a dissolucao do outro na comunicacao contemporanea

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101 RESUMO A partir de alguns diagnósticos da cultura e da comunicação contemporâneas, suge- rimos que se torna perceptível uma crescente dissolução da alteridade nas mediações, provocada pelos chamados novos media, construídos a partir de plataformas tecno- lógicas cada vez mais distantes da corporeidade e seus requisitos. As experiências de encantamento se transferem do sentido para os aparatos, dissolvendo a temporalidade presente e a percepção de si mesmo em favor de suportes ou imagens geradas por ou para tais suportes tecnológicos. A tecnologia torna-se autônoma, gerando em torno de si sujeitos e objetos hipnógenos. Palavras-chave: alteridade, cultura da imagem, tecnologia, media eletrônica ABSTRACT From some diagnoses of contemporary culture and communication we suggest that it becomes an increasingly noticeable dissolution of otherness in the mediations caused by so-called new media, built from technology platforms increasingly distant from corporeality and its requirements. e experience of enchantment in order to relocate the pageants, and dissolving the temporality of this perception of self in favor of media or images generated by or for such technological supports. e technology becomes autonomous, generating around itself hypnogenic subjects and objects. Keywords: otherness, image culture, technology, electronic media MALENA SEGURA CONTRERA* NORVAL BAITELLO JR.** A dissolução do Outro na comunicação contemporânea 1 The dissolution of the Other in contemporary communication 1. Trabalho apresentado no GT Comunicação e Cultura do XIX Congresso da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. * Professora Doutora do Programa de Mestrado em Comunicação da UNIP de São Paulo, diretora do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, líder do Grupo de Pesquisas em Mídia e Cultura e bolsista produtividade do CNPq. ** Professor Doutor do Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, líder do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia e bolsista produtividade do CNPq.

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  • 101

    RESUMOA partir de alguns diagnsticos da cultura e da comunicao contemporneas, suge-rimos que se torna perceptvel uma crescente dissoluo da alteridade nas mediaes, provocada pelos chamados novos media, construdos a partir de plataformas tecno-lgicas cada vez mais distantes da corporeidade e seus requisitos. As experincias de encantamento se transferem do sentido para os aparatos, dissolvendo a temporalidade presente e a percepo de si mesmo em favor de suportes ou imagens geradas por ou para tais suportes tecnolgicos. A tecnologia torna-se autnoma, gerando em torno de si sujeitos e objetos hipngenos.Palavras-chave: alteridade, cultura da imagem, tecnologia, media eletrnica

    ABSTRACTFrom some diagnoses of contemporary culture and communication we suggest that it becomes an increasingly noticeable dissolution of otherness in the mediations caused by so-called new media, built from technology platforms increasingly distant from corporeality and its requirements. Th e experience of enchantment in order to relocate the pageants, and dissolving the temporality of this perception of self in favor of media or images generated by or for such technological supports. Th e technology becomes autonomous, generating around itself hypnogenic subjects and objects.Keywords: otherness, image culture, technology, electronic media

    M A L E N A S E G U R A C O N T R E R A *

    N O R VA L B A I T E L L O J R . * *

    A dissoluo do Outro na comunicao contempornea1The dissolution of the Other in contemporary communication

    1. Trabalho apresentado no GT Comunicao e Cultura do XIX Congresso da Associao Nacional dos Programas de Ps-Graduao em Comunicao.

    * Professora Doutora do Programa de Mestrado em Comunicao da UNIP de So Paulo, diretora do Centro Interdisciplinar de Semitica da Cultura e da Mdia, lder do Grupo de Pesquisas em Mdia e Cultura e bolsista produtividade do CNPq.

    ** Professor Doutor do Programa de Comunicao e Semitica da PUC/SP, lder do Centro Interdisciplinar de Semitica da Cultura e da Mdia e bolsista produtividade do CNPq.

  • 102 MATRIZes Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111

    A CRISE DA MAGIA

    Uma das questes centrais do processo de desencantamento do mun-do, conforme nomeado por Max Weber, a questo da crise da magia2. O assunto se refere ao processo pelo qua l as coisas concretas deixaram de ser transubstanciaes do divino, do sagrado e foram absorvidas pela lgica da produo industrial e transformadas em produtos mercantis.

    A crise da magia que gerou essa nova relao com o mundo, de-sencantado e reduzido ao valor de matria-prima, por meio, inclusive, do paradigma cartesiano vigente , esteve sempre ligada crise do sentido3. Foi ela que nos levou condio de sermos cada vez m ais incompetentes para atribuir valor simblico s coisas do mundo e s experincias que delas temos. Como pontuou G. Durand, o esvaziamento das capacidades simblicas se deu nesse contexto:

    No s o mundo passvel de explorao cientfi ca, como s a explorao cientfi ca tem direito ao ttulo desafecto de conhecimento. Durante dois sculos a imagi-nao violentamente anatemizada (...). Na fi losofi a contempornea realiza-se, sob o impulso do cartesianismo, uma dupla hemorragia do simbolismo (Durand, 1993: 22).

    O autor pontua claramente do que se trata: ... o poder pragmtico do signo triunfa diariamente (Ibid.: 23).

    Esvaziadas as possibilidades mgico-simblicas das coisas do mundo, a busca do sagrado e do sentido se transfere para os processos, da advm a cen-tralidade dada tecnologia nos ltimos sculos. H tempos nossa sociedade no se pergunta mais pelas coisas, pelo que elas so, por quais suas motivaes, a nica pergunta pertinente no mundo moderno (e ainda contemporanea-mente) o como do poder pragmtico que Durand reconhece. Como fazer, como utilizar, como consertar, como acertar nos testes: a vida quase se reduz a uma sensao constante de treinamento para tudo e para coisa alguma.

    Trata-se de estarmos cada vez mais submetidos ao que Trivinho chama de razo tecnolgica. Ele assim a apresenta:

    Razo tecnolgica no sentido de uma razo cotidiana, pragmtico-utilitria, imediatista, em relao mquina. Implicitamente ideolgica e ufanista (...) em relao sociedade tecnolgica, essa razo apresenta sempre um reencantamento feliz diante das proezas e potencialidades da tecnologia. Como tal, trata-se de uma razo no mediada pela simbolizao, isto , desprovida de autorrefl exo crtica sobre suas prprias manifestaes exteriores e prticas, em particular aquela em relao aos objetos tecnolgicos (Trivinho, 2001: 88).

    3. O processo de desencantamento do

    mundo e suas implicaes para a Comunicao foi

    tema de pesquisa de ps-doutoramento de Malena

    S. Contrera pelo CNPq em 2008 e o tema central de

    livro que est no prelo.

    A dissoluo do Outro na comunicao contempornea

    2. Quem pontua muito bem a relevncia dessa

    questo para Weber A. F. Pierucci, no livro O desen-cantamento do mundo. So

    Paulo: Editora 34, 2003.

  • Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111 103

    A ideologia e a economia capitalistas coincidiram com a descoberta da eletricidade, e impuseram-se plenamente por meio da industrializao e da criao das possibilidades de produo em srie de aparatos tecnolgicos que serviram para criar ainda mais produtos em srie. Tecnologia moderna e o que poderamos chamar de uma esttica da seriao esto indissociavelmente ligadas. Esse o princpio gerador do que Edgar Morin (1990) chamou industria-lizao do esprito, processo central da cultura de massas, no por acaso centrada nas redes de mediao de massa e em seu poder tecnolgico de enfeitiamento por meio da ao mgica das imagens eletrnicas.

    Mais de cem anos depois do desencantamento do mundo apresentado por Max Weber, e depois de praticamente 60 anos da aguda leitura da cultura de massas de Edgar Morin, o cenrio dos meios eletrnicos mudou muito, mas ainda no abandonou a sua vocao tecnolgica para a formatao dos espritos.

    preciso no confundir essa situao com a necessidade de aprendiza-gem contnua para a qual a crescente complexidade do mundo nos destinou. A presente situao visa na realidade a nos transformar, crescentemente, em funcionrios, como declarou Vilm Flusser (2002), ou em sujeitos e objetos hipngenos, segundo E. von Samsonow (2005)4.

    Contemporaneamente, vemos toda a complexidade da comunicao huma-na ser minimizada e a centralidade das trocas comunicativas e dos processos vinculadores se deslocar para a questo da apropriao ou no das tecnologias da comunicao. Transformamo-nos, triunfantes, em usurios.

    A AUTONOMIZAO DA TECNOLOGIA certo que o homem sempre esteve s voltas com suas tcnicas e com as tecnologias relativas sua poca. No dessa relao indissocivel entre humanidade e tcnica que estamos tratando, abordamos na realidade um mo-mento especfi co na histria dessa relao, do momento em que um conjunto de tcnicas se transforma em uma forma de pensar o mundo. Tal forma passa a se pautar centralmente em critrios relativos sua prpria operacionalidade. Nisso reside seu carter centralmente ideolgico, como bem props Jrgen Habermas (2007). Estamos falando da tecnologia eletrnica e de seu carter autorreferente.

    Esse carter autorreferente se apresenta em todo sistema ideolgico que enlouqueceu, seja pela falta de refl exo e autocrtica, seja pela falta de capacidade de interagir com outras esferas da existncia (tais como o sentimento, a intuio, o devaneio, o sonho), recusando-se a considerar a relevncia da constituio de uma ecologia da comunicao5. Tudo se reduz a sonhar o sonho das mquinas, como anteviu Kamper (1997), como sonhos pr-sonhados.

    4. O tema do funcionrio, como representante da dissoluo da vontade (Auflsung des Willens) nos ambientes crescen-temente tecnolgicos, desenvolvido em Flussers Vllerei (Kln, 2005).

    DOSSIThe dissolution of the Other in contemporary communication

    5. O tema da ecologia da comunicao vem sendo bastante deba-tido por um grupo de pesquisadores junto ao Centro Interdisciplinar de Semitica da Cultura e da Mdia (CISC-PUC-SP). Podemos ainda fazer referncia ao livro de mesmo nome, Ecologia da Comunicao, de Vicente Romano (no prelo).

  • 104 MATRIZes Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111

    Essa autorreferncia se revela totalmente no modus operandi da tecnologia moderna: seus critrios centrais sempre partiram do princpio de automa nuten-o ou aperfeioamento de suas prprias operaes e mtodos. Ela autoexecuta um programa complexo que a coloca na prpria centralidade da vida e das questes humanas.

    Vemos nesse processo uma inverso: a tcnica, de meio, passa a ser um fi m em si mesmo, e o homem, que deveria direcionar sua utilizao, passa a girar ao seu redor. Estamos assistindo ao nascimento de um tempo em que os aparatos tecnolgicos no so mais prteses humanas, o que vemos o ser humano como prtese dos aparatos tecnolgicos. E essa operao realizada justamente pelo projeto de autoexecuo e autorreferncia da razo tecnolgica (Trivinho, 2001). A segunda pode ser relacionada ao fenmeno que o mesmo autor chama de tecnologia como religio. Ele assim o apresenta:

    Desde os apontamentos de Heidegger acerca da tcnica como metafsica realizada no sculo XX, constata-se, na fase atual da sociedade tecnolgica, em funo da dependncia da mquina, uma intensifi cao da caracterstica da tecnologia como religio (Ibid.: 83).

    Berman (2005) volta a se ocupar de uma questo que estava tambm na genealogia do pensamento de Max Weber sobre o desencantamento do mundo; a questo de que a tentativa de dominar a natureza nasce com o pen-samento mgico. Essa questo foi muito bem mapeada por Morin (1985)6, no qual vemos como as sociedades arcaicas concebiam magia e tecnologia como sendo praticamente a mesma coisa, j que todo saber fazer era prerrogativa dos sacerdotes ou xams instrudos pelos deuses7. At as tcnicas aparentemente banais, cotidianas, como o preparo do alimento, eram circunscritas a uma mitologia es pecfi ca que as legitimava. O que nos parece pertinente nessa questo percebermos que magia e tecnologia possuem a mesma motivao inicial, diferenciando-se no na fi nalidade, mas na maneira e nas ferram entas de execuo e, especialmente, na fonte de onde emana o seu poder de intervir na realidade.

    Essa origem comum faz com que muitos afi rmem que, sob a primazia do tecnolgico, estamos vivendo um reencantamento. Podemos decerto chamar de novo encantamento, mas certamente no podemos comparar a situao atual com a que vigorava antes do racionalismo, na fase em que imperava um pensamento chamado por Berman (2004) de pensamento hermtico sobre o mundo. A diferena central a ser considerada nesse caso a de que o que podemos chamar de encantamento do mundo nas culturas arcaicas se pautava por uma relao muito diferenciada com o mundo concreto, incluindo o prprio

    6. Tambm E. Durkheim ocupou-se dessa questo,

    especialmente ao tratar do animismo, em As formas

    elementares da vida religiosa. So Paulo:

    Martins Fontes, 1996.

    A dissoluo do Outro na comunicao contempornea

    7. Sobre essas sociedades e a relao de seus sacerdotes

    com os instrumentos m-gicos, ver El chamanismo y las tcnicas arcaicas del

    xtasis, de M. Eliade, 1992.

  • Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111 105

    corpo. A tecnologia contempornea apaga justamente as marcas da natureza concreta do mundo, a cibercultura a evidncia mxima desse comportamento de negao das condies concretas, ou seja, dos limites espao-temporais dados pela realidade concreta.

    nesse ponto central que no se pode dizer que estamos vivendo um reencantamento do mundo, na medida em que a palavra encantamento, como proposta por M. Weber, referia-se a uma viso de mundo na qual o homem praticamente brotava da terra e a ela estavam indissociavelmente relacionadas todas as esferas da sua vida. O momento atual se parece mais consumao de um processo de desmaterializao do mundo (seguindo o desmantelamento j operado pelas sociedades industriais). Nesse sentido, A. Gorz acerta ao tratar o presente momento como o triunfo de uma economia (no sentido complexo do termo, e no apenas monetrio) do imaterial.

    Essa desmaterializao do mundo, da qual tratamos em outro momento, comea a se dar efetivamente com o advento do patriarcado e, em especial, com o monotesmo que considera o esprito como algo santo e o corpo como a morada do pecado. Todos sabemos do longo trabalho do catolicismo para apagar a relao simblica dos pagos com a terra e com os cultos que envolviam os deuses da natureza, processo culminado na Inquisio. Tal hiptese, a ser apro-fundada e desenvolvida em outro contexto, tem como uma das bases o estudo do fi lsofo japons Tetsuro Watsuji sobre uma antropologia das paisagens e o surgimento das grandes religies monotestas (patriarcais) no ambiente hostil do deserto e suas culturas, onde igualmente nasceram a escrita, a astrologia e as matemticas, embries primeiros das tecnologias. Tambm Vilm Flusser aponta em seu livro A escrita a importncia do ambiente desrtico como tero da cincia ocidental.

    Altera-se centralmente, com o estabelecimento do patriarcado e do mo-notesmo, o lugar dos deuses. Os deuses, nas culturas pags (em grande parte mantendo relaes com a cultura matriarcal) habitavam os mares, a terra, os gros, as rvores e todos os seres encantados da natureza. O mundo concebido pel o patriarcado coloca os seus deuses inicialmente no poder masculino e nos fenmenos celestes, operando a transferncia do lugar terreno para o espao distante e intocvel do sagrado, agora associado ao imaterial. O prximo passo a criao dos deuses tribais sociais, nos dizeres de Campbell (2002), associa-dos a tribos especfi cas e ligados a elas por linhagens ancestrais (que o caso evidente do Judasmo).

    O esprito puro no demora a revelar-se o maior processo de apagamento da concretude do mundo, e seu rebaixamento matria-prima uma consequncia fcil de compreender. O sobrenatural constri seu valor sobre os destroos do

    DOSSIThe dissolution of the Other in contemporary communication

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    natural, aps ter dele se dissociado. A consequncia extrema desse proces-so estudada por G. Anders em seus dois volumes de Die Antiquiertheit des Menschen (1994) que, em ltima instncia, mapeia a transformao do prprio homem em matria-prima das engrenagens civilizatrias.

    A ironia que nosso enredo monotesta e patriarcal, aps passar pela supremacia da razo e do cogito, nos leva a reeditar os deuses do trovo e dos raios, os deuses celestes e imaterias, na tecnologia eletrnica que, na moder-nidade, aprisionou o relmpago de Zeus na fulgurncia da mquina. J nos primrdios do sculo XX o precursor de uma teoria geral da imagem, Aby Warburg, observou a passagem dos rituais pagos do raio (associado serpente, smbolo da terra e da grande me) e sua domesticao nas serpenteantes fi aes da eletrifi cao urbana. Sua conferncia de 1923, Schlangenritual (Ritual da serpente), transformada em um pequeno livro apenas em 1939, demonstra a partir da observao dos ndios Hopi, no Novo Mxico, Estados Unidos, como um smbolo pago percorre pocas, eras e culturas carregando signifi cados arcaicos para dentro de novas molduras e formatos civilizatrios. No por acaso Warburg prope tais estudos arqueolgicos como fontes de conhecimento de objetos contemporneos, lanando bases para a compreenso da natureza das imagens mediticas.

    Esse processo de reedio das imagens e smbolos arcaicos atribuiu um valor mgico especial tecnologia, o valor mgico que antes era atribudo apario hierofnica do deus celeste. Assim as tecnologias eletrnicas utili-zadas nos processos de mediao social, por sua capacidade de reproduzirem imagens exgenas indefi nidamente (era Zeus o grande reprodutor), esvaziam o poder criativo do deus celeste e usurpam sua capacidade de encantamento, transferindo-a para uma mquina.

    Frankenstein talvez seja a imagem mais emblemtica desse encantamento tecnolgico, dessa f na eletricidade e na tecnologia que dela se mantm. Hoje, ainda, quem no isentaria o doutor e culparia o monstro?

    O APAGAMENTO DO OUTRO (SOMOS TODOS USURIOS?)Rituais de casamento no espao virtual da rede, velrios virtuais8, caixes em forma de celular9, em todas essas (e muitas outras) situaes, a verdadeira relao se desenvolve com a tecnologia, com a natureza tecnolgica do am-biente em que ocorre. As especifi cidades do meio formatam as possibilidades de representao da pessoa que por meio dele se apresenta, se relaciona, e, consequentemente, tais especifi cidades do forma tambm s possibilidades de percepo do outro. Sabemos que ciberpessoas so invenes possveis dentro do ambiente infotecnolgico da rede, e mesmo que no menosprezemos o papel

    A dissoluo do Outro na comunicao contempornea

    8. Todos esses fenmenos so analisados na pesquisa

    de doutorado de Jorge Miklos, Comunidades

    Religiosas: interfaces entre mdia e religio no ciberes-

    pao. Orientador: Norval Baitello Junior. Doutorado. Programa de Comunicao

    e Semitica. Pontifcia Universidade Catlica

    de So Paulo, 2010.

    9. Matria divulgada pelo portal Terra em 2007.

    Disponvel em: .

    Acesso em jan. 2010.

  • Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111 107

    imaginrio dessas invenes, sabemos tambm que o que impera nesse processo a autodeterminao.

    As questes relativas s perdas devidas compresso espao-temporal desse processo foram j bem mapeadas por outros autores (Paul Virilio, Trivinho), mas aqui queremos tratar de outra dimenso que perdida nessa relao quase que exclusiva com a tecnologia: a noo de alteridade. Inicialmente dada pelos deuses, pelos duplos, pelos objetos mgicos e encantados repletos de sobrenatu-ralidade (que era aqui uma espcie de intranaturalidade), a noo de alteridade apagada pela identifi cao imediata do homem com a tecnologia, na medida em que a tecnologia algo percebido como exclusivamente humano, prxima demais, prtese.

    Temos de considerar ainda que, ao serem os objetos tecnolgicos inseridos no modus operandi funcional da sociedade produtivista, essa identifi cao se exacerba e adquire contornos claramente narcisistas, como sugere V. Flusser:

    Essa transformao gradativa das coisas em instrumentos explica a deteriorao progressiva do nosso sentimento religioso. As coisas eram revelaes do nada, e como tal, carregadas de sacralidade. Os instrumentos obstruem a viso do nada e so, portanto, o contrrio do sacro, so o corriqueiro. As coisas representavam algo, eram smbolos de algo, e era possvel adorar esse algo atrs das coisas. Os instrumentos representam, no melhor dos casos, o trabalho manipulador da existncia humana, e a nica coisa que possvel adorar nos instrumentos o trabalho humano atrs deles. A nica religiosidade da qual somos capazes, portanto, a autoadorao, o narcisismo (Flusser, 2002: 94-95).

    Essa autoadorao, que deixa evidente seu trao narcsico, encobre algo pior, que o apagamento da alteridade, exatamente em um mundo que, ironi-camente, gira em torno de infi nitas interconexes.

    Sintomtico desse cenrio o sucesso das redes sociais que se baseiam em temos isso em comum. O mais espantoso na poca da exploso do Orkut no Brasil que tantas pessoas quisessem se encontrar a partir de critrios de absoluta mesmidade10, critrio evidente nos nomes dos grupos, a grande maioria nomeada como eu adoro isso, eu odeio aquilo, reproduzindo nause-antemente um discurso tipicamente adolescente de autoafirmao por meio de agrupamento de iguais eu e minha turma, s que agora virtual. Muda o suporte, mas o contedo marcadamente narcsico permanece. Somem-se a ainda alguns retrocessos: observao quase consensual que os adolescen-tes de hoje so mais conservadores do que os de 30 ou 40 anos atrs, e em alguns momentos nota-se tambm um avano do mais atrasado moralismo,

    10. Termo proposto por Z. Bauman (2004).

    DOSSIThe dissolution of the Other in contemporary communication

  • 108 MATRIZes Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111

    sem que este seja fundamentado em prtica ou crena religiosa. Talvez o que importa mesmo seja apenas o culto autoimagem e a quantificao de suas aparies nas no daes da rede. O popularesco e a breguice se impem pela alta recorrncia e frequncia, trazendo como obrigatoriedade nica os critrios quantitativos de medio. A demoscopia no mais instrumento de diagnstico, ela justificativa de existncia e permanncia (a velha breguice do mais popular agora transposta para o espao das redes na obsesso pela medio de agregados ou seguidores).

    Isso torna mais compreensvel o fato de que a internet, que surgiu acom-panhada dos discursos profticos de que ela seria a grande unifi cao da espcie humana, tenha sido o ambiente ideal para fomentar intolerncias de todos os tipos. Vimos recrudescer uma forma popular de fascismo nas men-sagens moralistas de vdeos domsticos que circulam entre adolescentes11, ao mesmo tempo que o neonazismo12 e toda produo social de intolerncias e xenofobias encontraram tambm na internet um espao assptico o sufi ciente para abrigar ideais e valores essencialmente sangrentos. O mximo de avano tecnolgico abriga o mximo de atraso comportamental nas sociedades cha-madas liberais. Haveria um nexo entre as duas coisas? O desencantamento estaria agindo como abandono de princpios civilizatrios ticos ou mesmo simplesmente humanitrios e de tolerncia? Ou a perda do olhar para o di-verso teria nascido da incapacidade inerente tecnologia de ela prpria ter olhos para o outro?

    Quem chama a ateno para essa tendncia das sociedades contempor-neas a regredirem suas capacidades de negociar complexamente a alteridade Bauman, e no coincidentemente o faz de f orma bem eloquente no livro Amor lquido (2004):

    O impulso na direo de uma comunidade de semelhana um signo de recuo no apenas em relao alteridade externa, mas tambm ao compromisso com a interao interna (...). Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uni-forme na companhia de outras como elas, com as quais podem socializar-se de modo superfi cial e prosaico sem o risco de serem mal compreendidas nem a irritante necessidade de traduo entre diferentes universos de signifi caes , mais se tornam propensas a desaprender a arte de negociar um modus covivendi e signifi cados compartilhados (Bauman, 2004: 134-135).

    Bauman parece ter encontrado o tom que define as sociabilidades contemporneas, centradas nas afinidades de ocasio e numa esttica do eco: superficial, mas sem o benefcio do tato; prosaico, mas sem o lirismo da prosa.

    A dissoluo do Outro na comunicao contempornea

    11. Sempre nos pareceu chocante que universit-

    rios fizessem circular pela internet vdeos domsticos

    dessa ou aquela garota, normalmente colega de

    faculdade, fazendo sexo, acompanhados de

    xingamentos e de discursos moralistas e hipcritas em pleno sculo XXI, eviden-

    ciando que os meios tecno-lgicos podem trazer muita

    novidade e avano, mas a mentalidade de quem os

    usa continua sendo adepta de prticas fascistas. Esse

    tipo de fascismo nas relaes humanas foi

    tratado com maestria no filme Malena (2000), de

    Giuseppe Tornatore.

    12. A dissertao de mestrado defendida no Instituto de Filosofia e

    Cincias Humanas (IFCH) da Unicamp, com o ttulo

    de Os Anacronautas do Teutonismo Virtual: uma etnografia do neonazismo na Internet, por Adriana

    Abreu Magalhes Dias, mapeou o universo de

    sites, portais, comunida-des, fruns, chats, blogs e listas de discusso que

    abordam a temtica racista e revisionista (que tenta

    invalidar a veracidade histrica do holocausto na

    Segunda Guerra Mundial e o nmero de judeus mortos

    por agentes nazistas). A pesquisa etnogrfica

    realizada por ela verificou que, em lngua portuguesa,

    espanhola e inglesa, h na internet cerca de 12,6 mil

    sites racistas, revisionistas e neonazistas, entre

    pginas pessoais e insti-tucionais, blogs e fruns.

  • Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111 109

    A VISO, AS MQUINAS DE IMAGENS E A OFTALGIA TERMINAL PARA O OUTROSe com a reprodutibilidade tcnica exacerbada ao infinito entra em crise a visibilidade e os olhos passam a sofrer de uma oftalgia terminal; se a comunicao de distncia impossibilita o tato; se o rudo branco da pro-liferao sonora impede a audio, desaparece qualquer alteridade. Ento desaparecem tambm o eu mesmo, o si prprio, a esfera do eu, ltimo dos redutos do presente, pois o eu requer um agora e um aqui, tanto quanto requer uma instncia de alteridade que o legitime. No entanto importante lembrar que nossa estratgia civilizatria jogou quase todas suas fichas na viso. Uma vez que a viso o principal sentido de alerta do homem, desde sua descida s savanas, concentraram-se nela duas marcas importantes: a busca da antecipao (antever do futuro como alerta) e o medo. E este o sentimento que nos impele antecipao e que nos lana para o futuro, o medo. Alis, o medo em si um sentimento prospectivo, um projeto ou um projtil. Assim, transformou-se a viso e sua escalada irrefrevel em um sentido fbico e em uma tentativa de acelerao do tempo. Por medo do que est por vir, no esperamos, mas vamos em direo ao perigo, como estratgia contrafbica. E repetimos tal ato de fuga de ns mesmos em uma antiespera, um antipresente, j que a espera a afirmao do presente, da presena e do corpo. Como no h eu, porque no h o outro, tambm no pode haver presente, nem espera, nem corpo. Todas as fichas so jogadas na imagem, filha da tcnica que, por ser projeo, escapa das agruras da espera, da presena, do corpo.

    Disse Fellini um dia que o cinema a arte da espera. Devemos hoje nos perguntar se os massivos produtos da indstria cinematogrfica da tenso, exacerbados em um timing de imagem e som, no tero abolido a espera em favor de um injetarmos no futuro antes que nossa propriocepo nos permita sentir que existimos aqui e agora. Os grandes fi lmes de cenrios e sonoplastia espetaculares, de efeitos especiais mirabolantes, de heris e viles intergalc-ticos, cheios de intenes de adrenalina e construdos segundo uma esttica blica e uma projeto-testosterona, bem como os games de similar natureza, constituem modelos exemplares de antiespera ou esttica do sobressalto, apagamento dos ritmos ref lexivos, autorref lexivos e proprioceptivos que permitem a construo da alteridade.

    DOSSIThe dissolution of the Other in contemporary communication

  • 110 MATRIZes Ano 4 N 1 jul./dez. 2010 - So Paulo - Brasil MALENA S. CONTRERA e NORVAL B. JR. p. 101-111

    REFERNCIASANDERS, Gnther. Die Antiquiertheit des Menschen 1. ber die Seele im Zeitalter der

    zweiten industriellen Re volution. Mnchen: C.H.Beck, 1956 (7a. ed. 1994). Traduo italiana: LUomo antiquato 1. Considerazione sullanima nellepoca dellaseconda revoluzione industriale. Torino: Bolatti Bolinghieri, 2003.

    ________. Die Antiquiertheit des Menschen. 2. ber die Zerstrung des Lebens im Zeitalter der dritten industriellen Revolution. Mnchen: C.H.Beck. (1980). Traduo italiana: LUomo antiquato 2. Sulla distruzione della vita nellepoca della terza revoluzione industriale. Torino: Bolatti Bolinghieri, 2003.

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    DOSSIThe dissolution of the Other in contemporary communication