF.AA. seria tão violento.

O que se vê na seqüência é uma demonstração de sadismo para com aquelas populações sofridas.

As cifras sobre o número de detidos são bastante contraditórias, variam de cem a mil homens, jovens ou

não.

Depois de presos, foram amontoados nas cadeias das PM's locais, onde, ainda segundo Portela,

"... passaram pouco tempo... Pouco tempo: nem eles sabem se um dia, dois, cinco. Os

policiais, com a alegria da volta do Exército, encheram as pequenas celas... de tal

maneira que as pessoas só conseguiam ficar numa posição: em pé. E todos

completamente nus. As janelas das celas foram pregadas com tábuas.

- É para o ar não passar, explicava um policial.

E começou o suplício: primeiro cansaço, depois fome, e... uma sede insuportável. As

necessidades dos presos começaram a ser feitas ali mesmo, e eles em pé, um contra o

outro. Mariano, um dos presos em São Domingos, gemendo de sede, fez um pedido ao

homem mais próximo:

- Quando você quiser urinar me avise, me avise porque eu não agüento mais de

sede..."369

Em seguida, foram jogados em caminhões, hermeticamente fechados, e transportados até um

aeroporto, de onde foram transportados até um acampamento do Departamento de Estradas e Rodagens

(DER) do Território do Amapá, há quase mil quilômetros da região do baixo Araguaia.

368 Op. cit., pp. 73-4.

369 Idem, p. 74.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

201

Lá, voltaram a se defrontar com o sistema de aprisionamento em 'buracos' fundos,

cavados no chão, já utilizado durante a primeira campanha de cerco e aniquilamento, mas desta vez mais

'aperfeiçoado':

"A tortura foi sistemática. Como em Xambioá, cavaram-se buracos próximos ao

acampamento e os homens foram pendurados de cabeça para baixo, amarrados com

cordas em estacas enfiadas à beira dos buracos. Levaram empurrões, socos, choques

elétricos. E havia um médico entre os 'especializados'. Quando um homem desmaiava,

recebia uma injeção para reanimar e sofrer bem consciente...

A tortura atingiu uma certa sofisticação: um sistema de som apresentava um

programa de gritos pavorosos de homens e mulheres. Aquele povo ingênuo chegou a

pensar que havia mulheres sendo torturadas por ali... Mas nem todos sofreram tanto:

os que resolveram falar e apontar seus vizinhos foram bem tratados e, assim, davam

sua vez, nas torturas, aos delatados. Raimundo Gomes, habitante de São Domingos,

foi um dos mais torturados, e sobreviveu. Nada falou porque nada sabia. Mas muitos

daqueles homens apontaram nomes que lhe vieram à cabeça. Vários solteiros não

voltaram às suas casas, e como algum tempo depois, foram encontrados por amigos

em outras regiões do país, não se pode calcular quantos morreram, ou se morreram,

neste começo de última campanha de cerco e aniquilamento."370

Tudo nos leva a crer que o Exército agindo desta forma estava levando às últimas conseqüências

a máxima de Mao sobre a guerra de guerrilhas de que "a população é para o guerrilheiro o que a água é

para o peixe". Decidido a acabar de vez com os núcleos guerrilheiros, cumpriam então a diretiva de

impedir o contato da guerrilha com o povo. As pessoas que permaneceram nos povoados, em sua

maioria mulheres e crianças, viviam sob intensa vigilância, assim como as compras de mercadorias

realizadas pelos moradores eram criteriosamente controladas. Todo esse esforço para que toda

possibilidade de obtenção de ajuda por parte da guerrilha fosse inviabilizada. além das medidas já citadas,

houve outras como, por exemplo, a de que qualquer moradia que fosse encontrada sem os proprietários,

eram sistematicamente incendiadas e suas roças totalmente destruídas.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

202

Além de impedir a ajuda à guerrilha, a medida de realizar prisões em massa, sobretudo dos mais

jovens, também foi tomada para evitar novas adesões ao movimento guerrilheiro. Logo, as previsões que

Arroyo narrara de que havia um grande número de pessoas dispostas a engrossar as fileiras dos

combatentes das FORGA em caso de novo ataque das FF.AA., não puderam se realizar pois todos,

absolutamente todos, estavam presos, a centenas de quilometros dali.

Quando eles voltaram, muitos ficariam loucos, traumatizados para sempre, alguns se mudarão

para bem longe dali com o intuito de esquecer o que sofreram, outros tantos, aterrorizados, passariam a

servir de guia, bate-pau para o Exército. Vejamos o depoimento de um que serviu de bate-pau, Venâncio

de Jesus, até hoje habitante na região:

"Antes do Exército chegar eles [o povo] tavam [sic] a favor, eram ligados. O Exército

tentou pegar o pessoal daqui mas tava [sic] muito difícil. Daí ele foi embora e voltou.

Voltou pra pôr pra quebrar, pegando todo mundo. Levou todo mundo pra Marabá,

pra Araguaína, pra todo canto. Depois voltou quase tudo, a maioria como guia. A

maioria mora aqui ainda"371.

Ao mesmo tempo em que realizavam essas operações de esvaziamento e cerco dos povoados,

cerca de seis mil soldados governistas, segundo estimativas, agora liderados pela Brigada de Pára-

quedistas do Rio de Janeiro, dirigida pelo General Hugo de Abreu, mais uma vez contrariando as

previsões da reunião da CM, entravam na mata, guiados por mateiros, voluntários ou forçados, e mesmo

sozinhos, o que leva a crer que também o Exército fizera minucioso mapeamento da área.

Outra novidade, é que nessa nova ofensiva não terão o menor pudor em utilizar os índio da tribo

Suruí. Para isso, obtiveram da Fundação Nacional do Indio, FUNAI, a autorização necessária, apesar da

declarada oposição dos religiosos católicos que atuavam junto à comunidade indígena. Assim, os índios,

vítimas de dizimação desde quando a primeira nave européia aportou na terra brasilis, e ainda nesta

370 Idem, p. 75.

371 Palmério Dória et alii, op. cit., p. 68.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

203

posição permaneciam naqueles anos setenta, ajudariam o governo, que deveria lhes defender,

impedindo a continuidade do genocídio iniciado em 1500, a 'caçar' os guerrilheiros da ULDP que no 25º

ítem de seu programa, trazia inscrito: "Defesa da terra dos índios, respeito aos seus hábitos e costumes e

ajuda do Governo aos indígenas."372

Sem dúvida, não se pode deixar de reconhecer a sagacidade das FF.AA. ao se decidir por utilizar

indígenas em suas buscas aos guerrilheiros. Contudo, essa 'esperteza' dos militares brasileiros, esse

envolvimento involuntário dos indios, causou conseqüências psicológicas e culturais que ainda se fazem

sentir. Assim, jornalistas, que estiveram na aldeia da tribo dos Suruí para colher depoimentos sobre os

tempos da guerrilha, narram que: "Alguns se comportam como se tivessem traumas daqueles tempos. É o

caso de Areni, um dos batedores, que às vezes acorda gritando"373.

Tal relato faz com que sejam muito verdadeiras as palavras que o Professor José de Souza

Martins emitiu sobre o fato:

"Os índios Suruí perderam definitivamente a sua inocência e relatam estarrecidos a

degola de um cadáver de guerrilheiro ou imitam deslumbrados o ruído de

metralhadora.

E precisam falar, contar. Ninguém passa impunentemente por uma experiência

dessas, mesmo que não se suponha envolvido nela"374.

Desta vez, ao contrário das vezes precedentes, os soldados entravam em pequenos grupos, de três

a dez homens, realizando caminhadas em círculos e semi-círculos, esquadrinhando toda a selva. Usavam

armamento mais leve, fuzís e metralhadoras de última geração e, sabedores da debilidade e inferioridade

do armamento usado pelos guerrilheiros, souberam explorar ao máximo essa vantagem tática, assim, ao

372 "O Programa de 27 Pontos da ULDP - União pela Liberdade e pelos Direitos do Povo". In: Clóvis Moura, op. cit., p. 79.

(Ver também em Anexos, pp. x-x²).

373 Palmério Dória, op. cit., p. 55.

374 In: Op. cit., p. 6.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

204

menor movimento, atiravam, não dando tempo para que os membros das FORGA operassem suas

ultrapassadas armas de fogo, o que veio a vitimar muitos deles.

Enquanto as tropas caminhavam em pequenos grupos no interior da selva, aviões e helicópteros

davam apoio por cima. Nessa campanha, com a população impedida de favorecer o seu 'povo da mata', e

com as tropas estando bem melhor preparadas, os combates se davam de igual para igual, o que, no

contexto de uma guerra de guerrilhas, significa um grande revés para as forças rebeldes que, assim

perdem as vantagens que normalmente têm nesse tipo de confronto, ou seja, maior conhecimento do

terreno de operações e apoio da população.

Mas, o sucesso de tal movimento lançado pelo alto comando das FF.AA., não pode somente ser

creditado aos acertos que estes fizeram. Há que se considerar também o peso fundamental que tiveram

alguns graves erros de orientação militar que foram cometidos pelas forças guerrilheiras.

Quanto às FORGA, quando se desencadeou a terceira campanha, reuniam os seguintes efetivos:

"o Destacamento A contava com 22 elementos; o B, com 12; o C, com 14; a CM, com 8. Ao todo: 56

guerrilheiros"375. No que tange ao armamento, continuava obsoleto e em número insuficiente, apesar de

muitas fontes anônimas insistirem na afirmação de que os 'terroristas' utilizavam armas russas, chinesas

ou cubanas.

Quanto às reservas alimentares, conseguiu-se armazenar-se a quantidade suficiente para quatro

meses, e havia remédios em bom número. Por outro lado, relata Arroyo,

"a maioria dos combatentes estava com pouca roupa e já não havia calçados. Uma

parte usava lambreta [sandália de dedo] de sola de pneu e alguns companheiros

andavam mesmo descalços. Eram insuficientes as quantidades de bússolas, isqueiros,

facas, querosene e pilhas. Muitos... não possuíam plásticos para abrigar-se da chuva.

375 Angelo Arroyo, op. cit., p. 25.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

205

Também faltavam sacos para guardar comidas e roupas. Todo dinheiro

existente era 400 cruzeiros"376.

Apesar de todas essas dificuldades e, em virtude dos grandiosos trabalhos político junto às

populações da região e de preparação militar realizados em todo o período de trégua,

"A maioria dos companheiros, 80% orientava-se bastante bem na mata... toda área

era conhecida. O moral era muito bom. Todos mostravam-se confiantes e

entusiasmados."377

Quando ocorreu o volta das FF.AA., a estrutura organizativa estava assim configurada. Antes, em

agosto/setembro de 1973, a CM havia orientado que o destacamento B estendesse a sua atividade para

além dos limites onde até então atuara. Mas, para que esta não ficasse vazia, ela deveria ser então

transferida à esfera de atuação do C. Durante algum tempo, enquanto se passavam os contatos de um

destacamento a outro, os dois destacamentos deveriam conviver mais ou menos na mesma área. Quando

o destacamento C já estivesse em condições de seguir adiante o trabalho até aqui desenvolvido pelo B,

então este deveria se deslocar para a nova base, além da estrada de São Geraldo. O ataque das FF.AA.

aconteceu justamente nesse momento de transição, pegando os dois destacamentos relativamente

concentrados. A CM orientou então que os dois permanecessem unificados, formando o destacamento

BC, chefiado pelo guerrilheiro 'Pedro'.

Não demorou muito a haver encontros entre as tropas federais e os grupos guerrilheiros. Já no dia

12 de outubro, o Destacamento A (Helenira Resende), numa imprudente operação que visava a obtenção

de alimentos, perde quatro combatentes, entre eles seu comandante, 'Zécarlos' e um camponês recém-

ingresso na guerrilha e grande conhecedor da mata, além de ocasionar a perda de quatro dos seis fuzís

que haviam sido tomados no assalto ao posto da PM. 'Piauí' passa a substituir 'Zécarlos' no comando do

376 Ibidem.

377 Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

206

destacamento. No dia 24, morre 'Sônia', igualmente vítima de atitude de imprudência, uma das mais

aguerridas e experientes mulheres do grupo.

Na realidade, quando ocorreu o retorno dos soldados do governo, o destacamento A estava

disperso em três grupos a realizar diferentes ações, só vindo a se reagrupar no dia 2 de novembro,

quando decide-se embrenhar na área de refúgio. Antes desse reagrupamento, um dos três grupos,

liderado por 'Nelito',

"tentou realizar uma emboscada com nove elementos de massa, mas os soldados não

passaram. Depois, com os mesmos elementos, tentaram destruir uma ponte na

Transamazõnica. Também não conseguiram. Chegaram a tocar fogo na ponte, mas

esta não queimou. Os elementos de massa voltaram para suas casas... ficou apenas

um jovem... que pediu ingresso na guerrilha".378

Tratava-se de um fato inédito, pela primeira vez, desde o início da guerrilha, pessoas do povo

tomavam parte em ações armadas contra as tropas das FF.AA., mesmo que não tenham chegado a se

incorporar ao destacamento. Por outro lado, nesse mesmo campo, o ingresso de novos combatentes não

correspondeu à expectativa dos guerrilheiros. Primeiro, por que a ação fulminante de aprisionamento

preventivo e em massa de quase toda a população masculina não o permitiu, como o faz supor a

afirmação contida no relatório de Arroyo: "Chegou a informação, dia 22 [de outubro], de que os

elementos de massa que queriam entrar na guerrilha não haviam comparecido no ponto [de

encontro]."379

Em segundo lugar, porque dois novos componentes que já haviam se juntado ao Destacamento A,

sentindo muito medo, pediriam para sair e seriam liberados pelo comando.

Muito embora, tal participação de moradores em algumas atividades militares da guerrilha, sem

integrarem um destacamento representasse de certa forma um salto de qualidade na participação da

378 Idem, pp. 25-6.

379 Idem, p. 26.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

207

população no confronto, muito embora, deva se dizer, um salto qualitativo restrito à área de

atuação do A, tal não se repetirá, pois mesmo aqueles nove que tomaram parte nas tentativas de

emboscada e sabotagem, assim que voltaram para suas respectivas residências foram imediatamente

presos.

No Destacamento BC, houve o recrutamento de um habitante da região, depois de iniciados os

combates. Seu nome, 'Jonas'. Na segunda campanha havia sido preso e, na nova ofensiva, seu pai tinha

sido levado pelas tropas federais. Mais à frente, este novo integrante saberia que, por causa disso, seu pai

tinha sido espancado brutalmente, se encontrando hospitalizado. Na seqüência, quando ele, juntamente

com 'Ari' e 'Raul', voltavam de um contato com a massa, aconteceu a morte misteriosa de 'Ari'. 'Raul',

ouvindo tiros, fugiu e voltou ao acampamento do destacamento. No dia seguinte, os guerrilheiros

voltaram ao local onde 'Raul' havia ouvido os tiros e encontraram as mochilas dos três e, a aterradora

visão do corpo de 'Ari' sem a cabeça, haviam-na decepado. Jonas desapareceu e nunca mais dele se

ouviriam notícias. O Destacamento, avaliando o ocorrido, concluiu que talvez 'Ari' pudesse ter sido

assassinado por Jonas. E como ele, Jonas, conhecesse o local onde se localizava o BC, decidiu-se mudar

de área, indo para a Palestina.

Aqui, pode-se fazer um parêntese. Jonas seria um espião das FF.AA. infiltrado nas FORGA?

Difícil de responder de maneira conclusiva. Ou, tomando conhecimento da situação que enfrentava seu

pai nas mãos das tropas do governo, resolveu trocar a cabeça de um guerrilheiro pela vida e liberdade do

seu progenitor? Mesmo que não consigamos resolver este enigma, pelo menos por enquanto, uma coisa é

certa: a pressão exercida sobre a população pela tática agressiva e intimidatória utilizada pelas forças de

repressão, apesar de repugnante, atingiu, em grande parte, seus objetivos.

Nesse mesmo destacamento, no dia 13 de novembro, registra-se a fuga de um outro elemento de

massa, 'Toninho', e no dia 17 ou 18, a de 'Josias', ambos aterrorizados pela crueldade dos combates.

Como pode-se perceber, apesar da simpatia que nutriam pela causa das FORGA, os aderentes

originários da área, terão grandes dificuldades em se adaptar à vida guerrilheira, com todas os seus riscos

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

208

e dificuldades. O porquê desse fenômeno é uma boa pista de pesquisa a ser perseguida. Seria pela falta de

formação político-ideológica, deficiente preparação militar? São outras perguntas que continuam a ecoar

sem resposta.

Neste início da terceira campanha, alguns fatos ganham destaque e merecem ser narrados. O

primeiro trata-se de um episódio, chamado no jargão militar de 'fogo amigo', que opôs tropas federais e

efetivos da PM de Goiás. Os policiais, após haverem enfrentado, e sido derrotados, pelos guerrilheiros,

encontram-se casualmente em plena floresta com uma tropa descaracterizada do Exército. O resultado

foi que, pensando que se tratassem de guerrilheiros, ela abre fogo contra o grupo que chegava. O tiroteio

dura alguns minutos, até que se perceba que tratava-se de uma 'força amiga'. Balanço do engano: um

sargento das FF.AA. morto por balas governamentais, disparadas por um sargento da PM. Segundo uma

fonte militar: "Foi difícil evitar o massacre. Mas o Exército jamais esqueceu o caso e as PM não

voltariam a participar, como antes, do combate à guerrilha."380 Outro militar, mais complascente com o

engano, diria que

"o sargento da PM tinha participado da ação em que morreu um colega, na véspera, e

vendo aquela tropa descaracterizada... talvez por falta de preparo psicológico ou por

já estar com a psique abalada... foi um pouco precipitado. Mas é o tal negócio, se não

fossem soldados, fossem guerrilheiros... [ele] teria agido certo. Senão, ele é que ficava

lá, não é? É uma história verídica, não é coisa inventada, não. Eu vi o relato escrito

disso, eu vi gente que participou e conversei com eles... Alguns pensaram até em ir à

desforra, mas foi possível serenar...381

Mas, não foi somente este, houve também dois outros episódios, igualmente ocorridos durante a

terceira campanha, seriam bastante comentados, causando forte rebuliço nas hostes militares

governamentais.

380 Fernando Portela, op. cit., p. 77.

381 Idem, p. 123.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

209

Um deles foi a morte da guerrilheira 'Chica'382, que segundo testemunhas, teria sido

atingida por mais de cem tiros. O episódio teria se passado da seguinte forma: 'Chica' teria sido

surpreendida por uma patrulha de soldados da Brigada de Pára-quedistas, teria esboçado reação, mas,

antes disso seria alvejada, ficando gravemente ferida, estirada no chão. Um jovem oficial pára-quedista

teria então se aproximado dela, com a arma baixa. Segundo contaram fontes militares, ela teria enfiado a

mão em sua bota e sacado uma pequena pistola e disparado um tiro contra o rosto do oficial, já bem

próximo dela, sem contudo o matar. O restante da tropa, então, sob o impacto do momento,

enlouquecido, a teria metralhado de forma insana. Sobre ela, ou seja, sobre o seu cadáver teriam sido

desferidos mais de cem tiros. Sobre o ocorrido comentou um oficial:

"Tinha uma japonesa também que era bastante audaciosa. Teve uma morte muito

violenta, ela recebeu mais de 100 tiros... Eu vi quando ela chegou... estava uma

peneira, mas era uma peneira mesmo, coitada [sic]!"383

O outro fato que ganhou fama, nessa terceira campanha foi a atitude de um oficial, um major,

comandando uma patrulha que, num confronto, tinha acabado de abater um guerrilheiro, teria ordenado a

seus comandados que se perfilassem diante do cadáver e, irritado com o baixo rendimento de seus

soldados teria proferido o seguinte discurso:

" - Este homem aí no chão é um herói. É um soldado heróico lutando do lado errado.

E vocês, o que vocês são?

Nem cabisbaixos, os soldados puderam ficar. E ainda ouviram que era o país que

gastava dinheiro com a formação deles, a alimentação, as regalias.

382 Trata-se da estudante paulista, filha de imigrantes japoneses, Sueli Yumiko Kanayama que contava então com 25 anos

de idade. Mudou-se para a região do Araguaia em fins de 1971, portanto pouco tempo antes do início dos combates. Isso

não a impediu de se tornar uma das mais destacadas componentes das FORGA. Recentemente, um periódico brasileiro

divulgou a notícia que jornalistas japoneses estariam percorrendo a região onde ocorreu a guerrilha em busca de

testemunhos sobre a sua participação no confronto. O objetivo de tal enquete seria o de publicar um livro sobre essa

descendente de japoneses que transformou-se em guerrilheira no Brasil.

383 Idem, p. 126.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

210

Entre oficiais, o desabafo do colega irritado foi elogiado por uns, condenados por

outros."384

Quanto ao lado guerrilheiro, mais precisamente à CM, Arroyo narra que esta recebera a

informação inicial de que se tratava de uma ofensiva de pequeno porte, "de que o número de soldados

não passava de uns cinqüenta."385 Em meados de novembro, portanto quando a terceira campanha já

durava mais de um mês, reuniu-se a CM. Assim nos é relatada esta importante reunião que tanto peso

teria no desfecho da guerrilha do Araguaia:

"Fez-se um balanço da situação à base dos informes e se afirmava que a ofensiva do

inimigo não era tão grande, aparecia com pouca força... resolveu [-se] juntar os três

destacamentos, que ficariam sob o comando da CM. Esta força não teria mais áreas

fixas determinadas, poderia movimentar-se segundo as necessidades. A justificativa

apresentada... era a de que... se teria uma força maior e com maior potência de fogo,

podendo-se realizar ações de maior envergadura... que, com os destacamentos

separados, era difícil ter em mãos força suficiente para certos tipos de ação. Quando

se discutiram as medidas práticas... chegou-se à conclusão de que o princípio da

fusão era justo, mas que apresentava dificuldades... como o do abastecimento para

um grande número de pessoas. Decidiu-se, assim, adiar as medidas práticas... A CM

designou o companheiro J. (Angelo Arroyo) para assumir o comando do

destacamento A e manter este concentrado, em condições de poder se unir aos outros

dois logo que a CM tomasse decisão a respeito. Nova reunião da CM foi marcada

para 20 de dezembro. [Todos os grifos são nossos]"386

As decisões desta reunião, como se verá, significarão o início da bancarrota do movimento

guerrilheiro. Além de avaliar incorretamente a força e a extensão da operação que as FF.AA. realizavam,

tomou decisões que só seriam concebíveis, do ponto de vista da experiência histórica acumulada em

matéria de guerra de guerrilhas, se as FORGA estivessem vivendo uma situação muito favorável, que já

384 Idem, p. 82.

385 Angelo Arroyo, p. 26.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

211

estivesse inclusive controlando 'zonas liberadas', e que então estivessem se transformando em

'colunas guerrilheiras', o que, logicamente, não era o caso.

Na verdade, essa compreensão errônea do estágio que a luta no Araguaia atravessava, originária

talvez de uma certa euforia após terem suportado duas poderosas ofensivas inimigas, começara já na

reunião de agosto da CM, quando se decidiu que, em caso de ataque do Exército, todos os

destacamentos deveriam se concentrar. Tal acabou não acontecendo, pois a entrada abrupta das FF.AA.

não o permitiu, mas a simples tomada de uma semelhante decisão já demonstrava por si só que a CM

começava a orientar o movimento guerrilheiro por caminhos perigosos. Este seria um erro fatal, os

acontecimentos que se sucederão o demonstrarão de maneira trágica.

Após a reunião, J., ou Arroyo, se dirigiu rumo ao refúgio do A para desempenhar a função que

lhe haviam determinado e lá ficou até o dia em que deveria participar da outra reunião da CM. A CM,

por sua vez, depois das suspeitas surgidas sobre 'Jonas', alguns dias após a reunião da CM, como

estivesse localizada em uma área igualmente conhecida pelo suspeito de traição, decidiu juntar-se com o

Destacamento BC, formando uma força única, mudando-se para a área da Palestina. Ao todo somavam

trinta e dois combatentes. Lá chegando, dividiu-se em três grupos. Com a fuga de 'Toninho', no dia 13,

toda a força se reagrupa no dia 14 e resolve mudar novamente de área:

"Caminharam mais de dois dias e acamparam num local onde se pretendia fazer a

reunião da CM... tinham feito o deslocamento numa só coluna, tendo deixado fortes

rastros"387.

Quando um grupo cuidava de apagar os rastros deixados, deparara-se com o inimigo. Voltou

então ao acampamento e advertiu a todos, que, prontamente, partiram em direção ao refúgio do A, onde

sabiam não haver sinais de presença de tropas federais. Enviaram emissários para avisar J. do ocorrido,

mudando o local da reunião da CM, ao mesmo tempo em que a tranferia para o dia 25 de dezembro.

386 Idem, pp. 26-7.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

212

Enviava também a mensagem de que J. providenciasse comida para os combatentes que chegariam junto,

pois todos estavam famintos.

A força unificada - CM e BC - seguiu novamente em coluna, deixando, de novo, rastros visíveis

por onde passavam.

No dia 25, conforme ficou estabelecido, Arroyo (J.) se dirigiu acompanhado de mais três

membros do destacamento A rumo ao local de encontro acertado. Lá, encontraram dois enviados da CM

que os informaram de um novo local de encontro, por causa da fuga de 'Josias'. O novo 'ponto' ficava já

na área de refúgio do A, não muito longe dali, e que eles já estavam lá acampados, à sua espera. Todos

os seis então se puseram a caminho do acampamento da B-C-CM. O que se sucedeu, então, nos relata

Arroyo:

"Um helicóptero sobrevoava a área próxima ao acampamento da força. Quando já

estavam a mais ou menos um quilômetro do acampamento, às 11hs e 25 da manhã,

ouviram cerrado tiroteio... afastaram-se do local mais ou menos um quilômetro. No

dia seguinte, 26, foram a uma referência para encontro, num local próximo"388.

Neste local de referência encontraram-se com quatro componentes da força unificada. Um deles

era 'Osvaldo'. Ele e os outros três estavam apagando os vestígios da passagem da força unificada quando

escutaram o tiroteio. 'Osvaldo' disse que achava que os tiros tinham sido sobre o acampamento e que

naquele momento encontravam-se lá quinze combatentes.

Na verdade, o que acabara de ocorrer tinha sido a batalha decisiva da Guerrilha do Araguaia e, se

é que se pode dar um nome à ela, este seria a Batalha do Natal Sangrento. As forças da repressão, por

erros e mais erros que a direção da CM cometera, conseguira desfechar um golpe estratégico contra as

FORGA. Naquele trágico 25 de dezembro, sabe-se hoje, morreram muitos guerrilheiros, os números

variam, mas é certo que entre eles estava 'Mário', ou Maurício Grabois, o comandante das FORGA.

387 Idem, p. 28.

388 Ibidem.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

213

Mais uma vez, num grande 'furo' de reportagem, o jornal O Estado de São Paulo, em

1982, dez anos após a sua outra famosa e solitária reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia, estampou

uma foto inédita de quatro cadáveres que, segundo a fonte anônima que a forneceu, entre eles estaria o

corpo de Grabois. Na mesma edição, além da fotografia, concedeu também ao periódico paulista, uma

entrevista exclusiva. Nela, entre outras coisas, se diz:

"Um militar que combateu em Xambioá, detentor de vigorosa folha de serviços

prestados no combate à subversão, principalmente à guerrilha rural, dá o seu

testemunho sobre a morte de Maurício Grabois e seus três companheiros, na véspera

do Natal de 73:

«Eles emboscaram uma patrulha do Exército, que era composta de cinco homens,

sendo três militares e dois 'mateiros'. Estavam armados de revólveres 38, espingardas

de caça e armas brancas improvisadas... Era aproximadamente meio-dia. Eles

estavam reunidos em discussão, quando a patrulha foi pressentida e sua aproximação

avisada pelos seus vigias. Embora a patrulha fosse constituída de pequeno número,

era gente altamente qualificada...»

O combatente faz pequena pausa, retira-se e apanha slides em seus arquivos, em

meio a outros documentos e apontamentos sobre a guerrilha do Araguaia. Levanta os

slides contra a luz... separa um deles e retoma a narrativa: «Aqui está a prova: os

quatro caíram no mesmo choque contra a patrulha. Morreram sob o impacto de fuzís

automáticos FAL. O 'Velho' (Grabois) se destacava pela idade em relação aos demais

integrantes da Fogueira [sic!]. Eles pertenciam aos grupamentos B, C e D [sic] e

integravam a Comissão Militar, que era chefiada pelo 'Velho'. O Grabois levou um

tiro na cabeça, que lhe arrancou o cérebro, e um na perna, que causou fratura

exposta. Houve, então, a fuga de 26 a 30 guerrilheiros [sic]. Alguns ficaram perdidos

na mata, mas foram sendo caçados um a um. Em sua desesperada fuga, deixaram

armamentos e material. Documentos apreendidos comprovam o treinamento de

guerrilha no Exterior, em países da órbita comunista»...

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

214

«Foram os próprios 'mateiros' que imediatamente identificaram os mortos. Mais

tarde, Grabois foi reconhecido com a ajuda de um álbum de retratos de terroristas

procurados»"389.

Mas, voltando ao que se sucedeu em seguida à tragédia, todos os sobreviventes, então,

resolveram deslocar-se para o acampamento do A, em sua área de refúgio, lá chegando dia 28.

No dia 29, reuniu-se o comando do destacamento e tomou-se as seguintes decisões:

"que se deveria abandonar aquele local; que os companheiros presentes - em

número de 25 - deviam se dividir em pequenos grupos e ir atuar nas áreas em que

conhecessem; que a experiência das campanhas anteriores mostrara que os

pequenso grupos têm mais mobilidade, mais facilidade de se abastecer e deixam

menos rastros... não deviam dar sinal de presença... se fossem notados... deviam

afastar-se... que se deviam ligar a apenas uma pessoa da massa, de confiança... se

devia ter o máximo cuidado com os rastros, pois fora [por eles] que o inimigo nos

atacara [Todos os grifos são nossos]"390.

Era uma correção do rumo incorreto adotado pela CM em suas duas reuniões precedentes.

Embora válida, como demontração de capacidade de autocrítica, ainda que tardia, infelizmente, a sorte

da guerrilha tinha sido selada no enfrentamento havido no Natal Sangrento, era tarde demais.

No mesmo dia em que se reunira o comando do destacamento A, realiza-se uma reunião dos vinte

e cinco guerrilheiros que se encontravam então na área de refúgio do A. Assim, Arroyo nos narra esse

encontro:

"A noite do dia 29, fez-se uma reunião com todos os presentes. Mostrou-se a

gravidade da situação e destacou-se que este era o período mais crítico que

atravessara a guerrilha. Acentuou-se que outros povos também tinham passado por

momentos muito difíceis e venceram porque persistiram na luta, não se deixaram

abaterMantendo-se unidos e decididos, poder-se-iam superar as dificuldades. O

389 Ayrton Baffa, "A Prova da Morte de Grabois, em 73", jornal O Estado de São Paulo, SP, 10/10/1982, pp. 26-7.

390 Idem, p. 29.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

215

comando indagou se algum dos combatentes queria abandonar a luta. Caso

alguém se sentisse abalado e não mais quisesse continuar, poderia dizer. O comando

autorizaria a sair. Mas ninguém manifestou desejo de sair. Afirmou-se também que

não se conhecia a sorte dos demais membros da CM. Não se podia dizer que tivessem

sido mortos, apesar do que ocorrera. Que se ia tentar um contato e procurar agrupar

todos os elementos dispersos."391

No dia seguinte, os cinco grupos se constituíram e seguiram cada qual uma direção, conforme

orientação do comando do Destacamento.

No dia 19 de janeiro, Arroyo (J.), tentou uma reaproximação do local onde tinha havido o tiroteio

em 25 de dezembro, mas, percebendo ainda fortes movimentações de soldados na área, decidiu retirar-se.

Ainda neste final do mês de janeiro,

"os líderes restantes... decidem que Arroyo deve bater em retirada, retornar ao sul do

país e informar o partido sobre a situação no Araguaia. Arroyo resiste, mas eles o

obrigam, em janeiro de 1974, a tentar a fuga ao lado de um companheiro. Consegue

furar o cerco do Exército e restabelecer o contato com a direção nacional do

PC do B."392

Arroyo encerra o seu Relatório Sobre a Luta no Araguaia, hoje uma peça já incorporada ao

patrimônio histórico do povo brasileiro, referindo-se ao que o Exército deve ter recolhido junto com

'Mário':

"Em poder do camarada Mário, responsável da CM, havia uma espécie de diário,

onde ele anotou os principais fatos e as medidas adotadas na guerrilha, desde o seu

início. Estas anotações são da maior importância, refletem as opiniões do comando

em diferentes ocasiões. Com Mário encontravam-se também cópias de todos os

materiais editados, assim como hinos, poesias, etc."393

391 Ibidem.

392 Pedro Estevam da Rocha Pomar, op. cit., pp. 155-6.

393 Ibidem.

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

216

Angelo Arroyo, viveria doravante constantemente amargurado e infeliz, segundo testemunha, que

com ele conviveu depois de sua saída do Araguaia, ele passou a viver atormentado pela idéia de que "o

correto teria sido morrer com os demais companheiros"394. Mas, esse seu sofrimento, que deve ter sido,

guardadas as proporções, semelhante ao que experimentaram, e experimentam até hoje, os raros

sobreviventes dos campos de concentração nazistas, não duraria mais do que dois anos, nem isso. Em 16

de dezembro de 1976, ele e outro comunista histórico, Pedro Pomar, seriam assassinados, fria e

covardemente, por agentes do Exército, enquanto ainda dormiam, numa alvorada, na cidade de São

Paulo, em episódio que ficou conhecido como a Chacina da Lapa.

Antes disso, contudo, num outro documento que redigiu sobre a experiência do Araguaia, desta

vez explicitando a sua avaliação política global de toda a guerrilha, Arroyo demonstra, então, que

compreendera quais eram os eixos da terceira campanha de cerco e aniquilamento das FF.AA.

Interessante é notar que só lhe foi possível chegar a uma visão mais ampla do conjunto das operações das

tropas do governo depois de sua saída do Araguaia. Ou seja, podemos mesmo arriscar uma opinião de

que a CM, se não tivesse suas ligações com o mundo exterior cortadas pela ação da repressão, talvez

viesse também a ter essa visão mais larga do confronto, de suas possibilidades, de seu significado. Nesse

documento, escrito por volta de 1976, ele dizia:

"o Exército aprendeu com a 1ª e 2ª campanhas... preparou uma operação global

visando à liquidação da guerrilha em seu conjunto. Seu plano (estrtégico e tático)

compreendeu as seguintes medidas: bloqueio do apoio externo... golpe no Partido e

nas pessoas da periferia que... pudessem ajudar... cerco estratégico da área para

impedir a fuga ou desligamento da guerrilha; ocupação de pontos de apoio dentro da

área guerrilheira; isolamento do apoio de massas, com... emprego do terror; corte

das possibilidades de abastecimento... impedindo a entrada de gêneros mesmo para os

comerciantes da área e ocupando os locais onde se pudesse apanhar alimentos; envio

de grande número de patrulhas, com mateiros à frente e apoio de helicópteros, para

penetrar na mata e estabelecer contato com os guerrilheiros... matar e não fazer

394 Cf. Wladimir Pomar, op. cit., p. 46.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

217

prisioneiros... Em linhas gerais, este o plano que o inimigo pôs em ação. A

CM não soube captá-lo e adotar as contramedidas pertinentes"395.

O desastre ocorrido no episódio do Natal Sangrento, contudo, não fez deixar de existir, de todo,

a resistência armada iniciada em 1972. Durante todo o ano de 1974, ainda existem registros de

enfrentamentos entre as tropas governistas e guerrilheiros.

Se considerarmos verdadeiras as afirmações do oficial das FF.AA., feitas ao jornal O Estado de

São Paulo, supra citadas, ou seja, de que somente quatro dos que estavam no acampamento sucumbiram

no Natal Sangrento, então concluiremos que dos quinze396 que lá se encontravam no momento da

chegada da patrulha do Exército, pelo menos onze conseguiram escapar e que, somados aos vinte e

seis397 outros que Arroyo relata ter visto vivos após aquele acontecimento fatídico, perfaz um total de

trinta e sete guerrilheiros ainda espalhados pela região e que, ou serão capturados pelas tropas do

governo, ou serão encontrados pelos seus camaradas de armas, agora divididos em cinco grupos de cinco

combatentes.

Sobre a sorte de cada um dos que sobreviveram ao Natal Sangrento, não se têm notícias

precisas. Mas sabe-se da ocorrência de combates na região até o final de 1974.

Em abril ou maio de 1974, segundo conta-se, durante a semana santa daquele ano, a guerrilha

sofreria um outro profundo golpe: a morte do comandante Osvaldo Orlando da Costa, o 'Osvaldão. Ele

teria sido morto à traição por um certo 'Piauí', perto de São Domingos, numa roça, enquanto comia uma

espiga de milho crua. Segundo testemunhas, ele estava magro e doente. Sua morte valeria ao jovem

'Piauí' uma gorda recompensa em dinheiro, prometida pelos soldados do governo a quem o matasse.

395 Angelo Arroyo, "Um Grande Acontecimento na Vida do País e do Partido". In: João Amazonas et alii, op. cit., p. 35.

396 Aqui, adotamos a cifra citada por Arroyo que, por sua vez, baseara-se no testemunho de Osvaldo, um dos que faziam

parte do acampamento e que, por sorte, estava fora no momento do ataque.

397 Nessas contas, estamos excluindo o próprio Arroyo, pois em seguida ele retirou-se da região, ao mesmo tempo em que

acrescentamos dois que ele enviara ao encontro com mais dois (ou mesmo quatro). Para maiores esclarecimentos, ver a

íntegra do documento em Anexos, pp. x-x².

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

218

Antes de recebê-la, contudo, terá que submeter-se a uma cena de humilhação realizada pelos soldados

que lhe dizem: "... Ele obedece, sabe o que quer. E com muito custo... apanha seu prêmio"398.

Era um golpe mortal nos guerrilheiros, já então bastante abalados, completamente internados nas

matas e impedidos de abastecerem-se nos povoados, todos eles sob forte vigilância militar.

Mas ainda não seria a extinção da guerrilha. Em meados de 1974, um grupo de quatro

guerrilheiros visita a casa de um velho habitante da região. Estavam em busca de comida, famintos e,

segundo essa testemunha, "JMS", estavam também muito irritados399.

A guerrilheira 'Dina', uma das mais conhecidas e temidas das mulheres que integravam as

FORGA, teria sido morta, também por traição, somente no segundo semestre de 1974: "Foi chamada a

um casebre de pessoas amigas, abriu a porta e recebeu chumbo grosso no corpo todo"400.

Uma outra versão, que, contudo, não precisa a data, é fornecida pelos índios que serviram de guia

para as tropas do Exército: "A Dina - diz que ela era baiana -, foi pegada [sic] lá em Marabá: ia

atravessar pro São Félix, mataram ela."401

Enquanto isso, nas cidades, o Comitê Central do PC do Brasil tomava conhecimento através do

relato, oral e escrito, de Angelo Arroyo. Desde o início da terceira ofensiva das FF.AA., as ligações

entre o partido e a guerrilha tinham sido cortadas pelo violento cerco que foi imposto a todas as

áreas circunvizinhas da região de atuação dos guerrilheiros.

Não nos foi possível verificar a veracidade de uma informação que dava conta de que o Comitê

Central teria dado "a ordem de dispersão da guerrilha (maio de 1974)"402. Muito menos se sabe se tal

mensagem, admitindo-se que ela foi porferida, chegou a alcançar os guerrilheiros que ainda sobreviviam à

398 Cf. Fernando Portela, op. cit., p. 22.

399 Idem, p. 86.

400 Idem, p. 87.

401 Palmério Dória et alii, op. cit., p. 56.

402 Cf. Fernando Portela, op. cit., p. 85.

Das Palavras aos Atos: A Preparação e os Combates Armados

219

essa época, e se, em caso de terem-na ouvido, tentaram romper o cerco a eles imposto pelas

tropas militares e, nessa tentativa, foram abatidos pelas forças de repressão. Tais informações somente as

FF.AA. poderiam fornecer, caso abrissem os seus arquivos ao povo brasileiro.

Do partido, tudo o que se pôde apurar, até o presente momento, é que o jornal 'Araguaia', editado

pelo Comitê Central e alguns Comitês Regionais, continuará circulando clandestinamente nas grandes

cidades até março de 1975, apesar de o CC não receber nenhuma informação da região desde o ano

anterior. O jornal A Classe Operária, órgão oficial do CC, expressando ainda a expectativa de que

houvesse sobreviventes, e mesmo remanescentes das FORGA, continuará a se referir à guerrilha como

ainda existente até abril de 1976403 e somente em setembro deste mesmo ano publica-se, em editorial, um

documento onde o partido reconhece publicamente a derrota da guerrilha404.

No exterior, o PC do Brasil edita alguns materiais nesse período. Na França, em abril de 1974, é

publicado, em francês, o jornal do CC, A Classe Operária. Nele, pode-se perceber que o CC tem

consciência de que os guerrilheiros do Araguaia atravessam um período muito difícil e chega a transmitir,

de maneira cifrada, algumas orientações aos combatentes, mas não se pode classificá-las como sendo de

dispersão, tratam-se, antes, de recomendações à guerrilha para que adote medidas no sentido de sua

sobreviência, como pode-se ver nos seguintes trechos:

"Face à une si féroce offensive les forces partisannes doivent préserver leurs rangs.

Elles ne défendent pas à tout prix des positions fixes. Elles appliquent la tactique du

retrait organisé des régions où se trouve l'ennemi. Elles dispersent en petits groupes

pour faciliter leur déplacement et ne pas laisser de trace. Elles redoublent de

vigilance et font tout pour empêcher que les ennemis ne les localisent. Si nécessaire,

elles abandonnent les endroits où elles opéraient auparavant, y compris les petites

plantations, les grottes et les endroits utilisés comme refuge. Dans ces circonstances,

le déplacement dévient un avantage [grifo nosso].

403 "Invencível Bandeira de Luta", A Classe Operária, nº 105, abril de 1976. In: Wladimir Pomar, op. cit., pp. 246-8.

404 "Gloriosa Jornada de Luta", A Classe Operária, nº 110, setembro de 1976. In: Op. cit., pp. 145-55. Corrigir!

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

220

Il ne fait aucun doute que les partisans de l'Araguaia ont les conditions pour résister

et possèdent un grand champ de manoevre. Avec l'expérience acquise, ils peuvent se

mettre rapidement hors de la portée de l'ennemi, paraître et disparaître en differents

points de la région, et améliorer constamment leur capacité militaire et de combat"405.

Também na França, em 24 de maio de 1974, uma sexta-feira, tem lugar em Paris um "Meeting de

Solidarité aux Luttes du Peuple Brésilien". cujo móvel principal era a comemoração do aniversário de

dois anos da luta guerrilheira do Araguaia406.

Do lado das FF.AA., sabe-se tão somente, através de fontes militares - como sempre, anônimas -

que "as forças do governo encerraram sua terceira e última operação em janeiro de 1975"407, o que nos

leva a duas possibilidades: ou elas consideravam os guerrilheiros totalmente eliminados físicamente, ou,

então, que os remanescentes, que por acaso exitissem, não representavam mais nenhuma ameaça à

sagrada 'segurança nacional'.

Encerrava-se, assim, de maneira trágica para aqueles que para a região do baixo Araguaia se

dirigiram desde 1966, com o objetivo de lançar-se junto com o povo pobre do interior, em uma luta

armada que, começando pela guerra de guerrilhas, iria crescendo, crescendo até que se transformasse

numa autêntica guerra popular, guerra de todo o povo. Este sonho, partilhado pelos cerca de setenta

revolucionários que para aquela região inóspita se mudaram, em sua grande maioria jovens, acabou

fracassando, mergulhado no sangue generoso daquela generosa geração, que se entregou a um projeto de

futuro para o país que não chegou a ter a chance de mostrar sua viabilidade ou não.

405 "Deux Ans de Lutte Glorieuse". Journal A Classe Operária, nº 84, RJ, avril 1974, p. 10.

406 "Brésil, Un Peuple en lutte" (panfleto-convite para uma manifestação contra a ditadura militar brasileira e em

comemoração de dois anos de luta guerrilheira no Araguaia), CILA/Frères du Monde/AGEG. Ver cópia nos Anexos, pp. x-

x².

407 Idem, p. 89.

C O N C L U S Õ E S

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

222

Antes de tentar repertoriar as conclusões a que pudemos chegar após a realização deste mémoire,

algumas advertências fazem-se necessárias, embora, no fundamental, elas já tenham sido feitas, de forma

dispersa, no decorrer das páginas que compõem o presente trabalho.

Em primeiro lugar, nunca será demais relembrar que quaisquer conclusões que cheguemos a

formular aqui, serão sempre parciais, sem caráter definitivo. Isto por três razões: (a) a pequenez do

acervo documental primário existente (ou revelado até o momento) sobre o episódio e a parcialidade da

maioria da documentação à qual tivemos acesso, ou seja, basicamente oriunda de apenas um dos lados, o

que dificulta e debilita bastante a nossa pesquisa; (b) desta primeira advém imediatamente, como sua

conseqüência, uma outra, que é a incontornabilidade de se realizar um grande trabalho de pesquisa 'sur le

terrain', de campo, um amplo programa de coleta de testemunhos daqueles que, de alguma forma,

viveram aqueles acontecimentos, tal expediente seria uma forma complementar de tentar preencher

algumas lacunas existentes causadas pela sonegação de informações oficiais; e, (c) pela própria

característica de um Mémoire de DEA: parcial, inicial, não-conclusivo.

Uma segunda observação diz respeito àquilo que consideramos a segunda parte dessa proposta de

pesquisa, tão importante quanto esta que tentamos desenvolver. Aquela que se refere à influência que

teve a Guerrilha do Araguaia sobre a evolução do movimento de resistência dos posseiros, trabalhadores

rurais e camponeses, de uma maneira geral, daquela região do país. Sem a realização do acima citado

programa de entrevistas e de consultas a documentos de entidades sindicais e populares em atuação

naquela área, uma tentativa nesse sentido, seria mero artificialismo.

Por último, esperamos ter atingido, pelo menos parcialmente, o objetivo rumo ao qual nos

dirigimos, nessa primeira etapa da pesquisa, durante a elaboração da presente monografia: o de tentar

sistematizar todas as informações existentes até hoje sobre a Guerrilha do Araguaia, tudo o que foi

publicado e dito a respeito, e tentar dar a esse conjunto, disforme e anárquico, de dados e opiniões um

Conclusões

223

pouco mais de inteligibilidade. Assim procedemos para que, num momento seguinte, pisando num chão

mais firme, possamos partir para um estágio mais avançado de aproximação histórica do sujeito, para

uma problematização teórica do mesmo.

Neste segundo momento, que pretendemos se dê na preparação da tese de doutorado, além deste

ponto de partida, ainda que frágil, além de mais dados cavados através de pesquisa de campo, tentaremos

também avançar um pouco mais na reflexão sobre o papel da violência nas transformações sociais e numa

avaliação de maior fôlego das correntes teóricas que a preconizavam ou preconizam, notadamente

daquelas ligadas ao campo do marxismo, dentro do qual se inscreve a experiência da Guerrilha do

Araguaia.

Bem, feitas essas preliminares, as conclusões às quais pudemos chegar, foram que:

I - Com a divisão do 'antigo' PCB e a (re) organização do Partido Comunista do Brasil (PC do B),

em 1962, uma parcela daquela agremiação, que há muito encontrava-se insatisfeita com a inação do

partido no campo da elaboração de uma proposta de caminho para a revolução brasileira, ganhou enfim

condições de efetivar sua intenção de perseverar no rumo revolucionário. Assim, desde a sua

constituição, o PC do Brasil deu destaque especial à questão da violência revolucionária e passou a ser a

expressão desta linha no Brasil.

Até certo ponto, era natural que assim se sucedesse, pois uma das principais causas da cisão fora

a tese da 'transição pacífica', uma das resoluções do XX Congresso do PCUS em 1956, abraçada

fortemente pelo grupo liderado por Prestes. Era, pois, de se esperar que o PC do B forçasse a tinta neste

ítem, como forma de deixar bem demarcado a fronteira político-ideológica que o separava da outra

organização, quase homônima.

Além disso, concorreram para imprimir no novo partido, a marca indelével da opção

revolucionária, outros fatores conjunturais: a ocorrência da Revolução cubana; a contestação da tese da

'transição pacífica' pelo PCCh, com a conseqüente divisão do campo socialista; a existência de um clima

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

224

geral internacional de certa euforia em torno da exeqüibilidade da guerra revolucionária, no panorama

internacional assistia-se a explosões e revoltas armadas, muitas das quais, vitoriosas, alçando ao Poder

camadas antes marginalizadas. Esta situação dava a impressão de que, uma vez começado um processo

revolucionário, a obtenção da vitória só dependia das forças mudancistas, era uma mera questão de

tempo; por último, mas não menos importante, o golpe militar no Brasil, em abril de 1964, e a instalação

de uma ditadura militar, veio a desacreditar, de vez, a linha que apregoava a transformação pacifica das

sociedades.

A criação do PC do Brasil representou, portanto, no campo do movimento comunista brasileiro,

um salto de qualidade, pelo menos no tocante à discussão, elaboração, preparação e efetivação da

revolução brasileira. A revolução saía das declarações programáticas e passava a contar com uma

organização disposta a materializá-la;

II - O primeiro exemplo concreto dessa nova atitude frente à questão da revolução brasileira está

no esforço promovido pelo PC do Brasil desde 1962, com a publicação de seu 'Manifesto-Programa', que

proclamava a inviabilidade do caminho pacífico, até a publicação, em 1969, do histórico documento

'Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil', que apresentava a concepção do partido sobre o

caminho da luta revolucionária. Tal documento é pioneiro em termos de tentativa de, como ele mesmo

enuncia em sua introdução, "delinear num plano mais geral o curso provável da luta". Além disso, que,

por si só, já representaria uma novidade para o movimento comunista no Brasil, o documento ainda tem

o mérito de ter sido o guia, o plano que redundou na preparação e desencadeamento do mais significativo

movimento de contestação armada, liderado pelos comunistas, desde a 'Insurreição' de 1935.

Apesar de sua inegável importância, do documento saltam algumas questões ainda a espera de

maior estudo e reflexão. Para citar apenas duas: as suas afirmações taxativas, pétreas, definitivas acerca

do caminho da luta armada poderiam ser indícios de doutrinarismo, além de contradizer as palavras

introdutórias acima citadas; a outra, relacionada à primeira, é de se saber se essa rigidez esquemática,

Conclusões

225

esse detalhismo por vezes excessivo, não acabou por limitar bastante a capacidade de iniciativa e

flexibilidade tática da Comissão Militar, essênciais na direção de ações militares em geral, e ainda mais

em lutas guerrilheiras;

III - Pelos resultados obtidos, pela tranqüilidade com que pôde efetivar o seu trabalho de

preparação guerrilheira, pelas dificuldades com que as FF.AA. a combateram, numa primeira apreciação,

a avaliação do PC do B de que o cenário que oferecia melhores condições para o desenvolvimento da

luta armada revolucionária era o campo, o interior, se demonstraram corretas. A sua decisão de não

tomar parte na guerrilha urbana foi outro ponto que contou em seu favor. No geral, sua afirmação de que

nas cidades a repressão estaria em vantagem, pois aí estava muito bem estruturada, mostrou-se

verdadeira, sobretudo pelo resultado político e militar que tais operações proporcionaram.

O PC do Brasil não acertou somente na sua opção pelo espaço rural, acertou também na escolha

do local, entre tantas possibilidades, de implantação de frentes guerrilheiras.

De fato, a região sul do Pará, baixo Araguaia, oferecia condições geográficas excelentes para a

realização de operações de guerra de guerrilhas: vasto e inóspito, reduzindo em muito o poder de fogo

do inimigo e, por outro lado, permitindo ampla área de manobras para os destacamentos guerrilheiros;

além disso, o enorme potencial de tensão social lá existente, proveniente das disputas em torno da posse

da terra, pôde ser explorado politicamente pelo movimento rebelde.

Ressalvas devem ser feitas quanto à enorme distância que separavam a área conflagrada de

importantes centros urbanos, o que, juntamente com a violenta censura à imprensa, facilitou à ditadura a

tarefa de esconder a Guerrilha do conhecimento público e, também, quanto à baixa densidade

populacional relativa existente na região, o que se constituía ora em uma vantagem, ora em desvantagem

para as forças guerrilheiras;

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

226

IV - O trabalho de preparação da luta armada desenvolvido pela Comissão Militar do PC do B

diferenciou-se de todos os outros realizados nas diversas tentativas promovidas por outros agrupamentos

de esquerda revolucionária. Este trabalho destaca-se sobretudo pelo profissionalismo com que se fez a

tranferência de um contingente não negligenciável de militantes para a área escolhida, pela zelosa

organização e preparação deles para serem verdadeiros combatentes, pelo paciente trabalho de adaptação

às condições ambientais e, por fim, pela cerrada clandestinidade com que tudo isso foi feito durante cerca

de seis anos. Tal profissionalismo, apesar de todas as falhas que ainda assim se verificaram, está entre as

principais razões de sua grande capacidade de resistência aos assédios do inimigo;

V - Os combatentes do Araguaia contaram com o apoio e a simpatia da população de toda a área

conflagrada. Tal fato é unanimemente confirmado por políticos, militares, religiosos, jornalistas e

habitantes da região, sendo este o principal fator de sobrevivência de sua sobrevivência por quase três

anos. Tal apoio se manifestou sob diversas formas : fornecimento de gêneros alimentícios e informações

aos guerrilheiros e sonegação de informações às tropas do governo;

VI - Contudo, apesar desse grande apoio da população, o que constitui, por si só, um grande

êxito, pois as outras tentativas de luta armada verificadas durante a vigência do regime militar não o

obtiveram, isolando-se irremediavelmente, o PC do Brasil e as FORGA não conseguiram construir o que

se poderia chamar de uma sólida base de massas, uma retaguarda firme. A prova material disso é o baixo

número de habitantes locais que chegaram a ingressar nas fileiras guerrilheiras. Quando, segundo relatou

Arroyo, tal poderia se passar, as FF.AA. se anteciparam aos acontecimentos e utilizaram uma tática que,

de maneira eficaz, o impediu.

Não se observou, salvo a exceção do Destacamento A, quando do início da terceira campanha,

esforço no sentido de se incorporar elementos locais em operações militares episódicas, sem que isso

significasse a sua transformação em guerrilheiro em tempo integral. Tal experiência, aplicada com

Conclusões

227

sucesso na China e no Vietnã, não foi priorizada pelos destacamentos, o que os impediram de utilizar

essa força potencial que se apresentava disposta a atuar, de maneira pontual, sem se transformar em

combatente permanente.

No Araguaia houve apoio popular expressivo, o que lhe garantiu a sobrevivência, mas o

engajamento militar do povo acabou não ocorrendo na medida em que se necessitava, podendo esta ser

considerada uma das principais razões da derrota do movimento.

VII - Outro grande êxito da Guerrilha do Araguaia foi a elaboração e divulgação de um programa

amplo, de linguagem acessível, que calava fundo nas camadas sociais mais exploradas daquela região. Era

um programa de caráter democrático e popular, continha até mesmo um ítem consagrado à assegurar a

proteção da "propriedade privada que não ocasionasse prejuízos à coletividade". Não era, como se vê,

de forma alguma, um programa socialista, o que seria uma magnífica manifestação de sectarismo e

desconhecimento do ânimo das massas, e teria certamente conduzido ao fracassoo movimento

guerrilheiro. Tal a amplitude do programa que um líder religioso católico, atuante na área, declarou que

ele mantem a sua atualidade até os nossos dias e deveria ser aplicado pelos governantes.

Além disso, o 'Programa dos 27 pontos' procurou associar as reivindicações locais com aquelas

dos trabalhadores das cidades e com reivindicações políticas amplas, de caráter bem geral. O programa e

sua concretude, assim como a fundação de núcleos da ULDP, ainda que em número não muito elevado,

são a prova material da ligação que os longos anos de preparação proporcionaram entre guerrilheiros e

moradores da área, se não houvesse essa integração, provavelmente o programa não teria a repercussão

que teve, pois nele não estariam refletidas as reivindicações mais sentidas do povo pobre do Araguaia e

nem o povo teria nele se referenciado;

VIII - A inexistência de organizações sindicais de trabalhadores rurais na área, como de resto em

todo o país, posto que elas tinham sido fortemente reprimidas após o golpe militar de 1964, foi uma forte

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

228

deficiência da qual ressentiu o movimento guerrilheiro. Tal configuração aumentou bastante as

dificuldades de se obter uma ajuda mais organizada à guerrilha, assim como a combinação entre

movimento legal reivindicatório nas cidades, vilas e povoados com a luta armada;

IX - Por outro lado, a ocorrência da Guerrilha do Araguaia - esta é uma das hipóteses sobre a

qual trabalhamos - reforçou em muito o espírito de resistência entre os trabalhadores rurais, de uma

maneira geral, e entre os posseiros, em particular. Fez com que o sentimento de revolta, às vezes contido,

às vezes demonstrado de maneira atomizada, individualizada, passasse a ser canalizado para formas de

organização coletiva de resistência que adquiriram, e ainda adquirem freqüentemente contornos bastante

radicais, não raro, resultando em conflitos armados contra grileiros, fazendeiros e até mesmo contra

autoridades policiais. O que faz com que, até hoje, toda a região que sediou o movimento guerrilheiro

nos anos setenta seja uma das regiões mais tensas do país e onde os posseiros têm uma maior

combatividade. Tudo isso, pensamos, não é por acaso. Pesa forte sobre a região o exemplo dos tempos

da Guerrilha do Araguaia;

X - Do ponto de vista militar, a Guerrilha do Araguaia tem o mérito de ser a pioneira na aplicação

das técnicas de guerra de guerrilhas em larga escala nas selvas brasileiras. Obteve êxitos militares

consideráveis, sendo que o maior deles foi o fato de ter conseguido sobreviver a massivas investidas das

FF.AA., durante longo tempo. Como se sabe, em guerra de guerrilhas, o que importa não é o número de

batalhas vencidas. Ela é, por excelência, uma guerra defensiva, o que não exclui táticas ofensivas, uma

guerra capaz de opor o fraco ao forte e que tem por principal objetivo desorganizar e desmoralizar as

linhas inimigas, enquanto acumula e preserva as suas próprias fileiras, realizando intenso trabalho de

propaganda política entre as massas visando a obter seu apoio e adesão, com vistas à formação de

colunas guerrilheiras e do exército popular. O seu princípio fundamental é o de sobreviver, não se deixar

aniquilar, pois o tempo corre a seu favor.

Conclusões

229

Nesse sentido, nas duas primeiras campanhas, enquanto orientou-se pelos princípios norteadores

de atividades guerrilheiras, historicamente confirmados em diferentes ocasiões e épocas, obteve vitórias.

Sobretudo se considerarmos o escabroso e chocante desequilíbrio de forças, tanto no que diz respeito ao

armamento e logística, como no que tange ao número de efetivos em combate de cada lado;

XI - Contudo, a experiência guerrilheira no Araguaia contrariou certos princípios básicos da

técnica da guerra de guerrilhas, alguns de maneira parcial, outros de maneira total.

Foram negligenciados de maneira quase total os seguintes: (1) o da criação de várias frentes

guerrilheiras, para forçar o inimigo a se dispersar e com isso abrir possibilidades de impor-lhe perdas.

Mesmo que se saiba que essa era a intenção inicial e que a surpresa do ataque inimigo a tenha abortado,

pode-se elencá-la entre uma das mais importantes causas da derrota, pois objetivamente não foi realizada;

(2) o de estender-se continuamente e não restringir por muito tempo sua área de operações a um mesmo

território. Aqui, ao contrário do erro anterior, não há nenhuma justificativa para que as FORGA não

tenham assim procedido, principalmente durante o período de trégua. A não ampliação de sua área de

operações deu oportunidade ao inimigo de mapear toda a zona conflagrada, estabelecer o cerco e

desfechar golpes fatais, como o do natal sangrento. Tal erro, igualmente, figura entre os principais; (3) o

de armar-se às custas do inimigo, o que acabou por lhe manter com o armamento arcáico e obsoleto com

que começou a resistência. Tem-se notícia de poucas iniciativas neste sentido, o que se constituiu em

exceção, não invalidando, portanto, a contabilização deste fator como um erro de grande repercussão no

resultado final do conflito; (4) o de não ter procedido à eliminação sistemática dos jagunços, grileiros e

bate-pau, todos inimigos jurados da Guerrilha e que muito contribuíram para o sucesso das operações

das tropas oficiais; (5) o de não ter se preparado para a hipótese de uma retirada tática da região, para

um deslocamento para áreas bem distantes da zona conflagrada, em caso de grave ameaça ao princípio

guerrilheiro fundamental de manter-se, de sobreviver; (6) o de não ter montado na periferia da área um

dispositivo partidário de apoio logístico clandestino, que pudesse ajudar a guerrilha em diversos aspectos,

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

230

tais como o abastecimento material, a possibilidade de esconder os combatentes numa grave emergência

ou, até mesmo, o reforço em termos de efetivos de combatentes, uma vez começada a luta; e, (7) o da

grande autonomia dos destacamentos e grupos guerrilheiros, o que não significa a total falta de

coordenação do conjunto da luta guerrilheira, a anarquia militar, mas o princípio de que é nas pequenas

unidades que deve se localizar o centro tático da guerrilha. Se assim não acontece, corre-se o risco de

cercear suas iniciativas. Sobre o tema discorrem longamente diversos teóricos da guerra dee guerrilhas.

Durante a experiência do Araguaia, verificou-se uma excessiva centralização pela CM, fato que inclusive

é reconhecido como negativo por Angelo Arroyo.

Outros princípios foram violados de maneira episódica, sobretudo - mas não exclusivamente -

durante a terceira e última campanha do inimigo. Foram eles: (1) o da realização de ações militares, de

fustigamento e emboscada, o que contribui para fazer cumprir o princípio da 'defensiva ativa', para

preparar os guerrilheiros para ações mais ousadas, para tomar armas ao inimigo, para causar-lhe perdas,

para abater-lhe o moral, para desorganizar suas fileiras. Foram, é verdade, realizadas, mas se se leva em

conta a duração do conflito, nota-se que o foram em pequeno número; (2) o da dispersão de forças,

sobretudo no período mais difícil da guerrilha, o do seu início, fase que a Guerrilha do Araguaia não

chegou a ultrapassar, apesar de seu tempo de duração. Mas também durante campanhas de grande

envergadura do inimigo; e, (3) o da não preparação de suficiente estoque alimentar de reserva para a

eventualidade de uma campanha de longa duração, o que incluía a realização de mais plantações,

dispersas pelo meio da floresta e em lugares mais distantes para o caso de emergência. Também a pouca

exploração, por falta de melhor preparação, da caça como fonte alimentar. Este erro também se liga com

a não preparação de pontos de apoio na periferia, o que poderia servir em casos extremos de alternativa.

Todo esse conjunto de regras elementares da técnica da guerra de guerrilhas foram escritos por

diversos teóricos aos quais os guerrilheiros tiveram acesso. Contudo, o que pesou muito para que tais

princípios fossem infringidos foram, fundamentalmente, a inexperiência militar do PC do Brasil e o frágil

domínio teórico da arte da guerra de sua Comissão Militar. Tais debilidades conduziram as forças

Conclusões

231

guerrilheiras para o pior dos erros que pode cometer uma direção militar, a saber, a subestimação do

inimigo. Nele já tinham incorrido as FF.AA. em suas duas primeiras campanhas militares, o que foi um

dos fatores responsáveis pelo seu repetido fracasso. Mas, como forças regulares que eram, puderam se

recuperar e voltar à ação. No caso de um agrupamento guerrilheiro, por suas características peculiares,

nem sempre uma segunda chance lhe é dada, tal erro pode significar, como siginificou no caso do

Araguaia, a extinção do movimento;

XII - Um dos fatores que também contribuíram para a longa duração do movimento guerrilheiro,

além do que já se listou foi, inegavelmente, a inexperiência das FF.AA. brasileiras em combates do tipo

que se travaram no Araguaia. É verdade que já havia batalhões de infantaria de selva e de elite,

especialmente formados para a luta anti-guerrilheira, mas o fato é que eles nunca tinham sido colocados à

prova. Isso, somado à subestimação do trabalho de preparação efetuado pelo PC do Brasil,

conjuntamente, contribuiu sobremaneira para o fracasso das duas primeiras investidas contra as FORGA.

Mas isso não explica tudo, pois a partir da segunda campanha elas já começaram a empregar

efetivos melhor treinados e não obtiveram os resultados esperados, apesar da grande vantagem técnica e

numérica da qual dispunham. No total, empregaram um efetivo que, segundo as mais diversas

estimativas, ficou entre quinze e vinte mil soldados, distribuídos nas três campanhas de cerco e

aniquilamento realizadas. Isso, sem contabilizar os aviões, lanchas, helicópteros e material bélico de

última geração. Além disso, tiveram que abrir estradas, construir quartéis, distribuir lotes de terra e

prestar amplos serviços assistênciais à população para tentar reverter o ânimo dos camponeses,

francamente pró-guerrilheiros. Tudo isso só faz aumentarem as dimensões de seu insucesso repetido por

duas vezes e, por outro lado, as razões para se louvar os êxitos militares dos guerrilheiros e o apoio que

conseguiram junto ao povo;

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

232

XIII - Outra conclusão que podemos tirar, também negativa para as FF.AA., é o enorme desgaste

a que se expôs, seja pela sua demonstração de pouca eficiência militar, qualidade que seus porta-vozes

sempre propagandearam, seja pela sua ação repressiva ter atingido amplas faixas da população,

sobretudo a mais carente, de uma maneira selvagem e indiscriminada, seja ainda pelo conflito ter

desmentido a sua suposta neutralidade, imagem que sempre cultivou. Na caça àqueles que chamavam de

terroristas, sobre quem diziam as piores coisas, apoiaram-se no que havia de mais odiado na região:

jagunços, grileiros, policiais corruptos e poderosos fazendeiros. Ora, ao notarem que esses seus inimigos

do dia-a-dia eram as pessoas nas quais as FF.AA. confiavam, inclusive nomeando alguns para cargos

públicos e que, por outro lado, elas cometiam toda sorte de arbitrariedade e violência contra posseiros,

camponeses e trabalhadores rurais, todos suspeitos de colaborarem com a guerrilha, aquela sua imagem

neutra foi arranhada profundamente, as ilusões que as cercavam desapareceram, ou foram seriamente

prejudicadas. As FF.AA. passaram a figurar também na lista das instituições que o povo pobre daquele

rincão desconfia, teme e, ao mesmo tempo, odeia, por se colocarem ao lado dos poderosos. Elas

sofreram um sério revés político junto àquelas populações;

XIV - Apesar de negarem-se a reconhecer a importância e a relevância do movimento guerrilheiro

do Araguaia, as atitudes das FF.AA., levam-nos a conclusões bem diferentes daquelas que elas

pretendiam com tal atitude. Ao imporem uma cortina de silêncio sobre o assunto até os nossos dias não

fazem que nos levar a questionar o porquê de somente serem sonegadas informações sobre esta tentativa

de luta armada, em particular, dentre todas as outras ocorridas durante os anos em que dominou o

aparelho estatal. Semelhante atitude não assumiu em relação à guerrilha urbana, pelo contrário, a

população era informada diariamente sobre tais eventos, elas cuidavam tão somente de as maquiar, de

vender a versão de que eram simples atos de banditismo. Pois bem, por que um tratamento tão diferente

em relação à Guerrilha do Araguaia? Por que nem mesmo notícias 'fabricadas', em favor das FF.AA.,

foram permitidas? E, sobretudo, por que até hoje, mais de duas décadas depois, mantem-se esse silêncio

Conclusões

233

oficial? Numa opinião inicial, pensamos que alguns motivos concorreram para isso: o fato de,

diferentemente daquelas outras tentativas de desencadeamento de processos de transformação social pela

via da luta armada, a Guerrilha do Araguaia obteve apoio da população da região onde atuava que, para

mudar de atitude, teve que ser selvagemente agredida, espancada, torturada e, por último, aquele

movimento guerrilheiro conseguiu resistir com sucesso durante quase três anos a ataques massivos das

tropas governistas. Então, o silêncio se justificaria na medida em que evitaria que o exemplo daquela luta

se propagasse, que não viessem a público as atrocidades lá cometidas e na medida em que também não

expunha à opinião pública que as FF.AA. brasileiras não eram tão eficientes quanto se imaginava, que

cerca de setenta combatentes mal-armados as haviam enfrentado corajosamente, desafiando a sua

prepotência e expondo a sua fragilidade;

XV - Por outro lado, quando as FF.AA. se aperceberam a dimensão do trabalho feito pelo PC do

Brasil na região do Araguaia e o apoio e simpatia que lhe manifestavam a população, demonstraram alta

capacidade de desprendimento e mobilização e lançaram mão de todas as possibilidades ao seu alcance

para esmagá-la. Colocaram em ação toda a engrenagem estatal, incluindo as estruturas municipais e

estaduais. Tentaram até mesmo envolver nesse esforço a Igreja Católica, que se negou e teve que pagar

com muito sofrimento e humilhação por tal negativa.

Quando se retiraram pela segunda vez, as FF.AA. puseram-se a elaborar e executar um minucioso

plano político e militar de combate à guerrilha, que levava em conta todos os ensinamentos advindos das

duas campanhas anteriores.

Tal plano tinha duas linhas mestras que o regiam. Ambas partiam de um pressuposto, enunciado

num dos documentos que publicamos em primeira mão nesse trabalho: o fator fundamental, decisivo

numa guerra de guerrilha é a população. Os dois objetivos maiores a que se dedicaram as FF.AA. foram:

(1) isolar a guerrilha do partido que a concebera e construíra, destruindo-o; e, (2) afastar os guerrilheiros

da população, fonte da qual provinha a sua grande capacidade de sobrevivência.

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

234

O primeiro objetivo foi parcialmente atingido quando os órgãos de repressão política, em meados

de 1974, conseguem prender importantes membros do CC, assim como desbaratar diversas organizações

regionais, inviabilizando o apoio à guerrilha.

Quanto ao segundo objetivo, o caminho foi mais difícil. O trabalho realizado pelos guerrilheiros

tinha lançado raízes. Tentaram, num primeiro momento, reverter a tendência de apoio aos guerrilheiros

através de atividades assistencialistas e promessas de solução para os conflitos agrários. Mas, tais

medidas foram neutralizadas pelo amplo trabalho político realizado pelos guerrilheiros no mesmo

período.

Simultâneamente a essas atividades políticas junto à população, as FF.AA. já prevendo a

eventualidade dele não funcionar, cuidaram de infiltrar toda a região com espiões, mapeando

colaboradores e possíveis simpatizantes da guerrilha, ao mesmo tempo em que treinavam tropas

especialmente para combate à guerrilhas rurais em florestas e cuidavam de mapear toda a área, como o

haviam feito os guerrilheiros.

Em outubro de 1973, quando elas voltam, aplicam quase que integralmente o plano de combate à

guerrilha rural que a Grã-Bretanha havia aplicado, com êxito, no combate a um movimento de guerrilha

rural na Malásia na década de sessenta.

Fazem um forte cerco estratégico a toda a região da guerrilha. Prendem toda a população

masculina acima de quinze anos e assim a mantem por cerca de dois meses, impedindo desta forma

quaisquer adesões ou ajuda à guerrilha. Praticam o terror como forma de atemorizá-la: torturam,

chantageam, espancam, destroem plantações, etc.

Impedem a entrada de gêneros alimentícios em toda a região. Incendeiam roças e destroem

árvores fruteiras. Tudo isso no sentido de 'pegar pela fome'.

Ao mesmo tempo, promovem incursões na mata de pequenos grupos especializados, guiados por

bons mateiros, que vão esquadrinhando a mata detalhadamente. Além de melhor preparados que os

soldados de antes, contam também com armamentos leves e de alta performance e, sabendo da pobreza

Conclusões

235

de armamentos da guerrilha, passam a explorar ao máximo esta vantagem tática. O resultado é que, como

foram numerosos os grupos a entrarem na floresta, começam a haver combates com maior freqüência e

as FORGA começam a ter sensíveis baixas.

Toda essa movimentação tática das FF.AA. poderia ser contraposta pelos guerrilheiros?

Teoricamente, sim. Uma vez cortadas as ligações da guerrilha com a população e com o partido e do

cerco da região, a derrota da guerrilha passava a ser matematicamente previsível se a situação militar não

fosse radicalmente alterada. Ela só poderia ser evitada se, numa decisão arrojada, se optasse por uma

retirada tática e, assim, fugir ao combate, desgastando as tropas do governo que nada encontrariam e

seriam obrigadas a retirar-se mais uma vez, desmoralizadas. Infelizmente, tal arrojo, tal desprendimento,

não existiu na direção da guerrilha que, pelo contrário, baseado numa subestimação da capacidade de

reformulação tática por parte do inimigo, numa incorreta avaliação da dimensão da ofensiva, deu

orientações no sentido de concentração dos destacamentos, fazendo prova de um primarismo incrível.

Dessa atitude desastrosa, resultou o 'natal sangrento', a batalha decisiva, onde sucumbiram quatro

membros da direção militar da guerrilha, além de dispersar pela imensidão da floresta cerca de uma

dezena de guerrilheiros, sem falar no abalo moral que provocara entre eles. Tal ação das FF.AA.

significou um golpe fatal na guerrilha.

A partir deste momento, a guerrilha passou a existir não mais como movimento organizado,

apesar de ainda restarem uns trinta e cinco membros, mas como resquício, mera caricatura do que tinha

sido até então. Desde então, todas as mortes de guerrilheiros se deram quando buscavam alimentos.

Acontece que, seguindo de perto o exemplo do Exército britânico na Malásia, lá estavam patrulhas das

FF.AA., emboscadas que, facilmente, os eliminavam.

Em resumo, os acertos das FF.AA. combinados com os erros do comando guerrilheiro resultaram

no desfecho militar da contenda.

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

236

A Guerrilha do Araguaia se inscreve no contexto mais geral das lutas das camadas populares

brasileiras que viram esmagadas todas as suas aspirações de liberdade, independência e bem estar para a

maioria da população pelas tropas militares em abril de 1964. Foi, talvez, a mais ousada e conseqüente

tentativa de derrubada do regime militar.

A maneira como o assunto é tratado pelas FF.AA. nos faz recordar uma passagem da grande obra

literária 'Cem Anos de Solidão' do latino-americano Gabriel Garcia Marquez. Trata-se do trecho em que

um de seus personagens, 'José Arcadio, le Second', que presencia um massacre de mais de três mil

grevistas, trabalhadores de uma companhia bananeira em greve, em plena praça pública da cidade de

Macondo, que foram na seqüência jogados ao mar e, sendo o único sobrevivente de tal horrendo evento,

põe-se a recontá-lo mas ninguém o crê, pensam que está louco, pois

"La version officielle, mille fois répétée et rabâchée dans tout le pays par tous les

moyens d'information dont avait pu disposer le gouvernement, finit par s'imposer: il

n'y avait pas eu de morts, les travailleurs satisfaits étaient rentrés avec leurs

familles... «Vous avez sûrement rêvé, disaient les officiers avec insistance. À

Macondo, il ne s'est rien passé, il ne se passe rien et il ne se passera jamais rien. Ce

village est un village heureux» "408.

Mas, não creio que se possa, pelo menos no tocante à Guerrilha do Araguaia, manter-se uma

versão oficial há muito desacreditada, de que nada se passou. Apesar do 'ruidoso silêncio' que pesa sobre

o episódio desde o seu início e que perdura até os nossos dias, a verdade dos fatos acabará por ser

revelada, por vir à luz do dia. E, quando isso acontecer, então, os brasileiros poderão enfim avaliar os

seus erros e êxitos, suas lições e ensinamentos e, ao final, pouco importando o juízo que venha a se

formar neste processo de reflexão coletiva, terminará por inscrevê-la, indelével e definitivamente, nas

páginas da história do Brasil.

408 Marquez, Gabriel Garcia. Cent Ans de Solitude, Paris, Editions du Seuil, 1968, pp. 325-6.

Conclusões

237

O historiador, enquanto esse dia não chega, deveria seguir o exemplo do personagem de Garcia

Marquez que, até o momento de sua morte, apesar de ninguém o acreditar, não se deixa vencer pela

mentira e, mesmo em sua sua última frase, insiste, renitente:

" - Souviens-toi toujours qu'ils étaient plus de trois mille et qu'on les a précipités à la

mer. Puis il tomba... et mourut les yeux grands ouverts."409

Significativamente mesmo morto, manteve seus olhos abertos, como se quisesse dizer que muitos

daqueles que se diziam vivos insistiam em viver com os olhos fechados. Quem sabe a tarefa maior de um

historiador se resuma a isso, insistir em revelar o que teima em manter-se escondido? Em, mesmo

correndo o risco de parecer um louco, obstinar-se até o fim de suas forças em buscar a verdade, pouco

importando o poder que a mentira tenha de se impor? Quem sabe, agindo assim, os historiadores

cumpram a pequena, mas imprescindível função de tentar fazer com que pelo menos os vivos, ou alguns

deles, mantenham seus olhos abertos, para que, quando vierem a morrer, ao contrário do infeliz

personagem, possam fechar os seus, tranqüilos por terem convencido uns poucos, mas orgulhosos por tê-

lo feito. Modestamente, esperamos que essas páginas venham a contribuir para abrir alguns.

Paris, agosto/setembro de 1993.

409 Idem, p. 372.

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

238

Gilvane Felipe

B I B L I O G R A P H I E

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

240

B I B L I O G R A P H I E G É N É R A L E

- AMADO, Janaína. Conflito Social no Brasil: A Revolta dos Muckers. São Paulo (SP), Símbolo, 1978.

- ______________. Movimentos Sociais no Campo: A Revolta de Formoso, Goiás (1948/64). Goiânia,

mimeo, 1980.

- APESTEGUY, Christine. L'Intervention Fédérale en Amazonie. Thèse de Doctorat de 3è cycle à

l'EHESS. Paris, mimeo, 1976.

- ARNS, Dom Paulo Evaristo. Brasil: Nunca Mais. SP, Vozes, 1983.

- BANDEIRA, Moniz. O Caminho da Revolução Brasileira. Rio de Janeiro (RJ), Melso, 1962.

- _______________. O Governo Joao Goulart. As Lutas Sociais no Brasil. RJ, Civilizaçao Brasileira,

1977.

- BASTOS, Elide Rugai. Ligas Camponesas: Estudo Sobre as Lutas Camponesas em Pernambuco. SP,

Mestrado em Sociologia - USP, 1980. (mimeo)

- BERARDO, João Batista. Guerrilhas e Guerrilheiros. SP, Edições Populares, 1981.

- BONNET, Gabriel. Guerrilhas e Revoluções. RJ, Civilização Brasileira, 1982.

- CABRAL e Ronaldo Lapa, R. Desaparecidos Políticos: Prisões, Seqüestros, Assassinatos. RJ, Opção

(Comitê Brasileiro de Anistia), 1979.

- CASO, Antônio. A Esquerda Armada no Brasil, 1967/1971. Lisboa, Moraes Editores, 1976 (1ª ed.:

título original: Los Subversivos. Havana, Casa de las Américas, 1973).

- CARNEIRO, Maria Esperanca Fernandes. A Revolta Camponesa de Formoso e Trombas. Goiânia,

Cegraf-UFG, 1988.

- CASALDALIGA, D. Pedro. Que se passe-t-il dans la vallée de l'Araguaia?, s.l., mimeo, s.d.

- CARONE, Edgar. O PCB: 1943 a 1964 (2 vol.). SP, Difel, 1982.

- CHONCHOL, Jacques. Paysans à Venir. Paris, La Découverte, 1986.

- CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. Brasília, UNB, 1979.

Bibliografia

24

1

- ____________________. Pensar a Guerra. Brasília, UNB, 1986.

- COLOMBANI, Olivier. Paysans du Brésil. Paris, Ed. La Découverte, 1987.

- COMITÉ PRO-AMNISTIA GERAL DOS PRESOS POLITICOS NO BRASIL. Dos Presos Políticos

Brasileiros. Lisboa, Maria da Fonte, 1976.

- COUDON, Paul. Le Pays de Grands Fleuves: du Paradis Paraguayen à l'Enfer Amazonien. Paris, J.

Peyronnet & Cie. Éditeurs, 1945.

- DUARTE, José. Memórias. SP, Centro de Cultura Operária, 1981.

- EGLIN, Jean. Le Pillage de l'Amazonie. Paris, F. Maspéro, 1982.

- ENGELS, Friedrich. "La Guerre des Paysans". In: La Révolution Démocratique Bourgeoise en

Allemagne. Paris, Editions Sociales, 1951.

- FEJTO, F. Chine/URSS, de l'Alliance au Conflit. Paris, Seuil, 1973.

- FERNANDES, Florestan (Org.). Ernesto Che Guevara (textos). Coleção Grandes Cientistas Sociais,

19. SP, Atica, 1981.

- GARAUDY, Roger. Le Problème Chinois. Paris, Seghers, 1967.

- GARCIA, José G. O Caminho de Trombas. RJ, Civilização Brasileira, 1966.

- GARCIA, Marco Aurélio (org.). Esquerdas e Democracia. RJ, Paz e Terra, 1986.

- GIAP, Vo Nguyen. Guerra do Povo, Exército do Povo. RJ, Saga, 1968.

- GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. SP, Atica, 1990.

- GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. RJ, Civilização Brasileira, 1966.

- GRAZIANO DA SILVA e Verena Stolcke, José (Org.). A Questão Agrária (VVAA). SP, Brasiliense,

1981.

- GUEVARA, Ernesto Che. A Guerra de Guerrilhas. SP, Edições Populares, 1980.

- GUIMARÃES, Maria Tereza Canesin. Formas de Organização Camponêsa em Goias. Goiânia, Cegraf-

UFG, 1988.

- HART, B.H. Liddell. As Grandes Guerras da História. SP, Ibrasa, 1982.

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

242

- HOBSBAWN, Eric. Revolucionários. Ensaios Contemporâneos. RJ, Paz e Terra, 1982.

- IANNI, Octávio. A Luta pela Terra, Coleção Sociologia Brasileira, 8, (2ª ed.). Petrópolis, Vozes, 1979

(1ª ed. 1978).

- _______________. Ditadura e Agricultura. Coleção Retratos do Brasil, 131. RJ, Civilização Brasileira,

1979.

- _______________. "A Classe Operária Vai ao Campo". Cadernos do CEBRAP, 24. SP, Brasiliense,

1976.

- IPM n° 709. Vol. IV. "O Comunismo no Brasil". RJ, Biblioteca do Exército (BEX), 1966-67.

- Institut des Études Marxistes-Léninistes. Histoire du Parti du Travail d'Albanie. Tirana, Naim Frashëri,

1971.

- KAROL, K. S. Les Guérilleros au Pouvoir. Paris, Laffont, 1973.

- KONDER, Leandro. A Democracia e os Comunistas no Brasil. RJ, Graal, 1980.

- KOTSCHO, Ricardo. O Massacre dos Posseiros. SP, Brasiliense, 1981.

- KRANTZ, Frederick (Org.). A Outra História: Ideologia e Protesto Popular (VVAA). RJ, Zahar, 1990.

- LÊNIN, V.I. Sobre a Guerra e a Paz. Lisboa, Maria da Fonte, 1975.

- __________. Organização Comunista, Lisboa, Maria da Fonte, 1975.

- __________. Que Fazer?. SP, Hucitec, 1979.

- LIMA e Aldo Arantes, Haroldo. História da Ação Popular: da JUC ao PC do B. SP, Alfa-Õmega,

1984.

- MACHIAVEL. A Arte da Guerra. Brasília, UNB, 1980.

- MAO Tsé-tung. Escritos Militares, 2 tomos. Goiânia, Ed. Libertação, 1981.

- MARQUEZ, Gabriel Garcia. Cent Ans de Solitude, Paris, Editions du Seuil, 1968.

- MARTINS, Edilson. Nós, do Araguaia: D. Pedro Casaldáliga, o Bispo da Teimosia e da Liberdade (3ª

ed.). RJ, Graal, 1983.

- MARTINS, José de Souza. O Cativeiro da Terra. SP, Ed. Ciências Humanas, 1979.

Bibliografia

24

3

- MARX, F. Engels e V.I. Lênin, Karl. Escritos Militares. SP, Global, 1981.

- POERNER, Arthur. O Poder Jovem. RJ, Civilização Brasileira, 1968.

- PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira. SP, Brasiliense, 1966.

- REIS FILHO, Daniel Aarão. A Revolução Faltou ao Encontro: os Comunistas no Brasil. SP,

Brasiliense, 1989.

- __________ e Jair Ferreira de Sá, Daniel Aarão. Imagens da Revolução. RJ, Marco Zero, 1985.

- RUDÉ, George. A Multidão na História. RJ, Campus, 1991.

- STEPAN, Alfred. Os Militares na Política. RJ, Arte-Nova, 1975.

- ______________. Os Militares: da Abertura à Nova República. RJ, Paz e Terra, 1986.

- TABER, Robert. Teoria e Prática de Guerrilha. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1976 (1ª ed., 1965, título

original: The War of the Flea).

- TZU, Sun. A Arte da Guerra. RJ, Record, 1983.

- UNGER, N. M. "La Gauche Révolutionaire Brésilienne de 1965 à 1973". Mémoire de DEA, Paris,

1974, mimeo.

- VIANNA, Maria Lucia Werneck. "O Governo Médici: Uma Análise de Conjuntura". In: Encontros com

a Civilização Brasileira, 14. RJ, Civilização Brasileira, Agosto 1979.

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

244

B I B L I O G R A P H I E S P É C I F I Q U E

- AMAZONAS, João et alii. Guerrilha do Araguaia: 1972-1982. SP, Anita Garibaldi, 1982.

- DORIA, Palmério et alii. A Guerrilha do Araguaia, Coleção História Imediata, 1. SP, Alfa-Õmega,

1978.

- LA RESISTANCE ARMÉE AU BRESIL. Textes de la Résistance Armée au Sud du Para. Paris, CILA,

1972.

- LUIS, Osmar. "A Resistência Armada do Araguaia". In: PETIT, Antoine. Castro e Debray Contra o

Marxismo-Leninismo. Lisboa, Maria da Fonte, 1974. (pp. 171 et ss.)

- "A Linha Política Revolucionária do Partido Comunista do Brasil (M-L)". Lisboa, Maria da Fonte,

1974.

- "Política e Revolucionarização do Partido Comunista do Brasil (M-L)". Lisboa, Maria da Fonte, 1974.

- POMAR, Pedro Estevam da Rocha. São Paulo, 1976: Massacre na Lapa. SP, Busca Vida, 1987.

- POMAR, Wladimir. Araguaia: o Partido e a Guerrilha. SP, Brasil Debates, 1980.

- PORTELA, Fernando. Guerra de Guerrilhas no Brasil (5ª ed.). SP, Global, 1981 (1ª ed. 1979).

- MAKLOUF, Luís et alii. Pedro Pomar. Coleção Brasil Memória, 2. SP, Brasil Debates, 1980.

- MOURA, Clóvis (Org.). Diário da Guerrilha do Araguaia (2ª ed.). SP, Alfa-Õmega, 1979 (1ª ed. 1979).

- SA, Glênio. Araguaia: Relato de um Guerrilheiro. SP, Anita Garibaldi, 1990.

- TERRA, Adamastor. Brasil: La Guerrilla de Araguaia. Buenos Aires, Nativa Libros, 1973.

Bibliografia

24

5

P É R I O D I Q U E S

- "Em Xambioá, a Luta é Contra Guerrilheiros e Atraso". Jornal O Estado de São Paulo, SP, 24/09/1972.

- SADER, Regina. "Lutas e Imaginário Camponês" in: Tempo Social; Revista de Sociologia da USP, SP,

2(1): 115-125, 1º sem. 1990.

- ALBUQUERQUE, Nonato. "Em busca da guerrilha perdida" (Entrevista com Dower Cavalcante).

Jornal Vida & Arte, Fortaleza, 18/05/1991, caderno B.

- BAFFA, Ayrton. "A Prova da Morte de Grabois, em 73". O Estado de São Paulo, 10/10/1982, p. 26.

- BENEVIDES, Roberto. "Playboy entrevista José Genoíno". Revista Playboy, SP, maio de 1993,

pp.35-47 e 110-2.

- GARCIA, Marco Aurélio. "Contribuição à História da Esquerda Brasileira: 1960/1979". Jornal Em

Tempo, SP, Agosto 1979 a Abril 1980.

- KLINKE e Luciana de Francesco, Angela "Guerrilha e Paz", Revista Isto É, 1243, SP, Ed. Três,

28/07/1993, pp. 48-51.

- Coojornal. Porto Alegre, Julho de 1978.

- "A Invasão". Revista Isto É, 9, SP, Ed. Três, Janeiro 1977, p. 44.

- "A Terra Mais Tensa do País". Jornal Folha de São Paulo, SP, 02/01/1976, p. 7.

- "General Fala Sobre Guerrilha no Pará". O Estado de São Paulo, SP, 02/10/1976, p. 14.

- "Brésil: l'Armée Aurait Engagé une Action Contre des Guérilleros en Amazonie". Le Monde, Paris,

04/11/1972, p. 6.

- "Brésil: Six Militants d'Extrême Gauche Tués à Recife". Le Monde, Paris, 12/01/1973, p. 3.

- "Brésil-France, Même Combat". Revue Frères du Monde, 79, Bordeaux, 1972.

- "Conflito Rural Causa Morte de Dois Policiais". O Estado de São Paulo. SP, 30/10/1976, p. 11.

- "No Pará, Agitação Afeta Segurança". O Estado de São Paulo. SP, 02/11/1976, p. 14.

Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

246

- "Le Brésil en 1971". Revue Problèmes d'Amérique Latine, 24. Paris, La Documentation Française,

Juillet 1972.

- "Brésil 1972 - 1973: Les Deux Dernières Années de la Présidence Médici". Revue Problèmes

d'Amérique Latine, 31. Paris, La Documentation Française, Avril 1974.

- Jornal Movimento: 07/07/1978 e 05/02/1979.

- Jornal da Tarde: 25/09/1972; 13/01/1979; 15-20/01/1979; e, 23/04/1979.

- Folha de São Paulo: De 06/03/1979, pp. 5-6; 20/04/1979, p. 6; e 27/05/1979, pp. 7 e 14.

Bibliografia

24

7

D O C U M E N T S

- "POP nº 003/72 - Plano de Operações 'Araguaia'", Polícia Militar do Estado de Goiás, Goiânia, 28 (?)

de novembro de 1972.

- "Relatório do Destacamento das Forças Especiais da Operação Andorinhas", s.l., s.d.

- "Norma Geral de Ação", Brasília, Centro de Informações do Exército (CIEx), Ministério do Exército

(Gabinete do Ministro), 05/09/1973.

* Obs.: Les documents du PC do B utilisés dans ce travail font partie des ouvrages cités ci-dessus. Ceux

des FORGA sont reproduits à l'Annexe V, infra.

A N N E X E S

I . Noms et Surnoms/Sobriquets des Guérilleros Morts, Disparus et survivants de la Guérilla

de l'Araguaia;

II . Document 'Guerra Popular - Caminho da Luta Armada no Brasil', du PC do B;

III . Lettre du Guérillero Guilherme Lund ('Luís) à Ses Parents;

IV . Plans du 'Théâtre d'Opérations' de la Guérilla de l'Araguaia;

V . Documents des Forces Guérilleras de l'Araguaia;

Anexos

249

VI . Documents Secrets des Forces de l'Ordre Brésiliennes;

VII . Angelo Arroyo, 'Relatório Sobre a Luta no Araguaia' (Relatório Arroyo);

VIII . Matériaux de Divulgation de la Guérilla Apparus en France;

IX . Matières Apparus Sur le Journal 'Le Monde

A Guerrilha do Araguaia (Brasil: 1966 - 1975)

250