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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS MÁRCIO VINÍCIUS DO ROSÁRIO HILÁRIO A DESCONSTRUÇÃO DO ROMANESCO NOS PRIMEIROS ROMANCES DE MACHADO DE ASSIS. Rio de Janeiro 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

MÁRCIO VINÍCIUS DO ROSÁRIO HILÁRIO

A DESCONSTRUÇÃO DO ROMANESCO NOS PRIMEIROS ROMANCES DE MACHADO DE ASSIS.

Rio de Janeiro 2012

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MÁRCIO VINÍCIUS DO ROSÁRIO HILÁRIO

A DESCONSTRUÇÃO DO ROMANESCO NOS PRIMEIROS ROMANCES DE MACHADO DE ASSIS.

TESE de Doutorado apresentada ao Programa de

Pós-graduação em Letras vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do título de Doutor em

Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Professor Doutor Ronaldes de Melo e

Souza.

Rio de Janeiro 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS

A DESCONSTRUÇÃO DO ROMANESCO NOS PRIMEIROS ROMANCES DE MACHADO DE ASSIS.

Aprovada em 07 de março de 2012

TESE de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

BANCA EXAMINADORA:

Professor Doutor Ronaldes de Melo e Souza – Orientador (Docente do Programa de Letras Vernáculas – UFRJ)

Professor Doutor Adauri Silva Bastos (Docente do Programa de Letras Vernáculas – UFRJ)

Professor Doutor Alcmeno Bastos (Docente do Programa de Letras Vernáculas – UFRJ)

Professora Doutora Flávia Vieira do Amparo (Docente da Universidade Federal Fluminense)

Professor Doutor José Luiz Jobim (Docente da Univ. do Estado do Rio de Janeiro e da Univ. Federal Fluminense)

Professor Doutor Antonio Carlos Secchin - Suplente Docente do Programa de Letras Vernáculas – UFRJ

Professor Doutor Alberto Puccheu Neto - Suplente Docente do Programa de Ciência da Literatura - UFRJ

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Manoel e Maria José, na esperança de que toda uma vida repleta de sacrifícios e privações e dedicada à nossa felicidade tenha valido a pena.

Aos meus irmãos, Marco e Sandro, com o agradecimento amoroso por vocês terem sido

sempre meus grandes referenciais.

À Juliana pelas lindas páginas de amor que temos escrito juntos nesses anos!

À minha sobrinha-afilhada Maria Eduarda, à minha sobrinha Sofia, aos meus afilhados Tony, Maria Paula e Dalton, e a todos os meus sobrinhos e sobrinhas, com o desejo de

que as futuras gerações possam manter vivos nossos antigos ideais!

A toda a minha grande família dos quintais de tios e tias, primos e primas, amigos e amigas de ontem, hoje e sempre – que estão conosco ou que nos esperam em algum bom

lugar –, com o pedido de desculpas pelas minhas ausências. Amo vocês!

Aos meus amigos professores, para que mantenhamos a nossa fé na caminhada!

Aos meus alunos e ex-alunos, para que nunca desistam de construir, a cada dia, o Brasil com que Machado de Assis sempre sonhou e pelo qual nunca deixou de lutar!

Ao Edinho do Caranguejo, à Barraca do Russo, ao Bar do Tita, à Barraca do Cajueiro, ao

Bar do Costa, ao Gato de Botas, à Adega do Pimenta, ao Bar do Adão, ao Nova Capela, ao Da Gema, ao Nigri, ao Original do Brás, ao Cachambeer, ao Bacalhau, ao Siri, ao

Alambique Carioca, ao Estephanios... e ao meu plano de saúde!

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AGRADECIMENTOS

A Ronaldes de Melo e Souza, a quem muito devo e em quem me espelho mais a cada dia: intelectual inquieto na busca de novos caminhos interpretativos; professor generoso, que unge o aluno de um valor que ele mesmo desconhecia; orientador que dá autonomia para

a descoberta dos próprios caminhos; figura humana compreensiva com dramas da luta diária de cada um. Muito obrigado!

À Maria Lúcia Guimarães de Faria, por toda a ajuda que me foi dada ao longo desses anos de pesquisa. Com sua inteligência, presteza, zelo e afeto, foi também uma pessoa

humana decisiva na minha trajetória. Muito obrigado!

Aos estimados professores e amigos Antonio Carlos Secchin, Alcmeno Bastos, Dau Bastos, Flávia Vieira, José Luís Jobim, Tereza Cristina Meireles, Flávio Carneiro e Ivo

Barbieri, que contribuíram – cada um a seu modo – para a minha formação machadiana. Muito obrigado!

Aos coordenadores, professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e da Secretaria da Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ, por todo

o auxílio que me foi dado. Muito obrigado!

Ao Departamento de Língua Portuguesa e Literaturas do Colégio Pedro II, à Professora Elaine Correia Barbosa Ramos (Chefe de Departamento), à Professora Elisa Maria

Soares Fernandes (Coordenadora – São Cristóvão III) e aos demais colegas professores, por possibilitarem que eu me dedicasse exclusivamente à minha pesquisa neste momento

decisivo. Muito obrigado!

Aos amigos que sempre estiveram comigo nesta caminhada, motivaram minha inscrição no concurso para o doutorado, ajudaram na elaboração do anteprojeto e colaboraram com as traduções – Cláudia Maria Pereira de Almeida, Maximiliano Gomes Torres,

Eduardo Vicente do Couto, Maristela da Silva Pinto, Viviane Conceição Antunes Lima, Carolina da Costa Pereira Carvalho. Muito Obrigado!

Aos todos os meus professores da Escola Paroquial São Francisco de Assis, do Colégio

Pedro II e da Faculdade de Letras da UFRJ por terem sido essenciais na minha formação moral e intelectual. Muito obrigado!

A todas as escolas, colégios e cursos nos quais trabalhei e com seus acertos e,

principalmente, com seus erros, reforçaram minhas convicções como educador. Muito obrigado!

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AGRADECIMENTO A DEUS

Nossa alegria

Nossa alegria é saber que um dia Todo esse povo se libertará;

Pois Jesus Cristo é o Senhor do mundo, Nossa esperança realizará.

O Cristo veio libertar os pobres

E ser cristão é ser libertador. Nascemos livres pra crescer na vida

Não pra ser pobres, nem viver na dor.

Vendo no mundo tanta coisa errada, A gente pensa em desanimar.

Mas quem tem fé sempre está com Cristo. Tem esperança e força pra lutar.

Não diga nunca que Deus é o culpado

Quando na vida o sofrimento vem. Vamos lutar que o sofrimento passa Pois Jesus Cristo já venceu também.

Libertação se encontra no trabalho,

Mas há dois modos de trabalhar: Há quem trabalha escravo do dinheiro, Há quem procura o mundo melhorar.

E, pouco a pouco, o tempo vai passando,

A gente espera a libertação, Se a gente luta, ela vai chegando;

Se a gente espera, ela não chega não.

(Ofício divino das comunidades. 11ª edição. São Paulo: Paulus, 1994, p. 387-8.)

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“Eu creio de coração. Graças a Deus, se há alguma coisa a esperar é das inteligências proletárias, das classes ínfimas;

das superiores, não.”

(Machado de Assis, “A reforma pelo jornal”.)

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SINOPSE

Apresentação geral da problemática em torno da

classificação da obra de Machado de Assis. A visão

crítica do escritor em relação às letras nacionais. A

elaboração de um projeto de desconstrução do modelo

mais recorrente na narrativa no romance brasileiro.

Análise da aplicação do princípio irônico de

composição e da representação do conflito de caracteres

nos primeiros quatro romances do autor.

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HILÁRIO, Márcio Vinícius do Rosário. A desconstrução do romanesco: uma análise dos primeiros romances de Machado de Assis. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2012. 215 fl. mimeo. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.

RESUMO

Na tradição crítica da literatura brasileira, a obra machadiana conquistou

o lugar de maior prestígio, com sua produção ficcional narrativa sendo a

detentora quase exclusiva dos direitos de imagem do escritor. Nessa

modalidade, os romances estão no centro das atenções, apesar de terem sido

apenas nove em toda a sua ininterrupta carreira literária de quase cinquenta

anos. E mesmo assim, somente os últimos cinco parecem ser de fato

merecedores da sua assinatura. Para a maioria dos especialistas, que agrupam

esses nove romances em duas fases antagônicas, filiando-os respectivamente ao

romantismo e ao realismo, o autor teria sofrido uma profunda metamorfose

estética no meio do caminho. Isso se refletiria na publicação de Memórias

póstumas de Brás Cubas (1881), que não só revelaria seu verdadeiro gênio como

também enterraria definitivamente no passado aquelas ingênuas produções da

juventude romântica. É justamente a partir da análise de Ressurreição (1872), A

mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) que se pretende demonstrar

não ser justificável essa ideia cristalizada de uma essencial ruptura na obra do

escritor, nem a de qualquer filiação sua a essa ou aquela escola literária. Ao

contrário, foi a partir de um projeto estético singular e, principalmente, coeso e

coerente, que Machado de Assis promoveu a inovação e o amadurecimento das

letras nacionais. Partindo dessa premissa, buscam-se apresentar nesses textos

“marginalizados” os fundamentos que os afastam das linhas gerais do

romantismo brasileiro – a negação do romance de costumes e da trama de

ações, o abandono do nacionalismo ufanista e da representação da “cor local”

etc., bem como o mergulho na análise dos caracteres e a adoção da ironia como

princípio regente da estrutura narrativa –, operando, com isso, a desconstrução

do romanesco.

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HILÁRIO, Márcio Vinícius do Rosário. A desconstrução do romanesco: uma análise dos primeiros romances de Machado de Assis. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2012. 215 fl. mimeo. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.

RESUMEN

En la tradición crítica de la literatura brasileña, la obra machadiana

conquistó el lugar de mayor prestigio, con su producción ficcional narrativa

como detenedora casi exclusiva de los derechos de imagen del escritor. En esa

modalidad, las novelas se encuentran en destaque, aunque hayan sido

solamente nueve en toda su ininterrupta carrera literaria de casi cincuenta años.

Aún así, sólo los últimos cinco parecen ser de hecho merecedores de su firma.

Para la mayoría de los expertos, que agrupan esas nueve novelas en dos fases

antagónicas, vinculándolas respectivamente al romanticismo y al realismo, el

autor habría sufrido una profunda metamorfosis estética al medio del camino.

Eso se reflejaría en la publicación de “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881),

que no sólo revelaría su verdadero genio sino también enterraría

definitivamente en el pasado aquellas ingenuas producciones de la juventud

romántica. Es justamente a partir del análisis de “Ressurreição” (1872), “A mão e

a luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878) que se pretende demostrar

no ser justificable esa idea cristalizada de una esencial ruptura en la obra del

escritor, ni la de cualquier filiación suya a esa o aquella escuela literaria. Al

revés, fue a partir de un proyecto estético singular y, principalmente, coheso y

coherente, que Machado de Assis promovió la innovación y la madurez de las

letras nacionales. Partiendo de esa premisa, se busca presentar en esos textos

“marginalizados” los fundamentos que los alejan de las líneas generales del

romanticismo brasileño – la negación de la novela de costumbres y de la trama

de acciones, el abandono del nacionalismo ufanista y de la representación del

“color local” etc, así como la inmersión en el análisis de los caracteres y la

adopción de la ironía como principio regente de la estructura narrativa –,

operando, con eso, la desconstrucción del romanesco.

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HILÁRIO, Márcio Vinícius do Rosário. A desconstrução do romanesco: uma análise dos primeiros romances de Machado de Assis. Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2012, 215 fl. mimeo. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.

ABSTRACT

In the critical tradition of brazilian literature, the Machado’s Works

conquered the most prestigious place, with its fictional narrative production

being almost exclusive holder of writer’s image rights. In this mode, the novels

are in the spotlight, despite being only nine in all its unbroken literary career in

almost fifty years. And yet, only the last five may indeed be considered worthy

of his signature. For most experts, which split his nine novels in two

antagonistic phases, respectively afilliating them to romanticism and realism,

the author would have sustained a deep aesthetic metamorphosis throughout

the way. This fact is reflected in the publication of Memórias Póstumas de Brás

Cubas (1881), that not only reveals his true genious but also definitely buried in

the past those naive productions of romantic youth. Since the analysis of

Ressureição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878) aims to

demonstrate that neither the idea of breaches in the author’s Works is

justifiable, nor his association with any literary school. In the other hand, it was

from a singular aesthetic project and, mainly, cohesive and coherent, that

Machado de Assis promoted a innovation and growing of the national letters.

Based on that, we seek to provide in these “marginalized” texts the basic

principles which keep them away of the outline of brazilian romanticism – the

denial of manners’ novel and the intricate set of actions, the abandonment of

patriotic nationalism and the representation of the “local color” etc, as well as

diving in the analysis of characters and the adoption of irony as main principle

of narrative structure- resulting in the deconstruction of novel.

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SUMÁRIO

1. APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 14

2. A multiplicidade de visões da crítica e a problemática das fases ................ 19

3. O contexto da produção romanesca brasileira do século XIX ....................... 41

4. Machado de Assis, o crítico: “Tudo serve para definir a mesma pessoa”.. 56

5. O projeto estético machadiano e a modernização de nossas letras .............. 72

6. “RESSURREIÇÃO”: “Não quis fazer um romance de costumes”................. 91

7. “A MÃO E A LUVA”: a ação como tela para os contornos dos perfis ........ 109

8. “HELENA”: “Cada obra pertence ao seu tempo” ........................................... 127

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9. “IAIÁ GARCIA”: “não caia no romanesco; o romanesco é pérfido” .......... 149

10. CONCLUSÃO ou reflexões para o futuro .................................................... 174

11. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................. 192

11.1. Geral ...................................................................................................... 192

11.2. Específica .............................................................................................. 197

12. ANEXOS .............................................................................................................. 206

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1. APRESENTAÇÃO

Em 2003, defendemos, na Faculdade de Letras da Universidade Federal

do Rio de Janeiro, sob a orientação do Professor Doutor Ronaldes de Melo e

Souza, a dissertação de Mestrado Ironia poética e conflito de caracteres em

“Ressurreição”, de Machado de Assis (HILÁRIO, 2003). Naquela investigação

crítica, objetivamos desconstruir um pouco da visão que se cristalizou a respeito

da obra de Machado de Assis, no que concerne à sua produção ficcional

narrativa (em especial, a do romance), qual seja: a divisão em duas fases

distintas, em que a primeira (1872-1878) estaria mais presa às convenções gerais

do romantismo – corrente estética hegemônica no cenário brasileiro de então –,

ao passo que a segunda – iniciada a partir da publicação de Memórias póstumas

de Brás Cubas (1881) – inauguraria uma nova fase nas letras nacionais,

alinhando-as ao modelo realista de representação ficcional. Analisando os

elementos estruturais do romance de estreia do escritor (Ressurreição, 1872),

demonstramos que já ali se vislumbrava a pretensão machadiana de imprimir

um toque de originalidade na forma de composição do gênero e de propor um

novo entendimento do papel da literatura na sociedade. Assim, ao contrário do

que propunha a crítica tradicional, vimos em Machado de Assis um escritor

original desde o início, ou melhor, desde sempre.

Passados alguns anos desse trabalho, uma nova empreitada se nos

colocou como desafio: dar seguimento à investigação crítica da obra do autor,

estendendo a análise aos seus outros três romances da chamada primeira fase:

A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878). Para tanto, foi preciso

reorganizar as ideias que motivaram aquela análise e oferecer-lhe novas luzes, a

partir de outros trabalhos que foram publicados desde então. A limitação do

corpus para a presente análise crítica aos romances machadiano publicados na

década de 1870 não se deve ao fato de legitimarmos a premissa de que eles

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constituiriam um bloco à parte no conjunto da obra do autor. Nosso objetivo foi

dar maior visibilidade a um período que, em geral, é marginalizado pela crítica

especializada.

Iniciamos nosso percurso analítico com uma discussão a respeito da

recepção crítica da obra de Machado de Assis. Como as opiniões nem sempre

convergiram, agrupamos alguns dos principais nomes da crítica machadiana

por afinidades no que se refere especificamente à compreensão do projeto do

autor. Sendo assim, de um lado, colocamos aqueles que para quem a obra é

dividida em duas fases opostas e excludentes: a primeira, que se alinha ao

modelo romântico de composição – e, por isso mesmo, tem menos valor

artístico –, e a segunda, que é vista como introdutora do realismo na literatura

brasileira. Do outro lado, os críticos que não admitem a ideia de ruptura no

projeto estético do autor e veem nos romances iniciais a mesma essência irônica

que se manifesta nos seus subsequentes. Obviamente, não nos posicionamos de

maneira neutra e ratificamos a ideia de unidade estrutural da obra.

Demonstramos que, mais do que uma simples questão de ponto de vista, ambas

as perspectivas críticas podem trazer consequências positivas ou negativas para

o leitor, para o pesquisador e até mesmo para a memória do autor.

O passo seguinte foi elaborar um painel do contexto da produção

ficcional narrativa brasileira no qual foram publicados os romances

machadianos da década de 1870. Diferentemente do que costuma se praticar no

estudo da obra machadiana, não fizemos o caminho de trás para frente e

acentuando suas carências. Pelo contrário, procuramos dar ênfase às suas

qualidades e inovações. Buscamos entender o projeto definidor do modelo

ficcional narrativo do romantismo brasileiro – que, dentro de uma ideologia

nacionalista, exagerava na pintura dos quadros da “cor local” – para perceber

com mais nitidez as etapas do projeto machadiano de desconstrução do

romanesco e, com isso, tirar-lhe o rótulo de escritor romântico.

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Na sequência da análise, refizemos o percurso do crítico Machado de

Assis, que, desde muito jovem, demonstrou-se preocupado com a necessidade

de construção de um novo paradigma para a literatura brasileira. O século XIX

foi decisivo para a consolidação dos gêneros literários no contexto nacional.

Paralelo a eles, também foi sendo desenvolvida a crítica literária. Machado de

Assis tinha consciência da importância do exercício dessa atividade para a

formação dos leitores e escritores, e logo se lançou ao estudo das estéticas, para

desenvolver um método analítico que contribuísse para o aprimoramento das

obras literárias. José de Alencar confessa sua admiração por Machado,

outorgando-lhe o “título” de “o primeiro crítico brasileiro”. Sendo assim,

selecionamos alguns trechos de textos publicados entre 1858 e 1878 para que

recomponham a lógica de pensamento do crítico, que, ao lançar-se como

ficcionista, incorporou essa prática ao texto ficcional, por meio da figuração de

um narrador crítico das situações narrativas.

Da perspectiva crítica, partimos para a concepção artística de Machado

de Assis, que, para muitos, é o introdutor da modernidade literária no Brasil.

Antes, porém, buscamos apresentar um quadro geral do pensamento e da arte

moderna e contemporânea, a qual deslocou a perspectiva do sujeito absoluto

para representação da multiplicidade de pontos de vista. Como consequência

desse novo paradigma, foram elaboradas novas técnicas de narração, que

buscavam recompor a realidade numa visão multiperspectivada, tirando,

assim, das mãos do narrador a autoridade total sobre a percepção dos fatos,

condução do relato e composição das cenas.

A necessidade de passar a representar os eventos por meio do

acoplamento estrutural de vozes narrativas – experiência emocional dos

personagens e consciência racional do narrador – cria técnicas inovadoras como

a “refletorização”, o “monólogo narrado”, o “dialogismo”, “a polifonia” etc. A

ironia poética passa a ser o fundamento articulador desse novo modelo

narrativo, por meio da justaposição de elementos contrários.

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Incorporando a lógica de deslocamento perspectívico à sua narrativa,

Machado de Assis torna-se o representante dessa nova forma de composição na

literatura brasileira e inaugura a modernidade no romance nacional já na

publicação de Ressurreição.

Depois dessas reflexões preliminares, entramos na análise dos

romances machadianos do período de 1872 a 1878. Em Ressurreição (1872)

abordamos principalmente a ousadia do autor, que, já na sua estreia, afastou-se

de modelo narrativo mais comum da ficção de seu tempo. Assim, ao rejeitar a

lógica típica do romance de costumes e deslocar seu foco para a encenação do

drama de caracteres, o autor dava seu primeiro passo para a desconstrução do

romanesco.

Em A mão e a luva (1874), o estatuto irônico do narrador machadiano

permite que se elabore a caricatura dos romances românticos. Os perfis dos

caracteres em contraste se revelam não apenas no âmbito do conteúdo, mas,

sobretudo, na própria estrutura da narração. Desse modo, o narrador refletoriza

os temperamentos dos personagens na composição imagética e sintática ao

mesmo tempo, criando, assim, um efeito altamente irônico. O acoplamento

estrutural de vozes na narrativa de A mão e a luva afasta esse romance do

princípio monológico de composição e aproxima-o da modernidade literária.

No caso de Helena (1876), notamos que os perfis de caracteres dos

personagens refletem-se nas suas preferências literárias. Com isso, o narrador

machadiano ironiza o próprio papel do romance na formação do leitor. O

modelo romanesco tradicional é colocado em xeque e o destino trágico da

protagonista frustra as expectativas do leitor habituado a um “final feliz”.

Destaca-se também no romance o multiperspectivismo narrativo,

principalmente no confronto entre as personalidades de Helena e Estácio.

Iaiá Garcia (1878) fecha o grupo dos romances machadianos da década

de 1870. Nele, o princípio irônico de composição é responsável por armar e

desarmar as cenas, desorientando o leitor habituado ao romance de costumes. A

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ruptura, pois, com os princípios ideológicos da estética romântica somada à

representação caricata dos seus recursos narrativos demonstram claramente

que a intenção do projeto estético machadiano nesse momento é a

desconstrução do romanesco.

Por fim, na última etapa não nos detivemos a reafirmar as questões

levantadas no decorrer desta análise crítica dos primeiros romances de

Machado de Assis, mas procuramos estabelecer uma reflexão mais ampla sobre

o papel do crítico e do educador na recepção da obra machadiana e na formação

do leitor qualificado, respectivamente. Na seção de ANEXOS, foram inseridas

imagens, com notas explicativas, que reforçam aquilo que foi apresentado ao

longo do trabalho e, principalmente, discutido na conclusão. Esta, que, por sua

vez, ao invés de fechar uma questão, coloca ainda mais lenha no caldeirão do

Bruxo do Cosme Velho.

Machado de Assis apontou para a necessidade de uma revolução na

cultura letrada do país, na qual caberia ao escritor aprimorar cada vez mais sua

estética e ao intérprete, ampliar suas competências para a decodificação dessas

novas técnicas. Mais do que saber o quanto pudemos aqui contribuir com os

estudos especializados machadianos, importa-nos que os textos escritos pelo

autor possam ser lidos sem preconceitos ou discriminações e que a realidade

educacional brasileira não condene os escritos machadianos ao esquecimento,

enquanto cinicamente permanece cultuando apenas a imagem do autor.

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2. A multiplicidade de visões da crítica e a problemática das fases

A notabilidade de Machado de Assis eternizou seu nome na história da

literatura brasileira. Na cultura ocidental europeia é comum que certos talentos

passem despercebidos durante a vida e encontrem a glória somente após a

morte. Não foi o que houve com Machado, que, não apenas alcançou

reconhecimento enquanto vivo, mas também continuou arrebanhando

inúmeros admiradores e críticos mesmo depois de sua morte. Portanto, desde

os seus contemporâneos aos críticos atuais, muitos tentaram, das mais diversas

formas, decifrar os enigmas ocultados pela sua sinuosa escrita machadiana.

Alguns foram ainda mais além e buscaram compreender os motivos que o

levaram a traçar as suas linhas. No entanto, toda essa visibilidade não garantiu

que ele passasse incólume pela crítica. Ao contrário, a multiplicidade de visões

que incidiram sobre sua obra produziu muitas análises que, sejam elas de

intensão elogiosa ou depreciativa, acabaram se tornado mais visíveis do que a

própria obra em si e, com isso, acabaram contribuindo para o seu silenciamento.

No ensaio intitulado “O desafio da crítica”, Cilaine Cunha (2007) faz uma

apresentação cronológica dos principais críticos, desde aqueles do século XIX

aos dos dias atuais, que tentaram de alguma forma sistematizar a obra

machadiana. O texto mostra bem como as perspectivas críticas sempre

caminharam lado a lado com as concepções filosóficas e ideológicas que

estavam em vigor a cada época, influenciando, assim, enormemente a maneira

de interpretar o projeto estético do artista.

Machado de Assis obteve sucesso de público desde o início de sua

carreira. A acolhida favorável pode ser atestada neste testemunho

ressentido de seu contemporâneo, Sílvio Romero: “Nenhum escritor

neste país recebeu jamais em vida tantas provas de admiração, de

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louvor, de glória”. Mas a história da recepção crítica mostra que a

avaliação de sua obra nem sempre foi unânime, dada a discrepância

entre os juízos críticos dos estudos de literatura.1

Uma das pioneiras na crítica machadiana, Lúcia Miguel-Pereira – em

texto publicado originalmente sem título na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro

em 11 de novembro de 1934 na coluna “Livros” – elogiou a iniciativa do editor

José Olympio de “fazer ressurgir a série de conferências feitas em São Paulo por

Alfredo Pujol”2, realizadas entre 1915 e 1917, com apresentações, resumos e

análises críticas de todos os romances e de outros tantos textos que compõem a

obra de Machado de Assis. Lúcia Miguel-Pereira inicia seu ensaio denunciando

a falta de memoria dos escritores e dos críticos de literatura brasileira, a qual

parece ser regida pela lógica singular de um “eterno recomeçar”3. Sendo assim,

as novas gerações se portavam como se não houvesse as fases anteriores, que

alicerçaram a construção da nossa literatura. Por isso, a seu ver, a reedição das

conferências machadianas de Pujol representava um ponto positivo para a

preservação da nossa memória literária. Entretanto, essa acabava sendo uma

iniciativa isolada no contexto geral que, em verdade, oferecia péssimas

condições para que o pesquisador do mundo das letras buscasse suas fontes

primárias.

(...) As edições pequenas, feitas para um público diminuto, esgotam-se e

não se renovam. Ao cabo de alguns anos, para se obter uma obra, é

1 CUNHA, Cilaine, 2007, p. 40.

2 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. “Machado de Assis em síntese”. In: A leitora e seus personagens: seleta de textos publicados em periódicos (1931-1943) e em livros. – prefácio Bernardo de Mendonça; pesquisa bibliográfica, seleção de notas, Luciana Viégas. – Rio de Janeiro: Grafia Editorial, 1992, p. 194.

3 Ibidem.

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preciso recorrer aos sebos, e se resignar a adquirir algum volume mal

tratado, cujo aspecto tira muito o prazer da leitura.4

A queixa de Lúcia Miguel-Pereira pode explicar em certa medida um dos

principais motivos geradores de equívocos na análise da obra machadiana: a

dificuldade de acesso aos textos – principalmente aqueles que foram publicados

de forma difusa nos mais diversos periódicos da época – fez com que se

tentasse chegar a uma conclusão do todo a partir da instituição de uma das

partes como o modelo regente geral. Basta observar sua fortuna crítica para

visualizar com clareza que, embora o autor tenha se lançado aos mais variados

gêneros, os textos analisados são quase sempre os mesmos. Sendo assim, ainda

hoje, apesar de já existirem estudos muito relevantes que tentam tirar das

sombras o Machado de Assis crítico, o poeta, o dramaturgo e o cronista, é ainda

o contista e principalmente o romancista que prevalece. Pior ainda, mesmo o

romancista não é visto como um todo: ele acaba sendo dividido em

personalidades antagônicas e rotulado ora como gênio ora como ingênuo.

Mesmo que os índices sociais pareçam ridículos aos olhos de hoje, é fato

que houve algumas iniciativas que possibilitaram uma maior divulgação das

obras e certas ações no nível educacional que ampliaram o número de leitores

no século XIX, o que impactou diretamente na recepção crítica das obras dos

escritores. No caso específico de Machado de Assis, conforme o homem e o

artista iam ganhando mais notoriedade, maior era o número de leitores atraídos

para o seu texto. Basta comparar a quantidade de resenhas que noticiaram os

lançamentos dos primeiros romances com o número de textos que se

manifestaram em relação às primeiras edições dos últimos cinco. Não é difícil

supor que, depois de conquistar um conjunto fiel de admiradores, os textos

machadianos, principalmente os romances, deveriam ser aguardados com ânsia

e simpatia prévia. No entanto, como Machado não publicava um romance atrás

4 Ibidem.

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do outro – basta lembrar que ao longo de sua carreira foram apenas nove,

enquanto José de Alencar publicara vinte e um –, o jeito era relançar os

primeiros textos em novas edições. O resultado dessa combinação é justamente

um dos pontos mais importantes no que se refere à visão da crítica: para

muitos, o caminho de leitura pode ter sido de trás para frente; ou seja, os

primeiros romances do escritor podem ter sido lidos depois da publicação de

Memórias póstumas de Brás Cubas. Com isso, aos olhos de quem já estava

habituado a ver no estilo sincopado machadiano as críticas contundentes em

relação a sua complexa realidade contemporânea, as alegorias de uma realidade

social que ficara para trás podiam parecer ingênuas e alienadas.

No decorrer do século XIX, os gêneros literários foram sendo

desenvolvidos na literatura brasileira a partir do surgimento de talentos que

souberam, mesmo em condições ainda precárias, aprimorar o seu fazer literário,

o que, por sua vez, refletia no contexto geral. Como não havia uma crítica

especializada constituída, o gosto acabava sendo o principal critério de

julgamento da grandeza de uma obra. Levando-se em conta que muitos

daqueles que se lançaram à crítica literária eram também ficcionistas, poetas ou

dramaturgos, utilizavam suas próprias influências como modelos referenciais

dos quais as obras analisadas não poderiam se afastar. Dentro dessa

perspectiva, considerada toda a efervescência de linhas estéticas, grupos

literários e movimentos artísticos, não admira que o critério subjetivo de análise

crítica fosse também marcado por uma prática constante de valoração, que

beirasse não raras vezes as raias do preconceito. Assim, por exemplo,

estabelecido o modelo do que se configurou o projeto romântico brasileiro, toda

obra que se afastasse daqueles princípios básicos seria frontalmente rechaçada;

do mesmo modo que, instituída a estética realista como o modelo a ser seguido,

qualquer eco do passado romântico deveria ser rotulado como retrógrado e

alienado.

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Se não foi uma regra para todos os escritores, visto que muitos deles

estavam filiados abertamente a uma dessas tendências, pelo menos foi o que

houve com Machado de Assis, que, além de nunca se declarar como partidário

dessa ou daquela corrente literária, atravessou momentos em que uma e outra

linha eram hegemônicas. O reflexo disso está na forma como a crítica literária

do século XIX analisou seus romances da década de 1870. Para aqueles que

escreveram no calor da hora de suas publicações, faltavam àqueles textos os

elementos mais recorrentes que caracterizaram o projeto nacionalista do

romantismo brasileiro. Para os críticos das décadas seguintes, esses romances

passaram a pertencer a um momento da vida literária de Machado de Assis em

que o escritor estava ainda muito preso aos princípios fundamentais do

romantismo. Ora, se o acesso às próprias obras já não era algo tão simples,

como afirmou Lúcia Miguel-Pereira décadas depois, certamente que aquelas

poucas críticas referentes aos primeiros romances e que foram publicadas de

maneira dispersa em um ou outro periódico eram praticamente inacessíveis.

Ademais, seria pouco provável que os adeptos do realismo como estilo literário

fossem buscar suas fontes de estudo em críticos defensores dos arquétipos

românticos. Com isso, a ideia de que os primeiros romances da produção

ficcional machadiana estariam ainda presos ao modelo romântico de

composição tornou-se hegemônica na crítica literária brasileira e perdura até os

dias de hoje, apesar das contestações, que se tornam cada vez mais vigorosas.

As linhas defendidas pela crítica para a análise dos romances

machadianos da década de 1870 poderiam ser divididas e agrupadas em duas

frentes básicas distintas: a dos críticos que entendem que esses textos compõem

um bloco à parte dentro da obra e a daqueles que os integram aos fundamentos

básicos de um mesmo projeto estético. Enquanto a primeira dá ênfase ao que ela

própria considera como falhas estilísticas nesses romances, fruto talvez da

imaturidade do escritor, a segunda reconhece nele uma postura bem madura no

que se refere à elaboração consciente de um modelo narrativo que desde

sempre buscou singularizar-se no cenário nacional, afastando-se daquilo que

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era praticado por seus contemporâneos e antecessores. Mais do que uma

simples questão de ponto de vista, de opinião ou de gosto, essas posturas

analíticas geram consequências e refletem diretamente no modo de ler e

entender o projeto estético elaborado por Machado de Assis. Afinal, enquanto

uma delas integra todas as partes para a compreensão do todo, a outra elege

uma das partes como a representação de um todo autônomo e exclui o que

sobrou, condenando-o praticamente ao esquecimento.

Passemos, enfim, a apresentação de alguns caminhos trilhados por

aqueles que se lançaram a analisar criticamente os primeiros romances

machadianos.

O primeiro grupo aqui reunido é o dos que entendem que há uma

divisão na obra do escritor e que esses romances da década de 1870 pertencem a

um primeiro momento da vida literária do escritor em que ele estava mais

ligado ao romantismo. Um dos primeiros críticos a tentar compreender a obra

de Machado de Assis como um todo, Alfredo Pujol, em suas já citadas

conferências em São Paulo entre 1915 e 1917, afirmou que nas primeiras quatro

“novelas” o autor estava “ainda cativo nas malhas do romantismo idealista”5.

Usando um tom mais amargo e pejorativo, Augusto Meyer (1958) não

economizou palavras quando fez referência a esses romances que compunham

a “produção medíocre da primeira fase”6. Para Alfredo Bosi (1972), os romances

iniciais pareciam “fracos mesmo para o nível da consciência crítica do autor na

época de redigi-los”7, ao passo que a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas

já é possível rastrear um processo de inversão parodística dos códigos

tradicionais que o romantismo fizera circular durante quase um século.

5 PUJOL, Alfredo, 2007, p. 79.

6 MEYER, Augusto, 1958, p. 10.

7 BOSI, Alfredo, 1972, p. 197.

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Quem diz de uma paixão de adolescente que “durou 15 meses e 11

contos de réis”; ou do espanto de um injustiçado que “caiu das

nuvens”, convindo em que é sempre melhor cair delas que de um

terceiro andar; ou ainda, da fatuidade que “é a transpiração luminosa

do mérito”, está na verdade operando, no coração de uma linguagem

feita de lugares comuns, uma ruptura extremamente fecunda, pois,

roída a casca dos hábitos expressivos, o que sobrevém é uma nova

forma de dizer a relação do homem com o outro e consigo mesmo.8

Ora, e o que dizer das passagens contidas nos primeiros romances que

promovem a desconstrução tanto da simbologia quanto da linguagem

romântica? Afinal, se os amores não podem ser eternos, que sejam ao menos

semestrais, pois a vantagem é que assim “duram mais do que as rosas, duram

duas estações”9. Enquanto há quem tenha “o infortúnio de trazer ainda sobre o

nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões”, não falta quem já veja

“bem com os olhos da cara”10. Dentre os personagens, figurou aquele que era

“pontual no cumprimento dos deveres de bom católico. Mas só pontual;

interiormente era incrédulo”11. Do mesmo modo, ocorreu que uma mãe foi

capaz de mandar o filho para a Guerra do Paraguai tão somente para que ele

não se envolvesse numa relação desaprovada por ela: foi assim que “de um

caso doméstico saía uma ação patriótica”12. Se é possível identificar com maior

frequência esse recurso nos romances pós-Brás Cubas, isso não anula o fato de

que o início do processo de desconstrução da narrativa romântica já estava

presente desde o primeiro romance do escritor. Outros recursos desconstrutivos

serão demonstrados ao longo desta análise.

8Idem, p. 201.

9 Ressurreição, p.63-4.

10 A mão e a luva, p. 21.

11 Helena, p. 21-2.

12 Iaiá Garcia, p. 45.

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Uma das mais renomadas biógrafas e críticas de Machado de Assis,

Lúcia Miguel-Pereira (1988) tenta demonstrar os vínculos entre a vida e a obra

do escritor. Para ela, A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Casa Velha são livros

autobiográficos nos quais o autor discute insistentemente o problema da

ambição. Os personagens dessas narrativas têm como principal objetivo a

mudança de classe social, não medindo esforços para que isso aconteça. Na sua

interpretação, isso se deveria a um certo sentimento de culpa de Machado de

Assis por ter abandonado e negado sua madrasta, para, com isso, negar

também a sua origem pobre e ascender socialmente.

Em 1874, data da composição de A Mão e a Luva, havia já cinco anos que

Machado estava casado. Cinco anos de paz e tranquilidade, mas cinco

anos, também, do abandono em que deixara Maria Inês.

Baniu-a de sua vida, não pode bani-la das suas cogitações. O demônio

interior de Machado de Assis – esse espírito inquieto e inquiridor – não

lhe permitia sossegar.

Teria ele direito de deixar assim a pobre velha? Se não o fizesse, ela é

que o prenderia ao meio humilde: deveria ter-se sacrificado? Onde o

dever? Devia-se a si, à sua carreira, ou a Maria Inês, à gratidão?

Poderia ter agido de outro modo? Não teria sido guiado pelo destino,

pelos acontecimentos? E toca a pensar, a pensar...13

Quando se sustenta na biografia pessoal de um escritor para justificar o

produto da sua criação, a crítica cria relações de causalidade direta que nem

sempre se justificam e, com isso, acaba por reduzir intensamente o complexo

universo de interpretação da obra. Ao atribuir a um episódio específico da vida

do artista o motivo que o levou a compor a sua obra de arte, esquece-se de que

13 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia, 1988, p. 155.

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as experiências vivenciadas vão sendo acumuladas no inconsciente do

indivíduo, pois o ser humano, em um primeiro momento, tende a resistir e

superar as dificuldades para que elas não o impeçam de viver. Entretanto,

superados os problemas mais simples, acumulam-se depois as grandes

questões, até que o indivíduo esgotado acaba explodindo por muito pouco. Ora,

diante de um complexo tão grande de situações e experiências acumuladas e

absorvidas, como localizar qual foi realmente o evento que desencadeou a

explosão? Infelizmente, essa perspectiva reducionista parece ter encontrado

terreno firme não somente na crítica, mas sobretudo no ensino de literatura,

principalmente no ciclo básico, onde se costuma fazer a associação direta de

uma patologia com um estilo de composição, como, por exemplo, se a

tuberculose justificasse o ultrarromantismo. Vale perguntar se todo tísico seria

capaz de compor versos como Álvares de Azevedo, ou ainda se Castro Alves

sofreu mesmo de tuberculose, posto seus versos em nada lembrarem os dos

discípulos de Byron. É necessário, então, reconhecer que o fundamento

biográfico nem sempre oferece elementos suficientemente consistentes para

uma análise séria, a não ser que o projeto literário do escritor tenha

declaradamente como base a sua experiência pessoal. Caso contrário, o risco é

sempre o mesmo: reducionismo e erro.

Quanto à tese defendida por Lúcia Miguel-Pereira de que o

ressentimento pelo abandono da madrasta teria motivado Machado de Assis a

compor personagens que justificassem sua atitude, Ubiratan Machado (2008)

refutou-a na raiz, provando que o escritor, na verdade, jamais teria virado as

costas para a viúva de seu pai; pelo contrário, ajudou-a até a morte.

Um outro ponto importante refere-se ao tratamento dispensado por

Machado à viúva, após a morte de Francisco José. Hemetério José dos

Santos, em artigo bombástico e leviano, publicado 60 dias após a morte

de Machado, afirma que o escritor tivera uma atitude quase que

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desumana para com a madrasta, a quem desprezaria. Ao contrário dessa

afirmativa, Machado auxiliou Maria Inês até a morte dela, a 1o de julho de

1891, em consequência de uma pneumonia dupla. Conta Coelho Neto

que naquele dia encontrou-se com Machado na livraria Garnier, tendo

este declarado que ia a um enterro. Neto acompanhou-o. Entraram em

um carro, que os levou a uma casa humilde onde, durante um certo

tempo, Machado velou o cadáver de uma “mulher de cor”. Na saída,

Machado declarou: “Era minha mãe”. Esta história, recolhida da boca de

Coelho Neto por Francisca de Basto Cordeiro, foi mais tarde transmitida a Lúcia

Miguel-Pereira, que a incluiu na sua biografia de Machado. Agripino Grieco

considera-a pura invenção. De fato, não tem pé, nem cabeça, mas faz

sensação como toda lorota maldosa envolvendo um personagem

conhecido. Maria Inês morreu numa casa de classe média alta, da família

Eduardo Marcelino Paixão, no bairro do Grajaú, onde vivia como

agregada.14

Lúcia Miguel-Pereira afirma também que os romances iniciais de

Machado de Assis são carregados da retórica e da estética românticas. No seu

entendimento, a visão do autor fundamenta-se primeiramente no moralismo

maniqueísta e vai “evoluindo” para o relativismo, até chegar à negação

absoluta: este último, então, seria o verdadeiro Machado. O que valeria a pena

questionar é se essa aparente adoção estilística do modelo romântico não seria

uma estratégia irônica do autor para desconstruir os princípios fundamentais

desse estilo que era hegemônico naquele momento no nosso contexto literário.

14 MACHADO, Ubiratan. Dicionário Machado de Assis, Rio de Janeiro, ABL, 2008, p. 319. – grifos meus.

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São de uma fase em que Machado de Assis ainda não estava seguro dos

seus recursos, ainda não encontrara sua maneira. Os “clichês”

românticos, a que se prendeu, de algum modo o inibiram.15

A suposta insegurança na utilização dos recursos literários de que fala

Lúcia Miguel-Pereira e que seria absolutamente normal para alguém que

começava a se lançar no universo da produção ficcional romanesca não coincide

com a postura ousada manifestada pelo escritor já desde Ressurreição. Quando

afirma na “Advertência da primeira edição” que “Não quis fazer romance de

costumes”, Machado de Assis já estreava rompendo com o mais essencial

“clichê” da narrativa romântica do seu tempo. Portanto, utilização dos tais

“clichês” do romantismo, como sugere Lúcia Miguel-Pereira, estaria, na nossa

concepção, dentro de um projeto maior de desconstrução da forma romanesca

hegemônica até aquele momento no contexto da literatura brasileira, ao invés

de representar uma adoção entusiástica da ideologia e dos princípios formais

consagrados pelo estilo. A própria encenação do “desejo de ascensão social” por

parte dos personagens pode ser mais uma crítica ao imobilismo de uma

sociedade oligárquica e escravocrata, que oferece pouca ou nenhuma

oportunidade de sobrevivência digna aos seus indivíduos, do que uma

aceitação alienada e passiva da regra do jogo. Não é, entretanto, no que acredita

Roberto Schwarz (2000), para quem os primeiros romances “São livros

deliberada e desagradavelmente conformistas”16.

Lançado em 1977, período em que o Brasil vivia há mais de vinte anos

uma ditadura militar marcada pela perseguição explícita aos discursos e

práticas marxistas, Ao vencedor as batatas furou o bloqueio ideológico ao analisar

o quadro social dos romances machadianos a partir de uma lógica de aceitação-

negação do discurso das classes dominantes e da denúncia da alienação do

15 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia, 1988, p. 162.

16 SCHWARZ, Roberto, 2000, p. 83.

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homem diante do contexto social no qual está inserido. No livro, o crítico

demonstrou como, apesar de a primeira fase representar bem o quadro social

brasileiro da época, o narrador machadiano ainda manifestaria um discurso

conformista em relação à lógica de domínio patriarcal. Nesse sentido, Machado

de Assis não teria atingido ainda a maestria formal caracterizada pela adoção

do ponto de vista de um narrador pertencente à classe senhorial, que, numa

postura desabusada e volúvel da realidade social brasileira espelhará,

metonimicamente, a ética cínica das elites dominantes. Para Schwarz, essa

perspectiva só será vista a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, portanto

na segunda fase, a qual será analisada pelo próprio crítico anos depois, 1990, em

seu livro Um mestre na periferia do capitalismo.

(...) a despeito de sua inteligência e do engenho, que não vamos

esquecer, são quatro romances enjoativos e abafados, como o exigem os

mitos do casamento, da pureza, do pai, da tradição, da família, a cuja

autoridade respeitosamente se submetem. [...]. E de fato, um dos sinais

da segunda e grande fase no romance de Machado será a reintegração

abundante do temário liberal e moderno, das doutrinas sociais,

científicas, da vida política, da nova civilização material – naturalmente

à sua maneira dele.17

No ponto de vista do cuidado na análise dos quadros e das situações

narrativas, Roberto Schwarz é bastante preciso e minucioso. Sendo assim, a

argumentação feita para a defesa de sua tese a torna praticamente

inquestionável. No entanto, nosso ponto de discordância encontra-se

justamente na tese, que qualifica os romances da primeira fase como

conformistas em relação ao discurso patriarcal. O que se pode extrair dos textos,

admitindo o uso do recurso irônico como elemento estruturante da narrativa, é

17 Idem, p. 87-8.

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que o autor critica em todo momento essa mesma realidade social, a partir da

pintura de diversos quadros situacionais. Além disso, no ponto de vista formal,

o crítico também aponta algumas falhas estruturais que também poderiam ser

interpretadas sob outra ótica se os pontos questionados fossem entendidos

como fruto de uma grande ironia. Nessa ótica, justaposição de vozes narrativas

ou as interrupções sequenciais e quebras de expectativas presentes nesses

primeiros romances de Machado de Assis e apontados muitas vezes por

Schwarz como falhas poderiam ser interpretados como uma desconstrução

irônica do modelo canônico de narrativa contemporâneo ao autor.

Em sua análise, carregada de um olhar sociológico, Schwarz enfatiza que

a questão da busca por ascensão social é tratada aprovativamente por Machado

como uma forma de correção de uma injustiça da vida, que legaria a

personagens cheias de nobres qualidades uma origem social inferior. O

problema é que, para estabelecer a coerência na sua linha de raciocínio, o crítico

se vê obrigado a excluir Ressurreição de sua análise, visto que o romance nada

tem a ver com essa questão. Logo, apesar de todo o minucioso trabalho analítico

e do olhar atento a questões de muito relevo nos romances, Schwarz, aos nossos

olhos, equivoca-se ao excluir o primeiro romance do conjunto da chamada

primeira fase, a fim de torná-la mais coesa e coerente para o seu próprio ponto

de vista, e também por não considerar por parte do autor a adoção da ironia

como princípio articulador de toda a obra – sem a exclusão de qualquer das

partes. Sendo assim, o que ele denominaria de falhas estruturais dos romances

deveria ser interpretado, na verdade, como mecanismos conscientes de

desconstrução irônica do modelo narrativo predominante no contexto nacional.

Seja pelo ponto de vista ideológico ou pela perspectiva biográfica,

muitos críticos quiseram encontrar de algum jeito os motivos que teriam levado

Machado de Assis a dar uma guinada tão radical em sua obra: o casamento, a

melhor condição financeira, o início de um reconhecimento social, a morte de

José de Alencar, os problemas de saúde, a entrada para o Ministério da

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Agricultura18 etc. Em todo caso, o que importa é reconhecer que o traço comum

a todos eles é o reconhecimento de que Memórias póstumas de Brás Cubas

representa a linha divisória a partir da qual não cruzará nenhum resquício mais

do romantismo da primeira fase. Mais do que isso, para eles, os quatro

primeiros romances seriam apenas bons exemplos de como Machado de Assis

conseguiu não ser ele mesmo e, sendo assim, merecem ser esquecidos. No

entanto, apesar da disseminação vigorosa dessa perspectiva analítica, há outros

críticos que se colocaram no extremo oposto e perceberam não uma linha

divisória, mas uma linha contínua em toda a obra do escritor. Embora

reconheçam as mudanças significativas em certas técnicas narrativas, que

passaram a ser mais exploradas pelo autor a partir de Brás Cubas, elas seriam o

desdobramento de algo que já vinha de antes, ao invés de constituírem uma

ruptura dialética com o passado.

Astrojildo Pereira (1958) admite a tese de que Memórias Póstumas de Brás

Cubas significa uma mudança de qualidade na obra de Machado de Assis (p.183) e,

nesse ponto, não discorda de críticos importantes como Sílvio Romero, José

Veríssimo ou Gustavo Corção. Entretanto, ao contrário desses mesmos críticos,

não aceita a ideia de ter havido uma ruptura na obra, mas sim de que houve um

processo gradual de amadurecimento da forma.

18 Esta é a tese de Sidney Chalhoub (2003), para quem a transformação no ponto de vista da crítica social na obra de Machado de Assis deve-se a um desencantamento com a realidade depois de um contato direto com pensamento cínico das elites brasileiras. De meados dos anos 1870 até o final da década de 1880, Machado chefiou a segunda seção da Diretoria da Agricultura do Ministério da Agricultura, que teve como principais assuntos de pauta a política de terras e a escravidão – “neste caso, mais precisamente, estava encarregada de acompanhar a aplicação da lei de 28 de setembro de 1871, depois apelidada de Lei do Ventre Livre” (p. 10). Dentro da sua perspectiva, o historiador cumpre o papel a que se propôs, desconsiderando, obviamente, os aspectos literários e limitando o corpus apenas a Helena, Iaiá Garcia e Memórias póstumas de Brás Cubas. Em todo caso, serve como mais um elemento para demonstrar como é muito fértil em nossa crítica a tendência – possivelmente herdada do próprio discurso historiográfico – a identificar em uma possível mudança brusca um motivo único, específico, nuclear e desencadeador.

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Aceito até certo ponto as premissas de onde Corção extrai os seus

raciocínios. O Brás Cubas, escreve ele, “não é apenas a diferença na

forma; é diferente sobretudo pela dimensão, pela suprema novidade

do valor”. O que é insuficiente – e nisto encontro apoio em mais de

um crítico – não é apontar a “diferença”, é admitir que a ruptura

verificada tem mais propriamente significação de uma ruptura

dialética, resultante de um lento processo interior, solução de

contradições que se desenvolviam desde o começo da carreira de

Machado de Assis. Corção reconhece o caráter dialético de Brás

Cubas, mas apenas no sentido de uma negação absoluta das obras

anteriores, o que não corresponde à realidade. E não corresponde

porque o termo “dialético” aparece ali num plano demasiado restrito,

formal e de inspiração idealista.19

Que Memórias póstumas de Brás Cubas, sob certa ótica, é radicalmente

diferente de seus antecessores, isso é inquestionável. Como também o é em

relação aos seus sucessores. Ou seja, é um romance singularíssimo e que, por

isso mesmo, tem características que os outros não possuem e, por sua vez, deixa

de ter traços exclusivamente peculiares aos outros. Enfim, acreditamos que em

Machado todo romance constitui um universo singular sem que isso inviabilize

a coesão e a coerência dentro de um mesmo projeto estético. É interessante

também ressaltar que Astrojildo Pereira não se considera descobridor da pólvora

(p.183) por defender que não há ruptura e sim continuidade. Ao afirmar que

nisso encontra apoio em mais de um crítico, ele sugere que, ainda que haja

vozes divergentes no âmbito da pesquisa machadiana, apenas uma

determinada corrente de análise encontra terreno fértil para germinar,

tornando-se assim uma espécie de crítica oficial.

Tocando no cerne da questão, Afrânio Coutinho publicou, no

“Suplemento Literário”, do Diário de Notícias de 25 de outubro de 1965, o ensaio

19 PEREIRA, Astrojildo, 1958, p.183-4.

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“Duas fases ou amadurecimento progressivo?” no qual, assim como Astrojildo

Pereira, refuta a tese de que a obra machadiana é marcada por uma ruptura

absoluta. Para o crítico – e nesse ponto concordamos inteiramente –, não parece

razoável aceitar que, em determinada fase da vida, Machado de Assis tivera

uma espécie de epifania que fez com que ele não só mudasse completamente

seu estilo narrativo, mas também criasse uma forma completamente nova, que

em nada dialogasse com a sua produção anterior.

(...) deve-se afastar, no exame do problema, a ideia de mutação

repentina. Não há ruptura entre as duas fases. É mais justo afirmar

que uma pressupõe a outra e por ela foi preparada. Há antes,

continuidade. E, se existe diferença, não há oposição, mas sim

desabrochamento, amadurecimento. Isto sim: maturação. O

desenvolvimento de Machado de Assis é um longo processo de

maturação, ao longo do qual vai acumulando experiência e fixando

vivências, que gerarão o seu credo espiritual e estético e sua

concepção técnica. Nada disso resultou de uma modificação súbita,

nem por geração espontânea no espírito do escritor, mas de

transformação lenta em zonas profundas e obscuras, na intimidade

das fontes vitais.20

Por mais que Afrânio Coutinho também inclua questões biográficas em

sua análise – o que, como demonstramos anteriormente, pode levar ao risco do

reducionismo –, ele não se limita a um episódio ou evento particular, mas

compreende uma complexa gama de fatores que possam ter contribuído para o

amadurecimento do olhar do escritor e, com isso, ter gerado reflexos na criação

de sua obra. Ainda assim, é claro que muitos outros fatores pessoais ou

profissionais, bem como influências oriundas do contato com outras obras

20 COUTINHO, Afrânio, 1990, p.28-9.

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sempre podem ser elementos de contribuição para trazer algo novo para o

artista. Ou não. Afinal, outros podem ter tido uma vida social bem parecida

com a de Machado de Assis sem que, por conta disso, tenham escrito uma linha

que fosse de literatura. Com isso, parece-nos que na crítica biográfica sempre

estará faltando alguma coisa.

Não há de esconder, outrossim, que ele viveu uma crise na década de

1870, entre os 30 e os 40 anos. Nessa etapa entre os anos de 1869 e

1879 foi que se deu a confluência de fatores que determinaram a

fixação de sua fisionomia espiritual e estética. (...)

A experiência da vida e a observação do mundo, os choques com a

vida, a autoanálise, a consciência de suas inferioridades, a irrupção de

doença grave, os ressentimentos acumulados, a que se somou o

trabalho das leituras e predileções intelectuais, constituíram, assim, os

elementos que condicionaram a sua cosmovisão definitiva. Entre

1869, a data do casamento e estabilização da vida, e 1879, são dadas a

lume das obras que traduzem sua fase inicial: Falenas (1870), Contos

Fluminenses (1870), Ressurreição (1872), Histórias da Meia-Noite (1873), A

Mão e a Luva (1874), Americanas (1875), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878),

sem falar nas Crisálidas (1864).21

No que tange à nossa opção de analisar exclusivamente os romances

produzidos da década de 1870, destacamos aqui a “Advertência da nova

edição” de Ressurreição, publicada em 1905, na qual o próprio Machado usa a

expressão “primeira fase da minha vida literária” para localizar seu romance de

estreia, “outros que vieram depois, e alguns contos e novelas de então”, no

conjunto da sua obra:

21 Idem, p.27-8.

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Este foi o meu primeiro romance, escrito aí vão muitos anos. Dado em

nova edição, não lhe altero a composição nem o estilo apenas troco

dous ou três vocábulos, e faço tais ou quais correções de ortografia.

Como outros que vieram depois, e alguns contos e novelas de então,

pertence à primeira fase da minha vida literária.

Muito embora o trecho sugira que o próprio autor creia que há uma

divisão na sua obra, ainda assim, não cremos que possamos dar a questão como

encerrada. Em primeiro lugar porque o termo “fase” pode ser entendido como

sinônimo de “etapa” ou “período” e pode estar referindo-se não

necessariamente a um estilo, mas ao modo como o autor produzia seus

romances, aos recursos de que ele dispunha, aos cuidados que necessitava ter,

ao olhar que possuía quando estava na casa dos trinta anos de idade etc. Ou

seja, a expressão seria um modo no qual um homem de quase sessenta anos de

idade olha para o seu eu de outrora, talvez até com alguma nostalgia de certo

idealismo jovial. Em segundo lugar, não poderíamos esquecer que o autor está

fazendo uma advertência a um leitor que possivelmente nem tinha nascido no

momento da publicação original do romance e que, por estar tão distanciado

temporalmente daquele momento, precise de algum alerta para que saiba

localizar a obra em seu tempo. Afinal, vale lembrar que Ressurreição ganhou sua

segunda edição mais de trinta anos depois da primeira, que certamente não

teve uma tiragem numerosa o suficiente para que os leitores das décadas

seguintes pudessem encontrá-lo facilmente nas livrarias. Logo, para o público

leitor de 1905, tratava-se de um livro inédito do autor, que logicamente

precisava contextualizá-lo para evitar o inevitável: as comparações diretas com

os romances mais recentes. Finalmente, em terceiro lugar, mesmo que fale em

“fase da vida literária”, Machado de Assis não a filia a nenhuma escola literária

em especial e jamais disse que esse e os outros romances da década de 1870

eram representantes da ficção narrativa romântica de seu tempo. A respeito

deste último ponto, Antonio Candido e Aderaldo Castello (1987), ainda que não

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reconheçam na utilização de certos recursos narrativos comuns na produção

ficcional da época um projeto de desconstrução irônica, também não creem que

tais romances machadianos são herdeiros da tradição romântica brasileira.

Quanto ao primeiro [momento], com Ressurreição, Helena, A Mão e a

Luva e Iaiá Garcia, em vez de dizer que o romancista ainda se

apresenta bastante comprometido com a herança romântica,

preferimos admitir que ele está preso às características mais gerais do

romance do século XIX. É verdade que já dá relevo aos caracteres,

cujo perfil se esboça desde início, passando a seguir a demonstrá-los

no decurso da narrativa. Mas ainda se preocupa em demasia com a

construção da trama romanesca, com as vicissitudes de um drama

historiado, donde a estruturação da narrativa em suas formas mais

frequentes.22

Com muito mais contundência na negação da herança romântica nos

primeiros romances machadianos e, mais ainda, da ideia de divisão abrupta da

obra em duas fases distintas, Silviano Santiago (1978) diz, com todas as letras,

que essa tese “tem de ser refutada”23 para o bem da compreensão da obra do

escritor.

Já é tempo de se começar a compreender a obra de Machado de Assis

como um todo coerentemente organizado, percebendo que certas

estruturas primárias e primeiras se articulam e se rearticulam sob forma

de estruturas diferentes, mais complexas e mais sofisticadas, à medida

que seus textos se sucedem cronologicamente. Certa crítica que se fazia à

monotonia da obra de Machado, à repetição nos seus romances e contos

22 CANDIDO & CASTELLO, 1987, p. 300.

23 SANTIAGO, Silviano, 1978, p. 30.

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de certos temas e episódios, ocasionando desgaste emocional por parte

do leitor (ou do crítico impressionista), tem de ser também

urgentemente revista.24

Concordamos com Silviano Santiago quanto à necessidade de revisão

crítica da obra machadiana principalmente daquilo que nela foi denominado

como “a primeira fase” ou “fase romântica”. É preciso deixar para trás a visão

que se tornou hegemônica na crítica especializada, a qual percebia uma divisão

abrupta no conjunto da obra, opondo dialeticamente as partes e utilizando

como divisor de águas o romance Memórias póstumas de Brás Cubas, o qual

apresenta o verdadeiro e valoroso Machado de Assis e enterra de vez no

passado os escritos ingênuos e romanescos do “Machadinho”. Ao contrário

dessa visão excludente, necessitamos ratificar a ideia de uma unidade estrutural

na obra, que se define por um projeto coeso e coerente de desconstrução irônica

do modelo narrativo vigente até aquele momento em nome de uma construção

madura, sólida e duradoura das letras nacionais.

A visão tradicional, além de apresentar algumas fragilidades para a

defesa da sua tese, pode ainda trazer consequências altamente negativas para a

formação do leitor machadiano. A primeira de suas fragilidades está na visão

simplista da crítica biográfica, que deseja reduzir toda a complexidade do

universo das letras em Machado de Assis – que vai desde formação pessoal

como um intelectual autodidata e leitor voraz de literatura ao seu desejo de

elaborar um projeto estético completamente inovador, que concilie a

peculiaridade social brasileira ao universo geral da tragicomédia humana – a

um ou outro episódio, os quais comumente pouco ou nada têm a ver com o

universo literário. Essa busca pela epifania machadiana desconsidera a

possibilidade de uma metamorfose permanente em um artista inquieto,

múltiplo e intenso, que cria singularidades específicas a cada romance sem

24 Ibidem.

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perder o fio condutor que une sua obra se ponta a ponta. Sendo assim, não

houve um momento único de quebra na obra de Machado de Assis, mas a

quebra era o princípio permanente da eterna busca, que fica mais do que

evidente no jogo de narração e meta-narração promovido pelo escritor de

maneira recorrente em toda a sua obra.

Outra fragilidade da visão crítica tradicional, que rotula a obra

machadiana, é que o próprio escritor jamais se filiou a qualquer escola ou

corrente literária, nem antes nem depois de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Dessa maneira, rotular Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Garcia como

românticos seria uma completa leviandade por parte da crítica, não apenas por

não contar com o engajamento entusiasta do escritor, mas também porque sua

estrutura de composição não se enquadra no plano ideológico-formal

hegemônico no romantismo brasileiro, como discutiremos mais adiante. O

rótulo consegue ficar ainda pior quando vem acompanhado de uma valoração

pejorativa, a qual associa o estilo a uma qualidade inferior. Nesse sentido,

aquilo que poderia ser visto apenas como simples uma questão de opinião gera

uma consequência altamente perigosa para a formação do leitor e, por extensão,

para o entendimento da obra machadiana.

Quando a crítica especializada parte a obra do escritor e desqualifica

uma das partes em detrimento da outra, está condenando a primeira delas à

não leitura e, por conseguinte, ao alheamento do leitor. Levando-se em conta

que essa visão crítica se reproduz nos meios escolares, os futuros leitores serão

formados igualmente na lógica da exclusão, o que, por sua vez, condenará esses

textos ao mais absoluto esquecimento, como se não fizessem parte do conjunto

da obra do escritor. Sendo assim, o reconhecimento da unidade da obra não é

apenas uma questão de ponto de vista, mas uma necessidade para a formação

de um leitor autônomo. A análise difusa dos críticos do passado é até

justificável pelas difíceis condições de acesso às obras, que impossibilitavam a

reunião de um corpus mais completo. No entanto, com todo o avanço em

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termos de editoração e de divulgação – inclusive por mídias virtuais – dos

textos literários nos dias de hoje, nada justifica que todo um bloco enorme da

produção literária de um artista seja deixado de lado como se em nada

dialogasse com aqueles mais recorrentes, ou pior, como se nem pertencessem ao

mesmo criador.

Assim sendo, não poderíamos afirmar que fomos imparciais na

apresentação que fizemos das principais linhas defendidas pela crítica

especializada machadiana no que se referem à classificação dos primeiros

quatro romances. Muito pelo contrário, é justamente porque acreditamos que

tais romances nem se enquadram no romantismo nem constituem um conjunto

à parte de qualidade inferior na obra que optamos por focar nossa análise

apenas neles, para, quem sabe, colaborar com o processo de resgate desses

textos que a crítica tradicional prefere abandonar no esquecimento.

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3. O contexto da produção romanesca brasileira do século XIX.

Não é possível dimensionar a revolução estética machadiana – pautada

na desconstrução dos elementos característicos da produção romanesca vigente

no Brasil de seu tempo e no estabelecimento de novas bases para a nossa

literatura – sem compreender o universo no qual ele estava inserido. O contexto

de análise para os romances produzidos pelo autor na década de 1870 são os

momentos anteriores a esse período e não as décadas seguintes. Portanto, os

primeiros romances de Machado de Assis não podem ser analisados a partir do

que se vê em Memórias póstumas de Brás Cubas, mas sim daquilo que se via antes

de eles serem publicados. Regina Zilberman (1989) denuncia esse equívoco da

crítica, que tende a analisar a obra machadiana de trás para frente. Com isso, o

olhar do interprete distorce os elementos textuais e não é capaz de identificar as

inovações que foram aplicadas àquelas formas. Se os críticos partissem da

máxima de que “cada obra pertence a seu tempo”, como afirmou o próprio

escritor em Helena, os romances da juventude não seriam tão marginalizados e,

quem sabe, fosse possível reconhecer que em Ressurreição já havia sido

inaugurada uma nova fase para a nossa prosa de ficção, justamente por

conceber uma lógica de composição radicalmente oposta ao que se praticava no

romantismo de então.

Em primeiro lugar, é preciso entender que a oposição que

tradicionalmente é feita entre romantismo e realismo pode ser mal

compreendida no âmbito da ficção narrativa do romance, se interpretarmos que

este se baseia no real e aquele na construção do irreal. Ian Watt (1990) afirma

que a popularização do romance se deve à sua base realista. Em oposição aos

modelos clássicos, como a epopéia, que trabalhava com personagens símbolos

de algo maior e abstrato, o romance trabalha com o homem humano individual,

que tem nome e sobrenome. O espaço do romance é o espaço tal qual o leitor

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vivencia no seu cotidiano. É isso que Watt chama de realismo formal. Ou seja, o

romance romântico lida fundamentalmente com a realidade, ainda que a

idealize.

O método narrativo pelo qual o romance incorpora essa visão

circunstancial da vida pode ser chamado de realismo formal; formal

porque aqui o termo “realismo” não se refere a nenhuma doutrina ou

propósito literário específico, mas apenas a um conjunto de

procedimentos narrativos que se encontram tão comumente no romance

e tão raramente em outros gêneros literários que podem ser

considerados típicos dessa forma. Na verdade, o realismo formal é a

expressão narrativa de uma premissa (...), ou convenção básica, de que o

romance constitui um relato completo e autêntico da experiência

humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da

história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares

das épocas e locais de suas ações – detalhes que são apresentados

através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é

comum em outras formas literárias.25

José de Alencar – o maior dentre os nossos ficcionistas românticos – é

muito claro ao dizer que o escritor deve ser fiel ao cenário que pretende retratar.

Antecipa possíveis críticas que pudesse vir a receber por inserir muitos

elementos da cultura estrangeira em seu romance. Justifica-se, então, afirmando

que não se trata de uma opção ideológica sua, mas de um princípio de

fidelidade para com o contexto retratado.

Tachar estes livros de confeição estrangeira, é, revelem os críticos, não

conhecer a fisionomia da sociedade fluminense, que aí está a faceirar-se

25 WATT, Ian, 1990, p. 31.

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pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a algemia universal,

que é a língua do progresso, jargão erriçado de termos franceses,

ingleses, italianos e agora alemães.

Como se há de tirar a fotografia desta sociedade, sem lhe copiar as

feições? Querem os tais arqueólogos literários, que se deite sobre a

realidade uma crosta de classismo, como se faz com os monumentos e

quadros para dar-lhes o tom e o merecimento do antigo?26

Em uma análise minuciosa e riquíssima na pesquisa de fontes

primárias, Flora Süssekind (2006) esboça o processo de constituição do narrador

de ficção na prosa romântica brasileira e algumas de suas transformações

históricas. Como herdeiro dos cronistas do século XVI, bem como da postura

dos naturalistas, que tinham por objetivo retratar os aspectos naturais de uma

terra exótica na tentativa de elaborar uma espécie de guia de viagens, o

narrador da ficção narrativa do século XIX adota nos anos 30/40 uma postura

de cartógrafo e paisagista, para, mais tarde, nos anos 60/70, desenvolver

também uma prática de instrutor do leitor, historiador e cronista de costumes.

A prosa de ficção dos anos 30 e 40 – do período de esforço de

consolidação monárquica e afirmação político-literária de uma

nacionalidade coesa pelas elites burocráticas e senhoriais – parece

precisar exatamente do olhar armado do naturalista para um

“abrasileiramento” de cenários e para a tentativa de traçar um roteiro

seguro que ligue materiais a rigor heterogêneos como a técnica do

folhetim, a trama da novela histórica ou do melodrama, paisagens locais

singulares e situações exemplares, com as quais ia se construindo à

época.27

26 ALENCAR, José de, 1969, p. 699.

27 SÜSSEKIND, Flora, 2006, p. 123.

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Karin Volobuef (1999) caracteriza o romance urbano do romantismo

brasileiro – inexoravelmente ambientado da Corte do Rio de Janeiro, criando

uma espécie de distinção entre capital e interior do país – como uma espécie de

guia topográfico para o leitor, tamanho o grau de detalhamento dos espaços da

cidade.

Um dos emblemas do romance urbano é a topografia do Rio de Janeiro.

Ruas, lojas, praças, paisagens, bairros etc. são mencionados com

frequência e descritos em detalhes por diversos escritores. Um leitor

pode tomar esses livros na mão e, percorrendo a cidade, apontar os

lugares em que se deu esse ou aquele evento da vida de tal ou qual

personagem. Essa representação – de fidelidade acentuada – do

Corcovado, Passeio Público, Catete, Rua do Ouvidor, Laranjeiras, Morro

de Santa Teresa, além de muitos e muitos outros, age no sentido de

conferir aos textos um acentuado caráter de verossimilhança.

Nesse ambiente tão palpável e, para muitos leitores, conhecido do dia-a-

dia, (sendo o palco de suas próprias vidas), movem-se os personagens

que em seus afazeres, diversões e formas de convívio social fornecem

um panorama da sociedade carioca da época. As pinceladas do quadro

ainda adquirem maior verossimilhança na medida em que reproduzem

os hábitos e costumes dos habitantes da capital, sua mentalidade,

sistema hierárquico, forma de vestir, horários das refeições etc. 28

Ratificando o ponto de vista defendido por Ian Watt de que a base do

romance é a realidade e que o romantismo parte dela, ainda que a idealize,

Flora Süssekind demonstra que, em certos momentos, o enfoque preferencial

dado a um determinado aspecto paisagístico pelos nossos escritores românticos

28 VOLOBUEF, Karin, 1999, p. 182-3.

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foi usado como forma de ocultar outro aspecto negativo que não se coadunasse

com o projeto de idealização dos elementos nacionais.

De modo quase programático afirmava-se então uma linha direta com a

Natureza, um primado inconteste da observação das peculiaridades

locais – com a finalidade de se produzirem obras “brasileiras” e

“originais” –, mas ao mesmo tempo era preciso “não ver” a paisagem.

Porque sua razão e seu desenho já estavam pré-dados. E, mesmo que se

afirmasse fazer “cópia direta”, olhar com os próprios olhos, para figurar

um Brasil que se desejava original, paradisiacamente singular e sem

divisões sociais, raciais ou regionais de monta ou que não pudessem ser

classificadas, etiquetadas, homogeneizadas pela perspectiva una do

“viajante naturalista”, era preciso fechar os olhos ou fazer ouvidos de

mercador para os livros europeus nas estantes e bibliotecas públicas,

para uma população com 70% de analfabetos, para a influência

econômica inglesa, para os leilões de escravos, rebeliões e separatismos,

para o provo livre sem ocupação possível, para os trajes europeus de lã

da senhora de Valença em pleno sol escaldante e mais e mais.29

Na perspectiva de Ubiratan Machado (2001) essa idealização dos

aspectos que compõe a realidade brasileira, por meio da hipertrofia imagético-

simbólica dos elementos que compõem a chamada “cor local”, acaba sendo,

pois, um mecanismo de compensação e afirmação de identidade, destacando

sua grandeza, apesar dos grandes problemas sociais. De fato, a herança dessa

concepção permanece viva até os dias de hoje em nossa cultura, ratificando a

postura alienada do “poderia ser pior”. No Rio de Janeiro, por exemplo, um

bom final de semana com sol e praia faz com que o carioca deixe de lado todos

os problemas e dramas recorrentes do seu cotidiano – Claro, pior mesmo seria

29 Idem, p. 33.

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não morar nesta Cidade Maravilhosa! Pensa o carioca, ainda que quase nunca

vá à praia.

(...) o desejo de compreender o país e de exercer uma ação social

expunha uma epiderme sensibilíssima a críticas, sobretudo de

estrangeiros, e a tudo o que se referisse ao antigo colonizador. Numa

espécie de compensação a essa insegurança, a realidade brasileira era

idealizada numa visão idílica (...). No fundo, não passava de necessidade

de afirmação da nacionalidade, ainda muito recente. O brasileiro era

desconfiado e melindroso, disposto a reagir com aspereza a qualquer

farpa que lhe ferisse o sentimento patriótico. Se provocado, explodiria

na primeira ocasião.30

Definindo as especificidades do romantismo brasileiro, Karin Volobuef

afirma que – apesar das dificuldades de caracterização, devido o fato de os

nossos escritores não se organizarem como um grupo ou movimento coeso, que

discutisse permanentemente o seu fazer e organizasse um programa literário –

eles tinham ciência da necessidade de fundar as bases de construção de uma

identidade nacional. Para ela, os autores conceberam que “o romance romântico

deveria funcionar como depositário do registro de toda a nação” e que “seu

papel compreendia não apenas o entretenimento e a moralização, como

também a instrução”31. Para a antropóloga Lilian Moritz Schwarcz (1998), “o

romantismo no Brasil não foi apenas um projeto estético, mas também um

movimento cultural e político, profundamente ligado ao nacionalismo”32. Sendo

assim, ele foi um importante veículo e instrumento de propagação da ideologia

nacionalista de um Brasil recém-independente.

30 MACHADO, Ubiratan, 2001, p.20.

31 VOLOBUEF, Karin, 1999, p. 181.

32 SCHWARCZ, Lilian Moritz, 1998, p. 139.

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O romance brasileiro da época romântica tem como fundamental

característica o anelo por fornecer um painel amplo e diversificado do

Brasil, abarcando o âmbito da história, da geografia e do elemento

humano. Conforme A. Candido (1981, p. 113), abrangeu “cidade, campo,

selva; ou, por outra, vida urbana, vida rural, vida primitiva”. Sua função

torna-se a de constituir o Brasil como nação, delimitando seu espaço

físico e cultural. Mais do que isso, o romance romântico visou acender

no peito de seus leitores um sentimento de orgulho nacional,

imprimindo-lhe a ideia de pertencer a um todo rico, multifacetado e

valoroso.33

O tratamento dado à natureza no nosso romantismo também é bastante

singular. Mais do que construir uma forma de representação na qual o diálogo

entre homem e natureza fosse estabelecido por meio do reflexo dos sentimentos

de um na composição imagética da outra, o romantismo brasileiro encontrou na

sua natureza esplendorosa os elementos basilares a partir dos quais pudesse

valorizar o homem. Nesse sentido, não é necessariamente a natureza que reflete

o estado emocional do homem, mas é ele que aparece transfigurado em

natureza. Vale lembrar como José de Alencar caracteriza suas heroínas: Iracema

como a virgem dos lábios e “mel”, Aurélia Camargo como uma “estrela” do céu

fluminense etc. Fica evidente, portanto, que a necessidade de formação da

identidade nacional manifestou-se na exaltação da pátria por meio dos

elementos da natureza, que, por sua vez, legou para o romance uma espécie de

obrigatoriedade de pintura dos quadros da “cor local”.

No tocante à descrição da Natureza no romantismo brasileiro, podemos

concluir que o refrão constante é das páginas fartamente cobertas de

33 Idem, p. 196.

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imagens exuberantes, majestosas, ofuscantes, em que florestas, rios,

planícies e montanhas banham-se no esplendor do sol tropical. São

imagens destinadas a fazer bater no peito do leitor um coração cheio de

orgulho pela sua pátria e a suscitar em seu cérebro a forte confiança no

brilhante futuro da nova nação. Se, por um lado, exprimem aspectos

individuais, na medida em que estão carregadas dessa exultante

mensagem nacionalista; por outro, tornam o indivíduo dispensável, no

sentido de que se retraem para longe do lusco-fusco da subjetividade

impalpável, interior, insondável. A Natureza aqui é, antes de mais nada,

um aspecto do mundo exterior, objetivo, concreto, palpável.34

O amálgama dessa relação homem-natureza no romantismo brasileiro

atinge o máximo da sua representação na escolha da figura simbólica do índio

como herói nacional. No entanto, vale lembrar que se trata do índio histórico do

passado fundador do Brasil e não do índio contemporâneo dos autores do

século XIX. José de Alencar, por exemplo, embora fosse tremendamente

cuidadoso no estudo das histórias e lendas indígenas, a fim de pintar os

cenários com maior grau de “realismo”, localizou suas obras no passado

histórico e dentro das duas primeiras fases, que, segundo ele, compunham seu

projeto de literatura nacional – considerando-se o agrupamento talvez mais por

afinidade temática do que por uma questão cronológica.

A primitiva, que se pode chamar de aborígene, são as lendas e mitos da

terra selvagem conquistada, são as tradições que embalaram a infância

do povo, e ele escutava como o filho a quem a mãe acalenta no berço

com as canções da pátria, que abandonou.

Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo,

para aqueles que venceram na terra da pátria e mãe fecunda – alma

mater, e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.

34 Idem, p. 240.

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O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo invasor

com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos

eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo

esplêndido.

(...)

É a gestão lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para

continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor. Esse

período colonial terminou com a Independência.

A ele pertencem O Guarani e As Minas de Prata. Há aí muito boa messe a

colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como

se propôs a ensiná-lo, a nós beócios, um escritor português.35

Contrariando a todo esse panorama que ambientou a ficção narrativa

do século XIX até aquele momento, Machado de Assis surge com um projeto de

renovação das letras nacionais. No que se refere ao indianismo, por exemplo, o

autor é claríssimo ao demonstrar a artificialidade de um projeto que tenta forçar

a importância da influência cultural indígena para a formação daqueles homens

que tiveram uma formação basicamente moldada pelos modelos europeus.

Quando publicou o ensaio “Instinto de Nacionalidade”, em 1873, Machado de

Assis – que, segundo a crítica tradicional, estaria alinhado à ideologia romântica

– ataca os fundamentos mais característicos do romantismo brasileiro: o

indianismo e a representação da “cor local”. Apesar de reconhecer que “tudo é

matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos de

que ele se compõe”, o autor demonstra que a brasilidade não está

necessariamente naquilo que se representa por meio da pintura dos quadros

pitorescos do cotidiano local, mas sim na elaboração de um olhar que pode se

dirigir a todo e qualquer ponto no tempo e no espaço.

35 ALENCAR, José de. “Benção Paterna”, 1979, p. 697.

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É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano,

nem dele recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as

tribos vencidas os títulos da nossa personalidade literária. Mas, se isto é

verdade, não é menos certo que tudo é matéria de poesia, uma vez que

traga as condições do belo ou os elementos de que ele se compõe. Os que

(...) negam tudo aos primeiros povos do país, esses podem logicamente

excluí-los da poesia contemporânea. Parece-me, entretanto, que depois

das memórias que a este respeito escreveram os Srs. Magalhães e

Gonçalves Dias, não é lícito arredar o elemento indiano da nossa

aplicação intelectual. Erro seria constituí-lo um exclusivo patrimônio da

literatura brasileira; erro igual fora certamente a sua absoluta

exclusão.(...)

(...)

Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da

literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como

universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de

inspiração. Os costumes civilizados, ou já do tempo colonial, ou já do

tempo de hoje, igualmente oferecem à imaginação boa e larga matéria de

estudo. Não menos que eles, os convida a natureza americana, cuja

magnificência e esplendor naturalmente desafiam a poetas e prosadores.

O romance, sobretudo, apoderou-se de todos esses elementos de

invenção, a que devemos, entre outros, os livros do Sr. Bernardo de

Guimarães, que brilhante e ingenuamente nos pinta os costumes da

região onde nasceu, J. de Alencar, Macedo, Sylvio Dinarte (Escragnolle

Tounay), Franklin Távora e alguns mais.

Devo acrescentar que neste ponto manifesta-se às vezes uma opinião,

que tenho por errônea: é a que só reconhece espírito nacional nas obras

que tratam de assunto local, doutrina que, a ser exata, limitaria muito os

cabedais da nossa literatura. Gonçalves Dias por exemplo, com poesias

próprias seria admitido no panteão nacional; se excetuarmos Os

Timbiras, os outros poemas americanos, e certo número de composições,

pertencem os seus versos pelo assunto a toda a mais humanidade, cujas

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aspirações, entusiasmo, fraquezas e dores geralmente cantam; e excluo

daí as belas Sextilhas de Frei Antão, que essas pertencem unicamente à

literatura portuguesa, não só pelo assunto que o poeta extraiu dos

historiadores lusitanos, mas até pelo estilo que ele habilmente fez

antiquado. O mesmo acontece com os seus dramas, nenhum dos quais

tem por teatro o Brasil. Iria longe se tivesse de citar outros exemplos de

casa, e não acabaria se fosse necessário recorrer aos estranhos. Mas, pois

que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei

simplesmente se o autor do Song of Hiawatha não é o mesmo autor da

Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor

admirável é; e perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a

Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o

território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um

gênio universal, um poeta essencialmente inglês.

Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente,

deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua

região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a

empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo

sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país,

ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (...)36

O reflexo dessa postura estética machadiana, na qual o universal e o local

coexistiam numa tensão harmônica dentro da obra, é observado na crítica dos

seus textos no momento de cada publicação. O afastamento do estilo de

representação romanesca baseada na pintura da “cor local” rendeu a Machado

de Assis a acusação de não ser brasileiro. Fica claro, portanto, que, naquele

momento, os críticos não viam tamanha afinidade do escritor com os princípios

do romantismo. Aliás, conforme sugere Ubiratan Machado (2003), era a crítica

36 ASSIS, Machado de. “Instinto de Nacionalidade”, 1946, p. 136-9.

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quem mudava seu ponto de vista, enquanto a obra continuava seguindo um

mesmo princípio.

(...) sem que a maneira de Machado se alterasse radicalmente, a crítica ia

modificando a abordagem da obra, adotando, em alguns casos, pontos

de vista opostos aos defendidos até certa época, sem que estes

deixassem de ter seus adeptos. Assim, atenuou-se a acusação da falta de

brasilidade de sua obra, seja no sentimento íntimo como no desenho dos

caracteres, e impôs-se a tendência de desconsiderá-lo um analista fiel da

psicologia dos brasileiros do Segundo Reinado. O que não impediu que

alguns críticos, em pleno século XX, o acusassem de não ser brasileiro.37

Analisando o contexto literário do século XIX, Luís Costa Lima (2007)

fala sobre a forma como a narrativa de Machado de Assis consegue romper com

o controle moral da sociedade imposto à produção ficcional. O inventário

tradicional da forma canonizada pelo romantismo pressupunha a veiculação

das ideologias e dos códigos de conduta, segundo os quais, a narrativa deveria

encenar situações que não representassem um “mal exemplo”. Assim,

construía-se muito mais uma falsa realidade desejada do que se reconhecia na

ficção narrativa uma livre criação do imaginário, que, justamente por essa

condição, poderia se afastar desses arquétipos. Machado de Assis cria, portanto,

personagens e situações que ironizam esses valores éticos e morais vigentes, e,

ironicamente, faz uma narrativa em estrutura de palimpsesto para dissimular

sua crítica mordaz.

Machado intui que sua sociedade interdita o exercício da ficção a sério

para, a partir daí, realizar uma ficção extremamente além da que se

constituiria a partir de um lastro perspectivo e documental. O

37 MACHADO, Ubiratan, 2003, p. 16.

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condicionamento causado pela ausência de público, pela presença de

um Estado forçosamente clientelístico, além do culto da observação e do

documento que vimos marcar nossa tradição desde o romantismo,

provocavam uma ficção que ou fosse leve e superficial ou procurasse

esconder seu caráter de ficção. Até hoje, por falta de interesse pela

reflexão e pela dificuldade de relacionar o exame histórico-social à

configuração da linguagem, nossa cultura destila um verdadeiro veto à

ficção. Daí a tranquilidade de sobrevivência dos mecanismos de

controle, a voga do romance de costumes, da poesia, que se justifica por

sua eloquência ou fluente sentimentalidade ou pela indignação de seus

bons sentimentos e, mais atualmente, do romance-reportagem. O

escritor se prende à realidade – externa dos fatos ou interna dos

sentimentos – para esconder o estigma da ficção.38

Para Flora Süssekind, o narrador machadiano é o responsável pela

corrosão daquela primeira figuração de narrador que se instaurou no

romantismo brasileiro. Sua obra funda um novo paradigma na nossa literatura,

desconstruindo o ponto de vista fixo e convidando o leitor a sair da condição

passiva em relação ao texto e tornar-se um crítico da narrativa.

(...) a recusa das máscaras de retratista ou chargista é também uma

rejeição de um papel demasiado estático para o leitor. Instrutor,

cartógrafo, paisagista, retratista: tais funções estão todas ligadas ao

mapeamento exemplar ou territorial do país e a um compromisso de

“exibi-lo” depois e ilustrar um leitor posto em sossego em redes e

varandas. Sugerindo ao leitor que se mova (...), o narrador machadiano

recusa atividades paradidáticas e obsessões ilustradas e amplia seus

roteiros possíveis, sua própria mobilidade. Assim como a de seus

38 LIMA, Luís Costa, 2007, p. 208.

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personagens, que se recusa a etiquetar previamente e separar em tipos

de fácil classificação.39

O projeto estético machadiano, portanto, constrói uma narrativa que

está muito longe de se afinar com o modelo formal dominante na ficção

romanesca de seu tempo. O autor, desde muito jovem, foi capaz de perceber

que o papel da literatura é, sobretudo, representar os dramas inerentes à

condição humana e trazer o leitor à reflexão crítica da existência. Não se

consegue isso por meio de uma literatura doutrinária e dogmática que entenda

o leitor apenas como um ser passivo diante das verdades incontestáveis

expostas pela obra. A Machado de Assis, então, interessava a transformação da

literatura brasileira e não a reprodução dos modelos vigentes. Em 1858, com

apenas 19 anos de idade, o jovem crítico já era capaz de reconhecer essa

necessidade de transformação:

Uma revolução literária e política fazia-se necessária. O país não podia

continuar a viver debaixo daquela escravidão que o podia aniquilar.

(...)

Mas após o Fiat político, devia vir o Fiat literário, a emancipação do

mundo intelectual, vacilante sob a ação influente de uma literatura

ultramarina. Mas como? é mais fácil regenerar uma nação, que uma

literatura. Para esta não há gritos de Ipiranga; as modificações operam-

se vagarosamente; e não se chega a um só momento a um resultado.40

Nessa e em outras passagens, nas quais podemos compreender o olhar

crítico de Machado de Assis, encontraremos os princípios que fundamentarão

39 SÜSSEKIND, Flora, 2006, p. 269-70.

40 ASSIS, Machado. “O passado, o presente e o futuro da literatura”, 1959, p. 787.

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as bases de seu projeto estético e que serão aplicados, obviamente, a todos os

seus romances, nos quais o narrador acaba adotando também a postura de

crítico da narrativa. É com base na aplicação desses princípios nos seus

romances da década de 1870 que defendemos a ideia de que, em nenhum

momento, Machado de Assis aderiu ao modelo de composição dos ficcionistas

do romantismo brasileiro.

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4. Machado de Assis, o crítico: “Tudo pode servir a definir a mesma pessoa.”41

A leitura feita pela maior parte da crítica machadiana em relação às suas

primeiras composições ficcionais romanescas aponta uma série de motivos para

considerá-las inferiores àquelas que seguem a publicação das Memórias póstumas

de Brás Cubas (1881). Muito embora nenhum outro romance da chamada

segunda fase tenha repetido as ousadias formais do livro do “defunto-autor”

eles são, certamente, diferentes daqueles da primeira, assim como são,

obviamente, diferentes entre si. Afinal, cada romance, ao estabelecer o seu

universo ficcional particular, cria condições específicas para a aplicação de

certos recursos formais singularmente que foram por ele e para ele inventados.

Dessa maneira, na obra de um grande escritor, embora certamente haja uma

coerência interna que possa caracterizá-la como um todo, cada texto tem o seu

próprio estatuto, tornando-o, acima de tudo, ímpar: é a tensão harmônica da

diversidade na unidade.

No entanto, não é essa a visão hegemônica da crítica, que prefere adotar

uma mesma metodologia e aplicá-la a toda e qualquer obra, sem considerar as

suas especificidades, reafirmando, assim, antigos preconceitos analíticos. Em

oposição a essa postura, a primeira questão que já poderia ser formulada é a

seguinte: o método comparativo entre as obras de um mesmo autor é eficiente

em que medida? Por exemplo, se é verdade que A mão e a luva (1874), Helena

(1876) e Iaiá Garcia (1878), “comparados à psicologia de Ressurreição [1872],

41

Trecho retirado da “Advertência de 1907”, quando A mão e a luva foi reeditado. Nele o autor afirma

não lhe alterou nada; apenas emendou erros tipográficos, fez correções de ortografia, e eliminou cerca

de quinze linhas, respeitando, assim, ao máximo a maneira como saiu em 1874. Em 1907, o então já

maduro e consagrado escritor reconhecia as diferenças entre o que ele fora e o quanto mudara com o

passar dos anos, mas, em nenhum momento, reconhece em seu eu de outrora o antagonista do eu de

agora: “Os trinta e tantos anos decorridos do aparecimento desta novela à reimpressão que ora se faz

parece que explicam as diferenças de composição e de maneira do autor. Se este não lhe daria agora a

mesma feição, é certo que lha deu outrora, e, ao cabo, tudo serve para definir a mesma pessoa.” (p.17).

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marcam um retrocesso”42 na obra do autor, por que não se pode dizer o mesmo

a respeito de Quincas Borba (1894), Dom Casmurro (1900), Esaú e Jacó (1904) e

Memorial de Aires (1908), já que em nenhum deles seus narradores tiveram a

condição privilegiada de distanciamento crítico como a do defunto-autor Brás

Cubas? Não parece ser essa a análise mais justa sobre o escritor, pois, além de

atribuir-lhe uma profunda incoerência, não o reconhece como o autor de um

projeto consciente de literatura, que vai passo a passo experimentando e

moldando sua forma de composição.

Desde o início das suas incursões no mundo da literatura, Machado de

Assis, já demonstrava um tipo de discernimento que, mesmo que não tivesse

consciência plena do que fazer ou de como fazer, certamente, já lhe permitia

entender que não queria e o que não deveria (mais) ser feito. No exercício da

crítica, desde cedo se mostrou não apenas um leitor atento ao que se produzia e

circulava no contexto literário brasileiro, como também tinha clara dimensão da

importância da literatura no desenvolvimento cultural do país. Sua postura

séria e coerente na prática da crítica literária lhe rendeu o reconhecimento da

parte de escritores do quilate de José de Alencar – nosso maior ficcionista

romântico –, que teria reconhecido no jovem Machado de Assis “o primeiro

crítico literário brasileiro”. Alcmeno Bastos (1997) narra o episódio da seguinte

maneira:

Castro Alves chegou ao Rio de Janeiro em meados de fevereiro de 1868.

Trazia uma carta de apresentação para José de Alencar, assinada por

Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha, parlamentar baiano que fora

amigo do pai do romancista. O encontro aconteceu na casa de Alencar,

na Tijuca, do dia 17 do mesmo mês. Castro Alves leu alguns de seus

poemas e o drama Gonzaga ou a Revolução de Minas, que pretendia ver

encenado na Corte, com a atriz portuguesa Eugênia Câmara no papel de

42

MERQUIOR, José Guilherme, 1996, p. 217.

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Maria Dorotéia. Em seguida, deveria ir para São Paulo, onde retomaria

seu curso de Direito, iniciado no Recife quatro anos antes.

Após ouvir o jovem poeta baiano, Alencar escreveu uma carta para

Machado de Assis, datada de 18 de fevereiro e publicada no jornal Diário

Mercantil do dia 22. Nesta carta, Alencar relatava a impressão favorável

que lhe haviam causado os versos de Castro Alves e repassava a

Machado a responsabilidade de introduzir o autor do Gonzaga no meio

intelectual da Corte. A razão, segundo Alencar, era ser Machado o mais

indicado a cumprir o papel de “Virgílio do jovem Dante”, pois era o

“único dos nossos modernos escritores” a dedicar-se à crítica literária,

atribuindo-lhe ainda a condição de “primeiro crítico brasileiro”.43

No texto “O passado, o presente e o futuro da literatura” 44, datado de 9 e

23 de abril de 1858, o jovem crítico – então com apenas 19 anos – afirma que o

desenvolvimento do romance no Brasil ainda precisava percorrer um longo

caminho até poder se colocar ao lado das grandes obras da literatura universal:

Trataremos de três formas literárias essenciais: – o romance, o drama e a

poesia.

Ninguém que for imparcial afirmará a existência das duas primeiras

entre nós; pelo menos, a existência animada, a existência que vive, a

existência que se desenvolve fecunda e progressiva. Raros, bem raros, se

têm dado ao estudo de uma forma tão importante como o romance;

apesar mesmo da convivência perniciosa com os romances franceses,

que discute, aplaude e endeusa a nossa mocidade, tão pouco

escrupulosa de ferir as suscetibilidades nacionais. (p.788)

43

BASTOS, Alcmeno. “Encontro no Rio: a conspiração do talento”. In: _____ (org.), 1997, p.7.

44 In: ASSIS, Machado de. Obras completas. Vol.3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1959, p.788.

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É muito importante lembrar o contexto em que foi escrito tal texto para

que se possa dimensionar bem o quadro da literatura brasileira da época. Em

1858, já haviam sido publicadas algumas obras importantíssimas, que mais

tarde comporiam o cânone do nosso romantismo: A moreninha (1844), de

Joaquim Manuel de Macedo, Memórias de um sargento de milícias (1854), de

Manuel Antônio de Almeida, Cinco minutos (1856) e O guarani (1857), ambos de

José de Alencar, entre outros. Portanto, ainda que fosse capaz de reconhecer a

importância e a qualidade de algumas poucas obras, Machado de Assis já

assinalava que era preciso desenvolver ainda mais esse gênero ficcional

narrativo nas letras brasileiras. Ou seja, era necessário que um novo paradigma

fosse criado para o nosso romance. Vale lembrar que, tendo dito isso em 1858,

só foi publicar o seu primeiro romance depois de mais de uma década, em 1872.

Logo, não é difícil perceber que o autor não se lançou a essa empreitada

ficcional de uma maneira impulsiva e sem qualquer tipo de projeto estético

minimamente definido.

Em 8 de outubro de 1865, aos 26 anos de idade, Machado de Assis

publicava no jornal Diário do Rio de Janeiro um artigo contundente intitulado

“Ideal do crítico”, no qual revela seu ponto de vista em relação ao exercício da

crítica, que, para alguns era “uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente

fácil a tarefa do legislador”. No entanto, seguiu ele, “para a representação

literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais

que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária

que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos

incompetentes”45. Com palavras fortes, Machado denuncia a ausência de

método – “Crítica é análise, – a crítica que não analisa é a mais cômoda, mas

não pode pretender ser fecunda”46 –; a superficialidade das análises – “não

basta uma leitura superficial dos autores, nem a simples reprodução das

45

ASSIS, Machado de. “Ideal do crítico”. In: _____ . Crítica literária, 1946, p. 11.

46 Idem, p. 13.

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impressões de um momento”47 –; a falta de convicção – “Não compreendo o

crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condições

principais para exercer a crítica”48 – e o comprometimento dos críticos do seu

tempo – “O crítico deve ser independente, – independente em tudo e de tudo, –

independente da vaidade dos autores e da vaidade própria”49.

Contudo, o trecho de “Ideal do crítico” que nos pareceu mais relevante

para a análise que empreendemos dos primeiros romances machadianos é

aquele em que se observa negativamente a adoção do princípio maniqueísta

pelo crítico. Ou seja, o radicalismo que faz com que o crítico favorável ao

romantismo desgoste do realismo e vice-versa, não reconhecendo que ambos

podem produzir grandes obras. É interessante observar que esse mesmo

princípio dialético que Machado de Assis cobra dos críticos, aplica anos depois

na sua própria composição estética.

É preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças

de escola: se as preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre

não condenar, só por isso, as obras primas que a tradição clássica nos

legou, nem as obras medianas que a musa moderna inspira; do mesmo

modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras do s românticos e

dos realistas, tão inteira justiça, como estes devem fazer às boas obras

daqueles. Pode haver um homem de bem no corpo de um maometano,

pode haver uma verdade na obra de um realista. (...) A crítica, que, para

não ter o trabalho de meditar e aprofundar, se limitasse a uma

proscrição em massa, seria a crítica de destruição e aniquilamento.50

47

Ibidem.

48 Idem, p. 13-4.

49 Idem, p. 15.

50 Idem, p. 16.

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É realmente notável que o jogo dialético, que mais tarde orientará a própria

feição da sua estética, tenha desde sempre chamado a atenção de Machado de

Assis. Em A Marmota, Rio, nº 925, 12/02/1858, ainda com 18 anos, publica um

texto no qual provoca o leitor a questionar qual seria o pior cego, aquele que o é

desde o seu nascimento ou aquele que perdeu a visão. A essa provocação

responde primeiramente alguém que assina com o pseudônimo de Jq. Sr. no nº

929, de 26/02/1858, p.1, posicionando-se de maneira a considerar que o cego

que perde a visão é o mais desgraçado porque sofreu uma privação. O jovem

Machado de Assis entra, enfim na discussão, no exemplar de nº 931, do dia

05/03/1858, assinando como “As.”, iniciando aquilo que se tornará uma

polêmica com Jr. Sr. O texto é interessante, pois demonstra que Machado de

Assis, apesar da pouca idade, entra na discussão de forma madura e dialética.

Ao contrário do que será a sua postura na maturidade, aqui o autor tem uma

crítica mais direta e dura, apesar de querer demonstrar certo polimento e

respeito. No desdobramento dessa polêmica, Machado se posicionará

claramente contrário a adoção de uma perspectiva de entendimento de mundo

que seja a negação radical de uma outra e explicitamente afirma não ser nem

romântico nem realista, mas sim alguém que optou pela tensão harmônica

desses contrários.

Não somos nem espiritualista puro nem materialista; harmonizamos as

doutrinas de ambas as escolas e seguimos assim em ecletismo com o

qual nos damos às mil maravilhas.51

No Diário do Rio de Janeiro, no dia 16 de janeiro de 1866, saiu um artigo no

qual seguiu manifestando sua inquietação com a forma do romance literário

brasileiro, com ênfase em um aspecto que seria, anos depois, um dos principais

51

ASSIS, Machado de. “Os cegos: tréplica ao Sr. Jq. Sr.”, A Marmota, Rio, nº 934, 16/03/1858, pp.2-3.

In: MASSA, Jean-Michel (org.). Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC/ Instituto

Nacional do Livro, 1965, p.62.

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elementos trabalhado por ele mesmo em sua própria criação ficcional: o estudo

das paixões humanas, ou o drama de caracteres.

Pelo que diz respeito às letras, o nosso intuito é ver cultivado, pelas

musas brasileiras, o romance literário, o romance que reúne o estudo das

paixões humanas aos toques delicados e originais da poesia – meio

único de fazer com que uma obra de imaginação, zombando do açoite

do tempo, chegue inalterável e pura, aos olhos severos da posteridade.52

No espírito das comemorações do “Ano Nacional Machado de Assis”, a

Revista Bravo!, de setembro de 2008, estampou o autor em sua capa, anunciando

como matéria principal o ensaio de Ariel Kostamn. Nele, o crítico fala a respeito

da insistência machadiana em relação a alguns temas e de como o autor retoma,

na chamada fase madura, assuntos que já tinham sido abordados desde as suas

composições da juventude.

Durante muito tempo, os manuais de literatura apresentavam o autor de

Memórias póstumas de Brás Cubas como um personagem dividido em dois

– justamente antes e depois de Memórias póstumas de Brás Cubas. Antes

estaria o Machado romântico, emulando um estilo do passado e, nele,

forjando as características de uma prosa própria. Depois da revolução de

Memórias póstumas, teria surgido o Machado realista, com pleno domínio

do seu ofício. Os estudos mais recentes sobre o escritor carioca mostram

que a realidade é bem mais complexa. Machado experimenta,

efetivamente, a revolução pela qual passa todo escritor em busca de seu

estilo. Ao longo dessa trajetória, no entanto, ele retorna obsessivamente

aos mesmos temas, que aparecem nas obras de juventude e nas de

maturidade (...). Pode-se dizer, assim, que esses temas seriam suas

52

ASSIS, Machado de. “O culto do dever”. In: _____. Crítica literária, 1946, p.73.

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“obsessões”. Além do diálogo com o leitor e da sátira ao pedantismo, o

ciúme, o dinheiro e o parasitismo da elite estariam entre elas. (p.33)

Kostamn faz ainda um convite ao leitor para que ele próprio compare as

semelhanças entre Ressurreição e Dom Casmurro, apontando “as mórbidas

semelhanças entre o Félix do romance de 1872 e o Bento Santiago do romance

de 1899”53. Além disso, demonstrando a ideia de que tais conexões não são

excessivamente forçadas por essa nova perspectiva crítica, mas sim que esta a

percebe como uma atitude consciente de um Machado que tinha clareza do seu

papel enquanto escritor e, portanto, dos caminhos pelos quais deveria cruzar

sua literatura, Kostamn conclui:

Mais contemporaneamente, a recorrência dos temas vem sendo

entendida como uma busca muito consciente e lúcida do escritor para

encontrar formas capazes de condensar e expressar a complexidade da

sua visão de mundo – daí tantos estudos recentes se debruçarem sobre

suas obsessões. No lugar do gênio, do autor que a certa altura irrompe

como um milagre, as leituras das últimas décadas enfatizam a relação

estreita e fecunda que Machado estabeleceu não só com a tradição

literária, mas também consigo mesmo, ou melhor, com a obra da sua

juventude. Chamando a atenção para a economia interna da obra, o

crítico Silviano Santiago constatou que o processo criativo de Machado

de Assis está profundamente baseado na reelaboração incessante de

certas estruturas estabelecidas desde seus escritos iniciais.54

Seria importante ressaltar que essas conexões entre Ressurreição e Dom

Casmurro não são propriamente uma novidade. A crítica norte-americana Helen

53

KOSTAMN (2008), p. 37.

54 Idem, p.39.

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Caldwell (2002), em seu mais importante trabalho sobre a obra machadiana –

The brazilian Othelo of Machado de Assis –, publicado originalmente em 1960,

dedica um capítulo inteiro – “O Germe” – para estabelecer tais relações. Para

ela, o germe de romance de 1899 estaria em 1872.

Semelhanças superficiais entre este romance [Ressurreição] e Dom

Casmurro não deixam de espantar o leitor. Mas os personagens deste

primeiro romance de Machado, apesar de um pouco rígidos – ou talvez

exatamente por isso – são bem delineados.55

Muitas das “obsessões” do escritor Machado de Assis nasceram da sua

atividade como leitor e crítico. Dentre elas, a encenação do drama de caracteres

dos personagens se constituiu numa tentativa de resgatar aquilo que para ele

seria a condição elementar da narrativa de ficção – a reflexão sobre os

problemas da existência humana – e, ao mesmo tempo, romper com o modelo

romanesco hegemônico em nossas letras, o qual se limitava a ser uma mera

representação de uma trama de ações e simples quadro pitoresco da “cor local”.

Em seu mais famoso ensaio crítico “Notícia da atual literatura brasileira:

instinto de nacionalidade”, publicado na revista O novo mundo (Nova York) em

1873, o ainda jovem Machado, então com 34 anos afirmava o seguinte:

Não faltam a alguns de nossos romancistas qualidades de observação e

de análise, e um estrangeiro não familiar com os nossos costumes achará

muita pagina instrutiva. Do romance puramente de análise, raríssimo

exemplar temos, ou porque a nossa índole não nos chame para aí, ou

porque seja esta casta de obras ainda incompatível com a nossa

adolescência literária.

55

CALDWELL, Helen, 2002, p. 48.

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O romance brasileiro recomenda-se especialmente pelos toques do

sentimento, quadros da natureza e de costumes, e certa viveza de estilo

mui adequada ao espírito do nosso povo. Há em verdade ocasiões em

que essas qualidades parecem sair da sua medida natural, mas em regra

conservam-se estremes de censura, vindo a sair muita coisa interessante,

muita realmente bela. O espetáculo da natureza, quando o assunto o

pede, ocupa notável lugar no romance, e dá páginas animadas e

pitorescas, e não as cito por me não divertir do objeto exclusivo deste

escrito, que é indicar as excelências e os defeitos do conjunto, sem me

demorar em pormenores. Há boas páginas, como digo, e creio até que

um grande amor a este recurso da descrição, excelente, sem dúvida, mas

(como dizem os mestres) de mediano efeito, se não avultam no escritor

outras qualidades essenciais.

Pelo que respeita à análise de paixões e caracteres são muito menos

comuns os exemplos que podem satisfazer à crítica; alguns há, porém,

de merecimento incontestável. Esta é, na verdade, uma das partes mais

difíceis do romance, e ao mesmo tempo das mais superiores.

Naturalmente exige da parte do escritor dotes não vulgares de

observação, que, ainda em literaturas mais adiantadas, não andam a

rodo nem são a partilha do maior número.56

A essa altura da vida, Machado de Assis já havia escrito no ano anterior,

1872, seu primeiro romance, Ressurreição, e na advertência ao leitor anunciava

que não estaria ali realizando o romance de costumes convencional, bem como

abriria mão da representação das ações para privilegiar a encenação do drama

de caracteres dos personagens.

56

ASSIS, Machado de. “Instinto de nacionalidade”. In: Crítica literária. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto

Alegre: W.M. Jackson, 1946, p.142-3.

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Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação o

contraste de dois caracteres; com esses simples elementos busquei o

interesse do livro.57

Quando publicou A mão e a luva, 1874, fez questão de escrever na

advertência da primeira edição que, tal como ocorreu em Ressurreição, a ação ali

apresentada seria igualmente “singelíssima” e que o seu objetivo maior era a

encenação do drama de caracteres.

Convém dizer que o desenho de tais caracteres, – o de Guiomar,

sobretudo, – foi o meu objeto principal, se não exclusivo, servindo-me a

ação apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis. Incompletos

embora, terão eles saído naturais e verdadeiros?58

A respeito de Helena (1876), A.C. Almeida, em artigo publicado no

Pindamonhangabense, no dia 19 de novembro de 1876, elogia o desenho dos

caracteres que Machado de Assis fez no romance, afirmando que, não só a

protagonista não é uma personagem de ficção, mas sim “uma mulher”, o

caráter “mais bem acabado do autor”, como também os outros personagens têm

“pontos de contato com os do mundo real”59.

Os caracteres de Estácio, D. Úrsula, Eugênia, Mendonça e Melquior

estão delineados com firmeza. Esta faculdade possui Machado de Assis:

com dois traços desenha os caracteres. Salvador, por exemplo, aparece-

nos somente num capítulo; não foi preciso mais: a sua fisionomia nunca

57

Ressurreição, p. 54.

58 A mão e a luva, p. 18.

59 In: MACHADO, Ubiratan, 2003, p. 109

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mais esquece. Vicente murmura apenas quatro palavras: sua figura

encrava-se-nos para sempre na memória.60

No que se refere a Iaiá Garcia (1878), apesar de a recepção crítica da época

não lhe ter sido muito favorável, ou ainda indiferente em sua grande maioria,

segundo Ubiratan Machado (2003), houve notas elogiosas que admirassem,

acima de tudo, a representação do universo psicológico dos personagens, ou,

em outras palavras, a representação do drama de caracteres:

(...) é verdadeiramente admirável e está escrito com fino primor. Tanto a

análise psicológica como as manifestações exteriores aí estão traçadas

com mão de mestre.61

Poucas vezes, Machado de Assis se viu envolvido em polêmicas com

outros críticos. No entanto, quase todas são inesquecíveis, sobretudo, porque

permitem que o autor manifeste ainda com mais clareza seus pensamentos a

respeito do que seja uma grande literatura. A polêmica mais famosa, sem

dúvida, foi aquela em que se envolveu após fazer críticas contundentes sobre ao

romance O primo Basílio, do escritor lusitano Eça de Queiroz. Publicada em O

Cruzeiro no dia 16 de abril de 1878 – ano de publicação de Iaiá Garcia, quarto

romance de Machado, que, nos três primeiros buscou declaradamente

aprimorar a elaboração dos contornos de caracteres em suas narrativas –, a

resenha apontava alguns pontos negativos da composição do romance. O

primeiro ponto que merece destaque é a repulsa que Machado de Assis

demonstra em relação à estética naturalista praticada por Eça de Queiroz. Para

60

A.C. Almeida. Pindamonhangabense, Pindamonhangaba (SP), 19 de novembro de 1876. In:

MACHADO, Ubiratan, 2003, p.110.

61 RIGOLETTO. “Fantasias a propósito de Iaiá Garcia”. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 11 de abril de

1878. In: MACHADO, Ubiratan, 2003, p.115.

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ele, “a reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis”62, que

“não esquece nada e não oculta nada”63, é para a realidade tão artificial quanto

as idealizações românticas: “Porque a nova poética é isto e só chegará à

perfeição no dia em que disser o número exato dos fios de que se compõe um

lenço de cambraia ou um escovão de cozinha”64. O grande problema dessa

estética, no seu modo de ver, é que se dá mais importância a esse detalhamento

do que àquilo que verdadeiramente merece destaque: o desenho dos caracteres.

Machado acredita que a personagem central de o Primo Basílio, Luiza, tem um

caso fora do casamento sem motivação aparente: “nenhuma razão moral

explica, nenhuma paixão, sublime ou subalterna, nenhum amor, nenhum

despeito, nenhuma perversão sequer. Luiza resvala no lodo, sem vontade, sem

repulsa, sem consciência”65. Pintada com essas cores, Luiza não seria um caráter

autêntico, mas um boneco nas mãos do narrador.

(...) a Luiza – força é dizê-lo – a Luiza é um caráter negativo e, no meio

da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral.

Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos;

não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos;

menos ainda consciência.66

Considerando, pois, que os aspectos literários que se constituem em

“obsessões” para Machado de Assis não podem ser reduzidos a minúsculos

pontos de convergência imperceptíveis e difusos na abrangência da sua obra,

mas sim que eles definem e estruturam o seu princípio estético de composição,

62

ASSIS, Machado de. “O primo Basílio”. In: _____ . Crítica literária, 1946, p. 162.

63 Idem, p. 163.

64 Ibidem.

65 Idem, p. 166.

66 Idem, p. 164.

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a visão tradicionalista que divide seus romances em dois grupos antagônicos

estaria completamente equivocada. Desde muito jovem, a literatura não foi para

ele um mero objeto de contemplação passiva, mas sim uma forma de

conhecimento de mundo, que, justamente por isso, exige um escritor

preparado, uma obra de qualidade e um leitor questionador. Como crítico

literário, Machado foi capaz de formular uma visão mais abrangente do quadro

das letras nacionais e perceber a necessidade de criação e desenvolvimento de

um novo paradigma literário. Enquanto escritor, transferiu seu olhar crítico

para a composição do seu universo ficcional, voltado não só para os dramas da

existência humana, mas também e sobretudo para a própria elaboração do

texto. Nesse sentido, o autor construiu um jogo metalinguístico de narração e

crítica da narração que acaba se estendendo a uma crítica da vida como um

todo. A conversa permanente com o leitor é a marca evidente desse princípio,

seja nos prefácios, textos críticos ou nos próprios capítulos da trama.

O princípio regente de toda essa reflexão crítica da existência humana e

do próprio ato de narrar é a ironia poética – talvez a maior de suas “obsessões”.

Em seu artigo “Introdução à poética da ironia” (2000), Ronaldes de Melo e Souza,

ao invés de reconhecer nesse recurso tão somente um tropo retórico, como o

fazem os estudos tradicionais, analisa a ironia como um princípio que articula

toda a estrutura da obra de arte literária. Distanciado do universo meramente

discursivo, o recurso irônico passa a regular o processo de criação artística de

maneira que toda análise crítica deve orientar-se no sentido de perceber e

compreender tal princípio articulador, observando na correlação todo-

parte/parte-todo o jogo sério-jocoso do artista:

A ironia não resulta tão somente da soma de frases ou segmentos

irônicos. Na obra de arte regida pelo princípio da ironia, toda e qualquer

parte aparentemente não-irônica se torna radicalmente irônica.

Poeticamente concebida como princípio que articula a estrutura da obra

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de arte, a ironia preside à gênese e ao desenvolvimento de cada uma e

de todas as partes. Responsável pela correlação do todo e das partes, de

que resulta a unidade da obra de arte, em que cada parte é o todo

punctualmente concentrado, a ironia poética é estrutural, e não apenas

verbal.67

A constante discussão sobre o ato de narrar e sobre o papel da literatura

na vida humana, seja ela vista no seu sentido mais amplo geral ou

simplesmente no seu pequeno universo cotidiano, é feito de maneira

completamente irônica pelo autor, desconstruindo a forma tradicional da trama

folhetinesca dominante em nossas letras até aquele momento. Vale lembrar, por

exemplo, que o motivo apresentado pelo autor como justificativa para compor

“Ressurreição” teria sido tão somente o desejo de por em prática um pensamento

shakespeariano, extraído do texto da peça “Medida por Medida”, construindo

um perfil “essencialmente infeliz” para um personagem a quem, no entanto,

ironicamente, deu o nome de “Félix”. Já em A mão e a luva, o traço comum dos

caracteres de Guiomar e Luís Alves e responsável pela união desse “casal

perfeito” é nada menos do que a mais pura ambição – desconstruindo, assim, a

visão romântica que enaltece a pureza moral do sentimento amoroso. Pegando

uma simples cena em Helena, é possível reconhecer a crítica irônica à postura

das elites, que vivem mais no mundo das aparências do que na essência.

Quando, por exemplo, a protagonista é apresentada às pessoas que frequentam

a casa da sua nova família, conhece o Dr. Matos – um advogado que sabia

menos de direito do que de meteorologia e botânica –; ou o Coronel Macedo,

que, na verdade, era major. Por sua vez, o princípio irônico em Iaiá Garcia pode

ser visto na própria correlação entre o título e a trama, sugerindo

enganosamente um protagonismo a Lina Garcia, o qual, na verdade, deveria ser

atribuído a Estela.

67

SOUZA, Ronaldes de Melo e. (2000), p.27-8.

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Nos exemplos citados, é possível notar claramente que a adoção da

ironia poética como o princípio regente fundamental de composição da

narrativa se reflete tanto na macro quanto na micro estrutura do romance. Além

disso, fica evidente que o universo literário é o motivo recorrente nos textos

machadianos. O Félix, de Ressurreição, termina seu noivado com a Cecília

imitando o gesto de um personagem de um romance de Henri Murger que lera

há pouco. O narrador de A mão e a luva refletoriza a linguagem do byroniano

Estevão fazendo uso de palavras e imagens excessivamente sentimentais e

conferindo-lhe um desfecho tragicamente ultrarromântico. Nessa mesma esfera

de representação sentimental e escapista, o Jorge, de Iaiá Garcia, com ímpeto

suicida, desejou a morte em combate após saber que perdera a mulher que

amava: não morreu por esse amor e casou-se com outra, e mesmo assim, graças

à ajuda da antiga amada. Por fim, os personagens de Helena podem ser muito

bem caracterizados pelas suas preferências literárias, do livro mais ousado ao

mais conservador, os caracteres vão se apresentando. De qualquer modo, o que

importa é perceber que as inúmeras referências a autores e obras da literatura

universal, as diversas imagens que dão relevo ao hábito de leitura e às

preferências literárias dos personagens, bem como a postura autocrítica do

narrador, vão demonstrando ao leitor a necessidade de questionamento

permanente a tudo o que se lê, o que se vê e o que se vive.

Vista dessa maneira, a obra de Machado de Assis pode ser considerada

como um todo no qual, por meio do jogo irônico, o autor vai (re)fazendo os

caminhos da literatura brasileira. Ao mesmo tempo em que propõe o novo, vai

desconstruindo por dentro os princípios articuladores da nossa cultura literária.

O que se aponta tradicionalmente como uma falha estrutural da sua produção

ficcional da primeira fase poderia ser visto, contrariamente, como uma

estratégia discursiva para desconstruir o modelo hegemônico da ficção

narrativa nas letras brasileiras, elevando a qualidade dessa produção literária,

formando, assim, leitores autônomos e conscientes, para, por conseguinte,

construir uma nação. Citando o próprio Machado, que em 1873 reafirmou os

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seus ideais de 1858, quando havia dito que “é mais fácil regenerar uma nação,

que uma literatura. Para esta não há gritos de Ipiranga; as modificações

operam-se vagarosamente; e não se chega em um só momento a um

resultado”68:

Interrogando a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e

poetas acharão ali farto manancial de inspiração e irão dando fisionomia

própria ao pensamento nacional. Esta outra independência não tem Sete

de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas

pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração

nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.69

68

In: ASSIS, Machado de. “O passado, o presente e o futuro da literatura”. In: _____ . Obras completas,

vol.3, 1959, p. 787.

69 ASSIS, Machado de. “Instinto de nacionalidade”. In: Crítica literária, 1946, p.133-4.

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5. O projeto estético machadiano e a modernização de nossas letras.

Já foi dito anteriormente que a fortuna crítica da obra machadiana é

extremamente rica e variada, além de que seus críticos nem sempre

concordaram na análise de diversos aspectos. Atualmente, se por um lado há

aqueles que insistem na divisão esquemática da obra em duas fases distintas e

antagônicas – porém, ambas, de algum modo, enquadradas nos esquemas

narrativos da ficção do século XIX –, por outro “já se tornou lugar comum o

tema da modernidade, da contemporaneidade dos textos machadianos”70. Mesmo

aqueles que admitem que o autor foi um homem à frente do seu tempo que

criou muitas das técnicas narrativas usadas pelos ficcionistas brasileiros até os

dias de hoje atribuem toda essa inventividade aos romances da sua chamada

segunda fase. Convém-nos, portanto, insistir na ideia de unidade estrutural da

obra e demonstrar que o projeto modernizante de Machado de Assis teve início,

no âmbito do romance, em 1872, com Ressurreição.

Para Anatol Rosenfeld (1976), em cada fase da história existe “uma

espécie de espírito unificador que se comunica a todas as manifestações

culturais em contato”71, o que, naturalmente, estreita as relações entre o

pensamento filosófico e as manifestações artísticas de uma mesma época. Sendo

assim, parece-nos interessante supor que os pontos mais relevantes na

estruturação da narrativa moderna e contemporânea estejam intimamente

ligados aos princípios que definem, histórica e filosoficamente, a modernidade.

A Idade Moderna elege o homem como a medida de todas as coisas –

“tendo na consciência a pedra e o cimento para assentar a fábrica do universo”72

70

MESQUITA, Samira Nahid de. “Machado de Assis, um modernista do século XIX”. In: Estudos de

literatura brasileira, 1994, p.101.

71 ROSENFELD, Anatol, 1976, p. 75.

72 PAZ, Octavio, 1972, p. 63.

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– e cria a ilusão do espaço tridimensional, projetando o mundo a partir de uma

consciência individual. No entanto, esse mundo relativizado – visto em relação

a esta consciência e constituído a partir dela – reveste-se da ilusão do absoluto.

Ou seja, aquilo que é apenas uma visão parcial a respeito das coisas e dos

fenômenos – um fragmento, enfim – passa a ser apresentado como se fosse a

totalização do real.

Na filosofia ocidental, essa constituição do mundo a partir da

consciência humana surge pela primeira vez com os sofistas: “O

homem é a medida de todas as coisas” (Protágoras). A visão

perspectívica ressurge depois na filosofia pós-renascentista com

Descartes que pelo menos parte do cogito, supondo como única

certeza inabalável a do eu existente (é a partir dele que Descartes

reconstrói o mundo desfeito pela dúvida). E encontrou sua expressão

máxima em Kant que projeta o mundo dos “fenômenos” – isto é, o

mundo como nos aparece, único a que teríamos acesso – a partir da

consciência.73

A modernidade, que é fundada justamente no modelo cartesiano da

metafísica da subjetividade elege o sujeito como o suporte subjacente a tudo e,

sendo assim, o próprio definidor da “verdade”. Ora, como a epistemologia

privilegia a consciência, na medida em que percebe o ser como o sujeito

representante de todo objeto representado (note-se que, se o sujeito é centrado

em si mesmo, tudo o que está fora dele é objeto), passa a ser legítimo que todo o

sujeito reivindique para si uma visão totalizadora de interpretação dos

fenômenos e das coisas.

Essa postura autoritária reflete-se na ficção narrativa, em especial no

romance, por meio da figura arbitrária do narrador, que, ao atribuir a si mesmo

73

ROSENFELD, Anatol, 1976, p. 78.

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75

uma capacidade de “onisciência”, torna-se o mediador único e absoluto entre o

fato e o leitor. O reflexo dessa postura do narrador reflete-se na forma de

composição do texto, na perspectiva monológica da narrativa.

Da mesma forma que, no plano da elaboração da estrutura interna da

obra, o narrador exerce um papel de autoridade – o apresentador, julgador e

definidor da verdade dos fatos –, no plano da recepção crítica, o intérprete –

que pode ser o leitor comum ou o crítico literário, embora este tenha a

obrigatoriedade de ser mais capacitado do que o primeiro, devido a sua

condição profissional – também pode exercê-lo. Ao localizar em um

determinado princípio estético os parâmetros definidores do conceito geral de

obra-de-arte, o intérprete impõe um discurso subjetivo pretensamente absoluto

a todo objeto interpretado. Essa objetivação do alter – processo a partir do qual

o sujeito representante modifica o objeto representado – pode impedir a

percepção da subjetividade inerente àquela obra; o que, por sua vez, resultaria

na sua desqualificação estética e poria em xeque o valor criativo do artista. Isso

talvez justifique a dificuldade que muitos leitores – acostumados à forma

canônica de composição monológica do século XIX – tenham para perceber e

compreender as inovações formais da literatura moderna e contemporânea74.

A dificuldade que boa parte do público encontra para adaptar-se a

este tipo de pintura ou romance decorre da circunstância de a arte

moderna negar o compromisso com este mundo empírico das

74

Neste capítulo, procuramos demonstrar o processo de desconstrução do modelo narrativo mais

praticado pela maior parte dos ficcionistas brasileiros até o final do século XIX – fossem eles românticos,

realistas ou naturalistas – e que se baseava numa trama de ações, regida pela causalidade de

acontecimentos e organizada linearmente a partir da justaposição de eventos consecutivos: tudo isso

apresentado na perspectiva monológica do discurso autoritário de um narrador onisciente. A ela faremos

muitas vezes referência pela denominação de narrativa tradicional. Por outro lado, chamaremos de

moderna aquela forma de composição narrativa que promove a ruptura com essa estética tradicional

essencialmente por rejeitar a perspectiva monológica, explorando mais uma dialética poética. Machado de

Assis, dentro do nosso modo de ver, embora também seja um escritor do século XIX, não se filia a essa

tradição narrativa monológica e, por meio da multiperspectivação, inaugura a narrativa moderna em

nossas letras.

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“aparências”, isto é, com o mundo temporal e espacial posto como

real e absoluto pelo racionalismo tradicional e pelo senso comum.75

A negação de uma realidade pré-concebida – que objetiva impor-se

como regra geral e medida para todas as coisas – será o fio condutor da

revolução narrativa da literatura moderna e contemporânea, deslocando o

discurso da metafísica da subjetividade para a alteridade, seja na forma de

composição (dialógica), seja na linha de interpretação (hermenêutica). Com isso,

é possível dar mais ênfase a uma característica específica do discurso ficcional:

mergulhar na interioridade anímica de um outro sujeito, ou seja, aproximar-se

do outro e representá-lo a partir do seu próprio ponto de vista.

O filósofo ordena as ideias conforme uma ordem racional; o

historiador narra os fatos com o mesmo rigor linear. O romancista

nem demonstra nem conta: recria um mundo. Embora o seu ofício

seja o de relatar um acontecimento – e neste sentido parece-se ao

historiador – não lhe interessa contar o que se passou, mas reviver um

instante ou uma série de instantes, recriar um mundo. Por isso recorre

aos poderes rítmicos da linguagem e às virtudes transmutadoras da

imagem. Sua obra inteira é uma imagem.76

Considerando, então, que a obra inteira do artista é uma imagem, sua

interpretação depende do entendimento do elemento simbólico que a constitui,

cabendo, pois, ao intérprete captar a essência dialógica que há em todo símbolo,

rompendo com essa concepção de mundo que admite uma visão única para

designar todo e qualquer elemento interpretado. Luiz Roncari (1999),

75

ROSENFELD, Anatol, 1976, p. 81.

76 PAZ, Octavio, 1972 p. 69.

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analisando a obra do crítico russo Mikhail Bakhtin, explica o princípio

dialógico:

Dialogia foi o termo que [Bakhtin] mais usou para descrever a vida do

mundo da produção e das trocas simbólicas, composto não como um

universo dividido entre bons e maus, novos e velhos, vivos e mortos,

certos e errados, verdadeiros e mentirosos etc. Mas como um universo

composto de signos, dos mais simples, como dois paus cruzados

formando uma cruz, até os enunciados mais complexos, como a obra

de um grande pensador como Marx, cujos valores e significados não

eram dados e estáticos, mas extremamente ambíguos e mutáveis.

Nele, tudo o que era simples se torna complexo e o que era complexo

se torna simples (justamente o que veio a ocorrer na história da cruz e

do marxismo), o vivo morto e o morto vivo, o novo ser expressão do

velho e o velho do novo, enfim, nesse universo nada era

definitivamente dado, porque tudo poderia vir a ser, inclusive o seu

contrário.77

Octavio Paz (1972) diz que toda revolução é, ao mesmo tempo, uma

profanação e uma consagração, porque vai derrubar as velhas imagens e, em

seguida, fazer a consagração daquilo que até então era considerado profano.

Com isso, toda revolução é a consagração de um sacrilégio, que se converte em

um novo princípio sagrado. No entanto, a revolução moderna ostenta um traço

histórico singularíssimo: a sua impotência para consagrar os princípios em que

se funda. O fato de colocar o homem como o centro do universo e princípio

gerador de todas as coisas condena a realidade a sofrer com a instabilidade da

existência humana, impossibilitando, assim, com que haja um terreno sólido

para se alicerçar.

77

RONCARI, Luiz. “Prefácio”. In: Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakthin.

(1999), p. X.

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78

Assim, o que distingue a revolução da idade moderna das antigas não

é tanto nem exclusivamente a corrupção dos primitivos ideais, nem a

degradação de seus princípios libertadores em novos instrumentos de

opressão, quanto a impossibilidade de consagrar o homem como

fundamento da sociedade.78

Percebendo-se que o homem individual não pode mais ser o

gerenciador de todo o processo de entendimento do real, constata-se que a

verdade não é subjacente a uma única voz, o mais próximo que se poderia

chegar dela estaria expresso na confluência de todas as subjetividades. O

fundamento novo é que a arte moderna não reconhece a insubstancialidade do

sujeito apenas tematicamente, através de uma alegoria pictórica ou a afirmação

teórica expressa na fala de um personagem do romance, mas através da

“assimilação desta relatividade à própria estrutura da obra-de-arte”79. Essa

nova forma de composição, que resulta da montagem de um painel geral a

partir das diversas perspectivas envolvidas, é simbolizada por Michel Butor

(1974) pela figura do mosaico.

O único meio de dizer a verdade, de ir à procura da verdade, é

confrontar incansavelmente, metodicamente, aquilo que

habitualmente contamos a nós mesmos com aquilo que vemos,

ouvimos, com as informações que recebemos, isto é, “trabalhar” sobre

a narrativa.80

78

PAZ, Octávio, 1972, p. 67.

79 ROSENFELD, Anatol, 1976, p. 81.

80 BUTOR, Michel, 1974, p. 75.

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Do mesmo modo que o artista moderno promoveu a ruptura com a

forma canônica de criação, assimilando esse novo conceito de representação

multiperspectivada, o intérprete precisa entender que não há uma única

medida para interpretar toda e qualquer obra literária. Todo texto artístico tem

o seu próprio princípio articulador inserido na sua estrutura, o qual exige do

intérprete uma postura menos preconceituosa e mais aberta ao novo: ele precisa

chegar com menos e sair com mais da leitura da obra. Em outras palavras, se o

artista usa um princípio articulador para compor a sua obra; o intérprete tem de

partir da própria obra para definir seu princípio. A literatura moderna,

portanto, exige uma postura dialógica e não uma atitude arbitrária. Bakhtin, por

exemplo, segundo Luiz Roncari, antes de chegar a uma definição sobre o

projeto estético de um artista, primeiro foi aprender com aqueles que procurou

conhecer.

Antes de qualquer crítica, ouvia o que tinham a dizer, mais

preocupado com as contribuições do que mostravam e deixavam

entrever do que com os limites do que afirmavam81.

O reconhecimento do valor do projeto estético da narrativa moderna e

contemporânea depende da compreensão do seu princípio articulador, que

desloca sua função, da trama de ações, para o ponto de vista. O enredo da

narrativa tradicional, que se baseava fundamentalmente na causalidade de

acontecimentos e na progressão de eventos consecutivos, é rejeitado pela ficção

moderna, que passa a adotar uma narração descontínua e mais reflexiva para

abarcar toda a multiplicidade de perspectivas em jogo na trama.

A crise da sociedade moderna – que é a crise dos princípios do

nosso mundo – manifesta-se no romance como um regresso ao poema, na

81

RONCARI, Luiz, 1999, p.75.

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80

medida em que a poesia é a revelação da condição humana e consagração de

uma experiência histórica concreta82. Portanto, a forma do romance é afetada na

sua estrutura, no que tange a organização tempo-espaço, exigindo, assim, uma

nova possibilidade de interpretação. Do mesmo modo, a representação da

consciência da modernidade pressupõe uma autoconsciência, ou seja, a

consciência da consciência. Assim, o ser humano percebe que é, no mínimo,

duplo, o que é refletido no romance pela descaracterização dos personagens e o

acoplamento de várias vozes na narrativa.

O deslocamento da perspectiva de um sujeito absoluto para a

representação de múltiplos pontos de vista fez com que os escritores modernos

desenvolvessem as mais variadas técnicas narrativas, desafiando, assim, o

intérprete, que se vê obrigado a reconhecer na própria obra o seu princípio

específico de composição. Terminada a análise da obra, volta-se ao ponto de

partida, porque, muitas vezes, a chave de interpretação que lhe serviu naquele

momento poderá ser inútil para outro texto. Por isso, a narrativa moderna exige

um leitor orgânico e participativo, não um simples espectador.

Na ficção narrativa tradicional, o enredo constitui-se no elemento mais

importante. Sua enunciação é regida pelo tempo e pelo espaço, pelo ponto de

vista e pelo modo da narrativa. O relato dos eventos é sequencial e linear,

reproduzindo, quase sempre, uma lógica de causalidade baseada nos

acontecimentos. Assim, apenas um episódio específico pode ser o

desencadeador de todo o enredo. Tudo isso apresentado pela voz única e

absoluta de um narrador – tendo ele participado diretamente do evento ou não.

No entanto, a narrativa moderna e contemporânea promoverá o

abandono desse tipo de enredo linear e buscará demonstrar, revelar ou

entender o efeito produzido no interior psíquico do personagem diante das

ações; para tanto, mergulhando na sua interioridade e dando a possibilidade de

que ele mesmo fale: a função dominante nesse novo modelo de narrativa passa

82

PAZ, O. (1972) p. 74.

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a ser não mais o evento, mas o ponto de vista (perspectivismo). A partir daí, o

narrador deixa de ser uma voz autoritária e totalizadora do entendimento do

real e abre a narrativa à representação de outros pontos de vista. Aquela que

antes era uma mediação simples, porque pertencia exclusivamente ao narrador,

passa a ser uma mediação complexa.

As raízes dessa forma de representação estão nas próprias origens do

romance moderno e localizam em Cervantes (Espanha/ séc. XVII) o patriarca

de uma família intelectual que se ramificou pela literatura ocidental europeia:

na inglesa, com Sterne e Fielding (séc. XVIII) e Henry James (séc. XIX); na

francesa, com Diderot e Voltaire (séc. XVIII) e Flaubert (séc. XIX); na literatura

russa, com Gogol e Dostoiévski (séc. XIX), na literatura brasileira, a nosso ver,

com Machado de Assis (séc. XIX), que tinha tais autores na sua galeria de

predileção.

O desafio da literatura moderna e contemporânea passa a ser elaborar

uma forma de narração que concilie o olhar distanciado e crítico de um

narrador independente com a experiência emocional dos personagens que

participaram diretamente do evento narrado. Henry James (2003), por exemplo,

no prefácio de The Awkward Age, relata que, para explicar seu processo de

composição para seus editores desenhou numa folha de papel “a caprichada

figura de uma esfera composta de vários pequenos círculos equidistantes do

objeto central”83. Segundo ele, este último tratava-se da situação que seria

abordada pelo romance, do “seu assunto em si, de onde tiraria o título, e as

pequenas rodas representavam as diversas lamparinas, como gostava de

chamá-las, cuja função seria iluminar com a devida intensidade um de seus

aspectos”84. Como se nota, o escritor aplicou uma técnica de iluminação cênica,

extraída do teatro, à estrutura da narrativa. O narrador seria o responsável por

83

JAMES, Henry, 2003, p. 208.

84 Ibidem.

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82

acender tal ou qual refletor, que direcionaria o foco preferencial da narrativa

para a visão de mundo de um determinado personagem.

Cada uma de minhas “lamparinas” iluminaria uma única “ocasião

social” da estória e da relação entre os personagens envolvidos. Além

disso, ressaltaria toda a cor latente da cena em questão, fazendo-a

ilustrar e esgotar sua contribuição específica para meu tema. Deleitava-

me com a noção de Ocasião como algo isolado, como coisa de fato

inteiramente cênica. Nenhum “O” seria grande o bastante para honrá-la,

no momento em que me debruçava sobre os profundos mistérios do

meu plano. A beleza da concepção residia em relacionar as respectivas

divisões de minha forma com os sucessivos Atos de uma Peça – quanto

aos quais era mais do que nunca o caso de empregar as ditosas letras

maiúsculas. A divina distinção do ato teatral – a maior de todas que este

poderia proporcionar, de modo simples – encontrava-se, eu calculava,

na sua objetividade especial, controlada. Quando atingia seu ideal, essa

objetividade por sua vez provinha de uma obrigatória ausência daquela

necessidade de pôr-se “por trás”, a fim de abarcar explicações e

desdobramentos, de arrancar miudezas da grande oficina de acessórios

que o “mero” contador de estórias usa como auxiliares da ilusão: um

recurso sem o qual resolvi, para variar, seguir adiante, experimentando

uma sensação ao mesmo tempo desconcertante e deliciosa. Nesse

sentido, tudo se torna importante a partir do instante em que precisamos

examinar de perto a lei específica do gênero, para a obtenção de um

efeito pleno.85

A teoria da narrativa que vem sendo trabalhada ao longo dos anos pela

crítica literária não abraça o entendimento da narrativa moderna e

contemporânea, pois só reconhece duas formas de narração: narrativa em

85

Idem, p. 209-10.

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primeira ou em terceira pessoa. O principal equívoco que se repetiu nas análises

críticas ao longo do tempo é oriundo da confusão que se criou entre os termos

“pessoa gramatical” e “pessoa narrativa”. O uso de vocábulos flexionados na

primeira ou terceira pessoas gramaticais não tem necessariamente uma ligação

direta com o foco narrativo usado pelo autor na composição do texto. É

possível, por exemplo, que, por trás de um texto escrito em terceira pessoa

gramatical, esconda-se toda uma perspectiva subjetiva, ao passo que, de modo

inverso, um sintagma em primeira pessoa seja regido por uma lógica de frieza,

distanciamento e objetividade.

Essa distinção entre o uso flexional e a intencionalidade narrativa é

apontada por Michel Butor da seguinte forma:

Essa primeira pessoa e sobretudo essa segunda [representante do

leitor na obra] pessoa romanescas não são mais pronomes simples

como os que utilizamos nas conversas reais. O “eu” esconde um

“ele”; o “vós” ou o “tu” esconde as duas outras pessoas e estabelece

entre elas uma circulação.86

Sobre esse mascaramento das pessoas narrativas no romance, Autran

Dourado revela a teoria da falsa terceira pessoa numa tentativa de explicar o seu

processo de composição e o objetivo a ser alcançado:

Esse recurso de mudar a história da primeira pessoa para a terceira e

da terceira para a primeira, é uma técnica muito boa que uso não só

neste [referindo-se a O Risco do Bordado] como em outros livros

meus. É a falsa terceira pessoa, como há às vezes a falsa primeira. (...)

86 BUTOR, Michel, 1974, p. 81.

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84

o recurso funciona com outra finalidade, o dos pontos-de-vista ou

focos diferentes, múltiplos.87

A representação da experiência emocional do personagem cria uma

espécie de monólogo narrado, que, confrontado com a consciência racional do

narrador, produz um efeito dialógico na narrativa. O encontro dos vários

personagens da trama, cada um com seu ponto de vista manifestado em seus

monólogos narrados, cria para a narrativa um efeito radical: a polifonia.

Analisando a obra de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin (2008) explica a narrativa

polifônica:

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a

autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a

peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a

multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno,

à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é

precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus

mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento,

mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski,

suas personagens principais, são, em realidade, não apenas objetos do

discurso do autor mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente

significante.88

Com a refletorização da narrativa – para usar a imagem de Henry

James – abrindo espaço para que os personagens tenham narrados seus

monólogos interiores, o narrador pode exercer um duplo papel: ao mesmo

tempo em que ele arma as situações cênicas – posicionando o foco numa ou

87 DOURADO, Autran, 1976, p.16.

88 BAKHTIN, Mikhail, 2008, p. 5.

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noutra direção e com mais ou menos intensidade –, desarma essas mesmas

situações – por meio da reflexão crítica a respeito do evento narrado e do

próprio ato de narrar. Praticando, então, um jogo de narração e meta-narração,

o narrador incorpora ao seu fazer principal o papel não menos importante de

crítico literário. Para Ronaldes de Melo e Souza (2000), trata-se do recurso

irônico89 da “parábase”, tal qual se vê nas peças de Aristófanes, “quando o coro

momentaneamente se desliga do contexto das ações e, sozinho em cena,

transmite ao público o apelo do dramaturgo”. Na literatura moderna e

contemporânea, esse recurso dramático é radicalizado, fazendo da narrativa

uma “parábase permanente”.

Quando o narrador entra em cena para discutir a narração, deixa claro

para o leitor que aquele texto se trata de uma obra de ficção, e não o real. O

narrador, dessa forma, contesta a ilusão cênica, tentando converter a ilusão da

consciência em consciência da ilusão. No entanto, ainda que seja sabedor do

processo ficcional, o leitor não consegue deixar de se iludir. O mecanismo

irônico, pois, faz-se presente no seu mais alto grau:

Nas narrativas irônicas, a função crítica da parábase é assumida pelo

narrador autoconsciente, que não se limita a narrar eventos, mas se

compraz em sustar o enunciado propriamente narrativo com o

deliberado propósito de assinalar criticamente que o narrado não é

dado na realidade, mas construído na instância da enunciação. A

intrusão do narrador cumpre desempenho bem definido ao sustar a

ilusão ficcional e advertir ao leitor que não se deve confundir fato

com ficção. [...] Na ficção narrativa autenticamente irônica, o narrador

se desvia constantemente do fluxo inercial das ações para estabelecer

um intercâmbio polêmico com a sua própria obra. Desdobrado em

89

Para o crítico, a ironia “não resulta tão somente da soma de frases ou segmentos irônicos”, mas é

poeticamente concebida “como princípio que articula a estrutura da obra de arte”, sendo responsável

“pela correlação do todo e das partes, de que resulta a [sua] unidade (...), em que cada parte é o todo

punctualmente concentrado”. E conclui taxativamente: “a ironia poética é estrutural, e não apenas

verbal”. In: SOUZA, Ronaldes de Melo, “Introdução à poética da ironia”, 2000, p. 27-8.

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autor e crítico de sua criação, o narrador autoconsciente solicita um

leitor criticamente atento. A interação dialógica do autor e do leitor é

uma exigência do narrador irônico.90

Ronaldes de Melo e Souza concebe a ironia como “uma nova forma de

conhecimento em que a contradição é consentida”. Diferentemente da dialética

filosófica e “contrapondo-se à tradição ontológica, teológica e lógica da

metafísica”91, a dialética poética da ironia converte toda oposição antagônica em

oposição complementar.

Uma posição só existe com a outra, que lhe é diametralmente oposta.

Não se admite a separação lógica nem a síntese dialética dos

contrários. Na dialética genuinamente irônica, a tese e a antítese

constituem uma unidade irredutivelmente dual. Não podem,

portanto, ser subsumidas numa unidade sintética pretensamente

superior. A ironia é uma dialética peculiar, porque não aceita

nenhuma síntese.92

No jogo irônico de opostos – bem e mal; sim e não; luz e sombra;

sensível e inteligível; corpo e alma; matéria e espírito; aparência e essência;

imanente e transcendente –, a estrutura romanesca manifesta esse dualismo

complementar, sobretudo na postura do narrador, que se concebe, no mínimo,

duplo, capaz de narrar e, ao mesmo tempo, fazer uma reflexão crítica do evento

narrado. A interrupção parabática da narrativa representa uma dualidade

criadora e nadificadora da narrativa, ou seja, ao mesmo tempo em que o

narrador constrói sua narrativa por força da exposição dos eventos, desmonta a

verdade absoluta dessa mesma narrativa quando a coloca em xeque diante do

leitor. O narrador assume, portanto, toda a sorte de caracteres e promove a

90

Idem, p. 31.

91 Idem, p. 32.

92 SOUZA, Ronaldes de Melo e, 2000, p. 36.

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ruptura com o princípio monológico, dando bases a uma narrativa

multiperspectivada. A ironia poética, concebida como princípio articulador da

literatura moderna e contemporânea, manifesta-se por meio das técnicas

narrativas expostas até aqui: a refletorização, o monólogo narrado, dialogismo e

polifonia etc.

De acordo com Marlene de Castro Correia (1994), “quando situado na

série da literatura brasileira, o sistema ficcional de Machado de Assis se define

por sua ruptura com as modalidades tradicionais de narrativa”93. Segundo ela,

à narrativa tradicional, que tende a diminuir a distância entre o universo do real

e o universo literário, às vezes incitando o leitor a fundi-los e confundi-los,

Machado contrapõe uma narrativa que se organiza como espaço autônomo

regido por leis próprias e específicas. Logo, o texto machadiano se afirma como

ficção, desmentindo-o como realidade, pelo desnudamento dos processos e

composição da narrativa. Por isso, uma das mais características do seu projeto

estético é a interrupção parabática da narrativa, a partir da qual estabelece um

diálogo com o leitor. Na verdade, o narrador machadiano adota várias técnicas

de desconstrução irônica da forma convencional de narrativa do seu tempo.

Como nosso corpus se restringe ao estudo dos romances escritos pelo autor na

década de 1870, limitaremos nossas análises a ele. Desse modo, objetivamos

contribuir para a concepção de que tais romances já aplicavam o projeto

modernizador de Machado de Assis. Obviamente, uma análise mais cuidada de

cada romance será feita nos próximos capítulos. Por hora, observemos

brevemente quatro situações.

(1) Entendamo-nos leitor; eu, que estou contando esta história, posso

afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista.94

93

CORREIA, Marlene de Castro, “A ficção de Machado de Assis sob o signo da contemporaneidade”,

1994, p. 87.

94 Ressurreição, p. 160.

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Nesse exemplo, narrador machadiano se apresentou como a versão

mais radical do narrador onisciente. Esse exagero caricatural que o levou a bater

o martelo em relação à autoria da carta poderia ter sido evitado se ele

simplesmente tivesse mostrado Luís Batista no momento da sua confecção ou

mesmo na elaboração do seu plano maquiavélico para entregá-la sem ser

descoberto. No entanto, o narrador de Ressurreição armou a cena de modo a

criar propositalmente uma falsa expectativa no leitor, para, em seguida, acabar

com a dúvida saindo pelo caminho mais óbvio. O discurso de um narrador

onisciente, embora arbitrário pela adoção do princípio monológico, geralmente

é executado de uma maneira mais sutil, e não declaradamente arbitrário. Sendo

assim, não seria difícil perceber nesse gesto hiperbólico do narrador

machadiano tinha como objetivo caricaturar o narrador tradicional da ficção

romanesca.

(2) Ninguém a observava; mas é privilégio do romancista e do leitor ver

no rosto de uma personagem aquilo que as outras não veem ou não

podem ver. No rosto de Guiomar podemos nós ler, não só o tédio

que lhe causava aquela opinião unânime contra o projeto da

baronesa, mas ainda a expressão de um gênio imperioso e

voluntário.95

Nota-se que nesse trecho de A mão e a luva o narrador mais uma vez

ironiza os recursos formais recorrentes da ficção romanesca. A capacidade de

mergulhar na interioridade anímica do personagem distingue o discurso

literário dos demais e é usado pelo narrador onisciente como forma de

reafirmar suas posições diante dos fatos narrados, porque, apesar de

tecnicamente poder acessar as mentes e os estados de espírito de todos os

95

A mão e a luva, p. 92.

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personagens, só revela ao leitor aquilo que lhe é conveniente. O curioso nesse

momento – e isso reforça ainda mais a ironia – é que efetivamente nem o leitor

ainda saberia dizer o que dizia a expressão do rosto de Guiomar, já que o

narrador não havia dito. Além disso, a suposta vantagem do leitor em relação

aos demais personagens da narrativa torna-se irrelevante na medida em que

nenhum dos presentes na cena estava minimamente interessado no que

pensava ou deixava de pensar a jovem Guiomar.

(3) Eugênia desfiou uma historiazinha de toucador, que omito em suas

particularidades, por não interessar ao nosso caso, bastando saber

que a razão capital da divergência entre as duas amigas fora a

opinião de Cecília acerca da escolha de um chapéu.96

O narrador novamente abusa da sua condição privilegiada e seleciona

para o leitor aquilo que ele deve ou não saber, definindo por si mesmo a

relevância das coisas. Contrastando duas posturas diferentes de narração,

veremos que, perto do desfecho da trama, quando Salvador finalmente conta

para Estácio a história que finalmente revelará o mistério em torno da vida de

Helena, ele pede a máxima atenção a todos os detalhes – “Tudo é essencial na

minha narração”97. Como organizador das situações narrativas, o narrador

machadiano vai, constantemente, introduzir mecanismos que discutem o

próprio ato de narrar.

(4) Depois contou-lhe a paixão de Jorge e todo episódio da Tijuca, causa

originária dos acontecimentos narrados neste livro (...).98

96

Helena, p. 44.

97 Idem, p. 173.

98 Iaiá Garcia, p. 175.

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Certamente o narrador poderia fazer menção a esses mesmos

acontecimentos sem lembrar ao leitor que ele está diante de uma obra de ficção.

No entanto, opta pela quebra da ilusão romântica e estabelece novamente para

o leitor os limites entre o literário e a realidade, conforme sugeriu Marlene de

Castro Correia.

Considerando que o autor faça uso da ironia poética como princípio

articulador da narrativa como um todo, seria incoerente continuar listando

alguns pequenos trechos exemplificadores, visto que poderia limitar seu

entendimento ao universo retórico. De qualquer modo, ainda assim, puderam

demonstrar brevemente um pouco da postura auto-reflexiva do narrador

machadiano. É importante ainda lembrar que os princípios da modernidade

literária estão no centro da perspectiva estética de Machado de Assis. Como

demonstraremos no decorrer dos capítulos que analisam especificamente cada

romance, veremos que a representação do homem como um ser múltiplo e

contraditório por meio da pintura dos perfis de caracteres e a consequente

negação da trama de ações orientam os romances machadianos desde

Ressurreição.

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6. “RESSURREIÇÃO”: “Não quis fazer um romance de costumes”

Considerando a problemática da divisão da obra machadiana em fases

de estilos simétricos e opostos, Ressurreição (1872), por ser o romance de estreia

do autor nesse gênero ficcional, ocuparia um lugar de destaque na extremidade

de um dos estilos. Ou seja, entendendo que o narrador machadiano ou o

próprio Machado de Assis sofreu uma metamorfose que promoveu a conversão

do “eu romântico” em “eu realista”, seria fácil admitir que em seu primeiro

romance a bandeira do romantismo era empunhada com mais afinco e

engajamento ideológico e que esta, com o passar dos anos foi perdendo a

intensidade das cores, até ser substituída definitivamente pelo estandarte do

realismo. Não é o que se confirma. Ressurreição, antes mesmo de iniciar seu

primeiro capítulo, ainda no prefácio, rompeu com o romantismo naquilo que

havia de mais recorrente e essencial na sua forma de composição ficcional

narrativa, fugindo da representação pormenorizada da trama de costumes para

encenar o drama de caracteres dos personagens.

Não quis fazer romance de costumes; tentei o esboço de uma situação e

o contraste de dous caracteres; com esses simples elementos busquei o

interesse do livro.99

Hélio de Seixas Guimarães (2004) defende a ideia de que Machado de

Assis já teria iniciado a sua carreira como romancista implementando um

projeto antirromântico, desconstruindo por dentro a forma mais convencional

do seu tempo e objetivando a formação de um novo tipo de leitor. Nesse

99 Ressurreição, p. 54.

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quesito, concordamos em gênero, número e caso. Mais do que arquitetar um

novo projeto para o romance brasileiro, o escritor se preocupou em explicitar as

limitações do modelo romanesco, a partir do uso irônico dos seus próprios

elementos caracterizadores.

Machado de Assis começa sua carreira de romancista com um projeto

anti-romântico num momento em que o gosto pela literatura sentimental

e imaginosa domina o ambiente literário brasileiro. Sua tarefa consiste,

portanto, não só em apontar e demolir os anacronismos, mas também

atrair o público capaz de compreender e fruir a “literatura moderna”

que pretende construir.100

Para José Guilherme Merquior (1996), as três funções históricas da arte

literária são a edificação moral, o entretenimento e a problematização da vida

humana, sendo que “a literatura da era contemporânea – a literatura da

civilização industrial – cultiva preferencialmente esta última” 101. Nesse sentido,

o projeto estrutural de Ressurreição não somente o afasta do modelo de narração

canônico do romantismo, mas também realmente o alinha aos princípios da

narrativa moderna e contemporânea, inaugurando uma nova fase para as

nossas letras. A necessidade de encenação dos conflitos existenciais dos

personagens e do mergulho na questão existencial humana, que já era apontada

pelo crítico Machado de Assis desde a sua juventude, impulsionaria aquilo que

o futuro romancista executaria já desde os primeiros escritos nesse gênero

ficcional narrativo. Os passos ensaiados na elaboração de seu romance de

estreia são os mesmos executados nas obras consagradas pela crítica como

aquelas que definem a genialidade do autor – guardadas, é claro, as devidas

especificidades de cada obra e cada tempo. A ruptura com a representação

100 GUIMARÃES, Hélio de Seixas, 2004, p. 125.

101 MERQUIOR, José Guilherme, 1996, p.208.

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ilusória de uma ambiência folhetinesca já se dá no momento em que o narrador

apresenta o protagonista – não-idealizado – como apenas um personagem de

ficção e não como um pretenso ser do mundo real ou ideal. Essa é uma das

marcas mais evidentes da ironia poética como um mecanismo de

(des)construção do próprio ato de narrar, ou seja, o jogo de narração e meta-

narração que tanto é festejado na obra machadiana como um todo.

Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estas páginas, e

acompanhando o herói por entre as peripécias da singelíssima ação que

empreendo narrar.102

Ao indicar na “Advertência da primeira edição” que a ação será

“singelíssima”, o narrador machadiano sinaliza para o leitor a proposta de uma

inovação no que concerne o princípio que orientava a ficção narrativa

hegemônica até aquele momento: o princípio da causalidade. Abrindo mão da

encenação das ações, a narrativa abre espaço para a representação das paixões;

assim, não são os fatos que justificam as atitudes dos personagens nem

tampouco um perfil psicológico definitivo que relegue a eles tais ou quais

atitudes. Logo, a narrativa machadiana incorpora uma característica dramática,

na qual cada personagem é no mínimo duplo. Félix, por exemplo, protagonista

de Ressurreição é apresentado da seguinte maneira:

Não se trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um espírito lógico e

igual a si mesmo; trata-se de um homem complexo, incoerente e

caprichoso, em quem se reuniam opostos elementos, qualidades

exclusivas, e defeitos inconciliáveis.

102 Ressurreição, p. 56.

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Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto,

eram todavia diversas entre si, uma natural e espontânea, outra

calculada e sistemática. Ambas porém se mesclavam de modo que era

difícil discriminá-las. Naquele homem feito de sinceridade e afetação

tudo se confundia e baralhava.103

Com tal perfil, Félix afasta-se por completo da representação de uma

figura de caráter inteiriço tão tipicamente romântica, que, concebe seus

protagonistas de maneira idealizada, nos contornos de um herói épico. Em

Machado, ao contrário, a exposição das qualidades em confluência com a

revelação dos defeitos aproxima o personagem daquilo que se poderia adjetivar

como herói problemático ou ainda moderno. Em um romance convencional, o

personagem pode ser apresentado como uma figura cheia de vícios e detentora

de uma postura repugnante, mas, ao vivenciar uma experiência singular, passa

por uma espécie de epifania, na qual, a partir daquele momento, torna-se uma

pessoa simetricamente oposta à que era antes. Essa forma de representação, que

bem poderia figurar numa narrativa romântica, é radicalmente negada por

Machado de Assis, que, por exemplo, ao encenar o drama de caracteres de Félix

revela um homem partido, no qual perfis simétricos e opostos lutam dentro de

si. Não se pode, portanto, estabelecer um juízo de valor definitivo a respeito do

personagem, por isso, o narrador abre mão dessa atitude e deixa a conclusão

para o leitor. Aliás, a participação do leitor como uma espécie de coautor da

obra é um dos mais importantes legados machadianos para a modernidade

literária brasileira.

Na dinâmica de encenação desse conflito de caracteres, o leitor é

apresentado aos muitos “eus” que convivem em Félix e que manifestam

posições distintas entre si. Num primeiro momento, suscita a imagem de um

103 Ibidem.

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homem mulherengo e insensível ao sentimento alheio, a ponto de terminar seu

noivado com Cecília sem maiores explicações ou motivos claros. Diz ele:

(...) O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio

sem chamas nem lágrimas. Há seis meses que nos amamos; por que

perderás tu o dia em que começa o ano-novo, se podes também começar

vida nova?

(...)

Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade; ouviste-me

dizer que muita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias

então de mim; fazias mal; porque era alimentar uma esperança vã.104

Merece destaque o fato de o personagem ter utilizado nesse diálogo

uma metáfora literária para definir o seu relacionamento – “nossa afeição era

um capítulo curto”. Como veremos mais adiante, um dos principais motivos

que teriam levado Félix a tomar a decisão de terminar seu enlace com Cecília foi

o desejo de copiar o gesto de um personagem da ficção romanesca de Henri

Murger. Ainda no âmbito das simbologias literárias, vale lembrar que na cena

inicial do capítulo, a moça, que estava “assentada perto da janela, com o rosto

voltado para a rua”105, tomou um susto quando ouviu a voz do amado

chamando-a ali mesmo da sala. “Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo e tirou-

lhe o livro da mão”106. Imageticamente, Cecília estava diante de duas janelas –

uma voltada para a ficção e outra aberta para a realidade, como se quisesse ter

na vida um pouco do que lia no romance –, mas Félix fecha-lhe uma delas ao

decretar o fim do seu “capítulo amoroso”.

104 Ressurreição, p. 62.

105 Idem, p. 61.

106 Ibidem.

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Nota-se que a perspectiva dual é absolutamente relevante para a

construção da estrutura narrativa de Ressurreição. Ainda no plano simbólico,

vale lembrar que os fragmentos transcritos até aqui foram retirados somente

dos dois primeiros capítulos do romance, denominados respectivamente como

“No dia de ano-bom” e “Liquidação do ano velho”. Obviamente, essa

denominação se justifica porque tais ações ocorreram no ano novo, no dia

primeiro de janeiro, que é, etimologicamente, o “mês do ano dedicado a

Jano”107 – “o primeiro mês do ano lhe foi consagrado (janeiro, Janua, Januaris: a

porta do ano) e o primeiro dia do mês”108. Na mitologia romana esse era o

“deus das transições e das passagens, marcando a evolução do passado para o

futuro, de um estado a outro, de uma visão a outra, de um universo a outro”109.

“Protege ainda o início e o fim de todas as atividades”110 e, tal qual Félix, que

possuía um espírito com duas faces, “Jano era representado com duas faces

contrapostas”111. Nesse jogo de oposições está a base para a representação

simbólica do conflito de caracteres a ser desenvolvido e representado no

romance. Além disso, conforme explica Hélio de Seixas Guimarães, figura-se

também o embate entre o modelo convencional da ficção romanesca e a nova

forma que Machado de Assis deseja implantar.

Assim, o “contraste de dous caracteres” proposto na “Advertência”

parece sugerir outras dualidades: entre o velho e o novo padrão

ficcional, sugerido também pelos títulos dos dois capítulos iniciais, “No

dia de ano-bom” e “Liquidação do ano velho”; entre romantismo e

realismo; idealismo e materialismo; localismo e universalismo etc.112

107 Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, 2009, verbete.

108 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain, 2003, p. 512.

109 Ibidem.

110 Dicionário de mitologia greco-romana, 1976, p. 101.

111 Ibidem.

112 GUIMARÃES, Hélio de Seixas, 2004, p. 132.

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Na sequência da cena, Félix sai de casa de Cecília, deixando a moça

mergulhada em lágrimas – “O choro pertence ao ritual da separação. Era

indispensável.”113 –, segue para a Rua do Ouvidor, onde encontra Meneses –

“jovem advogado com quem entretinha relações”114 – e o convida para jantar.

Estranhando o fato de Félix não ter compromisso com Cecília naquela noite,

Meneses fez a indagação a qual Félix respondeu literariamente: “Acabei o

capítulo; Cecília está livre”115. A resposta confundiu ainda mais o rapaz, que, a

partir dali, não pode conter a chuva de perguntas que buscavam entender o

motivo de um desenlace amoroso aparentemente tão firme. Félix, respondendo

com frieza e desdém, resumiu a questão:

Eu te digo, (...), os meus amores são todos semestrais; duram mais do

que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um ano é a

eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse

tempo, o amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante

deixa o hotel; entra depois o aborrecimento – mau hóspede.116

É claro que na postura de Félix não se reconhece traço algum típico do

romantismo, mas somente isso não seria suficiente para desconstruir a lógica do

estilo. Um ficcionista talentoso que se enquadrasse nessa escola poderia

justamente explorar essa frieza e intransponibilidade do personagem para

defender a tese romântica de que o amor é capaz de vencer a todas as coisas,

inclusive corações petrificados como o dele. Ou seja, bastaria que Félix

encontrasse uma mulher que verdadeiramente mexesse com seus sentimentos

113 Ressurreição, p. 63.

114 Ibidem.

115 Ibidem.

116 Ressurreição, p.18-9.

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para que se descobrisse um profundo romântico. Foi o recurso utilizado, por

exemplo, por Joaquim Manuel de Macedo, naquele que se tornou um dos

maiores clássicos da nossa produção ficcional romanesca, A moreninha (1844),

considerado por muitos críticos como o primeiro brasileiro – senão, pelo ponto

de vista cronológico, já que O filho do pescador, de Teixeira e Souza, data de 1843,

certamente pela popularidade117. No romance de Macedo, o protagonista

Augusto gabava-se com os amigos de que não perdia mais do que quinze dias

pensando em uma moça e de que era incapaz de amar três dias. Ao fim, ao

cabo, o jovem encontra a cura para esse “mal de não amar” nos braços da

moreninha Carolina. Ora, o mesmo poderia ocorrer com Félix, quando Lívia

entrou na sua vida.

Após o término do relacionamento com Cecília, não havia empecilho

algum para que Félix se lançasse a um novo amor semestral. A irmã do seu

amigo Viana – o qual gostava de filar as refeições na casa dos amigos, ou seja,

era um “parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que

preconceitos, menos sensibilidade que disposições”118 – reunia uma série de

qualidades que a tornavam bastante atraente: “representava ter vinte e quatro

anos”119, era “extremamente formosa” e ficara livre e desimpedida “há perto de

dois anos, depois que lhe morreu o marido”120. Em sua primeira aparição no

romance, em sarau na casa do coronel, Lívia já era consagrada a mais bela das

117 Ubiratan Machado (2001) explica “a origem e a composição do primeiro romance brasileiro. Nas férias de 1843, o acadêmico de Medicina Joaquim Manuel de Macedo vai descansar em sua cidade natal, Itaboraí. Em pleno ócio, longe da agitação da Corte, conta-se que apostou com um colega que seria capaz de narrar seus amores, em forma de romance, no prazo de um mês. Aceita a proposta, pôs-se sofregamente a trabalhar. Em trinta noites, A moreninha estava pronta. Durante toda a vida, o escritor manteve o hábito do trabalho noturno. Às dez horas, tomava chá e punha-se a escrever, até as duas ou três horas da madrugada. Gostava então de bebericar cerveja, mas, fora desses momentos de fluxo criativo, não ingeria álcool” (p.48). O crítico ainda dimensiona da seguinte maneira o impacto do romance na vida de seu autor: “O sucesso do livro determinou uma mudança completa na vida de Macedo. Abandonou a medicina, que exerceu por pouquíssimo tempo, e dedicou à literatura um lugar cada vez mais importante em sua vida” (Ibidem).

118 Ressurreição, p. 58.

119 Idem, p. 72.

120 Ibidem.

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que ali se encontravam, “a rainha da noite”121. É claro que a bela também

chamou a atenção de Félix, que, apesar da postura defensiva, acabou cedendo

aos seus sentimentos. O contraste de seus caracteres logo vai se manifestando –

não apenas entre um e outro, mas em si mesmos:

Félix (...) parecia indiferente aos sentimentos que inspirava, e deste

modo obedecia a um sistema não menos que à disposição do seu

espírito. O mesmo praticava em relação ao amor. Evitava, quando podia,

animar as esperanças da moça, e posto soubesse a fundo a retórica da

paixão, não a empregava sem uma parcimônia, que lhe parecia

economia razoável.

Lívia, porém, não dissimulava nem hesitava; deixava transparecer no

rosto o que sentia no coração. Jogava com as cartas na mesa sem

previsão de cálculo. Expansiva e discreta, enérgica e delicada, entusiasta

e refletida, Lívia possuía esses contrastes aparentes, que não eram mais

que harmonias do seu caráter. Os próprios defeitos dela nasciam de suas

qualidades. Era crédula à força de ser confiante, ríspida com tudo o que

lhe parecia baixo e fútil. Tinha a imaginação quimérica, às vezes – o

coração supersticioso, a inteligência austera, mas compensava estes

defeitos, se o eram, por qualidades capitais e raras.122

Embora estivesse cada vez mais envolvido emocionalmente com a

viúva, Félix era incapaz de confiar, pois não acreditava “na sinceridade dos

outros”123. Logo, a percepção de que estaria se apaixonando por ela não traz

para o protagonista machadiano o conforto ou a tranquilidade, ao contrário,

desmascara seus medos e inseguranças.

121 Idem, p. 68.

122 Idem, p. 89-90.

123 Idem, p. 109.

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Fui longe demais, ia ele dizendo consigo; não devia alimentar uma

paixão que há de ser uma esperança, e uma esperança que não pode ser

cousa mais do que um infortúnio. Que lhe posso eu dar que corresponda

ao seu amor? O meu espírito, se quiser, a minha dedicação, a minha

ternura, só isso... porque o amor... Eu amar? Pôr a existência toda nas

mãos de uma criatura estranha... e mais do que a existência, o destino,

sei eu o que é isso?124

Em um momento de absoluta insegurança, Félix chega a escrever uma

carta para Lívia pondo um fim ao relacionamento. Aos olhos do doutor, quanto

mais apaixonado ficasse, mais sofreria com uma futura desilusão. Por isso, o

remédio era cortar o mau pela raiz. Arrependido, mas sem tomar uma atitude

para reverter o feito, Félix sofre sozinho em casa. É Lívia que vai até ele para ter

uma conversa olho no olho. Depois disso, Félix, que não tinha motivo concreto

algum que justificasse a desconfiança, reatou o namoro com Lívia. Mais adiante,

ele próprio assume que nunca havia amado alguém de verdade e que Lívia teria

sido a responsável pelo afloramento desse novo eu:

É certo que me ressuscitaste, (...); e se o futuro me guarda ainda

alguns dias de felicidade sem mescla, a ti só os deverei, minha boa Lívia;

tu só haverás feito o milagre. Mas...125

Se Ressurreição fosse de fato um romance romântico, encontraria aqui o

seu “final feliz” perfeito. Félix, que era um homem de sentimento petrificado e

existência estagnada, teria ganhado vida quando a chama do amor reavivou seu

coração. Nessa lógica, inclusive o título seria mais do que adequado. Entretanto, 124 Idem, p.88.

125 Idem, p. 111.

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a disposição machadiana de fazer um romance inovador se manifesta na quebra

de uma expectativa que seria típica das tramas ficcionais vigentes até aquele

momento em nossa literatura. A encenação do conflito de caracteres em Félix

não permite a adoção de um ponto de vista único e absoluto, matando assim

uma face de seu espírito. A palavra adversativa que encerra a fala do

personagem, nesse momento (Mas...) aponta para a necessidade de

representação da contrariedade126. Ora, para o amor, segundo a ideologia

romântica, não existe um “porém” – ele basta em si –, mas para o protagonista

machadiano, era preciso algo mais: se não houver também “confiança”, que era

o que lhe faltava, o amor “será um largo e inútil martírio”127.

É justamente essa falta de confiança que inviabilizará o casamento de

Félix com Lívia, esta que, depois de ver tantas vezes seus sonhos de vida a dois

frustrados pelas inseguranças e incertezas daquele, resolve, então, que o melhor

para os dois é término do relacionamento. Lívia sabia que seu futuro estaria nas

mãos de um homem que muda convicções ao sabor do vento e, principalmente,

que Félix jamais mudaria. Nessa trama, o amor não venceu:

Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a

sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe

de homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta:

“perdem o bem pelo receio de o tentar”.128

Nesse trecho, que é o último parágrafo do romance, o narrador retoma

a citação que havia sido feita na “Advertência”:

126 O complemento da frase de Félix, que é o que garante a adversidade, também é simbolicamente feito com uma metáfora literária: “A obra não está completa, continuou Félix; metade apenas” (p. 111). Levando em conta que, de fato, a essa altura a trama de Ressurreição encontra-se praticamente no meio, visto que essa frase é dita perto do final do capítulo XI, de um total de XXIV, fica claro no romance o jogo irônico de narração e meta-narração.

127 Ressurreição, p. 111.

128 Idem, p.113.

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Minha ideia ao escrever este livro foi por em ação aquele pensamento

de Shakespeare:

“Our doubts are traitors,

And make us lose the good we oft might win.

By fearing to attempt”129

Ao colocar um trecho da peça shakespeariana Medida por Medida na

narrativa, Machado de Assis já estaria apontando para o leitor que seu projeto

de composição ficcional está mais voltado para o princípio que rege o dramático

do que para a lógica das tramas folhetinescas de então. Um escritor realista, por

exemplo, poderia até fazer uso de um mote para a composição do romance

desde que retratasse um acontecimento real e não um pensamento dramático. Já

um escritor romântico estaria mais preocupado em justificar as ações do

romance a partir da citação. No entanto, tal pensamento não explica o

personagem, mas é vivenciado por ele. Machado muda, pois, o foco das ações

para os conflitos existenciais da pessoa humana.

Interessa para a obra machadiana o homem em si, com todos os seus

conflitos internos, que nem sempre se manifestam no plano externo das ações.

No universo ficcional com o qual trabalha o escritor, não importa analisar as

ações na tentativa de elaborar um ponto de vista que julgue o caráter do

indivíduo, mas sim mergulhar na problemática existencial do indivíduo a qual

pode ou não se manifestar por meio de ações. Por isso, o romance machadiano

não é uma justaposição de fatos: na verdade ele deixa de narrar os eventos

linearmente para narrar os efeitos causados por eles. Faz-se, portanto, uma

narrativa interna. As peças escritas por Machado de Assis foram consideradas

129 “São as nossas dúvidas uns traidores, que nos fazem perder muita vez o bem que poderíamos obter, incutindo-nos o receio de o tentar.” (Cf. ASSIS, Machado de. Ressurreição. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975 – Edições críticas de obras de Machado de Assis, v. 8 –, p. 61.)

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mais legíveis e menos representáveis por seu amigo e também dramaturgo

Quintino Bocaiúva, que adotava o conceito de representação aristotélico, que

pressupõe um enredo de ações. Contudo, a representação dos dramas

existenciais humanos, por meio de longos monólogos com quase nada de ação,

é uma das possibilidades mais recorrentes da dramaturgia moderna e

contemporânea. Sendo assim, o leitor que espera saciar sua curiosidade ou

assistir a um enredo de ações não vai gostar da obra de Machado de Assis,

porque encontrará uma narrativa preocupada em conhecer mais o íntimo do

ser. Para ler sua obra, é preciso preocupar-se com o cognitivo e estar preparado

para um romance de reflexões.

Em Ressurreição o jogo trágico da “medida por medida” – “A pressa

exige pressa; e vagar, vagar; o semelhante só pelo semelhante é compensado,

medida por medida sempre em tudo”130 – faz de Félix alguém “essencialmente

infeliz”, pois sempre haverá um lado insatisfeito dentro de si. Se observado

nessa perspectiva, esse primeiro romance machadiano estaria afastado

radicalmente da ideologia que define o romantismo, o que já seria suficiente

para colocar em xeque a análise da crítica tradicional. Entretanto, há na sua

estruturação a aplicação do mesmo fundamento que é tão celebrado na

chamada segunda fase: a ironia. Observando o mesmo trecho do último

parágrafo do romance, Alfred MacAdam (1971) aponta para a materialização de

um espírito que ele considera satírico e que, segundo ele, revela-se, dentre

outras coisas, na escolha do nome “Félix” para um personagem que terá um

destino “infeliz”, voltando para o mundo dos mortos-vivos, mesmo depois de

ter sido ressuscitado pelo amor de Lívia.

O nome irônico de Félix ecoa no título irônico do livro: Lázaro

levantando só para que possa morrer de novo, e as oportunidades de

130 SHAKESPEARE, William. Medida por medida, Ato V, cena I, p.117.

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Félix para a felicidade são levantadas só para que possam cair e ele

possa voltar à morte-em-vida.131

Analisando recurso irônico como um princípio geral articulador da

tecedura narrativa, Ronaldes de Melo e Souza (2000), afirma que a ironia

também se constitui numa forma privilegiada de conhecimento, colocando-se

numa instância mais complexa e revolucionária que a filosófica, “contrapondo-

se à tradição ontológica, teológica e lógica da metafísica”132, e indo mais além

no jogo dialético hegeliano, porque não aceita uma síntese absoluta, mas sim

uma interação dinâmica dos contrários – denominada pelo próprio crítico como

o “princípio da reversibilidade”133 –, resultando numa tensão harmônica desses

elementos polares, que não se excluem, mas se completam. Assim, no jogo

irônico de opostos – bem/mal, sim/não, luz/sombra, sensível/inteligível,

corpo/alma, matéria/espírito, aparência/essência, imanente/transcendente,

feliz/infeliz –, a trama romanesca manifesta esse dualismo complementar,

sobretudo na postura do narrador, que se concebe, no mínimo duplo, a ponto

de narrar e fazer a reflexão crítica sobre a narração. O narrador assume,

portanto, toda a sorte de caracteres e promove a ruptura com o princípio

monológico, dando bases a uma narrativa multiperspectivada.

A percepção dessa dualidade do ser é algo fundamental para o

entendimento da obra de Machado de Assis. Afinal, o que se pode ver na

representação do defunto-autor Brás Cubas; ou nos dois papéis representados

por Bento Santiago; ou ainda nos gêmeos Pedro e Paulo? O que se pode dizer

então de Félix e a sua essência ambivalente? Além disso, as interrupções e

comentários de um narrador que a todo o momento reflete criticamente sobre

sua própria narração, ironizando as situações, como se vê em Ressurreição

131 MACADAM, Alfred. (1971) p.38.

132 SOUZA, Ronaldes de Melo e, 2000, p. 32.

133 SOUZA, Ronaldes de Melo e. “O princípio da reversibilidade em Machado de Assis”. In: Humanidades, (1992) 8: 334-45.

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estende-se por toda a obra do escritor, sendo um dos seus principais recursos.

Vale lembrar que, já lá no primeiro capítulo, antecipando o fato de que Félix

terminaria o noivado com Cecília, diz o narrador:

Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para o caso de seus

velhos amores. Não eram velhos; tinham apenas seis meses de idade. E

contudo iam acabar sem saudade nem pena, não só porque já lhe

pesavam, como também porque Félix lera pouco antes um livro de

Henri Murger, em que achara um personagem com o sestro destas

catástrofes sentimentais. A dama dos seus pensamentos, como diria o

poeta, receberia assim um golpe moral e literário.134

Como assinalado anteriormente, a ironia não é uma questão retórica,

mas sim estrutural. Ela está, por exemplo, no fato de o autor intitular o capítulo

em que Félix termina com Cecília de “Liquidação do ano velho”, como se o

personagem quisesse começar o ano-novo livre de dívidas. Está também no fato

de o narrador, no momento em que o protagonista irá expor seu lado mau-

caráter, apresentá-lo “nosso herói”. Aliás, nosso de quem? Seria essa uma

piscadela irônica para um leitor habituado aos protagonistas folhetinescos?

Outro ponto ainda a ser destacado aqui é o fato de Félix talvez ter sido

motivado apenas por aquela cena que leu no tal livro de Henri Murger,

demonstrando, assim, sua falta de personalidade. É claro que mais irônica

ainda é a sua tentativa de aplicar a verdade ficcional à sua realidade, aplicando

metáforas literárias às situações da vida. E, é claro, obviamente, o comentário

cínico do narrador ao final. Ora, se essa postura de narrador – ator dramático e

crítico – está presente em toda a obra de Machado de Assis, não parece legítimo

afirmar que haja uma ruptura radical na unidade de sua obra que justifique a

classificação das duas fases.

134 Ressurreição, p.57.

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Cabe a ressalva de que, apesar de termos lançado o foco preferencial da

análise no protagonista, todos os personagens são apresentados como

indivíduos que reúnem em si qualidades simétricas e opostas. Cecília, por

exemplo, está longe de figurar como a coitadinha traumatizada pelo fim do

relacionamento com Félix. Dois capítulos à frente, a moça já havia esquecido o

jovem doutor e estava envolvida com Moreirinha. A trama de Ressurreição, aliás,

não é composta por pares formados e definitivos. Há sempre um outro alguém

que se apresenta no horizonte e que, de certo modo, desestabiliza as outras

relações. Ou seja, há uma espécie de jogo que arma e desarma os pares afetivos.

A estrutura irônica do conflito de caracteres se manifesta no princípio

da reversibilidade das disposições anímicas dos amantes. Félix,

caracterizado nos capítulos primeiro, "No Dia de Ano-Bom", e

segundo, "Liquidação do Ano Velho", como senhor absoluto de seus

relacionamentos amorosos, que conquista e abandona mulheres de

acordo com o calendário sazonal e o capricho pessoal, deixa de ser o

conquistador calculista ao se apaixonar por Lívia. Motivada pelas

dúvidas e ciúmes de Félix, Lívia se liberta de sua atitude sonhadora e

decide não se arriscar num casamento incerto. A consonância do

romance com o ditame poético da medida por medida ou do

equilíbrio dinâmico de forças simétricas e opostas, compendiado na

comédia shakespeariana, atinge a sua plenitude tragicômica. A tensão

excessiva a que Félix submete Lívia provoca a reação oposta. As

emoções extremas da dúvida e do ciúme do amante desencadeiam as

reflexões ponderadas da amada acerca do indubitável fracasso de

uma eventual união entre os dois. No movimento reversível do

drama amoroso, os atores intercambiam os papéis, e o desfecho

trágico se intimiza com o efeito cômico: o amante dominador se torna

dominado, e a amada subalterna assume a decisão que a libera dos

liames da servidão sentimental.

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Da concepção machadiana do romance como drama tragicômico de

caracteres resulta o elevado número de pares de personagens. No

reduzido espaço de cento e quinze páginas, representam-se os

encontros e desencontros de Félix e Cecília, Félix e Lívia, Batista e

Clara, Meneses e Lívia, Moreirinha e Cecília, Félix e Raquel, Meneses

e Raquel. A quantidade desproporcional dos personagens que

representam "uma singelíssima ação" em curto transcurso espacial e

temporal se explica pelo primado narrativo do narrador

singularizado como analista e intérprete dos caracteres. Mas o fato de

comparecerem emparelhados intensifica o vínculo analógico com a

comédia shakespeariana.135

Machado, a partir disso, fez duas grandes revoluções desde o início da

sua obra: rompeu com o projeto literário nacional hegemônico e se contrapôs à

forma canônica de romance. Afrânio Coutinho136 afirma que Ressurreição é o

mais moderno dos romances iniciais, pois nele encontram-se alguns traços

definitivos de sua fisionomia: a penetração psicológica, a preocupação da

análise, o monólogo interior, o desenvolvimento alinear da intriga, a narrativa

complexa e, sobretudo, há uma intenção inovadora do autor em relação ao

romance romântico em voga. Nesse sentido, parece-nos claro que em

Ressurreição Machado de Assis inicia seu projeto de desconstrução do

romanesco:

Ressurreição contém todos os elementos do romance romântico, mas o

narrador imprime uma desaceleração ao andamento da trama,

reduzindo a movimentação dramática que seria de se esperar de uma

narrativa mais convencional, alocando-se na consciência atormentada de

135 SOUZA, Ronaldes de Melo e, 2006, p. 76-7.

136 COUTINHO, A. “Introdução”. In: ASSIS, Machado. Ressurreição. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, pp. 11-4.

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Félix. Longe de ser involuntária, essa amortização do ritmo narrativo

constitui elemento central da organização da obra, que questiona

abertamente as convenções do tipo do texto a que constantemente faz

referência.137

Nesse sentido, parece-nos claro que em Ressurreição Machado de Assis

inicia seu projeto de desconstrução do romanesco. Usando as palavras de Félix:

“a vida não é fábrica de sentimentos; não se vive como se romanceia”138.

137

GUIMARÃES, Hélio de Seixas, 2004, p. 127.

138 Ressurreição, p. 139.

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7. “A MÃO E A LUVA”: a ação apenas como tela para os contornos dos perfis

Na “Advertência” da 1ª edição de A mão e a luva (1878), Machado de

Assis já deixava claro para o leitor que o desenho dos caracteres foi seu “objeto

principal, se não exclusivo”139, do romance; servindo-lhe a ação apenas de tela

em que lançara os contornos dos perfis. Por conseguinte, o leitor habituado à

trama romanesca em que o enredo se constrói essencialmente a partir da

representação das ações certamente ficará frustrado com a simplicidade da

trama de A mão e a luva. Na “Advertência de 1874”, Machado se justifica,

dizendo que a obra, “sujeita às urgências da publicação diária, saiu das mãos do

autor capítulo a capítulo, sendo natural que a narração e os estilos padecessem

com esse método de composição”140, segundo ele, um pouco fora de seus

hábitos. Destaque-se que ele mesmo preferiu – talvez pelo fato de se tratar de

um livro mais curto, simples e direto – chamar A mão e a luva de “novela”141. No

entanto, Flora Süssekind (2006) explica que os próprios escritores não sabiam

muito bem explicar os limites entre romance e novela, de modo que acabavam

chamando um pelo outro e vice-versa.

Os próprios autores ora os intitulam novela (acrescentando em

geral alguma indicação geográfica: “baiana”, “brasileira”, “rio-

grandense”), ora romance, ora crônica histórica, ora romancete,

ora legenda ou história “brasileira”, ora romance histórico.

Variações de classificação que não implicam necessariamente

grandes mudanças nos textos em questão. É verdade que novela

139 A mão e a luva, p. 18.

140 Ibidem.

141 Ibidem.

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era geralmente uma história contemporânea e que romance ou

crônica costumavam ser aplicados a textos voltados para o

passado histórico. Isso até a popularização nos anos 40, com O

filho do pescador e A Moreninha, respectivamente em 1843 e 1844, do

termo romance para os textos de ficção em prosa de certa

extensão.142

Basicamente, o enredo envolve apenas uma meia-dúzia de personagens

e o evento gerador de toda a problemática da trama gira em torno de uma

jovem que precisa escolher um esposo entre três pretendentes. A personagem

principal da história é Guiomar, uma moça de origem humilde, que, tendo

ficado órfã, passa a ser criada pela madrinha. Esta, uma baronesa muito rica,

que vê em Guiomar a pessoa a quem pode dar todo o amor que seria dado à

filha que perdera. Vivendo sob a tutela da madrinha, a jovem tem uma vida

completamente diferente daquela que teve até então. Aliás, a partir daquele

momento, Guiomar, que antes pensava em virar professora para, segundo ela,

poder “ganhar o pão”143, descobriu o conforto.

Quando ainda sonhava com o magistério, Guiomar estudava na escola

da tia de Estevão, um rapaz sonhador com quem ela tem um breve

envolvimento e que se torna completamente apaixonado por ela. A jovem, que

em praticamente toda a trama se mantém fria nos sentimentos, não corresponde

ao amor do rapaz, que acaba se mudando para São Paulo para esquecê-la.

Passados alguns anos, Estevão, aparentemente livre dos fantasmas do passado,

volta ao Rio de Janeiro e, estando na casa do seu grande amigo de faculdade,

Luís Alves, reencontra Guiomar, que morava na casa ao lado. Inicia-se uma

nova série de tentativas de conquistar o amor da moça. Esta, por sua vez,

mantém-se impassível. Mais adiante, entra em cena na disputa pelo amor da

142 SÜSSEKIND, Flora, 2006, p. 164.

143 A mão e a luva, p. 49.

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jovem o sobrinho da baronesa, Jorge – rapaz de caráter dúbio, interessado antes

de tudo no dinheiro da tia. Apesar de também não se encantar por Jorge,

Guiomar passa a temer que uma negativa em relação à corte que lhe venha

fazer o jovem possa desagradar à madrinha. Por fim, nem Estevão nem Jorge

ganham a disputa pela mão da bela, mas sim, Luís Alves, que subitamente, vê-

se interessado por aquela com quem outrora tivera apenas um “namoro de

vizinho, tentativa que durou pouco mais de vinte e quatro horas”144. Guiomar e

Luís Alves se casam e, aparentemente, vivem felizes para sempre.

Visto apenas dessa forma, A mão e a luva em nada se afasta da

caracterização mais convencional dos folhetins românticos. Todavia, há uma

série de elementos que podem ser identificados na tessitura da narrativa e que

fogem à representação convencional da trama de ações. Como disse o próprio

autor, a ação no romance representa apenas o pano de fundo, ou seja, a tela

onde ele lançou os contornos dos perfis de caracteres a serem explorados na

trama. Por meio desse recurso, Machado de Assis estaria se afastando do

modelo hegemônico da ficção narrativa na literatura brasileira e fundando as

bases para uma nova forma de estruturação. Observando apenas a

movimentação das ações dos personagens, deixa-se de lado a investigação das

paixões humanas e das experiências emocionais que estão por trás dos eventos,

o que, segundo o autor, não seria o interesse principal de sua obra como um

todo.

Um crítico, Taine, escreverá que, se a exata cópia das coisas fosse o fim

da arte, o melhor romance ou o melhor drama seria a reprodução

taquigráfica de um processo judicial.145

144 Idem, p. 53.

145 “A nova geração”. In: Crítica literária. n.29. Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre: W.M. Jackson, 1946, p.196.

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Na visão da maior parte da crítica especializada, é bastante comum

apontar como o grande demérito da produção ficcional da chamada primeira

fase de sua obra o tipo de construção narrativa que o aproxima mais do estilo

alencarino de composição do que o que se vê naquele praticado por ele na

maturidade. A respeito do romance Ressurreição, por exemplo, Merquior (1996)

afirma o seguinte:

(...) essas páginas realmente desdenham as exterioridades ao gosto da

ficção da época. Mas os pontos de estrangulamento do discurso

narrativo são numerosos. A declaração patética incha os diálogos, que

uma linguagem figurada de gosto duvidoso torna ainda mais

forçados.146

Ora, o questionamento que se pode fazer em relação ao uso dessa

“linguagem figurada de gosto duvidoso” talvez seja o seguinte: o autor teria

optado por tal uso de maneira consciente ou estaria tão somente limitado a isso

por desconhecer outra técnica de composição? Ou seja, Machado de Assis

utilizou essa linguagem “excessivamente romântica” porque esse era o seu

estilo de compor ou seria uma estratégia irônica do autor para desconstruir os

convencionalismos literários vigentes nas letras nacionais por meio do seu

próprio uso? A resposta a essas questões poderia comprovar uma coerência

interna em toda a obra do escritor, que, estaria, assim, a cada passo renovando a

literatura brasileira.

Em A mão e a luva, por exemplo, certas passagens com descrições longas

e repletas de imagens consagradas por um certo lirismo ultrarromântico são

mais comuns quando trazem Estevão à boca da cena. Ora, é muito curioso ser

justamente este um jovem amoroso e sonhador que compunha “versos que

imprimiu nos jornais acadêmicos, os quais eram todos repassados do mais puro 146 MERQUIOR, José Guilherme, 1996, p. 215-6.

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byronismo, moda muito do tempo”147; um homem que, afinal, “nascera para

amar”148. Nesse sentido, não estaria sendo o escritor aquele que contaminaria a

narrativa com sua linguagem romântica, mas sim, a narrativa que estaria

representando o romantismo que caracteriza o personagem que está em cena;

logo, quem carrega a imagem de lirismos é o próprio personagem. Afinal, como

o interesse, no que se referia à elaboração do projeto arquitetônico do romance,

era construir “os contornos de perfis” de caracteres que fossem “naturais e

verdadeiros”, como afirmara na “Advertência de 1874”, seria coerente que a

narrativa absorvesse esses muitos pontos de vista.

Assim, embora se posicione em terceira pessoa, o narrador parece

mudar de dicção de acordo com o personagem que entra em cena. Por exemplo,

ao apresentar os perfis dos amigos Estevão e Luís Alves, o narrador não apenas

fala a respeito das diferenças entre os dois, mas faz isso de maneira diferente

também. Ou seja, o narrador não se contenta em apenas dizer que Estevão é

mais romântico e que Luís Alves é mais pragmático, mas sim, constrói para

aquele uma ambientação lírica capaz de acolher a sua personalidade e para este

uma representação mais objetivamente compatível com o seu caráter.

Cursavam estes dois moços a academia de S. Paulo, estando Luís Alves

no quarto ano e Estevão no terceiro. Conheceram-se na academia, e

ficaram amigos íntimos, tanto quanto podiam sê-los dois espíritos

diferentes, ou talvez por isso mesmo que o eram. Estevão, dotado de

extrema sensibilidade, e não menor fraqueza de ânimo, afetuoso e bom,

não daquela vontade varonil, que é apanágio de uma alma forte, mas

dessa outra bondade mole e de cera, que vai à mercê de todas as

circunstâncias, tinha, além de tudo isso, o infortúnio de trazer ainda

sobre o nariz os óculos cor-de-rosa de suas virginais ilusões. Luís Alves

via bem com os olhos da cara. Não era mau rapaz, mas tinha o seu grão

147 A mão e a luva, p. 28.

148 Idem, p. 36.

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de egoísmo, e se era incapaz de afeições, sabia regê-las, moderá-las, e

sobretudo guiá-las ao seu próprio interesse. Entre estes dois homens

travara-se amizade íntima, nascida para um na simpatia, para outro no

costume. Eram eles os naturais confidentes um do outro, com a

diferença que Luís Alves dava menos do que recebia, e, ainda assim,

nem tudo o que dava exprimia grande confiança.149

A certa altura da narrativa, esses dois amigos voltavam do teatro em

direção à casa de Luís Alves. Estevão vinha embriagado pela imagem de

relance de uma mulher de costas que vira na saída do espetáculo. O parágrafo

parece, então, refletorizar o espírito de Estevão, deixando com isso as frases

carregadas de lirismo; mas, quando Luís Alves entra em cena, todo o lirismo

some abruptamente. A justaposição dessas duas personalidades na mesma cena

produz um efeito irônico, que, por sua vez, desconstrói o princípio de

representação característico do modelo romântico.

A noite estava bela, como as mais belas noites daquele arrabalde. Havia

luar, céu límpido, infinidade de estrelas e o céu a bater molemente na

praia, todo o material, em suma, de uma boa composição poética, em

vinte estrofes pelo menos, obrigada a rima rica, com alguns esdrúxulos

rebuscados nos dicionários. Estevão poetou, mas poetou em prosa, com

um entusiasmo legítimo e sincero. Luís Alves, menos propenso às coisas

belas, preferia a mais útil de todas naquela ocasião, que era dormir. Não

conseguiu sem ouvir ao hóspede tudo quanto ele pensava acerca

daquele “pinto, que era das almas”, aqueles olhos azuis, “profundos

como o céu”, exclamava Estevão.150

149 Idem, p. 20-1.

150 Idem, p. 32.

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A representação do contraste de caracteres aplicada ao próprio ato de

narrar fica ainda mais evidente quando se podem cotejar os perfis de Estevão e

Guiomar, pois tudo o que nele transborda em lira, nela se converte em anti-lira.

Por exemplo, na cena em que, depois de alguns anos, eles se reencontram, a

narrativa é bastante arrastada, quando alinhada ao estado de espírito do moço,

mas fica evidentemente mais seca quando traduz a perspectiva da moça:

O sítio e a hora eram mais próprios de um idílio, que de uma fria e

descolorida prática. Um céu claro e límpido, um ar puro, o sol a coar por

entre as folhas uma luz ainda frouxa e tépida, a vegetação em derredor,

todo aquele reviver das cousas parecia estar pedindo uma igual aurora

nas almas. Estas é que deviam ali falar a sua língua delas, amorosa e

cândida, em vez de outra, cortês, elegante e rígida, que a nenhum deles

desprazia, decerto, mas que era muito menos voluntária nos lábios de

Estevão.

Guiomar falava com certa graça, um pouco hirta e pausada, sem viveza,

nem calor.151

Seria interessante perguntar por que o autor foi tão econômico ao se

referir a Guiomar, a ponto de fazer um parágrafo inteiro com apenas uma frase.

Afinal, era ela a personagem que recebeu uma atenção especial, e que, segundo

o próprio autor, exigiu um esforço maior na elaboração do seu caráter.

Convém dizer que o desenho de tais caracteres, – o de Guiomar,

sobretudo, – foi o meu objeto principal, se não exclusivo, servindo-me a

ação apenas de tela em que lancei os contornos dos perfis. Incompletos

embora, terão eles saído naturais e verdadeiros?152

151 Idem, p. 40.

152 Idem, p. 18.

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Parece claro, portanto, que, justamente pelo fato de a personagem ser

uma mulher pragmática e pouco afeita aos derrames lacrimosos do lirismo, a

narrativa se apresente numa dicção mais “a palo seco”153. Portanto, a

refletorização dos temperamentos emocionais dos personagens manifesta-se no

modo de composição e estruturação dos enunciados comunicativos que fazem

referência a esses mesmos personagens, quando eles estão em cena. Ou seja, a

pintura dos perfis de caracteres dos personagens é feita pelo narrador

machadiano não apenas no nível do conteúdo, mas também no nível da forma.

A adoção desse método narrativo é explicitada pelo próprio narrador:

Não falo eu, leitor: transcrevo apenas e fielmente as imaginações do

namorado; fixo nesta folha de papel os voos que ele abria por esse

espaço fora, única ventura que lhe era permitida.154

Certamente, o uso dessas técnicas inovadoras singulariza o escritor no

contexto da produção ficcional narrativa vigente até aquele momento na

literatura brasileira, deixando clara, pois, sua intenção em fugir ao padrão

convencional. Vistas por esse prisma, as coincidências na obra machadiana, ou

obsessões do autor, não seriam apenas limitadas ao universo temático do

enredo, mas sim, estariam manifestas nas tentativas de inovação no plano da

forma literária.

Em um primeiro momento, lendo o resumo de enredo apresentado

anteriormente, não seria difícil encontrar os pontos de convergência do

153 Expressão usada pelo poeta contemporâneo João Cabral de Melo Neto para caracterizar sua poética anti-lírica, anti-musical, de imagens concretas e economias vocabulares: “se diz a palo seco / a esse cante despido: / ao cante que se canta / sob o silêncio a pino.” – “A palo seco”. In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994, p. 247.

154 A mão e a luva, p. 113.

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romance com uma trama folhetinesca. No entanto, aquilo que se coloca como

uma aparente idealização, tão típica das convenções romanescas, pode ser

entendido de outra maneira quando se analisa o que está sendo “idealizado”.

Por exemplo, vale perguntar se o “final feliz” construído para o romance A mão

e a luva está completamente enquadrado nos princípios que regem a moral e a

ideologia românticas. Afinal, se os aparentes pontos de convergência são

utilizados ironicamente para representar divergências, não parece legítimo

classificar o romance como romântico.

Na trama, Guiomar é apresentada como uma moça bonita, de origem

humilde, fria nos sentimentos e ambiciosa, pois busca ascensão social.

Tecnicamente não seria uma grande novidade se a personagem encenasse o

dilema entre viver um grande amor ou garantir seu futuro financeiro. Qualquer

que fosse a escolha seria a legitimação de uma visão de mundo em que não se

conciliam pares opositivos como emoção e razão. Entretanto, ao garantir a

possibilidade de que a personagem tivesse as duas coisas, o narrador

machadiano encena a fusão harmônica dos contrários, por meio da

possibilidade de construção racional de um querer. Essa perspectiva fusionista

dos contrários é algo bastante recorrente na obra de Machado de Assis e se

reflete no conflito de caracteres dos personagens, que já não podem mais ser

julgados por um princípio maniqueísta, que os qualifique como bons ou maus.

Assim, eles passam a jogar segundo as suas próprias conveniências, usando as

mais variadas estratégias para alcançar seus objetivos, sem que isso seja

elemento determinante para um julgamento negativo de caráter por parte do

narrador. Quando, por exemplo, já sabendo que a baronesa tomara ciência de

seu interesse por Luís Alves, prefere dizer a ela que havia escolhido Jorge,

Guiomar utilizou-se de uma estratégia cínica para, dando provas de seu amor e

respeito pela madrinha, conseguir seu verdadeiro objetivo: não perder a

proteção financeira da madrinha e ganhar a sua benção para entregar-se a Luís

Alves.

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No plano das ações que movimentam as relações amorosas, é comum

que na narrativa romântica os amantes sejam de algum modo atormentados por

certas sombras do passado ou do presente. Ou seja, como se para colocar o

amor à prova, surge uma terceira pessoa, que se interpõe na vida do casal. Tal

imbróglio ficou tradicionalmente conhecido como “triângulo amoroso”.

Machado de Assis, entretanto, inova mais uma vez ao acrescentar mais

personagens a esse conjunto de amantes, amadores, amados e desamados: o

que Hélio de Seixas Guimarães chamou de “quadrilátero amoroso”155, mas que

nós preferiríamos chamar de “quarteto amoroso”, visto que, apesar de envolver

quatro pessoas no jogo, nem sempre todas se amam entre si. Em Ressurreição,

por exemplo, a vida do casal Lívia e Félix, além de atormentada pelas ações

maquiavélicas de Luís Batista, dividia-se em emoções com outro par – Raquel e

Meneses. Como em uma ciranda – ou uma “Quadrilha”, para usar uma imagem

que, anos depois, seria consagrada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade156

–, Raquel amava Félix, que amava Lívia, que amava Félix e era amada por

Meneses, que se casou com Raquel, a quem passou a amar e por ela ser amado.

Já em A mão e a luva, não há uma dança de troca de pares, mas o drama da

escolha de Guiomar, que deve eleger um de seus três pretendentes: Estevão,

Jorge e Luís Alves. De qualquer modo, o jogo amoroso de encontros e

desencontros se radicaliza e se complica no romance machadiano para ironizar

mais uma vez o modelo romanesco.

155 GUIMARÃES, Hélio de Seixas, 2004, p. 126.

156 “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém”. Do poema “Quadrilha”. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião (10 livros de poesia). 3.ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973, p. 19.

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É fundamental atentar para o fato de que em nenhum momento o

narrador condena a atitude da personagem ou faz qualquer tipo de juízo de

valor moral, como se estivesse construindo um manual de conduta e

comportamento social. Ao contrário, mesmo a apresentando como uma mulher

fria de sentimentos, deixa claro que Guiomar possuía um coração “que não era

mau”157, ou que minimamente “não tinha um coração tão mau que lhe não

doessem as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar”158.

Os dois personagens que, em primeira instância, se colocam na disputa pelo

amor de Guiomar não são para ela possibilidades que a satisfaçam: seja o amor

ultrarromântico de Estevão, pois “seu grande defeito é ter ficado com alma de

criança”159 e por quem o sentimento da moça “não podia nunca chegar ao

amor”160; seja por Jorge, visto que este “causava-lhe tédio, era um Diógenes de

espécie nova; através da capa rota da sua importância, via-se-lhe palpitar a

triste vulgaridade”161. Assim, o surgimento inesperado de Luís Alves

representou para ela uma saída perfeita: possibilidade de ascensão social e

segurança ao lado de uma alma gêmea – um homem pragmático, ambicioso e

decidido:

Guiomar amava deveras. Mas até que ponto era involuntário aquele

sentimento? Era-o até o ponto de lhe não desbotar à nossa heroína a

castidade do coração, de lhe não diminuirmos a força de suas faculdades

afetivas. Até aí: só; daí por diante entrava a fria eleição do espírito. Eu

não a quero dar como uma alma que a paixão desatina e cega, nem fazê-

la morrer de um amor silencioso e tímido. Nada disso era, nem faria.

Sua natureza exigia e amava essas flores do coração, mas não havia

157 A mão e a luva, p. 57.

158 Idem, p. 66.

159 Idem, p. 65.

160 Idem, p. 98.

161 Ibidem.

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esperar que as fosse colher em sítios agrestes e nus, nem nos ramos do

arbusto modesto plantado em frente de janela rústica. Ela queria-as bem

viçosas, mas em vaso de Sèvres, posto sobre móvel raro, entre duas

janelas urbanas, flanqueado o dito vaso e as ditas flores pelas cortinas de

caxemira, que deviam arrastar as pontas na alcatifa do chão.

Podia dar-lhe Luís Alves este gênero de amor? Podia; ela sentiu que

podia. As duas ambições tinham-se adivinhado, desde que a intimidade

as reuniu. O proceder de Luís Alves, sóbrio, direto, resoluto, sem

desfalecimentos, nem demasias ociosas, fazia perceber à moça que ele

nascera para vencer, e que a sua ambição tinha verdadeiramente asas, ao

mesmo tempo que as tinha ou parecia tê-las o coração. Demais, o

primeiro passo do homem público estava dado; ele ia entrar em cheio na

estrada que leva os fortes à glória. Em torno dele, ia fazer-se aquela luz,

que era a ambição da moça, a atmosfera que ela almejava respirar.

Estevão dera-lhe a vida sentimental, – Jorge a vida vegetativa; em Luís

Alves via ela combinadas as afeições domésticas com o ruído interior.162

O desfecho da trama construído para os personagens representa toda

uma desconstrução da ideologia romântica do amor, que, dentre outras

qualidades, serve como elemento restaurador dos possíveis desvios de conduta

e de caráter, sendo, portanto, instrumento de reconciliação com a moral

burguesa. Ao rejeitar o amor de Estevão, Guiomar se mostra impassível mesmo

diante daquilo que seria a possibilidade mais intensa de manifestação do

sentimento amoroso que alguém poderia receber de outrem. Por outro lado,

encontra a plenitude da felicidade ao lado de um homem que, assim como ela,

jamais se deixa levar pelas emoções e sentimentalismos românticos – muito

embora isso não signifique dizer que ambos fossem pessoas desprovidas de

qualquer tipo de sentimento afetivo.

162 Idem, p. 107-8.

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Aqueles não tinham nada do amor extático e romanesco de Estevão, mas

amavam sinceramente, ela ainda mais do que ele, e tão feliz um como o

outro.163

O casamento de Guiomar e Luís Alves é apresentado pelo narrador

machadiano como “o dia longo e feliz de suas férvidas ambições”164, bem como

a cena final do romance, construída como se sugerisse um desfecho clichê para

a trama, do tipo “e eles viveram felizes para sempre”, são elementos que

comprovam a intenção irônica de romper com a tradição romanesca vigente.

O destino não devia mentir nem mentiu à ambição de Luís Alves.

Guiomar acertara; era aquele um homem forte. Um mês depois de

casados, como eles estivessem a conversar do que conversavam os

recém-casados, que é de si mesmos, e a relembrar a curta campanha do

namoro, Guiomar confessou ao marido que naquela ocasião lhe

conhecera todo o poder da sua vontade.

Vi que você era um homem resoluto, disse a moça a Luís Alves, que,

assentado, a escutava.

Resoluto e ambicioso, ampliou Luís Alves sorrindo; você deve ter

percebido que sou uma e outra coisa.

Ambição não é defeito.

Pelo contrário, é virtude; eu sinto que a tenho, e que hei de fazê-la

vingar. Não me fio só na mocidade e na força moral; fio-me também em

você, que há de ser para mim uma força nova.

Oh! Sim! Exclamou Guiomar.

E com um modo gracioso continuou:

163 Idem, p. 126.

164 Idem, p. 128.

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Mas que me dá você em paga? um lugar na câmara? uma pasta de

ministro?

O lustre do meu nome, respondeu ele.

Guiomar, que estava de pé defronte dele, com as mãos presas nas suas,

deixou-se cair lentamente sobre os joelhos do marido, e as duas

ambições trocaram o ósculo fraternal. Ajustavam-se ambas, como se

aquela luva tivesse sido feita para aquela mão.165

Não há como deixar de perceber que o diálogo dos personagens é

composto por uma série de elementos que provam ser esse casamento, antes de

tudo, muito conveniente para ambos, que, ironicamente, são chamados

metonimicamente de “as duas ambições”, como se essa postura fosse o que os

definisse como um todo. No entanto, longe de ser um casamento só de

aparências e esvaziado de sentimentalidade, o que se vê é que o amor entre eles

é sim o elemento presente. Talvez esteja justamente aí o ponto máximo da

ironia do romance: demonstrar a não incompatibilidade entre o sentimento

amoroso e o interesse pessoal de ascensão, ou ainda, que um amor verdadeiro

pode ser fruto de uma construção lógica motivada pela ambição, por mais

paradoxal que isso possa parecer.

Enquanto Guiomar e Luís Alves receberam ironicamente para as suas

ambições “um final feliz típico de um folhetim”, Estevão foi merecedor de um

desfecho mais do que adequado para um byroniano: a solidão – fruto de um

sentimento de evasão, motivado pela impossibilidade de materialização dos

seus sentimentos no enlace com a amada. Aqui vale destacar a perspectiva

simbólica da narrativa, pois, enquanto Guiomar e Luís Alves “ajuntavam-se (...)

como se aquela luva tivesse sido feita para aquela mão”, foi uma luva que se

interpôs entre as mãos de Guiomar e Estevão, impedindo-lhe o toque e

mantendo a musa ultrarromanticamente intangível ao inebriado poeta:

165 Idem, p. 131-2.

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“Guiomar desceu logo depois. A mão apertada na luva cor de pérola pousou

lentamente na mão de Estevão que estremeceu todo. (...) Era pouco; mas esse

pouco alvoroçou o bacharel (...).”166 No fatídico dia do casamento daqueles dois,

Estevão estava do lado de fora observando uma festa da qual não pode ser o

feliz anfitrião e para a qual nem mesmo fora convidado:

Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria um

pouco distante dos grupos de curiosos, atraídos pela festa de uma casa

grande e rica, um vulto de homem sentado sobre a lájea que acaso

topara ali. Quem está afeito a ler romances, e leu a narrativa desde o

começo, supõe logo que esse homem poderia ser Estevão. Era ele. Talvez

o leitor, em lance idêntico, fosse refugiar-se em sítio tão remoto, que mal

pudesse acompanhá-lo a lembrança do passado. A alma de Estevão

sentiu uma necessidade cruel e singular, o gosto de revolver o ferro na

ferida, uma coisa a que chamaremos – voluptuosidade da dor, em falta

de melhor denominação. E foi para ali, contemplar com os indiferentes e

ociosos aquela casa onde reinava o gozo e a vida, e naquela hora que lhe

afundava o passado e o futuro de que vivera. Não o retinha a constância

do estoico; pela face emagrecida e pálida lhe corriam as lágrimas

derradeiras, e o coração, colhendo as forças que lhe restavam, batia-lhe

forte na arca do peito.167

Nesse trecho pode-se perceber claramente que o narrador machadiano,

por meio da estratégia de buscar a interlocução com o leitor, demonstra toda a

sua consciência em relação ao que se espera de um romance folhetinesco,

baseado na causalidade de acontecimentos. Por isso, brinca com a expectativa

do leitor. Assim, ironiza a própria forma de composição utilizada por ele. Visto

que as ações devem ficar em segundo plano, ele começa a refletorizar o estado

166 Idem, p. 87.

167 Idem, p. 129.

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de espírito do personagem para encenar seu drama de caracteres. Quando se

trata de Estevão, a linguagem utilizada deve adequar-se à sua própria visão de

mundo, ou seja, carregada de ultrarromantismo. Nesse golpe, o narrador

promove a ruptura tanto em relação à forma canônica de estruturação da

narrativa romanesca, como no que se refere à idealização amorosa construída

pela estética byroniana. A Estevão só poderia mesmo caber um final trágico:

Os anos passaram depois, e à medida que vinham, ia-se Estevão

afundando no mar vasto e escuro da multidão anônima. O nome, que

não passara da lembrança dos amigos, aí mesmo morreu, quando a

fortuna o distanciou deles. Se ele ainda vegeta em algum recanto da

capital, ou se acabou em alguma vila do interior, ignora-se.168

Em A mão e a luva, portanto, Machado de Assis usa a ironia poética

como recurso articulador da narrativa e, dessa maneira, faz com que o próprio

ato de narrar coloque em xeque os princípios gerais dominantes na ficção

narrativa brasileira da época. As cenas, os diálogos e as outras marcas textuais

apresentadas pela crítica tradicional como se fossem provas de uma adesão do

autor à estética romântica mudam de perspectiva, quando percebidas como

parte de uma trama regida pelo princípio irônico de composição, convertendo-

se, então, automaticamente em elementos de desconstrução crítica dessa mesma

estética.

O narrador de A mão e a luva revoluciona a ficção brasileira, não só ao

adotar o perspectivismo narrativo e se comportar como encenador do

drama de caracteres, mas também ao assumir o estatuto do narrador

ficcional como prerrogativa do romancista. Ao invés de desficcionalizar

o evento narrado e a si mesmo para satisfazer a pretensa legitimidade

168 Idem, p. 130.

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mimética dos naturalistas, historiadores e cronistas de costumes, o

narrador machadiano se compraz em assumir a sua condição de

mediador ficcional, sobretudo porque o discurso específico da ficção

narrativa lhe confere o poder de representar a interioridade anímica dos

personagens.169

Não parece aceitável, pois, que A mão e a luva e os demais romances

machadianos da juventude sejam vistos, por exemplo, como veículos de

propaganda de uma ideologia conformista, na qual o narrador conceberia o

caminho seguido por Guiomar para alcançar ascensão social algo positivo e

exemplar170. Um romance assim não passaria de um receituário de sucesso ou

um manual de conduta, ao invés de ser um espaço de reflexão a respeito dos

dramas e (por que não?) das incoerências humanas. Igualmente, inconcebível é

a tentativa de explicar os motivos da trama com suposições acerca da biografia

do escritor, afirmando que, ao isentar Guiomar de qualquer culpa, Machado de

Assis estaria tentando inocentar-se a si próprio por ter deixado a madrasta pra

trás e apagado a sua origem pobre para começar nova vida social171. Como já

demonstramos anteriormente, a crítica biográfica, que já traz problemas em si

pela tendência reducionista, piora ainda mais quando se baseia em episódios

que não aconteceram.

A lição do jovem crítico, que já falava como mestre, nesta hora é sempre

válida para restaurar os caminhos:

(...) se o crítico, na manifestação dos seus juízos, deixa-se impressionar

por circunstâncias estranhas às questões literárias, há de cair

169 SOUZA, Ronaldes de Melo e. “A ironia do narrador em A mão e a luva”. In: O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006, p. 89.

170 SCHWARZ, Roberto. (2000a), p.108.

171 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. (1988), p.157-8.

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frequentemente na contradição, e os seus juízos de hoje serão a

condenação das suas apreciações de ontem.172

O objetivo fundamental do segundo romance de Machado de Assis não

é representar ficcionalmente um episódio da sua vida para tentar justificá-lo.

Seu enfoque é fundamentalmente o literário. O que o autor busca é dar

continuidade ao seu projeto de desconstrução do modelo ficcional narrativo

praticado ostensivamente na literatura brasileira de seu tempo. Obviamente,

por conceber a literatura como uma forma privilegiada de observação e

conhecimento do mundo, seu projeto maior é revolucionar a forma de pensar

em nossa sociedade.

172 ASSIS, Machado de. “O ideal do crítico” (1946), p.14-5.

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8. “HELENA”: “Cada obra pertence ao seu tempo”.

O romance Helena foi inicialmente publicado em O Globo, em 35 folhetins,

entre 06 de agosto e 11 de setembro de 1876, para, em seguida, no mesmo ano,

ser editado pela Garnier. Apesar de já ter lançado os dois romances anteriores e

dois outros livros de contos – Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite

(1873) – Machado de Assis era mais reconhecido como poeta do que como

romancista pela maior parte da crítica: “O espírito da época ainda via na poesia

o gênero mais elevado e nobre, sobretudo quando comparado à prosa de ficção,

apontada por muitos como de características popularescas.”173.

Ainda assim, Helena recebeu algumas críticas bastante elogiosas,

principalmente no que se referia à firmeza do desenho dos perfis de caracteres

apresentados; ao afastamento da forma de composição romântica dominante

“nos sonolentos romances brasileiros”174 de então; e ao amadurecimento do

artista nesse gênero ficcional narrativo: “Helena é um trabalho que pode

competir com os mais bem acabados do gênero.”175 / “Entre os nossos

romancistas, ocupa Machado de Assis um dos primeiros lugares. Esse lugar

conquistou-o pelo estudo e no estudo.”176 / “Sem dúvida, entre esse romance e

Ressurreição, do mesmo autor, pode a crítica assinalar grande progresso”177.

Em 1905, Machado de Assis já era nosso mais ilustre escritor, com uma

intensa e ininterrupta atividade literária estava prestes a completar cinquenta

173 MACHADO, Ubiratan. (2003) p.14.

174 Texto publicado sem assinatura em A Reforma, Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1876. In: MACHADO, Ubiratan. (2003), p.108.

175 Idem, p.107.

176 Texto de A.C. Almeida, publicado no Pindamonhangabense, Pindamonhangaba (SP), 19 de novembro de 1876. In: MACHADO, Ubiratan. (2003), p.108.

177 Texto assinado por C. (Carlos Ferreira) e publicado na Gazeta de Campinas, Campinas (SP), 3 de dezembro de 1876. In: MACHADO, Ubiratan. (2003), p.110.

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anos, e a caminho do fim da vida. É nesse ano que sai a segunda edição de

Helena, com a seguinte advertência do autor:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e

outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que

o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez depois,

correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele

ano de 1876.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este

me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a

outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco de

mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a

feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.178

Certamente, diante do novo contexto literário que ajudara a construir no

cenário das letras nacionais e pela estima que parecia nutrir por esse romance,

que lhe era “particularmente prezado”, o autor sente a necessidade de advertir

ao leitor e, obviamente, aos críticos o fato de que, embora o tempo lhe houvesse

mudado as feições do espírito, não alteraria aquelas páginas nem “lhes tiraria a

feição passada”. Nesse sentido, Machado de Assis assinala a diferença não a

desqualifica. Logo, ser diferente não significa ser pior. O “eco de mocidade e fé

ingênua” que ouve de seu passado, pertence a um importante “capítulo da

história do [seu] espírito” e, portanto, deve ser valorizado e respeitado em si.

Afinal, conclui o mestre solenemente, “cada obra pertence ao seu tempo”. E ele

está absolutamente correto.

Vale ainda destacar uma frase desta advertência que merece um pouco

mais de atenção para interpretá-la: “Não me culpeis pelo que achardes de

romanesco”. Numa primeira leitura, o crítico mais cético em relação à

178 Helena, p.15.

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qualidade dos primeiros romances machadianos poderia encontrar nela a prova

incontestável da ruptura na obra, que promoveria a sua divisão em duas fases.

Ora, se o próprio Machado reconhece a presença dos elementos mais

romanescos na sua forma de composição, não restaria a menor dúvida sobre o

alinhamento dessas obras à tradição hegemônica da ficção narrativa brasileira

do século XIX. No entanto, vale observar que ele não disse algo do tipo: Não me

culpeis por aquilo que pus de romanesco. Também não disse coloquei, inseri, usei,

nem qualquer outro verbo conjugado na primeira pessoa. Antes, tal qual seus

irônicos narradores, desloca o foco para o leitor: “Não me culpeis pelo que [tu,

leitor!] achardes de romanesco”. E, mais uma vez, está completamente certo. Se

o leitor acha que o livro está carregado daquele lirismo derretido, ou mesmo,

que ele é um perfeito representante da mais profunda tradição ficcional

folhetinesca, o autor nada tem com isso: a culpa é tua, leitor!

Ora, partindo da premissa de que um grande escritor concebe a sua obra

como uma unidade estrutural na qual o todo e a parte interagem

organicamente, permitindo não apenas que o todo explique a parte e a parte o

todo, mas que uma parte explique outra parte, a interpretação irônica da frase

da advertência da segunda edição de Helena é perfeitamente aceitável. Basta

que o leitor perceba que poderá apontar o recurso da ironia do primeiro ao

último romance do escritor, mas jamais encontrará uma linha sequer de defesa

explícita dessa ou daquela corrente estética, muito menos do romantismo ou do

realismo.

“Se o autor se reconhece mudado, como negar a ideia de sua criação se

compor de dois ciclos? É que, apesar de Helena se fazer de mirabolâncias

afetivas bastante comuns e ser protagonizado por uma verdadeira

heroína, encaminha-se para um final que, além de nada ter de ditoso,

mostra as personagens más triunfando. Tal desfecho espelha a realidade

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das relações humanas conforme conhecemos, nada parecida com a

idealizada pelos escritores tipicamente românticos.”179

Analisando a trama do romance, vê-se que ele se inicia com morte do

Conselheiro Vale, que, em testamento, legitima uma filha que teria sido fruto de

uma relação extraconjugal: Helena. Mais do que isso, determina que a jovem vá

morar em sua casa e fique sob os cuidados e a proteção de sua família: Estácio,

até então seu único filho, e D. Úrsula, sua irmã. O desejo do Conselheiro traz

consequências diretas e indiretas para as vidas de todos os personagens

envolvidos na trama, dentre os quais, obviamente, Helena – que passa a viver

numa casa estranha e precisa conquistar a estima de todos –, Estácio – que aos

vinte e sete anos ganha uma irmã misteriosa por quem deve zelar –, e D. Úrsula

– que fica obrigada a compactuar com a atitude moralmente condenável do

irmão, o adultério, recebendo no seio de sua família uma pessoa estranha. Além

deles, tem a figura do ambicioso Dr. Camargo, que vê o patrimônio de Estácio,

de quem sua filha Eugênia era noiva, ser dividido ao meio com a chegada de

Helena. A trama se complica ainda mais com a sugestão de que Helena teria um

amante, com quem se encontrava furtivamente, e com a percepção inicial e

posterior revelação de que Estácio havia se apaixonado pela irmã. A teia de

relações entre os personagens e suas consequentes implicações morais ainda

ganham maior complexidade quando, por fim, revela-se que o homem com

quem Helena se encontrava era, de fato, seu verdadeiro pai biológico, Salvador.

Ocorre que a mãe de Helena abandonara Salvador e fora viver sob os cuidados

do Conselheiro, com quem teve um caso. Este, tendo criado Helena desde

pequena e acreditando na morte do pai da menina, assume-lhe a paternidade e

garante-lhe vida digna e boa educação. Por fim, embora a revelação tenha

afastado a possibilidade de incesto e deixado o caminho livre para o amor de

179 BASTOS, Dau, 2009, p.78.

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Estácio e Helena, a jovem não resiste ao dilema moral de ser vista como uma

aproveitadora e acaba entrando em depressão e morrendo.

Como demonstramos e retomamos anteriormente, Lúcia Miguel-Pereira

(1988) estabelece conexões entre a vida e a obra de Machado de Assis. No caso

particularizado de Helena, a autora remete ao suposto abandono da madrasta

Maria Inês. Para Ubiratan Machado (2008), essa afirmação “não tem pé nem

cabeça, mas faz sensação como toda lorota maldosa envolvendo um

personagem conhecido”180 foi publicada originalmente por Hemetério José dos

Santos, que foi ainda mais além, acusando o escritor “de não ter se interessado

pela causa abolicionista e mantido uma atitude quase desumana para com a

madrasta, a quem desprezaria”181. Essas falácias, que foram desmentidas pelo

tempo e principalmente por pesquisadores sérios, infelizmente, continuam

sendo inercialmente propagadas como verdadeiras. Em verdade, Machado de

Assis não desprezou a madrasta – como demonstrou Ubiratan Machado – e,

além de tudo, foi um grande defensor da causa abolicionista: trabalhou na

segunda seção da Diretoria de Agricultura do Ministério da Agricultura, que

“estava encarregada de acompanhar a aplicação da lei de 28 de setembro de

1871, depois apelidada de Lei do Ventre Livre”182; e, “mesmo sem assumir uma

militância abolicionista explícita, a exemplo dos líderes do movimento,

empenhou-se a seu modo na luta pela abolição, não apenas como colunista e

colaborador ativo, mas também como acionista da Gazeta de Notícias – um dos

jornais de maior circulação na Corte –, cujas posições eram francamente

contrárias à escravatura”183.

Essas distorções biográficas são, muitas vezes, oriundas dos preconceitos

do próprio tempo do escritor ou mesmo da época dos críticos. Para Eduardo de

180 MACHADO, Ubiratan, 2008, p. 319.

181 Idem, p.308.

182 CHALHOUB, Sidney. (2003) p.10.

183 DUARTE, Eduardo de Assis. (2007) p.10.

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Assis Duarte (2007), apesar de todo o sucesso e reconhecimento de sua

grandeza e importância literária, Machado de Assis nunca esteve isento de

difamações ou injúrias, por mais que se preservasse:

À trajetória do cidadão agrega-se o sucesso do escritor perante um

público que, em sua grande maioria, estava longe de situar-se entre as

classes populares. Desse modo, sua biografia mostra a ascensão de um

afrodescendente, vindo das margens da estrutura social, para se

aproximar da elite de seu tempo: imprensa, literatura, maquina

governamental. Alguns desafetos atacaram esse “aburguesamento”, que,

para eles, correspondia à assunção de práticas sociais e literárias

dominantes. Afirmou-se, inclusive, que o uso de barba e bigode, quase

obrigatório entre os homens de seu tempo, teria como objetivo o disfarce

dos traços negroides. Isto sem falar dos polêmicos retoques para clarear

a pele nos estúdios dos fotógrafos da época. Tais lugares-comuns,

somados a ausência de um herói negro em seus romances,

fundamentam em grande medida a tese do propalado absenteísmo

machadiano quanto à escravidão e as relações interétnicas existentes no

Brasil do século XIX.184

Como se vê, não só os conceitos racistas do final do século XIX e início do

século XX influenciaram na construção de uma imagem equivocada do escritor,

como também, posteriormente, aqueles que buscaram recontar a história do

ponto de vista das lutas contra a escravidão não souberam definir claramente

seu posicionamento sobre essa questão. Ora, caberia perguntar aos desafetos se

em algum momento da narrativa machadiana os posicionamentos são claros e

definitivos, ou se são colocados de forma dialética; se falta o herói negro, onde

estaria o herói branco, visto que, em geral, os personagens de Machado de

Assis, filhos da elite branca, são alegoricamente fracos e desprezíveis. Em

184 Idem, p. 08-9.

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Helena, por exemplo, há uma cena em que fica nítido o pensamento dialético

machadiano no que se refere à visão de mundo na perspectiva de olhares

sociais distintos. Durante um passeio a cavalo, Estácio tentava demonstrar para

Helena sua perspectiva elitista a respeito das coisas do mundo e das pessoas.

Para tanto, usa como exemplo a figura de um escravo que seguia caminhando

pela estrada. Helena desconstrói a visão de Estácio de tal maneira que o escravo

sai engrandecido, enquanto ao representante da classe senhorial fica sem

argumentos contrários.

— Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior

felicidade da Terra, que é a independência absoluta. Nunca

experimentei a necessidade; mas imagino que o pior que há nela não é a

privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitórios, mas

sim essa escravidão moral que submete o homem aos outros homens. A

riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que

nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que

nós, terá de gastar, a pé, mais de uma hora ou quase.

(...)

— Tem razão, disse Helena; aquele homem gastará muito mais tempo

do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto

de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, quer o esperdicemos,

quer o economizemos. O essencial não é fazer muita cousa no menor

prazo; é fazer muita cousa aprazível ou útil. Para aquele preto o mais

aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé, que lhe alongará a

jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura

liberdade.185

185 Helena, p. 56-8.

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Mesmo quem defende a tese da divisão da obra machadiana não poderia

ficar impassível a esse diálogo. Quem sabe até afirmando timidamente que este

Machado lembra um pouco daquele outro. No fundo, quem sabe, relutante em

admitir que “tudo pode servir a definir a mesma pessoa”186.

Enfim, voltando à análise das opiniões de Lúcia Miguel-Pereira sobre os

romances iniciais de Machado de Assis, pode-se encontrar o seguinte

comentário da autora citado por José Galante de Souza na edição da Garnier,

que usamos para essa análise:

“E aí ainda mais se aproximou do caso pessoal. Como o seu criador,

Helena, para subir de classe, tem que abandonar uma pessoa cara. Em

vez da madrasta é o pai. Mas o caso é idêntico. Depois de ter formulado

a questão, faltou entretanto a Machado a coragem para concluir, para

mostrar se a heroína tivera ou não razão de fazer o que fez. E lançou

mão de um subterfúgio que condenou tantas vezes: deixou que os

incidentes dominassem as situações psicológicas. Em lugar de estudar a

adaptação da moça à nova vida e as consequências naturais do seu ato,

faz intervir um romântico amor entre ela e o seu pseudo-irmão Estácio,

transformando em dramalhão a confissão que não ousou levar até o

fim.”187

Nota-se que, além do equívoco sobre a vida do escritor, Lúcia Miguel-

Pereira força a nota ao comparar a postura de Helena com a “atitude” do

escritor. Ora, mesmo que fosse verdade que Machado tivesse abandonado a

madrasta Maria Inês, não foi o que ocorreu em Helena. Afinal, o pai da moça,

Salvador, foi quem a abandonou para que ela pudesse ter uma condição de vida

melhor do que a que ele seria capaz de proporcionar-lhe. Sendo assim,

186 A mão e a luva, p. 17.

187 cf. SOUZA, José Galante de. “Sobre esta edição”. In: Helena. Coleção Autores Célebres da Literatura Brasileira, n.3. Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Garnier, 2003, p.11.

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considerando basicamente esse detalhe, já não seria verdadeiro dizer que “o

caso é idêntico”.

Outro detalhe da análise que merece questionamento diz respeito ao

modo como a pesquisadora filia o romance ao princípio romântico de

composição. Segundo ela, em Helena, “encontramos a mesma narrativa floreada

e indireta [que identificou em A mão e a luva]; como, porém, o tema também foi

saturado de romantismo, o acordo é maior entre ele e o estilo, há mais

harmonia”188.

Curiosamente, ao contrário de Lúcia Miguel-Pereira, que viu em Helena

um “dramalhão”, o crítico que publicou, sem assinatura, em A Reforma, no Rio

de Janeiro, no dia 19 de outubro de 1976, ou seja, no mês seguinte à publicação

da trama em folhetim no jornal O Globo, e no mesmo mês em que o livro chegou

às livrarias, elogia Machado justamente por escapar à forma de composição da

época. Para o crítico, o romance é a “prova de como é possível tratar de amores

nos sonolentos romances brasileiros sem derretê-los”189.

Luís Felipe Ribeiro (2008) demonstra cuidadosamente que uma das

principais marcas de Helena é a negação do impulso romântico, no qual os

sentimentos dominam completamente os personagens e são responsáveis pela

sua conduta na trama:

Já o plano das relações amorosas revela-se tomado, de ponta a ponta,

por uma cuidadosa geometria de interesses. O cálculo e o respectivo

benefício andam prazerosamente juntos. Por trás das aparências

românticas, o que move os relacionamentos amorosos, em Machado e

especialmente neste texto, é uma cuidadosa avaliação de ganhos – ou

econômicos ou sociais – que poderão daí advir.190

188 MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. (1988) p.162-3.

189 In: MACHADO, Ubiratan (2003) p.108.

190 RIBEIRO, Luis Felipe, 2008, p.252.

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O enquadramento de Helena, portanto, no inventário da ficção narrativa

romântica é incisivamente refutado pelo pesquisador:

Não há como, honestamente, vislumbrar em Helena uma construção

enquadrada nos moldes do romantismo. Pode a moldura ser idêntica,

mas o olhar do pintor não padece da ingenuidade necessária para

compor um idílio, em que as instituições sociais vigentes não sejam

golpeadas nos seus fundamentos mais caros.191

A conclusão a que se pode chegar, enfim, é que Lúcia Miguel-Pereira,

apesar de todo o seu inquestionável talento analítico e profundo conhecimento

da obra de Machado de Assis, não conseguiu escapar a certos preconceitos da

época, principalmente no que se refere à desqualificação de qualquer traço que

de longe lembrasse a forma romântica. Os recursos formais do autor passaram a

ser vistos, não como uma desconstrução irônica, mas como uma filiação àquele

projeto estético. Somado a isso, a crítica parece ter sido influenciada por relatos

de pessoas e testemunhos de situações supostamente vividas com o próprio

escritor, o que lhe fez atribuir a essas histórias tal valor de verdade, que lhe

moldou um juízo de valor sobre o homem e definiu a sua maneira de ler e

interpretar a obra.

Muito provavelmente, por observar apenas os ingredientes que

compõem a tal “trama lacrimosa” é que a maior parte dos críticos de ontem e de

hoje filiam o texto às linhas mais gerais do romance romântico. No entanto,

como aponta Ronaldes de Melo e Souza (2006), é preciso considerar, além do

191 Idem, p. 253.

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drama de caracteres representado pelos personagens, “o tom puramente cômico

de que se vale o narrador para caracterizá-los”192.

Concebido como drama de caracteres, solidamente vinculado à forma

dramática de Ressurreição e A mão e a luva, o terceiro romance de

Machado de Assis reafirma a singularidade narrativa de ser cômico e ser

trágico ao mesmo tempo. A inserção do drama tragicômico de caracteres

na efabulação de Helena se patentiza na representação do conflito da

razão e do coração no relacionamento amoroso de Estácio e Helena. Na

perspectiva dos enamorados, o drama se apresenta trágico. Na visão

ironicamente distanciada do narrador, revela-se cômico. Como a

narrativa exibe uma perspectiva dual, em que se interpenetram

dialeticamente a visão do narrador e dos protagonistas do conflito

amoroso, impõe-se o reconhecimento de que o princípio de construção

do romance é tragicômico.193

Roberto Schwarz (2000) não só enxerga esses tais elementos lacrimosos

como também afirma que eles refletem, na verdade, uma postura de aceitação

ideológica dos valores morais das elites dominantes. Assim, nos primeiros

romances, Machado de Assis teria um discurso mais conformista a respeito da

realidade, enquanto na segunda fase, o discurso se converteria em crítica

destrutiva dos valores das elites.

Para o crítico, a origem das contradições brasileiras está na própria

organização da sociedade da época. Um Brasil estruturado a partir da lógica

segundo a qual a força de trabalho estava na mão de obra escrava, sabia definir

com clareza o lugar da casa grande e da senzala. No entanto, entre os senhores e

os escravos, existia uma faixa intermediária que não conseguia encontrar e

192 SOUZA, Ronaldes de Melo e. “As máscaras cômicas e tragicômicas de Helena”. In: O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006, p. 92.

193 Idem, p. 93.

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definir o seu lugar naquela sociedade: os homens livres não proprietários de

terra.

De um lado, os proprietários e a propriedade (que tem forma mercantil);

do outro, os homens livres, sem propriedade e sem salário – o trabalho

cabe aos escravos – que só através do favor dos primeiros participam da

riqueza social.194

Aos homens livres daquela camada social, só lhes restava tornarem-se

dependentes e agregados das famílias que tivessem melhor condição financeira.

Não sujeitados pelo chicote como os escravos, eles eram primeiramente vítimas

de uma forma específica de dominação e, em seguida, acabavam por aceitar

passivamente essa lógica de dependência, tornando-se, inclusive, propagadores

dessa ideologia patriarcal.

É assim, por exemplo, que Roberto Schwarz vê a ideologia do romance

Helena. Para ele, o objetivo de Machado de Assis é reafirmar os valores das

elites dominantes, norteados pelos mais puros sentimentos cristãos:

O mal não está na desigualdade, mas na gente que busca tirar partido

dela. Diante do sentimento cristão, a riqueza e a pobreza, o nascimento

ilustre e o anônimo, o regular e o irregular são secundários, o que

paradoxalmente é razão – na linha do catolicismo apologético – para

aceitá-los. O contrário seria imodéstia e falta ao decoro. Assim, se é

verdade que Helena passa de uma família pobre para outra rica, não era

esta a sua finalidade (...). Obedecia ao pai. E quando luta para ser aceita,

é para ser digna de seus novos parentes. Já o Dr. Camargo, que trama

um casamento rico e ilustre para a sua filha Eugênia, é um vilão. Em

outras palavras, cabe à severidade do amor familiar e cristão moralizar

194 SCHWARZ, Roberto, 2000, p.130.

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as diferenças sociais, e limpá-las da baixeza que porventura elas

inspirem.195

O cunho moralizante do romance para Schwarz é tão forte que o

desfecho da protagonista, que simboliza os mais puros valores do

paternalismo e do cristianismo, precisa ser trágico: “Helena prefere

morrer a ser suspeitada”196. Para ele, portanto, em hipótese alguma se

poderia “dizer que as prerrogativas familiares, riqueza e influência sejam

objeto de crítica”197. Muito pelo contrário. “Na verdade, Machado

procura legitimá-las, formulando um quadro em que não atentem contra

a dignidade da pessoa. Mais precisamente, não são criticadas enquanto

instituição, mas enquanto motivo”198.

O historiador Sidney Chalhoub (2003), tal qual Schwarz, também

acredita ser a questão das relações de mando e subordinação de uma

sociedade regida pela ideologia do paternalismo um elemento central em

Helena. No entanto, discorda do crítico literário em alguns aspectos,

sobretudo no que se refere à ideia de um Machado de Assis conformista

e que reproduz a ideologia dominante. Para tanto, começa observando a

problemática do distanciamento temporal entre o enunciado e a

enunciação na estrutura do romance:

Machado escreveu tal romance em 1876, evocando as práticas

sociais e o “clima” vigentes na década de 1850. Ou seja, é preciso

ler Helena em suas duas historicidades: a da narrativa – anos

1850 – e a do autor – 1876 –, e considerar que houve, de permeio,

195 Idem, p. 118.

196 Ibidem.

197 Ibidem.

198 Ibidem.

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a crise social e os debates políticos intensos que culminaram na

lei de 28 de setembro de 1871, depois conhecida como Lei do

Ventre Livre.199

Dentro dessa nova perspectiva de libertação dos escravos, projetava-se

também um novo horizonte nas relações de trabalho, que, por conseguinte,

poderia flexibilizar as relações de classe no país. Para Chalhoub, o “movimento

profundo” de Helena seria, então, “a descrição dos antagonismos constitutivos

das políticas de domínio vigentes no período anterior à crise de fim dos anos

1860 e início da década de 1870”200.

A chave de Helena, o romance, é a ambivalência de Helena, a

personagem: ela está no interior da ideologia senhorial porque possui

gratidão e porque conhece e manipula bem os símbolos e valores que

constituem e expressam tal ideologia; ela está fora das relações

paternalistas devido ao fato de que consegue relativizá-las, e logo

percebê-las claramente enquanto poder e, no limite, força ou

imposição.201

O historiador refuta por completo a tese de que Helena teria como motivo

fundamental o “aperfeiçoamento do paternalismo”. A morte de Helena, por

exemplo, seria pare ele, simbolicamente, a representação da impossibilidade de

solucionar os antagonismos daquela sociedade sem horizontes nos anos de

1850. Somem-se a isso duas outras observações de Chalhoub, que refutam a tese

de Schwarz: a primeira se refere à própria lógica do paternalismo, que, apesar

de impor seu domínio, não garante adesão integral ou impede qualquer forma

199 CHALHOUB, Sidney, 2003, p.19.

200 Idem, p.45.

201 Idem, p. 46.

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de contestação, ou seja, como “subordinação não significa passividade”202 –

Helena é capaz de sair às escondidas, o escravo Vicente consegue roubar os

charutos do seu senhor, o negro da estrada pode prolongar uma sensação de

liberdade tornando o caminho mais demorado etc –; a segunda dá mais

importância ao tema da escravidão ao afirmar que a maneira discreta com que

Machado aborda a questão não representa um abandono, mas o desejo de

alcançar uma forma verossímil de composição.

Enfim, meu argumento é que, ao centrar suas histórias nos

antagonismos entre senhores e dependentes, Machado de Assis

abordava, na verdade, a lógica de dominação que era hegemônica e

organizava as relações sociais no Brasil oitocentista, incluído aí o

controle dos trabalhadores escravos, a “relação produtiva de base”. Ao

fazer isso, o romance machadiano produzia outro registro realista

extremamente sutil e eficaz: como a ambiência dos textos era

basicamente o interior de propriedades senhoriais da Corte, não seria

verossímil fundar o enredo na escravidão. De fato, na segunda metade

do século XIX, e mais ainda após a lei de 1871, Estácio, Brás Cubas,

Bentinho e todos os demais membros dessa galeria viviam num mundo

em que a visibilidade da escravidão permanecia inevitável, mas a

ostentação de tal visibilidade seria uma gafe, um pecado, ou quem sabe

sobretudo um perigo. Ao escolher a ambiência senhorial urbana da

Corte, Machado de Assis também adotou a aparência que suas

personagens procuravam aparentar, no entanto, qualquer leitor do século

XIX saberia observar essa aparência a contrapelo, e o bruxo certamente

contava com esse olhar.203

202 Idem, p.47.

203 Idem, p. 57.

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Como se pode observar antes, o crítico literário Roberto Schwarz

fundamentou toda a sua análise no argumento histórico-social para justificar a

ideia de que Helena se trata de um romance no qual Machado de Assis estaria

reproduzindo ideologia dominante da época. Todavia, utilizando o mesmo

argumento, só que com a autoridade do historiador e, portanto, dentro do seu

universo discursivo, Sidney Chalhoub prova justamente o contrário: em Helena,

Machado de Assis estaria atacando a ideologia dominante nos seus

fundamentos mais elementares, construindo, para tanto, uma protagonista que

circulava entre os dois universos representados (o dos senhores e dos

dependentes) e, justamente por isso, poderia descarnar seus antagonismos. A

perspectiva analítica de Schwarz, enfim, pôs o discurso literário como tributário

de outro discurso para legitimá-lo. Com isso, a crítica literária do romance

machadiano fica comprometida, já que a análise histórico-social pode ser

questionada.

Embora tenhamos apontado as fragilidades de dessas perspectivas

críticas, isso não quer dizer que elas não possam trazer contribuições

importantes para o entendimento da obra. O problema se dá quando os

elementos externos ao literário passam a ser vistos como mais relevantes do que

a própria forma de composição textual, que é o que afinal diferencia a literatura

dos demais discursos existentes. No caso da obra de Machado de Assis, o

discurso literário ganha tamanho relevo, que o texto praticamente todo é

dimensionado pela perspectiva intertextual e metalinguística. Em Ressurreição, o

autor opta por um narrador que ironiza o próprio ato de narrar e coloca no foco

central da sua obra a discussão a respeito da forma literária. O recurso

intertextual de inserir referências de outras obras literárias na trama sugere uma

leitura em múltiplas direções, mas sempre reafirmando aquilo que está sendo

dito em primeira instância. Olhando, então, por esse prisma, as obras citadas se

interpenetram na estrutura do romance, funcionando também como

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hipertextos, e conferindo à forma poética de Machado de Assis uma feição

incrivelmente moderna. Em Helena, portanto, tamanho é o diálogo entre essas

narrativas, que os livros lidos pelos personagens poderiam ser interpretados

elementos simbólicos que se somam na elaboração de um desenho ainda mais

completo dos seus caracteres. Seu perfil moral define-lhes a escolha do livro que

leem ou desejam ler. Em outras palavras, cada um é um pouco daquilo que lê.

“Sobre a mesa, perto da janela, estava ainda o último livro que o

conselheiro lera: eram as Máximas do Marquês de Maricá”204. Não é de se

admirar que haja uma identificação entre esse tipo de obra de cunho

moralizante e a “máxima” deixada pelo Conselheiro para a trama narrativa de

Helena. O grau de profundidade que um livro de frases soltas e sem nenhuma

argumentação ou justificativa pode alcançar é mínimo. Seu objetivo acaba

sendo, portanto, a edificação moral e a correção dos costumes: uma espécie de

manual de boas maneiras para a posteridade. Seu autor deseja, com isso, que as

leis do seu código de ética sejam cumpridas e sua visão de mundo perpetuada.

É o que faz o Conselheiro Vale ao deixar em testamento a imposição de sua

vontade à família. Utilizando os instrumentos legais que o tempo lhe permitia,

modifica radicalmente a vida daqueles que viviam sob a sua tutela. Na visão de

Luís Felipe Ribeiro, “constitui a lei com que o morto continua a legislar entre os

vivos”205.

E a lei do Conselheiro estabelece relações profundas na ordem familiar

sobrevivente. Além de integrar na partilha dos bens uma filha ilegítima,

até então desconhecida, termina por redefinir as dimensões da estrutura

familiar com um acréscimo considerável. Apesar das resistências

encontradas, a lei se cumpre: Helena passa a viver com a sua nova

204 Helena, p. 34.

205 RIBEIRO, Luís Felipe. (2008) p. 249.

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família, sob a égide do retrato do Conselheiro Vale. As consequências

deste fato espraiam-se por outros núcleos familiares agregados.206

Já D. Úrsula, que, em um primeiro momento, “reprovou todo o ato do

conselheiro”207, pois parecia-lhe que “a despeito dos impulsos naturais e

licenças jurídicas, o reconhecimento de Helena era um ato de usurpação e um

péssimo exemplo”208, obviamente representa um caráter mais conservador. O

reflexo disso está também nos seus hábitos de leitura:

Na seguinte manhã, Estácio levantou-se tarde e foi direito à sala de

jantar, onde encontrou D.Úrsula, pachorrentamente sentada na poltrona

de seu uso, ao pé de uma janela, a ler um tomo do Saint-Clair das Ilhas,

enternecida pela centésima vez com as tristezas dos desterrados da ilha

da Barra; boa gente e moralíssimo livro, ainda que enfadonho e maçudo,

como outros de seu tempo. Com ele matavam as matronas daquela

quadra muitas horas compridas do inverno, com ele se encheu muito

serão pacífico, com ele se desafogou o coração de muita lágrima

sobressalente.209

Finalmente, no que se refere ao contraste de caracteres entre Helena e

Estácio, a alegoria bibliográfica também pode ser vista como um componente

determinante. A cena que ilustra o uso desse recurso irônico pelo narrador pode

ser lida no capítulo VI:

— Fui procurar um livro na sua estante.

206 Idem, p.250.

207 Helena, p. 23.

208 Ibidem.

209 Idem, p. 31.

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— E que livro foi?

— Um romance.

— Paulo e Virgínia?

— Manon Lescaut.210

Apesar de ter restringido sua análise ao universo da psicanálise, Antenor

Salzer Rodrigues (2008) teve uma intuição muito boa sobre o uso dessas

referências literárias como uma estratégia consciente de composição por parte

do narrador:

Importa lembrar que o ingrediente do amor e da morte é trazido à cena,

inicialmente pela citação de duas obras literárias de infeliz desfecho.

Quando Helena contou ao irmão que vasculhara a sua estante em busca

de um livro, este pergunto-lhe se seria Paulo e Virgínia. Ela respondeu

que encontrara Manon Lescault. Estácio fez uma exclamação de

reprovação e disse que aquele não era livro para moças solteiras. Helena

retrucou que quando percebeu do que se tratava, deixou-o de lado.

Nessa passagem, embora o narrador, possivelmente, pretendesse realçar

a pudicícia da jovem, na verdade, o que surge são duas trágicas histórias

de amor. Paulo e Virgínia morrem apaixonados e Manon Lescault conta a

saga de uma jovem sibarita que, após ser presa e confinada na

Salpetrière, em Paris, é deportada para a América e morre em campos

estrangeiros para desespero de seu amado, o cavaleiro de Grieux. Seria

já uma alusão ao desfecho da trama ou apenas uma reflexão moral do

autor? A atmosfera das duas novelas citadas recriam (sic) um clima de

amor e morte, tal qual a história de Helena e Estácio.211

210 Idem, p. 48.

211 RODRIGUES, Antenor Salzer, 2008, p.184-5.

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Indo mais além e cotejando as duas obras referidas nessa cena em questão,

é possível observar que, dentro do universo moral de Estácio, seria mais natural

e certamente mais aceitável que uma moça de família – ainda mais aquela que a

partir daquele momento ele teria de aceitar como sua irmã – fosse leitora de

novelinhas folhetinescas de história idealizadas. Tudo dentro da mais absoluta

correção moral.

Educado à maneira antiga e com severidade e recato, passou da

adolescência à juventude sem conhecer as corrupções de espírito nem as

influências deletérias da ociosidade; viveu a vida de família, na idade

em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e perdiam em

cousas ínfimas a virgindade das primeiras sensações. Daí veio que, aos

dezoito anos, conservava ele tal ou qual timidez infantil, que só tarde

perdeu de todo.212

Helena, por sua vez, teve o impulso de buscar uma leitura

simetricamente oposta à imaginada pelo irmão. No caráter da moça, que sabia

muito bem “acomodar-se às circunstâncias do momento e a toda casta de

espíritos”213, poderia haver um pouco da dissimulação e mutabilidade da

personagem Manon Lescaut. Aliás, foi usando essa capacidade de

transformação e adequação que Helena não permitiu que o comentário de

Estácio a respeito da sua escolha a abalasse, saindo pela tangente e mudando de

assunto e de leitura. Diz ela que, ao abrir um livro de geometria, surgiu-lhe a

ideia de que Estácio poderia ensinar-lhe a montar. O dado irônico é que Helena

já sabia montar muito bem e tudo, mais adiante, é revelado como uma

estratégia sua para gerar o necessário convencimento ao irmão. Mais uma

212 Helena, p. 28.

213 Idem, p. 36.

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alegoria bibliográfica: Helena, com o livro de geometria nas mãos, encontra a

linguagem perfeita para manipular o matemático Estácio: “um cálculo”214.

— Manon Lescaut.

— Oh! exclamou Estácio. Esse livro...

— Esquisito, não é? Quando percebi que o era, fechei-o e lá o pus outra

vez.

— Não é livro para moças solteiras...

— Não creio mesmo que seja para moças casadas, replicou Helena rindo

e sentando-se à mesa. Em todo o caso, li apenas algumas páginas.

Depois abri um livro de geometria... e confesso que tive um desejo...215

Diante do que foi brevemente exposto, não se pode considerar aceitável a

qualificação de Helena como um romance menor da produção ficcional

machadiana. Em momento algum, o autor se descuida da forma e a abordagem

do tema se singulariza no panorama dos romances brasileiros produzidos até

aquele momento. Machado de Assis, a cada obra, parece buscar uma nova

possibilidade estética e, com isso, imprime também mais uma nota diferencial

no quadro geral da literatura brasileira. Ao afastar-se do modelo hegemônico de

composição romanesca de seu tempo, inaugura a modernidade das letras

nacionais. Alguns críticos da época não apenas souberam enxergar isso, como

também tiveram a lucidez de vislumbrar que de uma mente tão talentosa como

aquela, muitas outras e singulares criações estariam por vir.

Verdadeiro romancista é. Deve pois continuar a dar-nos primorosos

trabalhos como esse, tendo sempre diante dos olhos a divisa do autor do

214 Idem, p. 52.

215 Idem, p. 48-9

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Fausto: ‘Quero subir mais alto sempre, quero sempre olhar mais

longe’.”216

216 A.C. Almeida. Pindamonhangabense, Pindamonhangaba (SP), 19 de novembro de 1876. In: MACHADO, 2003, p.110.

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9. IAIÁ GARCIA: “não caia no romanesco; o romanesco é pérfido”217

O quarto romance machadiano, Iaiá Garcia, teve sua primeira

publicação em livro no mês de abril de 1878, pelos editores G. Vianna & C., a

mesma empresa que publicava então o jornal O Cruzeiro, onde o romance

apareceu pela primeira vez, de 1º de janeiro a 2 de março daquele ano218,

encerrando para muitos críticos tradicionais o ciclo romântico do autor. O plano

das ações ocorre dentro do período histórico que vai de 1866 a 1870. Ao longo

desses quatro anos acontece na vida dos personagens uma série de mudanças e

transformações, tudo ao sabor das aparências e conveniências. O ponto de

partida para a trama é o desejo que Valéria Gomes – viúva de um

desembargador honorário – tem de que seu filho Jorge vá para a Guerra do

Paraguai como voluntário. O verdadeiro motivo para o patriotismo da

matriarca era afastar o rapaz de Estela – jovem que, apesar de merecer a estima

de Valéria Gomes, pertencia a uma classe social menos abastada e, por isso

mesmo, não poderia ser merecedora dos afetos de seu filho, muito embora, a

moça aparentemente não demonstrasse sentimento recíproco por ele. Um

amigo não tão íntimo da família, Luís Garcia – homem viúvo e de vida reclusa,

que vivia apenas para amar a filha Lina Garcia, ou Iaiá219, como era tratada em

casa –, é chamado pela viúva para intervir junto ao filho em favor de seu

intento, recebendo dela a falsa justificativa de que desencorajá-lo de um amor

proibido com uma mulher casada.

217 Iaiá Garcia, 1988, p. 136.

218 Conforme GALANTE DE SOUZA, J. “Sobre esta edição”. In: Iaiá Garcia, 1988, p. 11.

219 “Iaiá: tratamento que se dava às meninas e às moças, muito usado no tempo da escravidão”. Etimologicamente, a forma seria uma “alteração de sinhá. José Pedro Machado explica ser duplicação do ditongo em siá de sinhá, senhora, no falar dos escravos”. (Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa). Provavelmente, o apelido da moça tenha sido dado pelo escravo Raimundo, que, apesar de alforriado, continuava servindo a Luís Garcia.

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Por sua vez e por capricho, e não tendo seu amor correspondido por

Estela, Jorge resolve ceder às pressões familiares e parte para a guerra. Do front,

troca uma série de correspondências com sua mãe – a quem manda e de quem

recebe notícias em geral –, com o Sr. Antunes – pai de Estela, o qual deseja

manter-lhe viva no coração a esperança do amor da filha – e Luís Garcia – que

se torna seu mais fiel confidente e para quem revela toda a intensidade do seu

amor por aquela mulher misteriosa e anônima. É Luís Garcia quem dá a Jorge

as notícias mais importantes e também algumas potencialmente trágicas, como

a do falecimento de sua mãe ou, anos antes, a do casamento do amigo com

Estela, tendo sido a própria Valéria Gomes mentora e madrinha do enlace. Ao

tomar conhecimento de que perdera Estela, Jorge lança-se à guerra com uma

dedicação suicida, mas, ao fim dos combates, permanece vivo e merecedor das

honrarias de um verdadeiro herói.

De volta ao Rio de Janeiro, Jorge reencontra Luís Garcia, de quem, em

um primeiro momento, preferiu guardar distância, a fim de evitar-lhe a esposa

Estela. No entanto, a trama muda quando Luís Garcia adoece e pede a Jorge

que, na sua falta, passe a ser o protetor de sua família, ou seja, cuide de Iaiá

Garcia e justamente de Estela. Jorge, assim, vive o intenso conflito entre a

fidelidade para com o amigo e o desejo íntimo de herdar-lhe a mulher amada.

Iaiá Garcia, por sua vez, enciúma-se da relação de afeto que se intensifica entre

seu pai e Jorge e passa a tratá-lo com indiferença e aspereza. Mais adiante,

quando Luís Garcia faz uma espécie de faxina em seu escritório e encontra a

carta na qual Jorge confessa toda a intensidade do seu amor por aquela

misteriosa mulher e mostra-a para Estela, Iaiá Garcia é capaz de perceber na

reação e nos olhos da madrasta a verdade oculta por trás do anonimato da

personagem da carta.

Segue a trama e Iaiá Garcia, interpondo-se naquela potencial relação

adúltera, muda de tratamento em relação a Jorge, aproximando-se mais dele e

tornando-o uma espécie de confidente e conselheiro. A essa altura, já existe um

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pretendente para a moça: Procópio Dias, homem de caráter duvidoso, mas

conhecido de Jorge e de Luís Garcia. Não demora para que o sentimento, que

era inicialmente apenas de afeto entre Iaiá e Jorge, fique mais intenso, converta-

se em amor e logo em planos de casamento. Todavia, a morte de Luís Garcia

coloca uma interrogação nas aparentes certezas de Iaiá, que se vê agora como

um empecilho para o “reencontro” de Estela e Jorge. A menina decide, enfim,

desfazer os planos de casamento e aceitar a corte de Procópio Dias. Nesses

momentos finais da trama, Estela assume um protagonismo decisivo, que a põe

na galeria das grandes personagens machadianas: com serenidade, demonstra

para Iaiá a incompatibilidade de caracteres entre ela e Jorge:

— Vês? disse Estela; foi por mim que ele fez o sacrifício de ir para a

guerra, sem esperança de ser retribuído nem de contar um dia com a

minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que

o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou

essa eternidade de alguns anos. É duro de ouvir, minha filha, mas não

há nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões

morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida,

afronta a vontade de sua mãe, rebela-se, e pede a morte; e essa paixão

violenta e extraordinária acaba às portas de um simples namoro, entre

duas xícaras de chá...220

Estela segue ainda apresentando seus motivos para não ter aceitado as

investidas de Jorge e articula o reenlace da enteada com o rapaz. Ao fim, muda-

se para São Paulo, deixando o caminho sem obstáculos para que Iaiá Garcia e

Jorge possam viver um amor livre das sombras do passado.

Na sequenciação dos fatos que envolvem a trama em Iaiá Garcia, o

narrador dispõe os elementos em cena numa justaposição gradativa que vai aos

220 Iaiá Garcia, p.169-70.

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poucos criando uma tensão emocional no expectante leitor para em seguida

frustrá-lo com um desfecho inesperado. Para Roberto Schwarz (2000), essas

motivações expressas que estão sempre sendo frustradas na narrativa são “a

receita para um livro abafado”221 e representam um “defeito de construção”,

muito embora sejam também, em contrapartida, “o aspecto mais profundo e

original do livro”222 e uma “forma [que] deve ser saudada como o primeiro feito

considerável do romance brasileiro”223.

(...) a segunda parte do livro não continua propriamente a primeira, as

razões dos personagens não correspondem entre si, os capítulos não se

continuam uns aos outros, nem têm uma unidade mesma em si, pois são

compostos de episódios díspares, cujas personagens e cujos centros de

interesse não são os mesmos. Este movimento poderia ser chamado

também de desdramatização, pois tudo se liga, mas não pela ação

principal, que por sua vez é soltíssima, e não vai em nenhuma direção

particular. Com a petulância de menos, estamos próximos do

movimento digressivo da crônica, que mais adiante iria dar o brio a essa

deriva. Ocorre porém que ao cortar o voo a personagens e conflitos,

Machado lhes retirava também o atrativo espontâneo. Embora pelas

situações Iaiá Garcia pertença à esfera do romance para as moças, o seu

enredo descontínuo e difuso não propicia a identificação romanesca nem

satisfaz a sonho algum, salvo o de não sonhar, e aliás, nem este, pois a

norma de decoro corta o ímpeto crítico até às interrupções.224

Roberto Schwarz é competentíssimo ao analisar os elementos que

materializam a não linearidade do romance, entretanto compromete sua análise

221 SCHWARZ, 2000, p.166.

222 Idem, p.188.

223 Idem, p.190.

224 Idem, p.202-3

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ao fundamentá-la na tese de que o livro adota o princípio ideológico de

aceitação passiva do domínio patriarcal na sociedade brasileira da época e, mais

ainda, ao refutar completamente a possibilidade de adoção consciente do

recurso irônico como princípio estruturador da narrativa por parte do autor.

Para ele, “a descontinuidade em Iaiá Garcia é ligada às particularidades de sua

matéria histórica, e não é engraçada”225. Dentro dessa lógica, o crítico tem uma

visão ambígua dessa fragmentação do enredo, pois reconhece como qualidade

positiva o fato de Machado de Assis afastar-se do modelo romanesco canônico,

avançando em direção ao realismo e, por conseguinte, na sua visão, ao

amadurecimento estético, mas também entende como defeito esse mesmo

afastamento, já que, para ele, a forma de Iaiá Garcia “pertença à esfera do

romance para as moças”226.

Partindo da premissa de que a ironia poética é o princípio regente

fundamental da forma de composição machadiana e, além disso, reconhecendo

que Machado de Assis era, acima de tudo, um crítico atento aos modelos

vigentes na literatura de seu tempo, parece difícil aceitar a ideia de que em seu

quarto romance ele não tenha ainda um projeto estético definido. Seria talvez

mais plausível acreditar que o autor tenha procurado conscientemente

apresentar algo inovador, não só na sua obra até aquele momento, mas também

no quadro geral da ficção narrativa brasileira, tendo como ponto de partida, e

alvo para desconstrução, a trama romanesca ainda dominante naquele

momento. Analisando por esse prisma, Ronaldes de Melo e Souza (2006) afirma

que, em Iaiá Garcia, o narrador machadiano, fiel ao seu peculiar estilo irônico,

“sugere a motivação do enredo romântico ao esboçar o esquema triangular das

relações amorosas”, mas “frustra a expectativa do leitor intimizado com as

intrigas e as peripécias dos romances românticos”227. Desse modo, para o

crítico, o jogo de armar e desarmar as cenas, oferecendo ao leitor sempre uma 225 Idem, p.203.

226 Idem.

227 SOUZA, Ronaldes de Melo, 2006, p.99.

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pista falsa em relação ao desfecho presumível, constitui um exemplo máximo

de ironia.

O estatuto irônico do narrador de Iaiá Garcia transparece na arte de

armar e desarmar a expectativa do leitor interessado nas consequências

do esquema triangular das relações amorosas. Nada acontece de acordo

com o conflito das ações, porque os eventos sugeridos são

repentinamente neutralizados. A eventualidade da tensão se dissolve no

movimento uniforme da distensão inercial. Tudo se resume no drama de

caracteres refratários à convulsão dos sentimentos. Não há heróis,

apenas figurantes de uma comédia social de interesses acomodados.

Sutilmente irônico, o narrador assume o desempenho intelectual do

analista que se limita à representação objetiva da incongruidade

comportamental dos personagens que se revelam cômicos, sobretudo

porque suscitam uma expectativa que eles próprios nulificam.228

A aparente incoerência, nascida da ruptura com a progressão linear e

contínua de eventos consecutivos em Iaiá Garcia, é ainda intensificada

ironicamente pelo uso inconstante de estratégias discursivas típicas da estrutura

dos folhetins, as quais deveriam servir justamente para garantir a linearidade

da trama. É o caso, por exemplo, da criação de expectativas, com trechos ou

frases preparatórias, que, de certa forma, servem para atiçar a curiosidade do

leitor para o desfecho de um evento em especial: “Um incidente transtornou-lhe

os planos.” (final do capítulo VII). Ocorrem também casos em que são feitos

certos resumos do que foi exposto no decorrer daquele capítulo: “Assim foi que

de um incidente, comparativamente mínimo, resultara aquele desfecho grave; e

de um caso doméstico saía uma ação patriótica.” (final do capítulo III). Ou

ainda a suspensão da sequência das ações contadas no capítulo anterior para

228 Idem, p.102.

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preparar um flashback, que será essencialmente o motivo do capítulo que se

seguirá: “Antes de irmos direto ao centro da ação, vejamos por que evolução do

destino se operou o casamento de Estela.” (início do capítulo VI). Flora

Süssekind (2006) comenta o uso de tal técnica pelos ficcionistas do romantismo

brasileiro:

Essas antecipações têm a ver, naturalmente, com o mecanismo repetitivo

típico do romance-folhetim e da novela seriada. São um sinal de

repetição a mais em meio a tantos outros, aos resumos, vez por outra, do

que já foi dito, aos retornos quase literais a cenas já descritas, à reiteração

dos mesmos qualitativos quando se trata de determinado personagem, à

síntese, a cada novo capítulo, da situação com que se encerrara o outro e

coisas assim. Talvez haja, no entanto, ainda outras explicações possíveis

para esses mapas de leitura. A já aventada insegurança diante do

próprio público. E, gêmea desta: a insegurança com relação à própria

forma de escrita ficcional, cujo mapa o narrador parece ter condenado a

traçar enquanto escreve.229

Ao optar ironicamente pela descontinuidade na sequenciação lógica das

ações, quebrando, assim, o protocolo romanesco usual, o narrador machadiano

coloca-se livre para lança-se à apresentação do drama de caracteres dos

personagens, acentuando os conflitos existentes entre eles e em cada um deles.

Ora, é justamente a fusão entre o distanciamento irônico do narrador e a

encenação do conflito de caracteres dos personagens que constitui uma das

mais relevantes singularidades na forma do romance Iaiá Garcia. Afinal, a lógica

de armar e desarmar situações atende menos a uma atitude arbitrária do

narrador do que aos interesses específicos dos personagens, que modificam a

direção e o sentido dos fatos, conforme o que lhes é mais conveniente. Desse

229 SÜSSEKIND, Flora, 2006, p.164.

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modo, o romance rejeita o princípio monológico de narração e passa a

incorporar um princípio polifônico em sua arquitetura, o que, por sua vez,

intensifica o drama de caracteres, gerando uma narrativa ainda mais desconexa

e assim sucessivamente. Em Iaiá Garcia, não se percebe a autonomia dos

personagens na condução das ações da trama somente a partir da estratégia de

refletorização, mas isso se evidencia e, sobretudo, fica registrado por meio das

cartas – devidamente assinadas por eles, vale ressaltar!

Não é novidade que o ato de escrever merece lugar de destaque nos

textos machadianos. Comumente o autor insere suas críticas em relação ao

processo de escritura no próprio texto ficcional que ele compõe. Dentro dessa

ótica, o que chega às mãos do leitor não é o resultado de processo acabado,

lapidado e depurado de construção textual, mas sim a consequência de trabalho

intensamente crítico e autocrítico, que deixa impressas no papel as marcas de

seus questionamentos em relação a esse mesmo esforço. É como se o leitor

pudesse acompanhar cada momento da composição no exato instante em que

essa elaboração fosse acontecendo, ao invés de receber pronto o resultado final

a que se chegou após escritura e revisão. Isso fica bastante claro nos

comentários que o narrador faz, não somente em relação ao evento narrado,

mas também a respeito do seu próprio modo de narrar. Trata-se, enfim, de um

jogo metatextual, no qual coexistem a narrativa e a crítica da narrativa.

Como princípio filosófico, a forma machadiana de apresentação do

enredo e de estruturação narrativa rejeita a adoção de um discurso único de

conhecimento de mundo que posicione os personagens como meros atores

sociais que refletem um lugar e um tempo específicos. Ao contrário, colocando

o discurso na centralidade da questão, seu texto encena os conflitos e tensões

inerentes à multiplicidade de discursos existentes numa mesma sociedade. Por

isso, ao representá-los na sua diversidade e nas suas especificidades, aproxima-

se mais da complexidade dramática do real. A literatura, em princípio, reúne,

aglutina e critica os problemas essenciais da existência humana, refletidos nos

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mais diversos discursos. A obra machadiana estende esse movimento crítico ao

próprio discurso literário, por entender que este se trata de uma forma singular

de conhecimento. Por isso, o diálogo com os textos de outras obras literárias é

também uma das mais evidentes marcas em Machado de Assis.

Em Ressurreição (1872), no sentido mais geral da obra, foi o desejo de

pôr em prática um pensamento de Shakespeare que motivou a construção do

romance pelo escritor. Já dentro da trama, vale lembrar, por exemplo, que a

maneira escolhida por Félix para terminar seu noivado com Cecília teve

inspiração na leitura de um romance de Henri Murger. Em A mão e a luva (1874),

Estevão, que era leitor e compositor de versos repletos do mais puro byronismo,

era pintado como um homem que nascera para amar. Vale lembrar que o

desfecho do personagem seria de dar inveja a qualquer ultrarromântico. E

finalmente em Helena (1876), o conservadorismo do Conselheiro Vale era

alegoricamente definido pela leitura das Máximas do Marquês de Maricá,

enquanto o moralismo de Dona Úrsula dialogava com Saint-Claire das Ilhas e o

contraste entre Estácio e Helena se refletia na diferença de estilos de Paulo e

Virgília para Manon Lescaut.

No caso específico de Iaiá Garcia, embora também haja referências

intertextuais a outras obras literárias, não é o conteúdo do que é lido pelos

personagens neste ou naquele romance que justifica suas ações ou seus pontos

de vista. Ao contrário, o que salta aos olhos nessa trama é que os seus próprios

escritos condicionam toda a sua movimentação, desencadeando uma série de

outros textos e movimentos. Melhor dizendo, as cartas trocadas entre os

personagens não apenas conduzem as ações, mas simbolicamente colaboram

para a melhor definição dos seus perfis de caracteres, que são, de fato, na sua

inconstância, os verdadeiros responsáveis pelas idas e vindas da trama do início

ao fim do romance, literalmente.

A carta de Valéria Gomes esconde as verdadeiras intenções morais de

quem preferia ver o filho morto em combate a vê-lo casado com uma pobre. As

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cartas escritas e recebidas por Jorge no front de batalha levam e trazem

revelações, ocultações e dissimulações: as do interesseiro Sr. Antunes querem

manter vivas no coração daquele bom partido as esperanças de um amor que

não era recíproco; as de Luís Garcia – que vive o papel de confidente e, sem

saber, também o de algoz – fazem com que o rapaz mude sua postura na guerra

e passe a desejar uma morte que não vem. Já no Rio de Janeiro, é a carta que

Lina Garcia envia a Jorge a pedido de seu pai que insere o rapaz

definitivamente na sua família, reencontrando uma Estela que ele preferia

evitar. A leitura de uma antiga carta, que Jorge escreveu enquanto estava na

guerra declamando toda a intensidade de seu amor, inquieta Estela de tal forma

que a enteada extrai-lhe a verdade de seu segredo dos olhos. Ao desconfiar do

amor secreto entre Jorge e Estela e logo após externar isso ao rapaz, Procópio

Dias envia-lhe bilhetes falsamente conciliadores, para, mais adiante, sentindo-se

traído pelo envolvimento de Jorge com Iaiá Garcia, envia à jovem uma amarga

carta, na qual conta tudo sobre o tal amor secreto e proibido. É por carta

também que Iaiá decide desmarcar o casamento, encerrar o noivado com Jorge

e aceitar a corte de Procópio Dias, mas é a carta de Estela que mantém viva a

esperança do rapaz em relação à moça. Por fim, como a carta de Iaiá a Dias não

foi entregue por Raimundo – o que evitou mais uma situação complicadora das

tramas amorosas –, a moça pôde reatar seu noivado e casar. Estela recebe uma

carta de uma amiga de São Paulo e se muda para lá, deixando o caminho livre

para a jovem Garcia. E tudo termina com a imagem da coroa de flores

depositada por Estela no túmulo de Luís Garcia, deixando para Iaiá a

mensagem de que a madrasta realmente amava o pai e que não seria uma

concorrente do coração de Jorge.

Em Iaiá Garcia, portanto, o narrador não conduz os personagens como

se fosse um titereiro das situações morais, mas como um refletor da

inconsistência dos seus caracteres, o que resulta em uma narrativa

aparentemente desconexa, na qual as situações se armam e se desarmam em

todo momento. Ironicamente, a personagem de caráter mais bem definido não é

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aquela que empresta seu nome para título do romance, e sim aquela que,

involuntariamente, motivou toda uma situação que se desdobrou em exílio na

guerra, desejo de suicídio, casamento arranjado, possível adultério etc. Tudo

isso em nome dos valores “superiores” de classe e do desejo de salvar as

aparências.

Nesse jogo, ao contrário do que defende Roberto Schwarz, não há uma

aceitação passiva e conformista da ideologia dominante. Ocorre sim a alegoria

da volubilidade e fragilidade dos valores das elites, personificadas, por

exemplo, em Jorge, que é incapaz de assumir qualquer protagonismo, seja

diante da vida ou até mesmo da morte. O filho de Valéria Gomes e das elites

não foi à toa chamado de “tonto”230 por Estela e de “cego”231 por Iaiá Garcia –

ambas oriundas de estratos sociais inferiores ao seu. Jorge era um advogado

sem “nenhum amor à profissão”232 e, por isso, “empregava uma partícula do

tempo em advogar o menos que podia”233. Como soldado, “em vez de um

homem que combatia, era ele um homem que queria morrer”234; no entanto, ao

contrário do que desejava, conseguiu a glória, tornando-se “tenente-coronel” e

sendo “sagrado herói”235. Depois da guerra, de volta ao Rio e tendo como viver

apenas com a herança da família, tenta escrever um livro, mas apenas esboça

aquilo que anos mais tarde o faria Bento Santiago em Dom Casmurro (1897).

Uma vez, uma só vez, lembrou-se de escrever um romance, que era

nada menos que o seu próprio; ao cabo de algumas páginas, reconheceu

230 Iaiá Garcia, p. 48.

231 Idem, p. 145.

232 Idem, p. 27.

233 Idem, p. 28.

234 Idem, p. 55.

235 Idem, p. 56.

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que a execução não correspondia ao pensamento, e que não saía das

efusões líricas e das proporções da anedota.236

A desconstrução alegórica do personagem como homem e por fim

como escritor, que mais adiante na narrativa aconselhará a sua então pupila Iaiá

Garcia a não fazer justamente aquilo que ele faz e representa – “Dê um pouco

de poesia à vida, mas não caia no romanesco; o romanesco é pérfido.”237 –

evidencia a estratégia irônica de Machado de Assis na composição desse

romance, o que, por sua vez, deixa ainda mais clara a sua intenção de

desconstruir a trama romanesca tradicional, dando continuidade ao seu projeto

de elaboração de um novo paradigma para o romance brasileiro.

Na estruturação formal do romance Iaiá Garcia, estão presentes os

mesmos recursos técnicos utilizados nos três romances anteriores e que estarão

igualmente presentes nos seguintes. É óbvio que a intensidade e a maneira de

aplicação desses recursos irão variar de texto para texto, o que não invalida a

unidade estrutural do projeto estético do autor. Aliás, entendendo desse modo,

o prazeroso desafio do leitor machadiano passa a ser a percepção de como o

autor foi capaz de elaborar diferentes possibilidades de manifestação para o

mesmo princípio. Comecemos pela técnica de refletorização da narrativa, na

qual o universo contextual no qual está inserido o personagem dialoga

simbolicamente com a sua personalidade. O personagem aqui escolhido foi Luís

Garcia, que involuntariamente acabou sendo colocado no centro da

problemática representada na trama.

Luís Garcia – que era um homem de quarenta e um anos, funcionário

público, “alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar circunspecto”238 –

236 Idem, p. 72.

237 Idem, p. 136.

238 Idem, p. 15-6.

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tinha maneiras “frias, modestas e corteses”239 e “fisionomia um pouco triste”240.

Tendo ficado viúvo, resolveu morar em Santa Teresa, pois queria “a solidão e o

sossego”241 que não encontrara vivendo na parte baixa da cidade. Sua vida era

como sua pessoa – “taciturna e retraída” – e “sua casa era de poucos amigos;

havia lá dentro a melancolia da solidão”242. Note-se aqui que, na pintura dos

caracteres por parte do narrador, a casa e todos os seus elementos constituintes

que pertencem ao universo do personagem – dos mínimos objetos e utensílios

aos hábitos e situações vivenciadas em seu interior – refletorizam seu estado de

espírito de Luís Garcia:

Não somente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas também a

casa participava dela. Cada móvel, cada objeto, — ainda os ínfimos, —

parecia haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a

certa hora, como que se enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a

luz, à hora costumada; abriam-se as mesmas janelas e nunca outras. A

regularidade era o estatuto comum.243

A pintura dos caracteres faz-se de maneira tão rica no romance que,

obedecendo à lógica da extensão do universo interior do personagem a tudo o

que o cerca, o narrador machadiano não exclui o escravo Raimundo desse

contexto. Afinal, segundo ele, “se o homem amoldara as cousas a seu jeito, não

admira que amoldasse também o homem. Raimundo parecia feito

expressamente para servir Luís Garcia”244. O preto de cinquenta anos e estatura

mediana era “escravo e livre”, pois, apesar de ter ganhado sua liberdade logo

239 Idem, p. 16.

240 Ibidem.

241 Idem, p. 15.

242 Idem, p. 16.

243 Idem, p.17.

244 Ibidem.

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que Luís Garcia o herdou de seu pai, preferiu continuar servindo ao seu senhor,

a quem carregara no colo e amava “como se fora seu filho”245. Essa

ambiguidade na caracterização de Raimundo revela a condição de dependência

na qual se encontrava o ex-cativo, inserido em uma sociedade que não lhe

garantia a possibilidade de viver plenamente e dignamente a liberdade recém-

adquirida. Nas condições que se lhe apresentavam, era ainda menos ruim

permanecer, por força do hábito e por algum afeto, um escravo de fato, embora

fosse um homem livre por direito. Para denunciar os fundamentos hediondos

de uma sociedade escravocrata, que não só priva o indivíduo da liberdade

como também lhe ceifa da alma os sonhos de libertação, Machado de Assis,

pelo menos nesse primeiro aspecto, desumaniza Raimundo, estabelecendo uma

relação de identidade entre ele e os objetos da casa, ambos refletorizados pelo

caráter de Luís Garcia: “Raimundo foi dali em diante um como espírito externo

de seu senhor; pensava por este e refletia-lhe o pensamento interior, em todas

as suas ações, não menos silenciosas que pontuais” 246. Até mesmo no fim da

narrativa, quando Raimundo decide não entregar a carta de Iaiá a Procópio

Dias, sua atitude revela submissão e fidelidade ao pensamento de um patrão

que já nem vido estava.

― Raimundo não achou bonito que Iaiá escrevesse àquele homem, que

não é seu pai nem seu noivo, e voltou para falar à nhanhã Estela.247

Se na vida de Luís Garcia os aspectos do mundo interior são dominantes,

inclusive na ambientação da casa, o mundo exterior se faz presente em sua

vida, opondo-se ao primeiro em essência e sentido – “o jardim era a parte mais

245 Ibidem.

246 Ibidem.

247 Idem, p. 172.

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alegre da casa, o domingo era o dia mais festivo”248. Tal mudança deve-se à

presença da primeira entre as afeições desse homem taciturno e retraído: Lina

Garcia “derramava pela casa todas as sombras de vida, que tinha”249. A menina

de onze anos era educada em colégio durante a semana e só retornava a casa no

sábado, buscada por Raimundo, que muito provavelmente é o responsável por

atribuir-lhe o nome doméstico de Iaiá – o que reafirma, apesar da sua condição

ainda de subalterno, o afeto mútuo entre os senhores e o preto. A menina era

“alta, delgada e travessa; possuía os movimentos súbitos e incoerentes da

andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso, — um riso que ainda não

toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra

idade”250. A presença da menina operava no coração e no espírito do pai uma

mudança radical: “Seu magro rosto austero perdia a frieza e a indiferença;

inclinado sobre a mesa, com os braços estendidos, as mãos da filha nas suas,

considerava-se o mais venturoso dos homens”251. Como funcionário público,

Luís Garcia não possuía grandes somas de dinheiro, por isso fizera uma

caderneta de poupança da Caixa Econômica para tentar garantir um futuro um

pouco mais seguro para a filha. Apesar disso, não se furtava a atender um ou

outro capricho da menina, até porque “eram da filha as poucas economias que

ajuntava”, o que fosse para ela, enfim, “não lhe diminuía a herança”252.

É interessante notar que, no decorrer da trama, Luís Garcia passa por

uma transformação pessoal e afetiva ao se casar com Estela. O reflexo dessa

nova perspectiva social e existencial do personagem manifesta-se nas mudanças

pelas quais a própria casa passou, de modo que não há mais uma oposição

simétrica entre o interno e o externo, mas uma interpenetração dos espaços,

que, ao invés, de se excluírem mutuamente, agora se completam: a casa passa a

248 Idem, p.18.

249 Idem, p.20.

250 Iaiá Garcia, p.18.

251 Idem, p.19.

252 Idem, p.21.

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ter mais portas e janelas, o que representa uma maior possibilidade de interação

entre o espaço de dentro e o de fora; a natureza, que antes se limitava

exclusivamente ao espaço destoante do jardim, passou a estar presente em

todos os lados da casa, numa convivência harmônica e complementar. Do

mesmo modo, Luís Garcia, que era uma espécie de “Dom Casmurro”, fechado

em si, passou a estar mais aberto para a vida: o interno e o externo se

equilibraram um pouco mais na existência desse homem. Não se pode dizer,

entretanto, que houve uma metamorfose existencial plena em Luís Garcia, já

que, ao fim e ao cabo, a casa ainda é a mesma, no mesmo lugar e praticamente

com as mesmas pessoas.

Em todo caso, o uso da técnica de refletorização do estado de espírito do

personagem para a composição da tessitura narrativa em Iaiá Garcia manifesta-

se tanto no plano da estruturação sintático-discursiva do texto, quanto na sua

representação imagético-simbólica. A conciliação dessas duas possibilidades

contribui intensamente para que o autor faça com mais clareza a pintura dos

perfis de caracteres dos personagens, que é o objetivo central da obra de

Machado de Assis. Com isso, vê-se mais um ponto em que o autor, ao inovar

em relação ao que se praticava na literatura de seu tempo, revela sua vontade

estética revolucionária de ruptura e transformação.

No âmbito das relações amorosas em Iaiá Garcia, o número de

personagens que participam do jogo de conquista é maior do que nos romances

anteriores, complicando ainda mais a trama, ao criar expectativas e frustrá-las,

como dissemos anteriormente. No romance anterior, vimos que o único amor

correspondido não se materializa numa relação – ao contrário, o mais perto que

se chegou foi o beijo do amado na amada já defunta! –, de modo que, se a

revelação do amor de Helena, acabaria com as esperanças de Luís Mendonça,

sua morte frustra os sonhos amorosos de Estácio, a quem só resta o casamento

com Eugênia, para a felicidade do pai da menina, o Dr. Camargo. Note-se que o

jogo amoroso do “quarteto” se complica em relação a Ressurreição e A mão e a

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luva. No caso de Iaiá Garcia, mais complexa ainda é a questão, pois envolve um

“quinteto”: Jorge era apaixonado por Estela, que se casou com Luís Garcia – não

por amor, mas porque aceitou a ideia da Valéria Gomes – mãe de Jorge –, que

fez a mesma proposta aos dois. Iaiá, filha de Luís Garcia, declara-se, ao fim do

romance, apaixonada por Jorge e ele por ela. A jovem rejeita a corte de Procópio

Dias e casa-se com Jorge.

Segundo Ronaldes de Melo e Souza (2006) o desfecho dessa trama

afetiva, na qual Iaiá Garcia fica com Jorge – que em princípio era perdidamente

apaixonado por sua madrasta Estela –, seria produto de uma grande ironia do

narrador machadiano, que, ao encenar esse jogo de armar e desarmar situações,

colocou, na figura repulsiva de Procópio Dias, o principal atrativo de Jorge para

Iaiá.

O final feliz, em que Jorge e Iaiá Garcia se casam, contém uma

ressonância irônica. Se não se casasse com Jorge, Iaiá Garcia teria sido

esposa de Procópio Dias. O questionamento crítico do caráter da moça

se amplifica na ironia com que o narrador descreve a feição puramente

cômica de Procópio Dias. Os índices psicofísicos que o narrador lhe

atribui desenham o perfil ridículo do novo rico. Os olhos “cor de

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chumbo” do cinquentão se amoldam a uma “expressão refletida e

sonsa”. Uma das suas maneiras de sorrir se estampa no “movimento que

lhe descrevia na testa cinco rugas horizontais”. O feitio do nariz figura

“um triângulo de ângulos iguais”, que lhe empresta um ar “sarcástico e

inquisidor”. Se lhe convém parecer simplório, ri “com a testa”.

Negociante abastado, cultua unicamente duas profissões de fé: o lucro e

o gozo físico.253

Um aspecto que singulariza Iaiá Garcia em relação aos demais romances

machadianos da década de 1870 é a inserção explícita de um episódio de

relevância histórica para o país. A chamada Guerra do Paraguai – ou, melhor

dizendo, guerra da Tríplice Aliança (Brasil-Argentina-Uruguai) contra o

Paraguai – estendeu-se de 1864 a 1870, durando muito mais do que imaginava a

opinião pública brasileira. As interpretações a respeito do episódio são

variadas. Para alguns historiadores, o Brasil entrou no conflito porque teria

sofrido pressões comerciais da Inglaterra, que estaria preocupada com o

crescimento econômico do Paraguai, que se tornaria menos dependente dos

produtos ingleses. No entanto, para outros pesquisadores, essa tese poderia ser

contestada por dois motivos principais. O primeiro deles é que as relações

diplomáticas entre Brasil e Inglaterra estavam rompidas naquele momento. O

segundo motivo é que a interpretação que sugere que o crescimento paraguaio

ameaçaria de algum modo a economia inglesa deseja, numa perspectiva

ideológica, apresentar Solano López como um revolucionário libertador do

Paraguai e opositor ao domínio mercantil inglês, ou seja, um líder anti-

imperialista. Defender esta última tese seria desconsiderar que era a Inglaterra,

afinal, o principal mercado importador dos produtos paraguaios. Para

Francisco Doratioto (2010), o conflito estaria, na verdade, diretamente

relacionado às lutas locais por afirmação dos Estados nacionais, em especial, a

253 SOUZA, Ronaldes de Melo e, 2006, p. 101.

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questão da demarcação de fronteiras na região do Rio da Prata, importante via

de escoamento da produção dos quatro países, devido à possibilidade de acesso

ao mar.

As causas da guerra devem ser buscadas na própria dinâmica da

construção dos Estados nacionais na região do Rio da Prata. Ao estreitar

relações com Urquiza e com o governo blanco uruguaio, que também

tinha ligação com o líder entrerriano, Solano López tornou-se um

obstáculo à consolidação da república argentina, unida sob a aliança da

burguesia portenha. A ligação Assunção-Montevidéu também entrava

em rota de colisão com o Brasil. Devido às reclamações dos pecuaristas

do Rio Grande do Sul – que, três décadas antes, haviam tentado separar-

se do Império –, prejudicados por medidas do governo blanco, o governo

brasileiro adotou uma ação intimidatória contra os blancos. Desse modo,

pela primeira vez no Rio da Prata, Buenos Aires e Rio de Janeiro tinham

o mesmo interesse: apoiar os colorados que se sublevaram contra os

blancos no poder, em Montevidéu.

No Uruguai cruzavam-se, pois, os interesses do governo argentino,

brasileiro e paraguaio. Ante a tentativa de Montevidéu estabelecer

aliança com Assunção, tratou Mitre de compor-se com o Império. Afinal,

os governos argentino e brasileiro, ambos nas mãos de liberais,

convergiam ideologicamente e, pela primeira vez, havia interesses

comuns concretos – neutralizar os blancos uruguaios e Solano López.

Contudo, mais que o propósito imediatista de solucionar a guerra civil

uruguaia em favor dos colorados e de isolar Solano López, retirando o

respaldo externo dos que lhe faziam oposição dentro da Argentina,

concebia Mitre uma política de longo alcance. Por esta, Buenos Aires e

Rio de Janeiro, em lugar de disputarem entre si a hegemonia no Prata,

passariam a compartilhá-la, sendo a rivalidade entre os dois países

substituída pela colaboração. Ao se tornarem parceiros, Argentina e

Brasil favoreceriam a paz na região platina, estabelecendo nova

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correlação de força não só nas relações intracontinentais, como também

na relação entre as potências europeias. O projeto foi inviabilizado

porque seus opositores ascenderam ao poder nos dois países em 1868:

no Brasil o Partido Liberal foi substituído pelo Conservador e na

Argentina Sarmiento assumiu a presidência.254

A ideia de grandeza e superioridade brasileira diante do Paraguai fez

com que a opinião pública supusesse que o conflito seria solucionado

rapidamente. Entretanto, à medida que o tempo passava, seu desfecho parecia

cada vez mais distante no horizonte. Em Iaiá Garcia, o narrador machadiano, ao

mesmo tempo, relata esse clima de incertezas e critica o erro de avaliação dos

militares brasileiros.

Poucos poderiam supor, nos fins de 1866, que a campanha se protrairia

ainda cerca de quatro anos. O cálculo do general Mitre, relativo aos três

meses de Buenos Aires a Assunção, tinha já caído, é certo, no abismo das

ilusões históricas. Proclamações são loterias; a fortuna as faz sublimes ou

vãs. A do general argentino, que era já uma afirmação errada, exprimiu

contudo, no seu tempo, a convicção dos três povos. Do primeiro embate

com o inimigo, viu-se que a campanha seria rija e longa; a ilusão desfez-

se; ficou a realidade, que nem por isso encaramos com rosto aflito. Não

obstante, era difícil presumir, em outubro de 1866, que a guerra chegasse

até março de 1870. Supunha-se que um esforço ingente bastaria a

reparar Curupaity, a derrubar Humaitá, a vencer o ditador, não nos três

meses do general Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser

na realidade.255

254 DORATIOTO, Francisco, 2010, p.70-1.

255 Iaiá Garcia, p. 57-8.

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Apesar de inserir o episódio histórico e refletir criticamente a seu

respeito, o narrador machadiano não o faz por meio de uma postura visão séria

e ideológica, mas sim por meio da ironia. Inserido naquele contexto doméstico

da trama, o discurso pretensamente patriótico acaba se revelando caricato. No

discurso em que Valéria Gomes tenta angariar o apoio de Luís Garcia para

ajudá-la a convencer Jorge a ir para a guerra, os valores éticos e os sentimentos

cívicos saltam aos olhos.

― (...) Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as mães um

grande esforço e darem exemplos de valor, que não serão perdidos. Pela

minha parte, trabalho com o meu Jorge para que vá alistar-se como

voluntário; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou tenente; voltará

major ou coronel. Ele, entretanto, resiste até hoje; não é falta de coragem

nem patriotismo; sei que tem sentimentos generosos. Contudo, resiste...

― Qual razão dá ele?

― Diz que não quer separar-se de mim.

― A razão é boa.

― Sim, porque também a mim custaria a separação. Mas não se trata do

que eu ou ele podemos sentir: trata-se de cousa mais grave, – da pátria,

que está acima de nós.256

Analisado como um discurso sério, a fala de Valéria Gomes seria uma

verdadeira apologia aos ideais patrióticos – adequado, sobretudo, ao projeto

romântico da nossa literatura. Todavia, além de já ser muito estranho que uma

mãe queira convencer o filho a ir para uma guerra quando este, segundo ela,

não quer deixá-la sozinha – o normal deveria ser o contrário: um filho

inconsequente, sem medo de morrer, e uma mãe amedrontada, com medo de

256 Iaiá Garcia, p. 24.

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perdê-lo –, o verdadeiro motivo de Valéria Gomes não tem nada a ver com

sentimentos patrióticos, mas sim com os sentimentos amorosos do filho. Sendo

assim, o que a viúva deseja é afastar o filho da presença de Estela. Em último

caso, poderíamos dizer que ela prefere até vê-lo morto que casado com uma

pobre. O que Valéria deseja é punir o filho e corrigir-lhe os desvios de conduta.

Para Vitor Izecksohn (2009), era comum no século XIX que indivíduos

“problemáticos” fossem mandados para a vida militar. Ainda é comum nos

dias de hoje, em certos meios sociais, ouvir a máxima de que o recrutamento e a

vida militar serão bons para a formação do caráter moral dos jovens. Quando a

família perde o pulso, o militarismo usa suas algemas.

(...) Durante boa parte do século XIX o recrutamento militar foi

dificultado por forças locais e por um complexo sistema de isenções

legais que impedia o alistamento de pessoas pertencentes a vários

setores. A escassez permanente de soldados devia-se à fraqueza

estrutural da burocracia e ao caráter localista do recrutamento. As

condições da caserna podiam ser às vezes brutais, além do que o costume

indicava que as comunidades utilizavam as levas para ver-se livres dos

desordeiros. Mesmo considerando-se as exceções a essa perspectiva,

parece correto dizer que o recrutamento recaía sobre aqueles indivíduos

que figuravam no grupo dos pobres desprotegidos.

Desocupados, migrantes, criminosos, órfãos e desempregados eram os

principais alvos dos recrutadores. Durante a maior parte do século XIX o

serviço militar era considerado atividade brutal e perigosa, adequada apenas aos

indivíduos vistos socialmente como indesejáveis. Esse serviço possuía

implicações penais, dado o caráter disciplinar de sua ação sobre os indivíduos

considerados desqualificados, apartando-os do restante da sociedade por longos

períodos. Um deputado com larga experiência em assuntos militares

resumiu bem a condição dos recrutas ao enfatizar que “... a maior

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desgraça em todo o universo é ser um recruta no Brasil. É realmente um castigo,

um soldado comum é considerado como um escravo miserável”.257

A ruptura, pois, com os discursos ideológicos assimilados e propagados

pela estética romântica bem como a representação caricata de seus recursos

formais característicos evidenciam uma postura irônica do narrador

machadiano, que tem como objetivos centrais e correlacionados a ruptura com o

modelo tradicional de literatura praticado no contexto do século XIX e a

elaboração de um novo programa para a literatura brasileira. A suposta

fragmentação da obra de Machado de Assis em duas fases antagônicas não se

justifica quando se percebe a reiteração desse movimento desconstrutivo e

construtivo no corpo da narrativa, em todos os romances. Mais ainda, os

romances da década de 1870 não se alinham ao modelo narrativo concebido

pelos autores mais representativos do romantismo brasileiro nem aos princípios

ideológicos defendidos por ele. Embora escritos em tempos diferentes, os

romances machadianos seguem uma linha de coesão e coerência que mais os

une do que os separa. As diferenças entre eles podem ser relativas ao tempo, ao

acúmulo de leituras e experiências, que fazem com que mude a cada momento.

Estranho seria se trinta anos depois o autor olhasse para trás e constatasse que

não mudou nada. Contudo, isso não quer dizer que tenha se esquecido de quem

foi. O futuro não é a negação do passado, mas sim o resultado dele, como

demonstrou Machado de Assis em carta, escrita no dia 15 de dezembro de 1898,

destinada a José Veríssimo, que teria escrito um artigo sobre Iaiá Garcia na

Revista Brasileira, vol.16, p. 249.

O que você chama a minha segunda maneira naturalmente é mais aceita

e cabal que a anterior, mas é doce achar quem se lembre desta, quem a

257 IZECKSOHN, Vitor, 2009, p.398 [grifos meus].

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penetre e desculpe e até chegue a catar nela algumas raízes dos meus

arbustos de hoje.258

258 ASSIS, Machado. Correspondência. 1946, p. 153.

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10. CONCLUSÃO ou reflexões para o futuro.

Em documento datado de 18 de setembro de 2007, o Presidente da

República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o Ministro da Cultura, Gilberto Gil,

sancionaram a Lei Nº 11.522, que instituiu o ano de 2008 como o “Ano Nacional

Machado de Assis”259. O Ministério da Cultura e a Academia Brasileira de

Letras ficaram incumbidos de organizar a agenda e os eventos que marcariam a

comemoração do centenário de morte desse grande escritor brasileiro. Naquele

ano em especial, foram inúmeras as atividades que tentaram de alguma forma

reverenciar sua genialidade e contribuir para que sua memória permaneça viva.

Congressos e encontros literários aconteceram no Brasil e no exterior; novas

edições das obras completas foram lançadas, incluindo textos inéditos e, com

isso, provando a incompletude das antigas versões; estudos recentes foram

publicados ao passo que outros foram relançados, oferecendo novos caminhos

interpretativos ou reafirmando antigas premissas; dezenas de revistas e

periódicos estamparam o escritor em suas capas e páginas; almanaques,

dicionários, roteiros de leitura, filmes, especiais para a TV, páginas na internet.

Como em todos os meios de comunicação e de expressão artística e nos

mais variados espaços educacionais pôde-se notar a presença do Bruxo do

Cosme Velho, ficava claríssima a impressão de que tais eventos somaram-se em

uma grande festa. Sem dúvida, uma grande festa. Foi justamente esse o grande

problema. Pelo menos aos olhos de Gabriela Manduca Ferreira (2009), que em

seu excelente ensaio “Glorificação hipertrofiada: 1939 e 2008” apontava para o

risco de que os eventos que marcavam aquela celebração ficassem apenas na

259 Na última parte deste trabalho de pesquisa inserimos uma seção de ANEXOS, com imagens referentes à carreira do escritor Machado de Assis, a construção do mito em torno do seu nome, além de alguns dados estatísticos sobre a educação brasileira e a formação do leitor de literatura.

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exaltação do escritor, sem que isso representasse necessariamente que seus

textos atingiram o grande público leitor brasileiro contemporâneo.

Ao fazer um paralelo entre os centenários de nascimento (1939) e de

morte (2008) do escritor, a autora demonstra como, no primeiro caso, por

motivações ideológicas do governo Vargas, houve uma superexposição da

figura de Machado de Assis, elevado à condição de grande ícone nacional.

Helen Caldwell tece um breve e interessante comentário a respeito da ocasião:

A veneração a Machado de Assis seguiu por anos a fio. No centenário de

seu nascimento, em 1939, dezessete livros e mais de quinhentos artigos,

de trezentos e cinquenta escritores foram publicados sobre ele no Brasil.

Livros e artigos continuam a ser publicados como água, com a adesão

constante de novos escritores.260

Apesar de ter ocorrido, naquela ocasião, o que Gabriela Ferreira

chamou de “glorificação hipertrofiada” do escritor, seus textos continuaram

desconhecidos pelo povo. O risco de que o fenômeno se repetisse sessenta e

nove anos depois era iminente.

Tal lisonja não tem sentido, uma vez que se trata de incensar um escritor

que, ao contrário, precisa ser retirado das brumas.261

Infelizmente, o que foi visto em 2008 não trouxe paz às inquietações de

Gabriela Ferreira: Machado de Assis foi sim a figura mais “pop” do ano e só.

Apesar de tudo o que foi produzido e de todos os esforços para que o

centenário de sua morte não passasse em brancas nuvens, o escritor foi muito

260 CALDWELL, Helen, 2002, p. 220.

261 FERREIRA, Gabriela, 2009, p. 85.

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visto e pouco lido. Alguns ainda argumentarão que pior seria se não se fizesse

nada. Ora, nessa lógica entramos numa espécie de dilema, como aquele

proposto por Paula Brito em 1858 sobre qual seria o pior dos cegos: o cego de

nascença ou o cego por desgraça262. Em todo caso, parece-nos que o pior mesmo é

fingir que viu o que nunca esteve ali.

Toda essa questão da “hipertrofia” da figura de Machado de Assis não

constitui um fato isolado. O “espetáculo” armado para consagrar o autor é

claramente um sintoma da lógica dominante na sociedade ocidental

contemporânea, na qual o simulacro é elevado à condição de verdade.

A primeira fase de dominação da economia sobre a vida social

acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente

degradação do ser para o ter. A fase atual, em que a vida social está

totalmente tomada pelos resultados acumulados da economia, leva a um

deslizamento generalizado do ter para o parecer, do qual todo “ter”

efetivo deve extrair seu prestígio imediato e sua função última. Ao

mesmo tempo, toda realidade individual tornou-se social, diretamente

dependente da força social, moldada por ela. Só lhe é permitido aparecer

naquilo que ele não é. [17]263

O modo de vida das sociedades no capitalismo avançado fez com que

aos poucos se dê a substituição das ações reais pelas representações, das coisas

pelas imagens, do ser pela aparência, configurando assim toda uma dimensão

espetacular. Dessa maneira, toda a vida das sociedades e tudo o que era vivido

diretamente torna-se uma mera representação.

262 In: MASSA, Jean-Michel (org.), p. 50.

263 No livro A sociedade do espetáculo, o filósofo franco-suíço Guy Debord enumera 221 parágrafos, distribuídos em 9 capítulos, dos quais cada um traz uma espécie de tese a respeito do que se poderia conceituar como espetáculo. Sendo assim, a referência utilizada no contexto especifica o parágrafo do qual o trecho foi retirado, ao invés da página em que ele se encontra na edição aqui utilizada.

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A fragmentação da realidade faz com que o indivíduo perca a dimensão

do todo e se coloque alienado diante da vida – peça de um jogo no qual ele não

tem domínio ou autonomia para reivindicar alternativas e, portanto, funciona

como um agente de manutenção da ordem vigente. Os fragmentos do real não

são, dessa maneira, reagrupados pelo indivíduo, que passa a identificar na

parte a representação do todo. Essa realidade considerada parcialmente

apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte,

objeto de mera contemplação. Ocorre, por fim, a substituição da essência pela

aparência: a sacralização da ilusão.

Considerado em sua totalidade, o espetáculo é ao mesmo tempo o

resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é o

suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o

âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as formas particulares

– informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de

divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida

dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na

produção, e o consumo que decorre dessa escolha. Forma e conteúdo do

espetáculo são, de modo idêntico, a justificativa total das condições e

dos fins do sistema existente. O espetáculo também é a presença

permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo

vivido fora da produção moderna. [6]

É claro que não se pode dizer que todas as publicações de 2008 tenham

tido uma motivação meramente oportunista. Obviamente, excelentes trabalhos

foram lançados, principalmente no âmbito da crítica especializada, como, por

exemplo, o livro Machado de Assis: novas perspectivas sobre a obra e o autor no

centenário de sua morte, que – sob a organização de Antonio Carlos Secchin, Dau

Bastos e José Luís Jobim – reuniu excelentes e inéditos artigos escritos por

grandes nomes da pesquisa literária machadiana. No entanto, no plano geral,

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dentro do turbilhão de matérias que se referiram à vida e à obra de Machado de

Assis naquele contexto, encontramos perfeitos exemplos da dimensão espetacular

a qual se referiu Debord, como a revista Discutindo Literatura, que, no seu

exemplar de lançamento, estampou na capa “Machado de Assis: saiba tudo

sobre um dos maiores escritores brasileiros”. A revista é inteiramente dedicada

ao escritor, com mais de dez artigos que analisam diversos aspectos da obra,

legitimando toda a sua importância, não por meio de análises de especialistas

da área, mas com pequenos depoimentos pessoais de artistas que de alguma

forma estão na mídia, seja no rádio ou na televisão. Há ainda dicas de pesquisa

na internet – como a enciclopédia virtual aberta “Wikipédia”, que oferece um

apanhado geral sobre a vida e a obra do escritor e outras informações interessantes,

como o fato de Machado ter sido um ótimo jogador de xadrez264 – e de como resolver

as questões de vestibulares que usem textos machadianos – “Dom Casmurro” é

um dos títulos preferidos do meio docente e acadêmico e, por extensão, leitura

obrigatória no Ensino Médio265.

Além da qualidade questionável dos textos, que, por vezes, legitimam

análises preconceituosas em relação à obra266, a revista em sua estreia pega

carona nas comemorações do centenário da morte de Machado de Assis,

desejando, a partir daí, quem sabe, cativar o leitor para os próximos números. A

difusão de caminhos de abordagem da vida e da obra do escritor e o

264 FAZZOLARI, Davi. “Sinal dos tempos”. In: Revista Discutindo Literatura [especial]. Ano 1, nº 1, 2008, p. 61.

Vale lembra que justamente por ser aberta e, nesse sentido, permitir que toda pessoa, seja ela especialista ou não, publique anonimamente seus comentários, não são raras as vezes em que se apresentam no site “Wikipédia” informações imprecisas ou mesmo equivocadas, exigindo, portanto, do leitor certo discernimento crítico para não tomá-las como referências altamente confiáveis. Nesse sentido, a “dica” acaba sendo bastante perigosa para o leitor a quem a revista aparentemente se dirige.

265 Como o texto é anônimo passa a ser responsabilidade dos editores da Revista Discutindo Literatura [especial]. Ano 1, nº 1, 2008, p. 63.

266 “A obra machadiana pode ser dividida esquematicamente em duas fases: a primeira, menos relevante quanto ao valor literário, é chamada romântica; a segunda, época de maturidade literária do autor, foi nomeada realista pela historiografia literária.” (CRUZ, Thiago et all: 2008, p. 46 – grifos nossos)

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direcionamento ao público estudantil do Ensino Médio parecem querer

legitimar a lógica de que é possível saber sobre o assunto sem ter contato com

os textos originais. O escritor, assim, converte-se em um excelente produto da

indústria cultural.

Hoje assistimos a uma solicitação intensa dos setores universitários pelas

empresas de comunicação em busca de assunto. A indústria cultural,

principalmente nas suas faixas de consumo mais exigentes, virou

divulgadora, diluidora ou exploradora do trabalho universitário crítico e

criador. Algumas figuras universitárias, antes circunscritas à vida

acadêmica e à produção para reduzidíssimo público, viraram, em pouco

tempo, personagens do consumismo cultural, diminuindo o intervalo

que há não pouco tempo separava a escola superior do leitor de nível

médio desses periódicos. Esse uso dos meios de difusão não partiu,

porém, da Universidade; chegou a ela, solicitou-a e até certo ponto

assimilou-a ao projeto modernizante em curso.267

Os caminhos que parecem tornar Machado de Assis a resposta certa

para tudo – como bem ilustra a tirinha do desenhista Charles M. Schulz (vide

Anexo 2), a qual, provavelmente, ao ser adaptada para o português, elegeu o

escritor como símbolo da vida escolar e que serviu de “epígrafe” do Almanaque

Machado de Assis (AGUIAR, 2008) – caracterizam mais um automatismo

alienado do que necessariamente uma opção consciente e crítica. Consagrá-lo

como o gênio brasileiro, como sugere o título de Daniel Piza (2005), é apresentá-lo

para o público leitor como uma figura pronta e que deve ser reverenciada pelo

que foi e pelo que representou. Resta saber se um escritor deita suas ideias no

papel para que elas sejam ocultadas pela grandiosidade de sua figura ou para

267 BOSI, Alfredo. “Cultura brasileira e culturas brasileiras”. In: _____. Dialética da colonização. 3ª edição. 1ª reimpressão. São Paulo: Civilização Brasileira, 1996, p.328.

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que elas em si fecundem na comunidade humana pela riqueza de seus

pensamentos e encantem pela beleza de seus recursos expressivos.

Seguir por esse caminho parece-nos uma opção equivocada, visto que a

reverência que se faz ao homem biográfico pode servir para maquiar o

alheamento que se tem em relação do trabalho do artista. Exaltar Machado de

Assis como um símbolo de superação pelas dificuldades que ele enfrentou ao

longo da vida – desde a sua origem humilde, passando por sua condição social,

seu fenótipo racial, sua formação escolar heterodoxa, chegando aos seus

inúmeros problemas de saúde – e que, apesar de tudo, ainda assim, conseguiu a

consagração muito antes da morte, certamente fazem dele uma grande figura

humana e um grande exemplo a ser seguido, mas isso não é suficiente para

fazer dele um grande escritor. Na história da sociedade brasileira e da

humanidade em geral, certamente podem ser encontrados outros grandes

exemplos de luta, perseverança e triunfo, que nunca escreveram uma linha

sequer. Portanto, cabe a pergunta: deve-se exaltar o escritor pelo homem que

ele foi ou pela obra que ele escreveu? Por conseguinte, parece-nos que a crítica

biográfica só pode fazer sentido se ela, antes de qualquer coisa, estabelecer um

diálogo permanente com o texto, no sentido de enriquecê-lo e não de mascará-

lo ou silenciá-lo.

Outro caminho que parece bastante perigoso no que compete à

divulgação da obra é aquele que visa aproximar o texto do leitor ao invés de

aproximar o leitor do texto. Adaptações, resumos de enredo, chaves

interpretativas, quando utilizadas como formas de marcarem o primeiro

contato do leitor com o escritor, tornam-se, muitas vezes, o único contato e,

sendo assim, contato nenhum, visto que aquele não foi o texto escrito por seu

criador. Tais ações, quando representam um fim em si mesmo, enquadram-se

plenamente na lógica dos simulacros da sociedade contemporânea. Nesses

casos, inclusive, não é nem o texto machadiano que se converte em produto da

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indústria cultural, mas apenas o rótulo Machado de Assis é usado como um

nome fantasia para comercializar outros produtos quaisquer.

O único motivo que deve levar o leitor ao texto de um determinado

escritor é a singular riqueza da sua composição estética. Qualquer outro motivo

que tome a frente disso se interpõe entre o leitor e a leitura e impede o que

deveria ser a busca fundamental em um texto literário. Logo, Machado de Assis

não deve ser lido porque foi um grande homem, capaz de cruzar a sociedade

brasileira de um extremo a outro, ou ainda porque seus textos são recorrentes

em provas e concursos, mas sim porque foi um grande escritor, capaz de

introduzir em nossa literatura formas literárias que inauguraram uma nova fase

em nossas letras e que, por isso mesmo, fazem com que seus textos sejam

completamente atuais.

A sobriedade do olhar do escritor, que soube – reconhecendo os dramas

do seu tempo – antecipar as potenciais tragédias do futuro, exige um leitor

orgânico, que busque incansavelmente percorrer seus passos. Para tanto, o

leitor deve ser capaz de perceber as sutilezas da ironia machadiana, que aponta

em todas as direções da sociedade brasileira de seu tempo – espaço e tempo

elegidos pelo autor para discutir os dramas atemporais da condição humana.

Partindo dessa premissa, cremos que o grande e real desafio do crítico literário

e do educador da área seja encontrar um meio para revelar ao leitor a

essencialidade da obra para os dias de hoje sem lhe alterar as feições originais.

Ou seja, é preciso preparar o leitor para o texto de Machado de Assis. Não o

contrário.

E onde tentamos nos posicionar em relação a toda essa problemática?

Quando, nos dias de hoje, alguém se propõe a refletir criticamente

sobre a obra de um escritor como Machado de Assis, tem de estar disposto a

ouvir questionamentos sobre a originalidade da sua análise, na medida em que

inúmeros outros críticos foram capazes de mergulhar profundamente nas linhas

do Bruxo do Cosme Velho. De uma maneira mais direta, a pergunta seria

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formulada da seguinte maneira: “Mas o que ainda se tem a dizer sobre

Machado?” E não seria difícil encontrar uma resposta pronta para ela –

“Sempre! Afinal, os gênios são inesgotáveis!” –, porém, quando não se quer

falar mais do mesmo, é preciso algo mais pensado e elaborado, em busca de

caminhos originais. Os pontos de convergência nas análises da obra, afinal, são

praticamente inevitáveis, o que não quer dizer com isso que os percursos

trilhados sejam necessariamente os mesmos.

(...) o fato de o escritor aproveitar elementos de outrem não significa que

sua obra não seja original, pois o modo como aproveita aqueles

elementos pode ser extremamente pessoal e típico de sua própria

poética. Em outras palavras, um mesmo motivo pode servir – em dois

escritores diferentes – a propósitos estéticos totalmente diversos, sendo a

sua utilização plenamente original.268

Nesse sentido, o medo de não ter contribuído para o estudo da obra

machadiana com um novo olhar não está necessariamente no centro dos nossos

desassossegos ao final desta análise, mas sim a possibilidade de que ela apenas

se some a um seleto e restrito conjunto de outros estudos que, na prática, ainda

estão bem longe de atingirem a grande massa de potenciais leitores de Machado

de Assis. No bojo dos eventos comemorativos do centenário de morte do

escritor, participamos do “Congresso Internacional Machado de Assis y/en

América Latina”, na cidade de Havana, Cuba, e, na ocasião, já esboçávamos a

preocupação de que os novos estudos, que estavam sendo publicados na

euforia daquele momento, não pudessem servir de modo mais direto e orgânico

à educação brasileira.

268 VOLOBUEF, 1999, p.23.

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(...) o grande desafio relançado pela obra machadiana nesse centenário é

maior do que pedir uma revisão crítica – que alcançará apenas aos

especialistas – mas sim, exigir uma reformulação dos princípios que

orientam a análise e o ensino de literatura em nosso país.269

Pelo exercício da crítica, uma obra deve ser realmente explorada ao

máximo, a fim de que se possa dimensionar a sua grandeza e perceber a sua

relevância. Colocando-se como uma espécie de mediador, o crítico é

responsável por oferecer luzes ao leitor para que ele melhor a visualize. Muitas

vezes, o problema está justamente na intensidade e no foco dessas luzes, que,

quando muito fracas, revelam pouco; quando fortes demais, ofuscam a visão;

quando dirigidas apenas a um ponto específico, deixam os outros nas trevas.

Encontrar esse limite é o grande desafio. É fato que a completa neutralidade é

uma tarefa praticamente impossível. Logo, se o risco de ser de algum modo

tendencioso é iminente, faz-se necessário, pensar nas consequências oriundas

de cada escolha que fazemos.

É dentro dessa perspectiva que acreditamos que a divisão da obra

machadiana em duas fases distintas e antagônicas, qualificadas respectivamente

de forma negativa e positiva, não só prejudica o entendimento do projeto

estético do escritor em sua totalidade, como também afasta o leitor de um certo

conjunto de textos, incutindo-lhe uma visões altamente preconceituosas. O

crítico acaba, pois, assumindo os papéis de censor e de carrasco do texto,

criando obstáculos que podem soterrá-lo no mais profundo esquecimento.

A ideia de uma quebra na unidade estrutural da obra impossibilita as

conexões que poderiam ser feitas na inter-relação do todo com as partes e em

269 HILÁRIO, Márcio Vinícius do Rosário. “Ressurreição: o início da modernidade no romance brasileiro”. (“Ressurreição: el comienzo de la modernidad en la novela brasileña”). In: Congresso Internacional Machado de Assis y / en América Latina. Havana/ Cuba: Casa de las Américas, 27-29 de agosto de 2008. (www.casadelasamericas.org/.../eventos/2008/assis/marciovinicius.doc)

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virtude disso impede valorização dos pontos de convergência, eliminando,

enfim, toda a sua amplitude e singularidade. Fundamentada na lógica de

interação de elementos antagônicos e regida pelo princípio da ironia poética, no

jogo de narração e meta-narração, a obra machadiana teve a lucidez de refletir

criticamente tanto a sociedade brasileira quanto o projeto cultural e ideológico

que se impunha a ela por meio da literatura. Machado encenou a

multiperspectivação do olhar, porque jamais adotou um ponto de vista fixo e

doutrinário em seu projeto estético. O resultado disso acabou sendo muitas

vezes a mais pura incompreensão. Sendo assim, para os críticos

contemporâneos ao romantismo, seus textos careciam de traços mais nítidos no

que se referia à representação da ideologia nacionalista da época −

principalmente na pintura dos quadros da chamada “cor local” – e de um

posicionamento moral mais claramente definido, conforme o padrão

pedagógico e moralista dos romances de então, que executavam a tarefa de

verdadeiros manuais de conduta social. Por outro lado, quando os olhos da

crítica ajustaram seu foco para a leitura dos romances realistas, esses mesmos

textos de outrora, que antes eram tidos como pouco românticos, foram

convertidos em típicos representantes da mais pura tradição romanesca. Pior do

que isso, como resultado dessa redefinição de foco interpretativo, essa nova

qualificação assumiu um valor pejorativo, fazendo com que a produção de um

determinado período da vida do escritor passasse a representar uma espécie de

subliteratura machadiana.

A busca – seja da originalidade a cada passo, seja da excitação intelectual

em base puramente emocional, a leitura dirigida para os “melhores

momentos” do romancista – dificultou a descoberta daquela que talvez

seja a qualidade essencial de Machado de Assis: a busca lenta e mediada

do esforço criador em favor de uma profundidade que não é criada pelo

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talento inato, mas pelo exercício consciente e duplo, da imaginação e dos

meios de expressão de que dispõe todo e qualquer romancista.270

As consequências dessa postura interpretativa são duplamente

negativas. No plano do entendimento da obra, como foi demonstrado, a quebra

da sua unidade estrutural e, por extensão, da ideia de que se trata de um todo

coeso e coerente faz com que não se perceba o jogo de oposições tão

característico do escritor desde o início de sua carreira literária e com que se

segregue uma boa parte da vida literária do escritor, marginalizando-a e

condenando-a a um possível futuro esquecimento. Já no plano da formação do

leitor machadiano, o condicionamento do olhar, a partir de uma perspectiva

repleta de preconceitos, não só lhe incute uma visão deturpada da produção do

artista, como também lhe obstruiu a atitude autônoma como intérprete da obra.

Em crônica publicada na Semana Ilustrada em 15 de agosto de 1876,

Machado de Assis, ao tomar conhecimento dos dados referentes à população

brasileira, a partir da publicação do recenseamento do Império, revela toda sua

indignação com o alto índice de analfabetismo. Desse modo, o autor deixa

entrever que, em sua perspectiva, a construção de uma sociedade mais justa e

equilibrada depende fundamentalmente da participação ativa do cidadão. Por

conseguinte, o exercício pleno da cidadania está intimamente ligado à formação

do indivíduo, que, por sua vez, não pode ser excluído do mundo das letras.

— A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país

que podem ler; desses uns 9% não leem letra de mão. 70% jazem em

profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles; é não

saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem se, realmente,

pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que

respiram; sem saber porque nem o quê. Votam como vão à festa da

270 SANTIAGO, 1978, p. 30.

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Penha – por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa

inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou

um golpe de Estado.

(...)

— As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho

uma reforma no estilo político. Não se deve dizer: "consultar a nação,

representantes da nação, os poderes da nação"; mas - "consultar os 30%,

representantes dos 30%, poderes dos 30%". A opinião pública é uma

metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na

Câmara: "Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem..."

dirá uma coisa extremamente sensata.271

Esse trecho simula o discurso do “Sr. Algarismo”, que seria muito

mais objetivo e contundente do que as “letras”, as quais, com a força da

retórica, podem maquiar a realidade. O “Sr. Meireles Queles”, a quem se faz

menção no fragmento, é um personagem fictício criado por Machado para nessa

crônica simbolizar metonimicamente os políticos da época. Com isso, o autor

deseja acentuar a ideia de que o analfabetismo impede que o povo tenha armas

para se defender da ação manipuladora dos discursos dos políticos que

falsamente o representam. Na sua concepção, portanto, a leitura não é apenas

uma das múltiplas habilidades que podem ser desenvolvidas pelos seres

humanos, mas, acima de tudo, uma necessidade do homem para que possa

ampliar sua visão de mundo e garantir a sua participação ativa na sociedade

pelo exercício da cidadania. No plano concebido pelo autor para o

amadurecimento das letras nacionais, a literatura tem um papel social, na

medida em que concilia a riqueza estética com a necessidade de um leitor

qualificado para ela.

271 In: Crônicas. 3º volume (1871-1878), 1946, p. 103.

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Confrontando a taxa de analfabetismo à qual Machado fez referência na

crônica de 1876 com a atual, poderíamos concluir que houve uma melhora

considerável no quadro social brasileiro. Afinal, os índices de 2009 apontam

para algo em torno de 10% da população272. No entanto, seria uma grande

ilusão nossa acreditar que, com 90% da população alfabetizada, temos hoje um

excelente universo de indivíduos aptos à leitura profunda das mais variadas

tipologias textuais e, por extensão, capacitados a uma participação orgânica na

vida política e cultural do país.

O primeiro aspecto a ser considerado nesse âmbito diz respeito ao

próprio conceito de analfabetismo. Na crônica machadiana, o indivíduo

analfabeto é caracterizado como alguém que não sabe reconhecer os elementos

gráficos da língua e articulá-los foneticamente, fazendo, assim, a leitura do

vocábulo. Há menção, inclusive, àqueles que dominam a grafia impressa e não

a manuscrita, o que nos leva a crer que, se o número de leitores já era reduzido,

menor ainda era o daqueles que dominavam a escrita. É nesse perfil em que o

autor enquadra 70% de seus contemporâneos e no qual se encontram

atualmente 10% dos brasileiros. Todavia, isso não representa o número total de

analfabetos que o país tem hoje, visto que esse índice não inclui um outro perfil,

que se enquadra no chamado “analfabetismo funcional”.

O analfabeto funcional é aquele indivíduo que frequentou ou ainda

frequenta a escola e que, apesar de saber ler e escrever, apresenta enormes

dificuldades para compreender textos curtos e localizar informações, mesmo

quando elas estão explícitas. Em seu texto “Uma lenta caminhada para vencer o

analfabetismo funcional”, Michele Silva (2009) analisa essa dura realidade

vivida por muitos de nossos jovens, considerando os dados recém-divulgados

pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM), vinculado ao IBOPE:

272 Encontram-se nos ANEXOS algumas tabelas ilustrativas, nas quais há um maior detalhamento para os dados já mencionados e os que se seguirão.

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Essa triste condição é parte da vida de 15% da população brasileira com

idade entre 15 e 24 anos que é considerada analfabeta funcional,

segundo o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgado neste

mês. Desses jovens, 2% são analfabetos absolutos (não sabem ler e

escrever, embora alguns consigam ler números familiares) e 13% são

alfabetizados de nível rudimentar (leem textos curtos, como cartas, e

lidam com números em operações simples, como o manuseio de

dinheiro).

E conclui:

A parcela de jovens brasileiros que está no patamar ideal, o de

alfabetizados de nível pleno (aqueles que leem e interpretam textos

longos e resolvem cálculos com maior quantidade de elementos e

etapas), está longe de ser satisfatória: eles são apenas um terço da

população.273

Vale lembrar que a pesquisa trabalhou na faixa dos 15 a 24 anos de

idade, mas os dados do IBGE, relativos ao mesmo ano e os quais consideram

todos os indivíduos acima de 15 anos, elevam esses números para 20,3%.

Apesar disso, não há dúvida de que é um índice menos desastroso do que o

horrendo quadro apresentado por Machado de Assis em 1876. Entretanto, ainda

assim, por trás dos algarismos, há uma série de outras questões a serem

analisadas para que certos problemas sejam identificados e resolvidos, a fim de

que tenhamos um melhor horizonte para a leitura no Brasil. Por exemplo, se

forem aplicados ao conjunto dos leitores plenos alguns critérios de nivelamento

– considerando o domínio das habilidades, de acordo com os graus de

273 SILVA, Michele (2009). In: http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/avaliacao/uma-lenta-caminhada-analfabetismo-funcional-alfabetismo-inaf-instituto-paulo-montenegro-leitura-escrita-518768.shtml

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dificuldade estabelecidos, como o que foi feito para identificar analfabetos

funcionais –, também encontraremos o “leitor A” e o “leitor B”. E qual desses

tipos seria o perfil desejado pelo Bruxo?

(...) o imenso crescimento do aparelho escolar, das bibliotecas, do parque

editorial, das edições de seus livros [de Machado de Assis], do

reconhecimento da importância e permanência de sua obra, tudo isso, e

algo mais, indicam uma glória construída (com merecimento), mas

ainda não garantem leitura e, menos ainda, boa e consequente leitura.274

A vida moderna desenvolveu novas possibilidades comunicativas,

aumentando, assim, o espaço para circulação de informações e oferecendo

outras formas de entretenimento. Da era do rádio, passando pelo apogeu da

televisão e chegando à rede mundial de computadores, muitas transformações

impactaram diretamente o mundo das letras. É claro que o livro, enquanto

objeto e veículo, sobreviveu, mas não ficou imune à lógica do mercado e foi

assimilado pela indústria cultural. Com o aumento da produção editorial e com

as pressões mercadológicas que fazem com que se repita sempre a mesma

fórmula de sucesso de vendagem, textos que trabalham com um maior grau de

complexidade estética alcançam apenas a um grupo muito específico e

enormemente limitado de leitores. O contingente geral de leitores médios –

vitimados pela dinâmica espetacular da superficialidade, da comunicabilidade

direta e da utilidade prática do texto – acaba não desenvolvendo o gosto pela

beleza artística da forma e aprofundando menos o domínio de técnicas mais

sofisticadas de leitura.

Ainda que os textos informativos veiculados pela mídia escrita

alcancem a um número maior de leitores do que os textos técnico-científicos –

os quais se voltam quase exclusivamente para o mundo acadêmico –, ambos 274 FACIOLI, 2004, orelha.

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apresentam uma característica essencial em comum: o valor denotativo. Ou

seja, esses são textos predominantemente referenciais e, portanto, valem pela

clareza com que transmitem o conteúdo e não pela riqueza com que trabalham

a palavra enquanto objeto artístico. Em outras palavras, enquanto os textos

informativos e científicos zelam pelo valor denotativo e pela função referencial,

a literatura preza pelo valor conotativo e pela função poética da linguagem.

Nesse sentido, embora os primeiros possam ser muito bem escritos, jamais

alcançarão o mesmo patamar de riqueza formal de um texto literário ou

exigirão do leitor igual habilidade de decodificação. Por conseguinte, quando se

pensa em leitor, há que se diferenciar o leitor geral do leitor de literatura. Mais

do que isso, reconhecendo tal especificidade, é preciso formar, dentro de uma

perspectiva autônoma, um número cada vez maior de leitores críticos e aptos

aos desafios do texto literário. E para a construção dessa autonomia são

indispensáveis uma crítica responsável e uma educação engajada.

A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não

deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre

da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. Cada vez me convenço

mais de que, desperta com relação à possibilidade de enveredar-se no

descaminho do puritanismo, a prática educativa tem de ser, em si, um

testemunho rigoroso de decência e de pureza. Uma crítica permanente aos

desvios fáceis com que somos tentados, às vezes ou quase sempre, a deixar as

dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos colocar. Mulheres e

homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de

valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso,

nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é

a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos

longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora

da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que

transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é

amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o

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seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino

dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando.

Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou

a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado.

De testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem possui a

verdade, um rotundo desacerto. Pensar certo, pelo contrário, demanda

profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos

fatos. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a

possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo. Mas

como não há pensar certo à margem de princípios éticos, se mudar é

uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda - exige o pensar

certo - que assuma a mudança operada. Do ponto de vista do pensar

certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. É que todo

pensar certo é radicalmente coerente.275

Portanto, nos caminhos que levam a Joaquim Maria Machado de Assis,

precisamos estar atentos a muitos obstáculos: os fenômenos que meramente

fazem uma louvação hipertrofiada à sua figura em detrimento da leitura da sua

obra; as tentativas de modificação do texto original em nome do

pseudodiscurso da acessibilidade; a fragmentação da unidade da obra, a

exclusão de uma importante face artística do escritor e, por conseguinte, a

condenação de certos textos ao esquecimento; a manipulação da leitura e o

impedimento da formação de um leitor verdadeiramente crítico e autônomo.

Somadas, todas essas práticas impedem aquilo para o qual Machado de Assis

sempre lutou e para onde precisamos caminhar até hoje: o amadurecimento de

nossas letras e a formação crítica do povo brasileiro.

Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de

Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais

275 FREIRE, Paulo, 1999, p. 36-37 – grifos nossos.

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duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão

para ela até perfazê-la de todo.276

Em suma, estudar com competência as obras dos grandes escritores da

nossa literatura, como Machado de Assis, é ao mesmo tempo um direito

inalienável de todo brasileiro e uma necessidade para a construção de uma

nação mais crítica, mais justa e mais equilibrada. Para tanto, é mais do que um

dever, é uma obrigação tanto do crítico quanto do educador de literatura lutar

intensamente para que o silêncio nunca vença o talento.

276 ASSIS, Machado. “Instinto de Nacionalidade”. In: _____. Crítica literária, 1946, p. 133.

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206

12. ANEXOS

ANEXO 1277

278 279

277 Os livros didáticos costumam estampar os rostos dos escritores quando eles já são nomes consagrados e encontram-se em uma fase mais madura da vida. No caso de Machado de Assis, a imagem – seja desenho, pintura ou fotografia – mais conhecida é a de um senhor grisalho nos cabelos e na barba. Para Hélio de Seixas Guimarães (“A composição de uma figura: Anotações sobre as fotografias de Machado de Assis”. In: GUIMARÃES & SACCCHETA (org.), 2008, p. 10), “A respeitabilidade do escritor, associada a certa sisudez, reitera-se pelo pequeno número de caricaturas que parecem escassear à medida que o tempo avança. Esses registros mais irreverentes se concentram no início da carreira e praticamente desaparecem com a crescente consagração do escritor”.

A sugestão que fica para o aluno é, muitas vezes, a falsa ideia de que há certos homens que já nasceram prontos. Seria interessante resgatar visualmente as várias fases da vida do escritor, tornando-o, assim, menos “pronto” e mais em constante metamorfose. As imagens aqui selecionadas, portanto, representam o Machado de Assis da década de 1870 – período no qual escreveu os romances analisados nesta tese.

278 Machado de Assis em carte de visite de Insley Pacheco, c. 1874. In: GUIMARÃES & SACCHETTA (org.), 2008, p. 43.

279 Machado de Assis, carte de visite do estúdio fotográfico Alberto Henschel, c. 1876. In: Idem, p. 61.

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ANEXO 2280

281

280 Desde muito jovem, Machado de Assis começou a despontar no cenário das letras nacionais. Não seria correto, pois, afirmar que autor tornou-se grande somente depois de 1881 após a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas.

281 “Em 1873, Machado de Assis, que estreara como romancista no ano anterior, com Ressurreição, aparece (...) ao lado de José de Alencar, consagrado autor de O guarani”. In: GUIMARÃES & SACCHETTA (org.), 2008, p. 56-7.

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208

ANEXO 3282

283 284

285 286

282 Folhas de rosto das primeiras edições de Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878).

283 In: GUIMARÃES & SACCHETTA (org), 2008, p. 54.

284 Idem, p. 60.

285 Idem, p. 62

286 Idem, p. 64.

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ANEXO 4287

288

289

287 Mais um exemplo que comprova o fato de que Machado de Assis já era visto pela crítica como um escritor de valor universal anos antes de publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas.

288 “No detalhe, Machado de Assis aparece esculpindo Helena num globo terrestre; para a crítica da época, com seu terceiro romance, Machado atingia o padrão internacional”. In: GUIMARÃES, 2004, p. 104.

289 “(...) ilustração de Bordalo Pinheiro coloca a publicação do romance Helena, em folhetins do jornal O Globo, entre os fatos mais importantes daquela semana de agosto de 1876”. In: Idem, p. 104-5.

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210

ANEXO 5290

291

292

290 Os exemplos em anexo demonstram uma espécie de consenso em torno do nome de Machado de Assis como o maior escritor da literatura brasileira.

291 Tirinha do desenhista Charles M. Schulz, a qual, provavelmente, ao ser adaptada para o português, elege Machado de Assis como o escritor símbolo da vida escolar. In: AGUIAR, Luiz Antônio. Almanaque Machado de Assis: vida, obra, curiosidades e bruxarias literárias. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.

292 Selos comemorativos do centenário de nascimento (1939) e do cinquentenário de morte (1958) e cédula de Cz$ 1000 (mil cruzados). In: GUIMARÃES & SACCHETTA (org.), 2008, p. 10.

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ANEXO 6

293

294

293 Documento da Lei Nº 11.522, de 18 de setembro de 2007, decretando 2008 como o “Ano Nacional Machado de Assis”. In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11522.htm.

294 Logomarca oficial para eventos e projetos da celebração. In: http://www.cultura.gov.br/site /2008/06/09/ano-nacional-machado-de-assis-2/

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ANEXO 7295

296

295 Em 2008, não só dentro do Brasil Machado de Assis recebeu homenagens, diversos eventos internacionais foram organizados para prestar reverências ao autor e ampliar os limites do estudo de sua vida e obra.

296 Cartaz do “Congresso Internacional Machado de Assis y/en América Latina”, organizado pela Casa de Las Américas, Havana (Cuba), e ocorrido entre os dias 27 e 29 de setembro de 2008. In: www.casadelasamericas.org.

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ANEXO 8297

297 Machado de Assis figurando em capas de revistas no ano do centenário de sua morte, em 2008. O autor foi, de certa maneira, convertido em produto da indústria cultural.

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214

ANEXO 9298

299

300 298 Apesar de as taxas brasileiras de analfabetismo virem caindo ao longo dos anos, isso não necessariamente significa que o número de leitores de textos literários seja diretamente proporcional ao número de indivíduos que podem ler. Nesse sentido, tanto os leitores machadianos de ontem como os de hoje representam um conjunto ainda muito pequeno.

299 Tabela referente ao ano de 2009 com o número de “Pessoas de 15 anos ou mais de idade, analfabetas, total e respectiva distribuição percentual, por grupos de idade e cor ou raça, segundo as Grandes Regiões”. Fonte: IBGE. In: www.ibge.gov.br

300 Os Indicadores Sociais do Brasil revelam que, em 2010, a taxa de alfabetização das pessoas de 15 anos de idade ou mais foi de 90% e a taxa bruta de matrículas para todos os níveis de ensino foi de 87,2%. Fonte: IBGE. In: http://www.ibge.gov.br/paisesat/main.php.

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215

ANEXO 10301

302

303 301 Um dos fenômenos mais complexos da realidade educacional brasileira é o “Analfabetismo Funcional”, que afeta um grande número de pessoas que, apesar de saberem ler e escrever, têm dificuldade em interpretar textos simples e identificar neles certos elementos mesmo quando são explícitos.

302 Tabela referente ao ano de 2009 com a “Taxa de analfabetismo funcional das pessoas de 15 anos ou mais de idade, por características selecionadas, segundo as Grandes Regiões”. Fonte: IBGE. In: www.ibge.gov.br.

303 O Analfabetismo Funcional não é um fenômeno que está relacionado ao baixo grau de escolaridade do indivíduo, mas sim à baixa qualidade do ensino em todos os níveis, inclusive no superior. In: http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/avaliacao/uma-lenta-caminhada-analfabetismo-funcional-alfabetismo-inaf-instituto-paulo-montenegro-leitura-escrita-518768.shtml