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A devoração do tempo em Um homem sem profissão, memórias e confissões, sob as ordens de mamãe, de Oswald de Andrade Sheila Dias Maciel * Silvana Aparecida Teixeira ** RESUMO: Reflexão sobre a devoração do tempo na obra Um homem sem profissão, memórias e confissões, sob as ordens de mamãe (1954), de Oswald de Andrade, à luz da teoria de Genette (1979), com amparo no Manifesto Antropófago (1928) e em teóricos da escrita confessional tais como Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbswachs (2006). Como resultado, aponta-se a singularidade da escrita das memórias do autor, considerada como antropofágica na medida em que supera (ou devora) um modelo estático de reescrita do passado. Palavras-chave: Antropofagia. Literatura confessional. Oswald de Andrade. Ponto de partida Vários escritores brasileiros publicaram suas memórias como forma de alargar o legado literário que gravita em torno de suas trajetórias. A marca da escrita de memórias é comumente reconhecida pela longa cronologia de enredo, pelo caráter autopromocional, pelo narrador autodiegético, pela aparente sinceridade e pela capacidade de apreensão de um entorno histórico. O que singulariza cada narrativa de memórias são as escolhas particulares de seus autores, notadamente a capacidade de revisitar o passado por meio do trabalho com a linguagem. A diversidade de escolhas e de soluções desmascara tanto a ilusão autobiográfica quanto a hipótese das memórias serem compreendidas apenas como um retorno a um passado acabado. Na verdade cada obra dessa natureza é “levada a feito por um eu inquiridor, não imobilizante” (MIRANDA, 1992, p. 26). Neste esteio, em que se supera o modelo estático de reescrita do passado, aparece uma obra de memórias bastante singular: Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe (1954), de Oswald de Andrade - nosso objeto de estudo no que concerne à problematização do tempo na narrativa. Como aparato teórico, utilizaremos Discurso da Narrativa. Ensaio de método (1979), de Gérard Genette, e no tocante ao processo memorialista propriamente dito, trataremos da relação entre memória e tempo, utilizando os conceitos complementares dados por Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbswachs (2006). As memórias antropofágicas Sendo um dos maiores articuladores do Modernismo no Brasil, Oswald de Andrade sempre insistiu em apresentar novos rumos para a literatura brasileira, seja através de inovações de forma e conteúdo, seja na sua posição discursiva sobre o fazer literário. Esta posição do escritor não foi deixada

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Page 1: A devoração do tempo em Um homem sem profissão, memórias e

A devoração do tempo em Um homem sem profissão, memórias e confissões, sob as ordens de mamãe, de Oswald de Andrade

Sheila Dias Maciel*Silvana Aparecida Teixeira**

RESUMO:Reflexão sobre a devoração do tempo na obra Um homem sem profissão, memórias e confissões, sob as ordens de mamãe (1954), de Oswald de Andrade, à luz da teoria de Genette (1979), com amparo no Manifesto Antropófago (1928) e em teóricos da escrita confessional tais como Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbswachs (2006). Como resultado, aponta-se a singularidade da escrita das memórias do autor, considerada como antropofágica na medida em que supera (ou devora) um modelo estático de reescrita do passado.

Palavras-chave: Antropofagia. Literatura confessional. Oswald de Andrade.

Ponto de partida

Vários escritores brasileiros publicaram suas memórias como forma de alargar o legado literário que gravita em torno de suas trajetórias. A marca da escrita de memórias é comumente reconhecida pela longa cronologia de enredo, pelo caráter autopromocional, pelo narrador autodiegético, pela aparente sinceridade e pela capacidade de apreensão de um entorno histórico. O que singulariza cada narrativa de memórias são as escolhas particulares de seus autores, notadamente a capacidade de revisitar o passado por meio do trabalho com a linguagem.

A diversidade de escolhas e de soluções desmascara tanto a ilusão autobiográfica quanto a hipótese das memórias serem compreendidas apenas como um retorno a um passado acabado. Na verdade cada obra dessa natureza é “levada a feito por um eu inquiridor, não imobilizante” (MIRANDA, 1992, p. 26).

Neste esteio, em que se supera o modelo estático de reescrita do passado, aparece uma obra de memórias bastante singular: Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe (1954), de Oswald de Andrade - nosso objeto de estudo no que concerne à problematização do tempo na narrativa. Como aparato teórico, utilizaremos Discurso da Narrativa. Ensaio de método (1979), de Gérard Genette, e no tocante ao processo memorialista propriamente dito, trataremos da relação entre memória e tempo, utilizando os conceitos complementares dados por Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) e Halbswachs (2006).

As memórias antropofágicas

Sendo um dos maiores articuladores do Modernismo no Brasil, Oswald de Andrade sempre insistiu em apresentar novos rumos para a literatura brasileira, seja através de inovações de forma e conteúdo, seja na sua posição discursiva sobre o fazer literário. Esta posição do escritor não foi deixada

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de lado nem mesmo na sua última obra, de memórias, que é apresentada por um longo título: Um homem sem profissão. Memórias e Confissões. Sob as ordens de mamãe.

Os três segmentos que compõem o título contém o mesmo humor que encontramos ao longo de sua trajetória literária e parecem, inicialmente, dar conta do assunto que encontraremos: a visão do escritor sobre si mesmo em seu período de formação. Apesar da aparente organização do título, o teor da obra que está por vir foge do modelo tradicional de escrita de memórias como depósito de lembranças de um passado acabado. Neste sentido, entra em xeque a questão da sinceridade, que difere daquela real quando se trata do âmbito literário, pois a sinceridade se desenvolve mediante o esforço criativo:

Este esforço (criativo) opera, ademais, dentro de convenções ou categorias estéticas cuja função é liberar o desejo ou a necessidade de expressar ideias ou emoções, as transformando em algo superior e durável. Neste sentido, a relação do leitor com a obra não se dará em termos de veracidade (impossível), mas de verosimilhança, ou seja, de aparência de verdade (CABALLÉ, 1995, p. 33)1.

Ou seja, as personagens são fictícias com aparência de verdade. Em Um homem sem profissão existe um autor-narrador-personagem que parece revisitar a história de vida do escritor Oswald de Andrade, retratando-a não como documento ou registro fiel, mas metamorfoseando-a em episódios onde se intercalam ficção e realidade, recriando esta última através de contextos diferentes e da inserção de personagens imaginários.

Há, contudo, uma constância sobre a qual insiste o escritor, e que incide na evidência de que em seus romances anteriores, como Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), os protagonistas foram inspirados na história de vida do próprio Oswald de Andrade, como demonstram os dois excertos abaixo, o primeiro extraído de Memórias Sentimentais e o segundo de Um homem sem profissão: “Entrei para a escola mista de D. Matilde. Ela me deu um livro com cem figuras para contar à mamãe a história do rei Carlos Magno” (ANDRADE, 2004, p. 75) e “Estudaria em casa. Improvisei em professora uma senhora idosa que se chamava D. Matilde Rebouças [...] Li deslumbrado Carlos Magno e os doze pares de França, que fiz questão de emprestar a todo mundo, cozinheiras, amigos de família” (ANDRADE, 2002, p. 6).

A obra Um homem sem profissão está repleta de reelaborações e reinserções de episódios dos romances oswaldianos, havendo uma fusão entre ficção e memorialismo que configura um “binômio solidário” entre o si mesmo e a criação ficcional. (OLMI, 2006, p. 107). Este tipo de escritura é alcunhada também de “romance do eu” ou autofiction. Philippe Forest assim a define: “Nada mais é do que a autobiografia sob suspeita, isto é, submetida ao questionamento por parte da consciência crítica” (FORREST apud OLMI, 2006, p. 109). Ao narrarmos uma existência, diz, esta se transforma em romance, penetrando, assim, na fábula.

OLMI (2006, p. 107-8) esclarece que neste tipo de fundição escritural se estruturam “os eus como ficções, e se escrevem as histórias como uma forma de preservar essa ficção”. Uma “invenção do eu”, defende a autora. Na obra Um homem sem profissão há a reelaboração da imagem que o autor Oswald de Andrade faz de si mesmo, espelhando-se em seus personagens e mostrando que são espelhos dele próprio, engenhosamente fundindo o eu e o outro, o escritor e as personagens, a obra literária e a existência humana.

Assim, Oswald de Andrade faz da própria vida um romance, “Mas se trata de um romance dentro do qual a identidade do escritor é interceptada apenas como miragem, quimera e mentira” (OLMI, 2006, p. 110). Nesta perspectiva podemos conceber as memórias de Oswald de Andrade

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como antropofágicas, já que seguem a antropofagia literária lançada pelo escritor no tocante ao deslocamento do objeto estético. Um homem sem profissão propõe um redirecionamento da escrita de memórias ou uma espécie de deglutição do gênero memórias de caráter historicizante que florescia na Europa.

Considerando que há muita irreverência, subversão e invenção em Um homem sem profissão, neste artigo nos limitaremos ao estudo sintético e específico da devoração do tempo. Para tanto, apresentaremos o fato narrativo em seu aspecto temporal, ou seja, o trato dado pelo autor à questão dentro da obra. Na sequência, discutiremos a configuração do sentido ou discurso oswaldiano sobre o fazer autobiográfico, partindo-se da premissa constante do Manifesto Antropófago (1928): “Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César” (ANDRADE, 1996, p. 23).

A devoração do tempo

Que ordem seguir para contar a vida de alguém? Essa pergunta, feita por Lejeune, sobre o estudo da ordem do relato em Les Mots (1963), de Jean Paul Sartre, também foi realizada por Genette (1979, p. 14) em Discurso da Narrativa, quando do estudo sobre o tempo em À la recherche du temps perdu (1955), de Marcel Proust. Igualmente, indaga-se aqui: – Que efeitos de ordem compõem Um homem sem profissão para configurar as memórias de Oswald de Andrade? Que intenções subsistem na eleição de ditos efeitos e qual a relação com a escritura autobiográfica?

Tanto para Lejeune como para Genette, há duas ordens aplicáveis à análise temporal do discurso narrativo, diferenciando-se, apenas, as nomenclaturas usadas por um e outro autor. De um lado, Genette intitula-as de ordem temporal (diegética ou histórica) e ordem pseudo temporal (ou da narrativa); Lejeune, ao seu passo, denomina-as de tempo cronológico e de tempo dialético ou de sentido.

A abordagem das relações entre essas ordens, bem como a possibilidade de inversão ou subversão, leva-os às seguintes indagações: “E não é perfeitamente possível que um texto que se refere, em última estância, à ordem cronológica da biografia clássica, seja construído seguindo outra ordem?”2, ou seja, há narrativas que “convidam a uma espécie de olhar global e sincrônico ou, pelo menos, um olhar cujo percurso não é já comandado pela sucessão de imagens” (GENETTE, 1979, p. 32).

Em ambos os teóricos, a ideia de variedade de atributos do tempo é igualmente reconhecida, mas enquanto Lejeune encaminha a problemática do tempo como estruturador da narrativa em direção à história da autobiografia e sua dimensão contratual, Genette aprofunda a questão organizando a base de conceitos para uma análise temporal da narrativa.

Ao analisarmos as relações temporais em Um homem sem profissão, em seus aspectos de ordem, duração e frequência, sugeridos pelo estudo genettiano, buscamos articular a devoração temporal oswaldiana com aspectos que concebam a percepção do sentido (ou tempo dialético) de suas memórias e confissões, através dos encadeamentos narrativos.

Considera-se, ainda, a sutil advertência contida em “Prefácio Inútil”, escrito por Antonio Candido para Um homem sem profissão, de que “nas presentes memórias de Oswald de Andrade, não se deve procurar auto-análise nem retrato do tempo” (ANDRADE, 2002, p. 12), o que antecipa o caráter inovador dessa obra literária que, comparada a outras de cunho confessional existentes no circuito literário brasileiro, mostra-se subversora dos convencionalismos memorialísticos sacralizados.

Contudo, observa-se a existência de recorte diacrônico às primeiras páginas das confissões oswaldianas, não significando, porém, que haja supremacia diegética na narrativa. Antes, romper ao

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longo da obra com os jogos cronológicos de relação entre presente da escritura e passado contado por essa mesma escritura, demonstra composição mais complexa de narrativa do gênero autobiográfico. Essa dialética traz, implicitamente, um discurso antropofágico, em que os encadeamentos narrativos criam relações “por um lado entre esse discurso e os acontecimentos que relata, por outro lado, entre esse mesmo discurso e o ato que o produz realmente” (GENETTE, 1979, p. 2).

A escolha pela temática do tempo, como forma de aproximação dessa devoração literária autobiográfica em Um homem sem profissão, originou-se da leitura da seguinte passagem constante da obra, quando o autor narrador confessa a importância de sua iniciação literária através da audição de contos e causos que sua mãe lhe contava: “Lenda ou fato? Não importa. Há entre ambos a diferença que vai da verdade à realidade” (ANDRADE, 2002, p. 54, grifo nosso). Verdade e realidade formam dualismos que se imbricam com a questão tempo. Se, por um lado, a verdade pode ser não temporal, a realidade situa-se no tempo. A verdade pode ser ficcional, mas a realidade é factual, tangível. A verdade pode ser dialética, feita de sentidos; mas a realidade é histórica, diegética.

Tem-se então um fato autobiográfico, que é o tempo da narrativa em Um homem sem profissão, que deve ser analisado entre tempo diegético e tempo dialético, partindo então do tempo que é construído ou inventado por meio do pensamento. O ato de narrar é representativo de outro modo de ser e pensar que não a vida real. O ato de narrar cria, assim, novas perspectivas de visão da relação consigo mesmo e com os outros, principalmente quando representado “pela poesia, pela autobiografia, pelas confissões, cartas e diários, ou pelo romance de formação, gêneros que se pautam pelo exercício da memória realizado por campos diversos” (OLMI, 2006, p. 35).

A obra Um homem sem profissão foi escrita sem divisões de capítulos, na qual espaços em branco servem de representações imagéticas de cortes temporais, pausas e silêncios, configuradores do ato de lembrar. Curiosamente, a partir da página 144 os espaços em branco são devorados por três asteriscos que caracterizam brusca ruptura entre acontecimentos e, principalmente, como divisor de águas entre o eu narrador Oswald de Andrade e o eu narrador João Miramar e, entre os gêneros autobiografia e diário.

A partir daquela página, Miramar e outros personagens assumem a narrativa em primeira pessoa, descaracterizando o convencionalismo da autobiografia. Há, ainda, a inserção de outro gênero – o diário criado a partir de 30 de maio e 1918, intitulado “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”, ou “Diário da garçonnière”, escrito coletivamente e que registra várias presenças literárias, dentre elas Guilherme de Almeida (Guy), Léo Vaz, Monteiro Lobato, Pedro Rodrigues de Almeida, Ignácio da Costa Ferreira (Ferrignac ou Costignac), Edmundo Amaral, e Maria de Lourdes Castro Dolzani, a Miss Cyclone ou Deisi (ANDRADE, 2002, p. 224).

Observa-se o intencional propósito do autor-narrador quando desloca o ato narrativo daquele subjetivismo convencional em que o eu escritor de diários e confissões se trancava no quarto para escrever, para o objetivismo repleto de sentidos coletivos, em que o eu se faz na relação com os outros, dando-lhes vozes, que por sua vez ecoam o pertencimento social e literário do autor Oswald de Andrade. Nesse sentido, afirma Olmi,

Recordar é, ao mesmo tempo, uma das formas mais importantes com as quais declaramos nossa proximidade afetiva nas relações íntimas com familiares e amigos, mas também nas cerimônias públicas nas quais consolidamos a fidelidade aos nossos grupos sociais. O que está em jogo, portanto, não é somente a compreensão do passado, mas, sobretudo, a interpretação do presente e da maneira pela qual nossa vivência pessoal se insere na história da coletividade à qual pertencemos (OLMI, 2006, p. 36).

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Oswald de Andrade interpola, na narrativa, segmentos longos e curtos, de maneira que aqueles mais subjetivos, relacionados à família e à infância, se fazem mais longos; e aqueles mais sintéticos têm cunho mais literário ou jornalístico e situam-se no início da fase adulta. A título de ilustração, o parágrafo que configura o primeiro segmento está construído por uma anacronia marcada por analepse. Nas primeiras linhas o autor narrador diz: “Este livro é uma matinada. Apesar de ser o meu livro da orfandade” (ANDRADE, 2002, p. 33).

A flexão do verbo “ser” no presente do indicativo enfatiza a posição do narrador no presente, ou seja, em seus últimos anos de vida visto que morreu meses após a escritura de Um homem sem profissão, ou ainda, na década de 50. Entretanto, nesse mesmo segmento, a narrativa retrocede aproximadamente quatro décadas: “Em 1912, chegando da minha primeira viagem à Europa, e encontrando morta minha mãe, nos mudamos logo de moradia, eu e meu pai” (ANDRADE, 2002, p. 33). Depois, recua mais ainda, indo à sua infância e adolescência, e retrocede mais e mais introduzindo largo trecho em que apresenta os avós e tios maternos para, em seguida, avançar à adolescência mostrando os sinais dos tempos, o progresso daquela São Paulo.

Aquele parágrafo inicial, ainda que subliminarmente, está repleto de anúncios do vir a ser autobiográfico de Oswald de Andrade, vez que passeia por tempos diversos e experiências múltiplas, entre extremos, como a saga dos avós amazonenses e dos avós mineiros e a vida política paulistana dos anos 50. Isso tudo em apenas um fragmento. É a partir dele que aparece o que poderia ser uma ordem convencional da narrativa memorialista, ou seja, ordem em que a memória, suscitada no instante presente, inicia a rememoração do passado:

Como e por onde começar minhas memórias? Hesito. Devo começá-las pelo início de minha existência? Ou pelo fim, pelo atual, quando em 1952, os pés inchados me impossibilitam de andar no pequeno apartamento que habitamos em São Paulo, à Rua Ricardo Batista, 18, no 5º. Andar (ANDRADE, 2002, p. 35).

Tem-se aí um jogo, como anagrama ou colagem, em que a memória se esburaca e se recompõe em fragmentos múltiplos, com diferentes eus narradores, com uma infinidade de personagens das mais diferentes representações sociais, como a política, o jornalismo, as artes (literatura, dança, cinema, teatro, fotografia, artes plásticas), entre outras, com flashbacks e avanços temporais que atualizam o fazer autobiográfico, através do discurso da memória coletiva. “Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada” (ANDRADE, 1996, p. 25). Diz Halbwachs:

Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos; também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006, p. 39).

A base comum da experiência pessoal renovada no autor narrador de Um homem sem profissão encontra-se na invenção de uma antimemória, explorada nos jogos de anacronias, enquanto recursos literários, ao longo de Um homem sem profissão, através de intermitências entre prolepses e analepses, representativas do próprio movimento cognitivo de relembrar, de trabalhar a memória em constante vaivém entre agora, antes e depois.

Um homem sem profissão delimita, diacronicamente, o período entre 1890 e 1919. Oswald de Andrade pretendia escrever outros volumes de suas confissões e memórias, com períodos distintos. “Sob as ordens de mamãe. Memórias e confissões” seria o primeiro dentre os quatro volumes pensados.

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Nessa obra, vemos poucas prolepses e minuciosas analepses, estas que se mostram ora externas ora internas. Dentre as externas, onde a amplitude total permanece exterior à narrativa primeira, têm-se as representativas da saga familiar, como em: “Meu bisavô conseguira afazendar-se ali com bastante gado e fazia comércio entre Belém e o interior. Menino de 14 anos, meu avô fora incumbido de ir buscar mercadoria na capital do Pará, numa grande barca, levando consigo trinta contos em ouro” (ANDRADE, 2002, p. 55).

A maior parte das analepses traz referências cronológicas por meio de muitos marcadores de data, idade, período escolar, recheadas de outras marcadas por elipses ou antecipações de curto alcance, como é o diário da garçonnière que, de forma ambígua remete também ao presente em que Oswald de Andrade já está idoso.

Nota-se, no fragmento a seguir, que dentro da analepse do ano de 1917 o narrador realiza uma prolepse interna que avança a um período muito próximo, entre 1918 e 1919, e faz, ainda, outra prolepse externa que avança mais ainda ao instante presente da escritura da narrativa, no ano de 1952, sendo que nessa última fica implícito ao leitor que Nonê, primeiro filho do escritor, já está adulto e guarda suas anotações literárias:

Alugo uma garçonnière, à Rua Líbero Badaró, nos fundos de um terceiro andar. Estamos no ano de 17. Dessa época, do ano de 18 e até 19, componho com os frequentadores da garçonnière e com Daisy, que se tornou minha amante, um caderno enorme que Nonê conserva (ANDRADE, 2002, p. 160).

Observa-se que aproximadamente um terço do total de páginas foi dedicado ao período compreendido entre a infância e a puberdade. À medida que adentra na juventude, no mundo jornalístico e no círculo literário, há uma diminuição do tempo em anos e maior quantidade de páginas dedicadas aos meses, dias e horas específicos.

Ao observar os episódios ocorridos entre os anos, vê-se que a elipse de tempo (entre 1914 e 1919) é representativa do período mais intenso da vida do autor Oswald de Andrade, quando este começa sua carreira de jornalista, passa pela crise de seu casamento com a francesa Kamiá, pelo nascimento de seu filho Nonê e pelas conturbações emocionais do romance com Landa. Curiosamente trinta e cinco páginas foram dedicadas a dois anos do episódio Cyclone-Miramar e à escrita do diário da garçonnière. Por outro lado, a última parte, restrita ao específico ano de 1919, em que acontece a fatalidade do aborto de Cyclone, e por consequência a sua morte, tem quantidade reduzida de páginas, intensificando ainda mais o ritmo à medida que avança para o final.

Comparando o número de páginas dedicadas a cada período diegético com os de vários episódios da narrativa percebe-se que, para o tempo histórico de vinte e nove anos (entre 1890 e 1919), houve uma redução da narrativa em sumários cujo efeito é a síntese, entrecortada por longas cenas dedicadas especialmente ao episódio Landa-Oswald e outras, mais intensas ainda, ao romance com Daisy.

A velocidade temporal dos episódios narrativos acima expostos configura oposição rítmica entre narrativa sumária e cena detalhada, fazendo-se marcante oposição. Há, em consonância com Genette (1979, p. 110), “uma oposição de conteúdo entre dramático e não dramático, coincidindo os tempos fortes com os momentos mais intensos da narrativa” e, a dita concatenação entre cenas típicas e cenas dramáticas na narrativa memorialista oswaldiana funciona como se fora força centrípeta em direção às últimas.

Mas, com que frequência ocorrem estes episódios e qual a sua importância? Genette (1979, p. 114) explicita que a frequência é, na realidade, “uma construção do espírito, que elimina de cada

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ocorrência tudo o que lhe pertence em específico, para só conservar aquilo que partilha com todas as outras da mesma classe, e que é uma abstração.” A frequência com que se repetem temáticas corrobora, dessa forma, a importância para o autor-narrador de (re) afirmar o discurso antropofágico.

A repetição, quase insistente, da temática religiosa através da toponímia de São Paulo chama a atenção para o subtítulo da obra, Um homem sem profissão, pois professar pode ser lido como confessar ou reconhecer publicamente algo, mas também “fazer votos, entrando para uma ordem religiosa” (KOOGAN; HOUAISS, 1993, p. 680). Funciona iconicamente como se as “ordens de mamãe” ainda se repetissem por todos os cantos da cidade em que viveu, ecoando em sua memória de forma involuntária. O autor-narrador parte dessas referências histórias que constituem o tabu à desconstrução dialética rumo aos totens, daí resultando o seu sentimento de orfandade dito nas primeiras linhas de Um homem sem profissão. São várias as passagens:

“Sinais dos tempos. A nossa geração integrara-se na consciência capitalista que gelara os velhos sentimentos da gente brasileira” (ANDRADE, 2002, p. 35), “São Paulo era uma cidade pequena e terrosa (ANDRADE, 2002, p. 42), “Quando aluno do Ginásio de São Bento” (ANDRADE, 2002, p. 57), “Agora, na Rua de Santo Antonio” (ANDRADE, 2002, p. 63), “Hospedei-me no palacete da Rua São Clemente” (ANDRADE, 2002, p. 92), “Levo-a à Estação da Luz” (ANDRADE, 2002, p. 153), “Vou à Rua São Luis, ao Palácio do Arcebispo Dom Duarte” (ANDRADE, 2002, p. 157), “Se ela for para o Asilo do Bom Pastor” (ANDRADE, 2002, p. 157), “Coloco-a morando com a avó numa casa da Rua Santa Madalena, no Paraíso” (ANDRADE, 2002, p. 190), “Ela atravessa a Praça Antonio Prado, desce a Avenida São João, envereda pela Rua Anhangabaú por debaixo do Viaduto Santa Ifigênia” (ANDRADE, 2002, p. 192)

Em cada, vê-se a representação do tempo repleto de sentidos. Ante o subtítulo, “Sob as ordens de mamãe”, indaga-se: Quem é mamãe? Seria Dona Inês? A Literatura? O Matriarcado de Pindorama? A religião? A sociedade? Quem é ela? Quem é essa que dá ordens para que escreva Oswald de Andrade? A Antropofagia?

Então, o específico de certas temáticas, escolhidas propositalmente, forma conjunto de assuntos que vão se repetir e repetir, de forma devorativa. Como no trecho a seguir, em que o autor dá voz a outro eu narrador, seu amigo Pedro, que anuncia o feitio do Diário e, por extensão, de Um homem sem profissão, uma vez que aquele está contido nessa obra: “Pedro Rodrigues de Almeida escreve do começo ao fim do diário: Muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo que fraternalmente se misturarão para formar, no ambiente colorido e musical deste retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida” (ANDRADE, 2002, p. 162).

Hiperbólico o sentido dado por “escreve do começo ao fim do diário”, repleto de sentidos da iteratividade temporal desejada pelo autor Oswald de Andrade. Uma extensão metafórica dos temperos artísticos bem mexidos e retemperados sob a ótica oswaldiana na obra. Tais temperos podem ser interpretados pela coletividade da escritura que registra formas diversas de ver o mundo. Sendo o Diário um feito coletivo, resultam paradoxais os assuntos ali tratados, bem como o é sua inserção dentro das memórias e confissões ora analisadas.

Um homem sem profissão é uma obra confeccionada em quadros oscilantes entre tempos singular e repetitivo, entre tempos individual e coletivo. Como se fosse uma policronia inventada. Pode-se aferir que a ótica escolhida é multidimensional, do olho que vê e retrata diversas faces, diversas vozes, e cria diversos sentidos. Diversidades que mesclam tempos passado, presente e futuro. Uma obra escrita em coautoria entre o eu do autor que é narrador e os eus das personagens que são fictícias e narradoras também.

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“Lenda ou fato? Não importa. Há entre ambos a diferença que vai da verdade à realidade” (ANDRADE, 2002, p. 54), pois da mistura entre tempos real e ficcional o saldo é a insistente (re) afirmação do fazer literário antropofágico, através da descontinuidade temporal. A memória não confunde estados passados com os presentes, “ela se baseia nas diferenças” (HALBWACHS, 2006, p. 119), ou seja, “não há lembranças que reaparecem sem que de alguma forma seja possível relacioná-las a um grupo” (HALBWACHS, 2006, p. 42), como se pode observar nos comentários sobre os dois fragmentos dados abaixo:

Fragmento 1: Da literatura que conheci na mais afastada infância, lembro-me de As espumas flutuantes de Castro Alves, que meu pai me deu. Não entendi nada mas gostei. Já na Rua de Santo Antonio, minhas preocupações foram outras. Li deslumbrado Carlos Magno e os doze pares de França, que fiz questão de emprestar a todo mundo, cozinheiras, amigos da família (ANDRADE, 2002, p. 65).

Fragmento 2: Fui em 1903, com treze anos, matriculado no Ginásio de São Bento, onde passei a estudar todas as disciplinas, entregues a professores civis, entre os quais figuravam o peralta Batista Pereira, genro de Rui Barbosa, e o Dr. Afonso d’Escragnole Taunay, filho do Visconde de Taunay, autor de Inocência, tão horrivelzinha e tão célebre (ANDRADE, 2002, p. 76).

Os dois fragmentos são verdades literárias distantes e contrapostas àquela realidade efervescente da Europa que tanto o influenciou, no início do século XX, através dos movimentos artísticos como dadaísmo, cubismo, futurismo e expressionismo, entre outros. Essa sede de novos rumos se faz perceptível na passagem em que diz: “Paro para perguntar: - Por que gostava eu mais da Europa do que do Brasil? Os meus ideais de escritor entraram grandemente nessa precoce tomada de posição. Tinha-se aberto um novo front em minha vida. Nunca fui com a nossa literatura vigente. A não ser Machado de Assis e Euclides da Cunha, nada nela me interessava” (ANDRADE, 2002, p. 113).

Como enfatizou em seu Manifesto Antropófago, “Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia” (ANDRADE, 1996, p. 13). Em UHSP o autor narrador explora traços marcadores do tempo iterativo, através da determinação, especificação e extensão de unidades singulares, como em “Os valores estáveis da mais atrasada literatura do mundo impediam qualquer renovação. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac. Houvera um surto de Simbolismo com Cruz e Souza e Alphonsus e Guimaraens mas a literatura oficial abafava tudo. Bilac e Coelho Neto, Coelho Neto e Bilac” (ANDRADE, 2002, p. 125, grifo nosso).

Como se o literário brasileiro tivesse parado o tempo naquele período de prosa e poesia realista, que se perpetuava em uma determinação temporal cuja diacronia começa em 1888 com Poesias, de Olavo Bilac, e se declina a partir de 1896, com Sertão de Coelho Neto. Há, também, outra especificação nessa mesma diegese, marcada pelo período entre os dois escritores em evidência, e que faz inferências às recorrências unitárias do meio literário da época. O fragmento revela, ainda, a extensão da amplitude diacrônica cuja duração sintética situa-se dentro do Realismo literário, marcando os limites exteriores dessa série iterativa.

A série iterativa sobre literatura, exposta acima, pode ser contraposta à outra, de fase diacrônica posterior, – a do Modernismo, cuja confissão em imperfeito assoma como ironia do autor para como o modelo poético anterior, marcando transformações irreversíveis:

Eu nunca conseguira versejar. A métrica fora sempre para mim uma couraça entorpecente. Fizera esforços grotescos para traduzir as “perfeições” da Herédia.

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Mas Paris – e aí abriu-se um aspecto de segunda frente – dera-me o espetáculo da eleição de Paul Fort, vate livre, para príncipe dos poetas franceses numa noitada do “Lapin Agile”, onde fui cair. Só assim vim a saber que se tratava, enfim, de desterrar do verso a métrica e a rima, obsoletos recursos do passado. Enganei-me redondamente pensando que isso tivesse qualquer autoridade no Brasil e Antônio Define (ANDRADE, 2002, p. 125, grifo nosso).

Disso tudo observamos que a relação entre a diacronia interna (contraposição entre escrituras literárias brasileiras) e a diacronia externa (entre Realismo e Modernismo, enquanto períodos literários) suprime antiteticamente o período Simbolista do fluxo temporal e traça paralelo entre os períodos acima recortados, como se um respondesse diretamente ao outro. Os episódios contêm resíduos emocionais das lembranças que Oswald de Andrade reteve ou manteve para revisitar, em deglutição, a presença e a importância da literatura. Diz, Halbwachs (2006, p. 43),

para que não confundíssemos a reconstituição do nosso próprio passado com a que possamos fazer do passado de nosso vizinho, para que empírica, lógica e socialmente esse passado nos pareça identificar-se com nosso passado real, é preciso que pelo menos em algumas de suas partes exista algo além de uma reconstituição feita com matérias tomadas de empréstimo.

Com esse quadro inferimos que a narrativa em Um homem sem profissão explora os elementos temporais de ordem, duração e frequência, inventando condensações temporais que oscilam entre invocação da realidade e invenção da verdade. Interpola segmentos singulativos e iterativos de maneira que o anacronismo resulta em jogo literário de pura subversão autobiográfica, através do ato de recordar; e, esse percurso temporal de sentidos pode ser compreendido ao se entrecruzar teorias que elucidem esse tipo novo de fazer a literatura confessional brasileira.

Podemos afirmar o ineditismo da obra Um homem sem profissão, ou “o contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica” (ANDRADE, 1996, p. 15) ao observamos o espaço, entre o tempo presente da narrativa e o passado narrado, ocupado pela memória ou pelo ato de relembrar. Mnemósine, a deusa grega da memória e mãe das musas, é evocada para dilacerar o tempo sentido em Um homem sem profissão. Veicula-se através de artifícios como a metáfora que associa por semelhança ou diferença o fazer literário, e a metonímia que permite uma contiguidade entre os tempos e temas. Segundo Olmi (2006, p. 30) a memória “é a única que pode religar-nos a um passado ao qual pertencemos e do qual derivam nossas atitudes, nossas crenças e descrenças, nossos mitos, nossa capacidade e recriar mundos possíveis nos quais já habitamos no passado, e nossa capacidade de narrar”.

O pano se levantou e eu vi a Grécia, não a Grécia livresca dos sonetões de Bilac que toda uma subliteratura ocidental vazava para a colônia inerme. Eu vi de fato a Grécia. E a Grécia era uma criança seminua que colhia pedrinhas nos atalhos, conchas nas praias e com elas dançava. O cenário unido duma só cor abria-se para vinte e cinco séculos de mar, montanhas e de céu. E, do fundo duma perspectiva irreal, as sombras da caverna platônica tomaram a carne virginal de Ifigênia para ressuscitar a realidade única. A voz do piano arquiteturava Gluck. Essa mulher é alga, sacerdotisa, paisagem (ANDRADE, 2002, p. 150, grifo nosso).

O quadro dado pelo fragmento acima vem nos falar da crença e da atitude antropofágica oswaldiana, cujos sentidos ultrapassam a imagem descrita. Contra a memória fonte dos costumes, através do encantamento que provoca sua arte narrativa, Oswald de Andrade se faz aedo que canta suas confissões e toca a lira de suas memórias, com uma perfeição que faz lembrar sua defesa “pelo

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acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa” (ANDRADE, 1996, p. 13). O tempo oswaldiano é todo musical, repleto de diferenciados ritmos, como se houvesse devorado Orfeu, que inventou a lira e os rituais mágicos e divinatórios da qual originaram seitas místicas e a denominação orfismo.

Daí resulta que o sentimento órfico a que faz menção constantemente em Um homem sem profissão remete ao próprio Modernismo e àquela literatura poética e filosófica ligada à personalidade de Orfeu, ou ao fazer artístico inovador, repleto de invenções e inversões, como bem o disse Décio Pignatari na nota introdutória da obra, intitulada “Tempo: invenção e inversão” (ANDRADE, 2002, p. 23). Novos ares, novos exercícios do direito da possibilidade, confessados quando o autor narrador diz: “Como sempre, eu iniciava a mudança, cheio do meu sentimento órfico” (ANDRADE, 2002, p. 87). Esse mesmo fazer da literatura confessional antropofágica oswaldiana configura um corte epistemológico, também, com a aceitação passiva de ouvir e repetir o canto da flauta católica, ecoado dentro do lar de seus pais, representativos do patriarcado que rechaçou, como se observa em:

A quantidade e a qualidade do órfico católico que me ofereceram foram fracas e sobretudo mal escudadas pela apologética cristã e por sua absurda e hipócrita moral. Desde cedo me entrou pelos olhos a incapacidade de transformação do homem pelo cristianismo ou de sua ação regeneradora. O número de rezadores pecaminosos e de padres sujos era demasiado para poder iludir mesmo minha desprevenida adolescência (ANDRADE, 2002, p. 86).

Para Halbwachs a memória individual diante da coletiva não chega a ser uma condição necessária e suficiente de recordação e do reconhecimento da lembrança. Para esse autor, o ato de esquecer episódios passados significa que as pessoas que dele participaram também foram esquecidas, como se o individual não mais fizesse parte do coletivo que mantinha aquela lembrança. Ou, ainda,

Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos; também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006, p. 39).

Este pensamento retrata o pertencimento que liga o ser ao mundo, já que, ao recordar, consolidamos a fidelidade aos nossos grupos sociais. Não é apenas compreender o passado “mas, sobretudo, a interpretação do presente e da maneira pela qual nossa vivência pessoal se insere na história da coletividade à qual pertencemos” (OLMI, 2006, p. 36). O presente literário, do ano de 1954, marca a realidade literária brasileira afastada temporalmente daquela eclosão do movimento modernista. É a literatura regional que está em franca exaltação com Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, entre outros. Escrever suas memórias naquele presente ano seria, para o escritor Oswald de Andrade, momento de reafirmação da literatura antropofágica por meio da escritura de uma autobiografia irreverente, descontínua e totalmente marginal.

O autor narrador cria uma verdade que não necessariamente é a realidade da sua própria vida ou do ambiente literário de então, pois condensa conteúdos verossímeis com ficcionais, compacta o tempo, dando forma diferenciada ao fazer confessional.

Inferimos, assim, que o autor narrador despista o leitor já acostumado à escritura autobiográfica convencional, deixando rastros em Um homem sem profissão que enfatizam mais a técnica da escritura literária antropofágica do que a realidade de vida do autor, como se implícito estivesse que com

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o acionar das lembranças, o autor narrador se colocasse em contato com o processo inventivo, entrelaçando fatos que podem ser comprovados com a ficção do romance Memórias Sentimentais de João Miramar (1924). Cria, assim, um espaço antimemorialista, porque romanceia a recordação, através da inserção da narrativa miramarina, não cristalizando tais recordações dentro de sua única visão, mas inserindo a versão da sua mais exitosa personagem: João Miramar. Não mais o leitor se vê ante o escritor preocupado em moldar convencionalmente suas memórias, senão ante uma personagem, Miramar.

A intenção narrativa resulta em bricolage paradoxal entre literatura acadêmica e literatura antropófaga, entre o tradicional e o moderno, entre a autobiografia e o diário, entre tempo diegético e tempo dialético. Como se o dualismo entre verdade e realidade se desse pelo jogo antagônico de sentidos, entre a realidade da escritura confessional existente naquela época, no Brasil, e a verdade manifesta pelo escritor narrador como devir de novos rumos a serem dados a esse fazer literário.

Com isso, refuta qualquer apologia à memória como fonte suprema de recordação, ou da escritura intimista. Bastante atual essa crítica subliminar tecida em texto e contexto de Um homem sem profissão e que diz respeito à sacralização da memória. Neste século XXI há um estado de constante exacerbação da memória, ou de sua preservação, seja através de lançamentos de inúmeros livros biográficos e autobiográficos, seja pela incessante inauguração de museus e casas de memória de um povo, uma cultura, um país; seja, enfim, pela manifestação latente de que devemos manter “viva” a memória sobre algo ou alguém. Dessacralizar a memória, posto que sacralizá-la implica uso e abuso do tempo, é devorá-la ou exercer a antimemória (TODOROV, 2000, p. 49).

Todorov nos diz que é necessária a busca do passado, desde que se tenha claro objetivo, posto que mais importa a seleção de valores que a investigação da verdade. Objetivamente Oswald de Andrade se posiciona “contra a realidade social, vestida e opressora” (ANDRADE, 1996, p. 27), inventando a sua verdade autobiográfica. Em Um homem sem profissão, utiliza-se de recursos de narrar o passado para reivindicar a pertinência a um grupo, o Antropofágico, indo na contracorrente, e inserindo a obra nesse âmbito, de reivindicação, de novo olhar sobre a escritura memorialista brasileira, fazendo-a, portanto, uma obra singular.

Não podemos afirmar que são factuais ou diacrônicas as narrativas constantes em suas memórias, mas que nelas reside uma visão confluente e irisada da memória coletiva. O autor narrador não evoca Miramar, senão é o próprio Miramar que se faz presente, assumindo a narrativa, como que dialogando com o autor já que é parte dele e de sua história. Há um plurimorfismo narrativo em Um homem sem profissão que desemboca em Miramar. São, em verdade, dois tempos memorialísticos os narrados, completamente antitéticos: o tempo do idoso que se remoça ao dar o espaço narrativo ao jovem. Sobre o primeiro parece pesar todo princípio de autoridade familiar ao passo que o segundo é regido pela liberdade expressiva. O novo devora o antigo.

Se aquele teve profunda ligação amorosa com a mãe e com a literatura, este outro vive a orfandade de ambas. Um é signo de morte e outro da própria vida. A fusão, ou devoração de um sobre o outro, significa nova e melhor humanidade, onde as identidades se completam pelas diferenças ou alteridade. Conhecer-se a si mesmo parece depender exclusivamente dos outros. Desse processo resultam as ironias, muito úteis à composição dos livros de memórias, pois a memória não é uma estrutura mental inerte e repetitiva que devolve, imaculadas, as impressões recebidas; contrariamente, resulta que muito de inventividade entre na sua constituição, sobretudo pelo efeito que o tempo causa sobre as imagens, cambiando-as ou desfigurando-as.

Oswald de Andrade, em Um homem sem profissão, joga com a pretensão da transparência referencial narrativa de sua infância, ou da realidade, via discurso aparentemente verídico. À medida

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que a narrativa avança na cronologia do relato, aumenta a força da invenção, de maneira que aquela transparência referencial vai cedendo terreno à pura criação literária, que lhe serve como verdade e desmascaramento, como meio de enfrentamento e como reavivamento da lembrança da literatura antropofágica que tanto exaltou.

Ponto de chegada, ou matinada

Observamos, nesta análise, o ziguezague traçado por Oswald de Andrade, tendo esse movimento como o próprio fruir de sua verdade ou intenção memorialista. O tempo em Um homem sem profissão é manuseado não como segmento estanque da diacronia da realidade de vida do autor. Contrariamente, cria sentidos temporais implícitos ou não, que reafirmam sua defesa em manutenção da literatura antropofágica. Regulariza o discurso autobiográfico convencional nas primeiras páginas e desregula-o em seguida, dando-lhe outra estética, que não a tradicional, mas a de cinematismo ou perspectivização sobre múltiplas formas e vários ângulos de percepção.

São flashes que se espocam segundo a disposição do enquadramento da imagem. Ou melhor, são seleções propositadas entre o que lembrar e o que esquecer. A descontinuidade temporal articula tempos em redes flexíveis e inesgotáveis, servindo a memória como operadora do social, do coletivo, do grupo antropofágico. Tem-se, então, a verdade transformando-se em realidade. É transformação do tabu em totem, como dizia Oswald de Andrade.

Nas primeiras linhas de Um homem sem profissão, o autor narrador diz: “Este livro é uma matinada. Apesar de ser o meu livro da orfandade” (ANDRADE, 2002, p. 33). A objetiva escolha do termo “matinada” admite vários sentidos. Entre as acepções possíveis, matinada pode ser o trato do caráter religioso, já que um homem sem profissão, dentro dos ritos católicos, é aquele que não professa sua fé nem a reconfirma através dos sacramentos. Matinada é também ação de despertar pela manhã, como se as memórias se despertassem através do jogo de lembrar e esquecer, daí derivando outro sentido, o de pensar demoradamente, matutar ou ruminar, ou elaborar, através de técnica antropofágica, a configuração memorialista de Um homem sem profissão.

Estrondo, ruído, confusão. A matinada oswaldiana tem esse sentido também, deixando antever que o processo memorialista se dá aos borbotões, as lembranças vêm confusas, mescladas umas às outras, com relativa força de sentimentos e sensações que cada qual provoca. É ruído que desestrutura a harmonia sonora do cânone literário confessional brasileiro e incomoda por causar desequilíbrio nessa orquestração de há muito. É estrondo porque confessadamente está repleta de juventude amorosa tumultuada e do temperamento impulsivo do autor narrador personagem.

É uma matinada de vozerio a ressurgir na lembrança, revivificando a presença daquelas personagens que foram mais caras a Oswald de Andrade. Inúmeras vozes evocadas para ratificar a devoração do outro proposta pelo escritor. É multiplicidade de vozes sem hierarquia. O processo cumulativo de procedimentos técnicos é o canto do passaredo ao amanhecer, com diversas melodias, ritmos, timbres, velocidades. É falatório que articula qualidade estética e ideologia em relação à arte, à cultura e à política. É falatório, dado que não podemos ignorar a crítica tecida por alguns que avaliaram negativamente essa obra. Ademais, serve de espaço, neste estudo, para construirmos novo falatório.

Matinada equivale também ao ato de mentir. Nesse sentido, corrobora a intenção ficcional dada a Um homem sem profissão. É ação de madrugar, e nessa matinada percebemos que Oswald de Andrade se despertou muito cedo, daí o ineditismo da obra que pertence a meados do século XX. Ele se despiu da aparente realidade que vestia o fazer autobiográfico brasileiro, dando-lhe novas

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possibilidades e perspectivas, como se a todo instante afirmasse que “o que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior” (ANDRADE, 1996, p. 20).

Desta maneira, podemos reconhecer que Um homem sem profissão supera um modelo estático de reescrita do passado, o que nos ajuda a compreender a riqueza do percurso da escrita das memórias no que concerne à construção temporal, construído entre os limites do fato e da ficção, num processo de entrelaçamento complexo utilizado em larga escala por Oswald de Andrade nessas memórias antropofágicas.

The devoration of time in A man with no profession, memories and confessions, and under mom’s command, de Oswald de Andrade

ABSTRACT:This article presents a reflection on the devoration of time in A man with no profession, Memories and confessions, and Under mom’s command (1954), by Oswald de Andrade, in view of the theory of Genette (1979), supported by the Cannibalist Manifesto (1928) and theorists of confessional writing such as Lejeune (1994), Todorov (2000), Caballé (1995), Olmi (2006) and Halbswachs (2006). As a result, we highlight the uniqueness of the writing of the author’s memories, regarded as anthropophagic in the sense that it surpasses (or devours) a static model of former rewriting.

Keywords: Anthropophagy. Confessional Literature. Oswald de Andrade.

Notas explicativas

* Sheila Dias Maciel é Doutora em Letras, pela UNESP, desde 2001 e professora de Teoria da Literatura do Departamento de Letras da UFMT, campus de Rondonópolis. Publicou, dentre outras obras, em co-autoria, Memória e Utopia: experiências de linguagem (2011), pela Editora da UFMT.

** Silvana Aparecida Teixeira é Mestre em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal de Mato Grosso, Foi docente substituta naquela Instituição Federal, no curso de Letras, nas disciplinas de Língua e Literatura Espanholas.

1 No original: “Este esfuerzo (creativo) opera, además, dentro de unas convenciones o categorías estéticas cuya función es liberar el deseo o la necesidad de expresar ideas o emociones transformándolas en algo superior e imperecedero. En este sentido, la relación del lector con la obra no se dará en términos de veracidad (imposible) sino de verosimilitud, o sea, de apariencia de verdad” (CABALLÉ, 1995, p. 33). Tradução, no corpo do texto, realizado pelas autoras.

2 No original: “Y no es perfectamente posible que un texto, una vez que se refiere en última instancia al orden cronológico de la biografía clásica, sea construido siguiendo otro orden?” (LEJEUNE, 1994, p. 196). Tradução, no corpo do texto, realizada pelas autoras.

Referências

ANDRADE, O. DE. Manifesto da poesia pau-brasil. Manifesto antropófago. O rei da vela. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. 112 p. (Coleção Leitura)._. Memórias sentimentais de João Miramar. Prefácio de Mário de Andrade. São Paulo: Globo, 2004. 186 p. (Obras completas de Oswald de Andrade)_. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Globo, 2007. 232 p. (Obras completas de Oswald de Andrade)

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_. Um homem sem profissão. Memórias e confissões. Sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo, 2002. 236 p. (Obras completas de Oswald de Andrade).CABALLÉ, Anna. Narcisos de tinta. Ensayo sobre la literatura autobiográfica en lengua castellana (siglo XIX y XX). Madrid: Megazul, 1995. 233 p.GENETTE, Genette. Discurso da narrativa. Ensaio de método. Direção, prefácio e revisão de tradução: Maria Alzira Seixo. 782. ed. Lisboa: Editions Du Seuil, 1979. 275 p. (Colecção Práticas de Leitura).HALBWACHS. Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006. 222 p.KOOGAN/HOUAISS. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Edições Delta, 1993. 1635 p.LEJEUNE, Philippe. El pacto autobiográfico y otros estudios. Madrid: Megazul-Endymion, 1994. 441 p.MIRANDA, Wander Melo. Corpos Escritos. São Paulo: EdUSP / Belo Horizonte: EdUFMG, 1995. 176 p.OLMI, Alba. Memória e memórias: dimensões e perspectivas da Literatura Memorialista. Santa Cruz do Sul/Porto Alegre: EDUNISC, 2006. 162 p. TODOROV, Tzevtan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Ed. Paidós. 2000. 61 p.

Recebido em: 12 de dezembro de 2012Aprovado em: 27 de março de 2013