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1 A DIALÓGICA ENTRE REALIDADE E CONHECIMENTO COM ALUNOS E ALUNAS DO COMPLEXO DA MARÉ: O TEATRO DO OPRIMIDO COMO ABORDAGEM ETNOGRÁFICA Igor Federici Trombini Universidade Estadual do Rio de Janeiro RESUMO O presente trabalho propõe-se a estudar a dialogicidade entre realidade e conhecimento, utilizando o Teatro do Oprimido como tecnologia social, baseando-se em um trabalho de campo no Complexo da Maré. Pretende- se compreender como o aluno percebe sua realidade sociocultural transformada em conhecimento nos processos educativos do qual participa e como a educação antidialógica, que desconsidera este capital cultural, fomenta a exclusão social sobre um viés subjetivo. A metodologia escolhida para este trabalho é a pesquisa etnográfica com observação participativa. Elege-se como teóricos privilegiados Freire com o conceito de dialogicidade; Gaujelac e Leoneti com a idéia de desinserção; Buarque explicando a apartação social; Dewey, Doll e Teixeira com perspectivas sobre a educação como reconstrução da experiência; Mclaren com a idéia de pedagogia crítica e Boal com o Teatro do Oprimido. Pretende-se, junto aos resultados da observação participativa no campo, aprofundar a reflexão sobre como realidade e conhecimento se relacionam na perspectiva de jovens no Complexo da Maré que utilizam o Teatro do Oprimido em contextos educativos. PALAVRAS-CHAVE: Opressão – Dialogicidade – Realidade.

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A DIALÓGICA ENTRE REALIDADE E CONHECIMENTO COM ALUNOS E ALUNAS

DO COMPLEXO DA MARÉ: O TEATRO DO OPRIMIDO COMO ABORDAGEM

ETNOGRÁFICA

ECIMENTO COM ALUNOS E ALUNAS DO COMPLEXO DA MARÉ: O TEATRO DO OPRIMIDO

COMO ABORDAGEM ETNOGRÁFICA

, Igor Federici Trombini

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

RESUMO

O presente trabalho propõe-se a estudar a dialogicidade entre realidade e conhecimento, utilizando o Teatro

do Oprimido como tecnologia social, baseando-se em um trabalho de campo no Complexo da Maré. Pretende-

se compreender como o aluno percebe sua realidade sociocultural transformada em conhecimento nos

processos educativos do qual participa e como a educação antidialógica, que desconsidera este capital cultural,

fomenta a exclusão social sobre um viés subjetivo. A metodologia escolhida para este trabalho é a pesquisa

etnográfica com observação participativa. Elege-se como teóricos privilegiados Freire com o conceito de

dialogicidade; Gaujelac e Leoneti com a idéia de desinserção; Buarque explicando a apartação social; Dewey,

Doll e Teixeira com perspectivas sobre a educação como reconstrução da experiência; Mclaren com a idéia de

pedagogia crítica e Boal com o Teatro do Oprimido. Pretende-se, junto aos resultados da observação

participativa no campo, aprofundar a reflexão sobre como realidade e conhecimento se relacionam na

perspectiva de jovens no Complexo da Maré que utilizam o Teatro do Oprimido em contextos educativos.

PALAVRAS-CHAVE: Opressão – Dialogicidade – Realidade.

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INTRODUÇÃO

Um importante ponto de estudo no campo da educação nas últimas décadas tem sido a

relação entre a realidade vivida pelo educando e a produção de conhecimento. Dewey, Doll e

Freire tem ressignificado a educação na sociedade contemporânea, entendendo-a como um

processo social, vivido através da experiência nela e não à sua margem. Este último (1984)

dedicou-se a demonstrar a importância de se aplicar uma educação libertadora e dialógica,

que partisse do universo do educando, fosse para o seu letramento, ou para o

desenvolvimento de sua criticidade do mundo e de sua humanização. Doll (1993) descreveu a

importância de se pensar em uma escola onde se crie e se produza conhecimento ao invés de

simplesmente se transmitir conteúdo, aprofundando a visão de Dewey (1938) de que o

currículo é interação com a vida, não ocorrendo no vácuo, e que o entendimento e o

conhecimento se dão por meio de interações complexas e por meio da reconstrução da

experiência que ocorre dentro de uma comunidade solidária (Mattos; Borges, 2014).

Assim, Compreende-se a importância de aprofundar os estudos sobre como a

dialogicidade é aplicada na educação atualmente, de forma que o educando se sinta

pertencente à construção do conhecimento e de sua aprendizagem, com sua realidade incluída

nas discussões que permeiam este espaço. Entende-se que ao negar este direito, também se

gera exclusão. Foi estudado então nesta perspectiva conceitos que se relacionam a Freitas

(2007) no que diz respeito à exclusão subjetiva, aprofundando nesta linha a idéia de excluídos

como sujeitos não pertencidos através não só de sua exclusão material, mas do não

reconhecimento de seus valores. Também, foi trabalhado Gaujelac e Leonetti (1994) com o

conceito de desinserção junto a Buarque com a ideia de apartação social (1993) que

nortearam a discussão nesta área. Dessa forma, pretendeu-se compreender como se dá este

processo de exclusão do aluno, através de uma comparação sobre a legitimização da lógica

hegemônica perpetuada pela escola e comparando com a possibilidade de superação da

mesma através do reconhecimento da equidade cultural. Para tal foram abordados também a

sociologia das ausências e a ecologia dos saberes (Santos, 2007).

Por fim, analisou-se o Teatro do Oprimido (TO) (Boal, 1968) como uma tecnologia

social e uma abordagem etnográfica para compreender a dialogicidade entre a realidade e o

conhecimento dos alunos e alunas no Complexo da Maré. Para tal, estão sendo utilizados

instrumentos de pesquisa etnográficos, tais como a observação participante do grupo de TO

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Maremoto, no complexo da Maré e entrevistas qualitativas com estes e com os alunos do

Projeto Enter Jovem (EJ) na escola Estadual Olga Benário em Bonsucesso, também na Maré.

OBJETIVOS

Estudar o Teatro do Oprimido como tecnologia social dialógica entre realidade e

conhecimento a partir de uma análise com alunos e alunas do Complexo de favelas da Maré.

Objetivos Específicos

1. Analisar a relação entre dois conceitos de exclusão subjetiva; desinserção e

apartação social, com a dialogicidade e a perspectiva de educação como

reconstrução da experiência.

2. Investigar o processo dialógico entre a realidade dos alunos e o conhecimento

através da utilização do TO tanto no grupo Maremoto quanto no projeto Enter

Jovem (EJ).

METODOLOGIA

A metodologia utilizada para o estudo proposto é a abordagem qualitativa e de cunho

etnográfico, combinada com revisão da literatura. Entende-se que a fundamentação teórica

não serve somente como base para a investigação de campo, como ainda amplia o

conhecimento sobre o tema, de modo a facilitar possíveis generalizações, que são limitadas

quando do uso exclusivo da pesquisa de campo (Mattos, 2013).

Dessa forma, primeiramente, foram amplamente estudados os conceitos de exclusão e

sua relação com a escola em diferentes perspectivas, focando em Freitas, Gaujelac, Leonetti e

Buarque. Para a análise de pontos de vista sobre a educação como reconstrução da

experiência a visão de Dewey, Doll, Teixeira e Freire, para que em seguida fosse verificada

como a dialogicidade, defendida por este último, é trabalhada na relação entre a realidade dos

alunos e alunas do Complexo da Maré tendo o Teatro do Oprimido como tecnologia social

neste processo.

Paralelamente à construção destas análises conceituais, tem-se realizado a pesquisa de

campo com observação participante, através de anotações em cadernos de campo, registros

em audiovisual e entrevistas junto aos participantes do GTO Maremoto em encontros

presenciais aos sábados durante seis meses, e através de entrevistas qualitativas com os

participantes do projeto Enter Jovem na escola estadual Olga Benário. Busca-se compreender

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a percepção dos alunos de ambos os campos de pesquisa quanto à utilização do TO como

tecnologia social dialógica com suas realidades.

Estas entrevistas qualitativas serão realizadas com os participantes do GTO Maremoto

e do programa EJ, curingas deste GTO, gestores da escola Olga Benário Prestes, pais dos

participantes do EJ e coordenadores pedagógicos do mesmo, para aprofundar os

conhecimentos adquiridos com a pesquisa de campo e relacioná-las com o conhecimento e as

possibilidades de utilização desta tecnologia social neste espaço de aprendizagem. Através

destas entrevistas será possível entender a visão dos alunos sobre a possibilidade de relacionar

o conhecimento escolar com a sua experiência social, principalmente no que tange sua

realidade sócio-cultural e as opressões sociais que impactam o seu aprendizado e a sua vida.

Por fim, será realizada uma triangulação entre os dados levantados com a pesquisa

teórica, os registros do caderno de campo e as imagens do GTO Maremoto e os resultados das

entrevistas qualitativas feitas com os participantes do Maremoto, os curingas do grupo e os

participantes do projeto EJ.

A triangulação se dá com a inter-relação de informações, fatos, registros provenientes

de sujeitos e/ou instrumentos de pesquisa diferentes, onde haverá uma confirmação sobre

hipóteses levantadas pelo proponente deste projeto. Através destas realizar-se-á uma análise

indutiva sobre os dados coletados, onde segundo Mattos e Castro (2011, p. 33) parte-se de

dados particulares para o geral e através de objetivos ou afirmações argumentativas,

ampliando-se o foco das análises para um universo mais generalizado. Este tipo de análise,

além de possibilitar a compreensão sobre questões sociais mais amplas às atividades

específicas que foram registradas na pesquisa de campo, compactua diretamente com um dos

principais princípios do Teatro do Oprimido, a “ascese”. Neste, Boal (2008) coloca a

importância de que no Teatro Fórum as questões partam de situações individuais mas sejam

contextualizadas a questões sociais, ampliando-se a perspectiva que se enxerga a temática

estudada.

Dessa forma, pretende-se com a triangulação destes dados compreender a relação

entre a exclusão a educação como reconstrução da experiência e o trabalho dialógico com a

realidade do aluno através do Teatro do Oprimido, de forma que possibilite a visualização

quanto às potencialidades desta tecnologia social na educação.

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DISCUSSÃO TEÓRICA

Trabalhar temáticas que envolvam o interesse do educando e seu capital sociocultural

no processo educativo, deriva do fato que o conhecimento elaborado surge a partir de

reflexões sobre a vida diária (Heller, 1985) e que estabelecer uma necessária “intimidade”

entre os saberes curriculares e a experiência social que eles têm como indivíduos (Freire,1996)

possibilita decodificações de situações problematizadoras que tem o potencial de estruturar

um aprendizado emancipatório (Iden,1970).

A reforma sobre a relação do educando e o conhecimento escolar é alvo de

questionamentos no Brasil desde o Manifesto dos Pioneiros de 1932 e foi inspirada por

pensadores desde no fim do século XIX. John Dewey e Willian James já sinalizavam a

importância de tornar vivo o aprendizado do aluno, que necessita de uma educação que

consiga “reincorporar os temas de estudo na sua experiência” (Dewey, 1902, p.285). Este

processo envolve certas complexidades, principalmente quando se encontra em sala de aula

sujeitos provenientes de realidades socioculturais muito diferentes, oriundos de localidades de

vulnerabilidade social que influenciam diretamente o comportamento, o aprendizado e sua

relação com o conhecimento escolar.

Assim, entende-se que aproximar a escola e o/a aluno/a, conhecimento e a realidade

do mesmo, consiste em buscar a reformulação dos valores aplicados dentro do ambiente

escolar, como a quebra de hierarquia, o estímulo ao diálogo em todas as estâncias, a geração

de autonomia, o senso de responsabilidade e o respeito à individualidade. A partir destas

condições pedagógicas se compreende que a centralidade no aluno não significa a renúncia do

papel do professor, mas a ressignificação do seu protagonismo pedagógico, aliado a

compreensão do saber cotidiano do jovem que a partir de então torna-se “inundado” de

possibilidades de aprendizagem.

Esta relação não diz respeito apenas às questões socioculturais que estão em seu

cotidiano, o que se propõem, a partir de Freire (1970) é a busca pela compreensão crítica da

totalidade em que o sujeito está inserido, para em seguida separar ou isolar os elementos do

contexto, fazendo uma cisão que dá mais claridade à totalidade analisada não apenas em um

processo de investigação temática, mas na gestação da educação problematizadora que se

defende. Segundo o autor:

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Numa visão libertadora da educação, o seu conteúdo programático já não

involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário,

porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus

anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida

do processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade (Freire,

1970, p.59).

Entende-se que a educação dialógica pode ser vista como um processo de relação

entre as partes na ampliação do conhecimento. Esta relação influencia a percepção de

sociedade e o levantamento de temas geradores provenientes dela, compreendendo sua

dinamicidade e seu caráter transformador (idem). É neste ponto que Freire reforça o papel do

professor, como um mediador entre este sujeito cognoscente com o objeto cognoscível

(mundo), capaz de tornar esta relação significante a ponto do aluno almejar decodificar seus

elementos e entende-los como fatores sociais, passíveis de alteração.

Compreende-se então que a negação deste diálogo, a antidialogicidade também é um

fator de exclusão. Assim, neste trabalho será elaborada uma linha conceitual sobre diferentes

percepções quanto ao tema, buscando compreender como distintas pressões sociais excluem,

como esta exclusão acontece na escola, e posteriormente como ela é intensificada na

desconsideração do capital cultural do aluno em detrimento de uma cultura hegemônica que

não dialoga com sua realidade.

Segundo Freitas (2007) as formas dissimuladas que as políticas públicas educacionais

são colocadas em funcionamento têm a finalidade de reduzir custos econômicos, sociais e

políticos nas formas de exclusão objetivas (repetência e evasão) “sem alterar em essência a

seletividade da escola, criando um campo de exclusão subjetiva, no qual a responsabilidade da

exclusão recai sobre o próprio excluído” (2007, p.1). Segundo o autor, o aluno é incluído no

ambiente escolar, mas desconsidera-se a qualidade deste, postergando apenas seu processo

de eliminação dos espaços sociais hegemônicos.

Através de outras perspectivas, identifica-se os excluídos não apenas como rejeitados,

mas como sujeitos não pertencidos e com valores não reconhecidos (Xiberras, 1993), que ao

saírem de uma situação de exploração direta, passam por uma incorporação forçada ao

sistema capitalista, que os considera apenas como mão de obra barata, mas desconsidera sua

participação como sujeito cultural, social e humano.

A partir deste entendimento encontra-se dois conceitos com diferentes ângulos que

discutem sobre a funcionalidade da exclusão: a desinserção (Gaujelac e Leonetti, 1994) e a

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apartação social (Buarque, 1993). O primeiro questiona a própria existência da pessoa

enquanto indivíduo social que resulta de uma falha em três níveis: econômico, social e

simbólico, sendo esta última a essência da exclusão. Sua abordagem conecta-se em relação à

utilidade social do sujeito, revelando dois pontos interessantes; a sociedade como “avaliadora”

desta utilidade e o peso das representações coletivas ligados aos fenômenos de identidade e

subjetividade dos sujeitos. Nesta linha, entende-se que a valorização do indivíduo como tal

pode ser dificultada por este não integrar as redes de consumo. Além disso a assistência social

provida pelo Estado garante o mínimo de sua participação econômica ao mesmo tempo é

incapaz de criar ligações simbólicas entre pessoas, mantendo seu processo de desinserção

social.

O Segundo conceito, de apartação social, provém de uma adaptação do autor ao

termo “apartheid” que coloca as questões sociais vividas no país não apenas como

desigualdades, mas como divisões claras entre sujeitos provenientes de classes diferentes.

Define ainda esta divisão sendo violento de tal forma, que o sujeito excluído não é apenas um

desigual, mas um ser expulso do gênero humano.

Estas reflexões em torno da exclusão nos fazem perceber que excluir consiste em algo

além da marginalização física e a negação ao acesso a serviços básicos, que não tange apenas a

renda e o local de moradia, mas que constitui uma rede de subjetividades e desconsiderações

que coloca o sujeito numa redoma de impossibilidades. Estas por sua vez são “normatizadas”

por instituições que mantêm o controle social e ao invés de fornecer as ferramentas para a

libertação e emancipação do sujeito, o domestica e o aprisiona. Esta é inclusive, uma das

práticas do que Martins (1997) classifica como inclusão precária, formas de inserir as classes

oprimidas nos processos econômicos, mas em locais pré-estabelecidos, com pouca ou

nenhuma chance de ascensão, que como reitera Veras (1999) as torna menos inclinadas ao

conflito social e mais adequadas ao funcionamento da ordem sócio-política.

É neste viés que será estudada a exclusão na educação, a partir da desconsideração da

realidade sociocultural do educando em seu processo de aprendizagem, referida por Dewey

em seus estudos sobre a educação como reconstrução da experiência e posteriormente por

Doll e Teixeira.

Doll, fala sob uma ótica pós-moderna de currículo, onde acredita haver um “fascinante

reino onde ninguém possui a verdade e todos têm o direito de ser compreendidos. Neste

espaço a realidade existe não apenas para ser descoberta, mas para ser interpretada a partir

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de diferentes pontos de vistas e múltiplas perspectivas” (Doll, 1993, p.155, tradução nossa). O

autor ainda defende o que chama de “currículo dançante” que deve ser modelado de forma

única, inerente à relação interativa entre “professor e conhecimento, professor e educando e

educando e conhecimento” (p.103).

Já Teixeira, desde seu primeiro livro Deweyniano, Educação Progressiva já

demonstrava o rompimento com o pensamento dualista e dicotômico. Desde então passou a

repensar a escola tradicional, que trabalhava conteúdos afastados do cotidiano do educando,

tornando a ação pedagógica esvaziada de significado. Defendia uma escola que trabalhasse a

reflexão e a crítica social, preparando sujeitos para viver e transformar uma sociedade

dinâmica em constantes mudanças. Bortoloti e Cunha (2010) ao tecerem a relação entre

Teixeira e Dewey enfatizam que este “percebe que as contradições da sociedade estão

presentes dentro da escola, mas que esta deve assumir a mudança social como uma tarefa,

contribuindo para formar uma nova mentalidade por meio de programas escolares

sintonizados com a realidade social (2010, p.6). Teixeira, afirmava que a escola deveria basear

a construção de seu conhecimento em experiências e atividades, considerando a vida

cotidiana como o principal gerador temático de seu programa (Iden, 2000). O autor ainda

sustenta que a escola deve estar baseada na noção de movimento, já que toda sociedade e

toda produção de conhecimento estão em constante transformação, a educação deve usufruir

dessa dinâmica de forma a absorver tais fatos e criar junto a eles, propagando um movimento

contínuo.

A partir disso, percebe-se que para romper esta lógica segregatória é interessante

repensar a hierarquização dos saberes e culturas predominantes, onde a razão científica é

superposta a saberes populares. Nesta linha Boaventura defende a “sociologia das ausências”

(Santos, 2007) onde traz a necessidade de se considerar a diversidade de modos de

pensar/sentir/saber/fazer para a multiplicação de realidades que nos fazem repensar as

racionalidades monolíticas. Para tal, instaura a ecologia dos saberes, que propõem a

constituição de um pensamento horizontalizado entre as diferentes possibilidades de cada

campo cultural (Santos, 2002). Através destas, passamos a trazer a consciência um

pensamento crítico de educação e sociedade, onde diversas formas de conhecimento são

relacionadas de forma equânime.

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Não há, pois, nem ignorância em geral, nem saber em geral. Cada

forma de conhecimento reconhece-se num certo tipo de saber que

contrapõem certo tipo de ignorância, a qual, por sua vez, é

reconhecida como tal quando em confronto com esse tipo de saber.

Todo saber é saber sobre uma certa ignorância e, vice-versa, toda a

ignorância é ignorância de um certo saber (Santos, p.78, 1985).

Neste cenário, são pensadas estratégias que considerem esta multiplicidade de

saberes, que aprofundem o diálogo com a educação escolar e o conhecimento que perpassa a

instituição, onde a realidade e o interesse do educando sejam não apenas considerados no seu

desenvolvimento educativo e pessoal, mas situados como ponto base de qualquer

aprendizado não hierárquico, gerador de criticidade e que encaminhe realmente para a

liberdade e a emancipação. Mclaren considera no que chama de pedagogia crítica (1989), a

importância da luta sobre a produção de significado, onde grupos sociais marginalizados

estariam habilitados a nomear, identificar e desenvolver etapas iniciais para transformar as

fontes de sua opressão. Neste conceito, desenvolve a importância destes sujeitos de não

serem apenas receptores de cultura e conhecimento, mas produtores ativos neste processo:

“Se enfatiza a importância de se adquirir uma alfabetização

crítica – onde alfabetização é definida como uma prática de

refletir, analisar e fazer julgamentos críticos em relação às

questões sociais, econômicas e políticas -, convida grupos

subordinados a representar, através da interação na sala de aula

e do diálogo, sua realidade vivida tanto para solidificar suas

crenças, valores e experiências quanto para desafiá-la”

(Mclaren, 1992, p.92).

Pensando sobre interpretar e recriar realidades vividas, Boal (2009) defende a

importância dos oprimidos serem protagonistas do processo estético e não apenas fruidores

de conhecimento e arte. Destaca a relevância deste sujeito quando possui um papel ativo na

construção de conteúdo e cultura, principalmente quando este é articulado com sua

experiência sociocultural. O autor, que sistematizou a tecnologia social nomeada de Teatro do

Oprimido, critica a filosofia da caridade hierárquica que institui levar a cultura o povo, quando

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deveria propor “meios estéticos necessários para o desenvolvimento de sua própria cultura”

(2009, p.166).

O Teatro do Oprimido consiste nesta tecnologia social, sistematizada a partir de 1968

pelo teatrólogo Augusto Boal na busca de instrumentos estético teatrais que incluíssem

minorias oprimidas na discussão sobre o seu não pertencimento na sociedade e sua busca pela

liberdade. Ela se manifesta a partir da Estética do Oprimido e consiste basicamente em “três

grandes transgressões”. A quebra da hierarquização que divide o palco e a plateia, onde todos

podem usar do potencial de cena; A quebra da hierarquização entre o espetáculo teatral e a

vida real, onde se compreende ambas não em posições dicotômicas, mas sobrepostas e inter

relacionadas; e a quebra da hierarquização entre artistas e não-artistas, onde “todos podem

pensar por meios sensíveis – arte e cultura” (2009, 185).

Na educação, o Teatro do Oprimido foi utilizado pela primeira vez em um contexto

escolar em 1986 quando Boal foi convidado por Darcy Ribeiro para liderar o Projeto Fábrica de

Teatro Popular, nos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPS) onde formou um grupo de

35 animadores culturais provenientes de diferentes municípios com o objetivo de que

multiplicassem as ferramentas do Teatro do Oprimido (TO) em suas respectivas localidades.

Vinte anos depois, o Centro do Teatro do Oprimido no Rio de Janeiro desenvolveu o Projeto

Teatro do Oprimido na Escola, realizado durante 2006 e 2007.em parceria com o Ministério da

Educação, através da SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e

Diversidade, e com as Secretarias de Educação de sete municípios visando à capacitação de

Multiplicadores da Estética do Oprimido, para a promoção de atividades artísticas dentro de

escolas municipais durante os finais de semana, no programa Escola Aberta. O projeto foi

desenvolvido em 33 escolas municipais, de onde se formaram 20 grupos de Teatro-Fórum que

realizaram 42 apresentações públicas dentro e além dos muros escolares, sensibilizando mais

de 6.000 pessoas entre corpo escolar e comunidades. O presente trabalho aprofundará nas

próximas etapas o estudo em relação ao Projeto TO na escola a fim de compreender os

formatos em que a tecnologia social já esteve presente na educação.

No campo acadêmico, foram realizados trabalhos que envolvem o TO e a educação,

principalmente no que diz respeito a medidas sócio-educativas, educação popular e educação

comunitária, com predominância de análises comparativas a obra de Paulo Freire,

principalmente à Pedagogia do Oprimido. Para este trabalho, nos basearemos nas obras de

Pedroso (2006), revelando o TO como instrumento útil numa educação libertadora; Teixeira

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(2007) associando o Teatro do Oprimido à Pedagogia do Oprimido, tendo por base ações sócio-

educativas; Paranhos (2009) também estabelecendo relações entre as obras de Freire e Boal,

Cassiano (2011) discutindo o Teatro do Oprimido como metodologia para resolução não

violenta de conflitos nas escolas e Marques (2012), que realiza uma análise sobre o Teatro do

Oprimido e a educação popular no campo.

RESULTADOS

O presente projeto está em andamento, com um trabalho paralelo entre o

desenvolvimento dos estudos teóricos previamente levantados e o trabalho de campo junto

ao GTO Maremoto e o Projeto Enter Jovem. O trabalho de campo está sendo realizada desde o

dia 19 de Maio de 2016 com encontros semanais de aproximadamente quatro horas no Museu

da Maré, no bairro Nova Holanda, próximo a passarela sete da Avenida Brasil. O grupo é

formado por seis jovens (cinco meninos e uma menina) de 18 a 21 anos, todos recém

formados no ensino médio, com dois deles cursando Letras na UFRJ no primeiro período.

O grupo existe há dois anos e fez parte (até o fim de2015) do projeto TOnamaré, que

contava com o patrocínio da Petrobrás e trabalhava com três Grupos de Teatro do Oprimido

(GTO) dentro da Maré. No ano passado atuava com quinze participantes e dois curingas.

Atualmente o grupo é formado por seis participantes, muito engajados, que não recebem mais

o auxílio financeiro que recebiam pelo projeto ano passado (R$150,00 mensais), proposta para

que não necessitassem entrar no mercado de trabalho e pudessem fazer o teatro sem a

pressão dos pais.

A Peça deste ano é uma reformulação da peça do ano passado que chamava Marcha

Borboleta e retrata basicamente o machismo que oprime a personagem Duda dentro de sua

casa a partir de seu pai (opressor). Essa história é baseada em experiências pessoais vividas por

esta participante do grupo, que durante os encontros narra situações diárias vividas em

relação ao tema. A curinga do grupo, espécie de professor diretor, é Marcela, argentina

radicada no Brasil há cinco anos e que trabalha no Centro de Teatro do Oprimido.

Até o momento, tem-se feito anotações quanto aos principais temas presentes nestes

encontros semanais relacionados à montagem da peça, mas também a realidade destes jovens

e à cultura que trazem do local onde moram e estudam. Também foram registrados algumas

imagens e vídeos de apresentações do grupo que retratam a interação da plateia em diálogos

sobre a opressão discutida, entrando em cena na dinâmica do Teatro Fórum.

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No Projeto Enter Jovem, no qual o presente proponente é professor, tem-se

trabalhado o Teatro do Oprimido como tecnologia transversal, onde através dos jogos e

exercícios que o compõe são levantadas reflexões que fazem parte dos eixos temáticos do

projeto. Entretanto, tem-se como premissa partir do universo temático do educando, e

considerando os interesses e as experiências que partam do universo sócio-cultural do mesmo,

desenvolver as capacidades que o projeto propõe. Estas são primordialmente ligadas à

reflexão e o pensamento crítico em torno dos eixos: sociedade, cultura, pertencimento,

território, engajamento e identidade. A partir destes, são colocados em pauta as possibilidades

de transformação do indivíduo como ser individual e coletivo, ponderando-se as possíveis

trajetórias que este possa ter em busca de sua emancipação sócio-econômica.

Neste projeto que é realizado no contra-turno de escolas estaduais do município do

Rio de Janeiro, também tem se feito registros em caderno de campo e audiovisuais. Através da

coleta de material de ambos os grupos, pretende-se identificar possibilidades da escola

aproximar-se da realidade dos alunos e do seu repertório cultural, para que assim este se sinta

sujeito pertencente e ativo na construção do conhecimento escolar, criando uma dialogicidade

constante e horizontal nos processos e espaços de aprendizagem.

Até o presente momento, tem-se identificado diversos espaços e possibilidades de

inserir a pedagogia crítica como uma pedagogia da possibilidade (Simon, 1984), onde através

da dialogicidade com temas geradores de seus cotidianos, muitas vezes ligados a problemas

sociais vividos na região onde moram e estudam, é possível problematizar paradigmas

natuzalizados na contemporaneidade, inserindo conteúdos que auxiliem no desvelamento

destes.

Pode-se perceber que, como acreditava Dewey, a reconstrução da experiência dentro

do espaço escolar é fundamental para que as realidades possam tornar-se conhecimento, visto

que existem diversas questões no emaranhado da vida social, que a partir do momento que

passam por um processo de decodificação (FREIRE, 1987) passam a produzir significados

complexos e aplicáveis às questões do cotidiano social daqueles que participam deste

processo.

Durante as aulas do projeto Enter Jovem e os encontros com o grupo Maremoto,

levantaram-se temáticas relacionadas à: sexualidade, homossexualidade, patriarcado, cultura

de periferia, cultura pop, autonomia de trabalho, aborto, gênero, cisgênero, assexualidade,

socialismo, criminalidade, tráfico, legalização, linguagens de acordo com grupos sócio-

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culturais, dentre outros. Até o dado momento, foi percebido que ao partir destes temas

geradores, provenientes de suas urgências e realidades, podem-se trabalhar múltiplas

possibilidades teóricas e práticas, aprofundando a reconstrução da experiência destes sujeitos.

Ao iniciar os trabalhos com jogos e exercícios de Teatro do Oprimido, que funcionam

em uma lógica dialógica, abertos para as percepções e a expressividade dos participantes, há

uma tendência de engajamento e participação, visto que se percebeu o envolvimento sensível

e simbólico (BOAL, 2009) dos educandos. A assimilação e a transformação do conteúdo em

aprendizagem parece transitar de um nível racional (pensamento simbólico) para um nível

emocional (pensamento sensível), não criando uma bipolarização entre os dois campos, mas

interagindo com ambos em um processo que Boal denomina “ascese”, onde as questão do

cotidiano são analisadas em perspectivas micro e macro sociais e onde passam de uma

compreensão individual para contextos mais amplos e coletivos.

A partir destas análises e com a permanência por pelo menos mais seis meses neste

trabalho de campo, pretende-se elaborar o questionário das pesquisas qualitativas, que

permitirão aprofundar as reflexões feitas até agora e abrir nossas possibilidades de diálogo

com os participantes destes grupos e com as pessoas que vivem em seus contextos familiares

e educacionais. Dessa forma, pretende-se até o fim de 2017, apresentar conclusões mais

concretas que permitam estender a compreensão sobre as possibilidades do Teatro do

Oprimido como tecnologia social dialógica na educação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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